a independência e uma cultura de história no brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu...

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5 Almanack. Guarulhos, n.08, p.5-36, 2º semestre de 2014 fórum A Independência e uma cultura de história no Brasil 1 The Independence of Brazil and a Culture of History João Paulo Pimenta, César Augusto Atti, Sheila Virgínia Castro, Nadiesda Dimambro, Beatriz Duarte Lanna, Marina Pupo e Luís Otávio Vieira (FFLCH/USP – São Paulo/Brasil) 2 Resumo O objetivo deste artigo é propor uma análise preliminar de atitudes e valores que os brasileiros da atualidade nutrem diante de um fato histórico específico – a Independência do Brasil – bem como refletir acerca das relações de tais valores e atitudes com condições acadêmicas de formulação intelectual em torno do fato histórico. A investigação está baseada em livros didáticos, best-sellers, vídeos, filmes e magazines de história, bem como em uma pesquisa de opinião pública. Por fim, o artigo discute a noção de “cultura de história”, e como a mesma pode eventualmente pautar valores sociais dos brasileiros em relação ao passado. Abstract The aim of this article is to propose a preliminary analysis of attitudes and values that Brazilians have nowadays about a specific historical event – the Independence of Brazil – as well as reflecting on the relationship of such values and attitudes towards academic conditions of intellectual formulation around a historical fact. The research is based on textbooks, bestsellers, videos, movies and History magazines as well as on a public opinion pool. Finally, the article discusses the notion of “culture of history”, and how it can possibly guide Brazilian social values about the past. Palavras-chave Independência, cultura de história, história pública, ensino de história, historiografia Keywords Independence, culture of history, public history, history teaching, historiography 1 Versões iniciais desta pesquisa foram apresentadas no Instituto de História da PUC-Chile (junho de 2013), no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (julho de 2013), no Fórum da revista Almanack, na Universidade Federal de São Paulo (maio de 2014), e na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (outubro de 2014), ocasiões em que seus autores puderam aproveitar- se enormemente de críticas e sugestões realizadas por Fernando Purcell, Rafael Sagredo, Ana Maria Stuven, Patricio Bernedo, Felipe Del Solar, Barbara Silva, Javiera Müller, Nuno Gonçalo Monteiro, José Luís Cardoso, Roberta Stumpf, Andréa Slemian, Marcelo Vieira Magalhães, Miguel da Cruz, Wilma Peres Costa, André Roberto Machado, Marcelo de Souza Magalhães, Helenice Rocha, Eunícia Barcelos Fernandes, Cristiani Bereta da Silva e Juçara Barbosa de Mello. Nas duas últimas ocasiões, Rebeca Gontijo, Iara Lis Schiavinatto e Ângela de Castro Gomes ofereceram amplas e circunstanciadas resenhas críticas do texto. Sérgio Campos Mattos, Fábio Franzini e Elaine Lourenço se interessaram pelo trabalho desde o início, com ele colaborando de diversas formas. E Jaqueline Lourenço e a direção do Colégio Dante Alighieri (São Paulo) viabilizaram etapas importantes de sua realização. A todos eles, nossos profundos agradecimentos. 2 João Paulo Pimenta é professor Livre-Docente no Departamento de História da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), e-mail: [email protected]; César Augusto Atti é graduado em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) e professor da rede pública de ensino do Estado de São Paulo, e-mail: [email protected]; Sheila Virgínia Castro é graduanda em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), e-mail: [email protected]; Nadiesda Dimambro é graduada em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), e-mail: [email protected]; Beatriz Duarte Lanna é graduanda em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), e-mail: bduartelanna@gmail. com; Marina Pupo é graduanda em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) e em Direito DOI - http://dx.doi.org/10.1590/2236-463320140801

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Page 1: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

5Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

A Independecircncia e uma cultura de histoacuteria no Brasil1

The Independence of Brazil and a Culture of History

Joatildeo Paulo Pimenta Ceacutesar Augusto Atti Sheila Virgiacutenia Castro Nadiesda Dimambro Beatriz Duarte Lanna Marina Pupo e Luiacutes Otaacutevio Vieira(FFLCHUSP ndash Satildeo PauloBrasil)2

ResumoO objetivo deste artigo eacute propor uma anaacutelise preliminar de atitudes e valores que os brasileiros da atualidade nutrem diante de um fato histoacuterico especiacutefico ndash a Independecircncia do Brasil ndash bem como refletir acerca das relaccedilotildees de tais valores e atitudes com condiccedilotildees acadecircmicas de formulaccedilatildeo intelectual em torno do fato histoacuterico A investigaccedilatildeo estaacute baseada em livros didaacuteticos best-sellers viacutedeos filmes e magazines de histoacuteria bem como em uma pesquisa de opiniatildeo puacuteblica Por fim o artigo discute a noccedilatildeo de ldquocultura de histoacuteriardquo e como a mesma pode eventualmente pautar valores sociais dos brasileiros em relaccedilatildeo ao passado

AbstractThe aim of this article is to propose a preliminary analysis of attitudes and values that Brazilians have nowadays about a specific historical event ndash the Independence of Brazil ndash as well as reflecting on the relationship of such values and attitudes towards academic conditions of intellectual formulation around a historical fact The research is based on textbooks bestsellers videos movies and History magazines as well as on a public opinion pool Finally the article discusses the notion of ldquoculture of historyrdquo and how it can possibly guide Brazilian social values about the past

Palavras-chaveIndependecircncia cultura de histoacuteria histoacuteria puacuteblica ensino de histoacuteria historiografia

KeywordsIndependence culture of history public history history teaching historiography

1Versotildees iniciais desta pesquisa foram apresentadas

no Instituto de Histoacuteria da PUC-Chile (junho de 2013) no Instituto de Ciecircncias Sociais da Universidade de Lisboa (julho de 2013) no Foacuterum da revista Almanack na Universidade Federal de Satildeo Paulo (maio de 2014) e na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (outubro de 2014) ocasiotildees em que seus autores puderam aproveitar-se enormemente de criacuteticas e sugestotildees realizadas por Fernando Purcell Rafael Sagredo Ana Maria Stuven Patricio Bernedo Felipe Del Solar Barbara Silva Javiera Muumlller Nuno Gonccedilalo Monteiro Joseacute Luiacutes Cardoso Roberta Stumpf Andreacutea Slemian Marcelo Vieira Magalhatildees Miguel da Cruz Wilma Peres Costa Andreacute Roberto Machado Marcelo de Souza Magalhatildees Helenice Rocha Euniacutecia Barcelos Fernandes Cristiani Bereta da Silva e Juccedilara Barbosa de Mello Nas duas uacuteltimas ocasiotildees Rebeca Gontijo Iara Lis Schiavinatto e Acircngela de Castro Gomes ofereceram amplas e circunstanciadas resenhas criacuteticas do texto Seacutergio Campos Mattos Faacutebio Franzini e Elaine Lourenccedilo se interessaram pelo trabalho desde o iniacutecio com ele colaborando de diversas formas E Jaqueline Lourenccedilo e a direccedilatildeo do Coleacutegio Dante Alighieri (Satildeo Paulo) viabilizaram etapas importantes de sua realizaccedilatildeo A todos eles nossos profundos agradecimentos

2Joatildeo Paulo Pimenta eacute professor Livre-Docente

no Departamento de Histoacuteria da Universidade de Satildeo Paulo (FFLCHUSP) e-mail jgarridouspbr Ceacutesar Augusto Atti eacute graduado em Histoacuteria pela Universidade de Satildeo Paulo (FFLCHUSP) e professor da rede puacuteblica de ensino do Estado de Satildeo Paulo e-mail cesarattiyahoocom Sheila Virgiacutenia Castro eacute graduanda em Histoacuteria pela Universidade de Satildeo Paulo (FFLCHUSP) e-mail svcastro83gmailcom Nadiesda Dimambro eacute graduada em Histoacuteria pela Universidade de Satildeo Paulo (FFLCHUSP) e-mail nanadimambrogmailcom Beatriz Duarte Lanna eacute graduanda em Histoacuteria pela Universidade de Satildeo Paulo (FFLCHUSP) e-mail bduartelannagmailcom Marina Pupo eacute graduanda em Histoacuteria pela Universidade de Satildeo Paulo (FFLCHUSP) e em Direito

DOI - httpdxdoiorg1015902236-463320140801

6Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica (PUC-SP) e-mail marinapupogmailcom Luiacutes Otaacutevio Vieira eacute graduando em Histoacuteria pela Universidade de Satildeo Paulo (FFLCHUSP) e bolsista da Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa do Estado de Satildeo Paulo (FAPESP) e-mail luisotaviovieirauspbr

3DEVOTO Fernando Introduccioacuten In _________

(Dir) Historiadores ensayistas y gran puacuteblico la historiografiacutea argentina 1990-2010 Buenos Aires Biblos 2010 p 10 (evocando uma ideia de Krzysztof Pomian)

4Reconhecemos que tal proposta estaria

melhor enquadrada com a devida apreciaccedilatildeo de outras certamente muito proacuteximas a ela relativas a ldquocultura histoacutericardquo ldquocultura poliacuteticardquo e ldquoenquadramentos de memoacuteriardquo mas que aqui natildeo puderam ser consideradas a tempo LE GOFF Jacques Histoacuteria Histoacuteria e memoacuteria Campinas EDUNICAMP 1990 p47-48 GOMES Acircngela de Castro Cultura Poliacutetica e cultura histoacuterica no Estado Novo In ABREU Martha SOIHET Rachel GONTIJO Rebeca (Org) Cultura Poliacutetica e leituras do passado historiografia e ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2007 p43-63 e GOMES Acircngela de Castro Historia historiografiacutea y cultura poliacutetica en Brasil algunas reflexiones Ayer v 2 2008 p115-139

5MATOS Seacutergio Campos Consciecircncia histoacuterica e

nacionalismo Portugal seacuteculos XIX e XX Lisboa Horizonte 2008

6Para o quecirc vale a distinccedilatildeo entre operaccedilotildees

de memoacuteria individual e de memoacuteria coletiva estabelecidas por Paul Ricoeur RICOEUR Paul A memoacuteria a histoacuteria o esquecimento Campinas Editora Unicamp 2007 parte 1

1 ndash Apresentaccedilatildeo cultura de histoacuteriaA escrita da Histoacuteria natildeo eacute e nunca foi monopoacutelio dos historiadores3 De muitas maneiras ela sempre foi compartilhada entre profissionais da mateacuteria e uma grande variedade de agentes sociais de formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo igualmen-te variados a imporem um processo permanente de disputa e negociaccedilatildeo Atualmente poder-se-ia falar em educadores escritores cineastas artistas plaacutesticos jornalistas juristas poliacuteticos profissionais publicitaacuterios e teoacutelogos aleacutem de outras pessoas em geral a representarem reproduzirem e eventual-mente criarem conhecimentos histoacutericos em uma interaccedilatildeo mais ou menos harmocircnica mais ou menos conflitiva ndash mas sempre dinacircmica e contraditoacute-ria ndash com historiadores acadecircmicos e demais cientistas sociais Essa intera-ccedilatildeo eacute fenocircmeno relevante No entanto e a despeito de uma clara tendecircncia mundial de proliferaccedilatildeo de estudos acerca do papel puacuteblico desempenhado pelos historiadores assim como de um crescente envolvimento dos mesmos em espaccedilos a eles oferecidos pela sociedade ainda parece muito escassa a reflexatildeo em torno de alguns pressupostos dessa relaccedilatildeo entre historiadores e seu meio social especialmente agrave luz da constataccedilatildeo de que os saberes formulados por tais profissionais estatildeo submetidos natildeo apenas ao seu meio social em geral mas tambeacutem a um conjunto de saberes especiacuteficos presentes veiculados e reproduzidos por esse meio

Tal observaccedilatildeo aparentemente oacutebvia ganha pertinecircncia na medida em que seu foco se ajusta mais precisamente em dois problemas conver-gentes 1) o da possibilidade de se extrair dessa relaccedilatildeo entre profissionais e natildeo profissionais da Histoacuteria uma caracterizaccedilatildeo mais ampla da sociedade onde ela ocorre 2) o do ponto de partida do estudo acadecircmicoprofissional de uma mateacuteria especiacutefica como parcialmente determinado pela alocaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo dessa mesma mateacuteria em uma sociedade por accedilatildeo daqueles variados agentes acima mencionados Este artigo enfrenta tais questotildees a partir de uma observaccedilatildeo circunscrita a um uacutenico tema histoacuterico e agrave realida-de brasileira do presente mas considerando que muitas das feiccedilotildees do que aqui se observa natildeo satildeo peculiares ao Brasil tipificando tambeacutem em parte outras realidades Como os brasileiros veem a Independecircncia do Brasil As respostas apresentadas naturalmente limitadas pelo escopo da pesquisa pretendem esboccedilar uma caracterizaccedilatildeo de um aspecto da sociedade bra-sileira da atualidade como os brasileiros se relacionam com sua histoacuteria Em seu esteio e como uma sorte de efeito colateral do objetivo principal tais respostas pretendem tambeacutem retomar a discussatildeo em torno de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores O que resulta entatildeo em um estudo ao mesmo tempo histoacuterico e historiograacutefico

Em linhas gerais esta eacute uma investigaccedilatildeo sobre um fenocircmeno que poderiacuteamos chamar de cultura de histoacuteria Entende-se tal fenocircmeno como um conjunto de atitudes e valores que se expressam em noccedilotildees concepccedilotildees representaccedilotildees conceptualizaccedilotildees interdiccedilotildees e outras posturas de uma determinada sociedade em relaccedilatildeo a um passado que pode ser considerado como coletivo Uma cultura de histoacuteria portanto natildeo se confunde com consciecircncia histoacuterica antes engloba-a e a expande4 Consciecircncia histoacuteri-ca pode ser definida como aquela que significativo grupo de sujeitos em sociedade tem de compartilharem um passado o que enseja e condiciona formas de se pensar o presente e de projetar futuros coletivos5 a cultura de histoacuteria por outro lado engloba tambeacutem os silecircncios e as recusas des-ses sujeitos em relaccedilatildeo ao passado seja por meio de atitudes deliberadas ou natildeo6 resultantes ou natildeo de vontades coletivas

7Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

O caso brasileiro oferece subsiacutedio interessante a essa diferenciaccedilatildeo de abrangecircncia entre consciecircncia histoacuterica e cultura de histoacuteria Natildeo eacute assiduamente frequente em nossa sociedade uma autoimagem dos brasi-leiros como ldquopovo sem memoacuteriardquo em um jogo de identidades e alteridades que ao mesmo tempo em que distingue aqueles indiviacuteduos que suposta-mente valorizam o passado e os saberes em torno dele acaba por incluiacute-los em uma mesma coletividade a qual se acusa de estar enferma da doenccedila do esquecimento e da ignoracircncia7 Para efeitos de caracterizaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil essa autoimagem eacute incapaz de modelar teo-ricamente uma anaacutelise Afinal se houver algo nesses ldquobrasileirosrdquo (quais quantos quando onde como por quecirc) que realmente permita caracte-rizaacute-los como pouco ou nada afeitos ao conhecimento do passado de sua sociedade sua devida compreensatildeo deve ir aleacutem da noccedilatildeo de consciecircncia histoacuterica Como veremos adiante esse eacute um estereoacutetipo (mais um) em tor-no do Brasil e dos brasileiros e que vecirc sua essencializaccedilatildeo de um suposto caraacuteter nacional cair por terra diante da consideraccedilatildeo de que quaisquer atitudes e valores sociais ndash mesmo os negativos ndash em relaccedilatildeo ao passado satildeo fenocircmenos em si e que seria praticamente impossiacutevel nos defrontar-mos com sujeitos que no Brasil ignorassem ou desprezassem o conheci-mento do passado em termos absolutos Todo brasileiro pensa algo sobre a histoacuteria mesmo que natildeo a valorize ou com ela natildeo se importe Mesmo assim os estereoacutetipos nacionais podem ser considerados dados de uma realidade de uma autoimagem dos brasileiros8 Trataacute-los como tal sugere entatildeo a utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de cultura de histoacuteria

Jorn Ruumlsen concebe a expressatildeo cultura histoacuterica em referecircncia a algo distinto as formas pelas quais uma sociedade racionaliza pressupos-tos (tambeacutem eles racionais) advindos do pensamento histoacuterico ou seja uma interaccedilatildeo entre pensamento histoacuterico e coletividades humanas na qual estas se aproveitam em termos praacuteticos do que aquele eacute capaz de sistematizar9 Nas paacuteginas que se seguem em nenhum momento preten-deu-se expropriar a expressatildeo de Ruumlsen tampouco revisar sua proposta analiacutetica (eacute possiacutevel mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diaacutelogo ou ateacute de convergecircncias aqui natildeo devidamente explo-radas10) Ocorre que o pensamento eacute cativo da linguagem e natildeo se dispotildee de melhor expressatildeo a indicar o que aqui se pretende mostrar que uma a ela semelhante cultura de histoacuteria Para efeitos de elucidaccedilatildeo do problema poderiacuteamos transliterar a proposta de Ruumlsen em termos de uma cultura de pensamento histoacuterico e com isso evocar as elaboraccedilotildees de Pierre Nora a ela anteriores em torno de uma cultura historiograacutefica isto eacute a consci-ecircncia coletiva que uma sociedade tem (a francesa talvez a brasileira soacute muito residualmente) natildeo apenas de uma histoacuteria compartilhada mas tam-beacutem dos meios que ela ndasha sociedade -dispotildee para reelaborar tal histoacuteria por dispositivos de memoacuteria11 Nora se interessa pelas condiccedilotildees de reali-zaccedilatildeo coletiva de uma criacutetica da presenccedila da histoacuteria e da memoacuteria que para Rusen natildeo deixaria de indicar um potencial racionalizador advindo do proacuteprio pensamento histoacuterico Tal convergecircncia reforccedila aspectos centrais da cultura de histoacuteria aqui tratada mas natildeo a esgota plenamente sobre-tudo ndash repitamos -no tocante aos seus silecircncios e interdiccedilotildees que tambeacutem devem ser levados em conta

Cultura de histoacuteria aqui natildeo se confunde com costume ao menos tal como este eacute pensado por E P Thompson fenocircmeno advindo da praacutexis e situado na interface desta com a lei portador de expectativas coletivas e

7Nos anos de 1950 Joseacute Honoacuterio Rodrigues

concebia uma nociva crise na sociedade brasileira relativa a um ldquodecliacutenio de consciecircncia histoacutericardquo na qual o passado se confinaria a cultos nostaacutelgicos e diante da qual o historiador ndash ele em particular ndash deveria elaborar estrateacutegias de atuaccedilatildeo RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A pesquisa histoacuterica no Brasil sua evoluccedilatildeo e problemas atuais Rio de Janeiro Imprensa NacionalINL 1952 Citado em FREIXO Andreacute de Lemos Ousadia e redenccedilatildeo o Instituto de Pesquisa Histoacuterica de Joseacute Honoacuterio Rodrigues Histoacuteria da historiografia n11 abril de 2013 p155

8Nas palavras de um historiador dedicado ao

estudo da identidade nacional portuguesa ldquoesse tipo de caracterizaccedilotildees geneacutericas de lugares-comuns sem fundamento ou que constituem generalizaccedilotildees abusivas a partir de fatos pontuais satildeo no entanto importantes porque assinalam diferenccedilas que se julga existirem entre as naccedilotildees Satildeo um testemunho da existecircncia destas pois todos os grupos nacionais possuem estereoacutetipos sobre si proacuteprios e sobre os outros que satildeo inerentes agrave proacutepria construccedilatildeo de uma identidaderdquo SOBRAL Joseacute Manuel Portugal portugueses uma identidade nacional Lisboa Fundaccedilatildeo Francisco Manuel dos Santos 2012 p17 Tambeacutem CARDOSO Patriacutecia da Silva D Joatildeo VI um imaginaacuterio revisitado In OLIVEIRA Paulo da Motta (org) Travessias D Joatildeo VI e o mundo lusoacutefono Cotia Ateliecirc 2013 p38

9RUSEN Jorn Histoacuteria Viva Teoria da Histoacuteria

III formas e funccedilotildees do conhecimento histoacuterico Brasiacutelia Ed da UNB 2007

10Escapa ao escopo desta pesquisa por exemplo

uma perquiriccedilatildeo mais ampla a respeito de como a sociedade brasileira vecirc noccedilotildees advindas de um pensamento que poderiacuteamos chamar de ldquohistoacutericordquo como ideias de temporalidade (futuro passado presente instante progresso desenvolvimento etc) Tal empreendimento de momento apenas sugerido pelo confinamento dos objetivos aqui expostos a uma anaacutelise das formas sociais de relacionamento com um passado coletivo (ldquohistoacuteriardquo) pareceria estar em sintonia com a proposta de Ruumlsen Para uma proposta acerca de ldquocultura histoacutericardquo socialmente mais restritiva do que a nossa aplicada ao mundo medieval vide a importante obra de Gueneacutee GUENEacuteE Bernard Histoire et culture historique dans lrsquoOccident medieval Paris Aubier-Montaigne 1980 em especial o cap7 ldquoLa culture historiquerdquo

11NORA Pierre Entre memoria e historia La

problemaacutetica de los lugares In Pierre Nora en Les lieux de meacutemoire Santiago LOMTrilce 2009 p5-47 Tambeacutem DIEHL Antonio Astor Cultura historiograacutefica memoacuteria identidade e representaccedilatildeo Bauru Edusc 2002

8Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

potencial realizador de reivindicaccedilotildees dinamizadoras de conflitos em torno da divisatildeo de classes de uma sociedade12 Como se veraacute a seguir embora a cultura de histoacuteria aqui observada esteja evidentemente condicionada pelas estruturas sociais presentes na proacutepria sociedade agrave qual se refere ela natildeo parece caracterizada por uma distribuiccedilatildeo classista de seus princi-pais atributos tampouco por uma carga classista de expectativas poliacuteticas potencialmente irruptivas em seu contexto13 Cultura de histoacuteria tambeacutem natildeo se confunde perfeitamente com tradiccedilatildeo segundo a tripla distinccedilatildeo proposta mais uma vez por Ruumlsen seja como afirmaccedilatildeo passiva funcional e valorativa das formas jaacute estabelecidas de vida social como manancial de conteuacutedos aparentemente esquecidos inconscientes mas latentes em uma coletividade seja ainda como ponto de partida para a continuidade criacutetica de um discurso tornado reflexivo logo histoacuterico14 Afinal e embora uma cultura de histoacuteria possa se conectar em parte com tais ldquotradiccedilotildeesrdquo nenhu-ma delas parece englobar devidamente as interdiccedilotildees e os silecircncios acima referidos e aqui perscrutados Para todos os efeitos no entanto trata-se de um tipo de cultura isto eacute de um sistema social dotado de forte esta-bilidade mas natildeo completamente inercial pautado por alguns consensos a organizarem a maioria de seus dissensos e submetido a uma dinacircmica transformadora tendencialmente lenta embora suscetiacutevel a alteraccedilotildees de monta a partir de fatos pontuais e aparentemente isolados

A Independecircncia do Brasil ocorrida na primeira metade do seacuteculo XIX eacute tema especialmente propiacutecio para a caracterizaccedilatildeo inicial de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil Natildeo eacute o uacutenico possiacutevel mas sem duacutevida se presta especialmente bem a tal tarefa Visto como um conjunto de toacutepicos que a depender do enfoque pode incluir a histoacuteria da Ameacuterica portuguesa nos uacuteltimos anos do seacuteculo XVIII a crise da monarquia bragantina a partir de 1807 a separaccedilatildeo poliacutetica entre Portugal e Brasil e a formaccedilatildeo inicial deste como Estado e naccedilatildeo a Independecircncia eacute tema fundador desde sempre presente em processos de formaccedilatildeo escolar baacutesicos na miacutedia nas artes na poliacutetica na opiniatildeo puacuteblica nos espaccedilos puacuteblicos no senso-comum e na memoacuteria nacional15 Natildeo haacute cidade no Brasil que natildeo tenha seus lugares de memoacuteria16 ligados agrave Independecircncia natildeo haacute processo escolar formal que a ignore natildeo haacute feriados nacionais mais importantes em termos de evoca-ccedilatildeo puacuteblica e midiaacutetica de conteuacutedos do que os dela derivados Em certa medida a Independecircncia ldquopairardquo por sobre a sociedade brasileira e com ela interage o que faz com que praticamente todo e qualquer brasileiro a partir de uma certa idade pense alguma coisa a seu respeito17

A cultura de histoacuteria brasileira que natildeo se esgota na Independecircncia com ela se confunde

Aleacutem disso para efeitos da realizaccedilatildeo desta pesquisa seus autores estatildeo por dever de ofiacutecio mais familiarizados historiograficamente com o tema do que com outros que poderiam igualmente se constituir em pontos de partida vaacutelidos18 Com isso natildeo se quer dizer que este seja um estudo acerca de praacuteticas acadecircmicas em relaccedilatildeo agrave Histoacuteria per se e que sem duacutevida tambeacutem satildeo parte constitutiva dessa cultura de histoacuteria no Brasil e alhures19 (aliaacutes como se veraacute aqui estas surgiratildeo a reboque das praacuteticas natildeo acadecircmicas) apenas que o ponto de vista adotado pela pes-quisa e a partir dos quais seus autores se reconhecem eacute acadecircmico o que os permite explorar determinados potenciais do tema

A Independecircncia mostra que haacute uma dimensatildeo nacional na cultura de histoacuteria a impor significativas variaccedilotildees morfoloacutegicas e temaacuteticas de

12THOMPSON Edward Palmer Costumes em

comum estudos sobre a cultura popular tradicional Satildeo Paulo Companhia das Letras 1998 em especial p13-15 e p86 Haacute que se notar que o autor evita a manipulaccedilatildeo de definiccedilotildees claras e aprioriacutesticas preferindo a construccedilatildeo das mesmas com base no desenvolvimento de suas pesquisas empiacutericas

13O que natildeo significa que os atributos de uma

cultura histoacuterica natildeo possam ser apropriados e manipulados politicamente ou constituiacuterem-se em subsiacutedios para projetos de futuro a ausecircncia se refere a uma distribuiccedilatildeo e tendencial confinamento por classes de tais atributos

14RUSEN Jorn Tradition a principle of historical

sense-generation and its logic and effect in historical culture History and Theory Theme Issue 51 dez2012 Tambeacutem FREIXO Andreacute de Lemos Ousadia e redenccedilatildeo Op Cit p157

15LYRA Maria de Lourdes Vianna Memoacuteria

da Independecircncia marcos e representaccedilotildees simboacutelicas Revista Brasileira de Histoacuteria n29 1995 p173-206 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena de Salles O Espetaacuteculo do Ipiranga reflexotildees preliminares sobre o imaginaacuterio da Independecircncia Anais do Museu Paulista Satildeo Paulo v3 1995 p195-208 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena de Salles e MATTOS Claacuteudia Valladatildeo (org) O Brado do Ipiranga Satildeo Paulo EDUSP 1999 WEHLING Arno Estado Histoacuteria Memoacuteria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova FronteiraUNIRIO 1999 ENDERS Armelle Os vultos da naccedilatildeo faacutebrica de heroacuteis e formaccedilatildeo dos brasileiros Rio de Janeiro Editora FGV 2014

16Em referecircncia novamente a NORA Pierre Entre

memoria e historia Op Cit

17Um dado contundente segundo a inovadora

pesquisa realizada pela educadora Ana Teresa da Purificaccedilatildeo de um grupo de 97 crianccedilas entre 9 e 13 anos e que jamais tinham sido introduzidas formalmente ao tema da Independecircncia do Brasil 82 foram capazes de representaacute-la de alguma maneira (desenhos frases) geralmente em forte conexatildeo com representaccedilotildees sociais mais amplas (D Pedro o Grito o Sete de Setembro a bandeira nacional uma luta dicotocircmica entre bem e mal etc) PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da (Re)criando interpretaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil um estudo das mediaccedilotildees entre memoacuteria e histoacuteria nos livros didaacuteticos 2002 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2002

18Exemplo interessante eacute o livro de Luiacutes Fernando

Cerri com ecircnfase em uma consciecircncia histoacuterica focada na histoacuteria da ditadura brasileira de 1964 a 1985 e com aproximaccedilotildees com outros paiacuteses do cone sul Cfr CERRI Luiacutes Fernando Ensino de histoacuteria e consciecircncia histoacuterica implicaccedilotildees didaacuteticas de uma discussatildeo contemporacircnea Rio de Janeiro Editora FGV 2011

9Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

paiacutes a paiacutes embora ndash repita-se ndash deva-se esperar tambeacutem feiccedilotildees comuns entre diferentes culturas histoacutericas Ao mesmo tempo haacute uma tendecircncia agrave unificaccedilatildeo dessas formas e temas no interior de um mesmo paiacutes resultado da vigecircncia de memoacuterias e identidades bem como de estruturas institu-cionais de tipo nacional tais como sistemas poliacuteticos escolares e univer-sitaacuterios tambeacutem eles prenhes de conteuacutedos referentes a temas histoacutericos comparaacuteveis em importacircncia em cada contexto respectivo ao da Indepen-decircncia no Brasil Como bem tem mostrado a historiografia da questatildeo na-cional o passado coletivo eacute pretexto especialmente forte para a constitui-ccedilatildeo e reproduccedilatildeo de identidades nacionais20 Eacute por isso que aqui cultura de histoacuteria eacute tratada no singular pressupondo contudo uma homogeneidade apenas relativa e parcial do fenocircmeno

Tambeacutem haacute dimensotildees regionais nessa cultura de histoacuteria com varia-ccedilotildees a depender dos diferentes modos de contar evocar e silenciar conteuacutedos da histoacuteria coletiva caracteriacutesticos de cada quadrante espacial dessa unidade nacional sem contudo romper com a unidade que a engloba As limitaccedilotildees do presente estudo quanto a esse ponto satildeo expliacutecitas ao mesmo tempo em que contribuem para um desenho das feiccedilotildees mais gerais do fenocircmeno Afinal uma parte dos materiais empiacutericos aqui utilizados (mais precisamente a sondagem de opiniatildeo apresentada no item 3) refere-se primordialmente a Satildeo Paulo e sua capital21 outros poreacutem satildeo de alcance claramente nacio-nal o que permite o estabelecimento de mediaccedilotildees entre as esferas micro e macro histoacutericas constitutivas do fenocircmeno No entanto fica a advertecircncia eacute possiacutevel que a expansatildeo dessa base empiacuterica para materiais regionalmente mais circunscritos a outros Estados do Brasil como Paraacute Maranhatildeo Pernam-buco Bahia Minas Gerais Rio de Janeiro ou Rio Grande do Sul por exemplo ou mesmo a cidades singularmente marcadas pela histoacuteria da Independecircn-cia como Cametaacute Cachoeira e Goiana nos mostrasse variaccedilotildees capazes de redefinir o fenocircmeno geral Natildeo foi a Independecircncia do Brasil um processo histoacuterico cheio de nuances regionais e locais capazes de legar agrave posteridade um leque de memoacuterias ainda operativas na sociedade brasileira atual Poreacutem a histoacuteria da Independecircncia na cultura brasileira de histoacuteria precisa de algum ponto de partida mesmo que limitado

Finalmente haacute que se explicitar que haacute uma dimensatildeo histoacuterica nessa cultura de histoacuteria o que implica a concepccedilatildeo de um fenocircmeno que embora marcado por consideraacutevel estabilidade e regularidade eacute dinacircmico Isso quer dizer que as conclusotildees daqui extraiacutedas forccedilosamente trazem uma limitaccedilatildeo conjuntural podendo ser revistas ou mesmo invalidadas no futuro natildeo apenas em funccedilatildeo da inescapaacutevel (e oacutebvia) condiccedilatildeo proteica do conhecimento histoacuterico mas tambeacutem porque o sistema que constitui esse fenocircmeno eacute composto de uma grande quantidade de fenocircmenos me-nores que podem efetivamente modificar a essecircncia do conjunto ndash novas poliacuteticas educacionais um seriado de televisatildeo de grande audiecircncia um best-seller de divulgaccedilatildeo histoacuterica uma efemeacuteride de impacto etc

2 ndash Como apreender uma cultura de histoacuteria Fontes e questotildees centraisComo descrever e analisar um fenocircmeno histoacuterico com tais caracteriacutesticas Aqui definiu-se estrategicamente uma fonte central a organizar as demais uma sondagem de opiniatildeo aplicada presencialmente nas ruas da cidade de Satildeo Paulo por meio de um questionaacuterio e que incidiu sobre uma amostra-gem de 311 pessoas de diversa formaccedilatildeo escolar faixa etaacuteria caracteriacutesticas soacutecio-econocircmico-culturais e procedecircncia regional22 Embora se consti-

19CHARLE Christophe Homo historicus reacuteflexions

sur lrsquohistoire les historiens et les sciences sociales Paris Armand Colin 2013

20SOBRAL Joseacute Manuel Op Cit SMITH Anthony

D Myths and Memories of the Nation New York Oxford University Press 1999 ANDERSON Benedict Naccedilatildeo e consciecircncia nacional Satildeo Paulo Aacutetica 1989 HOBSBAWM Eric J Naccedilotildees e nacionalismo desde 1780 programa mito realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 JANCSOacute Istvaacuten Brasil e brasileiros notas sobre modelagem de significados poliacuteticos na crise do Antigo Regime portuguecircs na Ameacuterica Estudos Avanccedilados v22 p257-274 2008 Mesmo suportes midiaacuteticos eminentemente transnacionais ou ateacute mesmo supranacionais tiacutepicos do mundo digital natildeo apenas se mostram incapazes de romper com a dimensatildeo nacional do fenocircmeno como em muitos casos ateacute contribuem para reforccedilaacute-la

21Embora como logo se veraacute a ela tenha-se procurado

dar em parte um perfil nacional brasileiro

22Os criteacuterios exatos dessa sondagem bem como

os detalhes relativos agraves outras fontes utilizadas encontram-se descritos nos proacuteximos itens

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tua em um universo numeacuterico bastante pequeno diante da totalidade da populaccedilatildeo brasileira a partir de 15 anos (144814538 indiviacuteduos de acordo com o censo do IBGE de 201023) meacutetodos especiacuteficos que subsidiaram a concepccedilatildeo e aplicaccedilatildeo dessa sondagem permitiram o alcance de resultados relevantes como se veraacute adiante24 A utilizaccedilatildeo de tal abordagem em estu-dos de Histoacuteria eacute pouco frequente mas natildeo ineacutedita Deve-se aqui mencionar dois estudos importantes e parcialmente convergentes com os propoacutesitos desta pesquisa o de Isabela Cosse e Vania Markarian sobre a consciecircncia histoacuterica nacional no Uruguai publicado em 1994 e o coordenado por Joseacute Machado Pais sobre a consciecircncia histoacuterica dos jovens portugueses nos contextos europeu e israelensepalestino de 199925 Ambos satildeo excelen-tes demonstraccedilotildees dos potenciais oferecidos por esse tipo de abordagem e forneceram norte e estiacutemulo a esta pesquisa mas dela diferem em trecircs pontos fundamentais sua circunscriccedilatildeo nacionalcontinental26 os contextos histoacutericos de sua elaboraccedilatildeo e a abordagem realizada em torno de temas de histoacuteria em geral pressupondo que os entrevistados possuiriam posiccedilotildees ativas em torno do passado Assim abordam formas de consciecircncia histoacuteri-ca mas natildeo a ampliam em direccedilatildeo a uma cultura de histoacuteria

A sondagem de opiniatildeo eacute aqui central mas natildeo exclusiva tendo sido seus resultados cotejados com os extraiacutedos da anaacutelise de um conjunto de fontes complementares Em primeiro lugar livros didaacuteticos de Ensino Meacute-dio utilizados por professores e alunos em 2013 nos quais foram buscados especificamente toacutepicos relativos agrave Independecircncia do Brasil Esse conjunto de fontes perfaz 19 tiacutetulos que foram avaliados e aprovados pelo Governo Federal brasileiro no Programa Nacional do Livro Didaacutetico em 2012 cujos cerca de 7 milhotildees e 500 mil exemplares foram distribuiacutedos a algo como 18 mil escolas puacuteblicas de todo o paiacutes aleacutem de serem utilizados tambeacutem em es-colas privadas27 completaram a anaacutelise dados obtidos por uma estudiosa de livros didaacuteticos de Ensino Fundamental tambeacutem recomendados pelo governo em 1998 e que analisou 12 tiacutetulos28 Em segundo lugar viacutedeos disponiacuteveis no YouTube e portadores de conteuacutedos relativos agrave Independecircncia Aqui depa-rou-se com material muito variado distribuiacutedo em 107 viacutedeos que perfazem um riquiacutessimo conjunto dada sua grande diversidade morfoloacutegica e de con-teuacutedo (seriados educativos entrevistas programas jornaliacutesticos propagandas de partidos poliacuteticos ou de outras associaccedilotildees trailers de filmes programas voltados para puacuteblico jovem produccedilotildees independentes etc) e tambeacutem pelas possibilidades de mensuraccedilatildeo parcial de seu alcance via o nuacutemero de visualizaccedilotildees indicadas pelo siacutetio e de anaacutelise dos respectivos ldquocomentaacuteriosrdquo tambeacutem laacute disponiacuteveis Em terceiro lugar obras televisivas e cinematograacutefi-cas relacionadas com a Independecircncia do Brasil Aqui foram analisadas trecircs seacuteries televisivas e cinco longas-metragens todos tambeacutem disponiacuteveis no YouTube com os mesmos dados complementares acima apontados Em quar-to lugar livros de divulgaccedilatildeo acadecircmica ou jornaliacutestica romances histoacutericos comics livros paradidaacuteticos e outras obras de difiacutecil definiccedilatildeo a possuiacuterem em comum abordagens da histoacuteria da Independecircncia apresentadas em linguagem natildeo acadecircmica destinadas a um puacuteblico potencialmente amplo e diversificado natildeo restrito portanto a estudantes e professores de Histoacuteria29 Em meio a esse conjunto foram selecionados 19 livros Finalmente em quin-to lugar foram analisados artigos sobre a Independecircncia publicados em cinco magazines de Histoacuteria vendidos em bancas de jornal e livrarias e que visam divulgar saberes especializados para um puacuteblico mais aleacutem do frequentador de cursos universitaacuterios de Histoacuteria

23Sendo a populaccedilatildeo total 190732694 de

acordo com o Censo Demograacutefico 2010 do IBGE Disponiacutevel em ibgegovbrhomeestatisticapopulacaocenso2010defaultshtm Acesso em 01042014

24A realizaccedilatildeo da mesma assim como a

interpretaccedilatildeo de seus dados teve em conta premissas metodoloacutegicas gerais estabelecidas por Patrick Champagne CHAMPAGNE Patrick Formar a opiniatildeo o novo jogo poliacutetico Petroacutepolis Vozes 1998 ZALLER John R The Nature and Origins of Mass Opnion Cambridge Cambridge University Press 1992 WILHOIT Cleveland e WEAVER David H Neswroom Guide to Polls amp Surveys Bloomington and Indianapolis Indiana University Press 1990 e MONZOacuteN ARRIBAS Caacutendido La opinioacuten puacuteblica teoriacuteas conceptos y meacutetodos Madri Tecnos 1987

25COSSE Isabela e MARKARIAN Vania Memorias

de la historia una aproximacioacuten al estudio de la consciencia histoacuterica nacional Montevideacuteu Trilce 1994 PAIS Joseacute Machado Consciecircncia histoacuterica e identidade os jovens portugueses num contexto europeu Oeiras CeltaSecretaria de Estado da Juventude 1999 Este uacuteltimo inclui vaacuterios dos resultados obtidos pelo inqueacuterito geral europeu realizado com jovens e professores de Histoacuteria de 26 paiacuteses do continente mais Israel ldquoIsrael Aacuteraberdquo e ldquoPalestinardquo

26Seria importante considerar ainda atitudes

de pessoas em relaccedilatildeo a lugares de memoacuteria especificamente ligados agrave Independecircncia do Brasil dentro das cidades existentes aliaacutes em praticamente todo e qualquer centro urbano do paiacutes No caso de Satildeo Paulo tal desafio pode encontrar estimulante ponto de partida em duas pesquisas OLIVEIRA Cecilia Helena de Salles Museu Paulista espaccedilo de evocaccedilatildeo do passado e reflexatildeo sobre a histoacuteria Anais do Museu Paulista Satildeo Paulo Nova Seacuterie v1011 20022003 p105-126 e ALMEIDA Adriana Mortara Os visitantes do Museu Paulista um estudo comparativo com os visitantes da Pinacoteca do Estado e do Museu de Zoologia Anais do Museu Paulista Satildeo Paulo Nova Seacuterie v12 2004 p269-306

27O PNLD tem como objetivo central ldquosubsidiar

o trabalho pedagoacutegico dos professores por meio da distribuiccedilatildeo de coleccedilotildees de livros didaacuteticos aos alunos da educaccedilatildeo baacutesica Apoacutes a avaliaccedilatildeo das obras o Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) publica o Guia de Livros Didaacuteticos com resenhas das coleccedilotildees consideradas aprovadas O guia eacute encaminhado agraves escolas que escolhem entre os tiacutetulos disponiacuteveis aqueles que melhor atendem ao seu projeto poliacutetico pedagoacutegicordquo (portalmecgovbrindexphpItemid=668id=12391option=com_contentview=article) A avaliaccedilatildeo e seleccedilatildeo dos tiacutetulos aprovados pelo programa coube agrave Secretaria de Educaccedilatildeo Baacutesica (SEB) do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo sendo a equipe avaliadora formada por professores de vaacuterias universidades puacuteblicas Guia de livros didaacuteticos PNLD 2012 Histoacuteria Brasiacutelia Ministeacuterio da Educaccedilatildeo Secretaria de Educaccedilatildeo Baacutesica 2011

11Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Bem se vecirc que tais fontes complementares extrapolam o acircmbito espa-cial parcialmente circunscrito da sondagem de opiniatildeo aleacutem de permitirem a consideraccedilatildeo de uma grande pluralidade de vozes de agentes sociais ndash inclu-sive mas natildeo preferencialmente os historiadores acadecircmicos ndash responsaacuteveis pela inexistecircncia de um monopoacutelio profissional na reproduccedilatildeo divulgaccedilatildeo e eventual produccedilatildeo de conhecimentos acerca da Independecircncia do Brasil A exemplo dos procedimentos adotados para a realizaccedilatildeo da sondagem de opi-niatildeo tambeacutem a utilizaccedilatildeo de tais fontes partiu de uma amostragem jaacute que nenhum de seus conjuntos corresponde agrave totalidade de materiais disponiacuteveis No entanto acredita-se que a somatoacuteria dessas amostragens seja satisfatoacuteria para a persecuccedilatildeo dos objetivos aqui propostos

Como tratar metodologicamente fontes tatildeo diferentes entre si e como fazecirc-las convergirem para um mesmo fim Os conteuacutedos extraiacutedos da sondagem de opiniatildeo merecem tratamento algo peculiar jaacute que tendo permanecido ineacuteditos ateacute o momento natildeo podem ser considerados como elementos capazes de agir naquela mesma realidade que os informou soacute podem ser vistos como traduccedilatildeo (indireta matizada) de uma realidade por eles denunciada Jaacute as demais fontes satildeo consideradas de ambos os modos como instrumentos de reconfiguraccedilatildeo da realidade em termos de poten-ciais formadoras de opiniatildeo dos brasileiros acerca da Independecircncia mas tambeacutem como sintomaacuteticas de um estado de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema Portadoras de indiacutecios de uma cultura de histoacuteria que elas criam e recriam e protagonistas ativos dessa mesma cultura30 O que natildeo quer dizer de modo algum que a todos os suportes materiais aqui consi-derados como fontes primaacuterias possa ser atribuiacutedo um caraacuteter de inovaccedilatildeo em seus tratamentos dos conteuacutedos relativos agrave Independecircncia do Brasil (se assim o fosse os historiadores profissionais da Independecircncia teriam muitos motivos para comemorar o fato de que os demais agentes sociais natildeo apenas estariam dispostos a ouvi-los como aptos a compreendecirc-los E se assim o fosse estariacuteamos frente a uma cultura histoacuterica muito mais dinacircmica e instaacutevel do que ela parece ser)

Para aferir ateacute que ponto um livro uma revista um filme ou um viacute-deo contribuem mais para a criaccedilatildeo ou para a recriaccedilatildeo (pois natildeo haacute aqui estrito senso simples reproduccedilatildeo) de conteuacutedos a metodologia adotada abordou tais suportes materiais por meio de cinco perguntas baacutesicas Seu tratamento da Independecircncia tende a uma Histoacuteria 1) Factual eou biograacute-fica ou a uma histoacuteria processual 2) Que respeita historicidades e orde-namentos cronoloacutegicos e temporais ou que tende a dar pouca importacircncia a tais elementos (neste caso de que modos o faz) 3) Centrada em uma uacutenica regiatildeo (qual) ou em vaacuterias ao mesmo tempo e inclusive a outras partes do mundo da eacutepoca (quais) 4) Que dialoga (de que modos) com a produccedilatildeo acadecircmica (qual de quando) ou que busca outros referenciais no universo natildeo especializado 5) De ecircnfase anedoacutetica laudatoacuteria soacutebria positiva ou negativa As respostas a tais perguntas nem sempre bem claras e definidas foram buscadas a partir tambeacutem de substratos metodo-loacutegicos especiacuteficos para cada tipo de fonte e chegaram a envolver parcial-mente tambeacutem a sondagem de opiniatildeo

3 - A sondagem de opiniatildeo A Independecircncia nas ruasA sondagem de opiniatildeo partiu da aplicaccedilatildeo de um questionaacuterio que mes-clou respostas dirigidas e objetivas com respostas abertas e subjetivas sen-do dividido em trecircs partes correspondentes a trecircs perfis a serem extraiacutedos

28PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit

29Tal tipo de fonte eacute o que melhor permite uma

anaacutelise de mais largo escopo temporal do que o aqui contemplado Uma excelente reuniatildeo preliminar de material encontra-se em CALMON Pedro Histoacuteria do Brasil na poesia do povo Nova ediccedilatildeo aumentada Rio de Janeiro Bloch 1973 Para noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia na literatura e na dramaturgia portuguesa vaacuterios apontamentos em OLIVEIRA Paulo da Motta (org) Op Cit

30Muitas jaacute vecircm sendo analisadas separadamente

de acordo com uma tendecircncia apontada acima Para os livros didaacuteticos a produccedilatildeo eacute imensa e inclui trabalhos importantes como os de BITTENCOURT Circe Fernandes Livro didaacutetico e conhecimento histoacuterico uma histoacuteria do saber escolar 1993 Tese (Doutorado em Histoacuteria Social) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1993 MUNAKATA Kazumi Produzindo livros didaacuteticos e paradidaacuteticos Tese 1997 (Doutorado em Histoacuteria e Filosofia da Educaccedilatildeo) Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1997 DIEHL Astor Antocircnio (org) O livro didaacutetico e o curriacuteculo de histoacuteria em transiccedilatildeo Passo Fundo EDIUPF 1999 e CARDOSO Oldimar Pontes A didaacutetica da histoacuteria e o slogan da formaccedilatildeo de cidadatildeos 2007 Tese (Doutorado em Educaccedilatildeo) Faculdade de Educaccedilatildeo Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2007 Sobre cinema e histoacuteria dentre outros FONSECA Vitoacuteria Azevedo da Histoacuteria imaginada no cinema anaacutelise de Carlota Joaquina princesa do Brazil e Independecircncia ou morte 2002 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria Cultural) Universidade Estadual de Campinas Campinas 2002

31Esse eacute o perfil mostrado pelo censo do IBGE de

2010 com algumas poucas exceccedilotildees no caso da amostragem a uacutenica importante se observa com a faixa etaacuteria de 25 a 29 anos (14) mais numerosa do que a anterior entre 20 e 24 anos (8) sendo que a porcentagem da populaccedilatildeo brasileira em tais faixas etaacuterias eacute praticamente a mesma (respectivamente 8 e 9) De resto foi possiacutevel estabelecer nesse quesito uma satisfatoacuteria correlaccedilatildeo com o perfil brasileiro a amostragem abordou indiviacuteduos a partir de 15 anos sendo que dos 14 grupos de cinco anos obtidos (o uacuteltimo corresponde a 80 anos ou mais) quatro apresentaram perfeita correspondecircncia percentual com os dados nacionais oito uma diferenccedila de no maacuteximo 2 e apenas dois forte discrepacircncia

32Para se atingir perfis ocupacionais desejados

algumas entrevistas foram realizadas na regiatildeo do Grande ABC e no interior do estado de Satildeo Paulo

33Dados do uacuteltimo Censo do IBGE (2010)

disponiacutevel em censo2010ibgegovbramostra Acesso em 01042014

34O censo do IBGE de 2010 indicou a porcentagem

de 76 para desocupados considerando o total da populaccedilatildeo maior de 10 anos Para o estado

12Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

do entrevistado um soacutecio-econocircmico-escolar um cultural e um relativo agrave sua relaccedilatildeo com a Histoacuteria em especial a da Independecircncia

A obtenccedilatildeo do primeiro perfil se fez segundo gecircnero faixa etaacuteria (em grupos de cinco anos a partir de 15 anos de idade) local de nasci-mento (segundo regiotildees do Brasil e cidade) ocupaccedilatildeo profissional renda familiar (em valores ou quantidade de salaacuterios miacutenimos isto eacute R$ 62000) e instruccedilatildeo formal (por niacuteveis e se realizada em escolas puacuteblicas eou pri-vadas cidade e instituiccedilatildeo) Com isso buscou-se aproximar o universo da amostragem ndash 311 indiviacuteduos ndash do perfil geral do paiacutes quando isso natildeo foi possiacutevel a aproximaccedilatildeo se deu com o Estado e com a cidade de Satildeo Paulo

No quesito gecircnero foram entrevistadas 52 de mulheres e 48 de homens (um dos entrevistados natildeo quis declarar seu gecircnero) estabelecen-do-se uma perfeita correlaccedilatildeo de porcentagem com o mostrado pelo censo populacional do IBGE de 2010 seja em termos nacionais ou estaduais de Satildeo Paulo Jaacute a constituiccedilatildeo da faixa etaacuteria dos entrevistados buscou um modelo de ldquopiracircmiderdquo isto eacute com um nuacutemero de mais jovens sempre mais elevado do que o de mais idosos31 No entanto aqui a amostragem privile-giou mais jovens entre 15 e 19 anos (21) do que a realidade populacional brasileira (8) e mais adultos entre 25 e 29 anos

No tocante ao local de nascimento a amostragem natildeo pocircde se valer de dados do IBGE Desse modo buscou-se uma aproximaccedilatildeo estatiacutestica com a cidade de Satildeo Paulo local onde 97 das entrevistas foram reali-zadas32 Os nascidos na regiatildeo sudeste perfizeram 73 das abordagens sendo 67 naturais do estado de Satildeo Paulo (dados do IBGE mostram 77 de habitantes da cidade nascidos no estado sendo 69 do total na cida-de)33 A realizaccedilatildeo da amostragem procurou uma compensaccedilatildeo para essa hipertrofia de perfil (do nacional ao regional) por meio da diversificaccedilatildeo de unidades da federaccedilatildeo para os 23 de habitantes do estado de Satildeo Paulo que natildeo nasceram nele foram entatildeo entrevistados 112 indiviacuteduos (326 da amostragem) naturais dos outros estados brasileiros agrave exceccedilatildeo de Acre Amapaacute Distrito Federal Roraima e Tocantins

Quanto a suas ocupaccedilotildees profissionais os entrevistados declararam livremente 118 diferentes funccedilotildees (sendo 005 desempregados34) apoacutes uma anaacutelise preliminar das mesmas foi possiacutevel agrupaacute-las em 90 incluin-do um leque muito variado que inclui comerciantes donas de casa empre-gadas domeacutesticas estudantes funcionaacuterios puacuteblicos educadores operaacuterios empresaacuterios cabeleireiras agricultores faxineiros jornalistas prostitutas militares e meacutedicos dentre outros (ressalte-se que no momento da pesqui-sa nenhum deles se encontrava ligado profissionalmente agrave Histoacuteria) Nesse quesito eacute impossiacutevel estabelecer uma perfeita correlaccedilatildeo entre a amostra-gem e o panorama laboral brasileiro buscou-se apenas incluir uma ampla gama de perfis profissionais

O perfil dos entrevistados segundo renda familiar tambeacutem se mos-trou de difiacutecil equivalecircncia com dados do IBGE jaacute que estes indicam rendas individuais e natildeo familiares Assim mesmo observa-se que a amostragem seguiu uma tendecircncia tambeacutem de ldquopiracircmiderdquo que faz com que o nuacutemero de brasileiros dos estratos de renda mais baixa sejam sempre mais nume-roso que os de renda mais alta a diferenccedila entre o conjunto da populaccedilatildeo brasileira e a amostragem estaacute seguramente nas dimensotildees de tais estra-tos enquanto os dados do IBGE mostram mais de 64 de indiviacuteduos sem rendimentos ou com renda entre 1 e 5 salaacuterios miacutenimos na amostragem esse percentual (por famiacutelias) pouco passou de 3035

de Satildeo Paulo a porcentagem eacute tambeacutem de 76 Disponiacutevel em censo2010ibgegovbramostra Acesso em 01042014

35Haacute aqui algumas discrepacircncias em relaccedilatildeo as

categorias do IBGE que devem ser explicitadas no que se refere aos criteacuterios de renda estatildeo ausentes do questionaacuterio ldquomais de 2 a 3 salaacuterios miacutenimosrdquo aleacutem disto a renda calculada pelo questionaacuterio tem como base a unidade familiar enquanto os dados do IBGE aqui contrastados referem-se agrave renda de indiviacuteduos

36Dos 161981299 indiviacuteduos totais ldquoa partir de

10 anosrdquo subtraiu-se 17166761 indiviacuteduos entre 10 e 14 anos de modo a limitar a estatiacutestica nacional aos jovens contemplados pela amostragem Uma distorccedilatildeo contudo permanece na cifra dos indiviacuteduos ldquosem instruccedilatildeo e fundamental completordquo da tabela 154 pois crianccedilas entre 10 e 14 anos podem perfeitamente ser ldquosem instruccedilatildeordquo embora o sejam em pequena minoria ldquofundamental completordquo para todos os efeitos as porcentagens das demais rubricas da mesma tabela foram assim corrigidas jaacute que crianccedilas de 14 anos estaratildeo necessariamente ausentes da rubrica seguinte ldquomeacutedio completordquo (tabelas 154 e 112 respectivamente)

37Nos dados do IBGE a maioria da populaccedilatildeo

(59) encontra-se na rubrica ldquonatildeo frequentavam mas jaacute frequentaramrdquo Dentre os que ldquofrequentavamrdquo 78 o faziam em estabelecimentos puacuteblicos e 22 em privados na amostragem esses percentuais que incidem sobre frequecircncia em cursojaacute realizada foram respectivamente 63 e 27 sendo que 11 se enquadravam em ambos

38Tambeacutem nessa segunda parte o questionaacuterio

se afastou progressivamente da possibilidade de estabelecimento de equivalecircncias estatiacutesticas com a totalidade da populaccedilatildeo brasileira Isso se deu por um motivo principal o censo do IBGE natildeo chega ao grau de detalhamento dos dados aqui obtidos (seus objetivos e natureza satildeo outros) e embora existam sondagens de opiniatildeo focadas em perfis culturais do brasileiro (como a ediccedilatildeo de 2011 de Retratos da leitura no Brasil do Instituto Proacute-Livro aqui utilizada como se veraacute mais adiante) a busca por tais equivalecircncias implicaria o seacuterio risco de um engessamento na obtenccedilatildeo de dados qualitativos Tendo em vista os objetivos centrais dessa pesquisa ndash esboccedilar a caracterizaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil por meio da Independecircncia assim como refletir em torno de implicaccedilotildees do tratamento acadecircmico do tema a partir de sua inserccedilatildeo nessa mesma cultura ndash o estabelecimento preliminar completo do perfil dos entrevistados natildeo garantiria a validade do material a ser extraiacutedo e analisado Trata-se justamente do contraacuterio submeter os resultados finais da pesquisa aos paracircmetros dados pelas condiccedilotildees de sua proacutepria realizaccedilatildeo

39Haacute pelo menos dois exemplos de como rankings

se fazem presentes no pensar a Histoacuteria nesse escopo Um primeiro de grande participaccedilatildeo popular eacute o programa de tevecirc O maior brasileiro de todos os tempos exibido entre 1107 e

13Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

No tocante a instruccedilatildeo formal os dados nacionais oficiais incidem sobre crianccedilas a partir de 10 anos de idade sendo que a amostragem rea-lizada focou em jovens a partir de 15 anos desse modo a aproximaccedilatildeo da amostragem com o perfil brasileiro partiu de uma retificaccedilatildeo dos nuacutemeros apresentados pelo IBGE36 E se em termos de renda familiar a amostragem mostrou clara inclinaccedilatildeo a um perfil excessivamente de classe meacutedia o mesmo pode-se dizer quanto agrave instruccedilatildeo formal que perfez um grupo mais escolarizado do que a meacutedia do paiacutes O principal problema aqui ocorre no baixo nuacutemero de entrevistados entre ldquosem instruccedilatildeo e fundamental incom-pletordquo (7 sendo a porcentagem nacional entre 44 e 50) em prol de um nuacutemero por demais elevado de indiviacuteduos que cursaram universidades (27 contra 9) as demais rubricas tambeacutem apresentam discrepacircncias 25 de entrevistados entre ldquofundamental completo e meacutedio incomple-tordquo (contra 19) e 23 entre ldquomeacutedio incompleto e superior incompletordquo (contra 26) A anaacutelise de todo o material obtido assim como das fontes primaacuterias levou em conta tais inclinaccedilotildees e como se veraacute mais adiante elas parecem ateacute mesmo reforccedilar algumas das conclusotildees aqui obtidas Ainda no mesmo quesito os dados do IBGE classificam os brasileiros de acordo com ldquorede de ensino que frequentavamrdquo quando da realizaccedilatildeo da coleta de dados sendo que o questionaacuterio abordou os entrevistados de acordo com frequecircncia em cursojaacute realizada37 Mesmo assim os nuacutemeros aqui disponiacuteveis serviram bem agrave constituiccedilatildeo da amostragem

Na segunda parte do questionaacuterio a obtenccedilatildeo do perfil cultural do entrevistado se deu a partir de uma identificaccedilatildeo de seu acesso agrave televisatildeo (se assiste caso positivo com qual frequecircncia que tipo de programas se em tevecirc aberta eou a cabo e quais os trecircs programas que mais assiste) leitura (se lecirc com frequecircncia que tipo de coisa e quais os uacuteltimos trecircs livros que leu) cinema e teatro (em ambos os casos apenas se costuma ou natildeo frequentar)38 Apoacutes tais perguntas que procuraram diagnosticar eventuais proximidades do entrevistado em relaccedilatildeo a fontes secundaacuterias da pesquisa o questionaacuterio introduziu a questatildeo especiacutefica de seu interesse pela Histoacuteria Foi entatildeo perguntado se ele se interessa ou natildeo por Histoacuteria e por qual (do Brasil geral ou outraqual) se busca informaccedilotildees sobre e em caso positivo onde (livros televisatildeo internet revistas cursos museus outroqual) e se nos uacuteltimos dois anos leu algo ou frequentou algum curso a respeito (em caso positivo qual) Tais perguntas foram elaboradas visando uma aproximaccedilatildeo realista com caracteriacutesticas que de modo hipo-teacutetico foram atribuiacutedas a essa cultura de histoacuteria no Brasil Por isso foram preteridas formas linguiacutesticas quiccedilaacute muito acadecircmicas em prol de outras que permitissem que o entrevistado se expressasse de modo a fornecer dados vaacutelidos daiacute por exemplo o uso da tradicional divisatildeo entre Histoacuteria do Brasil e Histoacuteria Geral (com abertura para identificaccedilatildeo de ldquooutrardquo qual-quer) de muito pouca serventia para os historiadores profissionais

Finalmente a terceira parte do questionaacuterio visou agrave obtenccedilatildeo de conteuacutedos diretamente relacionados agrave Independecircncia do Brasil valendo-se mais amplamente ainda dessa estrateacutegia de utilizaccedilatildeo de formas linguiacutes-ticas coloquiais assim como de perguntas cujas respostas seriam tanto dirigidas como abertas grau de interesse sobre a histoacuteria da Independecircncia do Brasil (nenhum pequeno meacutedio ou grande seguido de uma justificati-va) grau de conhecimento do tema (nenhum pouco razoaacutevel bom exce-lente) se procura se informar sobre (natildeo simcomo) e se estaacute lendo ou leu algo a respeito nos uacuteltimos dois anos (natildeo simo quecirc) Ou seja abriu-se a

03102012 pelo SBT Conforme a sinopse da emissora ldquobaseado no formato criado pela BBC The Greats o programa elege[u] aquele que fez mais pela naccedilatildeo que se destacou pelo seu legado agrave sociedade Diversos paiacuteses jaacute apontaram os seus maiores representantes Na Inglaterra Winston Churchill saiu vencedor Os italianos elegeram Leonardo da Vincirdquo (sbtcombromaiorbrasileiroprograma Acesso em 21032014) A escolha dos candidatos e a definiccedilatildeo de seus confrontos ndash os personagens iam se enfrentando programa a programa em caraacuteter eliminatoacuterio ndash foi feita pelo telespectador sendo o ldquocampeatildeordquo Chico Xavier seguido por Santos Dummont e pela princesa Isabel Semelhante mas de menor alcance foi a pesquisa realizada pela Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional divulgada em abril de 2008 que convocou ldquopara a tarefa de eleger os lsquoheroacuteisrsquo e os lsquovilotildeesrsquo do Brasil uma distinta seleccedilatildeo de historiadores professores jornalistas economistas poliacuteticos e artistas protegidos pelo anonimato para louvar e condenar quem bem entendessemrdquo Entre os mais bem avaliados estavam Rui Barbosa Machado de Assis e D Pedro II no polo oposto Meacutedici e Costa e Silva (revistadehistoriacombrsecaoreportagemranking-dos-brasileiros Acesso em 21032014)

40As palavras satildeo acordo comeacutedia continuaccedilatildeo

democracia ditadura drama elitespoderosos escravidatildeo Estados Unidos exeacutercito guerra heroiacutesmo Inglaterra invenccedilatildeo Joatildeo VI Joseacute Bonifaacutecio liberdade mudanccedila naccedilatildeo nascimento negociaccedilatildeo paz Pedro I Portugal povo revoluccedilatildeo Tiradentes tirania O entrevistado poderia incluir outra palavra qualquer que desejasse

41O questionaacuterio encerrava-se com a possibilidade

do entrevistado acrescentar livremente algo bem como a opccedilatildeo de identificaccedilatildeo nominal Um proveitoso desdobramento da pesquisa poderia resultar de uma anaacutelise de nuances e matizes de interessantes jogos discursivos presentes em muitas das respostas obtidas sobretudo no caso de uma expansatildeo numeacuterica da amostragem

42Quando em fevereiro de 2013 foram

amplamente divulgados resultados de pesquisas biomeacutedicas (com tentativas de conclusotildees tambeacutem histoacutericas) realizadas com os restos mortais de Pedro I Leopoldina e Ameacutelia realizadas por Valdirene Ambiel Cfr AMBIEL Valdirene do Carmo Estudos de arqueologia forense aplicados aos remanescentes humanos dos primeiros imperadores do Brasil depositados no monumento agrave Independecircncia 2013 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Arqueologia) Museu de Arqueologia e Etnologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2013 Aleacutem de procurar esclarecer se tais restos se encontravam depositados no Monumento agrave Independecircncia em Satildeo Paulo e diagnosticar o estado de conservaccedilatildeo dos mesmos Ambiel procurou chamar a atenccedilatildeo para as possiacuteveis causas da morte dos monarcas e sobre os procedimentos funeraacuterios com eles entatildeo utilizados Tais resultados foram divulgados pela imprensa nacional como ldquoverdadesrdquo sobre a famiacutelia imperial brasileira supostamente ausentes dos livros de histoacuteria ldquosegredosrdquo agora ldquoreveladosrdquo Por exemplo Pedro I tinha quatro

14Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

possibilidade de se chegar a dados de uma cultura de histoacuteria inclusive em suas negaccedilotildees em seus silecircncios e interdiccedilotildees Em seguida o questionaacuterio recorreu a um artifiacutecio muito presente no meio social sobre o qual incidiu foi pedido ao entrevistado que atribuiacutesse notas de um a dez para a impor-tacircncia que acha que a Independecircncia teve para a histoacuteria do Brasil e para a histoacuteria do mundo Nos historiadores profissionais em geral esses rankings com sua gigantesca capacidade de simplificar a realidade costumam despertar ojeriza no entanto para os demais agentes sociais dessa cultura pode significar uma forma uacutetil de representaccedilatildeo da realidade acostumados que estatildeo a ela em muitos aspectos de sua vida cotidiana39 Assim tambeacutem daqui pode-se extrair elementos para a anaacutelise de uma cultura de histoacuteria Jaacute as trecircs perguntas seguintes buscaram outra aproximaccedilatildeo foi pedido ao entrevistado que diante de uma lista de 28 palavras escolhesse as trecircs que acreditasse que mais combinam e as trecircs que menos combinam com a Independecircncia40 Tais palavras incidem sobre personagens fatos proces-sos conceitos e mitos constituindo um bom leque de possibilidades de aproximaccedilatildeo linguiacutestica e conceitual com formas de ver a Independecircncia presentes na sociedade inclusive por contemplarem vaacuterios antinocircmicos Por fim perguntou-se ao entrevistado se seria capaz de dizer as datas da chegada da corte portuguesa no Brasil da Independecircncia do Brasil da pri-meira Constituiccedilatildeo e da abdicaccedilatildeo de D Pedro I41 Aqui o intuito era aferir ateacute que ponto essa cultura de histoacuteria se organiza e se faz representar por marcos cronoloacutegicos convencionais bem como se enseja formas alternati-vas de historicizaccedilatildeo e temporalizaccedilatildeo

Desse modo por meio de estrateacutegias de abordagem complementares (graus de relaccedilatildeo ativa ou passiva diante do tema o peso de linguagens conceitos e informaccedilotildees formas temporais) o questionaacuterio procurou fazer convergirem possibilidades de posturas dos entrevistados em relaccedilatildeo agrave histoacuteria e agrave Independecircncia do Brasil bem como dimensotildees variadas e even-tualmente contraditoacuterias de tais posturas relacionando-as inclusive com as cinco perguntas baacutesicas que seriam posteriormente dirigidas agraves fontes secundaacuterias conforme enunciado ao final do item anterior

Apoacutes um curto periacuteodo de testes foram entrevistadas presencialmen-te 311 pessoas na cidade de Satildeo Paulo Grande ABC e interior do estado entre os dias 19 de setembro de 2012 e 02 de agosto de 2013 Propositada-mente foram evitadas as duas Semanas da Paacutetria desses anos bem como um periacuteodo de vinte dias de superexposiccedilatildeo midiaacutetica especiacutefica do tema42 As abordagens foram realizadas de modo direto em 994 das vezes em espaccedilos puacuteblicos tendo cada uma ndash com poucas exceccedilotildees -a duraccedilatildeo de cerca de sete minutos durante os quais evitou-se ao maacuteximo qualquer tipo de constrangimento direcionamento ou auxiacutelio nas respostas

O que foi possiacutevel obter nessas entrevistas Os entrevistados com-potildeem um grupo de forte contato com a televisatildeo (93 assistem com frequecircncia e 51 todos os dias sendo que 58 possuem tevecirc aberta e a cabo apenas 6 disseram natildeo assistir tevecirc) de leitores frequentes (78) e de assistentes a cinemas (58) e teatros (28) o que o aproxima de um perfil de classe meacutedia escolarizada conforme jaacute apontado anteriormente de todo modo haacute que se lembrar que em muitos outros aspectos relevan-tes esse eacute um grupo heterogecircneo Daiacute a importacircncia do fato de que 77 dos que o compotildeem disseram se interessar por histoacuteria (sendo que 60 afirmaram buscar informaccedilotildees a respeito) Esse eacute um nuacutemero alto ou bai-xo A questatildeo natildeo parece das mais importantes jaacute que de acordo com a

costelas quebradas quando morreu era mais baixo do que se supunha natildeo foi cremado mas enterrado acompanhado de porccedilotildees de terra de Portugal e com roupas de general com insiacutegnias portuguesas e natildeo brasileiras Leopoldina natildeo teve o fecircmur quebrado antes de morrer como acreditava-se ateacute entatildeo foi enterrada com a mesma roupa com que foi coroada imperatriz e seus brincos natildeo eram de ouro mas bijuterias de resina Jaacute Ameacutelia quando morreu tinha escoliose e osteoporose foi enterrada de preto e mumificada Na internet tais ldquorevelaccedilotildeesrdquo foram no total comentadas milhares de vezes ldquorecomendadasrdquo e em geral bem-recebidas (fotosestadaocombrmudanca-na-historia-dez-verdades-sobre-a-familia-imperial-que-nao-estao-nos-livros-de-historiagaleria70481949100htmpPosicaoFoto=1carousel acesso em 27032014 folhauolcombrfspcienciasaude94655-corpos-da-familia-imperial-sao-exumadosshtml acesso em 02042014 folhauolcombrfspcienciasaude94656-descoberta-mostra-abandono-de-d-leopoldina-diz-historiadorashtml acesso em 02042014 estadaocombrnoticiascidadessob-sigilo-dom-pedro-i-e-suas-duas-mulheres-sao-exumados-pela-primeira-vez9983670htm acesso em 02042014 vejaabrilcombrblogricardo-settitema-livreabertura-para-estudos-dos-sarcofagos-de-d-pedro-i-e-de-suas-duas-esposas-e-fato-extraordinario-parabens-ao-estadao-por-divulgar-tudo acesso em 02042014 brnoticiasyahoocomexumaC3A7C3A3o-d-pedro-i-mulheres-reconta-histC3B3ria-115400981htmlgt acesso em 02042014 g1globocomciencia-e-saudenoticia201302cientistas-brasileiros-exumam-restos-mortais-de-d-pedro-i-e-suas-mulhereshtml acesso em 02042014 youtubecomwatchv=y8jcdXyx3hAgt acesso em 02042014 vestibularuolcombrresumo-das-disciplinasatualidadeshistoria-do-brasil-exumacao-traz-novidades-sobre-d-pedro-ihtm acesso em 02042014 ltgooglecombrsearchq= exumaC3A7C3A3o+de+dom+pedroampoq= exumaC3A7C3A3o+ampaqs= chrome469i57j0l55749j0j8ampsourceid= chromeampespv=210ampes_sm=93ampie=UTF-8gt acesso em 02042014 noticiasseuhistorycomexumacao-revela-detalhes-surpreendentes-da-vida-e-morte-de-d-pedro-i-e-suas-mulheresgt acesso em 02042014 istoecombrreportagens277892_A+VOLTA+DE+DOM+PEDRO+I acesso em 02042014 bahiaatualcomnoticiasexumacao-de-corpos-de-d-pedro-i-revela-detalhes-da-famiila-real acesso em 02042014 Site Uacuteltimo Segundo ldquoExumaccedilatildeo de D Pedro I e suas mulheres reconta a Histoacuteriardquo disponiacutevel em ultimosegundoigcombrciencia2013-02-19exumacao-de-dpedro-i-e-suas-mulheres-reconta-a-historiahtml acesso em 02042014 diariodepernambucocombrappnoticiaciencia-e-saude20130219internas_cienciaesaude424273restos-mortais-de-d-pedro-i-sao-exumados-para-realizacao-de-pesquisashtml acesso em 02042014 httpopiniaoenoticiacombrbrasilrestos-mortais-de-dom-pedro-i-sao-exumadosgt acesso em 02042014 noticiasbanduolcombrjornaldabandconteudoaspid=100000576688 acesso em 02042014

15Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

definiccedilatildeo aqui proposta de cultura de histoacuteria o desinteresse tambeacutem eacute um dado relevante pois traduz uma atitude em si e que dificilmente poderia ser considerada de modo absoluto (como pretender que esse desinteresse se traduza por exemplo em descaso com a proacutepria histoacuteria ou com a da famiacutelia Difiacutecil acreditar ser esse o caso de 23 dos entrevistados) Aleacutem disso bem sabemos que seu contraacuterio o interesse pode se manifestar de muitas maneiras que natildeo necessariamente encontram guarida em praacuteticas acadecircmicas e profissionais relacionadas ao estudo do passado tampouco que resultam em um estudo da histoacuteria minimamente organizado O que implica que os dois contraacuterios nem sempre estabeleceratildeo limites claros entre si diante da apreciaccedilatildeo geral de uma cultura de histoacuteria interesse e desinteresse pela histoacuteria podem flertar com muita proximidade bem como intercambiarem elementos regularmente

Observemos mais atentamente esse panorama Considerando-se tais caracteriacutesticas de uma cultura de histoacuteria como a brasileira perguntou-se a todos os entrevistados incluindo aos 23 que afirmaram natildeo se inte-ressar por histoacuteria por ldquoqual histoacuteriardquo poderia dizer que mais se interessa Aqui as respostas que de alguma forma se referem diretamente agrave histoacuteria do Brasil (ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo ldquoHistoacuteria geral e do Brasilrdquo ldquoHistoacuteria da nos-sa regiatildeordquo ldquoHistoacuteria do Brasil e andinardquo) perfazem 34 do total aiacute sim um nuacutemero relativamente baixo diante dos 66 que em suas respostas exclu-iacuteram o Brasil Portanto independentemente do interesse pela mateacuteria ser alto ou baixo a relaccedilatildeo com a Histoacuteria do Brasil parece gozar de especial desprestiacutegio Seraacute o desprezo pela histoacuteria nacional um dado da cultura de histoacuteria no Brasil43 Mais adiante quando da anaacutelise das outras fontes vol-taremos a esse ponto De todo modo tal desprestiacutegio evidentemente traraacute implicaccedilotildees para as posturas dos brasileiros em relaccedilatildeo agrave Independecircncia

A princiacutepio os entrevistados tendem a se interessar pouco pela Inde-pendecircncia do Brasil mas essa natildeo eacute uma tendecircncia absoluta se 39 tecircm ldquonenhumrdquo ldquopoucordquo ou ldquopequenordquo interesse 44 tem ldquomeacutediordquo e 17 ldquoentre meacutedio e granderdquo e ldquogranderdquo Ora em se tratando de uma cultura de histoacuteria dinacircmica e fluida com fronteiras pouco claras entre o interesse e o desinte-resse pela histoacuteria de modo geral (e a despeito da clara tendecircncia a um maior desinteresse pela Histoacuteria do Brasil) a Independecircncia eacute pouco interessante mas natildeo eacute inteiramente desprezada (apenas 11 declararam ldquonenhumrdquo inte-resse por ela cifra menor do que a dos grandes interessados)

Parece entatildeo haver espaccedilo aqui para diferentes formas de pensar representar e reinventar a Independecircncia do Brasil como verificar-se-aacute mais adiante de momento constata-se uma correspondecircncia estatiacutestica entre os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram ter dela ldquobomrdquo ou ldquoexcelenterdquo conhecimento (os de ldquonenhumrdquo ldquopoucordquo ou apenas ldquorazoaacutevelrdquo conhecimento compotildee os demais 83) e os 30 que afirma-ram buscar informaccedilotildees a respeito (sendo 60 os que buscam informaccedilotildees sobre histoacuteria em geral) Provavelmente trata-se de um subgrupo dos mais ativos no circuito de consumo-reproduccedilatildeo-criaccedilatildeo de toacutepicos relativos agrave Independecircncia na cultura de histoacuteria no Brasil Dentre esses 30 exclusi-vamente 305 afirmaram buscar informaccedilotildees sobre a Independecircncia em livros 291 na escola e nos livros didaacuteticos (evidentemente mais confina-dos ao puacuteblico jovem) 208 na internet 97 em raacutedio tevecirc eou jornais impressos e outros 97 ldquocom pessoas e lugares44 Os que responderam ler ou ter lido algo a respeito nos uacuteltimos dois anos foram 34 (os demais responderam ldquonatildeordquoldquonatildeo se lembrardquo ou natildeo responderam)

43Natildeo parece ser o caso da cultura histoacuterica

portuguesa de acordo com trabalhos recentes como os de PAIS Joseacute Machado Op Cit SOBRAL Joseacute Manuel Op Cit e MATOS Seacutergio Campos Consciecircncia histoacuterica e nacionalismo Portugal seacuteculos XIX e XX Lisboa Horizonte 2008

44A ausecircncia de menccedilotildees a outros tipos de suporte

de informaccedilotildees sobre a Independecircncia reforccedila a escolha das fontes secundaacuterias da pesquisa analisadas no proacuteximo item

45Embora seja muito frequente a consideraccedilatildeo de

que o principal marco fundacional da histoacuteria brasileira tenha sido o ldquodescobrimentordquo (isto eacute a chegada dos portugueses agrave Ameacuterica em 1500) e natildeo a ruptura poliacutetica entre Brasil e Portugal Muito provavelmente isso se conecta com uma tambeacutem muito frequente concepccedilatildeo da Independecircncia como ldquonatildeo-rupturardquo como processo negociado amigaacutevel e sem grandes solavancos Retornaremos agrave questatildeo

46Todas as 28 palavras oferecidas aos entrevistados

receberam no miacutenimo quatro menccedilotildees sendo que 22 tiveram mais de uma dezena de menccedilotildees a mesclarem termos que remetem a caracteriacutesticas atribuiacutedas agrave Independecircncia que ensejam relaccedilotildees diretas ou indiretas com ela ou que se referem a simples informaccedilotildees

47Foram feitas 310 menccedilotildees de termos positivos em

relaccedilatildeo agrave Independecircncia (liberdade democracia revoluccedilatildeo heroiacutesmo mudanccedila drama) contra 210 dos mesmos como natildeo combinando com ela essa tendecircncia eacute reforccedilada por 190 menccedilotildees a termos negativos que combinariam com ela (acordo escravidatildeo negociaccedilatildeo continuaccedilatildeo ditadura comeacutedia invenccedilatildeo tirania) sendo que os mesmos foram mencionados 391 vezes como natildeo combinando Esclarecer o caso de escravidatildeo pode ser referecircncia a uma realidade (em geral negativa) mas tambeacutem como metaacutefora poliacutetica Para todos os efeitos como mencionar o termo de outras maneiras

48148 escolhas incidiram sobre termos conflitivos

que com ela combinariam (guerra revoluccedilatildeo mudanccedila) contra 101 menccedilotildees a tais termos como natildeo combinando poreacutem tal tendecircncia se inverte nas 119 escolhas de termos paciacuteficos que com ela combinariam (paz acordo negociaccedilatildeo) contra 70 menccedilotildees aos mesmos como natildeo combinando

49Foram feitas 27 escolhas de povo como combinando

contra 22 do mesmo termo como natildeo combinando e 35 a elitepoderosos como combinando contra 14 em termos opostos o que indica certo equiliacutebrio tendente agrave segunda possibilidade

50Natildeo se pode deixar de mencionar algumas

outras palavras que natildeo se encontravam na lista mas foram acrescidas pelos entrevistados sendo portanto de menccedilatildeo espontacircnea As mais recorrentes combinando num sentido depreciativo foram ldquointeresserdquo e ldquocorrupccedilatildeordquo Outras palavras tais quais ldquounificaccedilatildeordquo ldquomorterdquo

16Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

A hipoacutetese da constituiccedilatildeo de um subgrupo ativo na cultura de histoacuteria por meio do tema da Independecircncia encontra respaldo nos resulta-dos do ranking do questionaacuterio para a importacircncia que ela teria tido para a Histoacuteria do Brasil 43 deram nota 10 e outros 31 notas entre 8 e 9 sendo que apenas 6 deram notas entre 0 e 4 ou natildeo souberam responder Ou seja mesmo quem natildeo se interessa pela Independecircncia ou pela Histoacute-ria do Brasil em geral tende a reconhecer o tema como sendo de grande importacircncia embora tal reconhecimento seja menor em se tratando de sua relaccedilatildeo com a Histoacuteria ldquoem geralrdquo (a essa pergunta 25 respondeu com nota 10 e outros 25 com notas 8 ou 9 em contraposiccedilatildeo a um elevado percentual de 22 que deu notas entre 0 e 4 ou natildeo soube responder) Ainda assim portanto a Independecircncia eacute fortemente valorizada por um percentual que extrapola os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram dela serem conhecedores ou os 20 que afirmaram buscar informaccedilotildees a seu respeito Valorizada poreacutem em meio ao que parece ser uma dificuldade de se pensaacute-la para aleacutem de sua tradicional circunscriccedilatildeo nacional (o que encontra como logo veremos enorme correspondecircncia nas fontes secundaacuterias) para aleacutem dos limites a ela convencionalmente impos-tos por tradiccedilotildees historiograacuteficas ainda fortes e mesmo por uma cultura de histoacuteria que tendo atributos fortemente nacionais tende a nela enxergar um marco fundacional importante isto eacute um marco diferenciador entre a histoacuteria do Brasil e a de outros paiacuteses45

O que nesse sentido nos mostram as escolhas de palavras que ldquocom-binamrdquo e ldquonatildeo combinamrdquo com a Independecircncia46 Em primeiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista mais em perspectiva positivaenalte-cedora do que negativadepreciativa47 Em segundo lugar a possibilidade da Independecircncia ser considerada tanto como rupturaconflitiva quanto como continuidadepaciacutefica48 Em terceiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista como algo menos popular do que elitista49 Em quarto e uacuteltimo lu-gar ateacute que ponto os entrevistados se mostraram conhecedores da histoacuteria 55 respostas indicaram termos informativos descabidos (Tiradentes combina D Pedro I D Joatildeo VI Joseacute Bonifaacutecio e Portugal natildeo) contra uma maioria de 190 menccedilotildees a tais termos de modo inverso Aqui os resultados podem indicar a prevalecircncia de um tipo de conhecimento de histoacuteria estruturado em personagens e trajetoacuterias individuais (como logo veremos as fontes secundaacute-rias tambeacutem referendaratildeo amplamente essa hipoacutetese)50

Na uacuteltima parte do questionaacuterio perguntou-se aos entrevistados acerca de datas de quatro eventos que podem ser considerados como marcos do processo de Independecircncia 68 responderam natildeo saber ou natildeo se lembrar da data da chegada da Corte portuguesa ao Brasil 13 deram respostas claramente erradas em muitas das quais (ldquomil e quinhentosrdquo ldquomil quinhentos e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo etc) natildeo obstan-te se vislumbra uma referecircncia adequada poreacutem tratada de modo equivo-cado e somente 9 souberam responder de modo preciso (ldquomil oitocentos e oitordquo) Diante da pergunta quanto agrave data da primeira constituiccedilatildeo do Brasil 85 disseram natildeo saber ou natildeo se lembrar 7 deram respostas claramente erradas (ldquomil e quatrocentosrdquo ldquomil quinhentos e oitentardquo) algumas das quais poreacutem se aproximando da evocaccedilatildeo de alguma consti-tuiccedilatildeo brasileira (ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquomil novecentos e trintardquo ldquomil novecentos e oitenta e oitordquo) e apenas 13 souberam responder com firmeza isto eacute com a presenccedila de ldquomil oitocentos e vinte e quatrordquo na resposta Jaacute a pergunta sobre a data

(em alusatildeo ao Grito) e ldquoprogressordquo enriqueceram a fileira dos termos valorativos

51Essa percepccedilatildeo eacute reforccedilada por alguns dos

dados obtidos por Purificaccedilatildeo Em meio a representaccedilotildees da Independecircncia produzidas por crianccedilas entre 09 e 13 anos encontram-se frases como ldquoQuando D Pedro viu terra gritou Independecircncia ou Morterdquo e ldquoPouco depois de descobrirem o Brasil gritaram a independecircnciardquo PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p40-41 Cabe lembrar que tais crianccedilas natildeo haviam tido ainda contato formal (na escola) com o tema da Independecircncia ldquoapenasrdquo por meio de uma cultura de histoacuteria a envolverem-nas

52O que parece impor uma urgente reflexatildeo em

torno dos efeitos do violento desprestiacutegio das referecircncias factuais que o sistema escolar impocircs ao ensino de Histoacuteria no Brasil das uacuteltimas deacutecadas O quecirc ademais natildeo parece uma situaccedilatildeo exclusivamente brasileira de acordo com a sugestatildeo que nos foi dada por Nuno Gonccedilalo Monteiro a ver aqui paralelismo com o ensino de Histoacuteria em Portugal

53Outras duas possibilidades promissoras seriam

analisar respostas a questotildees de vestibulares relativas agrave Independecircncia e entrevistas com professores e coordenadores pedagoacutegicos que de alguma forma lidem com o tema no cotidiano escolar

54MORENO Jean Carlos Limites escolhas e

expectativas horizontes metodoloacutegicos para anaacutelise dos livros didaacuteticos de histoacuteria Antiacuteteses Londrina v5 n10 p729 juldez2012

55O que eacute atestado por exemplo pela recente

consolidaccedilatildeo da presenccedila nos livros didaacuteticos de toacutepicos relativos agrave Histoacuteria do continente africano

56Dos 49 autores de livros didaacuteticos aqui

considerados 36 satildeo identificados pelos termos ldquomestrerdquo ldquodoutorrdquo ou ldquoprofessor universitaacuteriordquo O que natildeo significa como eacute bem sabido que tais autores sejam integralmente responsaacuteveis pelo conteuacutedo de suas obras

57MORENO Jean Carlos Op Cit p724

58Segundo dados oficiais somente no ano de

2012 esse governo comprou cerca de 408 milhotildees de livros didaacuteticos para os anos do Ensino Meacutedio (Assessoria de Comunicaccedilatildeo Social do FNDE 24 de agosto de 2012)

59Sua produccedilatildeo no entanto eacute regionalmente

concentrada na seleccedilatildeo das coleccedilotildees de didaacuteticos feita pelo MEC em 2010 oito editoras de Satildeo Paulo responderam por 842 da produccedilatildeo aprovada enquanto trecircs de Curitiba ficaram com os 158 restantes

60DIAS Adriana M GRINBERG Keila e

PELLEGRINI Marco Novo Olhar Histoacuteria v2 Satildeo

17Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

da abdicaccedilatildeo de D Pedro I foi a campeatilde em respostas imprecisas 92 dis-seram natildeo saber ou natildeo se lembrar 16 deu respostas erradas e apenas 12 soube responder ldquomil oitocentos e trinta e umrdquo

E quanto agrave data da Independecircncia do Brasil Em comparaccedilatildeo com as perguntas anteriores esta obteve respostas de qualidade superior natildeo obstante um nuacutemero ainda alto de respostas ldquonatildeo souberdquo e ldquonatildeo lembrardquo 33 dos entrevistados Haacute que se lembrar inclusive que desde a segunda parte do questionaacuterio o entrevistado jaacute sabia tratar-se de algo focado na Independecircncia ou seja se nas demais perguntas pode-se dizer que ele foi pego totalmente surpresa nesta natildeo Por isso e se considerarmos ainda os 14 que deram respostas claramente erradas a esta pergunta (ldquomil e qui-nhentosrdquo ldquovinte e um de abril de mil e quinhentosrdquo ldquovinte e dois de abril de mil e quinhentosrdquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquovinte e um de abrilrdquo ldquovinte e dois de abrilrdquo ldquonove de julhordquo) chega-se a um total de 47 de pessoas incapazes de dizer quando ocorreu a Independecircncia do Brasil Por outra parte os que souberam responder (ldquosete de setembro de mil oito-centos e vinte e doisrdquo ou ldquomil oitocentos e vinte e doisrdquo) chegaram a 16 iacutendice muito proacuteximo das dimensotildees do hipoteacutetico grupo de interessados e razoaacuteveis conhecedores da Histoacuteria da Independecircncia referido alguns paraacutegrafos acima

Trata-se de um nuacutemero elevado ainda mais se reafirmarmos que a Independecircncia natildeo eacute jamais completamente ignorada em meio agrave cultura brasileira de histoacuteria De certo modo sim mas natildeo deve escapar agrave obser-vaccedilatildeo de ningueacutem que nessa pergunta especiacutefica a confusatildeo de datas se daacute dentro de referecircncias histoacutericas e cronoloacutegicas bastante demarcadas a Independecircncia o ldquodescobrimento do Brasilrdquo Tiradentes e a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica todos eles marcos fundacionais em uma memoacuteria histoacuteri-ca oficial logo fundamentais na constituiccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil51 Tais resultados indicam preliminarmente a precariedade da concepccedilatildeo de histoacuteria ndash da Independecircncia em particular - segundo formas convencionais de organizaccedilatildeo cronoloacutegica e isso a despeito dessa socieda-de ser permeada e carregada de referecircncias cronoloacutegicas que organizam a vida das pessoas em muitos de seus interstiacutecios (vida familiar vida profis-sional praacuteticas de lazer e de culto etc) Pouquiacutessimas respostas ndash esta-tisticamente despreziacuteveis -parecem esboccedilar a forja de alguma modalidade alternativa de organizaccedilatildeo temporal da histoacuteria (ldquoquase duzentos anosrdquo ldquomil oitocentos e alguma coisardquo ou ldquoD Pedro saiu para brigar com o irmatildeo e deixou D Pedro IIrdquo) diante do quecirc ganha forccedila a hipoacutetese de uma enorme e generalizada dificuldade apresentada por essa sociedade no manejo de recursos baacutesicos de historicizaccedilatildeo da histoacuteria como a cronologia52

Ateacute aqui as conclusotildees a que se pode chegar ainda satildeo excessiva-mente parciais extraiacutedas apenas da sondagem de opiniatildeo conveacutem no entanto sumarizaacute-las de modo a reforccedilaacute-las como hipoacuteteses capazes de nortear a anaacutelise vindoura Segundo o que nos mostram os entrevistados a Independecircncia eacute pouco frequentada por muitos mas assiduamente por um grupo razoaacutevel (seratildeo seus membros os uacutenicos capazes de pensaacute-la segundo marcos cronoloacutegicos) eacute amplamente considerada tema da maior importacircncia para a Histoacuteria do Brasil e de menor importacircncia para a His-toacuteria do Mundo ela eacute menos interessante do que outros temas (quais natildeo sabemos) assim como a Histoacuteria do Brasil eacute menos do que a Histoacuteria Geral mas tende a ser vista como algo respeitaacutevel eventualmente positivo para o Brasil o que parece evocar um imaginaacuterio oficial ainda muito vigente de

Paulo FTD 2010 ALVES Alexandre e OLIVEIRA Letiacutecia F de Conexotildees com a Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Moderna 2010 PEDRO Antocircnio e LIMA Lizacircnias de Souza Histoacuteria sempre presente v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VICENTINO Claacuteudio R e DORIGO Gianpaolo F Histoacuteria Geral e do Brasil v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FIGUEIRA Divalte G Histoacuteria em foco v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2011 NOGUEIRA Fausto G e CAPELLARI Marcos Ser protagonista Histoacuteria 2ordm ano do Ensino Meacutedio Satildeo Paulo Ediccedilotildees SM 2010 BURITTI Flaacutevio Caminhos do Homem v2 Curitiba Base Editorial 2010 CAMPOS Flaacutevio de CLARO Regina A escrita da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 COTRIM Gilberto Histoacuteria Global Brasil e Geral v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 AZEVEDO Gislane C e SERIACOPI Reinaldo Histoacuteria em movimento v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2010 MORENO Jean Carlos e GOMES Sandro V Histoacuteria cultura e sociedade v3 Curitiba Positivo 2010 FERREIRA Joatildeo Paulo e FERNANDES Luiz Estevam Nova Histoacuteria integrada v2 2a ed Curitiba Moacutedulo 2010 MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Histoacuteria Geral e Brasil v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam B Histoacuteria Das cavernas ao terceiro milecircnio v2 2a ed Satildeo Paulo Moderna SANTIAGO Pedro CERQUEIRA Ceacutelia e PONTES Maria Aparecida Por dentro da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 MOCELLIN Renato e CAMARGO Rosiane Histoacuteria em debate v2 Satildeo Paulo Editora do Brasil 2010 CATELLI Jr Roberto GANDINI Mariacutea Soledad M e ASPIS Renata L Histoacuteria texto e contexto v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FARIA Ricardo de M MIRANDA Mocircnica Liz e CAMPOS Helena Estudos de Histoacuteria v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010

61PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit

62Conforme observou o Guia de livros didaacuteticos

PNLD 2012 Histoacuteria 17 das coleccedilotildees aprovadas adotaram a perspectiva da Histoacuteria Integrada na qual se expotildee o conteuacutedo histoacuterico a partir da ldquosequecircncia cronoloacutegica de base europeiardquo havendo o predomiacutenio da ldquoHistoacuteria Geral eurocecircntricardquo linear Os assuntos sobre a Histoacuteria da Ameacuterica e do Brasil estatildeo intercalados nesta grande Histoacuteria Geral As outras duas coleccedilotildees optaram pelo formato temaacutetico organizando os assuntos ldquoem torno de muacuteltiplos espaccedilos e temporalidadesrdquo mas guiados por um eixo cronoloacutegico Guia de livros didaacuteticos PNLD 2012 Histoacuteria Op Cit p 18-19

63Uma afirmaccedilatildeo tiacutepica ldquoO nascimento do

Brasil como paiacutes independente encontra-se dentro do contexto de crise do Antigo Regime e do sistema colonial mercantilistardquo VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p89 Os paradigmas historiograacuteficos a que tal tipo de afirmaccedilatildeo remete satildeo evidentemente as obras de Caio Prado Juacutenior e Fernando Novais jaacute amplamente presentes tambeacutem nos livros de Ensino Fundamental PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit cap3

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glorificaccedilatildeo da Independecircncia laudatoacuterio e a destacar seus personagens centrais No entanto tal tendecircncia encontra obstaacuteculo em outras contraacute-rias minoritaacuterias mas natildeo despreziacuteveis a verem a Independecircncia como algo pouco ou nada importante uma histoacuteria restrita espacialmente e socialmente e mais de continuidades do que de rupturas

Assim jaacute eacute possiacutevel afirmar que a Independecircncia enseja disputas a seu respeito em torno de suas representaccedilotildees e memoacuterias oficiais ou natildeo Muito provavelmente alguns dos motivos que explicam sua rejeiccedilatildeo por muitos explicam igualmente sua ativa e entusiasmada frequecircncia por um grupo menor Em uma terceira via ela jamais deixou de ser pensada e divulgada em perspectivas complexas fortemente criacuteticas e analiacuteticas Para todos os efeitos a Independecircncia contribui sem duacutevida para tipificar uma cultura de histoacuteria no Brasil plural variada e apenas parcialmente organizada em padrotildees cronoloacutegicos (temporais) na qual ocupa um papel central e da qual irradiam outros elementos valiosos para um melhor en-tendimento dessa mesma cultura

4 ndash A Independecircncia nas escolas A principal fonte de fomento e irradiaccedilatildeo de atitudes do brasileiro diante da Independecircncia eacute o sistema escolar com sua diversidade de agentes es-paccedilos procedimentos materiais e valores Aqui seraacute analisado apenas um componente prenhe de significados desse sistema o livro didaacutetico53

Segundo um estudioso da mateacuteria os autores de livros didaacuteticos de Histoacuteria em geral ndash grupo no qual ele mesmo estaacute incluiacutedo -ldquonatildeo tecircm por objetivo somente transpor a Histoacuteria acadecircmica eles identificam necessi-dades sociais estatildeo imersos na sociedade e portanto na proacutepria histoacuteria sobre a qual escrevemrdquo54 Tais livros satildeo assim documentos privilegiados de uma cultura de histoacuteria trazem conteuacutedos de acordo com padrotildees e paracircmetros de uma sociedade agrave qual servem sendo inclusive cada vez mais sensiacuteveis a impulsos de origem natildeo acadecircmica55 contam com a colaboraccedilatildeo ou autoria de historiadores profissionais56 que trabalham junto a editores assistentes revisores iconoacutegrafos diagramadores e designers graacuteficos57 satildeo consumidos preferencialmente por educadores e educandos mas chegam tambeacutem agraves famiacutelias destes e ao puacuteblico em geral tendem a permanecer por algum tempo disponiacuteveis em salas de aula residecircncias livrarias e bibliotecas e satildeo fortemente condicionados pelas exigecircncias de um grande mercado editorial cujas demandas capi-talistas natildeo satildeo menos evidentes do que as pedagoacutegicas O livro didaacutetico eacute o segundo suporte de leitura mais lido no Brasil sendo sua produccedilatildeo o mais lucrativo negoacutecio de uma induacutestria editorial brasileira que tem no governo federal seu maior cliente58 Essa produccedilatildeo dos livros didaacuteticos movimenta enormes cifras veicula paacuteginas e paacuteginas de conteuacutedos de Histoacuteria produzidos por e destinados a um amplo conjunto de agentes sociais e tecircm circulaccedilatildeo nacional59

A Independecircncia estaacute presente em todos os 21 livros destinados ao Ensino Meacutedio aqui considerados60 assim como estava em outros 12 de Ensino Fundamental contemplados por um estudo acadecircmico a respeito61 Nessa dupla frente abre-se uma possibilidade de anaacutelise valiosa jaacute que alguns livros circulam atualmente enquanto outros circularam agrave eacutepoca em que jovens adultos que hoje tecircm entre 22 e 26 anos eram crianccedilas entre 9 e 13 Unem-se assim duas temporalidades de tratamentos da Independecircn-cia que podem ser unificadas por uma cultura de histoacuteria

64Exemplo eacute a afirmaccedilatildeo de que ldquoem

reconhecimento agrave importacircncia da Batalha do Jenipapo como um episoacutedio fundamental no processo de independecircncia e de consolidaccedilatildeo do territoacuterio a data de 13 de marccedilo de 1823 foi estampada na bandeira do estado do Piauiacuterdquo DIAS Adriana GRINBERG Keila e PELLEGRINI Marco Op Cit p240

65Excelente demonstraccedilatildeo eacute dada por uma

proposta pedagoacutegica de um jogo didaacutetico elaborado pelo Laboratoacuterio de Ensino de Histoacuteria da Universidade Federal de Pelotas descrita em GASPAROTTO Alessandra ESPIacuteRITO SANTO Marco Viniacutecio do SILVA Eduarda Borges da Jogo didaacutetico vira-vira a metroacutepole vira colocircnia a colocircnia vira-metroacutepole Revista Latino-Americana de Histoacuteria v2 n6 agosto de 2013 (Ediccedilatildeo Especial) p648-661

66Os preferidos satildeo D Joatildeo Carlota Joaquina Joseacute

Bonifaacutecio e D Pedro

67Um exemplo apoacutes afirmar que ldquodurante anos a

historiografia oficial tentou idealizar o processo de independecircncia e seus autores explicado como um ato de heroiacutesmo contra a tirania e em defesa da liberdaderdquo uma das obras afirma em tom de contraposiccedilatildeo ldquoMas nas uacuteltimas deacutecadas novos estudos permitiram lanccedilar um novo olhar sobre esse periacuteodo Expressotildees dessa mudanccedila satildeo algumas produccedilotildees culturais recentes que tratam desse momento com uma visatildeo criacutetica e ateacute mesmo sarcaacutestica como por exemplo o romance O Chalaccedila (1999) de Joseacute Roberto Torerordquo Por fim propotildee como ldquoSugestatildeo de atividaderdquo supostamente para aguccedilar o senso criacutetico do aluno ldquocomparar o romance de Torero citado acima com a visatildeo oficial dos eventos fornecida pela ceacutelebre pintura Independecircncia ou morte (O Grito do Ipiranga) de Pedro Ameacuterico ou pelo filme Independecircncia ou morte (1972) de Carlos Coimbrardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p80-81) Aleacutem de ignorar os momentos objetivos e naturezas distintos das obras recomendadas tal atividade sugere a ultrapassagem de uma visatildeo ldquotradicionalrdquo da Independecircncia por outra ldquocriacuteticardquo ndash logo mais aceitaacutevel Assim o aluno eacute encorajado a conceber a histoacuteria por meio de sua livre-interpretaccedilatildeo mas sendo impelido a endossar a de um romance satiacuterico (logo voltaremos a ele)

68Em um livro para o Ensino Fundamental de

1996 lia-se que ldquopara a realizaccedilatildeo do nosso trabalho foi importante a participaccedilatildeo de Mariana Massarani artista que desenhou com alegria e bom humor os acontecimentos estudadosrdquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Do mundo indiacutegena ao periacuteodo regencial no Brasil Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1994 p1 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p79) Essa eacute uma tendecircncia antiga como nos mostra o poema de Murilo Mendes ldquoA pescariardquo (publicado em Histoacuteria do Brasil de 1932) evocativo da tatildeo ceacutelebre quanto historicamente irrelevante disenteria de D Pedro em 7 de setembro de 1822 e transcrito em outro didaacutetico ldquoFoi nas margens

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Natildeo haacute duacutevida que a maioria dos livros didaacuteticos de Histoacuteria voltados ao Ensino Meacutedio abre possibilidades de construccedilatildeo de um conhecimento acerca da Independecircncia multifacetado matizado criacutetico e criterioso e deles pode-se extrair muitos exemplos a revelarem diaacutelogos propositi-vos entre saberes acadecircmicos e didaacuteticos da Histoacuteria (afinal os proacuteprios autores e avaliadores dos livros estatildeo quase todos diretamente ligados ao meio acadecircmico) aliaacutes em comparaccedilatildeo com os de Ensino Fundamental de cerca de uma deacutecada atraacutes essas possibilidades soacute cresceram Poreacutem como natildeo eacute objetivo deste estudo analisar tais livros em si mesmos -somente deles extrair elementos que tipifiquem uma cultura de histoacuteria por meio da Independecircncia ndash mais relevantes parecem ser justamente alguns de seus pontos sensiacuteveis nos quais tais livros se fazem menos acadecircmicos e nos quais se traduzem de modo mais significativo componentes mais amplos da sociedade que lhes daacute sentido

Em todos esses livros a Independecircncia eacute invariavelmente vista como parte de um processo mais amplo no qual se incluem outros acontecimen-tos poliacuteticos americanos e europeus de finais do seacuteculo XVIII e comeccedilos do seacuteculo XIX (embora quase nunca sejam feitas conexotildees fundamentais entre eles deficiecircncia notaacutevel sobretudo no tocante agraves independecircncias da Ameacuterica espanhola vistas sempre como supostos contraexemplos da Independecircncia do Brasil62) O episoacutedico se faz presente na menccedilatildeo a vaacuterios temas menores ndash a vinda da Corte a abertura dos Portos o governo de D Joatildeo no Rio de Janeiro a Revoluccedilatildeo de Pernambuco a Revoluccedilatildeo do Porto etc ndash mas sempre em observacircncia a contextos histoacutericos espaciais e temporais mais amplos63 Destaque-se que 80 dos livros fazem referecircncia expliacutecita ao termo ldquoguerra(s) de independecircnciardquo64 o que enseja uma con-cepccedilatildeo tambeacutem multirregional do tema e vaacuterios o aprofundam O mesmo pode ser dito de perfis biograacuteficos presentes mas submetidos a uma loacutegica processual da Histoacuteria

Essa ecircnfase em processos em detrimento parcial de acontecimentos e personagens eacute importante indiacutecio de uma sintonia entre saberes aca-decircmicos e natildeo acadecircmicos65 Contudo deve-se relativizar o peso desse diaacutelogo jaacute no que tange ao tratamento dispensado agraves biografias aleacutem de pouco ou nada inovarem na escolha dos personagens destacados66 alguns livros didaacuteticos trazem fragmentos anedoacuteticos de tais trajetoacuterias hoje em dia pouco ou nada uacuteteis a historiadores profissionais (embora as comilan-ccedilas de D Joatildeo os amantes de D Carlota ou as noitadas de D Pedro natildeo os distingua de outros agentes histoacutericos de sua eacutepoca tampouco satildeo trata-dos como tiacutepicos67) Parece razoaacutevel argumentar que ao menos parcial-mente tal insistecircncia da parte do livro didaacutetico atende ao gosto do leitorconsumidor tornando tais suportes materiais mais agradaacuteveis e sedutores assim sendo constata-se justamente um limite no diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e saberes didaacuteticos expressos em tais livros bem como se anuncia uma tendecircncia de representaccedilatildeo humoriacutestica do passado em uma cultura de histoacuteria como a brasileira muito forte em outros suportes68 Eis um mercado ndash que no Brasil mescla dimensotildees editoriais e midiaacuteticas com outras educacionais e culturais mais amplas ndash impondo seus padrotildees de representaccedilatildeo do passado

Aleacutem de envolverem historiadores profissionais em sua produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo os livros didaacuteticos de Ensino Meacutedio parecem esforccedilar-se cada vez mais em trazer conteuacutedos extraiacutedos de obras acadecircmicas bem como apresentar ao leitor uma pluralidade de posiccedilotildees acerca de um determina-

do IpirangaEm meio a uma pescariaSentindo-se mal D PedroComera demais cuscuzDesaperta a braguilhaE grita roxo de raivaOu me livro desta coacutelicaOu morro logo de uma vezO priacutencipe se aliviouSai no caminho cantandoJaacute me sinto independenteSafa Vou de perto a morteVamos cair no fadinhoPra celebrar o sucessordquo MACEDO Joseacute Rivair Brasil ndash uma histoacuteria em construccedilatildeo Satildeo Paulo Brasil 1996 p166 Cit por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p101

69Tomemos por exemplo esta afirmaccedilatildeo ldquoDe acordo

com alguns historiadores as raiacutezes da independecircncia brasileira estatildeo na segunda metade do seacuteculo XVIII quando se multiplicaram atividades produtivas e comerciais na colocircnia sobretudo na regiatildeo Centro-Sulrdquo (MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Op Cit p113) Nela eacute possiacutevel reconhecer a presenccedila de influente e importante interpretaccedilatildeo acadecircmica acerca da Independecircncia do Brasil (DIAS Maria Odila A interiorizaccedilatildeo da metroacutepole (1808-1853) In MOTA Carlos Guilherme 1822 dimensotildees Satildeo Paulo Perspectiva 1972 p160-184) no entanto natildeo eacute apresentada qualquer contraposiccedilatildeo (se esta posiccedilatildeo eacute da parte de ldquoalguns historiadoresrdquo outra divergente deve ser da parte de outros) Mais adiante lecirc-se que ldquoo fato relevante foi que a transferecircncia da corte para o Brasil provocou uma inversatildeo histoacuterica de modo significativo e irreversiacutevel nas relaccedilotildees entre a metroacutepole portuguesa e a colocircnia brasileirardquo (Idem p114) Ora o que seria uma inversatildeo irreversiacutevel dessas relaccedilotildees Portugal teria se tornado para sempre colocircnia do Brasil

70Nos livros didaacuteticos de Ensino Fundamental

analisados por Purificaccedilatildeo jaacute eram abundantes as transcriccedilotildees de trechos de textos de historiadores profissionais sem que deles resultasse qualquer ensejo de pluralidade de pensamento ou de estiacutemulo agrave interpretaccedilatildeo

71VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA

Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p 103

72O capiacutetulo 14 de uma das obras intitulado

ldquoO processo de independecircncia da Ameacuterica portuguesardquo inicia-se com um excerto do Romanceiro da Inconfidecircncia de Ceciacutelia Meireles tambeacutem indutor a essa interpretaccedilatildeo ldquoAtraveacutes de grossas portas sentem-se luzes acesas e haacute indagaccedilotildees minuciosas dentro das casas fronteiras Que estatildeo fazendo tatildeo tarde Que escrevem conversam pensam Mostram livros proibidos Leem notiacutecias nas GazetasTeratildeo recebido cartasde potecircncias estrangeiras [] Oacute vitoacuterias festas flores das lutas da Independecircncia Liberdade ndash essa palavra que o sonho humano alimenta que natildeo haacute ningueacutem que explique e ningueacutem que natildeo entendardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p 202) Jaacute nas ldquosugestotildees de leitura e consulta para o professorrdquo de outra encontra-se indicaccedilatildeo de uma obra de J J Chiavenato - Inconfidecircncia mineira as vaacuterias faces Satildeo Paulo Global 2000 - com este comentaacuterio ldquoo autor mostra o movimento que buscava a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Adotando uma abordagem que parte da realidade socioeconocircmica do periacuteodo este livro releva diferentes aspectos desse momento singular da histoacuteria brasileirardquo (NOGUEIRA Fausto

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do toacutepico que seja decorrente de debates acadecircmicos No entanto ainda eacute frequente que tais conteuacutedos se inclinem agrave pura formalidade dificilmente explicitando divergecircncias oriundas da academia ou resultando em uma tomada de posiccedilatildeo realmente criacutetica perante a histoacuteria69 Ao usuaacuterio do livro eacute apresentada uma suposta pluralidade de pensamento natildeo como ferramenta de obtenccedilatildeo dessa pluralidade mas como estilo de composiccedilatildeo e padronizaccedilatildeo do material didaacutetico70

Esse tipo de atitude formalista pode ser encontrada tambeacutem em propostas de atividades dirigidas ao aluno como esta

A interpretaccedilatildeo sobre a independecircncia do Brasil provocou e ainda provoca muitas divergecircncias Sob o ponto de vista econocircmico alguns pesquisadores defendem que a separaccedilatildeo ocorreu de fato em 1808 [] Outros com interpretaccedilotildees mais poliacuteticas indicam o 7 de setembro de 1822 embora nenhuma medida formal tenha sido tomada nessa data ndash foi um ato simboacutelico Depois da Guerra do Paraguai jornais republicanos argumentavam que [] D Pedro havia atendido aos apelos de independecircncia dos brasileiros mas os teria traiacutedo quando fechou a Assembleia Constituinte em 1823 Enalteciam entatildeo a Inconfidecircncia Mineira (1789) a Revoluccedilatildeo Pernambucana (1817) e a Confederaccedilatildeo do Equador (1824) movimentos com teor republicano conforme as reais aspiraccedilotildees dos brasileiros

Satildeo vaacuterias interpretaccedilotildees que variam de acordo com a posiccedilatildeo poliacutetica ou momento histoacuterico dos autores Alguns intelectuais consideram ateacute mesmo que o Brasil hoje tem uma independecircncia mais nominal do que real pois continuaria dependente dos paiacuteses mais ricos

Em sua opiniatildeo quando o Brasil se tornou um paiacutes independente71

Aqui novamente eacute apresentada uma divergecircncia de interpretaccedilatildeo e vaacuterias satildeo as possibilidades de resposta agrave pergunta quando o Brasil se tornou um paiacutes independente No entanto todas as posiccedilotildees apresentadas parecem equivaler-se pois tudo depende da ldquoposiccedilatildeo poliacuteticardquo ou ldquodo mo-mento histoacutericordquo da pessoa disposta a respondecirc-la Assim e por induccedilatildeo a Inconfidecircncia Mineira poderia ser uma resposta aceitaacutevel conforme visatildeo ainda presente em alguns livros72 e a despeito do contraacuterio que historia-dores vecircm afirmando nas uacuteltimas deacutecadas Do mesmo modo a atividade pareceria aceitar a ldquonatildeo independecircncia de fatordquo ideia muito presente na cultura de histoacuteria no Brasil73 tatildeo sedutora quanto inconsistente do ponto de vista acadecircmico Para o aluno tratar-se-ia de uma questatildeo de simples opccedilatildeo (poliacutetica) diante da qual a Histoacuteria se destemporaliza

Uma Histoacuteria processual mais do que episoacutedica ou personalista uma Histoacuteria permeada de explicaccedilotildees acadecircmicas ao mesmo tempo uma Histoacuteria com limitaccedilotildees em termos de divergecircncias relativizaccedilotildees e possibilidades em aberto condicionada a suportes materiais repletos de convenccedilotildees a tornarem-nos muito parecidos entre si Talvez seja no tra-tamento dispensado a imagens que os livros didaacuteticos melhor revelam tais convenccedilotildees reforccedilando as limitaccedilotildees de seu diaacutelogo com a Histoacuteria acadecirc-mica bem como acentuando suas caracteriacutesticas de mercadoria Todos os livros aqui considerados satildeo carregados de itens especiacuteficos a quebrarem a continuidade do texto e suas paacuteginas satildeo multicoloridas e povoadas por fi-guras como obras de pintores dos seacuteculos XIX e XX74 Quase nunca poreacutem tais imagens satildeo analisadas como fontes histoacutericas confinadas agrave funccedilatildeo de mera ilustraccedilatildeo frequentemente modificadas em cor e tamanho ateacute mesmo mutiladas ndash sem esclarecimento ndash em prol da diagramaccedilatildeo75 Em tais casos inevitavelmente cria-se uma ideia natildeo de uma histoacuteria sujeita a muacuteltiplas interpretaccedilotildees (contrapondo-se portanto a vaacuterias das atividades

e CAPELLARI Marcos Op Cit p71) Em uma terceira obra logo na abertura de um capiacutetulo intitulado ldquoA independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo lecirc-se que ldquoos dias 21 de abril e 7 de setembro feriados nacionais nos fazem lembrar de dois momentos do processo histoacuterico que levou a independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo (COTRIM Gilberto Op Cit p223) A associaccedilatildeo direta entre Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia era mais comumente feita em livros didaacuteticos de deacutecadas atraacutes Um de Ensino Fundamental caracterizava a Revolta de Beckman a Guerra dos Emboabas a Revolta de Felipe dos Santos a Guerra dos Mascates e as conjuraccedilotildees Mineira e Baiana como movimentos nos quais ldquoos revoltosos se opuseram agrave metroacutepole sonhando e lutando pela autonomia do paiacutesrdquo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Nas trilhas da histoacuteria Ensino Fundamental Belo Horizonte Dimensatildeo 1999 v4) Citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p108

73FIGUEIRA Divalte G Op Cit p191 Nos de

Ensino Fundamental AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 CARMO Socircnia S do COUTO Eliane F B A A consolidaccedilatildeo do capitalismo e o Brasil impeacuterio Satildeo Paulo Atual 1997 (Histoacuteria Passado Presente 3) p105 FERREIRA Joseacute Roberto Histoacuteria Ediccedilatildeo Reformulada Satildeo Paulo FTD 1997 (7ordf seacuterie) p65 ALVES Kaacutetia Correia Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p 128 Citados por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p78 84-85 96 e 111

74Debret Rugendas Moreaux Feacutelix Taunay

Constantino Fontes Polliegravere Parreiras Benedito Calixto Delerive Martins Viana Oscar Pereira da Silva Georgina de Albuquerque e Aldemir Martins entre outros

75Isso jaacute era frequente haacute uma deacutecada com livros

de Ensino Fundamental como por exemplo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p126 e COTRIM Geraldo Op Cit p 112 conforme anaacutelise de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p113 e 123 Haacute que se dizer que livros didaacuteticos natildeo satildeo meio exclusivo para esse esvaziamento do valor documental da iconografia havendo na proacutepria publicaccedilatildeo acadecircmica problema semelhante como demonstra CAVENAGHI Airton Joseacute O atlas do impeacuterio do Brazil e as representaccedilotildees presentes no livro Projeto Histoacuteria v 41 2010 p 383-403

76Constataccedilatildeo semelhante agrave de PURIFICACcedilAtildeO Ana

Teresa da Op Cit para os didaacuteticos de Ensino Fundamental

77NOGUEIRA Fausto e CAPELLARI Marcos Op

Cit p255

78Para um deles ldquoo pintor Pedro Ameacuterico imaginou

a cena ocorrida agraves margens do riacho do Ipirangardquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 para outro um ceacutelebre quadro mostraria uma ldquocena de uma

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sessatildeo das cortes de Lisboa reconstituiacuteda pelo pintor Oscar Pereira da Silvardquo Cfr CARMO Socircnia do COUTO Eliane F B A Op Cit p 73 um terceiro propunha ao aluno a seguinte atividade ldquoobserve cuidadosamente as gravuras de Debret que aparecem no texto Descreva cada uma delas e compare as cenas nelas retratadas com as cenas de nossas ruas de hoje Haacute diferenccedila Em que sentidordquo Cfr GARCIA Leocircnidas F Estudos de histoacuteria sociedades contemporacircneas 2 ed rev Goiacircnia Editora da UFG 1996 Manual do Professor p 111 Todas as informaccedilotildees foram retiradas de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p81 88 e 137

79Conforme bem mostrado por Elias Saliba Cfr

SALIBA Elias Experiecircncias e representaccedilotildees sociais reflexotildees sobre o uso e o consumo das imagens Anais do II Encontro Perspectivas do Ensino de Histoacuteria Satildeo Paulo FEUSP 1996 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p119

80Produzida pela Secretaria de Ensino agrave

Distacircncia do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo em parceria com a TV Escola e a Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco com a companhia teatral Matildeo Molenga Parte 1 disponiacutevel em youtubecomwatchv=Z60eHBJ1xjY 18082 visualizaccedilotildees e 15 comentaacuterios parte 2 disponiacutevel em youtubecomwatchv=2QLkP2NDhMg 30100 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios (parte desse episoacutedio tambeacutem disponiacutevel em youtubecomwatchv=bAPUjP7l-lI 18398 visualizaccedilotildees e 16 comentaacuterios acesso em 13022014

81Como Clemente Pereira Gonccedilalves Ledo Cipriano

Barata Paes de Andrade e frei Caneca O fato de se tratar de uma produccedilatildeo pernambucana contribui para tanto

82Semelhante observaccedilatildeo pode ser feita a respeito

dos doze curtos episoacutedios da seacuterie D Joatildeo no Brasil inspirada em uma narrativa em quadrinhos da chegada da Corte ao Brasil seacuterie de animaccedilatildeo produzida pelo Canal Futura baseada no livro de histoacuteria em quadrinhos D Joatildeo Carioca a corte portuguesa chega ao Brasil (1808 - 1821) escrito pela historiadora Lilia Schwarcz e pelo desenhista Spacca (Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007) Novamente tem-se um material convincente afinado em muitos sentidos com um conhecimento acadecircmico mas que ao recorrer agrave saacutetira tambeacutem evoca estereoacutetipos convencionais como por exemplo os mesmos acima mencionados em referecircncia a priacutencipe e princesa Poder-se-ia atribuir tal convencionalismo dentre outros fatores ao de que a primazia da linguagem visual aqui opera duplamente isto eacute com os quadrinhos e tambeacutem com o programa televisivo criado a partir deles amplificando assim os efeitos decorrentes da saturaccedilatildeo visual da sociedade que daacute origem e significado a esse material Para todos os efeitos a imposiccedilatildeo de tais convenccedilotildees eacute forte ateacute mesmo conforme jaacute visto em materiais menos visuais que este Episoacutedio 01 youtubecomwatchv= 9f5RB1zcD5Eamplist=PLyP1ks9vaqhj2y6MmckU DyuXtWmHgPLe5ampindex=1 331 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio episoacutedio 02 youtubecomwatchv= w-BLqvhYPGkamplist=PL5837763F26AB1B87

oferecidas pelos proacuteprios livros) mas de uma histoacuteria imoacutevel a ser captada de modo instantacircneo uma histoacuteria verdadeira Aleacutem do mais confundem-se os diferentes contextos motivaccedilotildees e condiccedilotildees de produccedilatildeo de tais imagens o que equivale agrave oferta de uma confusatildeo temporal que impossibi-lita a compreensatildeo dessa histoacuteria76

As uacutenicas exceccedilotildees satildeo os ceacutelebres quadros de Moreaux e de Pe-dro Ameacuterico Todos os livros didaacuteticos aqui considerados se esforccedilam por submetecirc-los a uma criacutetica muitas vezes comparativa considerando forma conteuacutedo e contexto mesmo assim eacute possiacutevel encontrar afirmaccedilotildees como a de que Ameacuterico teria tido ldquoo intuito de fazer a representaccedilatildeo desse famoso acontecimento da maneira mais fiel possiacutevelrdquo e que ldquomuitos dos elementos representados pelo pintor satildeo sabidamente falsosrdquo77 Provavel-mente satildeo resquiacutecios de um momento anterior no qual os livros didaacuteticos mostravam-se muito menos cuidadosos ateacute mesmo na utilizaccedilatildeo do quadro de Ameacuterico78 mas tambeacutem marcas atuais de uma sociedade de haacutebitos fortemente visuais cuja saturaccedilatildeo de imagens tende a resultar em posturas pouco criacuteticas em relaccedilatildeo ao que se vecirc bem como em indistinccedilatildeo tempo-ral das mesmas79 Haacute que se lembrar por fim e novamente que os textos desses livros satildeo cheios de descontinuidades como se cada pedaccedilo de cada paacutegina tivesse autonomia prescindindo de certo modo da leitura dos demais Guardaratildeo tais constataccedilotildees alguma relaccedilatildeo com as dificuldades apresentadas pelos entrevistados na sondagem de opiniatildeo de organizar visotildees da Histoacuteria da Independecircncia segundo marcos cronoloacutegicos bem como de distinguir diferenccedilas entre intervalos temporais Eacute bem possiacutevel sobretudo porque ela seraacute endossada pela observaccedilatildeo de outras fontes

5 - A Independecircncia na internet e na tevecircExiste farto e rico material audiovisual disponiacutevel na internet com referecircncias agrave Independecircncia do Brasil e que a exemplo dos livros didaacuteticos represen-tam a convergecircncia de esforccedilos profissionais muacuteltiplos (mais os programas de tevecirc do que os viacutedeos independentes) como pesquisadores roteiristas apresentadores repoacuterteres cenoacutegrafos teacutecnicos variados etc As fontes aqui delimitadas perfazem 107 viacutedeos acessiacuteveis no YouTube e que natildeo obstante sua ampliacutessima diversidade convergem em muitos significados

Observe-se o caso de viacutedeos educativos documentaacuterios e programas de televisatildeo com entrevistas e debates que em comum apresentam objetivos formativos e esforccedilos verdadeiros de incorporaccedilatildeo de conteuacutedos acadecircmicos traduzidos em linguagens didaacuteticas Um caso exemplar eacute a seacuterie 500 anos o Brasil - Impeacuterio na TV que conta uma histoacuteria do Brasil da chegada da Corte ao periacuteodo das regecircncias em formato de telejornal com trama romanceada e teatro de bonecos80 Aqui vecirc-se uma Histoacuteria processual com informa-ccedilotildees corretas e amparadas em datas deslocamentos frequentes dos eixos espaciais de observaccedilatildeo (regional internacional) com menccedilatildeo a persona-gens que extrapolam o tradicional ciacuterculo da Corte portuguesa81 e ecircnfase no caraacuteter violento e conflitivo da formaccedilatildeo do Brasil no seacuteculo XIX Mesmo um material histoacuterico-pedagoacutegico desse quilate evoca por exemplo a falta de atributos esteacuteticos de Carlota Joaquina ou a pusilanimidade de seu marido a revelarem mais uma vez o mercadologicamente eficiente componente bio-graacutefico-anedoacutetico no tratamento da Independecircncia advindo de sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria mais ampla82

Em outros casos o fato de programas de televisatildeo buscarem o auxiacutelio de especialistas na Independecircncia revela uma convenccedilatildeo formal como nos

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16566 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios episoacutedio 03 youtubecomwatchv=QvWSE-sF-w4amplist =PL5837763F26AB1B87 18406 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios episoacutedio 04 youtubecomwatchv= 2N5wBvpgyXEamplist=PL5837763F26AB1B87 12808 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 05 youtubecomwatchv=VaHrSAFBf1Uamplist =PL5837763F26AB1B87 14615 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 06 youtubecomwatchv= 8RrCMbOZTsAamplist=PL5837763F26AB1B87 12649 visualizaccedilotildees 10 comentaacuterios episoacutedio 07 youtubecomwatchv=I4cgWo_GHaQ 601 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 08 youtubecomwatchv=rI71YNrLo7o 12299 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 09 youtubecomwatchv=huv2ngnqUd4 367 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios episoacutedio 10 youtubecomwatchv=F2MaLs_kj-w 10842 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios episoacutedio 11 youtubecomwatchv=8zK3D01dXc0 9388 visualizaccedilotildees 05 comentaacuterios episoacutedio 12 youtubecomwatchv=R76BHD--vB8amplist=PL5837763F26AB1B87 12108 visualizaccedilotildees 9 comentaacuterios acessos em 03042014

83NAPOLITANO Marcos A Histoacuteria depois do

papel In Carla Pinsky (org) Fontes Histoacutericas Satildeo Paulo Contexto 2005 p250-252 Napolitano afirma com base em Umberto Eco que a televisatildeo introduziu uma mudanccedila de ritmo de vida familiar e cotidiana bem como o que se pode chamar de hipertrofia sensorial em detrimento da assimilaccedilatildeo conceitual Destaca ainda que eacute preciso pensar a televisatildeo como uma nova experiecircncia social do tempo histoacuterico na medida em que ela faz coincidir o verdadeiro o imaginaacuterio e o real no ponto indivisiacutevel do presente

84Produzida pela rede de emissoras puacuteblicas

TV Brasil Sobre a Revolta dos Alfaiates parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo 767 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=dj04LJJM8bk 2592 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio Sobre a Batalha do Jenipapo parte 1 youtubecomwatchv=zlgsZcj-V3o 2426 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios acesso em 24032013 parte 2 youtubecomwatchv=rAS3dHAvWPQ 1283 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio Sobre Tiradentes youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 408 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013)

85Marco Morel e Luiacutes Henrique Dias Tavares

86Programa De laacute pra caacute Revolta dos Alfaiates

parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo

87Exceccedilatildeo satildeo as entrevistas realizadas por

Mocircnica Teixeira na UnivespTV que estabelecem comunicaccedilatildeo bastante profiacutecua entre a entrevistadora e os acadecircmicos entrevistados (youtubecomwatchv=syXf3WHQRPM 4450 visualizaccedilotildees 06 comentaacuterios youtubecomwatchv=pZk5pFlboqw 3303 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=5pUDP2KUYCY 4128 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios

livros didaacuteticos e a exemplo destes a intenccedilatildeo de acolher uma multipli-cidade de vozes raramente enseja verdadeira pluralidade de pensamento o que ademais eacute dificultado pela natureza curta sinteacutetica e acelerada dos materiais televisivos Nessas situaccedilotildees constata-se que o historiador fala uma coisa mas o entrevistador e o produtor continuam a ldquoescutarrdquo outra o que muitas vezes reforccedila a percepccedilatildeo de descontinuidade narrativa an-teriormente tambeacutem diagnosticada nos livros didaacuteticos e que na televisatildeo adquire contornos de regra83 Os episoacutedios da seacuterie De laacute para caacute educati-vos didaacuteticos aacutevidos por com conhecimentos acadecircmicos e produzidos por uma rede puacuteblica de televisatildeo sem fins lucrativos apresentam interessante exemplo84 No programa dedicado aos acontecimentos de 1798 na Bahia dois historiadores profissionais85 esclarecem que os revoltosos ldquobahien-sesrdquo almejavam a independecircncia apenas da capitania da Bahia o que tem enormes implicaccedilotildees a destituiacuterem tais acontecimentos de qualquer atribu-to supostamente preparatoacuterio da Independecircncia do Brasil (situaccedilatildeo muito semelhante conforme vimos agrave da Inconfidecircncia Mineira) natildeo obstante na abertura do programa seu apresentador declara

A luta pela independecircncia do Brasil foi escrita nas paacuteginas memoraacuteveis da nossa histoacuteria com o sangue de um punhado de brasileiros O mais celebrado foi Tiradentes Mas sete anos depois do martiacuterio de Tiradentes quatro brasileiros pretos pobres pelos mesmos ideais foram enforcados e sentenciados em Salvador86

Em outros momentos o apresentador apesar de ouvir de forma soliacutecita e atenta ao que o entrevistado tem a dizer acaba por negar com sua proacutepria fala parte do conteuacutedo receacutem-ouvido mas sem demonstrar ser essa atitude premeditada ou consciente Afinal eacute difiacutecil desvencilhar-se daquilo que jaacute se ldquosaberdquo daquilo que adveacutem de um ambiente que o tempo todo nos ldquoensinardquo Histoacuteria sem necessariamente disso nos darmos conta87

A incapacidade de assimilaccedilatildeo reciacuteproca de ideias acerca da histoacute-ria entre agentes sociais diversos pode revelar-se de muitos modos Um dos programas da seacuterie Caminhos da Reportagem intitulado Caminhos da Independecircncia o grito nas ruas produzido com as mesmas caracteriacutesticas do anterior aborda a Independecircncia focada em seus panfletos poliacuteticos a partir da pesquisa recente de trecircs historiadores profissionais88 No entan-to e a despeito natildeo soacute de dar ampla voz a eles mas tambeacutem de abordar conteuacutedos didaticamente inovadores a equipe de entrevista que foi agraves ruas natildeo estabeleceu qualquer mediaccedilatildeo entre histoacuterias acadecircmicas e natildeo acadecircmicas pressupondo que todas as pessoas ocupam uma mesma posiccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria Por isso perguntas incompreensiacuteveis89 resultam apenas em situaccedilotildees vexatoacuterias impeditivas da construccedilatildeo de conhecimento sobre o tema

A abordagem de pessoas nas ruas recurso frequentemente utiliza-do por programas televisivos revela dados importantes acerca de como os brasileiros veem a Independecircncia muitas vezes mais por aquilo que eacute perguntado do que por aquilo que eacute respondido90 O programa + Estilo de 07 de setembro de 2011 produzido pela TV Campo Grande com conteuacutedo de variedades destinado a telespectadores de meio de tarde foi agraves ruas (provavelmente de Campo Grande Mato Grosso do Sul) perguntar se as pessoas saberiam dizer o que se comemorava naquele dia Primeiro res-ponde uma jovem com um bebecirc no colo

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youtubecomwatchv=0ZVgCwkt1ms 1384 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1016 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1227 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=ANSHAFLau04 1175 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios) Acessos em 21042014

88Joseacute Murilo de Carvalho Luacutecia Pereira das Neves

e Marcello Basile

89A apresentadora ldquoVocecircs sabem o que significa

corcundardquo Um professor de coleacutegio ldquoDeve ser alguma coisa que estaacute surgindo aiacute no mundo um pouco mais ciberneacutetico porque eu nem na faculdade ouvi falar dos corcundasrdquo Marcos Tomazzeti produtor multimiacutedia ldquoNa minha cabeccedila vem algo de monarquia de rei algo meio poliacuteticordquo Simone Granda bancaacuteria ldquoDicionaacuterio de corcundice Natildeo seirdquo Marilu Guimaratildees dona de casa ldquoPuxa tem tanta coisa importante pra ter dicionaacuterio vai ter justo do corcundistardquo Caminhos da Independecircncia youtubecomwatchv=37XH5UEpjlI acesso em 24032013

90Em perspectiva oposta mas complementar agrave da

sondagem de opiniatildeo aqui utilizada

91E que portanto muito provavelmente ainda natildeo

tinha tido contato formal (escolar) com o tema

92O programa prossegue entatildeo com uma entrevista

com o professor Ian Rari que trata de uma Histoacuteria da Independecircncia processual natildeo centrada em uma uacutenica data ou fato criacutetica etc Mais um momento onde as vaacuterias vozes contempladas pelo programa natildeo dialogam entre si (youtubecomwatchv=xv1LOlwUfFQ 289 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio) Outro exemplo significativo eacute dado pelo programa Conexatildeo Jovem exibido em 06 de setembro de 2012 no qual dois entrevistados ndash Prof Bira professor de Histoacuteria e Marcos Eduardo socioacutelogo ndash utilizam com competecircncia o pouco tempo a eles destinado discorrendo de modo criacutetico sobre a Independecircncia e em linguagem adequada ao puacuteblico jovem ao qual o programa se destina (produccedilatildeo da TV Novo Tempo adventista parte 1 youtubecomwatchv=1IvYOYtju9sgt 74 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=Ofv7QWOJpHo 47 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013) Logo o programa traz uma abordagem feita na rua na qual a entrevistadora pergunta a uma jovem ldquoQuem falou lsquoindependecircncia ou mortersquo agraves margens do riacho do Ipirangardquo Diante da correta resposta a entrevistadora tenta induzir um erro ldquo15 de novembro ou 7 de setembrordquo Aliaacutes a expectativa do programa parece revelada pela entrevistadora logo na primeira pergunta feita a um dos convidados ldquoseraacute que os jovens se interessam pela histoacuteria de seu paiacutesrdquo E embora o material recolhido pelo proacuteprio programa permita resposta afirmativa manteacutem-se a postura negativa preacute-concebida

93Daiacute a relevacircncia de um viacutedeo com fotografias e

um aacuteudio (youtubecomwatchv=UdQ_aAAl3DE)

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoE isso em que ano que foi que aconteceurdquoResposta ldquo1822rdquo

Em seguida outro jovem que provavelmente jaacute tinha respondido a outra pergunta

Pergunta ldquoQuem foi o imperador vocecirc lembrardquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoAcertou Canta pra gente um trecho do hino da independecircnciardquoResposta ldquoAgora natildeo lembrordquo

Agora o programa aborda uma menina de cerca de dez anos clara-mente intimada91

Pergunta Por que eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoNatildeo seirdquoPergunta ldquoNatildeo lembra Vou dar uma dica um fato histoacuterico muito importante para o BrasilrdquoResposta (negativa com a cabeccedila)

Em quarto lugar outra jovem que procura se afastar da cacircmera

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta (ainda tentando se esquivar sorrindo) ldquoNatildeordquoPergunta ldquoNatildeo saberdquoResposta ldquoAh A Independecircncia Eu natildeo prestei atenccedilatildeordquoPergunta Que ano aconteceu a Independecircncia vocecirc lembrardquoResposta ldquoNatildeordquoPergunta ldquoE quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoTambeacutem natildeo lembrordquo

Por fim a entrevista com um senhor de meia-idade comeccedila jaacute com uma resposta

Resposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoQue ano aconteceu issordquoResposta ldquo1888rdquoPergunta ldquo1822 Quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoCerto E onde foi que aconteceu tudo issordquoResposta ldquoSatildeo PaulordquoPergunta ldquoOK [breve silecircncio] Canta um trechinho para noacutes do hino da IndependecircnciardquoResposta ldquoJaacute podeis da paacutetria matildeerdquo [sic -prossegue cantando corretamente]

Em seguida o programa corta para uma sala de aula onde a despeito dos ldquoacertosrdquo obtidos nas ruas a entrevistadora afirma

Diante da dificuldade que noacutes encontramos no centro da cidade para saber informaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil eu vim parar na sala de aula Vai ser aqui que a gente vai descobrir a histoacuteria do paiacutes92

A ideia a priori de que o brasileiro natildeo conhece e natildeo se interessa pela histoacuteria subsidia este e muitos outros programas Aqui o dado mais relevante parece estar precisamente nessa arraigada crenccedila no desinteres-

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da entatildeo prefeita de Ribeiratildeo Preto (Satildeo Paulo) Darcy Vera que afirma durante um desfile de 7 de Setembro dentre vaacuterios desvarios que ldquoTiradentes gritou lsquoIndependecircncia ou mortersquordquo Com 169919 acessos e 149 comentaacuterios (em geral criacuteticos bem humorados e depreciativos) ateacute 20082014 condensa a possibilidade de amplificaccedilatildeo do estigma do natildeo domiacutenio de referecircncias convencionais agrave Independecircncia mas sem fomentar nenhum conhecimento da mesma

94Novamente surge a questatildeo natildeo teratildeo as

renovaccedilotildees curriculares promovidas no ensino de Histoacuteria (no Brasil e alhures) das uacuteltimas deacutecadas exagerado nessa incompatibilidade Teratildeo elas sido capazes de mensurar seus efeitos deleteacuterios diante de sociedades jaacute bastante refrataacuterias a uma histoacuteria cronoloacutegica

95ldquoPouco importa que sua figura tenha sido

mitificada pela propaganda republicana O que importa eacute que ele foi um heroacutei Ele deu sua vida pela paacutetria e pela liberdaderdquo (Programa De laacute pra caacute youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032013) Essa exaltaccedilatildeo da figura de Tiradentes associada agrave Independecircncia conduz o discurso da propaganda eleitoral de um candidato agrave prefeitura de Ouro Preto em 2012 (youtubecomwatchv=eGefgLoRhec 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032014) Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo no dia 09 de setembro de 2013 apoacutes se autocaracterizar como realizador de uma ldquohistoacuteria de carne e ossordquo em contraposiccedilatildeo a produccedilotildees ldquocontaminadas pela anaacutelise marxistardquo que retirariam os personagens da Histoacuteria o jornalista Laurentino Gomes afirma ldquoNo 1822 faccedilo uma comparaccedilatildeo e digo que o uacutenico problema do Joseacute Bonifaacutecio foi nascer no Brasil pois se ele tivesse nascido nos Estados Unidos teria sido maior que o Thomas Jefferson Porque aparentemente ele era mais preparado mais luacutecido que o Thomas Jeffersonrdquo (parte 1 youtubecomwatchv=uGibbLxsZK0 4501 visualizaccedilotildees e 5 comentaacuterios parte 2 youtubecomwatchv=2LQcEcb5kLU 2302 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios acesso em 26032014 Logo voltaremos agrave obra e agraves ideias de L Gomes

96Um exemplo adveacutem do viacutedeo ldquoA verdadeira

independecircncia do Brasilrdquo em que um pastor evangeacutelico em meio a uma cerimocircnia religiosa ldquodesconstroacuteirdquo o quadro de Pedro Ameacuterico acusando-o de pouco verossiacutemil e aponta os desvios morais de D Pedro I de modo a inviabilizaacute-lo como figura histoacuterica digna de memoacuteria (youtubecomwatchv=RsKQr6bgzLA 178 visualizaccedilotildees e 2 comentaacuterios acesso em 24032014) A suposta irrelevacircncia dos personagens envolvidos no processo da independecircncia eacute notaacutevel na fala de um professor de Ensino Meacutedio (youtubecomwatchv=gvWVF9j2KEU 597 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) e de um apresentador de temas religiosos que relativizam a importacircncia do tema ao afirmarem a atual ldquodependecircncia econocircmicardquo do Brasil (youtubecomwatchv=EXyUBY7StF4 383 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Tambeacutem retornaremos a esse tema

sedesconhecimento do brasileiro pela histoacuteria bem como em um de seus efeitos mais contundentes a crenccedila de que eacute possiacutevel reverter tal situaccedilatildeo pela simples mobilizaccedilatildeo formal de datas nomes e eventos Contudo se a Independecircncia se converte em uma catalizadora de referecircncias cronoloacute-gicas ou nominais isso natildeo leva necessariamente a uma historicizaccedilatildeo do tema pelo contraacuterio a mobilizaccedilatildeo de tais referecircncias em termos como os acima mencionados (a data ou o nome por si soacutes) pode resultar no apro-fundamento da tendecircncia agrave confusatildeo temporal jaacute aqui apontada93

Nos meios intelectuais a discussatildeo em torno das formas tempo-rais de vivecircncia coletiva naquilo que se pode chamar ndash recorrendo-se a uma categoria uacutetil ndash de modernidade natildeo eacute nova tampouco estaacute em vias de esgotamento A dificuldade de organizaccedilatildeo do mundo social segundo referecircncias cronoloacutegicas natildeo seraacute em absoluto distintiva de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil embora o contraacuterio deva ser dito em relaccedilatildeo agraves formas assumidas por tais dificuldades (como as noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia) Percebe-se entatildeo o peso do estigma da dificuldade em manejar datas nomes e fatos suposta prova de um desin-teresseignoracircncia que poderia ser combatido com um retorno a velhas formas de se fazer Histoacuteria e nas quais tais elementos eram considera-dos com a essecircncia da compreensatildeo histoacuterica Natildeo parece que as coisas devam propriamente se passar segundo essa representaccedilatildeo embora um dos confrontos existentes na cultura de histoacuteria no Brasil seja sem duacutevida a polarizaccedilatildeo entre a valorizaccedilatildeo da Independecircncia (= de suas datas nomes eventos siacutembolos e supostos valores etc) e a desvalorizaccedilatildeo da mesma (=seu caraacuteter elitista e negociador a diminuiccedilatildeo da histoacuteria do Brasil em comparaccedilatildeo com a de outros paiacuteses a comicidade dessa histoacuteria etc) Eacute plausiacutevel conceber que esta segunda posiccedilatildeo encontre um aliado na con-cepccedilatildeo de incompatibilidade entre uma histoacuteria amparada por referecircncias cronoloacutegicas e ao mesmo tempo em processos estruturas e temas trans-versais do gosto inclusive de muitos acadecircmicos e educadores94

Os exemplos de materiais audiovisuais a traduzirem veicularem e fomentarem esse confronto entre valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo da Inde-pendecircncia satildeo muitos Aleacutem dos jaacute tratados ateacute aqui pode-se mencionar viacutedeos contendo propaganda de instituiccedilotildees puacuteblicas civis e militares de partidos poliacuteticos de grupos maccedilocircnicos de igrejas e de empresas variadas bem como produccedilotildees independentes Neles eacute possiacutevel encontrar desde a exaltaccedilatildeo das referecircncias mais convencionais agrave Independecircncia como a seus personagens (incluindo seu suposto maacutertir Tiradentes)95 ateacute a afirma-ccedilatildeo de sua total irrelevacircncia96 isso costuma ocorrer sem muitos matizes obedecendo a uma loacutegica dicotocircmica plasmada em linguagens simples com descontinuidades discursivas e imageacuteticas e num ritmo de exposiccedilatildeo acelerado Em suma tratam da Independecircncia segundo padrotildees parcial-mente compartilhados tambeacutem por outras fontes ateacute aqui analisadas

Todas essas fontes com suas noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia satildeo sintomaacuteticas de estados de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema bem como potenciais formadores de opiniatildeo dos mesmos Sua capacidade de criaccedilatildeo de conhecimento no entanto se mostra muito limi-tada Eacute bem verdade que esta eacute por vocaccedilatildeo uma tarefa confiada a saberes acadecircmicos ndash jaacute que no Brasil a quase totalidade da pesquisa em Histoacuteria estaacute entregue agraves universidades salvo a de interesse corporativo ndash de modo que natildeo seria de esperar inovaccedilatildeo em suportes tatildeo variados e socialmen-te diversificados quanto os ateacute aqui analisados Mas parece haver aiacute certo

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ciacuterculo vicioso a envolver tambeacutem parte da academia Basta observar que a ideia da ldquonatildeo Independecircncia de fatordquo tatildeo em voga entre tantos historiadores durante tanto tempo reverbera com forccedila na sociedade em geral97 e ainda goza de prestiacutegio ateacute mesmo entre alguns acadecircmicos que bebem-na da sociedade e apoacutes modificaacute-la parcialmente devolvem-na aos espaccedilos de di-vulgaccedilatildeo98 Essa versatildeo da Histoacuteria eacute capaz de transpor fronteiras temporais de atualizar-se em diferentes contextos e ateacute mesmo de superar abissais diferenccedilas poliacuteticas ela estaacute representada por exemplo e de modo quase idecircntico na propaganda poliacutetica de um partido trotskista e na pregaccedilatildeo nacionalista-direitista de um polecircmico professor de histoacuteria99

Por fim tome-se o caso de trecircs produccedilotildees da Rede Globo de Televi-satildeo voltadas ao puacuteblico em geral com consideraacuteveis aportes financeiros e complexa produccedilatildeo a seacuterie documental A Corte no Brasil para exibiccedilatildeo em tevecirc fechada100 e as seacuteries humoriacutesticas O Quinto dos Infernos101 e Eacute muita Histoacuteria Dia de Fuacuteria102 veiculadas amplamente em tevecirc aberta No pri-meiro caso siacutetios histoacutericos visitados pelas apresentadoras uma narrativa soacutebria e informativa de fatos e processos grande quantidade de entrevistas com historiadores ecircnfase em diferentes espaccedilos regionais e internacio-nais e tratamento do tema em muacuteltiplas dimensotildees (poliacutetica econocircmica cultural) No segundo caso uma narrativa romanceada teatral e cocircmica fortemente despolitizada e livremente baseada em trecircs livros de igual teor (um deles publicado haacute quase um seacuteculo)103 praticamente centrada no Rio de Janeiro (um pouco tambeacutem em Portugal muito menos alhures) e nos membros da famiacutelia real portuguesa cuja vida pessoal eacute estruturada em torno de seus haacutebitos excecircntricos (principalmente os sexuais) e vez ou outra de passageiros dramas pessoais104

Finalmente no terceiro caso uma encenaccedilatildeo tambeacutem cocircmica pro-tagonizada por um escritor-autor-ator-palhaccedilo com grande liberdade de criaccedilatildeo mas amparada em informaccedilotildees convenccedilotildees e mitos a oferecer uma versatildeo do Sete de Setembro segundo o estado psico-fisioloacutegico de D Pedro

Eis um exemplo de uma das modalidades assumidas pela disputa em torno de uma Independecircncia valorizada e outra depreciada Pareceria justificaacutevel opor a tal diagnoacutestico a constataccedilatildeo de se tratarem de obras televisivas de distinto teor o que desobriga a segunda e a terceira de qual-quer compromisso com a verdade No entanto interessam-nos mais seus significados e efeitos do que intenccedilotildees Note-se que a primeira documen-tal eacute de circulaccedilatildeo mais restrita que a segunda e a terceira voltadas para grande puacuteblico por isso seus efeitos nesse jogo de criaccedilatildeorecriaccedilatildeo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da Independecircncia satildeo natildeo apenas assimeacutetricos mas tambeacutem concorrentes105 Os esforccedilos de um pro-grama por posicionar o espectador diante de uma histoacuteria processual de encadeamentos temporais e de grupos e conflitos sociais satildeo naturalmente obstados pelos dos outros dois a oferecer uma histoacuteria repleta de anacro-nismos anedoacutetica e biograacutefica em perfeita sintonia com demandas mais amplas de uma sociedade ndash e de alguns de seus componentes mercadoloacutegi-cos jaacute aqui mencionados ndash na qual a vida privada eacute mais valorizada do que a puacuteblica106 Nesse confronto embora as trecircs convivam na mesma cultura de histoacuteria uma Independecircncia tende a prevalecer sobre a outra107

6 ndash A Independecircncia no cinemaEm relaccedilatildeo a livros didaacuteticos programas de televisatildeo e outros materiais audiovisuais as fontes cinematograacuteficas aqui consideradas naturalmente

97Exemplo encontra-se no viacutedeo ldquoAway Nilzer ndash

Independecircncia do Brasilrdquo com grande nuacutemero de visualizaccedilotildees (130677) e de comentaacuterios (1016) que minimiza e ridiculariza natildeo apenas o processo da independecircncia como quaisquer fatos histoacutericos brasileiros de maneira geral (youtubecomwatchv=Vd_kloNeQV0) O Brasil atual como viacutetima de uma exploraccedilatildeo econocircmica mais intensa do que nos tempos coloniais e portanto natildeo-independente aparece na fala de outro professor (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2806 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) e nos comentaacuterios de um boneco marionete de um programa infantil (youtubecomwatchv=9mh3Tu6c4_w 173 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032014)

98Exemplo desse processo de ldquodevoluccedilatildeordquo pode ser

comprovado no viacutedeo ldquoIndependecircncia ou morterdquo (youtubecomwatchv=QUvnz1no1m8 934 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Outros dois exemplos pertinentes satildeo a insistecircncia nas ideias de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil e que a Independecircncia foi uma luta entre brasileiros e portugueses

99Em entrevista a uma rede local de televisatildeo

ouvimos do professor de histoacuteria do Ensino Meacutedio Wander Pugliesi ldquoSe noacutes formos trabalhar com sinceridade o Brasil ainda natildeo eacute independente Na verdade somos muito mais explorados do que quando eacuteramos colocircnia de Portugalrdquo (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2815 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) A mesma relativizaccedilatildeo do processo de independecircncia aparece na fala do candidato agrave presidecircncia em 2010 pelo PSTU Zeacute Maria ldquohoje infelizmente natildeo podemos comemorar uma verdadeira independecircncia do paiacutes Eacute preciso dizer a verdade as multinacionais controlam a economia brasileira As decisotildees fundamentais satildeo tomadas por elas fora do paiacutesrdquo (youtubecomwatchv=ht9Yt0PlGnU 1803 visualizaccedilotildees um comentaacuterio) Acessos em 26032013

100Direccedilatildeo de Carlos Henrique Schroder 2008

Produccedilatildeo de 16 episoacutedios de cerca de 20 minutos cada para o canal da TV fechada GloboNews A seacuterie foi comercializada em DVD e pode ser vista tambeacutem no canal Globosat no Youtube (youtubecomwatchfeature= player_detailpageampv= OUX-zSyaMIc e viacutedeos relacionados Acesso em 27032014)

101Direccedilatildeo de Wolf Maya e Alexandre Avancini e

criaccedilatildeo de Carlos Lombardi 2002 Produccedilatildeo de 48 episoacutedios com cerca de 40 minutos cada para o canal da TV aberta Rede Globo de Televisatildeo A minisseacuterie tambeacutem foi comercializada em DVD e vem sendo (desde janeiro de 2014) reprisada no Canal Viva (rede fechada de televisatildeo filiada Globosat) uma reprise anterior ocorreu de agosto a novembro de 2011 sempre por volta das 23h

102Direccedilatildeo de Joatildeo Carrascosa e Pedro Bial 2007

Produccedilatildeo de 9 capiacutetulos de cerca de 15 minutos

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apresentam especificidades Tendem a diversificar (eventualmente ampliar) o rol de profissionais envolvidos em sua produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo bem como a tratar conteuacutedos em um tempo mais lento criando uma sensaccedilatildeo de homogeneidade de significados reforccedilada pela aderecircncia de tais conteuacutedos a uma trama central Tal homogeneidade por seu turno eacute relativizada por uma liberdade de criaccedilatildeo que dificilmente encontra paralelo em outros dos materiais aqui considerados ndash com a possiacutevel exceccedilatildeo da minisseacuterie O Quinto dos Infernos No entanto quando a comparaccedilatildeo eacute feita com os li-vros didaacuteticos os conteuacutedos relativos agrave Independecircncia no cinema tendem a ser menos numerosos mais superficiais e efecircmeros justamente por serem menos assumidamente informativos do que os dos livros embora isso possa encontrar alguma compensaccedilatildeo em uma linguagem visual de forte apelo emotivo Para todos os efeitos como aponta um estudioso da mateacuteria os filmes de temaacutetica histoacuterica carregam sempre certa ambiguidade ocupam uma espeacutecie de ldquoentrelugarrdquo com forccedila para criar ldquoverdadesrdquo socialmente aceitas108 Nos cinco filmes aqui considerados109 as ldquoverdadesrdquo sobre a Independecircncia tendem a replicar linhas de forccedila jaacute conhecidas mesclando temporalidades correspondentes tanto aos momentos em que foram pro-duzidos quanto aos momentos posteriores em que foram sendo exibidos110

Independecircncia ou Morte produccedilatildeo a serviccedilo das comemoraccedilotildees oficiais do sesquicentenaacuterio da Independecircncia levadas a cabo pelo go-verno ditatorial brasileiro em 1972 mostra uma narrativa de forte teor didaacutetico-pedagoacutegico sem grandes pretensotildees artiacutesticas expliacutecitas111 com diaacutelogos e situaccedilotildees muitas vezes retirados de obras sobre a Independecircncia e tratados de forma literal Sua finalidade eacute clara ldquoensinarrdquo aos especta-dores uma histoacuteria e uma memoacuteria coletivas homogecircneas aplainadas de pluralidades ou de desavenccedilas Uma histoacuteria supostamente indiscutiacutevel porque verdadeira posta a serviccedilo dos tambeacutem supostos interesses mais elevados da naccedilatildeo brasileira (por isso nela a vida privada dos persona-gens eacute toda submetida agrave sua funccedilatildeo poliacutetica inclusive no caso da relaccedilatildeo afetiva entre um D Pedro de boa aparecircncia querido do povo e mulherengo e uma ambiciosa romacircntica e sensiacutevel Domitila112) Uma espeacutecie de cartilha oficial da Independecircncia em imagens na qual se faz presente ateacute mesmo uma recomposiccedilatildeo cecircnica do quadro de Pedro Ameacuterico

Eacute interessante observar como Os Inconfidentes produzido no mesmo ano de 1972 mesmo sendo um filme amparado em abundantes liberdades e experimentos esteacuteticos cheio de ambiguidades propositais e contra-pondo-se ao oficialismo histoacuterico tatildeo em voga agrave eacutepoca por meio de uma metaacutefora na qual os contestadores agrave ditadura brasileira se convertem em sediciosos das Minas Gerais do seacuteculo XVIII natildeo se configura como mate-rial singular e discrepante de Independecircncia ou Morte em pelo menos trecircs sentidos primeiro porque em vaacuterios momentos associa a Inconfidecircncia Mi-neira com a Independecircncia do Brasil a exemplo do que Independecircncia ou Morte prega jaacute em seu primeiro texto didaacutetico113 Segundo porque tambeacutem oficializa eventos convencionalmente tidos por fundacionais da histoacuteria do Brasil (soacute que natildeo os de 1808-1822 mas os de 1788-1789) Terceiro reforccedila a prevalecircncia de indiviacuteduos sobre coletividades da imagem de um heroacutei central da trama e de uma oposiccedilatildeo de interesses maniqueiacutesta que certamente poderia se aplicar com mais rigor ao contexto em que foi feito o filme do que agravequele ao qual formalmente se refere Assim para todos os efeitos substratos de uma concepccedilatildeo de histoacuteria satildeo em ambos convergentes Em um ambiente social multifacetado em termos de no-

cada dentro do programa dominical Fantaacutestico da Rede Globo de Televisatildeo A seacuterie foi baseada no livro Brasil uma Histoacuteria de Eduardo Bueno jornalista que tambeacutem atua na seacuterie (youtubecomwatchv=3LzGKt9Pd0M acesso em 27032014)

103SETUacuteBAL Paulo As Maluquices do Imperador

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1927 CALADO Ivanir A Imperatriz no Fim do Mundo memoacuterias duacutebias de Ameacutelia de Leichtenberg Rio de Janeiro Rio Fundo Editora 1992 e TORERO Joseacute Roberto Galantes memoacuterias e admiraacuteveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes o Chalaccedila Satildeo Paulo Companhia das Letras 1994

104A trama e a narrativa do Quinto dos Infernos

recusam explicitamente a inserccedilatildeo de quaisquer componentes que natildeo os da ordem privada de seus convencionais personagens assim questotildees poliacuteticas satildeo sempre menores do que o apetite sexual de Carlota Joaquina as perversotildees de D Miguel ou a fogosidade de Domitila a economia soacute surge em pontuais pretextos cocircmicos enquanto a escravidatildeo eacute referida exclusivamente por meio de alegres e libidinosas criadas (negras) permanentemente dispostas a servirem aos desejos do heroacutei da histoacuteria D Pedro

105A anaacutelise poderia se completar com a minisseacuterie

A Marquesa de Santos dirigida por Ary Coslov e exibida pela extinta Rede Manchete de televisatildeo em 1984 agrave qual infelizmente natildeo se obteve acesso satisfatoacuterio

106Tal predileccedilatildeo pode ser entendida como mais

um fator caracteriacutestico de um momento em que a articulaccedilatildeo entre aquilo que Guy Debord chamaria de ldquosociedade do espetaacuteculordquo e Adorno e Horkheimer (dentre muitos outros) de ldquoinduacutestria culturalrdquo torna sintomaacutetico a saliecircncia do indiviacuteduo e o esvaziamento da esfera puacuteblica

107A comprovaccedilatildeo do encontro concorrente entre

dois caminhos vem do depoimento de alguns dos proacuteprios envolvidos com a produccedilatildeo do Quinto dos Infernos como o diretor Carlos Lombardi que a ele se refere como ldquoum painel dos personagens importantes do periacuteodordquo Para o produtor Wolf Maia seu objetivo foi ldquorecontar com humor uma velha histoacuteriardquo O ator Humberto Martins viu a seacuterie ldquocontar um pedaccedilo da nossa histoacuteria da histoacuteria do Brasil do nosso povo das nossas raiacutezes pateacutetica e engraccedilada tal como ela se mostra dentro desse produto poreacutem claro mesclada com uma boa dose de humorrdquo enquanto o protagonista Marcos Pasquim afirmou que ldquo[ao fazecirc-la] aprendi muita coisa que natildeo aprendi na escola eu vim aprender agora fazendo a pesquisa para fazer esse personagemrdquo Finalmente para a tambeacutem atriz Bruna Lombardi ldquoO lsquoQuintorsquo contou assim a histoacuteria que a Histoacuteria natildeo conta sabe como eacute as fraquezas da histoacuteriardquo Em ldquoDia de Fuacuteriardquo Pedro Bial e Eduardo Bueno reforccedilam seu discurso satiacuterico por meio de um verniz de verdade trazido pela citaccedilatildeo de documentos oficiais como o relato do Padre Belchior sobre o grito do Ipiranga Aleacutem disso seu discurso eacute elaborado sob o nome de tese logo bem se vecirc como seus propaladores (BialBueno) manipulam siacutembolos

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ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

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Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

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123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

30Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

31Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

32Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

33Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

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muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

36Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 2: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

6Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica (PUC-SP) e-mail marinapupogmailcom Luiacutes Otaacutevio Vieira eacute graduando em Histoacuteria pela Universidade de Satildeo Paulo (FFLCHUSP) e bolsista da Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa do Estado de Satildeo Paulo (FAPESP) e-mail luisotaviovieirauspbr

3DEVOTO Fernando Introduccioacuten In _________

(Dir) Historiadores ensayistas y gran puacuteblico la historiografiacutea argentina 1990-2010 Buenos Aires Biblos 2010 p 10 (evocando uma ideia de Krzysztof Pomian)

4Reconhecemos que tal proposta estaria

melhor enquadrada com a devida apreciaccedilatildeo de outras certamente muito proacuteximas a ela relativas a ldquocultura histoacutericardquo ldquocultura poliacuteticardquo e ldquoenquadramentos de memoacuteriardquo mas que aqui natildeo puderam ser consideradas a tempo LE GOFF Jacques Histoacuteria Histoacuteria e memoacuteria Campinas EDUNICAMP 1990 p47-48 GOMES Acircngela de Castro Cultura Poliacutetica e cultura histoacuterica no Estado Novo In ABREU Martha SOIHET Rachel GONTIJO Rebeca (Org) Cultura Poliacutetica e leituras do passado historiografia e ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2007 p43-63 e GOMES Acircngela de Castro Historia historiografiacutea y cultura poliacutetica en Brasil algunas reflexiones Ayer v 2 2008 p115-139

5MATOS Seacutergio Campos Consciecircncia histoacuterica e

nacionalismo Portugal seacuteculos XIX e XX Lisboa Horizonte 2008

6Para o quecirc vale a distinccedilatildeo entre operaccedilotildees

de memoacuteria individual e de memoacuteria coletiva estabelecidas por Paul Ricoeur RICOEUR Paul A memoacuteria a histoacuteria o esquecimento Campinas Editora Unicamp 2007 parte 1

1 ndash Apresentaccedilatildeo cultura de histoacuteriaA escrita da Histoacuteria natildeo eacute e nunca foi monopoacutelio dos historiadores3 De muitas maneiras ela sempre foi compartilhada entre profissionais da mateacuteria e uma grande variedade de agentes sociais de formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo igualmen-te variados a imporem um processo permanente de disputa e negociaccedilatildeo Atualmente poder-se-ia falar em educadores escritores cineastas artistas plaacutesticos jornalistas juristas poliacuteticos profissionais publicitaacuterios e teoacutelogos aleacutem de outras pessoas em geral a representarem reproduzirem e eventual-mente criarem conhecimentos histoacutericos em uma interaccedilatildeo mais ou menos harmocircnica mais ou menos conflitiva ndash mas sempre dinacircmica e contraditoacute-ria ndash com historiadores acadecircmicos e demais cientistas sociais Essa intera-ccedilatildeo eacute fenocircmeno relevante No entanto e a despeito de uma clara tendecircncia mundial de proliferaccedilatildeo de estudos acerca do papel puacuteblico desempenhado pelos historiadores assim como de um crescente envolvimento dos mesmos em espaccedilos a eles oferecidos pela sociedade ainda parece muito escassa a reflexatildeo em torno de alguns pressupostos dessa relaccedilatildeo entre historiadores e seu meio social especialmente agrave luz da constataccedilatildeo de que os saberes formulados por tais profissionais estatildeo submetidos natildeo apenas ao seu meio social em geral mas tambeacutem a um conjunto de saberes especiacuteficos presentes veiculados e reproduzidos por esse meio

Tal observaccedilatildeo aparentemente oacutebvia ganha pertinecircncia na medida em que seu foco se ajusta mais precisamente em dois problemas conver-gentes 1) o da possibilidade de se extrair dessa relaccedilatildeo entre profissionais e natildeo profissionais da Histoacuteria uma caracterizaccedilatildeo mais ampla da sociedade onde ela ocorre 2) o do ponto de partida do estudo acadecircmicoprofissional de uma mateacuteria especiacutefica como parcialmente determinado pela alocaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo dessa mesma mateacuteria em uma sociedade por accedilatildeo daqueles variados agentes acima mencionados Este artigo enfrenta tais questotildees a partir de uma observaccedilatildeo circunscrita a um uacutenico tema histoacuterico e agrave realida-de brasileira do presente mas considerando que muitas das feiccedilotildees do que aqui se observa natildeo satildeo peculiares ao Brasil tipificando tambeacutem em parte outras realidades Como os brasileiros veem a Independecircncia do Brasil As respostas apresentadas naturalmente limitadas pelo escopo da pesquisa pretendem esboccedilar uma caracterizaccedilatildeo de um aspecto da sociedade bra-sileira da atualidade como os brasileiros se relacionam com sua histoacuteria Em seu esteio e como uma sorte de efeito colateral do objetivo principal tais respostas pretendem tambeacutem retomar a discussatildeo em torno de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores O que resulta entatildeo em um estudo ao mesmo tempo histoacuterico e historiograacutefico

Em linhas gerais esta eacute uma investigaccedilatildeo sobre um fenocircmeno que poderiacuteamos chamar de cultura de histoacuteria Entende-se tal fenocircmeno como um conjunto de atitudes e valores que se expressam em noccedilotildees concepccedilotildees representaccedilotildees conceptualizaccedilotildees interdiccedilotildees e outras posturas de uma determinada sociedade em relaccedilatildeo a um passado que pode ser considerado como coletivo Uma cultura de histoacuteria portanto natildeo se confunde com consciecircncia histoacuterica antes engloba-a e a expande4 Consciecircncia histoacuteri-ca pode ser definida como aquela que significativo grupo de sujeitos em sociedade tem de compartilharem um passado o que enseja e condiciona formas de se pensar o presente e de projetar futuros coletivos5 a cultura de histoacuteria por outro lado engloba tambeacutem os silecircncios e as recusas des-ses sujeitos em relaccedilatildeo ao passado seja por meio de atitudes deliberadas ou natildeo6 resultantes ou natildeo de vontades coletivas

7Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

O caso brasileiro oferece subsiacutedio interessante a essa diferenciaccedilatildeo de abrangecircncia entre consciecircncia histoacuterica e cultura de histoacuteria Natildeo eacute assiduamente frequente em nossa sociedade uma autoimagem dos brasi-leiros como ldquopovo sem memoacuteriardquo em um jogo de identidades e alteridades que ao mesmo tempo em que distingue aqueles indiviacuteduos que suposta-mente valorizam o passado e os saberes em torno dele acaba por incluiacute-los em uma mesma coletividade a qual se acusa de estar enferma da doenccedila do esquecimento e da ignoracircncia7 Para efeitos de caracterizaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil essa autoimagem eacute incapaz de modelar teo-ricamente uma anaacutelise Afinal se houver algo nesses ldquobrasileirosrdquo (quais quantos quando onde como por quecirc) que realmente permita caracte-rizaacute-los como pouco ou nada afeitos ao conhecimento do passado de sua sociedade sua devida compreensatildeo deve ir aleacutem da noccedilatildeo de consciecircncia histoacuterica Como veremos adiante esse eacute um estereoacutetipo (mais um) em tor-no do Brasil e dos brasileiros e que vecirc sua essencializaccedilatildeo de um suposto caraacuteter nacional cair por terra diante da consideraccedilatildeo de que quaisquer atitudes e valores sociais ndash mesmo os negativos ndash em relaccedilatildeo ao passado satildeo fenocircmenos em si e que seria praticamente impossiacutevel nos defrontar-mos com sujeitos que no Brasil ignorassem ou desprezassem o conheci-mento do passado em termos absolutos Todo brasileiro pensa algo sobre a histoacuteria mesmo que natildeo a valorize ou com ela natildeo se importe Mesmo assim os estereoacutetipos nacionais podem ser considerados dados de uma realidade de uma autoimagem dos brasileiros8 Trataacute-los como tal sugere entatildeo a utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de cultura de histoacuteria

Jorn Ruumlsen concebe a expressatildeo cultura histoacuterica em referecircncia a algo distinto as formas pelas quais uma sociedade racionaliza pressupos-tos (tambeacutem eles racionais) advindos do pensamento histoacuterico ou seja uma interaccedilatildeo entre pensamento histoacuterico e coletividades humanas na qual estas se aproveitam em termos praacuteticos do que aquele eacute capaz de sistematizar9 Nas paacuteginas que se seguem em nenhum momento preten-deu-se expropriar a expressatildeo de Ruumlsen tampouco revisar sua proposta analiacutetica (eacute possiacutevel mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diaacutelogo ou ateacute de convergecircncias aqui natildeo devidamente explo-radas10) Ocorre que o pensamento eacute cativo da linguagem e natildeo se dispotildee de melhor expressatildeo a indicar o que aqui se pretende mostrar que uma a ela semelhante cultura de histoacuteria Para efeitos de elucidaccedilatildeo do problema poderiacuteamos transliterar a proposta de Ruumlsen em termos de uma cultura de pensamento histoacuterico e com isso evocar as elaboraccedilotildees de Pierre Nora a ela anteriores em torno de uma cultura historiograacutefica isto eacute a consci-ecircncia coletiva que uma sociedade tem (a francesa talvez a brasileira soacute muito residualmente) natildeo apenas de uma histoacuteria compartilhada mas tam-beacutem dos meios que ela ndasha sociedade -dispotildee para reelaborar tal histoacuteria por dispositivos de memoacuteria11 Nora se interessa pelas condiccedilotildees de reali-zaccedilatildeo coletiva de uma criacutetica da presenccedila da histoacuteria e da memoacuteria que para Rusen natildeo deixaria de indicar um potencial racionalizador advindo do proacuteprio pensamento histoacuterico Tal convergecircncia reforccedila aspectos centrais da cultura de histoacuteria aqui tratada mas natildeo a esgota plenamente sobre-tudo ndash repitamos -no tocante aos seus silecircncios e interdiccedilotildees que tambeacutem devem ser levados em conta

Cultura de histoacuteria aqui natildeo se confunde com costume ao menos tal como este eacute pensado por E P Thompson fenocircmeno advindo da praacutexis e situado na interface desta com a lei portador de expectativas coletivas e

7Nos anos de 1950 Joseacute Honoacuterio Rodrigues

concebia uma nociva crise na sociedade brasileira relativa a um ldquodecliacutenio de consciecircncia histoacutericardquo na qual o passado se confinaria a cultos nostaacutelgicos e diante da qual o historiador ndash ele em particular ndash deveria elaborar estrateacutegias de atuaccedilatildeo RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A pesquisa histoacuterica no Brasil sua evoluccedilatildeo e problemas atuais Rio de Janeiro Imprensa NacionalINL 1952 Citado em FREIXO Andreacute de Lemos Ousadia e redenccedilatildeo o Instituto de Pesquisa Histoacuterica de Joseacute Honoacuterio Rodrigues Histoacuteria da historiografia n11 abril de 2013 p155

8Nas palavras de um historiador dedicado ao

estudo da identidade nacional portuguesa ldquoesse tipo de caracterizaccedilotildees geneacutericas de lugares-comuns sem fundamento ou que constituem generalizaccedilotildees abusivas a partir de fatos pontuais satildeo no entanto importantes porque assinalam diferenccedilas que se julga existirem entre as naccedilotildees Satildeo um testemunho da existecircncia destas pois todos os grupos nacionais possuem estereoacutetipos sobre si proacuteprios e sobre os outros que satildeo inerentes agrave proacutepria construccedilatildeo de uma identidaderdquo SOBRAL Joseacute Manuel Portugal portugueses uma identidade nacional Lisboa Fundaccedilatildeo Francisco Manuel dos Santos 2012 p17 Tambeacutem CARDOSO Patriacutecia da Silva D Joatildeo VI um imaginaacuterio revisitado In OLIVEIRA Paulo da Motta (org) Travessias D Joatildeo VI e o mundo lusoacutefono Cotia Ateliecirc 2013 p38

9RUSEN Jorn Histoacuteria Viva Teoria da Histoacuteria

III formas e funccedilotildees do conhecimento histoacuterico Brasiacutelia Ed da UNB 2007

10Escapa ao escopo desta pesquisa por exemplo

uma perquiriccedilatildeo mais ampla a respeito de como a sociedade brasileira vecirc noccedilotildees advindas de um pensamento que poderiacuteamos chamar de ldquohistoacutericordquo como ideias de temporalidade (futuro passado presente instante progresso desenvolvimento etc) Tal empreendimento de momento apenas sugerido pelo confinamento dos objetivos aqui expostos a uma anaacutelise das formas sociais de relacionamento com um passado coletivo (ldquohistoacuteriardquo) pareceria estar em sintonia com a proposta de Ruumlsen Para uma proposta acerca de ldquocultura histoacutericardquo socialmente mais restritiva do que a nossa aplicada ao mundo medieval vide a importante obra de Gueneacutee GUENEacuteE Bernard Histoire et culture historique dans lrsquoOccident medieval Paris Aubier-Montaigne 1980 em especial o cap7 ldquoLa culture historiquerdquo

11NORA Pierre Entre memoria e historia La

problemaacutetica de los lugares In Pierre Nora en Les lieux de meacutemoire Santiago LOMTrilce 2009 p5-47 Tambeacutem DIEHL Antonio Astor Cultura historiograacutefica memoacuteria identidade e representaccedilatildeo Bauru Edusc 2002

8Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

potencial realizador de reivindicaccedilotildees dinamizadoras de conflitos em torno da divisatildeo de classes de uma sociedade12 Como se veraacute a seguir embora a cultura de histoacuteria aqui observada esteja evidentemente condicionada pelas estruturas sociais presentes na proacutepria sociedade agrave qual se refere ela natildeo parece caracterizada por uma distribuiccedilatildeo classista de seus princi-pais atributos tampouco por uma carga classista de expectativas poliacuteticas potencialmente irruptivas em seu contexto13 Cultura de histoacuteria tambeacutem natildeo se confunde perfeitamente com tradiccedilatildeo segundo a tripla distinccedilatildeo proposta mais uma vez por Ruumlsen seja como afirmaccedilatildeo passiva funcional e valorativa das formas jaacute estabelecidas de vida social como manancial de conteuacutedos aparentemente esquecidos inconscientes mas latentes em uma coletividade seja ainda como ponto de partida para a continuidade criacutetica de um discurso tornado reflexivo logo histoacuterico14 Afinal e embora uma cultura de histoacuteria possa se conectar em parte com tais ldquotradiccedilotildeesrdquo nenhu-ma delas parece englobar devidamente as interdiccedilotildees e os silecircncios acima referidos e aqui perscrutados Para todos os efeitos no entanto trata-se de um tipo de cultura isto eacute de um sistema social dotado de forte esta-bilidade mas natildeo completamente inercial pautado por alguns consensos a organizarem a maioria de seus dissensos e submetido a uma dinacircmica transformadora tendencialmente lenta embora suscetiacutevel a alteraccedilotildees de monta a partir de fatos pontuais e aparentemente isolados

A Independecircncia do Brasil ocorrida na primeira metade do seacuteculo XIX eacute tema especialmente propiacutecio para a caracterizaccedilatildeo inicial de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil Natildeo eacute o uacutenico possiacutevel mas sem duacutevida se presta especialmente bem a tal tarefa Visto como um conjunto de toacutepicos que a depender do enfoque pode incluir a histoacuteria da Ameacuterica portuguesa nos uacuteltimos anos do seacuteculo XVIII a crise da monarquia bragantina a partir de 1807 a separaccedilatildeo poliacutetica entre Portugal e Brasil e a formaccedilatildeo inicial deste como Estado e naccedilatildeo a Independecircncia eacute tema fundador desde sempre presente em processos de formaccedilatildeo escolar baacutesicos na miacutedia nas artes na poliacutetica na opiniatildeo puacuteblica nos espaccedilos puacuteblicos no senso-comum e na memoacuteria nacional15 Natildeo haacute cidade no Brasil que natildeo tenha seus lugares de memoacuteria16 ligados agrave Independecircncia natildeo haacute processo escolar formal que a ignore natildeo haacute feriados nacionais mais importantes em termos de evoca-ccedilatildeo puacuteblica e midiaacutetica de conteuacutedos do que os dela derivados Em certa medida a Independecircncia ldquopairardquo por sobre a sociedade brasileira e com ela interage o que faz com que praticamente todo e qualquer brasileiro a partir de uma certa idade pense alguma coisa a seu respeito17

A cultura de histoacuteria brasileira que natildeo se esgota na Independecircncia com ela se confunde

Aleacutem disso para efeitos da realizaccedilatildeo desta pesquisa seus autores estatildeo por dever de ofiacutecio mais familiarizados historiograficamente com o tema do que com outros que poderiam igualmente se constituir em pontos de partida vaacutelidos18 Com isso natildeo se quer dizer que este seja um estudo acerca de praacuteticas acadecircmicas em relaccedilatildeo agrave Histoacuteria per se e que sem duacutevida tambeacutem satildeo parte constitutiva dessa cultura de histoacuteria no Brasil e alhures19 (aliaacutes como se veraacute aqui estas surgiratildeo a reboque das praacuteticas natildeo acadecircmicas) apenas que o ponto de vista adotado pela pes-quisa e a partir dos quais seus autores se reconhecem eacute acadecircmico o que os permite explorar determinados potenciais do tema

A Independecircncia mostra que haacute uma dimensatildeo nacional na cultura de histoacuteria a impor significativas variaccedilotildees morfoloacutegicas e temaacuteticas de

12THOMPSON Edward Palmer Costumes em

comum estudos sobre a cultura popular tradicional Satildeo Paulo Companhia das Letras 1998 em especial p13-15 e p86 Haacute que se notar que o autor evita a manipulaccedilatildeo de definiccedilotildees claras e aprioriacutesticas preferindo a construccedilatildeo das mesmas com base no desenvolvimento de suas pesquisas empiacutericas

13O que natildeo significa que os atributos de uma

cultura histoacuterica natildeo possam ser apropriados e manipulados politicamente ou constituiacuterem-se em subsiacutedios para projetos de futuro a ausecircncia se refere a uma distribuiccedilatildeo e tendencial confinamento por classes de tais atributos

14RUSEN Jorn Tradition a principle of historical

sense-generation and its logic and effect in historical culture History and Theory Theme Issue 51 dez2012 Tambeacutem FREIXO Andreacute de Lemos Ousadia e redenccedilatildeo Op Cit p157

15LYRA Maria de Lourdes Vianna Memoacuteria

da Independecircncia marcos e representaccedilotildees simboacutelicas Revista Brasileira de Histoacuteria n29 1995 p173-206 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena de Salles O Espetaacuteculo do Ipiranga reflexotildees preliminares sobre o imaginaacuterio da Independecircncia Anais do Museu Paulista Satildeo Paulo v3 1995 p195-208 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena de Salles e MATTOS Claacuteudia Valladatildeo (org) O Brado do Ipiranga Satildeo Paulo EDUSP 1999 WEHLING Arno Estado Histoacuteria Memoacuteria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova FronteiraUNIRIO 1999 ENDERS Armelle Os vultos da naccedilatildeo faacutebrica de heroacuteis e formaccedilatildeo dos brasileiros Rio de Janeiro Editora FGV 2014

16Em referecircncia novamente a NORA Pierre Entre

memoria e historia Op Cit

17Um dado contundente segundo a inovadora

pesquisa realizada pela educadora Ana Teresa da Purificaccedilatildeo de um grupo de 97 crianccedilas entre 9 e 13 anos e que jamais tinham sido introduzidas formalmente ao tema da Independecircncia do Brasil 82 foram capazes de representaacute-la de alguma maneira (desenhos frases) geralmente em forte conexatildeo com representaccedilotildees sociais mais amplas (D Pedro o Grito o Sete de Setembro a bandeira nacional uma luta dicotocircmica entre bem e mal etc) PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da (Re)criando interpretaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil um estudo das mediaccedilotildees entre memoacuteria e histoacuteria nos livros didaacuteticos 2002 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2002

18Exemplo interessante eacute o livro de Luiacutes Fernando

Cerri com ecircnfase em uma consciecircncia histoacuterica focada na histoacuteria da ditadura brasileira de 1964 a 1985 e com aproximaccedilotildees com outros paiacuteses do cone sul Cfr CERRI Luiacutes Fernando Ensino de histoacuteria e consciecircncia histoacuterica implicaccedilotildees didaacuteticas de uma discussatildeo contemporacircnea Rio de Janeiro Editora FGV 2011

9Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

paiacutes a paiacutes embora ndash repita-se ndash deva-se esperar tambeacutem feiccedilotildees comuns entre diferentes culturas histoacutericas Ao mesmo tempo haacute uma tendecircncia agrave unificaccedilatildeo dessas formas e temas no interior de um mesmo paiacutes resultado da vigecircncia de memoacuterias e identidades bem como de estruturas institu-cionais de tipo nacional tais como sistemas poliacuteticos escolares e univer-sitaacuterios tambeacutem eles prenhes de conteuacutedos referentes a temas histoacutericos comparaacuteveis em importacircncia em cada contexto respectivo ao da Indepen-decircncia no Brasil Como bem tem mostrado a historiografia da questatildeo na-cional o passado coletivo eacute pretexto especialmente forte para a constitui-ccedilatildeo e reproduccedilatildeo de identidades nacionais20 Eacute por isso que aqui cultura de histoacuteria eacute tratada no singular pressupondo contudo uma homogeneidade apenas relativa e parcial do fenocircmeno

Tambeacutem haacute dimensotildees regionais nessa cultura de histoacuteria com varia-ccedilotildees a depender dos diferentes modos de contar evocar e silenciar conteuacutedos da histoacuteria coletiva caracteriacutesticos de cada quadrante espacial dessa unidade nacional sem contudo romper com a unidade que a engloba As limitaccedilotildees do presente estudo quanto a esse ponto satildeo expliacutecitas ao mesmo tempo em que contribuem para um desenho das feiccedilotildees mais gerais do fenocircmeno Afinal uma parte dos materiais empiacutericos aqui utilizados (mais precisamente a sondagem de opiniatildeo apresentada no item 3) refere-se primordialmente a Satildeo Paulo e sua capital21 outros poreacutem satildeo de alcance claramente nacio-nal o que permite o estabelecimento de mediaccedilotildees entre as esferas micro e macro histoacutericas constitutivas do fenocircmeno No entanto fica a advertecircncia eacute possiacutevel que a expansatildeo dessa base empiacuterica para materiais regionalmente mais circunscritos a outros Estados do Brasil como Paraacute Maranhatildeo Pernam-buco Bahia Minas Gerais Rio de Janeiro ou Rio Grande do Sul por exemplo ou mesmo a cidades singularmente marcadas pela histoacuteria da Independecircn-cia como Cametaacute Cachoeira e Goiana nos mostrasse variaccedilotildees capazes de redefinir o fenocircmeno geral Natildeo foi a Independecircncia do Brasil um processo histoacuterico cheio de nuances regionais e locais capazes de legar agrave posteridade um leque de memoacuterias ainda operativas na sociedade brasileira atual Poreacutem a histoacuteria da Independecircncia na cultura brasileira de histoacuteria precisa de algum ponto de partida mesmo que limitado

Finalmente haacute que se explicitar que haacute uma dimensatildeo histoacuterica nessa cultura de histoacuteria o que implica a concepccedilatildeo de um fenocircmeno que embora marcado por consideraacutevel estabilidade e regularidade eacute dinacircmico Isso quer dizer que as conclusotildees daqui extraiacutedas forccedilosamente trazem uma limitaccedilatildeo conjuntural podendo ser revistas ou mesmo invalidadas no futuro natildeo apenas em funccedilatildeo da inescapaacutevel (e oacutebvia) condiccedilatildeo proteica do conhecimento histoacuterico mas tambeacutem porque o sistema que constitui esse fenocircmeno eacute composto de uma grande quantidade de fenocircmenos me-nores que podem efetivamente modificar a essecircncia do conjunto ndash novas poliacuteticas educacionais um seriado de televisatildeo de grande audiecircncia um best-seller de divulgaccedilatildeo histoacuterica uma efemeacuteride de impacto etc

2 ndash Como apreender uma cultura de histoacuteria Fontes e questotildees centraisComo descrever e analisar um fenocircmeno histoacuterico com tais caracteriacutesticas Aqui definiu-se estrategicamente uma fonte central a organizar as demais uma sondagem de opiniatildeo aplicada presencialmente nas ruas da cidade de Satildeo Paulo por meio de um questionaacuterio e que incidiu sobre uma amostra-gem de 311 pessoas de diversa formaccedilatildeo escolar faixa etaacuteria caracteriacutesticas soacutecio-econocircmico-culturais e procedecircncia regional22 Embora se consti-

19CHARLE Christophe Homo historicus reacuteflexions

sur lrsquohistoire les historiens et les sciences sociales Paris Armand Colin 2013

20SOBRAL Joseacute Manuel Op Cit SMITH Anthony

D Myths and Memories of the Nation New York Oxford University Press 1999 ANDERSON Benedict Naccedilatildeo e consciecircncia nacional Satildeo Paulo Aacutetica 1989 HOBSBAWM Eric J Naccedilotildees e nacionalismo desde 1780 programa mito realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 JANCSOacute Istvaacuten Brasil e brasileiros notas sobre modelagem de significados poliacuteticos na crise do Antigo Regime portuguecircs na Ameacuterica Estudos Avanccedilados v22 p257-274 2008 Mesmo suportes midiaacuteticos eminentemente transnacionais ou ateacute mesmo supranacionais tiacutepicos do mundo digital natildeo apenas se mostram incapazes de romper com a dimensatildeo nacional do fenocircmeno como em muitos casos ateacute contribuem para reforccedilaacute-la

21Embora como logo se veraacute a ela tenha-se procurado

dar em parte um perfil nacional brasileiro

22Os criteacuterios exatos dessa sondagem bem como

os detalhes relativos agraves outras fontes utilizadas encontram-se descritos nos proacuteximos itens

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tua em um universo numeacuterico bastante pequeno diante da totalidade da populaccedilatildeo brasileira a partir de 15 anos (144814538 indiviacuteduos de acordo com o censo do IBGE de 201023) meacutetodos especiacuteficos que subsidiaram a concepccedilatildeo e aplicaccedilatildeo dessa sondagem permitiram o alcance de resultados relevantes como se veraacute adiante24 A utilizaccedilatildeo de tal abordagem em estu-dos de Histoacuteria eacute pouco frequente mas natildeo ineacutedita Deve-se aqui mencionar dois estudos importantes e parcialmente convergentes com os propoacutesitos desta pesquisa o de Isabela Cosse e Vania Markarian sobre a consciecircncia histoacuterica nacional no Uruguai publicado em 1994 e o coordenado por Joseacute Machado Pais sobre a consciecircncia histoacuterica dos jovens portugueses nos contextos europeu e israelensepalestino de 199925 Ambos satildeo excelen-tes demonstraccedilotildees dos potenciais oferecidos por esse tipo de abordagem e forneceram norte e estiacutemulo a esta pesquisa mas dela diferem em trecircs pontos fundamentais sua circunscriccedilatildeo nacionalcontinental26 os contextos histoacutericos de sua elaboraccedilatildeo e a abordagem realizada em torno de temas de histoacuteria em geral pressupondo que os entrevistados possuiriam posiccedilotildees ativas em torno do passado Assim abordam formas de consciecircncia histoacuteri-ca mas natildeo a ampliam em direccedilatildeo a uma cultura de histoacuteria

A sondagem de opiniatildeo eacute aqui central mas natildeo exclusiva tendo sido seus resultados cotejados com os extraiacutedos da anaacutelise de um conjunto de fontes complementares Em primeiro lugar livros didaacuteticos de Ensino Meacute-dio utilizados por professores e alunos em 2013 nos quais foram buscados especificamente toacutepicos relativos agrave Independecircncia do Brasil Esse conjunto de fontes perfaz 19 tiacutetulos que foram avaliados e aprovados pelo Governo Federal brasileiro no Programa Nacional do Livro Didaacutetico em 2012 cujos cerca de 7 milhotildees e 500 mil exemplares foram distribuiacutedos a algo como 18 mil escolas puacuteblicas de todo o paiacutes aleacutem de serem utilizados tambeacutem em es-colas privadas27 completaram a anaacutelise dados obtidos por uma estudiosa de livros didaacuteticos de Ensino Fundamental tambeacutem recomendados pelo governo em 1998 e que analisou 12 tiacutetulos28 Em segundo lugar viacutedeos disponiacuteveis no YouTube e portadores de conteuacutedos relativos agrave Independecircncia Aqui depa-rou-se com material muito variado distribuiacutedo em 107 viacutedeos que perfazem um riquiacutessimo conjunto dada sua grande diversidade morfoloacutegica e de con-teuacutedo (seriados educativos entrevistas programas jornaliacutesticos propagandas de partidos poliacuteticos ou de outras associaccedilotildees trailers de filmes programas voltados para puacuteblico jovem produccedilotildees independentes etc) e tambeacutem pelas possibilidades de mensuraccedilatildeo parcial de seu alcance via o nuacutemero de visualizaccedilotildees indicadas pelo siacutetio e de anaacutelise dos respectivos ldquocomentaacuteriosrdquo tambeacutem laacute disponiacuteveis Em terceiro lugar obras televisivas e cinematograacutefi-cas relacionadas com a Independecircncia do Brasil Aqui foram analisadas trecircs seacuteries televisivas e cinco longas-metragens todos tambeacutem disponiacuteveis no YouTube com os mesmos dados complementares acima apontados Em quar-to lugar livros de divulgaccedilatildeo acadecircmica ou jornaliacutestica romances histoacutericos comics livros paradidaacuteticos e outras obras de difiacutecil definiccedilatildeo a possuiacuterem em comum abordagens da histoacuteria da Independecircncia apresentadas em linguagem natildeo acadecircmica destinadas a um puacuteblico potencialmente amplo e diversificado natildeo restrito portanto a estudantes e professores de Histoacuteria29 Em meio a esse conjunto foram selecionados 19 livros Finalmente em quin-to lugar foram analisados artigos sobre a Independecircncia publicados em cinco magazines de Histoacuteria vendidos em bancas de jornal e livrarias e que visam divulgar saberes especializados para um puacuteblico mais aleacutem do frequentador de cursos universitaacuterios de Histoacuteria

23Sendo a populaccedilatildeo total 190732694 de

acordo com o Censo Demograacutefico 2010 do IBGE Disponiacutevel em ibgegovbrhomeestatisticapopulacaocenso2010defaultshtm Acesso em 01042014

24A realizaccedilatildeo da mesma assim como a

interpretaccedilatildeo de seus dados teve em conta premissas metodoloacutegicas gerais estabelecidas por Patrick Champagne CHAMPAGNE Patrick Formar a opiniatildeo o novo jogo poliacutetico Petroacutepolis Vozes 1998 ZALLER John R The Nature and Origins of Mass Opnion Cambridge Cambridge University Press 1992 WILHOIT Cleveland e WEAVER David H Neswroom Guide to Polls amp Surveys Bloomington and Indianapolis Indiana University Press 1990 e MONZOacuteN ARRIBAS Caacutendido La opinioacuten puacuteblica teoriacuteas conceptos y meacutetodos Madri Tecnos 1987

25COSSE Isabela e MARKARIAN Vania Memorias

de la historia una aproximacioacuten al estudio de la consciencia histoacuterica nacional Montevideacuteu Trilce 1994 PAIS Joseacute Machado Consciecircncia histoacuterica e identidade os jovens portugueses num contexto europeu Oeiras CeltaSecretaria de Estado da Juventude 1999 Este uacuteltimo inclui vaacuterios dos resultados obtidos pelo inqueacuterito geral europeu realizado com jovens e professores de Histoacuteria de 26 paiacuteses do continente mais Israel ldquoIsrael Aacuteraberdquo e ldquoPalestinardquo

26Seria importante considerar ainda atitudes

de pessoas em relaccedilatildeo a lugares de memoacuteria especificamente ligados agrave Independecircncia do Brasil dentro das cidades existentes aliaacutes em praticamente todo e qualquer centro urbano do paiacutes No caso de Satildeo Paulo tal desafio pode encontrar estimulante ponto de partida em duas pesquisas OLIVEIRA Cecilia Helena de Salles Museu Paulista espaccedilo de evocaccedilatildeo do passado e reflexatildeo sobre a histoacuteria Anais do Museu Paulista Satildeo Paulo Nova Seacuterie v1011 20022003 p105-126 e ALMEIDA Adriana Mortara Os visitantes do Museu Paulista um estudo comparativo com os visitantes da Pinacoteca do Estado e do Museu de Zoologia Anais do Museu Paulista Satildeo Paulo Nova Seacuterie v12 2004 p269-306

27O PNLD tem como objetivo central ldquosubsidiar

o trabalho pedagoacutegico dos professores por meio da distribuiccedilatildeo de coleccedilotildees de livros didaacuteticos aos alunos da educaccedilatildeo baacutesica Apoacutes a avaliaccedilatildeo das obras o Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) publica o Guia de Livros Didaacuteticos com resenhas das coleccedilotildees consideradas aprovadas O guia eacute encaminhado agraves escolas que escolhem entre os tiacutetulos disponiacuteveis aqueles que melhor atendem ao seu projeto poliacutetico pedagoacutegicordquo (portalmecgovbrindexphpItemid=668id=12391option=com_contentview=article) A avaliaccedilatildeo e seleccedilatildeo dos tiacutetulos aprovados pelo programa coube agrave Secretaria de Educaccedilatildeo Baacutesica (SEB) do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo sendo a equipe avaliadora formada por professores de vaacuterias universidades puacuteblicas Guia de livros didaacuteticos PNLD 2012 Histoacuteria Brasiacutelia Ministeacuterio da Educaccedilatildeo Secretaria de Educaccedilatildeo Baacutesica 2011

11Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Bem se vecirc que tais fontes complementares extrapolam o acircmbito espa-cial parcialmente circunscrito da sondagem de opiniatildeo aleacutem de permitirem a consideraccedilatildeo de uma grande pluralidade de vozes de agentes sociais ndash inclu-sive mas natildeo preferencialmente os historiadores acadecircmicos ndash responsaacuteveis pela inexistecircncia de um monopoacutelio profissional na reproduccedilatildeo divulgaccedilatildeo e eventual produccedilatildeo de conhecimentos acerca da Independecircncia do Brasil A exemplo dos procedimentos adotados para a realizaccedilatildeo da sondagem de opi-niatildeo tambeacutem a utilizaccedilatildeo de tais fontes partiu de uma amostragem jaacute que nenhum de seus conjuntos corresponde agrave totalidade de materiais disponiacuteveis No entanto acredita-se que a somatoacuteria dessas amostragens seja satisfatoacuteria para a persecuccedilatildeo dos objetivos aqui propostos

Como tratar metodologicamente fontes tatildeo diferentes entre si e como fazecirc-las convergirem para um mesmo fim Os conteuacutedos extraiacutedos da sondagem de opiniatildeo merecem tratamento algo peculiar jaacute que tendo permanecido ineacuteditos ateacute o momento natildeo podem ser considerados como elementos capazes de agir naquela mesma realidade que os informou soacute podem ser vistos como traduccedilatildeo (indireta matizada) de uma realidade por eles denunciada Jaacute as demais fontes satildeo consideradas de ambos os modos como instrumentos de reconfiguraccedilatildeo da realidade em termos de poten-ciais formadoras de opiniatildeo dos brasileiros acerca da Independecircncia mas tambeacutem como sintomaacuteticas de um estado de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema Portadoras de indiacutecios de uma cultura de histoacuteria que elas criam e recriam e protagonistas ativos dessa mesma cultura30 O que natildeo quer dizer de modo algum que a todos os suportes materiais aqui consi-derados como fontes primaacuterias possa ser atribuiacutedo um caraacuteter de inovaccedilatildeo em seus tratamentos dos conteuacutedos relativos agrave Independecircncia do Brasil (se assim o fosse os historiadores profissionais da Independecircncia teriam muitos motivos para comemorar o fato de que os demais agentes sociais natildeo apenas estariam dispostos a ouvi-los como aptos a compreendecirc-los E se assim o fosse estariacuteamos frente a uma cultura histoacuterica muito mais dinacircmica e instaacutevel do que ela parece ser)

Para aferir ateacute que ponto um livro uma revista um filme ou um viacute-deo contribuem mais para a criaccedilatildeo ou para a recriaccedilatildeo (pois natildeo haacute aqui estrito senso simples reproduccedilatildeo) de conteuacutedos a metodologia adotada abordou tais suportes materiais por meio de cinco perguntas baacutesicas Seu tratamento da Independecircncia tende a uma Histoacuteria 1) Factual eou biograacute-fica ou a uma histoacuteria processual 2) Que respeita historicidades e orde-namentos cronoloacutegicos e temporais ou que tende a dar pouca importacircncia a tais elementos (neste caso de que modos o faz) 3) Centrada em uma uacutenica regiatildeo (qual) ou em vaacuterias ao mesmo tempo e inclusive a outras partes do mundo da eacutepoca (quais) 4) Que dialoga (de que modos) com a produccedilatildeo acadecircmica (qual de quando) ou que busca outros referenciais no universo natildeo especializado 5) De ecircnfase anedoacutetica laudatoacuteria soacutebria positiva ou negativa As respostas a tais perguntas nem sempre bem claras e definidas foram buscadas a partir tambeacutem de substratos metodo-loacutegicos especiacuteficos para cada tipo de fonte e chegaram a envolver parcial-mente tambeacutem a sondagem de opiniatildeo

3 - A sondagem de opiniatildeo A Independecircncia nas ruasA sondagem de opiniatildeo partiu da aplicaccedilatildeo de um questionaacuterio que mes-clou respostas dirigidas e objetivas com respostas abertas e subjetivas sen-do dividido em trecircs partes correspondentes a trecircs perfis a serem extraiacutedos

28PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit

29Tal tipo de fonte eacute o que melhor permite uma

anaacutelise de mais largo escopo temporal do que o aqui contemplado Uma excelente reuniatildeo preliminar de material encontra-se em CALMON Pedro Histoacuteria do Brasil na poesia do povo Nova ediccedilatildeo aumentada Rio de Janeiro Bloch 1973 Para noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia na literatura e na dramaturgia portuguesa vaacuterios apontamentos em OLIVEIRA Paulo da Motta (org) Op Cit

30Muitas jaacute vecircm sendo analisadas separadamente

de acordo com uma tendecircncia apontada acima Para os livros didaacuteticos a produccedilatildeo eacute imensa e inclui trabalhos importantes como os de BITTENCOURT Circe Fernandes Livro didaacutetico e conhecimento histoacuterico uma histoacuteria do saber escolar 1993 Tese (Doutorado em Histoacuteria Social) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1993 MUNAKATA Kazumi Produzindo livros didaacuteticos e paradidaacuteticos Tese 1997 (Doutorado em Histoacuteria e Filosofia da Educaccedilatildeo) Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1997 DIEHL Astor Antocircnio (org) O livro didaacutetico e o curriacuteculo de histoacuteria em transiccedilatildeo Passo Fundo EDIUPF 1999 e CARDOSO Oldimar Pontes A didaacutetica da histoacuteria e o slogan da formaccedilatildeo de cidadatildeos 2007 Tese (Doutorado em Educaccedilatildeo) Faculdade de Educaccedilatildeo Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2007 Sobre cinema e histoacuteria dentre outros FONSECA Vitoacuteria Azevedo da Histoacuteria imaginada no cinema anaacutelise de Carlota Joaquina princesa do Brazil e Independecircncia ou morte 2002 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria Cultural) Universidade Estadual de Campinas Campinas 2002

31Esse eacute o perfil mostrado pelo censo do IBGE de

2010 com algumas poucas exceccedilotildees no caso da amostragem a uacutenica importante se observa com a faixa etaacuteria de 25 a 29 anos (14) mais numerosa do que a anterior entre 20 e 24 anos (8) sendo que a porcentagem da populaccedilatildeo brasileira em tais faixas etaacuterias eacute praticamente a mesma (respectivamente 8 e 9) De resto foi possiacutevel estabelecer nesse quesito uma satisfatoacuteria correlaccedilatildeo com o perfil brasileiro a amostragem abordou indiviacuteduos a partir de 15 anos sendo que dos 14 grupos de cinco anos obtidos (o uacuteltimo corresponde a 80 anos ou mais) quatro apresentaram perfeita correspondecircncia percentual com os dados nacionais oito uma diferenccedila de no maacuteximo 2 e apenas dois forte discrepacircncia

32Para se atingir perfis ocupacionais desejados

algumas entrevistas foram realizadas na regiatildeo do Grande ABC e no interior do estado de Satildeo Paulo

33Dados do uacuteltimo Censo do IBGE (2010)

disponiacutevel em censo2010ibgegovbramostra Acesso em 01042014

34O censo do IBGE de 2010 indicou a porcentagem

de 76 para desocupados considerando o total da populaccedilatildeo maior de 10 anos Para o estado

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do entrevistado um soacutecio-econocircmico-escolar um cultural e um relativo agrave sua relaccedilatildeo com a Histoacuteria em especial a da Independecircncia

A obtenccedilatildeo do primeiro perfil se fez segundo gecircnero faixa etaacuteria (em grupos de cinco anos a partir de 15 anos de idade) local de nasci-mento (segundo regiotildees do Brasil e cidade) ocupaccedilatildeo profissional renda familiar (em valores ou quantidade de salaacuterios miacutenimos isto eacute R$ 62000) e instruccedilatildeo formal (por niacuteveis e se realizada em escolas puacuteblicas eou pri-vadas cidade e instituiccedilatildeo) Com isso buscou-se aproximar o universo da amostragem ndash 311 indiviacuteduos ndash do perfil geral do paiacutes quando isso natildeo foi possiacutevel a aproximaccedilatildeo se deu com o Estado e com a cidade de Satildeo Paulo

No quesito gecircnero foram entrevistadas 52 de mulheres e 48 de homens (um dos entrevistados natildeo quis declarar seu gecircnero) estabelecen-do-se uma perfeita correlaccedilatildeo de porcentagem com o mostrado pelo censo populacional do IBGE de 2010 seja em termos nacionais ou estaduais de Satildeo Paulo Jaacute a constituiccedilatildeo da faixa etaacuteria dos entrevistados buscou um modelo de ldquopiracircmiderdquo isto eacute com um nuacutemero de mais jovens sempre mais elevado do que o de mais idosos31 No entanto aqui a amostragem privile-giou mais jovens entre 15 e 19 anos (21) do que a realidade populacional brasileira (8) e mais adultos entre 25 e 29 anos

No tocante ao local de nascimento a amostragem natildeo pocircde se valer de dados do IBGE Desse modo buscou-se uma aproximaccedilatildeo estatiacutestica com a cidade de Satildeo Paulo local onde 97 das entrevistas foram reali-zadas32 Os nascidos na regiatildeo sudeste perfizeram 73 das abordagens sendo 67 naturais do estado de Satildeo Paulo (dados do IBGE mostram 77 de habitantes da cidade nascidos no estado sendo 69 do total na cida-de)33 A realizaccedilatildeo da amostragem procurou uma compensaccedilatildeo para essa hipertrofia de perfil (do nacional ao regional) por meio da diversificaccedilatildeo de unidades da federaccedilatildeo para os 23 de habitantes do estado de Satildeo Paulo que natildeo nasceram nele foram entatildeo entrevistados 112 indiviacuteduos (326 da amostragem) naturais dos outros estados brasileiros agrave exceccedilatildeo de Acre Amapaacute Distrito Federal Roraima e Tocantins

Quanto a suas ocupaccedilotildees profissionais os entrevistados declararam livremente 118 diferentes funccedilotildees (sendo 005 desempregados34) apoacutes uma anaacutelise preliminar das mesmas foi possiacutevel agrupaacute-las em 90 incluin-do um leque muito variado que inclui comerciantes donas de casa empre-gadas domeacutesticas estudantes funcionaacuterios puacuteblicos educadores operaacuterios empresaacuterios cabeleireiras agricultores faxineiros jornalistas prostitutas militares e meacutedicos dentre outros (ressalte-se que no momento da pesqui-sa nenhum deles se encontrava ligado profissionalmente agrave Histoacuteria) Nesse quesito eacute impossiacutevel estabelecer uma perfeita correlaccedilatildeo entre a amostra-gem e o panorama laboral brasileiro buscou-se apenas incluir uma ampla gama de perfis profissionais

O perfil dos entrevistados segundo renda familiar tambeacutem se mos-trou de difiacutecil equivalecircncia com dados do IBGE jaacute que estes indicam rendas individuais e natildeo familiares Assim mesmo observa-se que a amostragem seguiu uma tendecircncia tambeacutem de ldquopiracircmiderdquo que faz com que o nuacutemero de brasileiros dos estratos de renda mais baixa sejam sempre mais nume-roso que os de renda mais alta a diferenccedila entre o conjunto da populaccedilatildeo brasileira e a amostragem estaacute seguramente nas dimensotildees de tais estra-tos enquanto os dados do IBGE mostram mais de 64 de indiviacuteduos sem rendimentos ou com renda entre 1 e 5 salaacuterios miacutenimos na amostragem esse percentual (por famiacutelias) pouco passou de 3035

de Satildeo Paulo a porcentagem eacute tambeacutem de 76 Disponiacutevel em censo2010ibgegovbramostra Acesso em 01042014

35Haacute aqui algumas discrepacircncias em relaccedilatildeo as

categorias do IBGE que devem ser explicitadas no que se refere aos criteacuterios de renda estatildeo ausentes do questionaacuterio ldquomais de 2 a 3 salaacuterios miacutenimosrdquo aleacutem disto a renda calculada pelo questionaacuterio tem como base a unidade familiar enquanto os dados do IBGE aqui contrastados referem-se agrave renda de indiviacuteduos

36Dos 161981299 indiviacuteduos totais ldquoa partir de

10 anosrdquo subtraiu-se 17166761 indiviacuteduos entre 10 e 14 anos de modo a limitar a estatiacutestica nacional aos jovens contemplados pela amostragem Uma distorccedilatildeo contudo permanece na cifra dos indiviacuteduos ldquosem instruccedilatildeo e fundamental completordquo da tabela 154 pois crianccedilas entre 10 e 14 anos podem perfeitamente ser ldquosem instruccedilatildeordquo embora o sejam em pequena minoria ldquofundamental completordquo para todos os efeitos as porcentagens das demais rubricas da mesma tabela foram assim corrigidas jaacute que crianccedilas de 14 anos estaratildeo necessariamente ausentes da rubrica seguinte ldquomeacutedio completordquo (tabelas 154 e 112 respectivamente)

37Nos dados do IBGE a maioria da populaccedilatildeo

(59) encontra-se na rubrica ldquonatildeo frequentavam mas jaacute frequentaramrdquo Dentre os que ldquofrequentavamrdquo 78 o faziam em estabelecimentos puacuteblicos e 22 em privados na amostragem esses percentuais que incidem sobre frequecircncia em cursojaacute realizada foram respectivamente 63 e 27 sendo que 11 se enquadravam em ambos

38Tambeacutem nessa segunda parte o questionaacuterio

se afastou progressivamente da possibilidade de estabelecimento de equivalecircncias estatiacutesticas com a totalidade da populaccedilatildeo brasileira Isso se deu por um motivo principal o censo do IBGE natildeo chega ao grau de detalhamento dos dados aqui obtidos (seus objetivos e natureza satildeo outros) e embora existam sondagens de opiniatildeo focadas em perfis culturais do brasileiro (como a ediccedilatildeo de 2011 de Retratos da leitura no Brasil do Instituto Proacute-Livro aqui utilizada como se veraacute mais adiante) a busca por tais equivalecircncias implicaria o seacuterio risco de um engessamento na obtenccedilatildeo de dados qualitativos Tendo em vista os objetivos centrais dessa pesquisa ndash esboccedilar a caracterizaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil por meio da Independecircncia assim como refletir em torno de implicaccedilotildees do tratamento acadecircmico do tema a partir de sua inserccedilatildeo nessa mesma cultura ndash o estabelecimento preliminar completo do perfil dos entrevistados natildeo garantiria a validade do material a ser extraiacutedo e analisado Trata-se justamente do contraacuterio submeter os resultados finais da pesquisa aos paracircmetros dados pelas condiccedilotildees de sua proacutepria realizaccedilatildeo

39Haacute pelo menos dois exemplos de como rankings

se fazem presentes no pensar a Histoacuteria nesse escopo Um primeiro de grande participaccedilatildeo popular eacute o programa de tevecirc O maior brasileiro de todos os tempos exibido entre 1107 e

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No tocante a instruccedilatildeo formal os dados nacionais oficiais incidem sobre crianccedilas a partir de 10 anos de idade sendo que a amostragem rea-lizada focou em jovens a partir de 15 anos desse modo a aproximaccedilatildeo da amostragem com o perfil brasileiro partiu de uma retificaccedilatildeo dos nuacutemeros apresentados pelo IBGE36 E se em termos de renda familiar a amostragem mostrou clara inclinaccedilatildeo a um perfil excessivamente de classe meacutedia o mesmo pode-se dizer quanto agrave instruccedilatildeo formal que perfez um grupo mais escolarizado do que a meacutedia do paiacutes O principal problema aqui ocorre no baixo nuacutemero de entrevistados entre ldquosem instruccedilatildeo e fundamental incom-pletordquo (7 sendo a porcentagem nacional entre 44 e 50) em prol de um nuacutemero por demais elevado de indiviacuteduos que cursaram universidades (27 contra 9) as demais rubricas tambeacutem apresentam discrepacircncias 25 de entrevistados entre ldquofundamental completo e meacutedio incomple-tordquo (contra 19) e 23 entre ldquomeacutedio incompleto e superior incompletordquo (contra 26) A anaacutelise de todo o material obtido assim como das fontes primaacuterias levou em conta tais inclinaccedilotildees e como se veraacute mais adiante elas parecem ateacute mesmo reforccedilar algumas das conclusotildees aqui obtidas Ainda no mesmo quesito os dados do IBGE classificam os brasileiros de acordo com ldquorede de ensino que frequentavamrdquo quando da realizaccedilatildeo da coleta de dados sendo que o questionaacuterio abordou os entrevistados de acordo com frequecircncia em cursojaacute realizada37 Mesmo assim os nuacutemeros aqui disponiacuteveis serviram bem agrave constituiccedilatildeo da amostragem

Na segunda parte do questionaacuterio a obtenccedilatildeo do perfil cultural do entrevistado se deu a partir de uma identificaccedilatildeo de seu acesso agrave televisatildeo (se assiste caso positivo com qual frequecircncia que tipo de programas se em tevecirc aberta eou a cabo e quais os trecircs programas que mais assiste) leitura (se lecirc com frequecircncia que tipo de coisa e quais os uacuteltimos trecircs livros que leu) cinema e teatro (em ambos os casos apenas se costuma ou natildeo frequentar)38 Apoacutes tais perguntas que procuraram diagnosticar eventuais proximidades do entrevistado em relaccedilatildeo a fontes secundaacuterias da pesquisa o questionaacuterio introduziu a questatildeo especiacutefica de seu interesse pela Histoacuteria Foi entatildeo perguntado se ele se interessa ou natildeo por Histoacuteria e por qual (do Brasil geral ou outraqual) se busca informaccedilotildees sobre e em caso positivo onde (livros televisatildeo internet revistas cursos museus outroqual) e se nos uacuteltimos dois anos leu algo ou frequentou algum curso a respeito (em caso positivo qual) Tais perguntas foram elaboradas visando uma aproximaccedilatildeo realista com caracteriacutesticas que de modo hipo-teacutetico foram atribuiacutedas a essa cultura de histoacuteria no Brasil Por isso foram preteridas formas linguiacutesticas quiccedilaacute muito acadecircmicas em prol de outras que permitissem que o entrevistado se expressasse de modo a fornecer dados vaacutelidos daiacute por exemplo o uso da tradicional divisatildeo entre Histoacuteria do Brasil e Histoacuteria Geral (com abertura para identificaccedilatildeo de ldquooutrardquo qual-quer) de muito pouca serventia para os historiadores profissionais

Finalmente a terceira parte do questionaacuterio visou agrave obtenccedilatildeo de conteuacutedos diretamente relacionados agrave Independecircncia do Brasil valendo-se mais amplamente ainda dessa estrateacutegia de utilizaccedilatildeo de formas linguiacutes-ticas coloquiais assim como de perguntas cujas respostas seriam tanto dirigidas como abertas grau de interesse sobre a histoacuteria da Independecircncia do Brasil (nenhum pequeno meacutedio ou grande seguido de uma justificati-va) grau de conhecimento do tema (nenhum pouco razoaacutevel bom exce-lente) se procura se informar sobre (natildeo simcomo) e se estaacute lendo ou leu algo a respeito nos uacuteltimos dois anos (natildeo simo quecirc) Ou seja abriu-se a

03102012 pelo SBT Conforme a sinopse da emissora ldquobaseado no formato criado pela BBC The Greats o programa elege[u] aquele que fez mais pela naccedilatildeo que se destacou pelo seu legado agrave sociedade Diversos paiacuteses jaacute apontaram os seus maiores representantes Na Inglaterra Winston Churchill saiu vencedor Os italianos elegeram Leonardo da Vincirdquo (sbtcombromaiorbrasileiroprograma Acesso em 21032014) A escolha dos candidatos e a definiccedilatildeo de seus confrontos ndash os personagens iam se enfrentando programa a programa em caraacuteter eliminatoacuterio ndash foi feita pelo telespectador sendo o ldquocampeatildeordquo Chico Xavier seguido por Santos Dummont e pela princesa Isabel Semelhante mas de menor alcance foi a pesquisa realizada pela Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional divulgada em abril de 2008 que convocou ldquopara a tarefa de eleger os lsquoheroacuteisrsquo e os lsquovilotildeesrsquo do Brasil uma distinta seleccedilatildeo de historiadores professores jornalistas economistas poliacuteticos e artistas protegidos pelo anonimato para louvar e condenar quem bem entendessemrdquo Entre os mais bem avaliados estavam Rui Barbosa Machado de Assis e D Pedro II no polo oposto Meacutedici e Costa e Silva (revistadehistoriacombrsecaoreportagemranking-dos-brasileiros Acesso em 21032014)

40As palavras satildeo acordo comeacutedia continuaccedilatildeo

democracia ditadura drama elitespoderosos escravidatildeo Estados Unidos exeacutercito guerra heroiacutesmo Inglaterra invenccedilatildeo Joatildeo VI Joseacute Bonifaacutecio liberdade mudanccedila naccedilatildeo nascimento negociaccedilatildeo paz Pedro I Portugal povo revoluccedilatildeo Tiradentes tirania O entrevistado poderia incluir outra palavra qualquer que desejasse

41O questionaacuterio encerrava-se com a possibilidade

do entrevistado acrescentar livremente algo bem como a opccedilatildeo de identificaccedilatildeo nominal Um proveitoso desdobramento da pesquisa poderia resultar de uma anaacutelise de nuances e matizes de interessantes jogos discursivos presentes em muitas das respostas obtidas sobretudo no caso de uma expansatildeo numeacuterica da amostragem

42Quando em fevereiro de 2013 foram

amplamente divulgados resultados de pesquisas biomeacutedicas (com tentativas de conclusotildees tambeacutem histoacutericas) realizadas com os restos mortais de Pedro I Leopoldina e Ameacutelia realizadas por Valdirene Ambiel Cfr AMBIEL Valdirene do Carmo Estudos de arqueologia forense aplicados aos remanescentes humanos dos primeiros imperadores do Brasil depositados no monumento agrave Independecircncia 2013 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Arqueologia) Museu de Arqueologia e Etnologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2013 Aleacutem de procurar esclarecer se tais restos se encontravam depositados no Monumento agrave Independecircncia em Satildeo Paulo e diagnosticar o estado de conservaccedilatildeo dos mesmos Ambiel procurou chamar a atenccedilatildeo para as possiacuteveis causas da morte dos monarcas e sobre os procedimentos funeraacuterios com eles entatildeo utilizados Tais resultados foram divulgados pela imprensa nacional como ldquoverdadesrdquo sobre a famiacutelia imperial brasileira supostamente ausentes dos livros de histoacuteria ldquosegredosrdquo agora ldquoreveladosrdquo Por exemplo Pedro I tinha quatro

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possibilidade de se chegar a dados de uma cultura de histoacuteria inclusive em suas negaccedilotildees em seus silecircncios e interdiccedilotildees Em seguida o questionaacuterio recorreu a um artifiacutecio muito presente no meio social sobre o qual incidiu foi pedido ao entrevistado que atribuiacutesse notas de um a dez para a impor-tacircncia que acha que a Independecircncia teve para a histoacuteria do Brasil e para a histoacuteria do mundo Nos historiadores profissionais em geral esses rankings com sua gigantesca capacidade de simplificar a realidade costumam despertar ojeriza no entanto para os demais agentes sociais dessa cultura pode significar uma forma uacutetil de representaccedilatildeo da realidade acostumados que estatildeo a ela em muitos aspectos de sua vida cotidiana39 Assim tambeacutem daqui pode-se extrair elementos para a anaacutelise de uma cultura de histoacuteria Jaacute as trecircs perguntas seguintes buscaram outra aproximaccedilatildeo foi pedido ao entrevistado que diante de uma lista de 28 palavras escolhesse as trecircs que acreditasse que mais combinam e as trecircs que menos combinam com a Independecircncia40 Tais palavras incidem sobre personagens fatos proces-sos conceitos e mitos constituindo um bom leque de possibilidades de aproximaccedilatildeo linguiacutestica e conceitual com formas de ver a Independecircncia presentes na sociedade inclusive por contemplarem vaacuterios antinocircmicos Por fim perguntou-se ao entrevistado se seria capaz de dizer as datas da chegada da corte portuguesa no Brasil da Independecircncia do Brasil da pri-meira Constituiccedilatildeo e da abdicaccedilatildeo de D Pedro I41 Aqui o intuito era aferir ateacute que ponto essa cultura de histoacuteria se organiza e se faz representar por marcos cronoloacutegicos convencionais bem como se enseja formas alternati-vas de historicizaccedilatildeo e temporalizaccedilatildeo

Desse modo por meio de estrateacutegias de abordagem complementares (graus de relaccedilatildeo ativa ou passiva diante do tema o peso de linguagens conceitos e informaccedilotildees formas temporais) o questionaacuterio procurou fazer convergirem possibilidades de posturas dos entrevistados em relaccedilatildeo agrave histoacuteria e agrave Independecircncia do Brasil bem como dimensotildees variadas e even-tualmente contraditoacuterias de tais posturas relacionando-as inclusive com as cinco perguntas baacutesicas que seriam posteriormente dirigidas agraves fontes secundaacuterias conforme enunciado ao final do item anterior

Apoacutes um curto periacuteodo de testes foram entrevistadas presencialmen-te 311 pessoas na cidade de Satildeo Paulo Grande ABC e interior do estado entre os dias 19 de setembro de 2012 e 02 de agosto de 2013 Propositada-mente foram evitadas as duas Semanas da Paacutetria desses anos bem como um periacuteodo de vinte dias de superexposiccedilatildeo midiaacutetica especiacutefica do tema42 As abordagens foram realizadas de modo direto em 994 das vezes em espaccedilos puacuteblicos tendo cada uma ndash com poucas exceccedilotildees -a duraccedilatildeo de cerca de sete minutos durante os quais evitou-se ao maacuteximo qualquer tipo de constrangimento direcionamento ou auxiacutelio nas respostas

O que foi possiacutevel obter nessas entrevistas Os entrevistados com-potildeem um grupo de forte contato com a televisatildeo (93 assistem com frequecircncia e 51 todos os dias sendo que 58 possuem tevecirc aberta e a cabo apenas 6 disseram natildeo assistir tevecirc) de leitores frequentes (78) e de assistentes a cinemas (58) e teatros (28) o que o aproxima de um perfil de classe meacutedia escolarizada conforme jaacute apontado anteriormente de todo modo haacute que se lembrar que em muitos outros aspectos relevan-tes esse eacute um grupo heterogecircneo Daiacute a importacircncia do fato de que 77 dos que o compotildeem disseram se interessar por histoacuteria (sendo que 60 afirmaram buscar informaccedilotildees a respeito) Esse eacute um nuacutemero alto ou bai-xo A questatildeo natildeo parece das mais importantes jaacute que de acordo com a

costelas quebradas quando morreu era mais baixo do que se supunha natildeo foi cremado mas enterrado acompanhado de porccedilotildees de terra de Portugal e com roupas de general com insiacutegnias portuguesas e natildeo brasileiras Leopoldina natildeo teve o fecircmur quebrado antes de morrer como acreditava-se ateacute entatildeo foi enterrada com a mesma roupa com que foi coroada imperatriz e seus brincos natildeo eram de ouro mas bijuterias de resina Jaacute Ameacutelia quando morreu tinha escoliose e osteoporose foi enterrada de preto e mumificada Na internet tais ldquorevelaccedilotildeesrdquo foram no total comentadas milhares de vezes ldquorecomendadasrdquo e em geral bem-recebidas (fotosestadaocombrmudanca-na-historia-dez-verdades-sobre-a-familia-imperial-que-nao-estao-nos-livros-de-historiagaleria70481949100htmpPosicaoFoto=1carousel acesso em 27032014 folhauolcombrfspcienciasaude94655-corpos-da-familia-imperial-sao-exumadosshtml acesso em 02042014 folhauolcombrfspcienciasaude94656-descoberta-mostra-abandono-de-d-leopoldina-diz-historiadorashtml acesso em 02042014 estadaocombrnoticiascidadessob-sigilo-dom-pedro-i-e-suas-duas-mulheres-sao-exumados-pela-primeira-vez9983670htm acesso em 02042014 vejaabrilcombrblogricardo-settitema-livreabertura-para-estudos-dos-sarcofagos-de-d-pedro-i-e-de-suas-duas-esposas-e-fato-extraordinario-parabens-ao-estadao-por-divulgar-tudo acesso em 02042014 brnoticiasyahoocomexumaC3A7C3A3o-d-pedro-i-mulheres-reconta-histC3B3ria-115400981htmlgt acesso em 02042014 g1globocomciencia-e-saudenoticia201302cientistas-brasileiros-exumam-restos-mortais-de-d-pedro-i-e-suas-mulhereshtml acesso em 02042014 youtubecomwatchv=y8jcdXyx3hAgt acesso em 02042014 vestibularuolcombrresumo-das-disciplinasatualidadeshistoria-do-brasil-exumacao-traz-novidades-sobre-d-pedro-ihtm acesso em 02042014 ltgooglecombrsearchq= exumaC3A7C3A3o+de+dom+pedroampoq= exumaC3A7C3A3o+ampaqs= chrome469i57j0l55749j0j8ampsourceid= chromeampespv=210ampes_sm=93ampie=UTF-8gt acesso em 02042014 noticiasseuhistorycomexumacao-revela-detalhes-surpreendentes-da-vida-e-morte-de-d-pedro-i-e-suas-mulheresgt acesso em 02042014 istoecombrreportagens277892_A+VOLTA+DE+DOM+PEDRO+I acesso em 02042014 bahiaatualcomnoticiasexumacao-de-corpos-de-d-pedro-i-revela-detalhes-da-famiila-real acesso em 02042014 Site Uacuteltimo Segundo ldquoExumaccedilatildeo de D Pedro I e suas mulheres reconta a Histoacuteriardquo disponiacutevel em ultimosegundoigcombrciencia2013-02-19exumacao-de-dpedro-i-e-suas-mulheres-reconta-a-historiahtml acesso em 02042014 diariodepernambucocombrappnoticiaciencia-e-saude20130219internas_cienciaesaude424273restos-mortais-de-d-pedro-i-sao-exumados-para-realizacao-de-pesquisashtml acesso em 02042014 httpopiniaoenoticiacombrbrasilrestos-mortais-de-dom-pedro-i-sao-exumadosgt acesso em 02042014 noticiasbanduolcombrjornaldabandconteudoaspid=100000576688 acesso em 02042014

15Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

definiccedilatildeo aqui proposta de cultura de histoacuteria o desinteresse tambeacutem eacute um dado relevante pois traduz uma atitude em si e que dificilmente poderia ser considerada de modo absoluto (como pretender que esse desinteresse se traduza por exemplo em descaso com a proacutepria histoacuteria ou com a da famiacutelia Difiacutecil acreditar ser esse o caso de 23 dos entrevistados) Aleacutem disso bem sabemos que seu contraacuterio o interesse pode se manifestar de muitas maneiras que natildeo necessariamente encontram guarida em praacuteticas acadecircmicas e profissionais relacionadas ao estudo do passado tampouco que resultam em um estudo da histoacuteria minimamente organizado O que implica que os dois contraacuterios nem sempre estabeleceratildeo limites claros entre si diante da apreciaccedilatildeo geral de uma cultura de histoacuteria interesse e desinteresse pela histoacuteria podem flertar com muita proximidade bem como intercambiarem elementos regularmente

Observemos mais atentamente esse panorama Considerando-se tais caracteriacutesticas de uma cultura de histoacuteria como a brasileira perguntou-se a todos os entrevistados incluindo aos 23 que afirmaram natildeo se inte-ressar por histoacuteria por ldquoqual histoacuteriardquo poderia dizer que mais se interessa Aqui as respostas que de alguma forma se referem diretamente agrave histoacuteria do Brasil (ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo ldquoHistoacuteria geral e do Brasilrdquo ldquoHistoacuteria da nos-sa regiatildeordquo ldquoHistoacuteria do Brasil e andinardquo) perfazem 34 do total aiacute sim um nuacutemero relativamente baixo diante dos 66 que em suas respostas exclu-iacuteram o Brasil Portanto independentemente do interesse pela mateacuteria ser alto ou baixo a relaccedilatildeo com a Histoacuteria do Brasil parece gozar de especial desprestiacutegio Seraacute o desprezo pela histoacuteria nacional um dado da cultura de histoacuteria no Brasil43 Mais adiante quando da anaacutelise das outras fontes vol-taremos a esse ponto De todo modo tal desprestiacutegio evidentemente traraacute implicaccedilotildees para as posturas dos brasileiros em relaccedilatildeo agrave Independecircncia

A princiacutepio os entrevistados tendem a se interessar pouco pela Inde-pendecircncia do Brasil mas essa natildeo eacute uma tendecircncia absoluta se 39 tecircm ldquonenhumrdquo ldquopoucordquo ou ldquopequenordquo interesse 44 tem ldquomeacutediordquo e 17 ldquoentre meacutedio e granderdquo e ldquogranderdquo Ora em se tratando de uma cultura de histoacuteria dinacircmica e fluida com fronteiras pouco claras entre o interesse e o desinte-resse pela histoacuteria de modo geral (e a despeito da clara tendecircncia a um maior desinteresse pela Histoacuteria do Brasil) a Independecircncia eacute pouco interessante mas natildeo eacute inteiramente desprezada (apenas 11 declararam ldquonenhumrdquo inte-resse por ela cifra menor do que a dos grandes interessados)

Parece entatildeo haver espaccedilo aqui para diferentes formas de pensar representar e reinventar a Independecircncia do Brasil como verificar-se-aacute mais adiante de momento constata-se uma correspondecircncia estatiacutestica entre os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram ter dela ldquobomrdquo ou ldquoexcelenterdquo conhecimento (os de ldquonenhumrdquo ldquopoucordquo ou apenas ldquorazoaacutevelrdquo conhecimento compotildee os demais 83) e os 30 que afirma-ram buscar informaccedilotildees a respeito (sendo 60 os que buscam informaccedilotildees sobre histoacuteria em geral) Provavelmente trata-se de um subgrupo dos mais ativos no circuito de consumo-reproduccedilatildeo-criaccedilatildeo de toacutepicos relativos agrave Independecircncia na cultura de histoacuteria no Brasil Dentre esses 30 exclusi-vamente 305 afirmaram buscar informaccedilotildees sobre a Independecircncia em livros 291 na escola e nos livros didaacuteticos (evidentemente mais confina-dos ao puacuteblico jovem) 208 na internet 97 em raacutedio tevecirc eou jornais impressos e outros 97 ldquocom pessoas e lugares44 Os que responderam ler ou ter lido algo a respeito nos uacuteltimos dois anos foram 34 (os demais responderam ldquonatildeordquoldquonatildeo se lembrardquo ou natildeo responderam)

43Natildeo parece ser o caso da cultura histoacuterica

portuguesa de acordo com trabalhos recentes como os de PAIS Joseacute Machado Op Cit SOBRAL Joseacute Manuel Op Cit e MATOS Seacutergio Campos Consciecircncia histoacuterica e nacionalismo Portugal seacuteculos XIX e XX Lisboa Horizonte 2008

44A ausecircncia de menccedilotildees a outros tipos de suporte

de informaccedilotildees sobre a Independecircncia reforccedila a escolha das fontes secundaacuterias da pesquisa analisadas no proacuteximo item

45Embora seja muito frequente a consideraccedilatildeo de

que o principal marco fundacional da histoacuteria brasileira tenha sido o ldquodescobrimentordquo (isto eacute a chegada dos portugueses agrave Ameacuterica em 1500) e natildeo a ruptura poliacutetica entre Brasil e Portugal Muito provavelmente isso se conecta com uma tambeacutem muito frequente concepccedilatildeo da Independecircncia como ldquonatildeo-rupturardquo como processo negociado amigaacutevel e sem grandes solavancos Retornaremos agrave questatildeo

46Todas as 28 palavras oferecidas aos entrevistados

receberam no miacutenimo quatro menccedilotildees sendo que 22 tiveram mais de uma dezena de menccedilotildees a mesclarem termos que remetem a caracteriacutesticas atribuiacutedas agrave Independecircncia que ensejam relaccedilotildees diretas ou indiretas com ela ou que se referem a simples informaccedilotildees

47Foram feitas 310 menccedilotildees de termos positivos em

relaccedilatildeo agrave Independecircncia (liberdade democracia revoluccedilatildeo heroiacutesmo mudanccedila drama) contra 210 dos mesmos como natildeo combinando com ela essa tendecircncia eacute reforccedilada por 190 menccedilotildees a termos negativos que combinariam com ela (acordo escravidatildeo negociaccedilatildeo continuaccedilatildeo ditadura comeacutedia invenccedilatildeo tirania) sendo que os mesmos foram mencionados 391 vezes como natildeo combinando Esclarecer o caso de escravidatildeo pode ser referecircncia a uma realidade (em geral negativa) mas tambeacutem como metaacutefora poliacutetica Para todos os efeitos como mencionar o termo de outras maneiras

48148 escolhas incidiram sobre termos conflitivos

que com ela combinariam (guerra revoluccedilatildeo mudanccedila) contra 101 menccedilotildees a tais termos como natildeo combinando poreacutem tal tendecircncia se inverte nas 119 escolhas de termos paciacuteficos que com ela combinariam (paz acordo negociaccedilatildeo) contra 70 menccedilotildees aos mesmos como natildeo combinando

49Foram feitas 27 escolhas de povo como combinando

contra 22 do mesmo termo como natildeo combinando e 35 a elitepoderosos como combinando contra 14 em termos opostos o que indica certo equiliacutebrio tendente agrave segunda possibilidade

50Natildeo se pode deixar de mencionar algumas

outras palavras que natildeo se encontravam na lista mas foram acrescidas pelos entrevistados sendo portanto de menccedilatildeo espontacircnea As mais recorrentes combinando num sentido depreciativo foram ldquointeresserdquo e ldquocorrupccedilatildeordquo Outras palavras tais quais ldquounificaccedilatildeordquo ldquomorterdquo

16Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

A hipoacutetese da constituiccedilatildeo de um subgrupo ativo na cultura de histoacuteria por meio do tema da Independecircncia encontra respaldo nos resulta-dos do ranking do questionaacuterio para a importacircncia que ela teria tido para a Histoacuteria do Brasil 43 deram nota 10 e outros 31 notas entre 8 e 9 sendo que apenas 6 deram notas entre 0 e 4 ou natildeo souberam responder Ou seja mesmo quem natildeo se interessa pela Independecircncia ou pela Histoacute-ria do Brasil em geral tende a reconhecer o tema como sendo de grande importacircncia embora tal reconhecimento seja menor em se tratando de sua relaccedilatildeo com a Histoacuteria ldquoem geralrdquo (a essa pergunta 25 respondeu com nota 10 e outros 25 com notas 8 ou 9 em contraposiccedilatildeo a um elevado percentual de 22 que deu notas entre 0 e 4 ou natildeo soube responder) Ainda assim portanto a Independecircncia eacute fortemente valorizada por um percentual que extrapola os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram dela serem conhecedores ou os 20 que afirmaram buscar informaccedilotildees a seu respeito Valorizada poreacutem em meio ao que parece ser uma dificuldade de se pensaacute-la para aleacutem de sua tradicional circunscriccedilatildeo nacional (o que encontra como logo veremos enorme correspondecircncia nas fontes secundaacuterias) para aleacutem dos limites a ela convencionalmente impos-tos por tradiccedilotildees historiograacuteficas ainda fortes e mesmo por uma cultura de histoacuteria que tendo atributos fortemente nacionais tende a nela enxergar um marco fundacional importante isto eacute um marco diferenciador entre a histoacuteria do Brasil e a de outros paiacuteses45

O que nesse sentido nos mostram as escolhas de palavras que ldquocom-binamrdquo e ldquonatildeo combinamrdquo com a Independecircncia46 Em primeiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista mais em perspectiva positivaenalte-cedora do que negativadepreciativa47 Em segundo lugar a possibilidade da Independecircncia ser considerada tanto como rupturaconflitiva quanto como continuidadepaciacutefica48 Em terceiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista como algo menos popular do que elitista49 Em quarto e uacuteltimo lu-gar ateacute que ponto os entrevistados se mostraram conhecedores da histoacuteria 55 respostas indicaram termos informativos descabidos (Tiradentes combina D Pedro I D Joatildeo VI Joseacute Bonifaacutecio e Portugal natildeo) contra uma maioria de 190 menccedilotildees a tais termos de modo inverso Aqui os resultados podem indicar a prevalecircncia de um tipo de conhecimento de histoacuteria estruturado em personagens e trajetoacuterias individuais (como logo veremos as fontes secundaacute-rias tambeacutem referendaratildeo amplamente essa hipoacutetese)50

Na uacuteltima parte do questionaacuterio perguntou-se aos entrevistados acerca de datas de quatro eventos que podem ser considerados como marcos do processo de Independecircncia 68 responderam natildeo saber ou natildeo se lembrar da data da chegada da Corte portuguesa ao Brasil 13 deram respostas claramente erradas em muitas das quais (ldquomil e quinhentosrdquo ldquomil quinhentos e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo etc) natildeo obstan-te se vislumbra uma referecircncia adequada poreacutem tratada de modo equivo-cado e somente 9 souberam responder de modo preciso (ldquomil oitocentos e oitordquo) Diante da pergunta quanto agrave data da primeira constituiccedilatildeo do Brasil 85 disseram natildeo saber ou natildeo se lembrar 7 deram respostas claramente erradas (ldquomil e quatrocentosrdquo ldquomil quinhentos e oitentardquo) algumas das quais poreacutem se aproximando da evocaccedilatildeo de alguma consti-tuiccedilatildeo brasileira (ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquomil novecentos e trintardquo ldquomil novecentos e oitenta e oitordquo) e apenas 13 souberam responder com firmeza isto eacute com a presenccedila de ldquomil oitocentos e vinte e quatrordquo na resposta Jaacute a pergunta sobre a data

(em alusatildeo ao Grito) e ldquoprogressordquo enriqueceram a fileira dos termos valorativos

51Essa percepccedilatildeo eacute reforccedilada por alguns dos

dados obtidos por Purificaccedilatildeo Em meio a representaccedilotildees da Independecircncia produzidas por crianccedilas entre 09 e 13 anos encontram-se frases como ldquoQuando D Pedro viu terra gritou Independecircncia ou Morterdquo e ldquoPouco depois de descobrirem o Brasil gritaram a independecircnciardquo PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p40-41 Cabe lembrar que tais crianccedilas natildeo haviam tido ainda contato formal (na escola) com o tema da Independecircncia ldquoapenasrdquo por meio de uma cultura de histoacuteria a envolverem-nas

52O que parece impor uma urgente reflexatildeo em

torno dos efeitos do violento desprestiacutegio das referecircncias factuais que o sistema escolar impocircs ao ensino de Histoacuteria no Brasil das uacuteltimas deacutecadas O quecirc ademais natildeo parece uma situaccedilatildeo exclusivamente brasileira de acordo com a sugestatildeo que nos foi dada por Nuno Gonccedilalo Monteiro a ver aqui paralelismo com o ensino de Histoacuteria em Portugal

53Outras duas possibilidades promissoras seriam

analisar respostas a questotildees de vestibulares relativas agrave Independecircncia e entrevistas com professores e coordenadores pedagoacutegicos que de alguma forma lidem com o tema no cotidiano escolar

54MORENO Jean Carlos Limites escolhas e

expectativas horizontes metodoloacutegicos para anaacutelise dos livros didaacuteticos de histoacuteria Antiacuteteses Londrina v5 n10 p729 juldez2012

55O que eacute atestado por exemplo pela recente

consolidaccedilatildeo da presenccedila nos livros didaacuteticos de toacutepicos relativos agrave Histoacuteria do continente africano

56Dos 49 autores de livros didaacuteticos aqui

considerados 36 satildeo identificados pelos termos ldquomestrerdquo ldquodoutorrdquo ou ldquoprofessor universitaacuteriordquo O que natildeo significa como eacute bem sabido que tais autores sejam integralmente responsaacuteveis pelo conteuacutedo de suas obras

57MORENO Jean Carlos Op Cit p724

58Segundo dados oficiais somente no ano de

2012 esse governo comprou cerca de 408 milhotildees de livros didaacuteticos para os anos do Ensino Meacutedio (Assessoria de Comunicaccedilatildeo Social do FNDE 24 de agosto de 2012)

59Sua produccedilatildeo no entanto eacute regionalmente

concentrada na seleccedilatildeo das coleccedilotildees de didaacuteticos feita pelo MEC em 2010 oito editoras de Satildeo Paulo responderam por 842 da produccedilatildeo aprovada enquanto trecircs de Curitiba ficaram com os 158 restantes

60DIAS Adriana M GRINBERG Keila e

PELLEGRINI Marco Novo Olhar Histoacuteria v2 Satildeo

17Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

da abdicaccedilatildeo de D Pedro I foi a campeatilde em respostas imprecisas 92 dis-seram natildeo saber ou natildeo se lembrar 16 deu respostas erradas e apenas 12 soube responder ldquomil oitocentos e trinta e umrdquo

E quanto agrave data da Independecircncia do Brasil Em comparaccedilatildeo com as perguntas anteriores esta obteve respostas de qualidade superior natildeo obstante um nuacutemero ainda alto de respostas ldquonatildeo souberdquo e ldquonatildeo lembrardquo 33 dos entrevistados Haacute que se lembrar inclusive que desde a segunda parte do questionaacuterio o entrevistado jaacute sabia tratar-se de algo focado na Independecircncia ou seja se nas demais perguntas pode-se dizer que ele foi pego totalmente surpresa nesta natildeo Por isso e se considerarmos ainda os 14 que deram respostas claramente erradas a esta pergunta (ldquomil e qui-nhentosrdquo ldquovinte e um de abril de mil e quinhentosrdquo ldquovinte e dois de abril de mil e quinhentosrdquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquovinte e um de abrilrdquo ldquovinte e dois de abrilrdquo ldquonove de julhordquo) chega-se a um total de 47 de pessoas incapazes de dizer quando ocorreu a Independecircncia do Brasil Por outra parte os que souberam responder (ldquosete de setembro de mil oito-centos e vinte e doisrdquo ou ldquomil oitocentos e vinte e doisrdquo) chegaram a 16 iacutendice muito proacuteximo das dimensotildees do hipoteacutetico grupo de interessados e razoaacuteveis conhecedores da Histoacuteria da Independecircncia referido alguns paraacutegrafos acima

Trata-se de um nuacutemero elevado ainda mais se reafirmarmos que a Independecircncia natildeo eacute jamais completamente ignorada em meio agrave cultura brasileira de histoacuteria De certo modo sim mas natildeo deve escapar agrave obser-vaccedilatildeo de ningueacutem que nessa pergunta especiacutefica a confusatildeo de datas se daacute dentro de referecircncias histoacutericas e cronoloacutegicas bastante demarcadas a Independecircncia o ldquodescobrimento do Brasilrdquo Tiradentes e a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica todos eles marcos fundacionais em uma memoacuteria histoacuteri-ca oficial logo fundamentais na constituiccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil51 Tais resultados indicam preliminarmente a precariedade da concepccedilatildeo de histoacuteria ndash da Independecircncia em particular - segundo formas convencionais de organizaccedilatildeo cronoloacutegica e isso a despeito dessa socieda-de ser permeada e carregada de referecircncias cronoloacutegicas que organizam a vida das pessoas em muitos de seus interstiacutecios (vida familiar vida profis-sional praacuteticas de lazer e de culto etc) Pouquiacutessimas respostas ndash esta-tisticamente despreziacuteveis -parecem esboccedilar a forja de alguma modalidade alternativa de organizaccedilatildeo temporal da histoacuteria (ldquoquase duzentos anosrdquo ldquomil oitocentos e alguma coisardquo ou ldquoD Pedro saiu para brigar com o irmatildeo e deixou D Pedro IIrdquo) diante do quecirc ganha forccedila a hipoacutetese de uma enorme e generalizada dificuldade apresentada por essa sociedade no manejo de recursos baacutesicos de historicizaccedilatildeo da histoacuteria como a cronologia52

Ateacute aqui as conclusotildees a que se pode chegar ainda satildeo excessiva-mente parciais extraiacutedas apenas da sondagem de opiniatildeo conveacutem no entanto sumarizaacute-las de modo a reforccedilaacute-las como hipoacuteteses capazes de nortear a anaacutelise vindoura Segundo o que nos mostram os entrevistados a Independecircncia eacute pouco frequentada por muitos mas assiduamente por um grupo razoaacutevel (seratildeo seus membros os uacutenicos capazes de pensaacute-la segundo marcos cronoloacutegicos) eacute amplamente considerada tema da maior importacircncia para a Histoacuteria do Brasil e de menor importacircncia para a His-toacuteria do Mundo ela eacute menos interessante do que outros temas (quais natildeo sabemos) assim como a Histoacuteria do Brasil eacute menos do que a Histoacuteria Geral mas tende a ser vista como algo respeitaacutevel eventualmente positivo para o Brasil o que parece evocar um imaginaacuterio oficial ainda muito vigente de

Paulo FTD 2010 ALVES Alexandre e OLIVEIRA Letiacutecia F de Conexotildees com a Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Moderna 2010 PEDRO Antocircnio e LIMA Lizacircnias de Souza Histoacuteria sempre presente v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VICENTINO Claacuteudio R e DORIGO Gianpaolo F Histoacuteria Geral e do Brasil v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FIGUEIRA Divalte G Histoacuteria em foco v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2011 NOGUEIRA Fausto G e CAPELLARI Marcos Ser protagonista Histoacuteria 2ordm ano do Ensino Meacutedio Satildeo Paulo Ediccedilotildees SM 2010 BURITTI Flaacutevio Caminhos do Homem v2 Curitiba Base Editorial 2010 CAMPOS Flaacutevio de CLARO Regina A escrita da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 COTRIM Gilberto Histoacuteria Global Brasil e Geral v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 AZEVEDO Gislane C e SERIACOPI Reinaldo Histoacuteria em movimento v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2010 MORENO Jean Carlos e GOMES Sandro V Histoacuteria cultura e sociedade v3 Curitiba Positivo 2010 FERREIRA Joatildeo Paulo e FERNANDES Luiz Estevam Nova Histoacuteria integrada v2 2a ed Curitiba Moacutedulo 2010 MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Histoacuteria Geral e Brasil v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam B Histoacuteria Das cavernas ao terceiro milecircnio v2 2a ed Satildeo Paulo Moderna SANTIAGO Pedro CERQUEIRA Ceacutelia e PONTES Maria Aparecida Por dentro da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 MOCELLIN Renato e CAMARGO Rosiane Histoacuteria em debate v2 Satildeo Paulo Editora do Brasil 2010 CATELLI Jr Roberto GANDINI Mariacutea Soledad M e ASPIS Renata L Histoacuteria texto e contexto v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FARIA Ricardo de M MIRANDA Mocircnica Liz e CAMPOS Helena Estudos de Histoacuteria v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010

61PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit

62Conforme observou o Guia de livros didaacuteticos

PNLD 2012 Histoacuteria 17 das coleccedilotildees aprovadas adotaram a perspectiva da Histoacuteria Integrada na qual se expotildee o conteuacutedo histoacuterico a partir da ldquosequecircncia cronoloacutegica de base europeiardquo havendo o predomiacutenio da ldquoHistoacuteria Geral eurocecircntricardquo linear Os assuntos sobre a Histoacuteria da Ameacuterica e do Brasil estatildeo intercalados nesta grande Histoacuteria Geral As outras duas coleccedilotildees optaram pelo formato temaacutetico organizando os assuntos ldquoem torno de muacuteltiplos espaccedilos e temporalidadesrdquo mas guiados por um eixo cronoloacutegico Guia de livros didaacuteticos PNLD 2012 Histoacuteria Op Cit p 18-19

63Uma afirmaccedilatildeo tiacutepica ldquoO nascimento do

Brasil como paiacutes independente encontra-se dentro do contexto de crise do Antigo Regime e do sistema colonial mercantilistardquo VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p89 Os paradigmas historiograacuteficos a que tal tipo de afirmaccedilatildeo remete satildeo evidentemente as obras de Caio Prado Juacutenior e Fernando Novais jaacute amplamente presentes tambeacutem nos livros de Ensino Fundamental PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit cap3

18Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

glorificaccedilatildeo da Independecircncia laudatoacuterio e a destacar seus personagens centrais No entanto tal tendecircncia encontra obstaacuteculo em outras contraacute-rias minoritaacuterias mas natildeo despreziacuteveis a verem a Independecircncia como algo pouco ou nada importante uma histoacuteria restrita espacialmente e socialmente e mais de continuidades do que de rupturas

Assim jaacute eacute possiacutevel afirmar que a Independecircncia enseja disputas a seu respeito em torno de suas representaccedilotildees e memoacuterias oficiais ou natildeo Muito provavelmente alguns dos motivos que explicam sua rejeiccedilatildeo por muitos explicam igualmente sua ativa e entusiasmada frequecircncia por um grupo menor Em uma terceira via ela jamais deixou de ser pensada e divulgada em perspectivas complexas fortemente criacuteticas e analiacuteticas Para todos os efeitos a Independecircncia contribui sem duacutevida para tipificar uma cultura de histoacuteria no Brasil plural variada e apenas parcialmente organizada em padrotildees cronoloacutegicos (temporais) na qual ocupa um papel central e da qual irradiam outros elementos valiosos para um melhor en-tendimento dessa mesma cultura

4 ndash A Independecircncia nas escolas A principal fonte de fomento e irradiaccedilatildeo de atitudes do brasileiro diante da Independecircncia eacute o sistema escolar com sua diversidade de agentes es-paccedilos procedimentos materiais e valores Aqui seraacute analisado apenas um componente prenhe de significados desse sistema o livro didaacutetico53

Segundo um estudioso da mateacuteria os autores de livros didaacuteticos de Histoacuteria em geral ndash grupo no qual ele mesmo estaacute incluiacutedo -ldquonatildeo tecircm por objetivo somente transpor a Histoacuteria acadecircmica eles identificam necessi-dades sociais estatildeo imersos na sociedade e portanto na proacutepria histoacuteria sobre a qual escrevemrdquo54 Tais livros satildeo assim documentos privilegiados de uma cultura de histoacuteria trazem conteuacutedos de acordo com padrotildees e paracircmetros de uma sociedade agrave qual servem sendo inclusive cada vez mais sensiacuteveis a impulsos de origem natildeo acadecircmica55 contam com a colaboraccedilatildeo ou autoria de historiadores profissionais56 que trabalham junto a editores assistentes revisores iconoacutegrafos diagramadores e designers graacuteficos57 satildeo consumidos preferencialmente por educadores e educandos mas chegam tambeacutem agraves famiacutelias destes e ao puacuteblico em geral tendem a permanecer por algum tempo disponiacuteveis em salas de aula residecircncias livrarias e bibliotecas e satildeo fortemente condicionados pelas exigecircncias de um grande mercado editorial cujas demandas capi-talistas natildeo satildeo menos evidentes do que as pedagoacutegicas O livro didaacutetico eacute o segundo suporte de leitura mais lido no Brasil sendo sua produccedilatildeo o mais lucrativo negoacutecio de uma induacutestria editorial brasileira que tem no governo federal seu maior cliente58 Essa produccedilatildeo dos livros didaacuteticos movimenta enormes cifras veicula paacuteginas e paacuteginas de conteuacutedos de Histoacuteria produzidos por e destinados a um amplo conjunto de agentes sociais e tecircm circulaccedilatildeo nacional59

A Independecircncia estaacute presente em todos os 21 livros destinados ao Ensino Meacutedio aqui considerados60 assim como estava em outros 12 de Ensino Fundamental contemplados por um estudo acadecircmico a respeito61 Nessa dupla frente abre-se uma possibilidade de anaacutelise valiosa jaacute que alguns livros circulam atualmente enquanto outros circularam agrave eacutepoca em que jovens adultos que hoje tecircm entre 22 e 26 anos eram crianccedilas entre 9 e 13 Unem-se assim duas temporalidades de tratamentos da Independecircn-cia que podem ser unificadas por uma cultura de histoacuteria

64Exemplo eacute a afirmaccedilatildeo de que ldquoem

reconhecimento agrave importacircncia da Batalha do Jenipapo como um episoacutedio fundamental no processo de independecircncia e de consolidaccedilatildeo do territoacuterio a data de 13 de marccedilo de 1823 foi estampada na bandeira do estado do Piauiacuterdquo DIAS Adriana GRINBERG Keila e PELLEGRINI Marco Op Cit p240

65Excelente demonstraccedilatildeo eacute dada por uma

proposta pedagoacutegica de um jogo didaacutetico elaborado pelo Laboratoacuterio de Ensino de Histoacuteria da Universidade Federal de Pelotas descrita em GASPAROTTO Alessandra ESPIacuteRITO SANTO Marco Viniacutecio do SILVA Eduarda Borges da Jogo didaacutetico vira-vira a metroacutepole vira colocircnia a colocircnia vira-metroacutepole Revista Latino-Americana de Histoacuteria v2 n6 agosto de 2013 (Ediccedilatildeo Especial) p648-661

66Os preferidos satildeo D Joatildeo Carlota Joaquina Joseacute

Bonifaacutecio e D Pedro

67Um exemplo apoacutes afirmar que ldquodurante anos a

historiografia oficial tentou idealizar o processo de independecircncia e seus autores explicado como um ato de heroiacutesmo contra a tirania e em defesa da liberdaderdquo uma das obras afirma em tom de contraposiccedilatildeo ldquoMas nas uacuteltimas deacutecadas novos estudos permitiram lanccedilar um novo olhar sobre esse periacuteodo Expressotildees dessa mudanccedila satildeo algumas produccedilotildees culturais recentes que tratam desse momento com uma visatildeo criacutetica e ateacute mesmo sarcaacutestica como por exemplo o romance O Chalaccedila (1999) de Joseacute Roberto Torerordquo Por fim propotildee como ldquoSugestatildeo de atividaderdquo supostamente para aguccedilar o senso criacutetico do aluno ldquocomparar o romance de Torero citado acima com a visatildeo oficial dos eventos fornecida pela ceacutelebre pintura Independecircncia ou morte (O Grito do Ipiranga) de Pedro Ameacuterico ou pelo filme Independecircncia ou morte (1972) de Carlos Coimbrardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p80-81) Aleacutem de ignorar os momentos objetivos e naturezas distintos das obras recomendadas tal atividade sugere a ultrapassagem de uma visatildeo ldquotradicionalrdquo da Independecircncia por outra ldquocriacuteticardquo ndash logo mais aceitaacutevel Assim o aluno eacute encorajado a conceber a histoacuteria por meio de sua livre-interpretaccedilatildeo mas sendo impelido a endossar a de um romance satiacuterico (logo voltaremos a ele)

68Em um livro para o Ensino Fundamental de

1996 lia-se que ldquopara a realizaccedilatildeo do nosso trabalho foi importante a participaccedilatildeo de Mariana Massarani artista que desenhou com alegria e bom humor os acontecimentos estudadosrdquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Do mundo indiacutegena ao periacuteodo regencial no Brasil Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1994 p1 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p79) Essa eacute uma tendecircncia antiga como nos mostra o poema de Murilo Mendes ldquoA pescariardquo (publicado em Histoacuteria do Brasil de 1932) evocativo da tatildeo ceacutelebre quanto historicamente irrelevante disenteria de D Pedro em 7 de setembro de 1822 e transcrito em outro didaacutetico ldquoFoi nas margens

19Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Natildeo haacute duacutevida que a maioria dos livros didaacuteticos de Histoacuteria voltados ao Ensino Meacutedio abre possibilidades de construccedilatildeo de um conhecimento acerca da Independecircncia multifacetado matizado criacutetico e criterioso e deles pode-se extrair muitos exemplos a revelarem diaacutelogos propositi-vos entre saberes acadecircmicos e didaacuteticos da Histoacuteria (afinal os proacuteprios autores e avaliadores dos livros estatildeo quase todos diretamente ligados ao meio acadecircmico) aliaacutes em comparaccedilatildeo com os de Ensino Fundamental de cerca de uma deacutecada atraacutes essas possibilidades soacute cresceram Poreacutem como natildeo eacute objetivo deste estudo analisar tais livros em si mesmos -somente deles extrair elementos que tipifiquem uma cultura de histoacuteria por meio da Independecircncia ndash mais relevantes parecem ser justamente alguns de seus pontos sensiacuteveis nos quais tais livros se fazem menos acadecircmicos e nos quais se traduzem de modo mais significativo componentes mais amplos da sociedade que lhes daacute sentido

Em todos esses livros a Independecircncia eacute invariavelmente vista como parte de um processo mais amplo no qual se incluem outros acontecimen-tos poliacuteticos americanos e europeus de finais do seacuteculo XVIII e comeccedilos do seacuteculo XIX (embora quase nunca sejam feitas conexotildees fundamentais entre eles deficiecircncia notaacutevel sobretudo no tocante agraves independecircncias da Ameacuterica espanhola vistas sempre como supostos contraexemplos da Independecircncia do Brasil62) O episoacutedico se faz presente na menccedilatildeo a vaacuterios temas menores ndash a vinda da Corte a abertura dos Portos o governo de D Joatildeo no Rio de Janeiro a Revoluccedilatildeo de Pernambuco a Revoluccedilatildeo do Porto etc ndash mas sempre em observacircncia a contextos histoacutericos espaciais e temporais mais amplos63 Destaque-se que 80 dos livros fazem referecircncia expliacutecita ao termo ldquoguerra(s) de independecircnciardquo64 o que enseja uma con-cepccedilatildeo tambeacutem multirregional do tema e vaacuterios o aprofundam O mesmo pode ser dito de perfis biograacuteficos presentes mas submetidos a uma loacutegica processual da Histoacuteria

Essa ecircnfase em processos em detrimento parcial de acontecimentos e personagens eacute importante indiacutecio de uma sintonia entre saberes aca-decircmicos e natildeo acadecircmicos65 Contudo deve-se relativizar o peso desse diaacutelogo jaacute no que tange ao tratamento dispensado agraves biografias aleacutem de pouco ou nada inovarem na escolha dos personagens destacados66 alguns livros didaacuteticos trazem fragmentos anedoacuteticos de tais trajetoacuterias hoje em dia pouco ou nada uacuteteis a historiadores profissionais (embora as comilan-ccedilas de D Joatildeo os amantes de D Carlota ou as noitadas de D Pedro natildeo os distingua de outros agentes histoacutericos de sua eacutepoca tampouco satildeo trata-dos como tiacutepicos67) Parece razoaacutevel argumentar que ao menos parcial-mente tal insistecircncia da parte do livro didaacutetico atende ao gosto do leitorconsumidor tornando tais suportes materiais mais agradaacuteveis e sedutores assim sendo constata-se justamente um limite no diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e saberes didaacuteticos expressos em tais livros bem como se anuncia uma tendecircncia de representaccedilatildeo humoriacutestica do passado em uma cultura de histoacuteria como a brasileira muito forte em outros suportes68 Eis um mercado ndash que no Brasil mescla dimensotildees editoriais e midiaacuteticas com outras educacionais e culturais mais amplas ndash impondo seus padrotildees de representaccedilatildeo do passado

Aleacutem de envolverem historiadores profissionais em sua produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo os livros didaacuteticos de Ensino Meacutedio parecem esforccedilar-se cada vez mais em trazer conteuacutedos extraiacutedos de obras acadecircmicas bem como apresentar ao leitor uma pluralidade de posiccedilotildees acerca de um determina-

do IpirangaEm meio a uma pescariaSentindo-se mal D PedroComera demais cuscuzDesaperta a braguilhaE grita roxo de raivaOu me livro desta coacutelicaOu morro logo de uma vezO priacutencipe se aliviouSai no caminho cantandoJaacute me sinto independenteSafa Vou de perto a morteVamos cair no fadinhoPra celebrar o sucessordquo MACEDO Joseacute Rivair Brasil ndash uma histoacuteria em construccedilatildeo Satildeo Paulo Brasil 1996 p166 Cit por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p101

69Tomemos por exemplo esta afirmaccedilatildeo ldquoDe acordo

com alguns historiadores as raiacutezes da independecircncia brasileira estatildeo na segunda metade do seacuteculo XVIII quando se multiplicaram atividades produtivas e comerciais na colocircnia sobretudo na regiatildeo Centro-Sulrdquo (MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Op Cit p113) Nela eacute possiacutevel reconhecer a presenccedila de influente e importante interpretaccedilatildeo acadecircmica acerca da Independecircncia do Brasil (DIAS Maria Odila A interiorizaccedilatildeo da metroacutepole (1808-1853) In MOTA Carlos Guilherme 1822 dimensotildees Satildeo Paulo Perspectiva 1972 p160-184) no entanto natildeo eacute apresentada qualquer contraposiccedilatildeo (se esta posiccedilatildeo eacute da parte de ldquoalguns historiadoresrdquo outra divergente deve ser da parte de outros) Mais adiante lecirc-se que ldquoo fato relevante foi que a transferecircncia da corte para o Brasil provocou uma inversatildeo histoacuterica de modo significativo e irreversiacutevel nas relaccedilotildees entre a metroacutepole portuguesa e a colocircnia brasileirardquo (Idem p114) Ora o que seria uma inversatildeo irreversiacutevel dessas relaccedilotildees Portugal teria se tornado para sempre colocircnia do Brasil

70Nos livros didaacuteticos de Ensino Fundamental

analisados por Purificaccedilatildeo jaacute eram abundantes as transcriccedilotildees de trechos de textos de historiadores profissionais sem que deles resultasse qualquer ensejo de pluralidade de pensamento ou de estiacutemulo agrave interpretaccedilatildeo

71VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA

Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p 103

72O capiacutetulo 14 de uma das obras intitulado

ldquoO processo de independecircncia da Ameacuterica portuguesardquo inicia-se com um excerto do Romanceiro da Inconfidecircncia de Ceciacutelia Meireles tambeacutem indutor a essa interpretaccedilatildeo ldquoAtraveacutes de grossas portas sentem-se luzes acesas e haacute indagaccedilotildees minuciosas dentro das casas fronteiras Que estatildeo fazendo tatildeo tarde Que escrevem conversam pensam Mostram livros proibidos Leem notiacutecias nas GazetasTeratildeo recebido cartasde potecircncias estrangeiras [] Oacute vitoacuterias festas flores das lutas da Independecircncia Liberdade ndash essa palavra que o sonho humano alimenta que natildeo haacute ningueacutem que explique e ningueacutem que natildeo entendardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p 202) Jaacute nas ldquosugestotildees de leitura e consulta para o professorrdquo de outra encontra-se indicaccedilatildeo de uma obra de J J Chiavenato - Inconfidecircncia mineira as vaacuterias faces Satildeo Paulo Global 2000 - com este comentaacuterio ldquoo autor mostra o movimento que buscava a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Adotando uma abordagem que parte da realidade socioeconocircmica do periacuteodo este livro releva diferentes aspectos desse momento singular da histoacuteria brasileirardquo (NOGUEIRA Fausto

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do toacutepico que seja decorrente de debates acadecircmicos No entanto ainda eacute frequente que tais conteuacutedos se inclinem agrave pura formalidade dificilmente explicitando divergecircncias oriundas da academia ou resultando em uma tomada de posiccedilatildeo realmente criacutetica perante a histoacuteria69 Ao usuaacuterio do livro eacute apresentada uma suposta pluralidade de pensamento natildeo como ferramenta de obtenccedilatildeo dessa pluralidade mas como estilo de composiccedilatildeo e padronizaccedilatildeo do material didaacutetico70

Esse tipo de atitude formalista pode ser encontrada tambeacutem em propostas de atividades dirigidas ao aluno como esta

A interpretaccedilatildeo sobre a independecircncia do Brasil provocou e ainda provoca muitas divergecircncias Sob o ponto de vista econocircmico alguns pesquisadores defendem que a separaccedilatildeo ocorreu de fato em 1808 [] Outros com interpretaccedilotildees mais poliacuteticas indicam o 7 de setembro de 1822 embora nenhuma medida formal tenha sido tomada nessa data ndash foi um ato simboacutelico Depois da Guerra do Paraguai jornais republicanos argumentavam que [] D Pedro havia atendido aos apelos de independecircncia dos brasileiros mas os teria traiacutedo quando fechou a Assembleia Constituinte em 1823 Enalteciam entatildeo a Inconfidecircncia Mineira (1789) a Revoluccedilatildeo Pernambucana (1817) e a Confederaccedilatildeo do Equador (1824) movimentos com teor republicano conforme as reais aspiraccedilotildees dos brasileiros

Satildeo vaacuterias interpretaccedilotildees que variam de acordo com a posiccedilatildeo poliacutetica ou momento histoacuterico dos autores Alguns intelectuais consideram ateacute mesmo que o Brasil hoje tem uma independecircncia mais nominal do que real pois continuaria dependente dos paiacuteses mais ricos

Em sua opiniatildeo quando o Brasil se tornou um paiacutes independente71

Aqui novamente eacute apresentada uma divergecircncia de interpretaccedilatildeo e vaacuterias satildeo as possibilidades de resposta agrave pergunta quando o Brasil se tornou um paiacutes independente No entanto todas as posiccedilotildees apresentadas parecem equivaler-se pois tudo depende da ldquoposiccedilatildeo poliacuteticardquo ou ldquodo mo-mento histoacutericordquo da pessoa disposta a respondecirc-la Assim e por induccedilatildeo a Inconfidecircncia Mineira poderia ser uma resposta aceitaacutevel conforme visatildeo ainda presente em alguns livros72 e a despeito do contraacuterio que historia-dores vecircm afirmando nas uacuteltimas deacutecadas Do mesmo modo a atividade pareceria aceitar a ldquonatildeo independecircncia de fatordquo ideia muito presente na cultura de histoacuteria no Brasil73 tatildeo sedutora quanto inconsistente do ponto de vista acadecircmico Para o aluno tratar-se-ia de uma questatildeo de simples opccedilatildeo (poliacutetica) diante da qual a Histoacuteria se destemporaliza

Uma Histoacuteria processual mais do que episoacutedica ou personalista uma Histoacuteria permeada de explicaccedilotildees acadecircmicas ao mesmo tempo uma Histoacuteria com limitaccedilotildees em termos de divergecircncias relativizaccedilotildees e possibilidades em aberto condicionada a suportes materiais repletos de convenccedilotildees a tornarem-nos muito parecidos entre si Talvez seja no tra-tamento dispensado a imagens que os livros didaacuteticos melhor revelam tais convenccedilotildees reforccedilando as limitaccedilotildees de seu diaacutelogo com a Histoacuteria acadecirc-mica bem como acentuando suas caracteriacutesticas de mercadoria Todos os livros aqui considerados satildeo carregados de itens especiacuteficos a quebrarem a continuidade do texto e suas paacuteginas satildeo multicoloridas e povoadas por fi-guras como obras de pintores dos seacuteculos XIX e XX74 Quase nunca poreacutem tais imagens satildeo analisadas como fontes histoacutericas confinadas agrave funccedilatildeo de mera ilustraccedilatildeo frequentemente modificadas em cor e tamanho ateacute mesmo mutiladas ndash sem esclarecimento ndash em prol da diagramaccedilatildeo75 Em tais casos inevitavelmente cria-se uma ideia natildeo de uma histoacuteria sujeita a muacuteltiplas interpretaccedilotildees (contrapondo-se portanto a vaacuterias das atividades

e CAPELLARI Marcos Op Cit p71) Em uma terceira obra logo na abertura de um capiacutetulo intitulado ldquoA independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo lecirc-se que ldquoos dias 21 de abril e 7 de setembro feriados nacionais nos fazem lembrar de dois momentos do processo histoacuterico que levou a independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo (COTRIM Gilberto Op Cit p223) A associaccedilatildeo direta entre Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia era mais comumente feita em livros didaacuteticos de deacutecadas atraacutes Um de Ensino Fundamental caracterizava a Revolta de Beckman a Guerra dos Emboabas a Revolta de Felipe dos Santos a Guerra dos Mascates e as conjuraccedilotildees Mineira e Baiana como movimentos nos quais ldquoos revoltosos se opuseram agrave metroacutepole sonhando e lutando pela autonomia do paiacutesrdquo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Nas trilhas da histoacuteria Ensino Fundamental Belo Horizonte Dimensatildeo 1999 v4) Citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p108

73FIGUEIRA Divalte G Op Cit p191 Nos de

Ensino Fundamental AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 CARMO Socircnia S do COUTO Eliane F B A A consolidaccedilatildeo do capitalismo e o Brasil impeacuterio Satildeo Paulo Atual 1997 (Histoacuteria Passado Presente 3) p105 FERREIRA Joseacute Roberto Histoacuteria Ediccedilatildeo Reformulada Satildeo Paulo FTD 1997 (7ordf seacuterie) p65 ALVES Kaacutetia Correia Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p 128 Citados por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p78 84-85 96 e 111

74Debret Rugendas Moreaux Feacutelix Taunay

Constantino Fontes Polliegravere Parreiras Benedito Calixto Delerive Martins Viana Oscar Pereira da Silva Georgina de Albuquerque e Aldemir Martins entre outros

75Isso jaacute era frequente haacute uma deacutecada com livros

de Ensino Fundamental como por exemplo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p126 e COTRIM Geraldo Op Cit p 112 conforme anaacutelise de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p113 e 123 Haacute que se dizer que livros didaacuteticos natildeo satildeo meio exclusivo para esse esvaziamento do valor documental da iconografia havendo na proacutepria publicaccedilatildeo acadecircmica problema semelhante como demonstra CAVENAGHI Airton Joseacute O atlas do impeacuterio do Brazil e as representaccedilotildees presentes no livro Projeto Histoacuteria v 41 2010 p 383-403

76Constataccedilatildeo semelhante agrave de PURIFICACcedilAtildeO Ana

Teresa da Op Cit para os didaacuteticos de Ensino Fundamental

77NOGUEIRA Fausto e CAPELLARI Marcos Op

Cit p255

78Para um deles ldquoo pintor Pedro Ameacuterico imaginou

a cena ocorrida agraves margens do riacho do Ipirangardquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 para outro um ceacutelebre quadro mostraria uma ldquocena de uma

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sessatildeo das cortes de Lisboa reconstituiacuteda pelo pintor Oscar Pereira da Silvardquo Cfr CARMO Socircnia do COUTO Eliane F B A Op Cit p 73 um terceiro propunha ao aluno a seguinte atividade ldquoobserve cuidadosamente as gravuras de Debret que aparecem no texto Descreva cada uma delas e compare as cenas nelas retratadas com as cenas de nossas ruas de hoje Haacute diferenccedila Em que sentidordquo Cfr GARCIA Leocircnidas F Estudos de histoacuteria sociedades contemporacircneas 2 ed rev Goiacircnia Editora da UFG 1996 Manual do Professor p 111 Todas as informaccedilotildees foram retiradas de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p81 88 e 137

79Conforme bem mostrado por Elias Saliba Cfr

SALIBA Elias Experiecircncias e representaccedilotildees sociais reflexotildees sobre o uso e o consumo das imagens Anais do II Encontro Perspectivas do Ensino de Histoacuteria Satildeo Paulo FEUSP 1996 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p119

80Produzida pela Secretaria de Ensino agrave

Distacircncia do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo em parceria com a TV Escola e a Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco com a companhia teatral Matildeo Molenga Parte 1 disponiacutevel em youtubecomwatchv=Z60eHBJ1xjY 18082 visualizaccedilotildees e 15 comentaacuterios parte 2 disponiacutevel em youtubecomwatchv=2QLkP2NDhMg 30100 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios (parte desse episoacutedio tambeacutem disponiacutevel em youtubecomwatchv=bAPUjP7l-lI 18398 visualizaccedilotildees e 16 comentaacuterios acesso em 13022014

81Como Clemente Pereira Gonccedilalves Ledo Cipriano

Barata Paes de Andrade e frei Caneca O fato de se tratar de uma produccedilatildeo pernambucana contribui para tanto

82Semelhante observaccedilatildeo pode ser feita a respeito

dos doze curtos episoacutedios da seacuterie D Joatildeo no Brasil inspirada em uma narrativa em quadrinhos da chegada da Corte ao Brasil seacuterie de animaccedilatildeo produzida pelo Canal Futura baseada no livro de histoacuteria em quadrinhos D Joatildeo Carioca a corte portuguesa chega ao Brasil (1808 - 1821) escrito pela historiadora Lilia Schwarcz e pelo desenhista Spacca (Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007) Novamente tem-se um material convincente afinado em muitos sentidos com um conhecimento acadecircmico mas que ao recorrer agrave saacutetira tambeacutem evoca estereoacutetipos convencionais como por exemplo os mesmos acima mencionados em referecircncia a priacutencipe e princesa Poder-se-ia atribuir tal convencionalismo dentre outros fatores ao de que a primazia da linguagem visual aqui opera duplamente isto eacute com os quadrinhos e tambeacutem com o programa televisivo criado a partir deles amplificando assim os efeitos decorrentes da saturaccedilatildeo visual da sociedade que daacute origem e significado a esse material Para todos os efeitos a imposiccedilatildeo de tais convenccedilotildees eacute forte ateacute mesmo conforme jaacute visto em materiais menos visuais que este Episoacutedio 01 youtubecomwatchv= 9f5RB1zcD5Eamplist=PLyP1ks9vaqhj2y6MmckU DyuXtWmHgPLe5ampindex=1 331 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio episoacutedio 02 youtubecomwatchv= w-BLqvhYPGkamplist=PL5837763F26AB1B87

oferecidas pelos proacuteprios livros) mas de uma histoacuteria imoacutevel a ser captada de modo instantacircneo uma histoacuteria verdadeira Aleacutem do mais confundem-se os diferentes contextos motivaccedilotildees e condiccedilotildees de produccedilatildeo de tais imagens o que equivale agrave oferta de uma confusatildeo temporal que impossibi-lita a compreensatildeo dessa histoacuteria76

As uacutenicas exceccedilotildees satildeo os ceacutelebres quadros de Moreaux e de Pe-dro Ameacuterico Todos os livros didaacuteticos aqui considerados se esforccedilam por submetecirc-los a uma criacutetica muitas vezes comparativa considerando forma conteuacutedo e contexto mesmo assim eacute possiacutevel encontrar afirmaccedilotildees como a de que Ameacuterico teria tido ldquoo intuito de fazer a representaccedilatildeo desse famoso acontecimento da maneira mais fiel possiacutevelrdquo e que ldquomuitos dos elementos representados pelo pintor satildeo sabidamente falsosrdquo77 Provavel-mente satildeo resquiacutecios de um momento anterior no qual os livros didaacuteticos mostravam-se muito menos cuidadosos ateacute mesmo na utilizaccedilatildeo do quadro de Ameacuterico78 mas tambeacutem marcas atuais de uma sociedade de haacutebitos fortemente visuais cuja saturaccedilatildeo de imagens tende a resultar em posturas pouco criacuteticas em relaccedilatildeo ao que se vecirc bem como em indistinccedilatildeo tempo-ral das mesmas79 Haacute que se lembrar por fim e novamente que os textos desses livros satildeo cheios de descontinuidades como se cada pedaccedilo de cada paacutegina tivesse autonomia prescindindo de certo modo da leitura dos demais Guardaratildeo tais constataccedilotildees alguma relaccedilatildeo com as dificuldades apresentadas pelos entrevistados na sondagem de opiniatildeo de organizar visotildees da Histoacuteria da Independecircncia segundo marcos cronoloacutegicos bem como de distinguir diferenccedilas entre intervalos temporais Eacute bem possiacutevel sobretudo porque ela seraacute endossada pela observaccedilatildeo de outras fontes

5 - A Independecircncia na internet e na tevecircExiste farto e rico material audiovisual disponiacutevel na internet com referecircncias agrave Independecircncia do Brasil e que a exemplo dos livros didaacuteticos represen-tam a convergecircncia de esforccedilos profissionais muacuteltiplos (mais os programas de tevecirc do que os viacutedeos independentes) como pesquisadores roteiristas apresentadores repoacuterteres cenoacutegrafos teacutecnicos variados etc As fontes aqui delimitadas perfazem 107 viacutedeos acessiacuteveis no YouTube e que natildeo obstante sua ampliacutessima diversidade convergem em muitos significados

Observe-se o caso de viacutedeos educativos documentaacuterios e programas de televisatildeo com entrevistas e debates que em comum apresentam objetivos formativos e esforccedilos verdadeiros de incorporaccedilatildeo de conteuacutedos acadecircmicos traduzidos em linguagens didaacuteticas Um caso exemplar eacute a seacuterie 500 anos o Brasil - Impeacuterio na TV que conta uma histoacuteria do Brasil da chegada da Corte ao periacuteodo das regecircncias em formato de telejornal com trama romanceada e teatro de bonecos80 Aqui vecirc-se uma Histoacuteria processual com informa-ccedilotildees corretas e amparadas em datas deslocamentos frequentes dos eixos espaciais de observaccedilatildeo (regional internacional) com menccedilatildeo a persona-gens que extrapolam o tradicional ciacuterculo da Corte portuguesa81 e ecircnfase no caraacuteter violento e conflitivo da formaccedilatildeo do Brasil no seacuteculo XIX Mesmo um material histoacuterico-pedagoacutegico desse quilate evoca por exemplo a falta de atributos esteacuteticos de Carlota Joaquina ou a pusilanimidade de seu marido a revelarem mais uma vez o mercadologicamente eficiente componente bio-graacutefico-anedoacutetico no tratamento da Independecircncia advindo de sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria mais ampla82

Em outros casos o fato de programas de televisatildeo buscarem o auxiacutelio de especialistas na Independecircncia revela uma convenccedilatildeo formal como nos

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16566 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios episoacutedio 03 youtubecomwatchv=QvWSE-sF-w4amplist =PL5837763F26AB1B87 18406 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios episoacutedio 04 youtubecomwatchv= 2N5wBvpgyXEamplist=PL5837763F26AB1B87 12808 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 05 youtubecomwatchv=VaHrSAFBf1Uamplist =PL5837763F26AB1B87 14615 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 06 youtubecomwatchv= 8RrCMbOZTsAamplist=PL5837763F26AB1B87 12649 visualizaccedilotildees 10 comentaacuterios episoacutedio 07 youtubecomwatchv=I4cgWo_GHaQ 601 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 08 youtubecomwatchv=rI71YNrLo7o 12299 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 09 youtubecomwatchv=huv2ngnqUd4 367 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios episoacutedio 10 youtubecomwatchv=F2MaLs_kj-w 10842 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios episoacutedio 11 youtubecomwatchv=8zK3D01dXc0 9388 visualizaccedilotildees 05 comentaacuterios episoacutedio 12 youtubecomwatchv=R76BHD--vB8amplist=PL5837763F26AB1B87 12108 visualizaccedilotildees 9 comentaacuterios acessos em 03042014

83NAPOLITANO Marcos A Histoacuteria depois do

papel In Carla Pinsky (org) Fontes Histoacutericas Satildeo Paulo Contexto 2005 p250-252 Napolitano afirma com base em Umberto Eco que a televisatildeo introduziu uma mudanccedila de ritmo de vida familiar e cotidiana bem como o que se pode chamar de hipertrofia sensorial em detrimento da assimilaccedilatildeo conceitual Destaca ainda que eacute preciso pensar a televisatildeo como uma nova experiecircncia social do tempo histoacuterico na medida em que ela faz coincidir o verdadeiro o imaginaacuterio e o real no ponto indivisiacutevel do presente

84Produzida pela rede de emissoras puacuteblicas

TV Brasil Sobre a Revolta dos Alfaiates parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo 767 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=dj04LJJM8bk 2592 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio Sobre a Batalha do Jenipapo parte 1 youtubecomwatchv=zlgsZcj-V3o 2426 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios acesso em 24032013 parte 2 youtubecomwatchv=rAS3dHAvWPQ 1283 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio Sobre Tiradentes youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 408 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013)

85Marco Morel e Luiacutes Henrique Dias Tavares

86Programa De laacute pra caacute Revolta dos Alfaiates

parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo

87Exceccedilatildeo satildeo as entrevistas realizadas por

Mocircnica Teixeira na UnivespTV que estabelecem comunicaccedilatildeo bastante profiacutecua entre a entrevistadora e os acadecircmicos entrevistados (youtubecomwatchv=syXf3WHQRPM 4450 visualizaccedilotildees 06 comentaacuterios youtubecomwatchv=pZk5pFlboqw 3303 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=5pUDP2KUYCY 4128 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios

livros didaacuteticos e a exemplo destes a intenccedilatildeo de acolher uma multipli-cidade de vozes raramente enseja verdadeira pluralidade de pensamento o que ademais eacute dificultado pela natureza curta sinteacutetica e acelerada dos materiais televisivos Nessas situaccedilotildees constata-se que o historiador fala uma coisa mas o entrevistador e o produtor continuam a ldquoescutarrdquo outra o que muitas vezes reforccedila a percepccedilatildeo de descontinuidade narrativa an-teriormente tambeacutem diagnosticada nos livros didaacuteticos e que na televisatildeo adquire contornos de regra83 Os episoacutedios da seacuterie De laacute para caacute educati-vos didaacuteticos aacutevidos por com conhecimentos acadecircmicos e produzidos por uma rede puacuteblica de televisatildeo sem fins lucrativos apresentam interessante exemplo84 No programa dedicado aos acontecimentos de 1798 na Bahia dois historiadores profissionais85 esclarecem que os revoltosos ldquobahien-sesrdquo almejavam a independecircncia apenas da capitania da Bahia o que tem enormes implicaccedilotildees a destituiacuterem tais acontecimentos de qualquer atribu-to supostamente preparatoacuterio da Independecircncia do Brasil (situaccedilatildeo muito semelhante conforme vimos agrave da Inconfidecircncia Mineira) natildeo obstante na abertura do programa seu apresentador declara

A luta pela independecircncia do Brasil foi escrita nas paacuteginas memoraacuteveis da nossa histoacuteria com o sangue de um punhado de brasileiros O mais celebrado foi Tiradentes Mas sete anos depois do martiacuterio de Tiradentes quatro brasileiros pretos pobres pelos mesmos ideais foram enforcados e sentenciados em Salvador86

Em outros momentos o apresentador apesar de ouvir de forma soliacutecita e atenta ao que o entrevistado tem a dizer acaba por negar com sua proacutepria fala parte do conteuacutedo receacutem-ouvido mas sem demonstrar ser essa atitude premeditada ou consciente Afinal eacute difiacutecil desvencilhar-se daquilo que jaacute se ldquosaberdquo daquilo que adveacutem de um ambiente que o tempo todo nos ldquoensinardquo Histoacuteria sem necessariamente disso nos darmos conta87

A incapacidade de assimilaccedilatildeo reciacuteproca de ideias acerca da histoacute-ria entre agentes sociais diversos pode revelar-se de muitos modos Um dos programas da seacuterie Caminhos da Reportagem intitulado Caminhos da Independecircncia o grito nas ruas produzido com as mesmas caracteriacutesticas do anterior aborda a Independecircncia focada em seus panfletos poliacuteticos a partir da pesquisa recente de trecircs historiadores profissionais88 No entan-to e a despeito natildeo soacute de dar ampla voz a eles mas tambeacutem de abordar conteuacutedos didaticamente inovadores a equipe de entrevista que foi agraves ruas natildeo estabeleceu qualquer mediaccedilatildeo entre histoacuterias acadecircmicas e natildeo acadecircmicas pressupondo que todas as pessoas ocupam uma mesma posiccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria Por isso perguntas incompreensiacuteveis89 resultam apenas em situaccedilotildees vexatoacuterias impeditivas da construccedilatildeo de conhecimento sobre o tema

A abordagem de pessoas nas ruas recurso frequentemente utiliza-do por programas televisivos revela dados importantes acerca de como os brasileiros veem a Independecircncia muitas vezes mais por aquilo que eacute perguntado do que por aquilo que eacute respondido90 O programa + Estilo de 07 de setembro de 2011 produzido pela TV Campo Grande com conteuacutedo de variedades destinado a telespectadores de meio de tarde foi agraves ruas (provavelmente de Campo Grande Mato Grosso do Sul) perguntar se as pessoas saberiam dizer o que se comemorava naquele dia Primeiro res-ponde uma jovem com um bebecirc no colo

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youtubecomwatchv=0ZVgCwkt1ms 1384 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1016 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1227 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=ANSHAFLau04 1175 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios) Acessos em 21042014

88Joseacute Murilo de Carvalho Luacutecia Pereira das Neves

e Marcello Basile

89A apresentadora ldquoVocecircs sabem o que significa

corcundardquo Um professor de coleacutegio ldquoDeve ser alguma coisa que estaacute surgindo aiacute no mundo um pouco mais ciberneacutetico porque eu nem na faculdade ouvi falar dos corcundasrdquo Marcos Tomazzeti produtor multimiacutedia ldquoNa minha cabeccedila vem algo de monarquia de rei algo meio poliacuteticordquo Simone Granda bancaacuteria ldquoDicionaacuterio de corcundice Natildeo seirdquo Marilu Guimaratildees dona de casa ldquoPuxa tem tanta coisa importante pra ter dicionaacuterio vai ter justo do corcundistardquo Caminhos da Independecircncia youtubecomwatchv=37XH5UEpjlI acesso em 24032013

90Em perspectiva oposta mas complementar agrave da

sondagem de opiniatildeo aqui utilizada

91E que portanto muito provavelmente ainda natildeo

tinha tido contato formal (escolar) com o tema

92O programa prossegue entatildeo com uma entrevista

com o professor Ian Rari que trata de uma Histoacuteria da Independecircncia processual natildeo centrada em uma uacutenica data ou fato criacutetica etc Mais um momento onde as vaacuterias vozes contempladas pelo programa natildeo dialogam entre si (youtubecomwatchv=xv1LOlwUfFQ 289 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio) Outro exemplo significativo eacute dado pelo programa Conexatildeo Jovem exibido em 06 de setembro de 2012 no qual dois entrevistados ndash Prof Bira professor de Histoacuteria e Marcos Eduardo socioacutelogo ndash utilizam com competecircncia o pouco tempo a eles destinado discorrendo de modo criacutetico sobre a Independecircncia e em linguagem adequada ao puacuteblico jovem ao qual o programa se destina (produccedilatildeo da TV Novo Tempo adventista parte 1 youtubecomwatchv=1IvYOYtju9sgt 74 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=Ofv7QWOJpHo 47 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013) Logo o programa traz uma abordagem feita na rua na qual a entrevistadora pergunta a uma jovem ldquoQuem falou lsquoindependecircncia ou mortersquo agraves margens do riacho do Ipirangardquo Diante da correta resposta a entrevistadora tenta induzir um erro ldquo15 de novembro ou 7 de setembrordquo Aliaacutes a expectativa do programa parece revelada pela entrevistadora logo na primeira pergunta feita a um dos convidados ldquoseraacute que os jovens se interessam pela histoacuteria de seu paiacutesrdquo E embora o material recolhido pelo proacuteprio programa permita resposta afirmativa manteacutem-se a postura negativa preacute-concebida

93Daiacute a relevacircncia de um viacutedeo com fotografias e

um aacuteudio (youtubecomwatchv=UdQ_aAAl3DE)

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoE isso em que ano que foi que aconteceurdquoResposta ldquo1822rdquo

Em seguida outro jovem que provavelmente jaacute tinha respondido a outra pergunta

Pergunta ldquoQuem foi o imperador vocecirc lembrardquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoAcertou Canta pra gente um trecho do hino da independecircnciardquoResposta ldquoAgora natildeo lembrordquo

Agora o programa aborda uma menina de cerca de dez anos clara-mente intimada91

Pergunta Por que eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoNatildeo seirdquoPergunta ldquoNatildeo lembra Vou dar uma dica um fato histoacuterico muito importante para o BrasilrdquoResposta (negativa com a cabeccedila)

Em quarto lugar outra jovem que procura se afastar da cacircmera

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta (ainda tentando se esquivar sorrindo) ldquoNatildeordquoPergunta ldquoNatildeo saberdquoResposta ldquoAh A Independecircncia Eu natildeo prestei atenccedilatildeordquoPergunta Que ano aconteceu a Independecircncia vocecirc lembrardquoResposta ldquoNatildeordquoPergunta ldquoE quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoTambeacutem natildeo lembrordquo

Por fim a entrevista com um senhor de meia-idade comeccedila jaacute com uma resposta

Resposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoQue ano aconteceu issordquoResposta ldquo1888rdquoPergunta ldquo1822 Quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoCerto E onde foi que aconteceu tudo issordquoResposta ldquoSatildeo PaulordquoPergunta ldquoOK [breve silecircncio] Canta um trechinho para noacutes do hino da IndependecircnciardquoResposta ldquoJaacute podeis da paacutetria matildeerdquo [sic -prossegue cantando corretamente]

Em seguida o programa corta para uma sala de aula onde a despeito dos ldquoacertosrdquo obtidos nas ruas a entrevistadora afirma

Diante da dificuldade que noacutes encontramos no centro da cidade para saber informaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil eu vim parar na sala de aula Vai ser aqui que a gente vai descobrir a histoacuteria do paiacutes92

A ideia a priori de que o brasileiro natildeo conhece e natildeo se interessa pela histoacuteria subsidia este e muitos outros programas Aqui o dado mais relevante parece estar precisamente nessa arraigada crenccedila no desinteres-

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da entatildeo prefeita de Ribeiratildeo Preto (Satildeo Paulo) Darcy Vera que afirma durante um desfile de 7 de Setembro dentre vaacuterios desvarios que ldquoTiradentes gritou lsquoIndependecircncia ou mortersquordquo Com 169919 acessos e 149 comentaacuterios (em geral criacuteticos bem humorados e depreciativos) ateacute 20082014 condensa a possibilidade de amplificaccedilatildeo do estigma do natildeo domiacutenio de referecircncias convencionais agrave Independecircncia mas sem fomentar nenhum conhecimento da mesma

94Novamente surge a questatildeo natildeo teratildeo as

renovaccedilotildees curriculares promovidas no ensino de Histoacuteria (no Brasil e alhures) das uacuteltimas deacutecadas exagerado nessa incompatibilidade Teratildeo elas sido capazes de mensurar seus efeitos deleteacuterios diante de sociedades jaacute bastante refrataacuterias a uma histoacuteria cronoloacutegica

95ldquoPouco importa que sua figura tenha sido

mitificada pela propaganda republicana O que importa eacute que ele foi um heroacutei Ele deu sua vida pela paacutetria e pela liberdaderdquo (Programa De laacute pra caacute youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032013) Essa exaltaccedilatildeo da figura de Tiradentes associada agrave Independecircncia conduz o discurso da propaganda eleitoral de um candidato agrave prefeitura de Ouro Preto em 2012 (youtubecomwatchv=eGefgLoRhec 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032014) Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo no dia 09 de setembro de 2013 apoacutes se autocaracterizar como realizador de uma ldquohistoacuteria de carne e ossordquo em contraposiccedilatildeo a produccedilotildees ldquocontaminadas pela anaacutelise marxistardquo que retirariam os personagens da Histoacuteria o jornalista Laurentino Gomes afirma ldquoNo 1822 faccedilo uma comparaccedilatildeo e digo que o uacutenico problema do Joseacute Bonifaacutecio foi nascer no Brasil pois se ele tivesse nascido nos Estados Unidos teria sido maior que o Thomas Jefferson Porque aparentemente ele era mais preparado mais luacutecido que o Thomas Jeffersonrdquo (parte 1 youtubecomwatchv=uGibbLxsZK0 4501 visualizaccedilotildees e 5 comentaacuterios parte 2 youtubecomwatchv=2LQcEcb5kLU 2302 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios acesso em 26032014 Logo voltaremos agrave obra e agraves ideias de L Gomes

96Um exemplo adveacutem do viacutedeo ldquoA verdadeira

independecircncia do Brasilrdquo em que um pastor evangeacutelico em meio a uma cerimocircnia religiosa ldquodesconstroacuteirdquo o quadro de Pedro Ameacuterico acusando-o de pouco verossiacutemil e aponta os desvios morais de D Pedro I de modo a inviabilizaacute-lo como figura histoacuterica digna de memoacuteria (youtubecomwatchv=RsKQr6bgzLA 178 visualizaccedilotildees e 2 comentaacuterios acesso em 24032014) A suposta irrelevacircncia dos personagens envolvidos no processo da independecircncia eacute notaacutevel na fala de um professor de Ensino Meacutedio (youtubecomwatchv=gvWVF9j2KEU 597 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) e de um apresentador de temas religiosos que relativizam a importacircncia do tema ao afirmarem a atual ldquodependecircncia econocircmicardquo do Brasil (youtubecomwatchv=EXyUBY7StF4 383 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Tambeacutem retornaremos a esse tema

sedesconhecimento do brasileiro pela histoacuteria bem como em um de seus efeitos mais contundentes a crenccedila de que eacute possiacutevel reverter tal situaccedilatildeo pela simples mobilizaccedilatildeo formal de datas nomes e eventos Contudo se a Independecircncia se converte em uma catalizadora de referecircncias cronoloacute-gicas ou nominais isso natildeo leva necessariamente a uma historicizaccedilatildeo do tema pelo contraacuterio a mobilizaccedilatildeo de tais referecircncias em termos como os acima mencionados (a data ou o nome por si soacutes) pode resultar no apro-fundamento da tendecircncia agrave confusatildeo temporal jaacute aqui apontada93

Nos meios intelectuais a discussatildeo em torno das formas tempo-rais de vivecircncia coletiva naquilo que se pode chamar ndash recorrendo-se a uma categoria uacutetil ndash de modernidade natildeo eacute nova tampouco estaacute em vias de esgotamento A dificuldade de organizaccedilatildeo do mundo social segundo referecircncias cronoloacutegicas natildeo seraacute em absoluto distintiva de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil embora o contraacuterio deva ser dito em relaccedilatildeo agraves formas assumidas por tais dificuldades (como as noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia) Percebe-se entatildeo o peso do estigma da dificuldade em manejar datas nomes e fatos suposta prova de um desin-teresseignoracircncia que poderia ser combatido com um retorno a velhas formas de se fazer Histoacuteria e nas quais tais elementos eram considera-dos com a essecircncia da compreensatildeo histoacuterica Natildeo parece que as coisas devam propriamente se passar segundo essa representaccedilatildeo embora um dos confrontos existentes na cultura de histoacuteria no Brasil seja sem duacutevida a polarizaccedilatildeo entre a valorizaccedilatildeo da Independecircncia (= de suas datas nomes eventos siacutembolos e supostos valores etc) e a desvalorizaccedilatildeo da mesma (=seu caraacuteter elitista e negociador a diminuiccedilatildeo da histoacuteria do Brasil em comparaccedilatildeo com a de outros paiacuteses a comicidade dessa histoacuteria etc) Eacute plausiacutevel conceber que esta segunda posiccedilatildeo encontre um aliado na con-cepccedilatildeo de incompatibilidade entre uma histoacuteria amparada por referecircncias cronoloacutegicas e ao mesmo tempo em processos estruturas e temas trans-versais do gosto inclusive de muitos acadecircmicos e educadores94

Os exemplos de materiais audiovisuais a traduzirem veicularem e fomentarem esse confronto entre valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo da Inde-pendecircncia satildeo muitos Aleacutem dos jaacute tratados ateacute aqui pode-se mencionar viacutedeos contendo propaganda de instituiccedilotildees puacuteblicas civis e militares de partidos poliacuteticos de grupos maccedilocircnicos de igrejas e de empresas variadas bem como produccedilotildees independentes Neles eacute possiacutevel encontrar desde a exaltaccedilatildeo das referecircncias mais convencionais agrave Independecircncia como a seus personagens (incluindo seu suposto maacutertir Tiradentes)95 ateacute a afirma-ccedilatildeo de sua total irrelevacircncia96 isso costuma ocorrer sem muitos matizes obedecendo a uma loacutegica dicotocircmica plasmada em linguagens simples com descontinuidades discursivas e imageacuteticas e num ritmo de exposiccedilatildeo acelerado Em suma tratam da Independecircncia segundo padrotildees parcial-mente compartilhados tambeacutem por outras fontes ateacute aqui analisadas

Todas essas fontes com suas noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia satildeo sintomaacuteticas de estados de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema bem como potenciais formadores de opiniatildeo dos mesmos Sua capacidade de criaccedilatildeo de conhecimento no entanto se mostra muito limi-tada Eacute bem verdade que esta eacute por vocaccedilatildeo uma tarefa confiada a saberes acadecircmicos ndash jaacute que no Brasil a quase totalidade da pesquisa em Histoacuteria estaacute entregue agraves universidades salvo a de interesse corporativo ndash de modo que natildeo seria de esperar inovaccedilatildeo em suportes tatildeo variados e socialmen-te diversificados quanto os ateacute aqui analisados Mas parece haver aiacute certo

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ciacuterculo vicioso a envolver tambeacutem parte da academia Basta observar que a ideia da ldquonatildeo Independecircncia de fatordquo tatildeo em voga entre tantos historiadores durante tanto tempo reverbera com forccedila na sociedade em geral97 e ainda goza de prestiacutegio ateacute mesmo entre alguns acadecircmicos que bebem-na da sociedade e apoacutes modificaacute-la parcialmente devolvem-na aos espaccedilos de di-vulgaccedilatildeo98 Essa versatildeo da Histoacuteria eacute capaz de transpor fronteiras temporais de atualizar-se em diferentes contextos e ateacute mesmo de superar abissais diferenccedilas poliacuteticas ela estaacute representada por exemplo e de modo quase idecircntico na propaganda poliacutetica de um partido trotskista e na pregaccedilatildeo nacionalista-direitista de um polecircmico professor de histoacuteria99

Por fim tome-se o caso de trecircs produccedilotildees da Rede Globo de Televi-satildeo voltadas ao puacuteblico em geral com consideraacuteveis aportes financeiros e complexa produccedilatildeo a seacuterie documental A Corte no Brasil para exibiccedilatildeo em tevecirc fechada100 e as seacuteries humoriacutesticas O Quinto dos Infernos101 e Eacute muita Histoacuteria Dia de Fuacuteria102 veiculadas amplamente em tevecirc aberta No pri-meiro caso siacutetios histoacutericos visitados pelas apresentadoras uma narrativa soacutebria e informativa de fatos e processos grande quantidade de entrevistas com historiadores ecircnfase em diferentes espaccedilos regionais e internacio-nais e tratamento do tema em muacuteltiplas dimensotildees (poliacutetica econocircmica cultural) No segundo caso uma narrativa romanceada teatral e cocircmica fortemente despolitizada e livremente baseada em trecircs livros de igual teor (um deles publicado haacute quase um seacuteculo)103 praticamente centrada no Rio de Janeiro (um pouco tambeacutem em Portugal muito menos alhures) e nos membros da famiacutelia real portuguesa cuja vida pessoal eacute estruturada em torno de seus haacutebitos excecircntricos (principalmente os sexuais) e vez ou outra de passageiros dramas pessoais104

Finalmente no terceiro caso uma encenaccedilatildeo tambeacutem cocircmica pro-tagonizada por um escritor-autor-ator-palhaccedilo com grande liberdade de criaccedilatildeo mas amparada em informaccedilotildees convenccedilotildees e mitos a oferecer uma versatildeo do Sete de Setembro segundo o estado psico-fisioloacutegico de D Pedro

Eis um exemplo de uma das modalidades assumidas pela disputa em torno de uma Independecircncia valorizada e outra depreciada Pareceria justificaacutevel opor a tal diagnoacutestico a constataccedilatildeo de se tratarem de obras televisivas de distinto teor o que desobriga a segunda e a terceira de qual-quer compromisso com a verdade No entanto interessam-nos mais seus significados e efeitos do que intenccedilotildees Note-se que a primeira documen-tal eacute de circulaccedilatildeo mais restrita que a segunda e a terceira voltadas para grande puacuteblico por isso seus efeitos nesse jogo de criaccedilatildeorecriaccedilatildeo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da Independecircncia satildeo natildeo apenas assimeacutetricos mas tambeacutem concorrentes105 Os esforccedilos de um pro-grama por posicionar o espectador diante de uma histoacuteria processual de encadeamentos temporais e de grupos e conflitos sociais satildeo naturalmente obstados pelos dos outros dois a oferecer uma histoacuteria repleta de anacro-nismos anedoacutetica e biograacutefica em perfeita sintonia com demandas mais amplas de uma sociedade ndash e de alguns de seus componentes mercadoloacutegi-cos jaacute aqui mencionados ndash na qual a vida privada eacute mais valorizada do que a puacuteblica106 Nesse confronto embora as trecircs convivam na mesma cultura de histoacuteria uma Independecircncia tende a prevalecer sobre a outra107

6 ndash A Independecircncia no cinemaEm relaccedilatildeo a livros didaacuteticos programas de televisatildeo e outros materiais audiovisuais as fontes cinematograacuteficas aqui consideradas naturalmente

97Exemplo encontra-se no viacutedeo ldquoAway Nilzer ndash

Independecircncia do Brasilrdquo com grande nuacutemero de visualizaccedilotildees (130677) e de comentaacuterios (1016) que minimiza e ridiculariza natildeo apenas o processo da independecircncia como quaisquer fatos histoacutericos brasileiros de maneira geral (youtubecomwatchv=Vd_kloNeQV0) O Brasil atual como viacutetima de uma exploraccedilatildeo econocircmica mais intensa do que nos tempos coloniais e portanto natildeo-independente aparece na fala de outro professor (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2806 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) e nos comentaacuterios de um boneco marionete de um programa infantil (youtubecomwatchv=9mh3Tu6c4_w 173 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032014)

98Exemplo desse processo de ldquodevoluccedilatildeordquo pode ser

comprovado no viacutedeo ldquoIndependecircncia ou morterdquo (youtubecomwatchv=QUvnz1no1m8 934 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Outros dois exemplos pertinentes satildeo a insistecircncia nas ideias de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil e que a Independecircncia foi uma luta entre brasileiros e portugueses

99Em entrevista a uma rede local de televisatildeo

ouvimos do professor de histoacuteria do Ensino Meacutedio Wander Pugliesi ldquoSe noacutes formos trabalhar com sinceridade o Brasil ainda natildeo eacute independente Na verdade somos muito mais explorados do que quando eacuteramos colocircnia de Portugalrdquo (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2815 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) A mesma relativizaccedilatildeo do processo de independecircncia aparece na fala do candidato agrave presidecircncia em 2010 pelo PSTU Zeacute Maria ldquohoje infelizmente natildeo podemos comemorar uma verdadeira independecircncia do paiacutes Eacute preciso dizer a verdade as multinacionais controlam a economia brasileira As decisotildees fundamentais satildeo tomadas por elas fora do paiacutesrdquo (youtubecomwatchv=ht9Yt0PlGnU 1803 visualizaccedilotildees um comentaacuterio) Acessos em 26032013

100Direccedilatildeo de Carlos Henrique Schroder 2008

Produccedilatildeo de 16 episoacutedios de cerca de 20 minutos cada para o canal da TV fechada GloboNews A seacuterie foi comercializada em DVD e pode ser vista tambeacutem no canal Globosat no Youtube (youtubecomwatchfeature= player_detailpageampv= OUX-zSyaMIc e viacutedeos relacionados Acesso em 27032014)

101Direccedilatildeo de Wolf Maya e Alexandre Avancini e

criaccedilatildeo de Carlos Lombardi 2002 Produccedilatildeo de 48 episoacutedios com cerca de 40 minutos cada para o canal da TV aberta Rede Globo de Televisatildeo A minisseacuterie tambeacutem foi comercializada em DVD e vem sendo (desde janeiro de 2014) reprisada no Canal Viva (rede fechada de televisatildeo filiada Globosat) uma reprise anterior ocorreu de agosto a novembro de 2011 sempre por volta das 23h

102Direccedilatildeo de Joatildeo Carrascosa e Pedro Bial 2007

Produccedilatildeo de 9 capiacutetulos de cerca de 15 minutos

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apresentam especificidades Tendem a diversificar (eventualmente ampliar) o rol de profissionais envolvidos em sua produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo bem como a tratar conteuacutedos em um tempo mais lento criando uma sensaccedilatildeo de homogeneidade de significados reforccedilada pela aderecircncia de tais conteuacutedos a uma trama central Tal homogeneidade por seu turno eacute relativizada por uma liberdade de criaccedilatildeo que dificilmente encontra paralelo em outros dos materiais aqui considerados ndash com a possiacutevel exceccedilatildeo da minisseacuterie O Quinto dos Infernos No entanto quando a comparaccedilatildeo eacute feita com os li-vros didaacuteticos os conteuacutedos relativos agrave Independecircncia no cinema tendem a ser menos numerosos mais superficiais e efecircmeros justamente por serem menos assumidamente informativos do que os dos livros embora isso possa encontrar alguma compensaccedilatildeo em uma linguagem visual de forte apelo emotivo Para todos os efeitos como aponta um estudioso da mateacuteria os filmes de temaacutetica histoacuterica carregam sempre certa ambiguidade ocupam uma espeacutecie de ldquoentrelugarrdquo com forccedila para criar ldquoverdadesrdquo socialmente aceitas108 Nos cinco filmes aqui considerados109 as ldquoverdadesrdquo sobre a Independecircncia tendem a replicar linhas de forccedila jaacute conhecidas mesclando temporalidades correspondentes tanto aos momentos em que foram pro-duzidos quanto aos momentos posteriores em que foram sendo exibidos110

Independecircncia ou Morte produccedilatildeo a serviccedilo das comemoraccedilotildees oficiais do sesquicentenaacuterio da Independecircncia levadas a cabo pelo go-verno ditatorial brasileiro em 1972 mostra uma narrativa de forte teor didaacutetico-pedagoacutegico sem grandes pretensotildees artiacutesticas expliacutecitas111 com diaacutelogos e situaccedilotildees muitas vezes retirados de obras sobre a Independecircncia e tratados de forma literal Sua finalidade eacute clara ldquoensinarrdquo aos especta-dores uma histoacuteria e uma memoacuteria coletivas homogecircneas aplainadas de pluralidades ou de desavenccedilas Uma histoacuteria supostamente indiscutiacutevel porque verdadeira posta a serviccedilo dos tambeacutem supostos interesses mais elevados da naccedilatildeo brasileira (por isso nela a vida privada dos persona-gens eacute toda submetida agrave sua funccedilatildeo poliacutetica inclusive no caso da relaccedilatildeo afetiva entre um D Pedro de boa aparecircncia querido do povo e mulherengo e uma ambiciosa romacircntica e sensiacutevel Domitila112) Uma espeacutecie de cartilha oficial da Independecircncia em imagens na qual se faz presente ateacute mesmo uma recomposiccedilatildeo cecircnica do quadro de Pedro Ameacuterico

Eacute interessante observar como Os Inconfidentes produzido no mesmo ano de 1972 mesmo sendo um filme amparado em abundantes liberdades e experimentos esteacuteticos cheio de ambiguidades propositais e contra-pondo-se ao oficialismo histoacuterico tatildeo em voga agrave eacutepoca por meio de uma metaacutefora na qual os contestadores agrave ditadura brasileira se convertem em sediciosos das Minas Gerais do seacuteculo XVIII natildeo se configura como mate-rial singular e discrepante de Independecircncia ou Morte em pelo menos trecircs sentidos primeiro porque em vaacuterios momentos associa a Inconfidecircncia Mi-neira com a Independecircncia do Brasil a exemplo do que Independecircncia ou Morte prega jaacute em seu primeiro texto didaacutetico113 Segundo porque tambeacutem oficializa eventos convencionalmente tidos por fundacionais da histoacuteria do Brasil (soacute que natildeo os de 1808-1822 mas os de 1788-1789) Terceiro reforccedila a prevalecircncia de indiviacuteduos sobre coletividades da imagem de um heroacutei central da trama e de uma oposiccedilatildeo de interesses maniqueiacutesta que certamente poderia se aplicar com mais rigor ao contexto em que foi feito o filme do que agravequele ao qual formalmente se refere Assim para todos os efeitos substratos de uma concepccedilatildeo de histoacuteria satildeo em ambos convergentes Em um ambiente social multifacetado em termos de no-

cada dentro do programa dominical Fantaacutestico da Rede Globo de Televisatildeo A seacuterie foi baseada no livro Brasil uma Histoacuteria de Eduardo Bueno jornalista que tambeacutem atua na seacuterie (youtubecomwatchv=3LzGKt9Pd0M acesso em 27032014)

103SETUacuteBAL Paulo As Maluquices do Imperador

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1927 CALADO Ivanir A Imperatriz no Fim do Mundo memoacuterias duacutebias de Ameacutelia de Leichtenberg Rio de Janeiro Rio Fundo Editora 1992 e TORERO Joseacute Roberto Galantes memoacuterias e admiraacuteveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes o Chalaccedila Satildeo Paulo Companhia das Letras 1994

104A trama e a narrativa do Quinto dos Infernos

recusam explicitamente a inserccedilatildeo de quaisquer componentes que natildeo os da ordem privada de seus convencionais personagens assim questotildees poliacuteticas satildeo sempre menores do que o apetite sexual de Carlota Joaquina as perversotildees de D Miguel ou a fogosidade de Domitila a economia soacute surge em pontuais pretextos cocircmicos enquanto a escravidatildeo eacute referida exclusivamente por meio de alegres e libidinosas criadas (negras) permanentemente dispostas a servirem aos desejos do heroacutei da histoacuteria D Pedro

105A anaacutelise poderia se completar com a minisseacuterie

A Marquesa de Santos dirigida por Ary Coslov e exibida pela extinta Rede Manchete de televisatildeo em 1984 agrave qual infelizmente natildeo se obteve acesso satisfatoacuterio

106Tal predileccedilatildeo pode ser entendida como mais

um fator caracteriacutestico de um momento em que a articulaccedilatildeo entre aquilo que Guy Debord chamaria de ldquosociedade do espetaacuteculordquo e Adorno e Horkheimer (dentre muitos outros) de ldquoinduacutestria culturalrdquo torna sintomaacutetico a saliecircncia do indiviacuteduo e o esvaziamento da esfera puacuteblica

107A comprovaccedilatildeo do encontro concorrente entre

dois caminhos vem do depoimento de alguns dos proacuteprios envolvidos com a produccedilatildeo do Quinto dos Infernos como o diretor Carlos Lombardi que a ele se refere como ldquoum painel dos personagens importantes do periacuteodordquo Para o produtor Wolf Maia seu objetivo foi ldquorecontar com humor uma velha histoacuteriardquo O ator Humberto Martins viu a seacuterie ldquocontar um pedaccedilo da nossa histoacuteria da histoacuteria do Brasil do nosso povo das nossas raiacutezes pateacutetica e engraccedilada tal como ela se mostra dentro desse produto poreacutem claro mesclada com uma boa dose de humorrdquo enquanto o protagonista Marcos Pasquim afirmou que ldquo[ao fazecirc-la] aprendi muita coisa que natildeo aprendi na escola eu vim aprender agora fazendo a pesquisa para fazer esse personagemrdquo Finalmente para a tambeacutem atriz Bruna Lombardi ldquoO lsquoQuintorsquo contou assim a histoacuteria que a Histoacuteria natildeo conta sabe como eacute as fraquezas da histoacuteriardquo Em ldquoDia de Fuacuteriardquo Pedro Bial e Eduardo Bueno reforccedilam seu discurso satiacuterico por meio de um verniz de verdade trazido pela citaccedilatildeo de documentos oficiais como o relato do Padre Belchior sobre o grito do Ipiranga Aleacutem disso seu discurso eacute elaborado sob o nome de tese logo bem se vecirc como seus propaladores (BialBueno) manipulam siacutembolos

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ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

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Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

29Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

30Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

31Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

32Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

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por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

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muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

36Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 3: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

7Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

O caso brasileiro oferece subsiacutedio interessante a essa diferenciaccedilatildeo de abrangecircncia entre consciecircncia histoacuterica e cultura de histoacuteria Natildeo eacute assiduamente frequente em nossa sociedade uma autoimagem dos brasi-leiros como ldquopovo sem memoacuteriardquo em um jogo de identidades e alteridades que ao mesmo tempo em que distingue aqueles indiviacuteduos que suposta-mente valorizam o passado e os saberes em torno dele acaba por incluiacute-los em uma mesma coletividade a qual se acusa de estar enferma da doenccedila do esquecimento e da ignoracircncia7 Para efeitos de caracterizaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil essa autoimagem eacute incapaz de modelar teo-ricamente uma anaacutelise Afinal se houver algo nesses ldquobrasileirosrdquo (quais quantos quando onde como por quecirc) que realmente permita caracte-rizaacute-los como pouco ou nada afeitos ao conhecimento do passado de sua sociedade sua devida compreensatildeo deve ir aleacutem da noccedilatildeo de consciecircncia histoacuterica Como veremos adiante esse eacute um estereoacutetipo (mais um) em tor-no do Brasil e dos brasileiros e que vecirc sua essencializaccedilatildeo de um suposto caraacuteter nacional cair por terra diante da consideraccedilatildeo de que quaisquer atitudes e valores sociais ndash mesmo os negativos ndash em relaccedilatildeo ao passado satildeo fenocircmenos em si e que seria praticamente impossiacutevel nos defrontar-mos com sujeitos que no Brasil ignorassem ou desprezassem o conheci-mento do passado em termos absolutos Todo brasileiro pensa algo sobre a histoacuteria mesmo que natildeo a valorize ou com ela natildeo se importe Mesmo assim os estereoacutetipos nacionais podem ser considerados dados de uma realidade de uma autoimagem dos brasileiros8 Trataacute-los como tal sugere entatildeo a utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de cultura de histoacuteria

Jorn Ruumlsen concebe a expressatildeo cultura histoacuterica em referecircncia a algo distinto as formas pelas quais uma sociedade racionaliza pressupos-tos (tambeacutem eles racionais) advindos do pensamento histoacuterico ou seja uma interaccedilatildeo entre pensamento histoacuterico e coletividades humanas na qual estas se aproveitam em termos praacuteticos do que aquele eacute capaz de sistematizar9 Nas paacuteginas que se seguem em nenhum momento preten-deu-se expropriar a expressatildeo de Ruumlsen tampouco revisar sua proposta analiacutetica (eacute possiacutevel mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diaacutelogo ou ateacute de convergecircncias aqui natildeo devidamente explo-radas10) Ocorre que o pensamento eacute cativo da linguagem e natildeo se dispotildee de melhor expressatildeo a indicar o que aqui se pretende mostrar que uma a ela semelhante cultura de histoacuteria Para efeitos de elucidaccedilatildeo do problema poderiacuteamos transliterar a proposta de Ruumlsen em termos de uma cultura de pensamento histoacuterico e com isso evocar as elaboraccedilotildees de Pierre Nora a ela anteriores em torno de uma cultura historiograacutefica isto eacute a consci-ecircncia coletiva que uma sociedade tem (a francesa talvez a brasileira soacute muito residualmente) natildeo apenas de uma histoacuteria compartilhada mas tam-beacutem dos meios que ela ndasha sociedade -dispotildee para reelaborar tal histoacuteria por dispositivos de memoacuteria11 Nora se interessa pelas condiccedilotildees de reali-zaccedilatildeo coletiva de uma criacutetica da presenccedila da histoacuteria e da memoacuteria que para Rusen natildeo deixaria de indicar um potencial racionalizador advindo do proacuteprio pensamento histoacuterico Tal convergecircncia reforccedila aspectos centrais da cultura de histoacuteria aqui tratada mas natildeo a esgota plenamente sobre-tudo ndash repitamos -no tocante aos seus silecircncios e interdiccedilotildees que tambeacutem devem ser levados em conta

Cultura de histoacuteria aqui natildeo se confunde com costume ao menos tal como este eacute pensado por E P Thompson fenocircmeno advindo da praacutexis e situado na interface desta com a lei portador de expectativas coletivas e

7Nos anos de 1950 Joseacute Honoacuterio Rodrigues

concebia uma nociva crise na sociedade brasileira relativa a um ldquodecliacutenio de consciecircncia histoacutericardquo na qual o passado se confinaria a cultos nostaacutelgicos e diante da qual o historiador ndash ele em particular ndash deveria elaborar estrateacutegias de atuaccedilatildeo RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A pesquisa histoacuterica no Brasil sua evoluccedilatildeo e problemas atuais Rio de Janeiro Imprensa NacionalINL 1952 Citado em FREIXO Andreacute de Lemos Ousadia e redenccedilatildeo o Instituto de Pesquisa Histoacuterica de Joseacute Honoacuterio Rodrigues Histoacuteria da historiografia n11 abril de 2013 p155

8Nas palavras de um historiador dedicado ao

estudo da identidade nacional portuguesa ldquoesse tipo de caracterizaccedilotildees geneacutericas de lugares-comuns sem fundamento ou que constituem generalizaccedilotildees abusivas a partir de fatos pontuais satildeo no entanto importantes porque assinalam diferenccedilas que se julga existirem entre as naccedilotildees Satildeo um testemunho da existecircncia destas pois todos os grupos nacionais possuem estereoacutetipos sobre si proacuteprios e sobre os outros que satildeo inerentes agrave proacutepria construccedilatildeo de uma identidaderdquo SOBRAL Joseacute Manuel Portugal portugueses uma identidade nacional Lisboa Fundaccedilatildeo Francisco Manuel dos Santos 2012 p17 Tambeacutem CARDOSO Patriacutecia da Silva D Joatildeo VI um imaginaacuterio revisitado In OLIVEIRA Paulo da Motta (org) Travessias D Joatildeo VI e o mundo lusoacutefono Cotia Ateliecirc 2013 p38

9RUSEN Jorn Histoacuteria Viva Teoria da Histoacuteria

III formas e funccedilotildees do conhecimento histoacuterico Brasiacutelia Ed da UNB 2007

10Escapa ao escopo desta pesquisa por exemplo

uma perquiriccedilatildeo mais ampla a respeito de como a sociedade brasileira vecirc noccedilotildees advindas de um pensamento que poderiacuteamos chamar de ldquohistoacutericordquo como ideias de temporalidade (futuro passado presente instante progresso desenvolvimento etc) Tal empreendimento de momento apenas sugerido pelo confinamento dos objetivos aqui expostos a uma anaacutelise das formas sociais de relacionamento com um passado coletivo (ldquohistoacuteriardquo) pareceria estar em sintonia com a proposta de Ruumlsen Para uma proposta acerca de ldquocultura histoacutericardquo socialmente mais restritiva do que a nossa aplicada ao mundo medieval vide a importante obra de Gueneacutee GUENEacuteE Bernard Histoire et culture historique dans lrsquoOccident medieval Paris Aubier-Montaigne 1980 em especial o cap7 ldquoLa culture historiquerdquo

11NORA Pierre Entre memoria e historia La

problemaacutetica de los lugares In Pierre Nora en Les lieux de meacutemoire Santiago LOMTrilce 2009 p5-47 Tambeacutem DIEHL Antonio Astor Cultura historiograacutefica memoacuteria identidade e representaccedilatildeo Bauru Edusc 2002

8Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

potencial realizador de reivindicaccedilotildees dinamizadoras de conflitos em torno da divisatildeo de classes de uma sociedade12 Como se veraacute a seguir embora a cultura de histoacuteria aqui observada esteja evidentemente condicionada pelas estruturas sociais presentes na proacutepria sociedade agrave qual se refere ela natildeo parece caracterizada por uma distribuiccedilatildeo classista de seus princi-pais atributos tampouco por uma carga classista de expectativas poliacuteticas potencialmente irruptivas em seu contexto13 Cultura de histoacuteria tambeacutem natildeo se confunde perfeitamente com tradiccedilatildeo segundo a tripla distinccedilatildeo proposta mais uma vez por Ruumlsen seja como afirmaccedilatildeo passiva funcional e valorativa das formas jaacute estabelecidas de vida social como manancial de conteuacutedos aparentemente esquecidos inconscientes mas latentes em uma coletividade seja ainda como ponto de partida para a continuidade criacutetica de um discurso tornado reflexivo logo histoacuterico14 Afinal e embora uma cultura de histoacuteria possa se conectar em parte com tais ldquotradiccedilotildeesrdquo nenhu-ma delas parece englobar devidamente as interdiccedilotildees e os silecircncios acima referidos e aqui perscrutados Para todos os efeitos no entanto trata-se de um tipo de cultura isto eacute de um sistema social dotado de forte esta-bilidade mas natildeo completamente inercial pautado por alguns consensos a organizarem a maioria de seus dissensos e submetido a uma dinacircmica transformadora tendencialmente lenta embora suscetiacutevel a alteraccedilotildees de monta a partir de fatos pontuais e aparentemente isolados

A Independecircncia do Brasil ocorrida na primeira metade do seacuteculo XIX eacute tema especialmente propiacutecio para a caracterizaccedilatildeo inicial de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil Natildeo eacute o uacutenico possiacutevel mas sem duacutevida se presta especialmente bem a tal tarefa Visto como um conjunto de toacutepicos que a depender do enfoque pode incluir a histoacuteria da Ameacuterica portuguesa nos uacuteltimos anos do seacuteculo XVIII a crise da monarquia bragantina a partir de 1807 a separaccedilatildeo poliacutetica entre Portugal e Brasil e a formaccedilatildeo inicial deste como Estado e naccedilatildeo a Independecircncia eacute tema fundador desde sempre presente em processos de formaccedilatildeo escolar baacutesicos na miacutedia nas artes na poliacutetica na opiniatildeo puacuteblica nos espaccedilos puacuteblicos no senso-comum e na memoacuteria nacional15 Natildeo haacute cidade no Brasil que natildeo tenha seus lugares de memoacuteria16 ligados agrave Independecircncia natildeo haacute processo escolar formal que a ignore natildeo haacute feriados nacionais mais importantes em termos de evoca-ccedilatildeo puacuteblica e midiaacutetica de conteuacutedos do que os dela derivados Em certa medida a Independecircncia ldquopairardquo por sobre a sociedade brasileira e com ela interage o que faz com que praticamente todo e qualquer brasileiro a partir de uma certa idade pense alguma coisa a seu respeito17

A cultura de histoacuteria brasileira que natildeo se esgota na Independecircncia com ela se confunde

Aleacutem disso para efeitos da realizaccedilatildeo desta pesquisa seus autores estatildeo por dever de ofiacutecio mais familiarizados historiograficamente com o tema do que com outros que poderiam igualmente se constituir em pontos de partida vaacutelidos18 Com isso natildeo se quer dizer que este seja um estudo acerca de praacuteticas acadecircmicas em relaccedilatildeo agrave Histoacuteria per se e que sem duacutevida tambeacutem satildeo parte constitutiva dessa cultura de histoacuteria no Brasil e alhures19 (aliaacutes como se veraacute aqui estas surgiratildeo a reboque das praacuteticas natildeo acadecircmicas) apenas que o ponto de vista adotado pela pes-quisa e a partir dos quais seus autores se reconhecem eacute acadecircmico o que os permite explorar determinados potenciais do tema

A Independecircncia mostra que haacute uma dimensatildeo nacional na cultura de histoacuteria a impor significativas variaccedilotildees morfoloacutegicas e temaacuteticas de

12THOMPSON Edward Palmer Costumes em

comum estudos sobre a cultura popular tradicional Satildeo Paulo Companhia das Letras 1998 em especial p13-15 e p86 Haacute que se notar que o autor evita a manipulaccedilatildeo de definiccedilotildees claras e aprioriacutesticas preferindo a construccedilatildeo das mesmas com base no desenvolvimento de suas pesquisas empiacutericas

13O que natildeo significa que os atributos de uma

cultura histoacuterica natildeo possam ser apropriados e manipulados politicamente ou constituiacuterem-se em subsiacutedios para projetos de futuro a ausecircncia se refere a uma distribuiccedilatildeo e tendencial confinamento por classes de tais atributos

14RUSEN Jorn Tradition a principle of historical

sense-generation and its logic and effect in historical culture History and Theory Theme Issue 51 dez2012 Tambeacutem FREIXO Andreacute de Lemos Ousadia e redenccedilatildeo Op Cit p157

15LYRA Maria de Lourdes Vianna Memoacuteria

da Independecircncia marcos e representaccedilotildees simboacutelicas Revista Brasileira de Histoacuteria n29 1995 p173-206 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena de Salles O Espetaacuteculo do Ipiranga reflexotildees preliminares sobre o imaginaacuterio da Independecircncia Anais do Museu Paulista Satildeo Paulo v3 1995 p195-208 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena de Salles e MATTOS Claacuteudia Valladatildeo (org) O Brado do Ipiranga Satildeo Paulo EDUSP 1999 WEHLING Arno Estado Histoacuteria Memoacuteria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova FronteiraUNIRIO 1999 ENDERS Armelle Os vultos da naccedilatildeo faacutebrica de heroacuteis e formaccedilatildeo dos brasileiros Rio de Janeiro Editora FGV 2014

16Em referecircncia novamente a NORA Pierre Entre

memoria e historia Op Cit

17Um dado contundente segundo a inovadora

pesquisa realizada pela educadora Ana Teresa da Purificaccedilatildeo de um grupo de 97 crianccedilas entre 9 e 13 anos e que jamais tinham sido introduzidas formalmente ao tema da Independecircncia do Brasil 82 foram capazes de representaacute-la de alguma maneira (desenhos frases) geralmente em forte conexatildeo com representaccedilotildees sociais mais amplas (D Pedro o Grito o Sete de Setembro a bandeira nacional uma luta dicotocircmica entre bem e mal etc) PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da (Re)criando interpretaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil um estudo das mediaccedilotildees entre memoacuteria e histoacuteria nos livros didaacuteticos 2002 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2002

18Exemplo interessante eacute o livro de Luiacutes Fernando

Cerri com ecircnfase em uma consciecircncia histoacuterica focada na histoacuteria da ditadura brasileira de 1964 a 1985 e com aproximaccedilotildees com outros paiacuteses do cone sul Cfr CERRI Luiacutes Fernando Ensino de histoacuteria e consciecircncia histoacuterica implicaccedilotildees didaacuteticas de uma discussatildeo contemporacircnea Rio de Janeiro Editora FGV 2011

9Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

paiacutes a paiacutes embora ndash repita-se ndash deva-se esperar tambeacutem feiccedilotildees comuns entre diferentes culturas histoacutericas Ao mesmo tempo haacute uma tendecircncia agrave unificaccedilatildeo dessas formas e temas no interior de um mesmo paiacutes resultado da vigecircncia de memoacuterias e identidades bem como de estruturas institu-cionais de tipo nacional tais como sistemas poliacuteticos escolares e univer-sitaacuterios tambeacutem eles prenhes de conteuacutedos referentes a temas histoacutericos comparaacuteveis em importacircncia em cada contexto respectivo ao da Indepen-decircncia no Brasil Como bem tem mostrado a historiografia da questatildeo na-cional o passado coletivo eacute pretexto especialmente forte para a constitui-ccedilatildeo e reproduccedilatildeo de identidades nacionais20 Eacute por isso que aqui cultura de histoacuteria eacute tratada no singular pressupondo contudo uma homogeneidade apenas relativa e parcial do fenocircmeno

Tambeacutem haacute dimensotildees regionais nessa cultura de histoacuteria com varia-ccedilotildees a depender dos diferentes modos de contar evocar e silenciar conteuacutedos da histoacuteria coletiva caracteriacutesticos de cada quadrante espacial dessa unidade nacional sem contudo romper com a unidade que a engloba As limitaccedilotildees do presente estudo quanto a esse ponto satildeo expliacutecitas ao mesmo tempo em que contribuem para um desenho das feiccedilotildees mais gerais do fenocircmeno Afinal uma parte dos materiais empiacutericos aqui utilizados (mais precisamente a sondagem de opiniatildeo apresentada no item 3) refere-se primordialmente a Satildeo Paulo e sua capital21 outros poreacutem satildeo de alcance claramente nacio-nal o que permite o estabelecimento de mediaccedilotildees entre as esferas micro e macro histoacutericas constitutivas do fenocircmeno No entanto fica a advertecircncia eacute possiacutevel que a expansatildeo dessa base empiacuterica para materiais regionalmente mais circunscritos a outros Estados do Brasil como Paraacute Maranhatildeo Pernam-buco Bahia Minas Gerais Rio de Janeiro ou Rio Grande do Sul por exemplo ou mesmo a cidades singularmente marcadas pela histoacuteria da Independecircn-cia como Cametaacute Cachoeira e Goiana nos mostrasse variaccedilotildees capazes de redefinir o fenocircmeno geral Natildeo foi a Independecircncia do Brasil um processo histoacuterico cheio de nuances regionais e locais capazes de legar agrave posteridade um leque de memoacuterias ainda operativas na sociedade brasileira atual Poreacutem a histoacuteria da Independecircncia na cultura brasileira de histoacuteria precisa de algum ponto de partida mesmo que limitado

Finalmente haacute que se explicitar que haacute uma dimensatildeo histoacuterica nessa cultura de histoacuteria o que implica a concepccedilatildeo de um fenocircmeno que embora marcado por consideraacutevel estabilidade e regularidade eacute dinacircmico Isso quer dizer que as conclusotildees daqui extraiacutedas forccedilosamente trazem uma limitaccedilatildeo conjuntural podendo ser revistas ou mesmo invalidadas no futuro natildeo apenas em funccedilatildeo da inescapaacutevel (e oacutebvia) condiccedilatildeo proteica do conhecimento histoacuterico mas tambeacutem porque o sistema que constitui esse fenocircmeno eacute composto de uma grande quantidade de fenocircmenos me-nores que podem efetivamente modificar a essecircncia do conjunto ndash novas poliacuteticas educacionais um seriado de televisatildeo de grande audiecircncia um best-seller de divulgaccedilatildeo histoacuterica uma efemeacuteride de impacto etc

2 ndash Como apreender uma cultura de histoacuteria Fontes e questotildees centraisComo descrever e analisar um fenocircmeno histoacuterico com tais caracteriacutesticas Aqui definiu-se estrategicamente uma fonte central a organizar as demais uma sondagem de opiniatildeo aplicada presencialmente nas ruas da cidade de Satildeo Paulo por meio de um questionaacuterio e que incidiu sobre uma amostra-gem de 311 pessoas de diversa formaccedilatildeo escolar faixa etaacuteria caracteriacutesticas soacutecio-econocircmico-culturais e procedecircncia regional22 Embora se consti-

19CHARLE Christophe Homo historicus reacuteflexions

sur lrsquohistoire les historiens et les sciences sociales Paris Armand Colin 2013

20SOBRAL Joseacute Manuel Op Cit SMITH Anthony

D Myths and Memories of the Nation New York Oxford University Press 1999 ANDERSON Benedict Naccedilatildeo e consciecircncia nacional Satildeo Paulo Aacutetica 1989 HOBSBAWM Eric J Naccedilotildees e nacionalismo desde 1780 programa mito realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 JANCSOacute Istvaacuten Brasil e brasileiros notas sobre modelagem de significados poliacuteticos na crise do Antigo Regime portuguecircs na Ameacuterica Estudos Avanccedilados v22 p257-274 2008 Mesmo suportes midiaacuteticos eminentemente transnacionais ou ateacute mesmo supranacionais tiacutepicos do mundo digital natildeo apenas se mostram incapazes de romper com a dimensatildeo nacional do fenocircmeno como em muitos casos ateacute contribuem para reforccedilaacute-la

21Embora como logo se veraacute a ela tenha-se procurado

dar em parte um perfil nacional brasileiro

22Os criteacuterios exatos dessa sondagem bem como

os detalhes relativos agraves outras fontes utilizadas encontram-se descritos nos proacuteximos itens

10Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

tua em um universo numeacuterico bastante pequeno diante da totalidade da populaccedilatildeo brasileira a partir de 15 anos (144814538 indiviacuteduos de acordo com o censo do IBGE de 201023) meacutetodos especiacuteficos que subsidiaram a concepccedilatildeo e aplicaccedilatildeo dessa sondagem permitiram o alcance de resultados relevantes como se veraacute adiante24 A utilizaccedilatildeo de tal abordagem em estu-dos de Histoacuteria eacute pouco frequente mas natildeo ineacutedita Deve-se aqui mencionar dois estudos importantes e parcialmente convergentes com os propoacutesitos desta pesquisa o de Isabela Cosse e Vania Markarian sobre a consciecircncia histoacuterica nacional no Uruguai publicado em 1994 e o coordenado por Joseacute Machado Pais sobre a consciecircncia histoacuterica dos jovens portugueses nos contextos europeu e israelensepalestino de 199925 Ambos satildeo excelen-tes demonstraccedilotildees dos potenciais oferecidos por esse tipo de abordagem e forneceram norte e estiacutemulo a esta pesquisa mas dela diferem em trecircs pontos fundamentais sua circunscriccedilatildeo nacionalcontinental26 os contextos histoacutericos de sua elaboraccedilatildeo e a abordagem realizada em torno de temas de histoacuteria em geral pressupondo que os entrevistados possuiriam posiccedilotildees ativas em torno do passado Assim abordam formas de consciecircncia histoacuteri-ca mas natildeo a ampliam em direccedilatildeo a uma cultura de histoacuteria

A sondagem de opiniatildeo eacute aqui central mas natildeo exclusiva tendo sido seus resultados cotejados com os extraiacutedos da anaacutelise de um conjunto de fontes complementares Em primeiro lugar livros didaacuteticos de Ensino Meacute-dio utilizados por professores e alunos em 2013 nos quais foram buscados especificamente toacutepicos relativos agrave Independecircncia do Brasil Esse conjunto de fontes perfaz 19 tiacutetulos que foram avaliados e aprovados pelo Governo Federal brasileiro no Programa Nacional do Livro Didaacutetico em 2012 cujos cerca de 7 milhotildees e 500 mil exemplares foram distribuiacutedos a algo como 18 mil escolas puacuteblicas de todo o paiacutes aleacutem de serem utilizados tambeacutem em es-colas privadas27 completaram a anaacutelise dados obtidos por uma estudiosa de livros didaacuteticos de Ensino Fundamental tambeacutem recomendados pelo governo em 1998 e que analisou 12 tiacutetulos28 Em segundo lugar viacutedeos disponiacuteveis no YouTube e portadores de conteuacutedos relativos agrave Independecircncia Aqui depa-rou-se com material muito variado distribuiacutedo em 107 viacutedeos que perfazem um riquiacutessimo conjunto dada sua grande diversidade morfoloacutegica e de con-teuacutedo (seriados educativos entrevistas programas jornaliacutesticos propagandas de partidos poliacuteticos ou de outras associaccedilotildees trailers de filmes programas voltados para puacuteblico jovem produccedilotildees independentes etc) e tambeacutem pelas possibilidades de mensuraccedilatildeo parcial de seu alcance via o nuacutemero de visualizaccedilotildees indicadas pelo siacutetio e de anaacutelise dos respectivos ldquocomentaacuteriosrdquo tambeacutem laacute disponiacuteveis Em terceiro lugar obras televisivas e cinematograacutefi-cas relacionadas com a Independecircncia do Brasil Aqui foram analisadas trecircs seacuteries televisivas e cinco longas-metragens todos tambeacutem disponiacuteveis no YouTube com os mesmos dados complementares acima apontados Em quar-to lugar livros de divulgaccedilatildeo acadecircmica ou jornaliacutestica romances histoacutericos comics livros paradidaacuteticos e outras obras de difiacutecil definiccedilatildeo a possuiacuterem em comum abordagens da histoacuteria da Independecircncia apresentadas em linguagem natildeo acadecircmica destinadas a um puacuteblico potencialmente amplo e diversificado natildeo restrito portanto a estudantes e professores de Histoacuteria29 Em meio a esse conjunto foram selecionados 19 livros Finalmente em quin-to lugar foram analisados artigos sobre a Independecircncia publicados em cinco magazines de Histoacuteria vendidos em bancas de jornal e livrarias e que visam divulgar saberes especializados para um puacuteblico mais aleacutem do frequentador de cursos universitaacuterios de Histoacuteria

23Sendo a populaccedilatildeo total 190732694 de

acordo com o Censo Demograacutefico 2010 do IBGE Disponiacutevel em ibgegovbrhomeestatisticapopulacaocenso2010defaultshtm Acesso em 01042014

24A realizaccedilatildeo da mesma assim como a

interpretaccedilatildeo de seus dados teve em conta premissas metodoloacutegicas gerais estabelecidas por Patrick Champagne CHAMPAGNE Patrick Formar a opiniatildeo o novo jogo poliacutetico Petroacutepolis Vozes 1998 ZALLER John R The Nature and Origins of Mass Opnion Cambridge Cambridge University Press 1992 WILHOIT Cleveland e WEAVER David H Neswroom Guide to Polls amp Surveys Bloomington and Indianapolis Indiana University Press 1990 e MONZOacuteN ARRIBAS Caacutendido La opinioacuten puacuteblica teoriacuteas conceptos y meacutetodos Madri Tecnos 1987

25COSSE Isabela e MARKARIAN Vania Memorias

de la historia una aproximacioacuten al estudio de la consciencia histoacuterica nacional Montevideacuteu Trilce 1994 PAIS Joseacute Machado Consciecircncia histoacuterica e identidade os jovens portugueses num contexto europeu Oeiras CeltaSecretaria de Estado da Juventude 1999 Este uacuteltimo inclui vaacuterios dos resultados obtidos pelo inqueacuterito geral europeu realizado com jovens e professores de Histoacuteria de 26 paiacuteses do continente mais Israel ldquoIsrael Aacuteraberdquo e ldquoPalestinardquo

26Seria importante considerar ainda atitudes

de pessoas em relaccedilatildeo a lugares de memoacuteria especificamente ligados agrave Independecircncia do Brasil dentro das cidades existentes aliaacutes em praticamente todo e qualquer centro urbano do paiacutes No caso de Satildeo Paulo tal desafio pode encontrar estimulante ponto de partida em duas pesquisas OLIVEIRA Cecilia Helena de Salles Museu Paulista espaccedilo de evocaccedilatildeo do passado e reflexatildeo sobre a histoacuteria Anais do Museu Paulista Satildeo Paulo Nova Seacuterie v1011 20022003 p105-126 e ALMEIDA Adriana Mortara Os visitantes do Museu Paulista um estudo comparativo com os visitantes da Pinacoteca do Estado e do Museu de Zoologia Anais do Museu Paulista Satildeo Paulo Nova Seacuterie v12 2004 p269-306

27O PNLD tem como objetivo central ldquosubsidiar

o trabalho pedagoacutegico dos professores por meio da distribuiccedilatildeo de coleccedilotildees de livros didaacuteticos aos alunos da educaccedilatildeo baacutesica Apoacutes a avaliaccedilatildeo das obras o Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) publica o Guia de Livros Didaacuteticos com resenhas das coleccedilotildees consideradas aprovadas O guia eacute encaminhado agraves escolas que escolhem entre os tiacutetulos disponiacuteveis aqueles que melhor atendem ao seu projeto poliacutetico pedagoacutegicordquo (portalmecgovbrindexphpItemid=668id=12391option=com_contentview=article) A avaliaccedilatildeo e seleccedilatildeo dos tiacutetulos aprovados pelo programa coube agrave Secretaria de Educaccedilatildeo Baacutesica (SEB) do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo sendo a equipe avaliadora formada por professores de vaacuterias universidades puacuteblicas Guia de livros didaacuteticos PNLD 2012 Histoacuteria Brasiacutelia Ministeacuterio da Educaccedilatildeo Secretaria de Educaccedilatildeo Baacutesica 2011

11Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Bem se vecirc que tais fontes complementares extrapolam o acircmbito espa-cial parcialmente circunscrito da sondagem de opiniatildeo aleacutem de permitirem a consideraccedilatildeo de uma grande pluralidade de vozes de agentes sociais ndash inclu-sive mas natildeo preferencialmente os historiadores acadecircmicos ndash responsaacuteveis pela inexistecircncia de um monopoacutelio profissional na reproduccedilatildeo divulgaccedilatildeo e eventual produccedilatildeo de conhecimentos acerca da Independecircncia do Brasil A exemplo dos procedimentos adotados para a realizaccedilatildeo da sondagem de opi-niatildeo tambeacutem a utilizaccedilatildeo de tais fontes partiu de uma amostragem jaacute que nenhum de seus conjuntos corresponde agrave totalidade de materiais disponiacuteveis No entanto acredita-se que a somatoacuteria dessas amostragens seja satisfatoacuteria para a persecuccedilatildeo dos objetivos aqui propostos

Como tratar metodologicamente fontes tatildeo diferentes entre si e como fazecirc-las convergirem para um mesmo fim Os conteuacutedos extraiacutedos da sondagem de opiniatildeo merecem tratamento algo peculiar jaacute que tendo permanecido ineacuteditos ateacute o momento natildeo podem ser considerados como elementos capazes de agir naquela mesma realidade que os informou soacute podem ser vistos como traduccedilatildeo (indireta matizada) de uma realidade por eles denunciada Jaacute as demais fontes satildeo consideradas de ambos os modos como instrumentos de reconfiguraccedilatildeo da realidade em termos de poten-ciais formadoras de opiniatildeo dos brasileiros acerca da Independecircncia mas tambeacutem como sintomaacuteticas de um estado de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema Portadoras de indiacutecios de uma cultura de histoacuteria que elas criam e recriam e protagonistas ativos dessa mesma cultura30 O que natildeo quer dizer de modo algum que a todos os suportes materiais aqui consi-derados como fontes primaacuterias possa ser atribuiacutedo um caraacuteter de inovaccedilatildeo em seus tratamentos dos conteuacutedos relativos agrave Independecircncia do Brasil (se assim o fosse os historiadores profissionais da Independecircncia teriam muitos motivos para comemorar o fato de que os demais agentes sociais natildeo apenas estariam dispostos a ouvi-los como aptos a compreendecirc-los E se assim o fosse estariacuteamos frente a uma cultura histoacuterica muito mais dinacircmica e instaacutevel do que ela parece ser)

Para aferir ateacute que ponto um livro uma revista um filme ou um viacute-deo contribuem mais para a criaccedilatildeo ou para a recriaccedilatildeo (pois natildeo haacute aqui estrito senso simples reproduccedilatildeo) de conteuacutedos a metodologia adotada abordou tais suportes materiais por meio de cinco perguntas baacutesicas Seu tratamento da Independecircncia tende a uma Histoacuteria 1) Factual eou biograacute-fica ou a uma histoacuteria processual 2) Que respeita historicidades e orde-namentos cronoloacutegicos e temporais ou que tende a dar pouca importacircncia a tais elementos (neste caso de que modos o faz) 3) Centrada em uma uacutenica regiatildeo (qual) ou em vaacuterias ao mesmo tempo e inclusive a outras partes do mundo da eacutepoca (quais) 4) Que dialoga (de que modos) com a produccedilatildeo acadecircmica (qual de quando) ou que busca outros referenciais no universo natildeo especializado 5) De ecircnfase anedoacutetica laudatoacuteria soacutebria positiva ou negativa As respostas a tais perguntas nem sempre bem claras e definidas foram buscadas a partir tambeacutem de substratos metodo-loacutegicos especiacuteficos para cada tipo de fonte e chegaram a envolver parcial-mente tambeacutem a sondagem de opiniatildeo

3 - A sondagem de opiniatildeo A Independecircncia nas ruasA sondagem de opiniatildeo partiu da aplicaccedilatildeo de um questionaacuterio que mes-clou respostas dirigidas e objetivas com respostas abertas e subjetivas sen-do dividido em trecircs partes correspondentes a trecircs perfis a serem extraiacutedos

28PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit

29Tal tipo de fonte eacute o que melhor permite uma

anaacutelise de mais largo escopo temporal do que o aqui contemplado Uma excelente reuniatildeo preliminar de material encontra-se em CALMON Pedro Histoacuteria do Brasil na poesia do povo Nova ediccedilatildeo aumentada Rio de Janeiro Bloch 1973 Para noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia na literatura e na dramaturgia portuguesa vaacuterios apontamentos em OLIVEIRA Paulo da Motta (org) Op Cit

30Muitas jaacute vecircm sendo analisadas separadamente

de acordo com uma tendecircncia apontada acima Para os livros didaacuteticos a produccedilatildeo eacute imensa e inclui trabalhos importantes como os de BITTENCOURT Circe Fernandes Livro didaacutetico e conhecimento histoacuterico uma histoacuteria do saber escolar 1993 Tese (Doutorado em Histoacuteria Social) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1993 MUNAKATA Kazumi Produzindo livros didaacuteticos e paradidaacuteticos Tese 1997 (Doutorado em Histoacuteria e Filosofia da Educaccedilatildeo) Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1997 DIEHL Astor Antocircnio (org) O livro didaacutetico e o curriacuteculo de histoacuteria em transiccedilatildeo Passo Fundo EDIUPF 1999 e CARDOSO Oldimar Pontes A didaacutetica da histoacuteria e o slogan da formaccedilatildeo de cidadatildeos 2007 Tese (Doutorado em Educaccedilatildeo) Faculdade de Educaccedilatildeo Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2007 Sobre cinema e histoacuteria dentre outros FONSECA Vitoacuteria Azevedo da Histoacuteria imaginada no cinema anaacutelise de Carlota Joaquina princesa do Brazil e Independecircncia ou morte 2002 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria Cultural) Universidade Estadual de Campinas Campinas 2002

31Esse eacute o perfil mostrado pelo censo do IBGE de

2010 com algumas poucas exceccedilotildees no caso da amostragem a uacutenica importante se observa com a faixa etaacuteria de 25 a 29 anos (14) mais numerosa do que a anterior entre 20 e 24 anos (8) sendo que a porcentagem da populaccedilatildeo brasileira em tais faixas etaacuterias eacute praticamente a mesma (respectivamente 8 e 9) De resto foi possiacutevel estabelecer nesse quesito uma satisfatoacuteria correlaccedilatildeo com o perfil brasileiro a amostragem abordou indiviacuteduos a partir de 15 anos sendo que dos 14 grupos de cinco anos obtidos (o uacuteltimo corresponde a 80 anos ou mais) quatro apresentaram perfeita correspondecircncia percentual com os dados nacionais oito uma diferenccedila de no maacuteximo 2 e apenas dois forte discrepacircncia

32Para se atingir perfis ocupacionais desejados

algumas entrevistas foram realizadas na regiatildeo do Grande ABC e no interior do estado de Satildeo Paulo

33Dados do uacuteltimo Censo do IBGE (2010)

disponiacutevel em censo2010ibgegovbramostra Acesso em 01042014

34O censo do IBGE de 2010 indicou a porcentagem

de 76 para desocupados considerando o total da populaccedilatildeo maior de 10 anos Para o estado

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do entrevistado um soacutecio-econocircmico-escolar um cultural e um relativo agrave sua relaccedilatildeo com a Histoacuteria em especial a da Independecircncia

A obtenccedilatildeo do primeiro perfil se fez segundo gecircnero faixa etaacuteria (em grupos de cinco anos a partir de 15 anos de idade) local de nasci-mento (segundo regiotildees do Brasil e cidade) ocupaccedilatildeo profissional renda familiar (em valores ou quantidade de salaacuterios miacutenimos isto eacute R$ 62000) e instruccedilatildeo formal (por niacuteveis e se realizada em escolas puacuteblicas eou pri-vadas cidade e instituiccedilatildeo) Com isso buscou-se aproximar o universo da amostragem ndash 311 indiviacuteduos ndash do perfil geral do paiacutes quando isso natildeo foi possiacutevel a aproximaccedilatildeo se deu com o Estado e com a cidade de Satildeo Paulo

No quesito gecircnero foram entrevistadas 52 de mulheres e 48 de homens (um dos entrevistados natildeo quis declarar seu gecircnero) estabelecen-do-se uma perfeita correlaccedilatildeo de porcentagem com o mostrado pelo censo populacional do IBGE de 2010 seja em termos nacionais ou estaduais de Satildeo Paulo Jaacute a constituiccedilatildeo da faixa etaacuteria dos entrevistados buscou um modelo de ldquopiracircmiderdquo isto eacute com um nuacutemero de mais jovens sempre mais elevado do que o de mais idosos31 No entanto aqui a amostragem privile-giou mais jovens entre 15 e 19 anos (21) do que a realidade populacional brasileira (8) e mais adultos entre 25 e 29 anos

No tocante ao local de nascimento a amostragem natildeo pocircde se valer de dados do IBGE Desse modo buscou-se uma aproximaccedilatildeo estatiacutestica com a cidade de Satildeo Paulo local onde 97 das entrevistas foram reali-zadas32 Os nascidos na regiatildeo sudeste perfizeram 73 das abordagens sendo 67 naturais do estado de Satildeo Paulo (dados do IBGE mostram 77 de habitantes da cidade nascidos no estado sendo 69 do total na cida-de)33 A realizaccedilatildeo da amostragem procurou uma compensaccedilatildeo para essa hipertrofia de perfil (do nacional ao regional) por meio da diversificaccedilatildeo de unidades da federaccedilatildeo para os 23 de habitantes do estado de Satildeo Paulo que natildeo nasceram nele foram entatildeo entrevistados 112 indiviacuteduos (326 da amostragem) naturais dos outros estados brasileiros agrave exceccedilatildeo de Acre Amapaacute Distrito Federal Roraima e Tocantins

Quanto a suas ocupaccedilotildees profissionais os entrevistados declararam livremente 118 diferentes funccedilotildees (sendo 005 desempregados34) apoacutes uma anaacutelise preliminar das mesmas foi possiacutevel agrupaacute-las em 90 incluin-do um leque muito variado que inclui comerciantes donas de casa empre-gadas domeacutesticas estudantes funcionaacuterios puacuteblicos educadores operaacuterios empresaacuterios cabeleireiras agricultores faxineiros jornalistas prostitutas militares e meacutedicos dentre outros (ressalte-se que no momento da pesqui-sa nenhum deles se encontrava ligado profissionalmente agrave Histoacuteria) Nesse quesito eacute impossiacutevel estabelecer uma perfeita correlaccedilatildeo entre a amostra-gem e o panorama laboral brasileiro buscou-se apenas incluir uma ampla gama de perfis profissionais

O perfil dos entrevistados segundo renda familiar tambeacutem se mos-trou de difiacutecil equivalecircncia com dados do IBGE jaacute que estes indicam rendas individuais e natildeo familiares Assim mesmo observa-se que a amostragem seguiu uma tendecircncia tambeacutem de ldquopiracircmiderdquo que faz com que o nuacutemero de brasileiros dos estratos de renda mais baixa sejam sempre mais nume-roso que os de renda mais alta a diferenccedila entre o conjunto da populaccedilatildeo brasileira e a amostragem estaacute seguramente nas dimensotildees de tais estra-tos enquanto os dados do IBGE mostram mais de 64 de indiviacuteduos sem rendimentos ou com renda entre 1 e 5 salaacuterios miacutenimos na amostragem esse percentual (por famiacutelias) pouco passou de 3035

de Satildeo Paulo a porcentagem eacute tambeacutem de 76 Disponiacutevel em censo2010ibgegovbramostra Acesso em 01042014

35Haacute aqui algumas discrepacircncias em relaccedilatildeo as

categorias do IBGE que devem ser explicitadas no que se refere aos criteacuterios de renda estatildeo ausentes do questionaacuterio ldquomais de 2 a 3 salaacuterios miacutenimosrdquo aleacutem disto a renda calculada pelo questionaacuterio tem como base a unidade familiar enquanto os dados do IBGE aqui contrastados referem-se agrave renda de indiviacuteduos

36Dos 161981299 indiviacuteduos totais ldquoa partir de

10 anosrdquo subtraiu-se 17166761 indiviacuteduos entre 10 e 14 anos de modo a limitar a estatiacutestica nacional aos jovens contemplados pela amostragem Uma distorccedilatildeo contudo permanece na cifra dos indiviacuteduos ldquosem instruccedilatildeo e fundamental completordquo da tabela 154 pois crianccedilas entre 10 e 14 anos podem perfeitamente ser ldquosem instruccedilatildeordquo embora o sejam em pequena minoria ldquofundamental completordquo para todos os efeitos as porcentagens das demais rubricas da mesma tabela foram assim corrigidas jaacute que crianccedilas de 14 anos estaratildeo necessariamente ausentes da rubrica seguinte ldquomeacutedio completordquo (tabelas 154 e 112 respectivamente)

37Nos dados do IBGE a maioria da populaccedilatildeo

(59) encontra-se na rubrica ldquonatildeo frequentavam mas jaacute frequentaramrdquo Dentre os que ldquofrequentavamrdquo 78 o faziam em estabelecimentos puacuteblicos e 22 em privados na amostragem esses percentuais que incidem sobre frequecircncia em cursojaacute realizada foram respectivamente 63 e 27 sendo que 11 se enquadravam em ambos

38Tambeacutem nessa segunda parte o questionaacuterio

se afastou progressivamente da possibilidade de estabelecimento de equivalecircncias estatiacutesticas com a totalidade da populaccedilatildeo brasileira Isso se deu por um motivo principal o censo do IBGE natildeo chega ao grau de detalhamento dos dados aqui obtidos (seus objetivos e natureza satildeo outros) e embora existam sondagens de opiniatildeo focadas em perfis culturais do brasileiro (como a ediccedilatildeo de 2011 de Retratos da leitura no Brasil do Instituto Proacute-Livro aqui utilizada como se veraacute mais adiante) a busca por tais equivalecircncias implicaria o seacuterio risco de um engessamento na obtenccedilatildeo de dados qualitativos Tendo em vista os objetivos centrais dessa pesquisa ndash esboccedilar a caracterizaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil por meio da Independecircncia assim como refletir em torno de implicaccedilotildees do tratamento acadecircmico do tema a partir de sua inserccedilatildeo nessa mesma cultura ndash o estabelecimento preliminar completo do perfil dos entrevistados natildeo garantiria a validade do material a ser extraiacutedo e analisado Trata-se justamente do contraacuterio submeter os resultados finais da pesquisa aos paracircmetros dados pelas condiccedilotildees de sua proacutepria realizaccedilatildeo

39Haacute pelo menos dois exemplos de como rankings

se fazem presentes no pensar a Histoacuteria nesse escopo Um primeiro de grande participaccedilatildeo popular eacute o programa de tevecirc O maior brasileiro de todos os tempos exibido entre 1107 e

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No tocante a instruccedilatildeo formal os dados nacionais oficiais incidem sobre crianccedilas a partir de 10 anos de idade sendo que a amostragem rea-lizada focou em jovens a partir de 15 anos desse modo a aproximaccedilatildeo da amostragem com o perfil brasileiro partiu de uma retificaccedilatildeo dos nuacutemeros apresentados pelo IBGE36 E se em termos de renda familiar a amostragem mostrou clara inclinaccedilatildeo a um perfil excessivamente de classe meacutedia o mesmo pode-se dizer quanto agrave instruccedilatildeo formal que perfez um grupo mais escolarizado do que a meacutedia do paiacutes O principal problema aqui ocorre no baixo nuacutemero de entrevistados entre ldquosem instruccedilatildeo e fundamental incom-pletordquo (7 sendo a porcentagem nacional entre 44 e 50) em prol de um nuacutemero por demais elevado de indiviacuteduos que cursaram universidades (27 contra 9) as demais rubricas tambeacutem apresentam discrepacircncias 25 de entrevistados entre ldquofundamental completo e meacutedio incomple-tordquo (contra 19) e 23 entre ldquomeacutedio incompleto e superior incompletordquo (contra 26) A anaacutelise de todo o material obtido assim como das fontes primaacuterias levou em conta tais inclinaccedilotildees e como se veraacute mais adiante elas parecem ateacute mesmo reforccedilar algumas das conclusotildees aqui obtidas Ainda no mesmo quesito os dados do IBGE classificam os brasileiros de acordo com ldquorede de ensino que frequentavamrdquo quando da realizaccedilatildeo da coleta de dados sendo que o questionaacuterio abordou os entrevistados de acordo com frequecircncia em cursojaacute realizada37 Mesmo assim os nuacutemeros aqui disponiacuteveis serviram bem agrave constituiccedilatildeo da amostragem

Na segunda parte do questionaacuterio a obtenccedilatildeo do perfil cultural do entrevistado se deu a partir de uma identificaccedilatildeo de seu acesso agrave televisatildeo (se assiste caso positivo com qual frequecircncia que tipo de programas se em tevecirc aberta eou a cabo e quais os trecircs programas que mais assiste) leitura (se lecirc com frequecircncia que tipo de coisa e quais os uacuteltimos trecircs livros que leu) cinema e teatro (em ambos os casos apenas se costuma ou natildeo frequentar)38 Apoacutes tais perguntas que procuraram diagnosticar eventuais proximidades do entrevistado em relaccedilatildeo a fontes secundaacuterias da pesquisa o questionaacuterio introduziu a questatildeo especiacutefica de seu interesse pela Histoacuteria Foi entatildeo perguntado se ele se interessa ou natildeo por Histoacuteria e por qual (do Brasil geral ou outraqual) se busca informaccedilotildees sobre e em caso positivo onde (livros televisatildeo internet revistas cursos museus outroqual) e se nos uacuteltimos dois anos leu algo ou frequentou algum curso a respeito (em caso positivo qual) Tais perguntas foram elaboradas visando uma aproximaccedilatildeo realista com caracteriacutesticas que de modo hipo-teacutetico foram atribuiacutedas a essa cultura de histoacuteria no Brasil Por isso foram preteridas formas linguiacutesticas quiccedilaacute muito acadecircmicas em prol de outras que permitissem que o entrevistado se expressasse de modo a fornecer dados vaacutelidos daiacute por exemplo o uso da tradicional divisatildeo entre Histoacuteria do Brasil e Histoacuteria Geral (com abertura para identificaccedilatildeo de ldquooutrardquo qual-quer) de muito pouca serventia para os historiadores profissionais

Finalmente a terceira parte do questionaacuterio visou agrave obtenccedilatildeo de conteuacutedos diretamente relacionados agrave Independecircncia do Brasil valendo-se mais amplamente ainda dessa estrateacutegia de utilizaccedilatildeo de formas linguiacutes-ticas coloquiais assim como de perguntas cujas respostas seriam tanto dirigidas como abertas grau de interesse sobre a histoacuteria da Independecircncia do Brasil (nenhum pequeno meacutedio ou grande seguido de uma justificati-va) grau de conhecimento do tema (nenhum pouco razoaacutevel bom exce-lente) se procura se informar sobre (natildeo simcomo) e se estaacute lendo ou leu algo a respeito nos uacuteltimos dois anos (natildeo simo quecirc) Ou seja abriu-se a

03102012 pelo SBT Conforme a sinopse da emissora ldquobaseado no formato criado pela BBC The Greats o programa elege[u] aquele que fez mais pela naccedilatildeo que se destacou pelo seu legado agrave sociedade Diversos paiacuteses jaacute apontaram os seus maiores representantes Na Inglaterra Winston Churchill saiu vencedor Os italianos elegeram Leonardo da Vincirdquo (sbtcombromaiorbrasileiroprograma Acesso em 21032014) A escolha dos candidatos e a definiccedilatildeo de seus confrontos ndash os personagens iam se enfrentando programa a programa em caraacuteter eliminatoacuterio ndash foi feita pelo telespectador sendo o ldquocampeatildeordquo Chico Xavier seguido por Santos Dummont e pela princesa Isabel Semelhante mas de menor alcance foi a pesquisa realizada pela Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional divulgada em abril de 2008 que convocou ldquopara a tarefa de eleger os lsquoheroacuteisrsquo e os lsquovilotildeesrsquo do Brasil uma distinta seleccedilatildeo de historiadores professores jornalistas economistas poliacuteticos e artistas protegidos pelo anonimato para louvar e condenar quem bem entendessemrdquo Entre os mais bem avaliados estavam Rui Barbosa Machado de Assis e D Pedro II no polo oposto Meacutedici e Costa e Silva (revistadehistoriacombrsecaoreportagemranking-dos-brasileiros Acesso em 21032014)

40As palavras satildeo acordo comeacutedia continuaccedilatildeo

democracia ditadura drama elitespoderosos escravidatildeo Estados Unidos exeacutercito guerra heroiacutesmo Inglaterra invenccedilatildeo Joatildeo VI Joseacute Bonifaacutecio liberdade mudanccedila naccedilatildeo nascimento negociaccedilatildeo paz Pedro I Portugal povo revoluccedilatildeo Tiradentes tirania O entrevistado poderia incluir outra palavra qualquer que desejasse

41O questionaacuterio encerrava-se com a possibilidade

do entrevistado acrescentar livremente algo bem como a opccedilatildeo de identificaccedilatildeo nominal Um proveitoso desdobramento da pesquisa poderia resultar de uma anaacutelise de nuances e matizes de interessantes jogos discursivos presentes em muitas das respostas obtidas sobretudo no caso de uma expansatildeo numeacuterica da amostragem

42Quando em fevereiro de 2013 foram

amplamente divulgados resultados de pesquisas biomeacutedicas (com tentativas de conclusotildees tambeacutem histoacutericas) realizadas com os restos mortais de Pedro I Leopoldina e Ameacutelia realizadas por Valdirene Ambiel Cfr AMBIEL Valdirene do Carmo Estudos de arqueologia forense aplicados aos remanescentes humanos dos primeiros imperadores do Brasil depositados no monumento agrave Independecircncia 2013 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Arqueologia) Museu de Arqueologia e Etnologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2013 Aleacutem de procurar esclarecer se tais restos se encontravam depositados no Monumento agrave Independecircncia em Satildeo Paulo e diagnosticar o estado de conservaccedilatildeo dos mesmos Ambiel procurou chamar a atenccedilatildeo para as possiacuteveis causas da morte dos monarcas e sobre os procedimentos funeraacuterios com eles entatildeo utilizados Tais resultados foram divulgados pela imprensa nacional como ldquoverdadesrdquo sobre a famiacutelia imperial brasileira supostamente ausentes dos livros de histoacuteria ldquosegredosrdquo agora ldquoreveladosrdquo Por exemplo Pedro I tinha quatro

14Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

possibilidade de se chegar a dados de uma cultura de histoacuteria inclusive em suas negaccedilotildees em seus silecircncios e interdiccedilotildees Em seguida o questionaacuterio recorreu a um artifiacutecio muito presente no meio social sobre o qual incidiu foi pedido ao entrevistado que atribuiacutesse notas de um a dez para a impor-tacircncia que acha que a Independecircncia teve para a histoacuteria do Brasil e para a histoacuteria do mundo Nos historiadores profissionais em geral esses rankings com sua gigantesca capacidade de simplificar a realidade costumam despertar ojeriza no entanto para os demais agentes sociais dessa cultura pode significar uma forma uacutetil de representaccedilatildeo da realidade acostumados que estatildeo a ela em muitos aspectos de sua vida cotidiana39 Assim tambeacutem daqui pode-se extrair elementos para a anaacutelise de uma cultura de histoacuteria Jaacute as trecircs perguntas seguintes buscaram outra aproximaccedilatildeo foi pedido ao entrevistado que diante de uma lista de 28 palavras escolhesse as trecircs que acreditasse que mais combinam e as trecircs que menos combinam com a Independecircncia40 Tais palavras incidem sobre personagens fatos proces-sos conceitos e mitos constituindo um bom leque de possibilidades de aproximaccedilatildeo linguiacutestica e conceitual com formas de ver a Independecircncia presentes na sociedade inclusive por contemplarem vaacuterios antinocircmicos Por fim perguntou-se ao entrevistado se seria capaz de dizer as datas da chegada da corte portuguesa no Brasil da Independecircncia do Brasil da pri-meira Constituiccedilatildeo e da abdicaccedilatildeo de D Pedro I41 Aqui o intuito era aferir ateacute que ponto essa cultura de histoacuteria se organiza e se faz representar por marcos cronoloacutegicos convencionais bem como se enseja formas alternati-vas de historicizaccedilatildeo e temporalizaccedilatildeo

Desse modo por meio de estrateacutegias de abordagem complementares (graus de relaccedilatildeo ativa ou passiva diante do tema o peso de linguagens conceitos e informaccedilotildees formas temporais) o questionaacuterio procurou fazer convergirem possibilidades de posturas dos entrevistados em relaccedilatildeo agrave histoacuteria e agrave Independecircncia do Brasil bem como dimensotildees variadas e even-tualmente contraditoacuterias de tais posturas relacionando-as inclusive com as cinco perguntas baacutesicas que seriam posteriormente dirigidas agraves fontes secundaacuterias conforme enunciado ao final do item anterior

Apoacutes um curto periacuteodo de testes foram entrevistadas presencialmen-te 311 pessoas na cidade de Satildeo Paulo Grande ABC e interior do estado entre os dias 19 de setembro de 2012 e 02 de agosto de 2013 Propositada-mente foram evitadas as duas Semanas da Paacutetria desses anos bem como um periacuteodo de vinte dias de superexposiccedilatildeo midiaacutetica especiacutefica do tema42 As abordagens foram realizadas de modo direto em 994 das vezes em espaccedilos puacuteblicos tendo cada uma ndash com poucas exceccedilotildees -a duraccedilatildeo de cerca de sete minutos durante os quais evitou-se ao maacuteximo qualquer tipo de constrangimento direcionamento ou auxiacutelio nas respostas

O que foi possiacutevel obter nessas entrevistas Os entrevistados com-potildeem um grupo de forte contato com a televisatildeo (93 assistem com frequecircncia e 51 todos os dias sendo que 58 possuem tevecirc aberta e a cabo apenas 6 disseram natildeo assistir tevecirc) de leitores frequentes (78) e de assistentes a cinemas (58) e teatros (28) o que o aproxima de um perfil de classe meacutedia escolarizada conforme jaacute apontado anteriormente de todo modo haacute que se lembrar que em muitos outros aspectos relevan-tes esse eacute um grupo heterogecircneo Daiacute a importacircncia do fato de que 77 dos que o compotildeem disseram se interessar por histoacuteria (sendo que 60 afirmaram buscar informaccedilotildees a respeito) Esse eacute um nuacutemero alto ou bai-xo A questatildeo natildeo parece das mais importantes jaacute que de acordo com a

costelas quebradas quando morreu era mais baixo do que se supunha natildeo foi cremado mas enterrado acompanhado de porccedilotildees de terra de Portugal e com roupas de general com insiacutegnias portuguesas e natildeo brasileiras Leopoldina natildeo teve o fecircmur quebrado antes de morrer como acreditava-se ateacute entatildeo foi enterrada com a mesma roupa com que foi coroada imperatriz e seus brincos natildeo eram de ouro mas bijuterias de resina Jaacute Ameacutelia quando morreu tinha escoliose e osteoporose foi enterrada de preto e mumificada Na internet tais ldquorevelaccedilotildeesrdquo foram no total comentadas milhares de vezes ldquorecomendadasrdquo e em geral bem-recebidas (fotosestadaocombrmudanca-na-historia-dez-verdades-sobre-a-familia-imperial-que-nao-estao-nos-livros-de-historiagaleria70481949100htmpPosicaoFoto=1carousel acesso em 27032014 folhauolcombrfspcienciasaude94655-corpos-da-familia-imperial-sao-exumadosshtml acesso em 02042014 folhauolcombrfspcienciasaude94656-descoberta-mostra-abandono-de-d-leopoldina-diz-historiadorashtml acesso em 02042014 estadaocombrnoticiascidadessob-sigilo-dom-pedro-i-e-suas-duas-mulheres-sao-exumados-pela-primeira-vez9983670htm acesso em 02042014 vejaabrilcombrblogricardo-settitema-livreabertura-para-estudos-dos-sarcofagos-de-d-pedro-i-e-de-suas-duas-esposas-e-fato-extraordinario-parabens-ao-estadao-por-divulgar-tudo acesso em 02042014 brnoticiasyahoocomexumaC3A7C3A3o-d-pedro-i-mulheres-reconta-histC3B3ria-115400981htmlgt acesso em 02042014 g1globocomciencia-e-saudenoticia201302cientistas-brasileiros-exumam-restos-mortais-de-d-pedro-i-e-suas-mulhereshtml acesso em 02042014 youtubecomwatchv=y8jcdXyx3hAgt acesso em 02042014 vestibularuolcombrresumo-das-disciplinasatualidadeshistoria-do-brasil-exumacao-traz-novidades-sobre-d-pedro-ihtm acesso em 02042014 ltgooglecombrsearchq= exumaC3A7C3A3o+de+dom+pedroampoq= exumaC3A7C3A3o+ampaqs= chrome469i57j0l55749j0j8ampsourceid= chromeampespv=210ampes_sm=93ampie=UTF-8gt acesso em 02042014 noticiasseuhistorycomexumacao-revela-detalhes-surpreendentes-da-vida-e-morte-de-d-pedro-i-e-suas-mulheresgt acesso em 02042014 istoecombrreportagens277892_A+VOLTA+DE+DOM+PEDRO+I acesso em 02042014 bahiaatualcomnoticiasexumacao-de-corpos-de-d-pedro-i-revela-detalhes-da-famiila-real acesso em 02042014 Site Uacuteltimo Segundo ldquoExumaccedilatildeo de D Pedro I e suas mulheres reconta a Histoacuteriardquo disponiacutevel em ultimosegundoigcombrciencia2013-02-19exumacao-de-dpedro-i-e-suas-mulheres-reconta-a-historiahtml acesso em 02042014 diariodepernambucocombrappnoticiaciencia-e-saude20130219internas_cienciaesaude424273restos-mortais-de-d-pedro-i-sao-exumados-para-realizacao-de-pesquisashtml acesso em 02042014 httpopiniaoenoticiacombrbrasilrestos-mortais-de-dom-pedro-i-sao-exumadosgt acesso em 02042014 noticiasbanduolcombrjornaldabandconteudoaspid=100000576688 acesso em 02042014

15Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

definiccedilatildeo aqui proposta de cultura de histoacuteria o desinteresse tambeacutem eacute um dado relevante pois traduz uma atitude em si e que dificilmente poderia ser considerada de modo absoluto (como pretender que esse desinteresse se traduza por exemplo em descaso com a proacutepria histoacuteria ou com a da famiacutelia Difiacutecil acreditar ser esse o caso de 23 dos entrevistados) Aleacutem disso bem sabemos que seu contraacuterio o interesse pode se manifestar de muitas maneiras que natildeo necessariamente encontram guarida em praacuteticas acadecircmicas e profissionais relacionadas ao estudo do passado tampouco que resultam em um estudo da histoacuteria minimamente organizado O que implica que os dois contraacuterios nem sempre estabeleceratildeo limites claros entre si diante da apreciaccedilatildeo geral de uma cultura de histoacuteria interesse e desinteresse pela histoacuteria podem flertar com muita proximidade bem como intercambiarem elementos regularmente

Observemos mais atentamente esse panorama Considerando-se tais caracteriacutesticas de uma cultura de histoacuteria como a brasileira perguntou-se a todos os entrevistados incluindo aos 23 que afirmaram natildeo se inte-ressar por histoacuteria por ldquoqual histoacuteriardquo poderia dizer que mais se interessa Aqui as respostas que de alguma forma se referem diretamente agrave histoacuteria do Brasil (ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo ldquoHistoacuteria geral e do Brasilrdquo ldquoHistoacuteria da nos-sa regiatildeordquo ldquoHistoacuteria do Brasil e andinardquo) perfazem 34 do total aiacute sim um nuacutemero relativamente baixo diante dos 66 que em suas respostas exclu-iacuteram o Brasil Portanto independentemente do interesse pela mateacuteria ser alto ou baixo a relaccedilatildeo com a Histoacuteria do Brasil parece gozar de especial desprestiacutegio Seraacute o desprezo pela histoacuteria nacional um dado da cultura de histoacuteria no Brasil43 Mais adiante quando da anaacutelise das outras fontes vol-taremos a esse ponto De todo modo tal desprestiacutegio evidentemente traraacute implicaccedilotildees para as posturas dos brasileiros em relaccedilatildeo agrave Independecircncia

A princiacutepio os entrevistados tendem a se interessar pouco pela Inde-pendecircncia do Brasil mas essa natildeo eacute uma tendecircncia absoluta se 39 tecircm ldquonenhumrdquo ldquopoucordquo ou ldquopequenordquo interesse 44 tem ldquomeacutediordquo e 17 ldquoentre meacutedio e granderdquo e ldquogranderdquo Ora em se tratando de uma cultura de histoacuteria dinacircmica e fluida com fronteiras pouco claras entre o interesse e o desinte-resse pela histoacuteria de modo geral (e a despeito da clara tendecircncia a um maior desinteresse pela Histoacuteria do Brasil) a Independecircncia eacute pouco interessante mas natildeo eacute inteiramente desprezada (apenas 11 declararam ldquonenhumrdquo inte-resse por ela cifra menor do que a dos grandes interessados)

Parece entatildeo haver espaccedilo aqui para diferentes formas de pensar representar e reinventar a Independecircncia do Brasil como verificar-se-aacute mais adiante de momento constata-se uma correspondecircncia estatiacutestica entre os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram ter dela ldquobomrdquo ou ldquoexcelenterdquo conhecimento (os de ldquonenhumrdquo ldquopoucordquo ou apenas ldquorazoaacutevelrdquo conhecimento compotildee os demais 83) e os 30 que afirma-ram buscar informaccedilotildees a respeito (sendo 60 os que buscam informaccedilotildees sobre histoacuteria em geral) Provavelmente trata-se de um subgrupo dos mais ativos no circuito de consumo-reproduccedilatildeo-criaccedilatildeo de toacutepicos relativos agrave Independecircncia na cultura de histoacuteria no Brasil Dentre esses 30 exclusi-vamente 305 afirmaram buscar informaccedilotildees sobre a Independecircncia em livros 291 na escola e nos livros didaacuteticos (evidentemente mais confina-dos ao puacuteblico jovem) 208 na internet 97 em raacutedio tevecirc eou jornais impressos e outros 97 ldquocom pessoas e lugares44 Os que responderam ler ou ter lido algo a respeito nos uacuteltimos dois anos foram 34 (os demais responderam ldquonatildeordquoldquonatildeo se lembrardquo ou natildeo responderam)

43Natildeo parece ser o caso da cultura histoacuterica

portuguesa de acordo com trabalhos recentes como os de PAIS Joseacute Machado Op Cit SOBRAL Joseacute Manuel Op Cit e MATOS Seacutergio Campos Consciecircncia histoacuterica e nacionalismo Portugal seacuteculos XIX e XX Lisboa Horizonte 2008

44A ausecircncia de menccedilotildees a outros tipos de suporte

de informaccedilotildees sobre a Independecircncia reforccedila a escolha das fontes secundaacuterias da pesquisa analisadas no proacuteximo item

45Embora seja muito frequente a consideraccedilatildeo de

que o principal marco fundacional da histoacuteria brasileira tenha sido o ldquodescobrimentordquo (isto eacute a chegada dos portugueses agrave Ameacuterica em 1500) e natildeo a ruptura poliacutetica entre Brasil e Portugal Muito provavelmente isso se conecta com uma tambeacutem muito frequente concepccedilatildeo da Independecircncia como ldquonatildeo-rupturardquo como processo negociado amigaacutevel e sem grandes solavancos Retornaremos agrave questatildeo

46Todas as 28 palavras oferecidas aos entrevistados

receberam no miacutenimo quatro menccedilotildees sendo que 22 tiveram mais de uma dezena de menccedilotildees a mesclarem termos que remetem a caracteriacutesticas atribuiacutedas agrave Independecircncia que ensejam relaccedilotildees diretas ou indiretas com ela ou que se referem a simples informaccedilotildees

47Foram feitas 310 menccedilotildees de termos positivos em

relaccedilatildeo agrave Independecircncia (liberdade democracia revoluccedilatildeo heroiacutesmo mudanccedila drama) contra 210 dos mesmos como natildeo combinando com ela essa tendecircncia eacute reforccedilada por 190 menccedilotildees a termos negativos que combinariam com ela (acordo escravidatildeo negociaccedilatildeo continuaccedilatildeo ditadura comeacutedia invenccedilatildeo tirania) sendo que os mesmos foram mencionados 391 vezes como natildeo combinando Esclarecer o caso de escravidatildeo pode ser referecircncia a uma realidade (em geral negativa) mas tambeacutem como metaacutefora poliacutetica Para todos os efeitos como mencionar o termo de outras maneiras

48148 escolhas incidiram sobre termos conflitivos

que com ela combinariam (guerra revoluccedilatildeo mudanccedila) contra 101 menccedilotildees a tais termos como natildeo combinando poreacutem tal tendecircncia se inverte nas 119 escolhas de termos paciacuteficos que com ela combinariam (paz acordo negociaccedilatildeo) contra 70 menccedilotildees aos mesmos como natildeo combinando

49Foram feitas 27 escolhas de povo como combinando

contra 22 do mesmo termo como natildeo combinando e 35 a elitepoderosos como combinando contra 14 em termos opostos o que indica certo equiliacutebrio tendente agrave segunda possibilidade

50Natildeo se pode deixar de mencionar algumas

outras palavras que natildeo se encontravam na lista mas foram acrescidas pelos entrevistados sendo portanto de menccedilatildeo espontacircnea As mais recorrentes combinando num sentido depreciativo foram ldquointeresserdquo e ldquocorrupccedilatildeordquo Outras palavras tais quais ldquounificaccedilatildeordquo ldquomorterdquo

16Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

A hipoacutetese da constituiccedilatildeo de um subgrupo ativo na cultura de histoacuteria por meio do tema da Independecircncia encontra respaldo nos resulta-dos do ranking do questionaacuterio para a importacircncia que ela teria tido para a Histoacuteria do Brasil 43 deram nota 10 e outros 31 notas entre 8 e 9 sendo que apenas 6 deram notas entre 0 e 4 ou natildeo souberam responder Ou seja mesmo quem natildeo se interessa pela Independecircncia ou pela Histoacute-ria do Brasil em geral tende a reconhecer o tema como sendo de grande importacircncia embora tal reconhecimento seja menor em se tratando de sua relaccedilatildeo com a Histoacuteria ldquoem geralrdquo (a essa pergunta 25 respondeu com nota 10 e outros 25 com notas 8 ou 9 em contraposiccedilatildeo a um elevado percentual de 22 que deu notas entre 0 e 4 ou natildeo soube responder) Ainda assim portanto a Independecircncia eacute fortemente valorizada por um percentual que extrapola os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram dela serem conhecedores ou os 20 que afirmaram buscar informaccedilotildees a seu respeito Valorizada poreacutem em meio ao que parece ser uma dificuldade de se pensaacute-la para aleacutem de sua tradicional circunscriccedilatildeo nacional (o que encontra como logo veremos enorme correspondecircncia nas fontes secundaacuterias) para aleacutem dos limites a ela convencionalmente impos-tos por tradiccedilotildees historiograacuteficas ainda fortes e mesmo por uma cultura de histoacuteria que tendo atributos fortemente nacionais tende a nela enxergar um marco fundacional importante isto eacute um marco diferenciador entre a histoacuteria do Brasil e a de outros paiacuteses45

O que nesse sentido nos mostram as escolhas de palavras que ldquocom-binamrdquo e ldquonatildeo combinamrdquo com a Independecircncia46 Em primeiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista mais em perspectiva positivaenalte-cedora do que negativadepreciativa47 Em segundo lugar a possibilidade da Independecircncia ser considerada tanto como rupturaconflitiva quanto como continuidadepaciacutefica48 Em terceiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista como algo menos popular do que elitista49 Em quarto e uacuteltimo lu-gar ateacute que ponto os entrevistados se mostraram conhecedores da histoacuteria 55 respostas indicaram termos informativos descabidos (Tiradentes combina D Pedro I D Joatildeo VI Joseacute Bonifaacutecio e Portugal natildeo) contra uma maioria de 190 menccedilotildees a tais termos de modo inverso Aqui os resultados podem indicar a prevalecircncia de um tipo de conhecimento de histoacuteria estruturado em personagens e trajetoacuterias individuais (como logo veremos as fontes secundaacute-rias tambeacutem referendaratildeo amplamente essa hipoacutetese)50

Na uacuteltima parte do questionaacuterio perguntou-se aos entrevistados acerca de datas de quatro eventos que podem ser considerados como marcos do processo de Independecircncia 68 responderam natildeo saber ou natildeo se lembrar da data da chegada da Corte portuguesa ao Brasil 13 deram respostas claramente erradas em muitas das quais (ldquomil e quinhentosrdquo ldquomil quinhentos e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo etc) natildeo obstan-te se vislumbra uma referecircncia adequada poreacutem tratada de modo equivo-cado e somente 9 souberam responder de modo preciso (ldquomil oitocentos e oitordquo) Diante da pergunta quanto agrave data da primeira constituiccedilatildeo do Brasil 85 disseram natildeo saber ou natildeo se lembrar 7 deram respostas claramente erradas (ldquomil e quatrocentosrdquo ldquomil quinhentos e oitentardquo) algumas das quais poreacutem se aproximando da evocaccedilatildeo de alguma consti-tuiccedilatildeo brasileira (ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquomil novecentos e trintardquo ldquomil novecentos e oitenta e oitordquo) e apenas 13 souberam responder com firmeza isto eacute com a presenccedila de ldquomil oitocentos e vinte e quatrordquo na resposta Jaacute a pergunta sobre a data

(em alusatildeo ao Grito) e ldquoprogressordquo enriqueceram a fileira dos termos valorativos

51Essa percepccedilatildeo eacute reforccedilada por alguns dos

dados obtidos por Purificaccedilatildeo Em meio a representaccedilotildees da Independecircncia produzidas por crianccedilas entre 09 e 13 anos encontram-se frases como ldquoQuando D Pedro viu terra gritou Independecircncia ou Morterdquo e ldquoPouco depois de descobrirem o Brasil gritaram a independecircnciardquo PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p40-41 Cabe lembrar que tais crianccedilas natildeo haviam tido ainda contato formal (na escola) com o tema da Independecircncia ldquoapenasrdquo por meio de uma cultura de histoacuteria a envolverem-nas

52O que parece impor uma urgente reflexatildeo em

torno dos efeitos do violento desprestiacutegio das referecircncias factuais que o sistema escolar impocircs ao ensino de Histoacuteria no Brasil das uacuteltimas deacutecadas O quecirc ademais natildeo parece uma situaccedilatildeo exclusivamente brasileira de acordo com a sugestatildeo que nos foi dada por Nuno Gonccedilalo Monteiro a ver aqui paralelismo com o ensino de Histoacuteria em Portugal

53Outras duas possibilidades promissoras seriam

analisar respostas a questotildees de vestibulares relativas agrave Independecircncia e entrevistas com professores e coordenadores pedagoacutegicos que de alguma forma lidem com o tema no cotidiano escolar

54MORENO Jean Carlos Limites escolhas e

expectativas horizontes metodoloacutegicos para anaacutelise dos livros didaacuteticos de histoacuteria Antiacuteteses Londrina v5 n10 p729 juldez2012

55O que eacute atestado por exemplo pela recente

consolidaccedilatildeo da presenccedila nos livros didaacuteticos de toacutepicos relativos agrave Histoacuteria do continente africano

56Dos 49 autores de livros didaacuteticos aqui

considerados 36 satildeo identificados pelos termos ldquomestrerdquo ldquodoutorrdquo ou ldquoprofessor universitaacuteriordquo O que natildeo significa como eacute bem sabido que tais autores sejam integralmente responsaacuteveis pelo conteuacutedo de suas obras

57MORENO Jean Carlos Op Cit p724

58Segundo dados oficiais somente no ano de

2012 esse governo comprou cerca de 408 milhotildees de livros didaacuteticos para os anos do Ensino Meacutedio (Assessoria de Comunicaccedilatildeo Social do FNDE 24 de agosto de 2012)

59Sua produccedilatildeo no entanto eacute regionalmente

concentrada na seleccedilatildeo das coleccedilotildees de didaacuteticos feita pelo MEC em 2010 oito editoras de Satildeo Paulo responderam por 842 da produccedilatildeo aprovada enquanto trecircs de Curitiba ficaram com os 158 restantes

60DIAS Adriana M GRINBERG Keila e

PELLEGRINI Marco Novo Olhar Histoacuteria v2 Satildeo

17Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

da abdicaccedilatildeo de D Pedro I foi a campeatilde em respostas imprecisas 92 dis-seram natildeo saber ou natildeo se lembrar 16 deu respostas erradas e apenas 12 soube responder ldquomil oitocentos e trinta e umrdquo

E quanto agrave data da Independecircncia do Brasil Em comparaccedilatildeo com as perguntas anteriores esta obteve respostas de qualidade superior natildeo obstante um nuacutemero ainda alto de respostas ldquonatildeo souberdquo e ldquonatildeo lembrardquo 33 dos entrevistados Haacute que se lembrar inclusive que desde a segunda parte do questionaacuterio o entrevistado jaacute sabia tratar-se de algo focado na Independecircncia ou seja se nas demais perguntas pode-se dizer que ele foi pego totalmente surpresa nesta natildeo Por isso e se considerarmos ainda os 14 que deram respostas claramente erradas a esta pergunta (ldquomil e qui-nhentosrdquo ldquovinte e um de abril de mil e quinhentosrdquo ldquovinte e dois de abril de mil e quinhentosrdquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquovinte e um de abrilrdquo ldquovinte e dois de abrilrdquo ldquonove de julhordquo) chega-se a um total de 47 de pessoas incapazes de dizer quando ocorreu a Independecircncia do Brasil Por outra parte os que souberam responder (ldquosete de setembro de mil oito-centos e vinte e doisrdquo ou ldquomil oitocentos e vinte e doisrdquo) chegaram a 16 iacutendice muito proacuteximo das dimensotildees do hipoteacutetico grupo de interessados e razoaacuteveis conhecedores da Histoacuteria da Independecircncia referido alguns paraacutegrafos acima

Trata-se de um nuacutemero elevado ainda mais se reafirmarmos que a Independecircncia natildeo eacute jamais completamente ignorada em meio agrave cultura brasileira de histoacuteria De certo modo sim mas natildeo deve escapar agrave obser-vaccedilatildeo de ningueacutem que nessa pergunta especiacutefica a confusatildeo de datas se daacute dentro de referecircncias histoacutericas e cronoloacutegicas bastante demarcadas a Independecircncia o ldquodescobrimento do Brasilrdquo Tiradentes e a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica todos eles marcos fundacionais em uma memoacuteria histoacuteri-ca oficial logo fundamentais na constituiccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil51 Tais resultados indicam preliminarmente a precariedade da concepccedilatildeo de histoacuteria ndash da Independecircncia em particular - segundo formas convencionais de organizaccedilatildeo cronoloacutegica e isso a despeito dessa socieda-de ser permeada e carregada de referecircncias cronoloacutegicas que organizam a vida das pessoas em muitos de seus interstiacutecios (vida familiar vida profis-sional praacuteticas de lazer e de culto etc) Pouquiacutessimas respostas ndash esta-tisticamente despreziacuteveis -parecem esboccedilar a forja de alguma modalidade alternativa de organizaccedilatildeo temporal da histoacuteria (ldquoquase duzentos anosrdquo ldquomil oitocentos e alguma coisardquo ou ldquoD Pedro saiu para brigar com o irmatildeo e deixou D Pedro IIrdquo) diante do quecirc ganha forccedila a hipoacutetese de uma enorme e generalizada dificuldade apresentada por essa sociedade no manejo de recursos baacutesicos de historicizaccedilatildeo da histoacuteria como a cronologia52

Ateacute aqui as conclusotildees a que se pode chegar ainda satildeo excessiva-mente parciais extraiacutedas apenas da sondagem de opiniatildeo conveacutem no entanto sumarizaacute-las de modo a reforccedilaacute-las como hipoacuteteses capazes de nortear a anaacutelise vindoura Segundo o que nos mostram os entrevistados a Independecircncia eacute pouco frequentada por muitos mas assiduamente por um grupo razoaacutevel (seratildeo seus membros os uacutenicos capazes de pensaacute-la segundo marcos cronoloacutegicos) eacute amplamente considerada tema da maior importacircncia para a Histoacuteria do Brasil e de menor importacircncia para a His-toacuteria do Mundo ela eacute menos interessante do que outros temas (quais natildeo sabemos) assim como a Histoacuteria do Brasil eacute menos do que a Histoacuteria Geral mas tende a ser vista como algo respeitaacutevel eventualmente positivo para o Brasil o que parece evocar um imaginaacuterio oficial ainda muito vigente de

Paulo FTD 2010 ALVES Alexandre e OLIVEIRA Letiacutecia F de Conexotildees com a Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Moderna 2010 PEDRO Antocircnio e LIMA Lizacircnias de Souza Histoacuteria sempre presente v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VICENTINO Claacuteudio R e DORIGO Gianpaolo F Histoacuteria Geral e do Brasil v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FIGUEIRA Divalte G Histoacuteria em foco v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2011 NOGUEIRA Fausto G e CAPELLARI Marcos Ser protagonista Histoacuteria 2ordm ano do Ensino Meacutedio Satildeo Paulo Ediccedilotildees SM 2010 BURITTI Flaacutevio Caminhos do Homem v2 Curitiba Base Editorial 2010 CAMPOS Flaacutevio de CLARO Regina A escrita da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 COTRIM Gilberto Histoacuteria Global Brasil e Geral v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 AZEVEDO Gislane C e SERIACOPI Reinaldo Histoacuteria em movimento v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2010 MORENO Jean Carlos e GOMES Sandro V Histoacuteria cultura e sociedade v3 Curitiba Positivo 2010 FERREIRA Joatildeo Paulo e FERNANDES Luiz Estevam Nova Histoacuteria integrada v2 2a ed Curitiba Moacutedulo 2010 MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Histoacuteria Geral e Brasil v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam B Histoacuteria Das cavernas ao terceiro milecircnio v2 2a ed Satildeo Paulo Moderna SANTIAGO Pedro CERQUEIRA Ceacutelia e PONTES Maria Aparecida Por dentro da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 MOCELLIN Renato e CAMARGO Rosiane Histoacuteria em debate v2 Satildeo Paulo Editora do Brasil 2010 CATELLI Jr Roberto GANDINI Mariacutea Soledad M e ASPIS Renata L Histoacuteria texto e contexto v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FARIA Ricardo de M MIRANDA Mocircnica Liz e CAMPOS Helena Estudos de Histoacuteria v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010

61PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit

62Conforme observou o Guia de livros didaacuteticos

PNLD 2012 Histoacuteria 17 das coleccedilotildees aprovadas adotaram a perspectiva da Histoacuteria Integrada na qual se expotildee o conteuacutedo histoacuterico a partir da ldquosequecircncia cronoloacutegica de base europeiardquo havendo o predomiacutenio da ldquoHistoacuteria Geral eurocecircntricardquo linear Os assuntos sobre a Histoacuteria da Ameacuterica e do Brasil estatildeo intercalados nesta grande Histoacuteria Geral As outras duas coleccedilotildees optaram pelo formato temaacutetico organizando os assuntos ldquoem torno de muacuteltiplos espaccedilos e temporalidadesrdquo mas guiados por um eixo cronoloacutegico Guia de livros didaacuteticos PNLD 2012 Histoacuteria Op Cit p 18-19

63Uma afirmaccedilatildeo tiacutepica ldquoO nascimento do

Brasil como paiacutes independente encontra-se dentro do contexto de crise do Antigo Regime e do sistema colonial mercantilistardquo VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p89 Os paradigmas historiograacuteficos a que tal tipo de afirmaccedilatildeo remete satildeo evidentemente as obras de Caio Prado Juacutenior e Fernando Novais jaacute amplamente presentes tambeacutem nos livros de Ensino Fundamental PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit cap3

18Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

glorificaccedilatildeo da Independecircncia laudatoacuterio e a destacar seus personagens centrais No entanto tal tendecircncia encontra obstaacuteculo em outras contraacute-rias minoritaacuterias mas natildeo despreziacuteveis a verem a Independecircncia como algo pouco ou nada importante uma histoacuteria restrita espacialmente e socialmente e mais de continuidades do que de rupturas

Assim jaacute eacute possiacutevel afirmar que a Independecircncia enseja disputas a seu respeito em torno de suas representaccedilotildees e memoacuterias oficiais ou natildeo Muito provavelmente alguns dos motivos que explicam sua rejeiccedilatildeo por muitos explicam igualmente sua ativa e entusiasmada frequecircncia por um grupo menor Em uma terceira via ela jamais deixou de ser pensada e divulgada em perspectivas complexas fortemente criacuteticas e analiacuteticas Para todos os efeitos a Independecircncia contribui sem duacutevida para tipificar uma cultura de histoacuteria no Brasil plural variada e apenas parcialmente organizada em padrotildees cronoloacutegicos (temporais) na qual ocupa um papel central e da qual irradiam outros elementos valiosos para um melhor en-tendimento dessa mesma cultura

4 ndash A Independecircncia nas escolas A principal fonte de fomento e irradiaccedilatildeo de atitudes do brasileiro diante da Independecircncia eacute o sistema escolar com sua diversidade de agentes es-paccedilos procedimentos materiais e valores Aqui seraacute analisado apenas um componente prenhe de significados desse sistema o livro didaacutetico53

Segundo um estudioso da mateacuteria os autores de livros didaacuteticos de Histoacuteria em geral ndash grupo no qual ele mesmo estaacute incluiacutedo -ldquonatildeo tecircm por objetivo somente transpor a Histoacuteria acadecircmica eles identificam necessi-dades sociais estatildeo imersos na sociedade e portanto na proacutepria histoacuteria sobre a qual escrevemrdquo54 Tais livros satildeo assim documentos privilegiados de uma cultura de histoacuteria trazem conteuacutedos de acordo com padrotildees e paracircmetros de uma sociedade agrave qual servem sendo inclusive cada vez mais sensiacuteveis a impulsos de origem natildeo acadecircmica55 contam com a colaboraccedilatildeo ou autoria de historiadores profissionais56 que trabalham junto a editores assistentes revisores iconoacutegrafos diagramadores e designers graacuteficos57 satildeo consumidos preferencialmente por educadores e educandos mas chegam tambeacutem agraves famiacutelias destes e ao puacuteblico em geral tendem a permanecer por algum tempo disponiacuteveis em salas de aula residecircncias livrarias e bibliotecas e satildeo fortemente condicionados pelas exigecircncias de um grande mercado editorial cujas demandas capi-talistas natildeo satildeo menos evidentes do que as pedagoacutegicas O livro didaacutetico eacute o segundo suporte de leitura mais lido no Brasil sendo sua produccedilatildeo o mais lucrativo negoacutecio de uma induacutestria editorial brasileira que tem no governo federal seu maior cliente58 Essa produccedilatildeo dos livros didaacuteticos movimenta enormes cifras veicula paacuteginas e paacuteginas de conteuacutedos de Histoacuteria produzidos por e destinados a um amplo conjunto de agentes sociais e tecircm circulaccedilatildeo nacional59

A Independecircncia estaacute presente em todos os 21 livros destinados ao Ensino Meacutedio aqui considerados60 assim como estava em outros 12 de Ensino Fundamental contemplados por um estudo acadecircmico a respeito61 Nessa dupla frente abre-se uma possibilidade de anaacutelise valiosa jaacute que alguns livros circulam atualmente enquanto outros circularam agrave eacutepoca em que jovens adultos que hoje tecircm entre 22 e 26 anos eram crianccedilas entre 9 e 13 Unem-se assim duas temporalidades de tratamentos da Independecircn-cia que podem ser unificadas por uma cultura de histoacuteria

64Exemplo eacute a afirmaccedilatildeo de que ldquoem

reconhecimento agrave importacircncia da Batalha do Jenipapo como um episoacutedio fundamental no processo de independecircncia e de consolidaccedilatildeo do territoacuterio a data de 13 de marccedilo de 1823 foi estampada na bandeira do estado do Piauiacuterdquo DIAS Adriana GRINBERG Keila e PELLEGRINI Marco Op Cit p240

65Excelente demonstraccedilatildeo eacute dada por uma

proposta pedagoacutegica de um jogo didaacutetico elaborado pelo Laboratoacuterio de Ensino de Histoacuteria da Universidade Federal de Pelotas descrita em GASPAROTTO Alessandra ESPIacuteRITO SANTO Marco Viniacutecio do SILVA Eduarda Borges da Jogo didaacutetico vira-vira a metroacutepole vira colocircnia a colocircnia vira-metroacutepole Revista Latino-Americana de Histoacuteria v2 n6 agosto de 2013 (Ediccedilatildeo Especial) p648-661

66Os preferidos satildeo D Joatildeo Carlota Joaquina Joseacute

Bonifaacutecio e D Pedro

67Um exemplo apoacutes afirmar que ldquodurante anos a

historiografia oficial tentou idealizar o processo de independecircncia e seus autores explicado como um ato de heroiacutesmo contra a tirania e em defesa da liberdaderdquo uma das obras afirma em tom de contraposiccedilatildeo ldquoMas nas uacuteltimas deacutecadas novos estudos permitiram lanccedilar um novo olhar sobre esse periacuteodo Expressotildees dessa mudanccedila satildeo algumas produccedilotildees culturais recentes que tratam desse momento com uma visatildeo criacutetica e ateacute mesmo sarcaacutestica como por exemplo o romance O Chalaccedila (1999) de Joseacute Roberto Torerordquo Por fim propotildee como ldquoSugestatildeo de atividaderdquo supostamente para aguccedilar o senso criacutetico do aluno ldquocomparar o romance de Torero citado acima com a visatildeo oficial dos eventos fornecida pela ceacutelebre pintura Independecircncia ou morte (O Grito do Ipiranga) de Pedro Ameacuterico ou pelo filme Independecircncia ou morte (1972) de Carlos Coimbrardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p80-81) Aleacutem de ignorar os momentos objetivos e naturezas distintos das obras recomendadas tal atividade sugere a ultrapassagem de uma visatildeo ldquotradicionalrdquo da Independecircncia por outra ldquocriacuteticardquo ndash logo mais aceitaacutevel Assim o aluno eacute encorajado a conceber a histoacuteria por meio de sua livre-interpretaccedilatildeo mas sendo impelido a endossar a de um romance satiacuterico (logo voltaremos a ele)

68Em um livro para o Ensino Fundamental de

1996 lia-se que ldquopara a realizaccedilatildeo do nosso trabalho foi importante a participaccedilatildeo de Mariana Massarani artista que desenhou com alegria e bom humor os acontecimentos estudadosrdquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Do mundo indiacutegena ao periacuteodo regencial no Brasil Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1994 p1 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p79) Essa eacute uma tendecircncia antiga como nos mostra o poema de Murilo Mendes ldquoA pescariardquo (publicado em Histoacuteria do Brasil de 1932) evocativo da tatildeo ceacutelebre quanto historicamente irrelevante disenteria de D Pedro em 7 de setembro de 1822 e transcrito em outro didaacutetico ldquoFoi nas margens

19Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Natildeo haacute duacutevida que a maioria dos livros didaacuteticos de Histoacuteria voltados ao Ensino Meacutedio abre possibilidades de construccedilatildeo de um conhecimento acerca da Independecircncia multifacetado matizado criacutetico e criterioso e deles pode-se extrair muitos exemplos a revelarem diaacutelogos propositi-vos entre saberes acadecircmicos e didaacuteticos da Histoacuteria (afinal os proacuteprios autores e avaliadores dos livros estatildeo quase todos diretamente ligados ao meio acadecircmico) aliaacutes em comparaccedilatildeo com os de Ensino Fundamental de cerca de uma deacutecada atraacutes essas possibilidades soacute cresceram Poreacutem como natildeo eacute objetivo deste estudo analisar tais livros em si mesmos -somente deles extrair elementos que tipifiquem uma cultura de histoacuteria por meio da Independecircncia ndash mais relevantes parecem ser justamente alguns de seus pontos sensiacuteveis nos quais tais livros se fazem menos acadecircmicos e nos quais se traduzem de modo mais significativo componentes mais amplos da sociedade que lhes daacute sentido

Em todos esses livros a Independecircncia eacute invariavelmente vista como parte de um processo mais amplo no qual se incluem outros acontecimen-tos poliacuteticos americanos e europeus de finais do seacuteculo XVIII e comeccedilos do seacuteculo XIX (embora quase nunca sejam feitas conexotildees fundamentais entre eles deficiecircncia notaacutevel sobretudo no tocante agraves independecircncias da Ameacuterica espanhola vistas sempre como supostos contraexemplos da Independecircncia do Brasil62) O episoacutedico se faz presente na menccedilatildeo a vaacuterios temas menores ndash a vinda da Corte a abertura dos Portos o governo de D Joatildeo no Rio de Janeiro a Revoluccedilatildeo de Pernambuco a Revoluccedilatildeo do Porto etc ndash mas sempre em observacircncia a contextos histoacutericos espaciais e temporais mais amplos63 Destaque-se que 80 dos livros fazem referecircncia expliacutecita ao termo ldquoguerra(s) de independecircnciardquo64 o que enseja uma con-cepccedilatildeo tambeacutem multirregional do tema e vaacuterios o aprofundam O mesmo pode ser dito de perfis biograacuteficos presentes mas submetidos a uma loacutegica processual da Histoacuteria

Essa ecircnfase em processos em detrimento parcial de acontecimentos e personagens eacute importante indiacutecio de uma sintonia entre saberes aca-decircmicos e natildeo acadecircmicos65 Contudo deve-se relativizar o peso desse diaacutelogo jaacute no que tange ao tratamento dispensado agraves biografias aleacutem de pouco ou nada inovarem na escolha dos personagens destacados66 alguns livros didaacuteticos trazem fragmentos anedoacuteticos de tais trajetoacuterias hoje em dia pouco ou nada uacuteteis a historiadores profissionais (embora as comilan-ccedilas de D Joatildeo os amantes de D Carlota ou as noitadas de D Pedro natildeo os distingua de outros agentes histoacutericos de sua eacutepoca tampouco satildeo trata-dos como tiacutepicos67) Parece razoaacutevel argumentar que ao menos parcial-mente tal insistecircncia da parte do livro didaacutetico atende ao gosto do leitorconsumidor tornando tais suportes materiais mais agradaacuteveis e sedutores assim sendo constata-se justamente um limite no diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e saberes didaacuteticos expressos em tais livros bem como se anuncia uma tendecircncia de representaccedilatildeo humoriacutestica do passado em uma cultura de histoacuteria como a brasileira muito forte em outros suportes68 Eis um mercado ndash que no Brasil mescla dimensotildees editoriais e midiaacuteticas com outras educacionais e culturais mais amplas ndash impondo seus padrotildees de representaccedilatildeo do passado

Aleacutem de envolverem historiadores profissionais em sua produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo os livros didaacuteticos de Ensino Meacutedio parecem esforccedilar-se cada vez mais em trazer conteuacutedos extraiacutedos de obras acadecircmicas bem como apresentar ao leitor uma pluralidade de posiccedilotildees acerca de um determina-

do IpirangaEm meio a uma pescariaSentindo-se mal D PedroComera demais cuscuzDesaperta a braguilhaE grita roxo de raivaOu me livro desta coacutelicaOu morro logo de uma vezO priacutencipe se aliviouSai no caminho cantandoJaacute me sinto independenteSafa Vou de perto a morteVamos cair no fadinhoPra celebrar o sucessordquo MACEDO Joseacute Rivair Brasil ndash uma histoacuteria em construccedilatildeo Satildeo Paulo Brasil 1996 p166 Cit por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p101

69Tomemos por exemplo esta afirmaccedilatildeo ldquoDe acordo

com alguns historiadores as raiacutezes da independecircncia brasileira estatildeo na segunda metade do seacuteculo XVIII quando se multiplicaram atividades produtivas e comerciais na colocircnia sobretudo na regiatildeo Centro-Sulrdquo (MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Op Cit p113) Nela eacute possiacutevel reconhecer a presenccedila de influente e importante interpretaccedilatildeo acadecircmica acerca da Independecircncia do Brasil (DIAS Maria Odila A interiorizaccedilatildeo da metroacutepole (1808-1853) In MOTA Carlos Guilherme 1822 dimensotildees Satildeo Paulo Perspectiva 1972 p160-184) no entanto natildeo eacute apresentada qualquer contraposiccedilatildeo (se esta posiccedilatildeo eacute da parte de ldquoalguns historiadoresrdquo outra divergente deve ser da parte de outros) Mais adiante lecirc-se que ldquoo fato relevante foi que a transferecircncia da corte para o Brasil provocou uma inversatildeo histoacuterica de modo significativo e irreversiacutevel nas relaccedilotildees entre a metroacutepole portuguesa e a colocircnia brasileirardquo (Idem p114) Ora o que seria uma inversatildeo irreversiacutevel dessas relaccedilotildees Portugal teria se tornado para sempre colocircnia do Brasil

70Nos livros didaacuteticos de Ensino Fundamental

analisados por Purificaccedilatildeo jaacute eram abundantes as transcriccedilotildees de trechos de textos de historiadores profissionais sem que deles resultasse qualquer ensejo de pluralidade de pensamento ou de estiacutemulo agrave interpretaccedilatildeo

71VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA

Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p 103

72O capiacutetulo 14 de uma das obras intitulado

ldquoO processo de independecircncia da Ameacuterica portuguesardquo inicia-se com um excerto do Romanceiro da Inconfidecircncia de Ceciacutelia Meireles tambeacutem indutor a essa interpretaccedilatildeo ldquoAtraveacutes de grossas portas sentem-se luzes acesas e haacute indagaccedilotildees minuciosas dentro das casas fronteiras Que estatildeo fazendo tatildeo tarde Que escrevem conversam pensam Mostram livros proibidos Leem notiacutecias nas GazetasTeratildeo recebido cartasde potecircncias estrangeiras [] Oacute vitoacuterias festas flores das lutas da Independecircncia Liberdade ndash essa palavra que o sonho humano alimenta que natildeo haacute ningueacutem que explique e ningueacutem que natildeo entendardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p 202) Jaacute nas ldquosugestotildees de leitura e consulta para o professorrdquo de outra encontra-se indicaccedilatildeo de uma obra de J J Chiavenato - Inconfidecircncia mineira as vaacuterias faces Satildeo Paulo Global 2000 - com este comentaacuterio ldquoo autor mostra o movimento que buscava a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Adotando uma abordagem que parte da realidade socioeconocircmica do periacuteodo este livro releva diferentes aspectos desse momento singular da histoacuteria brasileirardquo (NOGUEIRA Fausto

20Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

do toacutepico que seja decorrente de debates acadecircmicos No entanto ainda eacute frequente que tais conteuacutedos se inclinem agrave pura formalidade dificilmente explicitando divergecircncias oriundas da academia ou resultando em uma tomada de posiccedilatildeo realmente criacutetica perante a histoacuteria69 Ao usuaacuterio do livro eacute apresentada uma suposta pluralidade de pensamento natildeo como ferramenta de obtenccedilatildeo dessa pluralidade mas como estilo de composiccedilatildeo e padronizaccedilatildeo do material didaacutetico70

Esse tipo de atitude formalista pode ser encontrada tambeacutem em propostas de atividades dirigidas ao aluno como esta

A interpretaccedilatildeo sobre a independecircncia do Brasil provocou e ainda provoca muitas divergecircncias Sob o ponto de vista econocircmico alguns pesquisadores defendem que a separaccedilatildeo ocorreu de fato em 1808 [] Outros com interpretaccedilotildees mais poliacuteticas indicam o 7 de setembro de 1822 embora nenhuma medida formal tenha sido tomada nessa data ndash foi um ato simboacutelico Depois da Guerra do Paraguai jornais republicanos argumentavam que [] D Pedro havia atendido aos apelos de independecircncia dos brasileiros mas os teria traiacutedo quando fechou a Assembleia Constituinte em 1823 Enalteciam entatildeo a Inconfidecircncia Mineira (1789) a Revoluccedilatildeo Pernambucana (1817) e a Confederaccedilatildeo do Equador (1824) movimentos com teor republicano conforme as reais aspiraccedilotildees dos brasileiros

Satildeo vaacuterias interpretaccedilotildees que variam de acordo com a posiccedilatildeo poliacutetica ou momento histoacuterico dos autores Alguns intelectuais consideram ateacute mesmo que o Brasil hoje tem uma independecircncia mais nominal do que real pois continuaria dependente dos paiacuteses mais ricos

Em sua opiniatildeo quando o Brasil se tornou um paiacutes independente71

Aqui novamente eacute apresentada uma divergecircncia de interpretaccedilatildeo e vaacuterias satildeo as possibilidades de resposta agrave pergunta quando o Brasil se tornou um paiacutes independente No entanto todas as posiccedilotildees apresentadas parecem equivaler-se pois tudo depende da ldquoposiccedilatildeo poliacuteticardquo ou ldquodo mo-mento histoacutericordquo da pessoa disposta a respondecirc-la Assim e por induccedilatildeo a Inconfidecircncia Mineira poderia ser uma resposta aceitaacutevel conforme visatildeo ainda presente em alguns livros72 e a despeito do contraacuterio que historia-dores vecircm afirmando nas uacuteltimas deacutecadas Do mesmo modo a atividade pareceria aceitar a ldquonatildeo independecircncia de fatordquo ideia muito presente na cultura de histoacuteria no Brasil73 tatildeo sedutora quanto inconsistente do ponto de vista acadecircmico Para o aluno tratar-se-ia de uma questatildeo de simples opccedilatildeo (poliacutetica) diante da qual a Histoacuteria se destemporaliza

Uma Histoacuteria processual mais do que episoacutedica ou personalista uma Histoacuteria permeada de explicaccedilotildees acadecircmicas ao mesmo tempo uma Histoacuteria com limitaccedilotildees em termos de divergecircncias relativizaccedilotildees e possibilidades em aberto condicionada a suportes materiais repletos de convenccedilotildees a tornarem-nos muito parecidos entre si Talvez seja no tra-tamento dispensado a imagens que os livros didaacuteticos melhor revelam tais convenccedilotildees reforccedilando as limitaccedilotildees de seu diaacutelogo com a Histoacuteria acadecirc-mica bem como acentuando suas caracteriacutesticas de mercadoria Todos os livros aqui considerados satildeo carregados de itens especiacuteficos a quebrarem a continuidade do texto e suas paacuteginas satildeo multicoloridas e povoadas por fi-guras como obras de pintores dos seacuteculos XIX e XX74 Quase nunca poreacutem tais imagens satildeo analisadas como fontes histoacutericas confinadas agrave funccedilatildeo de mera ilustraccedilatildeo frequentemente modificadas em cor e tamanho ateacute mesmo mutiladas ndash sem esclarecimento ndash em prol da diagramaccedilatildeo75 Em tais casos inevitavelmente cria-se uma ideia natildeo de uma histoacuteria sujeita a muacuteltiplas interpretaccedilotildees (contrapondo-se portanto a vaacuterias das atividades

e CAPELLARI Marcos Op Cit p71) Em uma terceira obra logo na abertura de um capiacutetulo intitulado ldquoA independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo lecirc-se que ldquoos dias 21 de abril e 7 de setembro feriados nacionais nos fazem lembrar de dois momentos do processo histoacuterico que levou a independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo (COTRIM Gilberto Op Cit p223) A associaccedilatildeo direta entre Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia era mais comumente feita em livros didaacuteticos de deacutecadas atraacutes Um de Ensino Fundamental caracterizava a Revolta de Beckman a Guerra dos Emboabas a Revolta de Felipe dos Santos a Guerra dos Mascates e as conjuraccedilotildees Mineira e Baiana como movimentos nos quais ldquoos revoltosos se opuseram agrave metroacutepole sonhando e lutando pela autonomia do paiacutesrdquo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Nas trilhas da histoacuteria Ensino Fundamental Belo Horizonte Dimensatildeo 1999 v4) Citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p108

73FIGUEIRA Divalte G Op Cit p191 Nos de

Ensino Fundamental AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 CARMO Socircnia S do COUTO Eliane F B A A consolidaccedilatildeo do capitalismo e o Brasil impeacuterio Satildeo Paulo Atual 1997 (Histoacuteria Passado Presente 3) p105 FERREIRA Joseacute Roberto Histoacuteria Ediccedilatildeo Reformulada Satildeo Paulo FTD 1997 (7ordf seacuterie) p65 ALVES Kaacutetia Correia Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p 128 Citados por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p78 84-85 96 e 111

74Debret Rugendas Moreaux Feacutelix Taunay

Constantino Fontes Polliegravere Parreiras Benedito Calixto Delerive Martins Viana Oscar Pereira da Silva Georgina de Albuquerque e Aldemir Martins entre outros

75Isso jaacute era frequente haacute uma deacutecada com livros

de Ensino Fundamental como por exemplo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p126 e COTRIM Geraldo Op Cit p 112 conforme anaacutelise de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p113 e 123 Haacute que se dizer que livros didaacuteticos natildeo satildeo meio exclusivo para esse esvaziamento do valor documental da iconografia havendo na proacutepria publicaccedilatildeo acadecircmica problema semelhante como demonstra CAVENAGHI Airton Joseacute O atlas do impeacuterio do Brazil e as representaccedilotildees presentes no livro Projeto Histoacuteria v 41 2010 p 383-403

76Constataccedilatildeo semelhante agrave de PURIFICACcedilAtildeO Ana

Teresa da Op Cit para os didaacuteticos de Ensino Fundamental

77NOGUEIRA Fausto e CAPELLARI Marcos Op

Cit p255

78Para um deles ldquoo pintor Pedro Ameacuterico imaginou

a cena ocorrida agraves margens do riacho do Ipirangardquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 para outro um ceacutelebre quadro mostraria uma ldquocena de uma

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sessatildeo das cortes de Lisboa reconstituiacuteda pelo pintor Oscar Pereira da Silvardquo Cfr CARMO Socircnia do COUTO Eliane F B A Op Cit p 73 um terceiro propunha ao aluno a seguinte atividade ldquoobserve cuidadosamente as gravuras de Debret que aparecem no texto Descreva cada uma delas e compare as cenas nelas retratadas com as cenas de nossas ruas de hoje Haacute diferenccedila Em que sentidordquo Cfr GARCIA Leocircnidas F Estudos de histoacuteria sociedades contemporacircneas 2 ed rev Goiacircnia Editora da UFG 1996 Manual do Professor p 111 Todas as informaccedilotildees foram retiradas de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p81 88 e 137

79Conforme bem mostrado por Elias Saliba Cfr

SALIBA Elias Experiecircncias e representaccedilotildees sociais reflexotildees sobre o uso e o consumo das imagens Anais do II Encontro Perspectivas do Ensino de Histoacuteria Satildeo Paulo FEUSP 1996 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p119

80Produzida pela Secretaria de Ensino agrave

Distacircncia do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo em parceria com a TV Escola e a Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco com a companhia teatral Matildeo Molenga Parte 1 disponiacutevel em youtubecomwatchv=Z60eHBJ1xjY 18082 visualizaccedilotildees e 15 comentaacuterios parte 2 disponiacutevel em youtubecomwatchv=2QLkP2NDhMg 30100 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios (parte desse episoacutedio tambeacutem disponiacutevel em youtubecomwatchv=bAPUjP7l-lI 18398 visualizaccedilotildees e 16 comentaacuterios acesso em 13022014

81Como Clemente Pereira Gonccedilalves Ledo Cipriano

Barata Paes de Andrade e frei Caneca O fato de se tratar de uma produccedilatildeo pernambucana contribui para tanto

82Semelhante observaccedilatildeo pode ser feita a respeito

dos doze curtos episoacutedios da seacuterie D Joatildeo no Brasil inspirada em uma narrativa em quadrinhos da chegada da Corte ao Brasil seacuterie de animaccedilatildeo produzida pelo Canal Futura baseada no livro de histoacuteria em quadrinhos D Joatildeo Carioca a corte portuguesa chega ao Brasil (1808 - 1821) escrito pela historiadora Lilia Schwarcz e pelo desenhista Spacca (Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007) Novamente tem-se um material convincente afinado em muitos sentidos com um conhecimento acadecircmico mas que ao recorrer agrave saacutetira tambeacutem evoca estereoacutetipos convencionais como por exemplo os mesmos acima mencionados em referecircncia a priacutencipe e princesa Poder-se-ia atribuir tal convencionalismo dentre outros fatores ao de que a primazia da linguagem visual aqui opera duplamente isto eacute com os quadrinhos e tambeacutem com o programa televisivo criado a partir deles amplificando assim os efeitos decorrentes da saturaccedilatildeo visual da sociedade que daacute origem e significado a esse material Para todos os efeitos a imposiccedilatildeo de tais convenccedilotildees eacute forte ateacute mesmo conforme jaacute visto em materiais menos visuais que este Episoacutedio 01 youtubecomwatchv= 9f5RB1zcD5Eamplist=PLyP1ks9vaqhj2y6MmckU DyuXtWmHgPLe5ampindex=1 331 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio episoacutedio 02 youtubecomwatchv= w-BLqvhYPGkamplist=PL5837763F26AB1B87

oferecidas pelos proacuteprios livros) mas de uma histoacuteria imoacutevel a ser captada de modo instantacircneo uma histoacuteria verdadeira Aleacutem do mais confundem-se os diferentes contextos motivaccedilotildees e condiccedilotildees de produccedilatildeo de tais imagens o que equivale agrave oferta de uma confusatildeo temporal que impossibi-lita a compreensatildeo dessa histoacuteria76

As uacutenicas exceccedilotildees satildeo os ceacutelebres quadros de Moreaux e de Pe-dro Ameacuterico Todos os livros didaacuteticos aqui considerados se esforccedilam por submetecirc-los a uma criacutetica muitas vezes comparativa considerando forma conteuacutedo e contexto mesmo assim eacute possiacutevel encontrar afirmaccedilotildees como a de que Ameacuterico teria tido ldquoo intuito de fazer a representaccedilatildeo desse famoso acontecimento da maneira mais fiel possiacutevelrdquo e que ldquomuitos dos elementos representados pelo pintor satildeo sabidamente falsosrdquo77 Provavel-mente satildeo resquiacutecios de um momento anterior no qual os livros didaacuteticos mostravam-se muito menos cuidadosos ateacute mesmo na utilizaccedilatildeo do quadro de Ameacuterico78 mas tambeacutem marcas atuais de uma sociedade de haacutebitos fortemente visuais cuja saturaccedilatildeo de imagens tende a resultar em posturas pouco criacuteticas em relaccedilatildeo ao que se vecirc bem como em indistinccedilatildeo tempo-ral das mesmas79 Haacute que se lembrar por fim e novamente que os textos desses livros satildeo cheios de descontinuidades como se cada pedaccedilo de cada paacutegina tivesse autonomia prescindindo de certo modo da leitura dos demais Guardaratildeo tais constataccedilotildees alguma relaccedilatildeo com as dificuldades apresentadas pelos entrevistados na sondagem de opiniatildeo de organizar visotildees da Histoacuteria da Independecircncia segundo marcos cronoloacutegicos bem como de distinguir diferenccedilas entre intervalos temporais Eacute bem possiacutevel sobretudo porque ela seraacute endossada pela observaccedilatildeo de outras fontes

5 - A Independecircncia na internet e na tevecircExiste farto e rico material audiovisual disponiacutevel na internet com referecircncias agrave Independecircncia do Brasil e que a exemplo dos livros didaacuteticos represen-tam a convergecircncia de esforccedilos profissionais muacuteltiplos (mais os programas de tevecirc do que os viacutedeos independentes) como pesquisadores roteiristas apresentadores repoacuterteres cenoacutegrafos teacutecnicos variados etc As fontes aqui delimitadas perfazem 107 viacutedeos acessiacuteveis no YouTube e que natildeo obstante sua ampliacutessima diversidade convergem em muitos significados

Observe-se o caso de viacutedeos educativos documentaacuterios e programas de televisatildeo com entrevistas e debates que em comum apresentam objetivos formativos e esforccedilos verdadeiros de incorporaccedilatildeo de conteuacutedos acadecircmicos traduzidos em linguagens didaacuteticas Um caso exemplar eacute a seacuterie 500 anos o Brasil - Impeacuterio na TV que conta uma histoacuteria do Brasil da chegada da Corte ao periacuteodo das regecircncias em formato de telejornal com trama romanceada e teatro de bonecos80 Aqui vecirc-se uma Histoacuteria processual com informa-ccedilotildees corretas e amparadas em datas deslocamentos frequentes dos eixos espaciais de observaccedilatildeo (regional internacional) com menccedilatildeo a persona-gens que extrapolam o tradicional ciacuterculo da Corte portuguesa81 e ecircnfase no caraacuteter violento e conflitivo da formaccedilatildeo do Brasil no seacuteculo XIX Mesmo um material histoacuterico-pedagoacutegico desse quilate evoca por exemplo a falta de atributos esteacuteticos de Carlota Joaquina ou a pusilanimidade de seu marido a revelarem mais uma vez o mercadologicamente eficiente componente bio-graacutefico-anedoacutetico no tratamento da Independecircncia advindo de sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria mais ampla82

Em outros casos o fato de programas de televisatildeo buscarem o auxiacutelio de especialistas na Independecircncia revela uma convenccedilatildeo formal como nos

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16566 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios episoacutedio 03 youtubecomwatchv=QvWSE-sF-w4amplist =PL5837763F26AB1B87 18406 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios episoacutedio 04 youtubecomwatchv= 2N5wBvpgyXEamplist=PL5837763F26AB1B87 12808 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 05 youtubecomwatchv=VaHrSAFBf1Uamplist =PL5837763F26AB1B87 14615 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 06 youtubecomwatchv= 8RrCMbOZTsAamplist=PL5837763F26AB1B87 12649 visualizaccedilotildees 10 comentaacuterios episoacutedio 07 youtubecomwatchv=I4cgWo_GHaQ 601 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 08 youtubecomwatchv=rI71YNrLo7o 12299 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 09 youtubecomwatchv=huv2ngnqUd4 367 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios episoacutedio 10 youtubecomwatchv=F2MaLs_kj-w 10842 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios episoacutedio 11 youtubecomwatchv=8zK3D01dXc0 9388 visualizaccedilotildees 05 comentaacuterios episoacutedio 12 youtubecomwatchv=R76BHD--vB8amplist=PL5837763F26AB1B87 12108 visualizaccedilotildees 9 comentaacuterios acessos em 03042014

83NAPOLITANO Marcos A Histoacuteria depois do

papel In Carla Pinsky (org) Fontes Histoacutericas Satildeo Paulo Contexto 2005 p250-252 Napolitano afirma com base em Umberto Eco que a televisatildeo introduziu uma mudanccedila de ritmo de vida familiar e cotidiana bem como o que se pode chamar de hipertrofia sensorial em detrimento da assimilaccedilatildeo conceitual Destaca ainda que eacute preciso pensar a televisatildeo como uma nova experiecircncia social do tempo histoacuterico na medida em que ela faz coincidir o verdadeiro o imaginaacuterio e o real no ponto indivisiacutevel do presente

84Produzida pela rede de emissoras puacuteblicas

TV Brasil Sobre a Revolta dos Alfaiates parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo 767 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=dj04LJJM8bk 2592 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio Sobre a Batalha do Jenipapo parte 1 youtubecomwatchv=zlgsZcj-V3o 2426 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios acesso em 24032013 parte 2 youtubecomwatchv=rAS3dHAvWPQ 1283 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio Sobre Tiradentes youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 408 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013)

85Marco Morel e Luiacutes Henrique Dias Tavares

86Programa De laacute pra caacute Revolta dos Alfaiates

parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo

87Exceccedilatildeo satildeo as entrevistas realizadas por

Mocircnica Teixeira na UnivespTV que estabelecem comunicaccedilatildeo bastante profiacutecua entre a entrevistadora e os acadecircmicos entrevistados (youtubecomwatchv=syXf3WHQRPM 4450 visualizaccedilotildees 06 comentaacuterios youtubecomwatchv=pZk5pFlboqw 3303 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=5pUDP2KUYCY 4128 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios

livros didaacuteticos e a exemplo destes a intenccedilatildeo de acolher uma multipli-cidade de vozes raramente enseja verdadeira pluralidade de pensamento o que ademais eacute dificultado pela natureza curta sinteacutetica e acelerada dos materiais televisivos Nessas situaccedilotildees constata-se que o historiador fala uma coisa mas o entrevistador e o produtor continuam a ldquoescutarrdquo outra o que muitas vezes reforccedila a percepccedilatildeo de descontinuidade narrativa an-teriormente tambeacutem diagnosticada nos livros didaacuteticos e que na televisatildeo adquire contornos de regra83 Os episoacutedios da seacuterie De laacute para caacute educati-vos didaacuteticos aacutevidos por com conhecimentos acadecircmicos e produzidos por uma rede puacuteblica de televisatildeo sem fins lucrativos apresentam interessante exemplo84 No programa dedicado aos acontecimentos de 1798 na Bahia dois historiadores profissionais85 esclarecem que os revoltosos ldquobahien-sesrdquo almejavam a independecircncia apenas da capitania da Bahia o que tem enormes implicaccedilotildees a destituiacuterem tais acontecimentos de qualquer atribu-to supostamente preparatoacuterio da Independecircncia do Brasil (situaccedilatildeo muito semelhante conforme vimos agrave da Inconfidecircncia Mineira) natildeo obstante na abertura do programa seu apresentador declara

A luta pela independecircncia do Brasil foi escrita nas paacuteginas memoraacuteveis da nossa histoacuteria com o sangue de um punhado de brasileiros O mais celebrado foi Tiradentes Mas sete anos depois do martiacuterio de Tiradentes quatro brasileiros pretos pobres pelos mesmos ideais foram enforcados e sentenciados em Salvador86

Em outros momentos o apresentador apesar de ouvir de forma soliacutecita e atenta ao que o entrevistado tem a dizer acaba por negar com sua proacutepria fala parte do conteuacutedo receacutem-ouvido mas sem demonstrar ser essa atitude premeditada ou consciente Afinal eacute difiacutecil desvencilhar-se daquilo que jaacute se ldquosaberdquo daquilo que adveacutem de um ambiente que o tempo todo nos ldquoensinardquo Histoacuteria sem necessariamente disso nos darmos conta87

A incapacidade de assimilaccedilatildeo reciacuteproca de ideias acerca da histoacute-ria entre agentes sociais diversos pode revelar-se de muitos modos Um dos programas da seacuterie Caminhos da Reportagem intitulado Caminhos da Independecircncia o grito nas ruas produzido com as mesmas caracteriacutesticas do anterior aborda a Independecircncia focada em seus panfletos poliacuteticos a partir da pesquisa recente de trecircs historiadores profissionais88 No entan-to e a despeito natildeo soacute de dar ampla voz a eles mas tambeacutem de abordar conteuacutedos didaticamente inovadores a equipe de entrevista que foi agraves ruas natildeo estabeleceu qualquer mediaccedilatildeo entre histoacuterias acadecircmicas e natildeo acadecircmicas pressupondo que todas as pessoas ocupam uma mesma posiccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria Por isso perguntas incompreensiacuteveis89 resultam apenas em situaccedilotildees vexatoacuterias impeditivas da construccedilatildeo de conhecimento sobre o tema

A abordagem de pessoas nas ruas recurso frequentemente utiliza-do por programas televisivos revela dados importantes acerca de como os brasileiros veem a Independecircncia muitas vezes mais por aquilo que eacute perguntado do que por aquilo que eacute respondido90 O programa + Estilo de 07 de setembro de 2011 produzido pela TV Campo Grande com conteuacutedo de variedades destinado a telespectadores de meio de tarde foi agraves ruas (provavelmente de Campo Grande Mato Grosso do Sul) perguntar se as pessoas saberiam dizer o que se comemorava naquele dia Primeiro res-ponde uma jovem com um bebecirc no colo

23Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

youtubecomwatchv=0ZVgCwkt1ms 1384 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1016 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1227 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=ANSHAFLau04 1175 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios) Acessos em 21042014

88Joseacute Murilo de Carvalho Luacutecia Pereira das Neves

e Marcello Basile

89A apresentadora ldquoVocecircs sabem o que significa

corcundardquo Um professor de coleacutegio ldquoDeve ser alguma coisa que estaacute surgindo aiacute no mundo um pouco mais ciberneacutetico porque eu nem na faculdade ouvi falar dos corcundasrdquo Marcos Tomazzeti produtor multimiacutedia ldquoNa minha cabeccedila vem algo de monarquia de rei algo meio poliacuteticordquo Simone Granda bancaacuteria ldquoDicionaacuterio de corcundice Natildeo seirdquo Marilu Guimaratildees dona de casa ldquoPuxa tem tanta coisa importante pra ter dicionaacuterio vai ter justo do corcundistardquo Caminhos da Independecircncia youtubecomwatchv=37XH5UEpjlI acesso em 24032013

90Em perspectiva oposta mas complementar agrave da

sondagem de opiniatildeo aqui utilizada

91E que portanto muito provavelmente ainda natildeo

tinha tido contato formal (escolar) com o tema

92O programa prossegue entatildeo com uma entrevista

com o professor Ian Rari que trata de uma Histoacuteria da Independecircncia processual natildeo centrada em uma uacutenica data ou fato criacutetica etc Mais um momento onde as vaacuterias vozes contempladas pelo programa natildeo dialogam entre si (youtubecomwatchv=xv1LOlwUfFQ 289 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio) Outro exemplo significativo eacute dado pelo programa Conexatildeo Jovem exibido em 06 de setembro de 2012 no qual dois entrevistados ndash Prof Bira professor de Histoacuteria e Marcos Eduardo socioacutelogo ndash utilizam com competecircncia o pouco tempo a eles destinado discorrendo de modo criacutetico sobre a Independecircncia e em linguagem adequada ao puacuteblico jovem ao qual o programa se destina (produccedilatildeo da TV Novo Tempo adventista parte 1 youtubecomwatchv=1IvYOYtju9sgt 74 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=Ofv7QWOJpHo 47 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013) Logo o programa traz uma abordagem feita na rua na qual a entrevistadora pergunta a uma jovem ldquoQuem falou lsquoindependecircncia ou mortersquo agraves margens do riacho do Ipirangardquo Diante da correta resposta a entrevistadora tenta induzir um erro ldquo15 de novembro ou 7 de setembrordquo Aliaacutes a expectativa do programa parece revelada pela entrevistadora logo na primeira pergunta feita a um dos convidados ldquoseraacute que os jovens se interessam pela histoacuteria de seu paiacutesrdquo E embora o material recolhido pelo proacuteprio programa permita resposta afirmativa manteacutem-se a postura negativa preacute-concebida

93Daiacute a relevacircncia de um viacutedeo com fotografias e

um aacuteudio (youtubecomwatchv=UdQ_aAAl3DE)

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoE isso em que ano que foi que aconteceurdquoResposta ldquo1822rdquo

Em seguida outro jovem que provavelmente jaacute tinha respondido a outra pergunta

Pergunta ldquoQuem foi o imperador vocecirc lembrardquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoAcertou Canta pra gente um trecho do hino da independecircnciardquoResposta ldquoAgora natildeo lembrordquo

Agora o programa aborda uma menina de cerca de dez anos clara-mente intimada91

Pergunta Por que eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoNatildeo seirdquoPergunta ldquoNatildeo lembra Vou dar uma dica um fato histoacuterico muito importante para o BrasilrdquoResposta (negativa com a cabeccedila)

Em quarto lugar outra jovem que procura se afastar da cacircmera

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta (ainda tentando se esquivar sorrindo) ldquoNatildeordquoPergunta ldquoNatildeo saberdquoResposta ldquoAh A Independecircncia Eu natildeo prestei atenccedilatildeordquoPergunta Que ano aconteceu a Independecircncia vocecirc lembrardquoResposta ldquoNatildeordquoPergunta ldquoE quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoTambeacutem natildeo lembrordquo

Por fim a entrevista com um senhor de meia-idade comeccedila jaacute com uma resposta

Resposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoQue ano aconteceu issordquoResposta ldquo1888rdquoPergunta ldquo1822 Quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoCerto E onde foi que aconteceu tudo issordquoResposta ldquoSatildeo PaulordquoPergunta ldquoOK [breve silecircncio] Canta um trechinho para noacutes do hino da IndependecircnciardquoResposta ldquoJaacute podeis da paacutetria matildeerdquo [sic -prossegue cantando corretamente]

Em seguida o programa corta para uma sala de aula onde a despeito dos ldquoacertosrdquo obtidos nas ruas a entrevistadora afirma

Diante da dificuldade que noacutes encontramos no centro da cidade para saber informaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil eu vim parar na sala de aula Vai ser aqui que a gente vai descobrir a histoacuteria do paiacutes92

A ideia a priori de que o brasileiro natildeo conhece e natildeo se interessa pela histoacuteria subsidia este e muitos outros programas Aqui o dado mais relevante parece estar precisamente nessa arraigada crenccedila no desinteres-

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da entatildeo prefeita de Ribeiratildeo Preto (Satildeo Paulo) Darcy Vera que afirma durante um desfile de 7 de Setembro dentre vaacuterios desvarios que ldquoTiradentes gritou lsquoIndependecircncia ou mortersquordquo Com 169919 acessos e 149 comentaacuterios (em geral criacuteticos bem humorados e depreciativos) ateacute 20082014 condensa a possibilidade de amplificaccedilatildeo do estigma do natildeo domiacutenio de referecircncias convencionais agrave Independecircncia mas sem fomentar nenhum conhecimento da mesma

94Novamente surge a questatildeo natildeo teratildeo as

renovaccedilotildees curriculares promovidas no ensino de Histoacuteria (no Brasil e alhures) das uacuteltimas deacutecadas exagerado nessa incompatibilidade Teratildeo elas sido capazes de mensurar seus efeitos deleteacuterios diante de sociedades jaacute bastante refrataacuterias a uma histoacuteria cronoloacutegica

95ldquoPouco importa que sua figura tenha sido

mitificada pela propaganda republicana O que importa eacute que ele foi um heroacutei Ele deu sua vida pela paacutetria e pela liberdaderdquo (Programa De laacute pra caacute youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032013) Essa exaltaccedilatildeo da figura de Tiradentes associada agrave Independecircncia conduz o discurso da propaganda eleitoral de um candidato agrave prefeitura de Ouro Preto em 2012 (youtubecomwatchv=eGefgLoRhec 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032014) Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo no dia 09 de setembro de 2013 apoacutes se autocaracterizar como realizador de uma ldquohistoacuteria de carne e ossordquo em contraposiccedilatildeo a produccedilotildees ldquocontaminadas pela anaacutelise marxistardquo que retirariam os personagens da Histoacuteria o jornalista Laurentino Gomes afirma ldquoNo 1822 faccedilo uma comparaccedilatildeo e digo que o uacutenico problema do Joseacute Bonifaacutecio foi nascer no Brasil pois se ele tivesse nascido nos Estados Unidos teria sido maior que o Thomas Jefferson Porque aparentemente ele era mais preparado mais luacutecido que o Thomas Jeffersonrdquo (parte 1 youtubecomwatchv=uGibbLxsZK0 4501 visualizaccedilotildees e 5 comentaacuterios parte 2 youtubecomwatchv=2LQcEcb5kLU 2302 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios acesso em 26032014 Logo voltaremos agrave obra e agraves ideias de L Gomes

96Um exemplo adveacutem do viacutedeo ldquoA verdadeira

independecircncia do Brasilrdquo em que um pastor evangeacutelico em meio a uma cerimocircnia religiosa ldquodesconstroacuteirdquo o quadro de Pedro Ameacuterico acusando-o de pouco verossiacutemil e aponta os desvios morais de D Pedro I de modo a inviabilizaacute-lo como figura histoacuterica digna de memoacuteria (youtubecomwatchv=RsKQr6bgzLA 178 visualizaccedilotildees e 2 comentaacuterios acesso em 24032014) A suposta irrelevacircncia dos personagens envolvidos no processo da independecircncia eacute notaacutevel na fala de um professor de Ensino Meacutedio (youtubecomwatchv=gvWVF9j2KEU 597 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) e de um apresentador de temas religiosos que relativizam a importacircncia do tema ao afirmarem a atual ldquodependecircncia econocircmicardquo do Brasil (youtubecomwatchv=EXyUBY7StF4 383 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Tambeacutem retornaremos a esse tema

sedesconhecimento do brasileiro pela histoacuteria bem como em um de seus efeitos mais contundentes a crenccedila de que eacute possiacutevel reverter tal situaccedilatildeo pela simples mobilizaccedilatildeo formal de datas nomes e eventos Contudo se a Independecircncia se converte em uma catalizadora de referecircncias cronoloacute-gicas ou nominais isso natildeo leva necessariamente a uma historicizaccedilatildeo do tema pelo contraacuterio a mobilizaccedilatildeo de tais referecircncias em termos como os acima mencionados (a data ou o nome por si soacutes) pode resultar no apro-fundamento da tendecircncia agrave confusatildeo temporal jaacute aqui apontada93

Nos meios intelectuais a discussatildeo em torno das formas tempo-rais de vivecircncia coletiva naquilo que se pode chamar ndash recorrendo-se a uma categoria uacutetil ndash de modernidade natildeo eacute nova tampouco estaacute em vias de esgotamento A dificuldade de organizaccedilatildeo do mundo social segundo referecircncias cronoloacutegicas natildeo seraacute em absoluto distintiva de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil embora o contraacuterio deva ser dito em relaccedilatildeo agraves formas assumidas por tais dificuldades (como as noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia) Percebe-se entatildeo o peso do estigma da dificuldade em manejar datas nomes e fatos suposta prova de um desin-teresseignoracircncia que poderia ser combatido com um retorno a velhas formas de se fazer Histoacuteria e nas quais tais elementos eram considera-dos com a essecircncia da compreensatildeo histoacuterica Natildeo parece que as coisas devam propriamente se passar segundo essa representaccedilatildeo embora um dos confrontos existentes na cultura de histoacuteria no Brasil seja sem duacutevida a polarizaccedilatildeo entre a valorizaccedilatildeo da Independecircncia (= de suas datas nomes eventos siacutembolos e supostos valores etc) e a desvalorizaccedilatildeo da mesma (=seu caraacuteter elitista e negociador a diminuiccedilatildeo da histoacuteria do Brasil em comparaccedilatildeo com a de outros paiacuteses a comicidade dessa histoacuteria etc) Eacute plausiacutevel conceber que esta segunda posiccedilatildeo encontre um aliado na con-cepccedilatildeo de incompatibilidade entre uma histoacuteria amparada por referecircncias cronoloacutegicas e ao mesmo tempo em processos estruturas e temas trans-versais do gosto inclusive de muitos acadecircmicos e educadores94

Os exemplos de materiais audiovisuais a traduzirem veicularem e fomentarem esse confronto entre valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo da Inde-pendecircncia satildeo muitos Aleacutem dos jaacute tratados ateacute aqui pode-se mencionar viacutedeos contendo propaganda de instituiccedilotildees puacuteblicas civis e militares de partidos poliacuteticos de grupos maccedilocircnicos de igrejas e de empresas variadas bem como produccedilotildees independentes Neles eacute possiacutevel encontrar desde a exaltaccedilatildeo das referecircncias mais convencionais agrave Independecircncia como a seus personagens (incluindo seu suposto maacutertir Tiradentes)95 ateacute a afirma-ccedilatildeo de sua total irrelevacircncia96 isso costuma ocorrer sem muitos matizes obedecendo a uma loacutegica dicotocircmica plasmada em linguagens simples com descontinuidades discursivas e imageacuteticas e num ritmo de exposiccedilatildeo acelerado Em suma tratam da Independecircncia segundo padrotildees parcial-mente compartilhados tambeacutem por outras fontes ateacute aqui analisadas

Todas essas fontes com suas noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia satildeo sintomaacuteticas de estados de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema bem como potenciais formadores de opiniatildeo dos mesmos Sua capacidade de criaccedilatildeo de conhecimento no entanto se mostra muito limi-tada Eacute bem verdade que esta eacute por vocaccedilatildeo uma tarefa confiada a saberes acadecircmicos ndash jaacute que no Brasil a quase totalidade da pesquisa em Histoacuteria estaacute entregue agraves universidades salvo a de interesse corporativo ndash de modo que natildeo seria de esperar inovaccedilatildeo em suportes tatildeo variados e socialmen-te diversificados quanto os ateacute aqui analisados Mas parece haver aiacute certo

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ciacuterculo vicioso a envolver tambeacutem parte da academia Basta observar que a ideia da ldquonatildeo Independecircncia de fatordquo tatildeo em voga entre tantos historiadores durante tanto tempo reverbera com forccedila na sociedade em geral97 e ainda goza de prestiacutegio ateacute mesmo entre alguns acadecircmicos que bebem-na da sociedade e apoacutes modificaacute-la parcialmente devolvem-na aos espaccedilos de di-vulgaccedilatildeo98 Essa versatildeo da Histoacuteria eacute capaz de transpor fronteiras temporais de atualizar-se em diferentes contextos e ateacute mesmo de superar abissais diferenccedilas poliacuteticas ela estaacute representada por exemplo e de modo quase idecircntico na propaganda poliacutetica de um partido trotskista e na pregaccedilatildeo nacionalista-direitista de um polecircmico professor de histoacuteria99

Por fim tome-se o caso de trecircs produccedilotildees da Rede Globo de Televi-satildeo voltadas ao puacuteblico em geral com consideraacuteveis aportes financeiros e complexa produccedilatildeo a seacuterie documental A Corte no Brasil para exibiccedilatildeo em tevecirc fechada100 e as seacuteries humoriacutesticas O Quinto dos Infernos101 e Eacute muita Histoacuteria Dia de Fuacuteria102 veiculadas amplamente em tevecirc aberta No pri-meiro caso siacutetios histoacutericos visitados pelas apresentadoras uma narrativa soacutebria e informativa de fatos e processos grande quantidade de entrevistas com historiadores ecircnfase em diferentes espaccedilos regionais e internacio-nais e tratamento do tema em muacuteltiplas dimensotildees (poliacutetica econocircmica cultural) No segundo caso uma narrativa romanceada teatral e cocircmica fortemente despolitizada e livremente baseada em trecircs livros de igual teor (um deles publicado haacute quase um seacuteculo)103 praticamente centrada no Rio de Janeiro (um pouco tambeacutem em Portugal muito menos alhures) e nos membros da famiacutelia real portuguesa cuja vida pessoal eacute estruturada em torno de seus haacutebitos excecircntricos (principalmente os sexuais) e vez ou outra de passageiros dramas pessoais104

Finalmente no terceiro caso uma encenaccedilatildeo tambeacutem cocircmica pro-tagonizada por um escritor-autor-ator-palhaccedilo com grande liberdade de criaccedilatildeo mas amparada em informaccedilotildees convenccedilotildees e mitos a oferecer uma versatildeo do Sete de Setembro segundo o estado psico-fisioloacutegico de D Pedro

Eis um exemplo de uma das modalidades assumidas pela disputa em torno de uma Independecircncia valorizada e outra depreciada Pareceria justificaacutevel opor a tal diagnoacutestico a constataccedilatildeo de se tratarem de obras televisivas de distinto teor o que desobriga a segunda e a terceira de qual-quer compromisso com a verdade No entanto interessam-nos mais seus significados e efeitos do que intenccedilotildees Note-se que a primeira documen-tal eacute de circulaccedilatildeo mais restrita que a segunda e a terceira voltadas para grande puacuteblico por isso seus efeitos nesse jogo de criaccedilatildeorecriaccedilatildeo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da Independecircncia satildeo natildeo apenas assimeacutetricos mas tambeacutem concorrentes105 Os esforccedilos de um pro-grama por posicionar o espectador diante de uma histoacuteria processual de encadeamentos temporais e de grupos e conflitos sociais satildeo naturalmente obstados pelos dos outros dois a oferecer uma histoacuteria repleta de anacro-nismos anedoacutetica e biograacutefica em perfeita sintonia com demandas mais amplas de uma sociedade ndash e de alguns de seus componentes mercadoloacutegi-cos jaacute aqui mencionados ndash na qual a vida privada eacute mais valorizada do que a puacuteblica106 Nesse confronto embora as trecircs convivam na mesma cultura de histoacuteria uma Independecircncia tende a prevalecer sobre a outra107

6 ndash A Independecircncia no cinemaEm relaccedilatildeo a livros didaacuteticos programas de televisatildeo e outros materiais audiovisuais as fontes cinematograacuteficas aqui consideradas naturalmente

97Exemplo encontra-se no viacutedeo ldquoAway Nilzer ndash

Independecircncia do Brasilrdquo com grande nuacutemero de visualizaccedilotildees (130677) e de comentaacuterios (1016) que minimiza e ridiculariza natildeo apenas o processo da independecircncia como quaisquer fatos histoacutericos brasileiros de maneira geral (youtubecomwatchv=Vd_kloNeQV0) O Brasil atual como viacutetima de uma exploraccedilatildeo econocircmica mais intensa do que nos tempos coloniais e portanto natildeo-independente aparece na fala de outro professor (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2806 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) e nos comentaacuterios de um boneco marionete de um programa infantil (youtubecomwatchv=9mh3Tu6c4_w 173 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032014)

98Exemplo desse processo de ldquodevoluccedilatildeordquo pode ser

comprovado no viacutedeo ldquoIndependecircncia ou morterdquo (youtubecomwatchv=QUvnz1no1m8 934 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Outros dois exemplos pertinentes satildeo a insistecircncia nas ideias de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil e que a Independecircncia foi uma luta entre brasileiros e portugueses

99Em entrevista a uma rede local de televisatildeo

ouvimos do professor de histoacuteria do Ensino Meacutedio Wander Pugliesi ldquoSe noacutes formos trabalhar com sinceridade o Brasil ainda natildeo eacute independente Na verdade somos muito mais explorados do que quando eacuteramos colocircnia de Portugalrdquo (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2815 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) A mesma relativizaccedilatildeo do processo de independecircncia aparece na fala do candidato agrave presidecircncia em 2010 pelo PSTU Zeacute Maria ldquohoje infelizmente natildeo podemos comemorar uma verdadeira independecircncia do paiacutes Eacute preciso dizer a verdade as multinacionais controlam a economia brasileira As decisotildees fundamentais satildeo tomadas por elas fora do paiacutesrdquo (youtubecomwatchv=ht9Yt0PlGnU 1803 visualizaccedilotildees um comentaacuterio) Acessos em 26032013

100Direccedilatildeo de Carlos Henrique Schroder 2008

Produccedilatildeo de 16 episoacutedios de cerca de 20 minutos cada para o canal da TV fechada GloboNews A seacuterie foi comercializada em DVD e pode ser vista tambeacutem no canal Globosat no Youtube (youtubecomwatchfeature= player_detailpageampv= OUX-zSyaMIc e viacutedeos relacionados Acesso em 27032014)

101Direccedilatildeo de Wolf Maya e Alexandre Avancini e

criaccedilatildeo de Carlos Lombardi 2002 Produccedilatildeo de 48 episoacutedios com cerca de 40 minutos cada para o canal da TV aberta Rede Globo de Televisatildeo A minisseacuterie tambeacutem foi comercializada em DVD e vem sendo (desde janeiro de 2014) reprisada no Canal Viva (rede fechada de televisatildeo filiada Globosat) uma reprise anterior ocorreu de agosto a novembro de 2011 sempre por volta das 23h

102Direccedilatildeo de Joatildeo Carrascosa e Pedro Bial 2007

Produccedilatildeo de 9 capiacutetulos de cerca de 15 minutos

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apresentam especificidades Tendem a diversificar (eventualmente ampliar) o rol de profissionais envolvidos em sua produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo bem como a tratar conteuacutedos em um tempo mais lento criando uma sensaccedilatildeo de homogeneidade de significados reforccedilada pela aderecircncia de tais conteuacutedos a uma trama central Tal homogeneidade por seu turno eacute relativizada por uma liberdade de criaccedilatildeo que dificilmente encontra paralelo em outros dos materiais aqui considerados ndash com a possiacutevel exceccedilatildeo da minisseacuterie O Quinto dos Infernos No entanto quando a comparaccedilatildeo eacute feita com os li-vros didaacuteticos os conteuacutedos relativos agrave Independecircncia no cinema tendem a ser menos numerosos mais superficiais e efecircmeros justamente por serem menos assumidamente informativos do que os dos livros embora isso possa encontrar alguma compensaccedilatildeo em uma linguagem visual de forte apelo emotivo Para todos os efeitos como aponta um estudioso da mateacuteria os filmes de temaacutetica histoacuterica carregam sempre certa ambiguidade ocupam uma espeacutecie de ldquoentrelugarrdquo com forccedila para criar ldquoverdadesrdquo socialmente aceitas108 Nos cinco filmes aqui considerados109 as ldquoverdadesrdquo sobre a Independecircncia tendem a replicar linhas de forccedila jaacute conhecidas mesclando temporalidades correspondentes tanto aos momentos em que foram pro-duzidos quanto aos momentos posteriores em que foram sendo exibidos110

Independecircncia ou Morte produccedilatildeo a serviccedilo das comemoraccedilotildees oficiais do sesquicentenaacuterio da Independecircncia levadas a cabo pelo go-verno ditatorial brasileiro em 1972 mostra uma narrativa de forte teor didaacutetico-pedagoacutegico sem grandes pretensotildees artiacutesticas expliacutecitas111 com diaacutelogos e situaccedilotildees muitas vezes retirados de obras sobre a Independecircncia e tratados de forma literal Sua finalidade eacute clara ldquoensinarrdquo aos especta-dores uma histoacuteria e uma memoacuteria coletivas homogecircneas aplainadas de pluralidades ou de desavenccedilas Uma histoacuteria supostamente indiscutiacutevel porque verdadeira posta a serviccedilo dos tambeacutem supostos interesses mais elevados da naccedilatildeo brasileira (por isso nela a vida privada dos persona-gens eacute toda submetida agrave sua funccedilatildeo poliacutetica inclusive no caso da relaccedilatildeo afetiva entre um D Pedro de boa aparecircncia querido do povo e mulherengo e uma ambiciosa romacircntica e sensiacutevel Domitila112) Uma espeacutecie de cartilha oficial da Independecircncia em imagens na qual se faz presente ateacute mesmo uma recomposiccedilatildeo cecircnica do quadro de Pedro Ameacuterico

Eacute interessante observar como Os Inconfidentes produzido no mesmo ano de 1972 mesmo sendo um filme amparado em abundantes liberdades e experimentos esteacuteticos cheio de ambiguidades propositais e contra-pondo-se ao oficialismo histoacuterico tatildeo em voga agrave eacutepoca por meio de uma metaacutefora na qual os contestadores agrave ditadura brasileira se convertem em sediciosos das Minas Gerais do seacuteculo XVIII natildeo se configura como mate-rial singular e discrepante de Independecircncia ou Morte em pelo menos trecircs sentidos primeiro porque em vaacuterios momentos associa a Inconfidecircncia Mi-neira com a Independecircncia do Brasil a exemplo do que Independecircncia ou Morte prega jaacute em seu primeiro texto didaacutetico113 Segundo porque tambeacutem oficializa eventos convencionalmente tidos por fundacionais da histoacuteria do Brasil (soacute que natildeo os de 1808-1822 mas os de 1788-1789) Terceiro reforccedila a prevalecircncia de indiviacuteduos sobre coletividades da imagem de um heroacutei central da trama e de uma oposiccedilatildeo de interesses maniqueiacutesta que certamente poderia se aplicar com mais rigor ao contexto em que foi feito o filme do que agravequele ao qual formalmente se refere Assim para todos os efeitos substratos de uma concepccedilatildeo de histoacuteria satildeo em ambos convergentes Em um ambiente social multifacetado em termos de no-

cada dentro do programa dominical Fantaacutestico da Rede Globo de Televisatildeo A seacuterie foi baseada no livro Brasil uma Histoacuteria de Eduardo Bueno jornalista que tambeacutem atua na seacuterie (youtubecomwatchv=3LzGKt9Pd0M acesso em 27032014)

103SETUacuteBAL Paulo As Maluquices do Imperador

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1927 CALADO Ivanir A Imperatriz no Fim do Mundo memoacuterias duacutebias de Ameacutelia de Leichtenberg Rio de Janeiro Rio Fundo Editora 1992 e TORERO Joseacute Roberto Galantes memoacuterias e admiraacuteveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes o Chalaccedila Satildeo Paulo Companhia das Letras 1994

104A trama e a narrativa do Quinto dos Infernos

recusam explicitamente a inserccedilatildeo de quaisquer componentes que natildeo os da ordem privada de seus convencionais personagens assim questotildees poliacuteticas satildeo sempre menores do que o apetite sexual de Carlota Joaquina as perversotildees de D Miguel ou a fogosidade de Domitila a economia soacute surge em pontuais pretextos cocircmicos enquanto a escravidatildeo eacute referida exclusivamente por meio de alegres e libidinosas criadas (negras) permanentemente dispostas a servirem aos desejos do heroacutei da histoacuteria D Pedro

105A anaacutelise poderia se completar com a minisseacuterie

A Marquesa de Santos dirigida por Ary Coslov e exibida pela extinta Rede Manchete de televisatildeo em 1984 agrave qual infelizmente natildeo se obteve acesso satisfatoacuterio

106Tal predileccedilatildeo pode ser entendida como mais

um fator caracteriacutestico de um momento em que a articulaccedilatildeo entre aquilo que Guy Debord chamaria de ldquosociedade do espetaacuteculordquo e Adorno e Horkheimer (dentre muitos outros) de ldquoinduacutestria culturalrdquo torna sintomaacutetico a saliecircncia do indiviacuteduo e o esvaziamento da esfera puacuteblica

107A comprovaccedilatildeo do encontro concorrente entre

dois caminhos vem do depoimento de alguns dos proacuteprios envolvidos com a produccedilatildeo do Quinto dos Infernos como o diretor Carlos Lombardi que a ele se refere como ldquoum painel dos personagens importantes do periacuteodordquo Para o produtor Wolf Maia seu objetivo foi ldquorecontar com humor uma velha histoacuteriardquo O ator Humberto Martins viu a seacuterie ldquocontar um pedaccedilo da nossa histoacuteria da histoacuteria do Brasil do nosso povo das nossas raiacutezes pateacutetica e engraccedilada tal como ela se mostra dentro desse produto poreacutem claro mesclada com uma boa dose de humorrdquo enquanto o protagonista Marcos Pasquim afirmou que ldquo[ao fazecirc-la] aprendi muita coisa que natildeo aprendi na escola eu vim aprender agora fazendo a pesquisa para fazer esse personagemrdquo Finalmente para a tambeacutem atriz Bruna Lombardi ldquoO lsquoQuintorsquo contou assim a histoacuteria que a Histoacuteria natildeo conta sabe como eacute as fraquezas da histoacuteriardquo Em ldquoDia de Fuacuteriardquo Pedro Bial e Eduardo Bueno reforccedilam seu discurso satiacuterico por meio de um verniz de verdade trazido pela citaccedilatildeo de documentos oficiais como o relato do Padre Belchior sobre o grito do Ipiranga Aleacutem disso seu discurso eacute elaborado sob o nome de tese logo bem se vecirc como seus propaladores (BialBueno) manipulam siacutembolos

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ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

28Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

29Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

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131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

31Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

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Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

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por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

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muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

36Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 4: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

8Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

potencial realizador de reivindicaccedilotildees dinamizadoras de conflitos em torno da divisatildeo de classes de uma sociedade12 Como se veraacute a seguir embora a cultura de histoacuteria aqui observada esteja evidentemente condicionada pelas estruturas sociais presentes na proacutepria sociedade agrave qual se refere ela natildeo parece caracterizada por uma distribuiccedilatildeo classista de seus princi-pais atributos tampouco por uma carga classista de expectativas poliacuteticas potencialmente irruptivas em seu contexto13 Cultura de histoacuteria tambeacutem natildeo se confunde perfeitamente com tradiccedilatildeo segundo a tripla distinccedilatildeo proposta mais uma vez por Ruumlsen seja como afirmaccedilatildeo passiva funcional e valorativa das formas jaacute estabelecidas de vida social como manancial de conteuacutedos aparentemente esquecidos inconscientes mas latentes em uma coletividade seja ainda como ponto de partida para a continuidade criacutetica de um discurso tornado reflexivo logo histoacuterico14 Afinal e embora uma cultura de histoacuteria possa se conectar em parte com tais ldquotradiccedilotildeesrdquo nenhu-ma delas parece englobar devidamente as interdiccedilotildees e os silecircncios acima referidos e aqui perscrutados Para todos os efeitos no entanto trata-se de um tipo de cultura isto eacute de um sistema social dotado de forte esta-bilidade mas natildeo completamente inercial pautado por alguns consensos a organizarem a maioria de seus dissensos e submetido a uma dinacircmica transformadora tendencialmente lenta embora suscetiacutevel a alteraccedilotildees de monta a partir de fatos pontuais e aparentemente isolados

A Independecircncia do Brasil ocorrida na primeira metade do seacuteculo XIX eacute tema especialmente propiacutecio para a caracterizaccedilatildeo inicial de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil Natildeo eacute o uacutenico possiacutevel mas sem duacutevida se presta especialmente bem a tal tarefa Visto como um conjunto de toacutepicos que a depender do enfoque pode incluir a histoacuteria da Ameacuterica portuguesa nos uacuteltimos anos do seacuteculo XVIII a crise da monarquia bragantina a partir de 1807 a separaccedilatildeo poliacutetica entre Portugal e Brasil e a formaccedilatildeo inicial deste como Estado e naccedilatildeo a Independecircncia eacute tema fundador desde sempre presente em processos de formaccedilatildeo escolar baacutesicos na miacutedia nas artes na poliacutetica na opiniatildeo puacuteblica nos espaccedilos puacuteblicos no senso-comum e na memoacuteria nacional15 Natildeo haacute cidade no Brasil que natildeo tenha seus lugares de memoacuteria16 ligados agrave Independecircncia natildeo haacute processo escolar formal que a ignore natildeo haacute feriados nacionais mais importantes em termos de evoca-ccedilatildeo puacuteblica e midiaacutetica de conteuacutedos do que os dela derivados Em certa medida a Independecircncia ldquopairardquo por sobre a sociedade brasileira e com ela interage o que faz com que praticamente todo e qualquer brasileiro a partir de uma certa idade pense alguma coisa a seu respeito17

A cultura de histoacuteria brasileira que natildeo se esgota na Independecircncia com ela se confunde

Aleacutem disso para efeitos da realizaccedilatildeo desta pesquisa seus autores estatildeo por dever de ofiacutecio mais familiarizados historiograficamente com o tema do que com outros que poderiam igualmente se constituir em pontos de partida vaacutelidos18 Com isso natildeo se quer dizer que este seja um estudo acerca de praacuteticas acadecircmicas em relaccedilatildeo agrave Histoacuteria per se e que sem duacutevida tambeacutem satildeo parte constitutiva dessa cultura de histoacuteria no Brasil e alhures19 (aliaacutes como se veraacute aqui estas surgiratildeo a reboque das praacuteticas natildeo acadecircmicas) apenas que o ponto de vista adotado pela pes-quisa e a partir dos quais seus autores se reconhecem eacute acadecircmico o que os permite explorar determinados potenciais do tema

A Independecircncia mostra que haacute uma dimensatildeo nacional na cultura de histoacuteria a impor significativas variaccedilotildees morfoloacutegicas e temaacuteticas de

12THOMPSON Edward Palmer Costumes em

comum estudos sobre a cultura popular tradicional Satildeo Paulo Companhia das Letras 1998 em especial p13-15 e p86 Haacute que se notar que o autor evita a manipulaccedilatildeo de definiccedilotildees claras e aprioriacutesticas preferindo a construccedilatildeo das mesmas com base no desenvolvimento de suas pesquisas empiacutericas

13O que natildeo significa que os atributos de uma

cultura histoacuterica natildeo possam ser apropriados e manipulados politicamente ou constituiacuterem-se em subsiacutedios para projetos de futuro a ausecircncia se refere a uma distribuiccedilatildeo e tendencial confinamento por classes de tais atributos

14RUSEN Jorn Tradition a principle of historical

sense-generation and its logic and effect in historical culture History and Theory Theme Issue 51 dez2012 Tambeacutem FREIXO Andreacute de Lemos Ousadia e redenccedilatildeo Op Cit p157

15LYRA Maria de Lourdes Vianna Memoacuteria

da Independecircncia marcos e representaccedilotildees simboacutelicas Revista Brasileira de Histoacuteria n29 1995 p173-206 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena de Salles O Espetaacuteculo do Ipiranga reflexotildees preliminares sobre o imaginaacuterio da Independecircncia Anais do Museu Paulista Satildeo Paulo v3 1995 p195-208 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena de Salles e MATTOS Claacuteudia Valladatildeo (org) O Brado do Ipiranga Satildeo Paulo EDUSP 1999 WEHLING Arno Estado Histoacuteria Memoacuteria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova FronteiraUNIRIO 1999 ENDERS Armelle Os vultos da naccedilatildeo faacutebrica de heroacuteis e formaccedilatildeo dos brasileiros Rio de Janeiro Editora FGV 2014

16Em referecircncia novamente a NORA Pierre Entre

memoria e historia Op Cit

17Um dado contundente segundo a inovadora

pesquisa realizada pela educadora Ana Teresa da Purificaccedilatildeo de um grupo de 97 crianccedilas entre 9 e 13 anos e que jamais tinham sido introduzidas formalmente ao tema da Independecircncia do Brasil 82 foram capazes de representaacute-la de alguma maneira (desenhos frases) geralmente em forte conexatildeo com representaccedilotildees sociais mais amplas (D Pedro o Grito o Sete de Setembro a bandeira nacional uma luta dicotocircmica entre bem e mal etc) PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da (Re)criando interpretaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil um estudo das mediaccedilotildees entre memoacuteria e histoacuteria nos livros didaacuteticos 2002 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2002

18Exemplo interessante eacute o livro de Luiacutes Fernando

Cerri com ecircnfase em uma consciecircncia histoacuterica focada na histoacuteria da ditadura brasileira de 1964 a 1985 e com aproximaccedilotildees com outros paiacuteses do cone sul Cfr CERRI Luiacutes Fernando Ensino de histoacuteria e consciecircncia histoacuterica implicaccedilotildees didaacuteticas de uma discussatildeo contemporacircnea Rio de Janeiro Editora FGV 2011

9Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

paiacutes a paiacutes embora ndash repita-se ndash deva-se esperar tambeacutem feiccedilotildees comuns entre diferentes culturas histoacutericas Ao mesmo tempo haacute uma tendecircncia agrave unificaccedilatildeo dessas formas e temas no interior de um mesmo paiacutes resultado da vigecircncia de memoacuterias e identidades bem como de estruturas institu-cionais de tipo nacional tais como sistemas poliacuteticos escolares e univer-sitaacuterios tambeacutem eles prenhes de conteuacutedos referentes a temas histoacutericos comparaacuteveis em importacircncia em cada contexto respectivo ao da Indepen-decircncia no Brasil Como bem tem mostrado a historiografia da questatildeo na-cional o passado coletivo eacute pretexto especialmente forte para a constitui-ccedilatildeo e reproduccedilatildeo de identidades nacionais20 Eacute por isso que aqui cultura de histoacuteria eacute tratada no singular pressupondo contudo uma homogeneidade apenas relativa e parcial do fenocircmeno

Tambeacutem haacute dimensotildees regionais nessa cultura de histoacuteria com varia-ccedilotildees a depender dos diferentes modos de contar evocar e silenciar conteuacutedos da histoacuteria coletiva caracteriacutesticos de cada quadrante espacial dessa unidade nacional sem contudo romper com a unidade que a engloba As limitaccedilotildees do presente estudo quanto a esse ponto satildeo expliacutecitas ao mesmo tempo em que contribuem para um desenho das feiccedilotildees mais gerais do fenocircmeno Afinal uma parte dos materiais empiacutericos aqui utilizados (mais precisamente a sondagem de opiniatildeo apresentada no item 3) refere-se primordialmente a Satildeo Paulo e sua capital21 outros poreacutem satildeo de alcance claramente nacio-nal o que permite o estabelecimento de mediaccedilotildees entre as esferas micro e macro histoacutericas constitutivas do fenocircmeno No entanto fica a advertecircncia eacute possiacutevel que a expansatildeo dessa base empiacuterica para materiais regionalmente mais circunscritos a outros Estados do Brasil como Paraacute Maranhatildeo Pernam-buco Bahia Minas Gerais Rio de Janeiro ou Rio Grande do Sul por exemplo ou mesmo a cidades singularmente marcadas pela histoacuteria da Independecircn-cia como Cametaacute Cachoeira e Goiana nos mostrasse variaccedilotildees capazes de redefinir o fenocircmeno geral Natildeo foi a Independecircncia do Brasil um processo histoacuterico cheio de nuances regionais e locais capazes de legar agrave posteridade um leque de memoacuterias ainda operativas na sociedade brasileira atual Poreacutem a histoacuteria da Independecircncia na cultura brasileira de histoacuteria precisa de algum ponto de partida mesmo que limitado

Finalmente haacute que se explicitar que haacute uma dimensatildeo histoacuterica nessa cultura de histoacuteria o que implica a concepccedilatildeo de um fenocircmeno que embora marcado por consideraacutevel estabilidade e regularidade eacute dinacircmico Isso quer dizer que as conclusotildees daqui extraiacutedas forccedilosamente trazem uma limitaccedilatildeo conjuntural podendo ser revistas ou mesmo invalidadas no futuro natildeo apenas em funccedilatildeo da inescapaacutevel (e oacutebvia) condiccedilatildeo proteica do conhecimento histoacuterico mas tambeacutem porque o sistema que constitui esse fenocircmeno eacute composto de uma grande quantidade de fenocircmenos me-nores que podem efetivamente modificar a essecircncia do conjunto ndash novas poliacuteticas educacionais um seriado de televisatildeo de grande audiecircncia um best-seller de divulgaccedilatildeo histoacuterica uma efemeacuteride de impacto etc

2 ndash Como apreender uma cultura de histoacuteria Fontes e questotildees centraisComo descrever e analisar um fenocircmeno histoacuterico com tais caracteriacutesticas Aqui definiu-se estrategicamente uma fonte central a organizar as demais uma sondagem de opiniatildeo aplicada presencialmente nas ruas da cidade de Satildeo Paulo por meio de um questionaacuterio e que incidiu sobre uma amostra-gem de 311 pessoas de diversa formaccedilatildeo escolar faixa etaacuteria caracteriacutesticas soacutecio-econocircmico-culturais e procedecircncia regional22 Embora se consti-

19CHARLE Christophe Homo historicus reacuteflexions

sur lrsquohistoire les historiens et les sciences sociales Paris Armand Colin 2013

20SOBRAL Joseacute Manuel Op Cit SMITH Anthony

D Myths and Memories of the Nation New York Oxford University Press 1999 ANDERSON Benedict Naccedilatildeo e consciecircncia nacional Satildeo Paulo Aacutetica 1989 HOBSBAWM Eric J Naccedilotildees e nacionalismo desde 1780 programa mito realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 JANCSOacute Istvaacuten Brasil e brasileiros notas sobre modelagem de significados poliacuteticos na crise do Antigo Regime portuguecircs na Ameacuterica Estudos Avanccedilados v22 p257-274 2008 Mesmo suportes midiaacuteticos eminentemente transnacionais ou ateacute mesmo supranacionais tiacutepicos do mundo digital natildeo apenas se mostram incapazes de romper com a dimensatildeo nacional do fenocircmeno como em muitos casos ateacute contribuem para reforccedilaacute-la

21Embora como logo se veraacute a ela tenha-se procurado

dar em parte um perfil nacional brasileiro

22Os criteacuterios exatos dessa sondagem bem como

os detalhes relativos agraves outras fontes utilizadas encontram-se descritos nos proacuteximos itens

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tua em um universo numeacuterico bastante pequeno diante da totalidade da populaccedilatildeo brasileira a partir de 15 anos (144814538 indiviacuteduos de acordo com o censo do IBGE de 201023) meacutetodos especiacuteficos que subsidiaram a concepccedilatildeo e aplicaccedilatildeo dessa sondagem permitiram o alcance de resultados relevantes como se veraacute adiante24 A utilizaccedilatildeo de tal abordagem em estu-dos de Histoacuteria eacute pouco frequente mas natildeo ineacutedita Deve-se aqui mencionar dois estudos importantes e parcialmente convergentes com os propoacutesitos desta pesquisa o de Isabela Cosse e Vania Markarian sobre a consciecircncia histoacuterica nacional no Uruguai publicado em 1994 e o coordenado por Joseacute Machado Pais sobre a consciecircncia histoacuterica dos jovens portugueses nos contextos europeu e israelensepalestino de 199925 Ambos satildeo excelen-tes demonstraccedilotildees dos potenciais oferecidos por esse tipo de abordagem e forneceram norte e estiacutemulo a esta pesquisa mas dela diferem em trecircs pontos fundamentais sua circunscriccedilatildeo nacionalcontinental26 os contextos histoacutericos de sua elaboraccedilatildeo e a abordagem realizada em torno de temas de histoacuteria em geral pressupondo que os entrevistados possuiriam posiccedilotildees ativas em torno do passado Assim abordam formas de consciecircncia histoacuteri-ca mas natildeo a ampliam em direccedilatildeo a uma cultura de histoacuteria

A sondagem de opiniatildeo eacute aqui central mas natildeo exclusiva tendo sido seus resultados cotejados com os extraiacutedos da anaacutelise de um conjunto de fontes complementares Em primeiro lugar livros didaacuteticos de Ensino Meacute-dio utilizados por professores e alunos em 2013 nos quais foram buscados especificamente toacutepicos relativos agrave Independecircncia do Brasil Esse conjunto de fontes perfaz 19 tiacutetulos que foram avaliados e aprovados pelo Governo Federal brasileiro no Programa Nacional do Livro Didaacutetico em 2012 cujos cerca de 7 milhotildees e 500 mil exemplares foram distribuiacutedos a algo como 18 mil escolas puacuteblicas de todo o paiacutes aleacutem de serem utilizados tambeacutem em es-colas privadas27 completaram a anaacutelise dados obtidos por uma estudiosa de livros didaacuteticos de Ensino Fundamental tambeacutem recomendados pelo governo em 1998 e que analisou 12 tiacutetulos28 Em segundo lugar viacutedeos disponiacuteveis no YouTube e portadores de conteuacutedos relativos agrave Independecircncia Aqui depa-rou-se com material muito variado distribuiacutedo em 107 viacutedeos que perfazem um riquiacutessimo conjunto dada sua grande diversidade morfoloacutegica e de con-teuacutedo (seriados educativos entrevistas programas jornaliacutesticos propagandas de partidos poliacuteticos ou de outras associaccedilotildees trailers de filmes programas voltados para puacuteblico jovem produccedilotildees independentes etc) e tambeacutem pelas possibilidades de mensuraccedilatildeo parcial de seu alcance via o nuacutemero de visualizaccedilotildees indicadas pelo siacutetio e de anaacutelise dos respectivos ldquocomentaacuteriosrdquo tambeacutem laacute disponiacuteveis Em terceiro lugar obras televisivas e cinematograacutefi-cas relacionadas com a Independecircncia do Brasil Aqui foram analisadas trecircs seacuteries televisivas e cinco longas-metragens todos tambeacutem disponiacuteveis no YouTube com os mesmos dados complementares acima apontados Em quar-to lugar livros de divulgaccedilatildeo acadecircmica ou jornaliacutestica romances histoacutericos comics livros paradidaacuteticos e outras obras de difiacutecil definiccedilatildeo a possuiacuterem em comum abordagens da histoacuteria da Independecircncia apresentadas em linguagem natildeo acadecircmica destinadas a um puacuteblico potencialmente amplo e diversificado natildeo restrito portanto a estudantes e professores de Histoacuteria29 Em meio a esse conjunto foram selecionados 19 livros Finalmente em quin-to lugar foram analisados artigos sobre a Independecircncia publicados em cinco magazines de Histoacuteria vendidos em bancas de jornal e livrarias e que visam divulgar saberes especializados para um puacuteblico mais aleacutem do frequentador de cursos universitaacuterios de Histoacuteria

23Sendo a populaccedilatildeo total 190732694 de

acordo com o Censo Demograacutefico 2010 do IBGE Disponiacutevel em ibgegovbrhomeestatisticapopulacaocenso2010defaultshtm Acesso em 01042014

24A realizaccedilatildeo da mesma assim como a

interpretaccedilatildeo de seus dados teve em conta premissas metodoloacutegicas gerais estabelecidas por Patrick Champagne CHAMPAGNE Patrick Formar a opiniatildeo o novo jogo poliacutetico Petroacutepolis Vozes 1998 ZALLER John R The Nature and Origins of Mass Opnion Cambridge Cambridge University Press 1992 WILHOIT Cleveland e WEAVER David H Neswroom Guide to Polls amp Surveys Bloomington and Indianapolis Indiana University Press 1990 e MONZOacuteN ARRIBAS Caacutendido La opinioacuten puacuteblica teoriacuteas conceptos y meacutetodos Madri Tecnos 1987

25COSSE Isabela e MARKARIAN Vania Memorias

de la historia una aproximacioacuten al estudio de la consciencia histoacuterica nacional Montevideacuteu Trilce 1994 PAIS Joseacute Machado Consciecircncia histoacuterica e identidade os jovens portugueses num contexto europeu Oeiras CeltaSecretaria de Estado da Juventude 1999 Este uacuteltimo inclui vaacuterios dos resultados obtidos pelo inqueacuterito geral europeu realizado com jovens e professores de Histoacuteria de 26 paiacuteses do continente mais Israel ldquoIsrael Aacuteraberdquo e ldquoPalestinardquo

26Seria importante considerar ainda atitudes

de pessoas em relaccedilatildeo a lugares de memoacuteria especificamente ligados agrave Independecircncia do Brasil dentro das cidades existentes aliaacutes em praticamente todo e qualquer centro urbano do paiacutes No caso de Satildeo Paulo tal desafio pode encontrar estimulante ponto de partida em duas pesquisas OLIVEIRA Cecilia Helena de Salles Museu Paulista espaccedilo de evocaccedilatildeo do passado e reflexatildeo sobre a histoacuteria Anais do Museu Paulista Satildeo Paulo Nova Seacuterie v1011 20022003 p105-126 e ALMEIDA Adriana Mortara Os visitantes do Museu Paulista um estudo comparativo com os visitantes da Pinacoteca do Estado e do Museu de Zoologia Anais do Museu Paulista Satildeo Paulo Nova Seacuterie v12 2004 p269-306

27O PNLD tem como objetivo central ldquosubsidiar

o trabalho pedagoacutegico dos professores por meio da distribuiccedilatildeo de coleccedilotildees de livros didaacuteticos aos alunos da educaccedilatildeo baacutesica Apoacutes a avaliaccedilatildeo das obras o Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) publica o Guia de Livros Didaacuteticos com resenhas das coleccedilotildees consideradas aprovadas O guia eacute encaminhado agraves escolas que escolhem entre os tiacutetulos disponiacuteveis aqueles que melhor atendem ao seu projeto poliacutetico pedagoacutegicordquo (portalmecgovbrindexphpItemid=668id=12391option=com_contentview=article) A avaliaccedilatildeo e seleccedilatildeo dos tiacutetulos aprovados pelo programa coube agrave Secretaria de Educaccedilatildeo Baacutesica (SEB) do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo sendo a equipe avaliadora formada por professores de vaacuterias universidades puacuteblicas Guia de livros didaacuteticos PNLD 2012 Histoacuteria Brasiacutelia Ministeacuterio da Educaccedilatildeo Secretaria de Educaccedilatildeo Baacutesica 2011

11Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Bem se vecirc que tais fontes complementares extrapolam o acircmbito espa-cial parcialmente circunscrito da sondagem de opiniatildeo aleacutem de permitirem a consideraccedilatildeo de uma grande pluralidade de vozes de agentes sociais ndash inclu-sive mas natildeo preferencialmente os historiadores acadecircmicos ndash responsaacuteveis pela inexistecircncia de um monopoacutelio profissional na reproduccedilatildeo divulgaccedilatildeo e eventual produccedilatildeo de conhecimentos acerca da Independecircncia do Brasil A exemplo dos procedimentos adotados para a realizaccedilatildeo da sondagem de opi-niatildeo tambeacutem a utilizaccedilatildeo de tais fontes partiu de uma amostragem jaacute que nenhum de seus conjuntos corresponde agrave totalidade de materiais disponiacuteveis No entanto acredita-se que a somatoacuteria dessas amostragens seja satisfatoacuteria para a persecuccedilatildeo dos objetivos aqui propostos

Como tratar metodologicamente fontes tatildeo diferentes entre si e como fazecirc-las convergirem para um mesmo fim Os conteuacutedos extraiacutedos da sondagem de opiniatildeo merecem tratamento algo peculiar jaacute que tendo permanecido ineacuteditos ateacute o momento natildeo podem ser considerados como elementos capazes de agir naquela mesma realidade que os informou soacute podem ser vistos como traduccedilatildeo (indireta matizada) de uma realidade por eles denunciada Jaacute as demais fontes satildeo consideradas de ambos os modos como instrumentos de reconfiguraccedilatildeo da realidade em termos de poten-ciais formadoras de opiniatildeo dos brasileiros acerca da Independecircncia mas tambeacutem como sintomaacuteticas de um estado de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema Portadoras de indiacutecios de uma cultura de histoacuteria que elas criam e recriam e protagonistas ativos dessa mesma cultura30 O que natildeo quer dizer de modo algum que a todos os suportes materiais aqui consi-derados como fontes primaacuterias possa ser atribuiacutedo um caraacuteter de inovaccedilatildeo em seus tratamentos dos conteuacutedos relativos agrave Independecircncia do Brasil (se assim o fosse os historiadores profissionais da Independecircncia teriam muitos motivos para comemorar o fato de que os demais agentes sociais natildeo apenas estariam dispostos a ouvi-los como aptos a compreendecirc-los E se assim o fosse estariacuteamos frente a uma cultura histoacuterica muito mais dinacircmica e instaacutevel do que ela parece ser)

Para aferir ateacute que ponto um livro uma revista um filme ou um viacute-deo contribuem mais para a criaccedilatildeo ou para a recriaccedilatildeo (pois natildeo haacute aqui estrito senso simples reproduccedilatildeo) de conteuacutedos a metodologia adotada abordou tais suportes materiais por meio de cinco perguntas baacutesicas Seu tratamento da Independecircncia tende a uma Histoacuteria 1) Factual eou biograacute-fica ou a uma histoacuteria processual 2) Que respeita historicidades e orde-namentos cronoloacutegicos e temporais ou que tende a dar pouca importacircncia a tais elementos (neste caso de que modos o faz) 3) Centrada em uma uacutenica regiatildeo (qual) ou em vaacuterias ao mesmo tempo e inclusive a outras partes do mundo da eacutepoca (quais) 4) Que dialoga (de que modos) com a produccedilatildeo acadecircmica (qual de quando) ou que busca outros referenciais no universo natildeo especializado 5) De ecircnfase anedoacutetica laudatoacuteria soacutebria positiva ou negativa As respostas a tais perguntas nem sempre bem claras e definidas foram buscadas a partir tambeacutem de substratos metodo-loacutegicos especiacuteficos para cada tipo de fonte e chegaram a envolver parcial-mente tambeacutem a sondagem de opiniatildeo

3 - A sondagem de opiniatildeo A Independecircncia nas ruasA sondagem de opiniatildeo partiu da aplicaccedilatildeo de um questionaacuterio que mes-clou respostas dirigidas e objetivas com respostas abertas e subjetivas sen-do dividido em trecircs partes correspondentes a trecircs perfis a serem extraiacutedos

28PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit

29Tal tipo de fonte eacute o que melhor permite uma

anaacutelise de mais largo escopo temporal do que o aqui contemplado Uma excelente reuniatildeo preliminar de material encontra-se em CALMON Pedro Histoacuteria do Brasil na poesia do povo Nova ediccedilatildeo aumentada Rio de Janeiro Bloch 1973 Para noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia na literatura e na dramaturgia portuguesa vaacuterios apontamentos em OLIVEIRA Paulo da Motta (org) Op Cit

30Muitas jaacute vecircm sendo analisadas separadamente

de acordo com uma tendecircncia apontada acima Para os livros didaacuteticos a produccedilatildeo eacute imensa e inclui trabalhos importantes como os de BITTENCOURT Circe Fernandes Livro didaacutetico e conhecimento histoacuterico uma histoacuteria do saber escolar 1993 Tese (Doutorado em Histoacuteria Social) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1993 MUNAKATA Kazumi Produzindo livros didaacuteticos e paradidaacuteticos Tese 1997 (Doutorado em Histoacuteria e Filosofia da Educaccedilatildeo) Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1997 DIEHL Astor Antocircnio (org) O livro didaacutetico e o curriacuteculo de histoacuteria em transiccedilatildeo Passo Fundo EDIUPF 1999 e CARDOSO Oldimar Pontes A didaacutetica da histoacuteria e o slogan da formaccedilatildeo de cidadatildeos 2007 Tese (Doutorado em Educaccedilatildeo) Faculdade de Educaccedilatildeo Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2007 Sobre cinema e histoacuteria dentre outros FONSECA Vitoacuteria Azevedo da Histoacuteria imaginada no cinema anaacutelise de Carlota Joaquina princesa do Brazil e Independecircncia ou morte 2002 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria Cultural) Universidade Estadual de Campinas Campinas 2002

31Esse eacute o perfil mostrado pelo censo do IBGE de

2010 com algumas poucas exceccedilotildees no caso da amostragem a uacutenica importante se observa com a faixa etaacuteria de 25 a 29 anos (14) mais numerosa do que a anterior entre 20 e 24 anos (8) sendo que a porcentagem da populaccedilatildeo brasileira em tais faixas etaacuterias eacute praticamente a mesma (respectivamente 8 e 9) De resto foi possiacutevel estabelecer nesse quesito uma satisfatoacuteria correlaccedilatildeo com o perfil brasileiro a amostragem abordou indiviacuteduos a partir de 15 anos sendo que dos 14 grupos de cinco anos obtidos (o uacuteltimo corresponde a 80 anos ou mais) quatro apresentaram perfeita correspondecircncia percentual com os dados nacionais oito uma diferenccedila de no maacuteximo 2 e apenas dois forte discrepacircncia

32Para se atingir perfis ocupacionais desejados

algumas entrevistas foram realizadas na regiatildeo do Grande ABC e no interior do estado de Satildeo Paulo

33Dados do uacuteltimo Censo do IBGE (2010)

disponiacutevel em censo2010ibgegovbramostra Acesso em 01042014

34O censo do IBGE de 2010 indicou a porcentagem

de 76 para desocupados considerando o total da populaccedilatildeo maior de 10 anos Para o estado

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do entrevistado um soacutecio-econocircmico-escolar um cultural e um relativo agrave sua relaccedilatildeo com a Histoacuteria em especial a da Independecircncia

A obtenccedilatildeo do primeiro perfil se fez segundo gecircnero faixa etaacuteria (em grupos de cinco anos a partir de 15 anos de idade) local de nasci-mento (segundo regiotildees do Brasil e cidade) ocupaccedilatildeo profissional renda familiar (em valores ou quantidade de salaacuterios miacutenimos isto eacute R$ 62000) e instruccedilatildeo formal (por niacuteveis e se realizada em escolas puacuteblicas eou pri-vadas cidade e instituiccedilatildeo) Com isso buscou-se aproximar o universo da amostragem ndash 311 indiviacuteduos ndash do perfil geral do paiacutes quando isso natildeo foi possiacutevel a aproximaccedilatildeo se deu com o Estado e com a cidade de Satildeo Paulo

No quesito gecircnero foram entrevistadas 52 de mulheres e 48 de homens (um dos entrevistados natildeo quis declarar seu gecircnero) estabelecen-do-se uma perfeita correlaccedilatildeo de porcentagem com o mostrado pelo censo populacional do IBGE de 2010 seja em termos nacionais ou estaduais de Satildeo Paulo Jaacute a constituiccedilatildeo da faixa etaacuteria dos entrevistados buscou um modelo de ldquopiracircmiderdquo isto eacute com um nuacutemero de mais jovens sempre mais elevado do que o de mais idosos31 No entanto aqui a amostragem privile-giou mais jovens entre 15 e 19 anos (21) do que a realidade populacional brasileira (8) e mais adultos entre 25 e 29 anos

No tocante ao local de nascimento a amostragem natildeo pocircde se valer de dados do IBGE Desse modo buscou-se uma aproximaccedilatildeo estatiacutestica com a cidade de Satildeo Paulo local onde 97 das entrevistas foram reali-zadas32 Os nascidos na regiatildeo sudeste perfizeram 73 das abordagens sendo 67 naturais do estado de Satildeo Paulo (dados do IBGE mostram 77 de habitantes da cidade nascidos no estado sendo 69 do total na cida-de)33 A realizaccedilatildeo da amostragem procurou uma compensaccedilatildeo para essa hipertrofia de perfil (do nacional ao regional) por meio da diversificaccedilatildeo de unidades da federaccedilatildeo para os 23 de habitantes do estado de Satildeo Paulo que natildeo nasceram nele foram entatildeo entrevistados 112 indiviacuteduos (326 da amostragem) naturais dos outros estados brasileiros agrave exceccedilatildeo de Acre Amapaacute Distrito Federal Roraima e Tocantins

Quanto a suas ocupaccedilotildees profissionais os entrevistados declararam livremente 118 diferentes funccedilotildees (sendo 005 desempregados34) apoacutes uma anaacutelise preliminar das mesmas foi possiacutevel agrupaacute-las em 90 incluin-do um leque muito variado que inclui comerciantes donas de casa empre-gadas domeacutesticas estudantes funcionaacuterios puacuteblicos educadores operaacuterios empresaacuterios cabeleireiras agricultores faxineiros jornalistas prostitutas militares e meacutedicos dentre outros (ressalte-se que no momento da pesqui-sa nenhum deles se encontrava ligado profissionalmente agrave Histoacuteria) Nesse quesito eacute impossiacutevel estabelecer uma perfeita correlaccedilatildeo entre a amostra-gem e o panorama laboral brasileiro buscou-se apenas incluir uma ampla gama de perfis profissionais

O perfil dos entrevistados segundo renda familiar tambeacutem se mos-trou de difiacutecil equivalecircncia com dados do IBGE jaacute que estes indicam rendas individuais e natildeo familiares Assim mesmo observa-se que a amostragem seguiu uma tendecircncia tambeacutem de ldquopiracircmiderdquo que faz com que o nuacutemero de brasileiros dos estratos de renda mais baixa sejam sempre mais nume-roso que os de renda mais alta a diferenccedila entre o conjunto da populaccedilatildeo brasileira e a amostragem estaacute seguramente nas dimensotildees de tais estra-tos enquanto os dados do IBGE mostram mais de 64 de indiviacuteduos sem rendimentos ou com renda entre 1 e 5 salaacuterios miacutenimos na amostragem esse percentual (por famiacutelias) pouco passou de 3035

de Satildeo Paulo a porcentagem eacute tambeacutem de 76 Disponiacutevel em censo2010ibgegovbramostra Acesso em 01042014

35Haacute aqui algumas discrepacircncias em relaccedilatildeo as

categorias do IBGE que devem ser explicitadas no que se refere aos criteacuterios de renda estatildeo ausentes do questionaacuterio ldquomais de 2 a 3 salaacuterios miacutenimosrdquo aleacutem disto a renda calculada pelo questionaacuterio tem como base a unidade familiar enquanto os dados do IBGE aqui contrastados referem-se agrave renda de indiviacuteduos

36Dos 161981299 indiviacuteduos totais ldquoa partir de

10 anosrdquo subtraiu-se 17166761 indiviacuteduos entre 10 e 14 anos de modo a limitar a estatiacutestica nacional aos jovens contemplados pela amostragem Uma distorccedilatildeo contudo permanece na cifra dos indiviacuteduos ldquosem instruccedilatildeo e fundamental completordquo da tabela 154 pois crianccedilas entre 10 e 14 anos podem perfeitamente ser ldquosem instruccedilatildeordquo embora o sejam em pequena minoria ldquofundamental completordquo para todos os efeitos as porcentagens das demais rubricas da mesma tabela foram assim corrigidas jaacute que crianccedilas de 14 anos estaratildeo necessariamente ausentes da rubrica seguinte ldquomeacutedio completordquo (tabelas 154 e 112 respectivamente)

37Nos dados do IBGE a maioria da populaccedilatildeo

(59) encontra-se na rubrica ldquonatildeo frequentavam mas jaacute frequentaramrdquo Dentre os que ldquofrequentavamrdquo 78 o faziam em estabelecimentos puacuteblicos e 22 em privados na amostragem esses percentuais que incidem sobre frequecircncia em cursojaacute realizada foram respectivamente 63 e 27 sendo que 11 se enquadravam em ambos

38Tambeacutem nessa segunda parte o questionaacuterio

se afastou progressivamente da possibilidade de estabelecimento de equivalecircncias estatiacutesticas com a totalidade da populaccedilatildeo brasileira Isso se deu por um motivo principal o censo do IBGE natildeo chega ao grau de detalhamento dos dados aqui obtidos (seus objetivos e natureza satildeo outros) e embora existam sondagens de opiniatildeo focadas em perfis culturais do brasileiro (como a ediccedilatildeo de 2011 de Retratos da leitura no Brasil do Instituto Proacute-Livro aqui utilizada como se veraacute mais adiante) a busca por tais equivalecircncias implicaria o seacuterio risco de um engessamento na obtenccedilatildeo de dados qualitativos Tendo em vista os objetivos centrais dessa pesquisa ndash esboccedilar a caracterizaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil por meio da Independecircncia assim como refletir em torno de implicaccedilotildees do tratamento acadecircmico do tema a partir de sua inserccedilatildeo nessa mesma cultura ndash o estabelecimento preliminar completo do perfil dos entrevistados natildeo garantiria a validade do material a ser extraiacutedo e analisado Trata-se justamente do contraacuterio submeter os resultados finais da pesquisa aos paracircmetros dados pelas condiccedilotildees de sua proacutepria realizaccedilatildeo

39Haacute pelo menos dois exemplos de como rankings

se fazem presentes no pensar a Histoacuteria nesse escopo Um primeiro de grande participaccedilatildeo popular eacute o programa de tevecirc O maior brasileiro de todos os tempos exibido entre 1107 e

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No tocante a instruccedilatildeo formal os dados nacionais oficiais incidem sobre crianccedilas a partir de 10 anos de idade sendo que a amostragem rea-lizada focou em jovens a partir de 15 anos desse modo a aproximaccedilatildeo da amostragem com o perfil brasileiro partiu de uma retificaccedilatildeo dos nuacutemeros apresentados pelo IBGE36 E se em termos de renda familiar a amostragem mostrou clara inclinaccedilatildeo a um perfil excessivamente de classe meacutedia o mesmo pode-se dizer quanto agrave instruccedilatildeo formal que perfez um grupo mais escolarizado do que a meacutedia do paiacutes O principal problema aqui ocorre no baixo nuacutemero de entrevistados entre ldquosem instruccedilatildeo e fundamental incom-pletordquo (7 sendo a porcentagem nacional entre 44 e 50) em prol de um nuacutemero por demais elevado de indiviacuteduos que cursaram universidades (27 contra 9) as demais rubricas tambeacutem apresentam discrepacircncias 25 de entrevistados entre ldquofundamental completo e meacutedio incomple-tordquo (contra 19) e 23 entre ldquomeacutedio incompleto e superior incompletordquo (contra 26) A anaacutelise de todo o material obtido assim como das fontes primaacuterias levou em conta tais inclinaccedilotildees e como se veraacute mais adiante elas parecem ateacute mesmo reforccedilar algumas das conclusotildees aqui obtidas Ainda no mesmo quesito os dados do IBGE classificam os brasileiros de acordo com ldquorede de ensino que frequentavamrdquo quando da realizaccedilatildeo da coleta de dados sendo que o questionaacuterio abordou os entrevistados de acordo com frequecircncia em cursojaacute realizada37 Mesmo assim os nuacutemeros aqui disponiacuteveis serviram bem agrave constituiccedilatildeo da amostragem

Na segunda parte do questionaacuterio a obtenccedilatildeo do perfil cultural do entrevistado se deu a partir de uma identificaccedilatildeo de seu acesso agrave televisatildeo (se assiste caso positivo com qual frequecircncia que tipo de programas se em tevecirc aberta eou a cabo e quais os trecircs programas que mais assiste) leitura (se lecirc com frequecircncia que tipo de coisa e quais os uacuteltimos trecircs livros que leu) cinema e teatro (em ambos os casos apenas se costuma ou natildeo frequentar)38 Apoacutes tais perguntas que procuraram diagnosticar eventuais proximidades do entrevistado em relaccedilatildeo a fontes secundaacuterias da pesquisa o questionaacuterio introduziu a questatildeo especiacutefica de seu interesse pela Histoacuteria Foi entatildeo perguntado se ele se interessa ou natildeo por Histoacuteria e por qual (do Brasil geral ou outraqual) se busca informaccedilotildees sobre e em caso positivo onde (livros televisatildeo internet revistas cursos museus outroqual) e se nos uacuteltimos dois anos leu algo ou frequentou algum curso a respeito (em caso positivo qual) Tais perguntas foram elaboradas visando uma aproximaccedilatildeo realista com caracteriacutesticas que de modo hipo-teacutetico foram atribuiacutedas a essa cultura de histoacuteria no Brasil Por isso foram preteridas formas linguiacutesticas quiccedilaacute muito acadecircmicas em prol de outras que permitissem que o entrevistado se expressasse de modo a fornecer dados vaacutelidos daiacute por exemplo o uso da tradicional divisatildeo entre Histoacuteria do Brasil e Histoacuteria Geral (com abertura para identificaccedilatildeo de ldquooutrardquo qual-quer) de muito pouca serventia para os historiadores profissionais

Finalmente a terceira parte do questionaacuterio visou agrave obtenccedilatildeo de conteuacutedos diretamente relacionados agrave Independecircncia do Brasil valendo-se mais amplamente ainda dessa estrateacutegia de utilizaccedilatildeo de formas linguiacutes-ticas coloquiais assim como de perguntas cujas respostas seriam tanto dirigidas como abertas grau de interesse sobre a histoacuteria da Independecircncia do Brasil (nenhum pequeno meacutedio ou grande seguido de uma justificati-va) grau de conhecimento do tema (nenhum pouco razoaacutevel bom exce-lente) se procura se informar sobre (natildeo simcomo) e se estaacute lendo ou leu algo a respeito nos uacuteltimos dois anos (natildeo simo quecirc) Ou seja abriu-se a

03102012 pelo SBT Conforme a sinopse da emissora ldquobaseado no formato criado pela BBC The Greats o programa elege[u] aquele que fez mais pela naccedilatildeo que se destacou pelo seu legado agrave sociedade Diversos paiacuteses jaacute apontaram os seus maiores representantes Na Inglaterra Winston Churchill saiu vencedor Os italianos elegeram Leonardo da Vincirdquo (sbtcombromaiorbrasileiroprograma Acesso em 21032014) A escolha dos candidatos e a definiccedilatildeo de seus confrontos ndash os personagens iam se enfrentando programa a programa em caraacuteter eliminatoacuterio ndash foi feita pelo telespectador sendo o ldquocampeatildeordquo Chico Xavier seguido por Santos Dummont e pela princesa Isabel Semelhante mas de menor alcance foi a pesquisa realizada pela Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional divulgada em abril de 2008 que convocou ldquopara a tarefa de eleger os lsquoheroacuteisrsquo e os lsquovilotildeesrsquo do Brasil uma distinta seleccedilatildeo de historiadores professores jornalistas economistas poliacuteticos e artistas protegidos pelo anonimato para louvar e condenar quem bem entendessemrdquo Entre os mais bem avaliados estavam Rui Barbosa Machado de Assis e D Pedro II no polo oposto Meacutedici e Costa e Silva (revistadehistoriacombrsecaoreportagemranking-dos-brasileiros Acesso em 21032014)

40As palavras satildeo acordo comeacutedia continuaccedilatildeo

democracia ditadura drama elitespoderosos escravidatildeo Estados Unidos exeacutercito guerra heroiacutesmo Inglaterra invenccedilatildeo Joatildeo VI Joseacute Bonifaacutecio liberdade mudanccedila naccedilatildeo nascimento negociaccedilatildeo paz Pedro I Portugal povo revoluccedilatildeo Tiradentes tirania O entrevistado poderia incluir outra palavra qualquer que desejasse

41O questionaacuterio encerrava-se com a possibilidade

do entrevistado acrescentar livremente algo bem como a opccedilatildeo de identificaccedilatildeo nominal Um proveitoso desdobramento da pesquisa poderia resultar de uma anaacutelise de nuances e matizes de interessantes jogos discursivos presentes em muitas das respostas obtidas sobretudo no caso de uma expansatildeo numeacuterica da amostragem

42Quando em fevereiro de 2013 foram

amplamente divulgados resultados de pesquisas biomeacutedicas (com tentativas de conclusotildees tambeacutem histoacutericas) realizadas com os restos mortais de Pedro I Leopoldina e Ameacutelia realizadas por Valdirene Ambiel Cfr AMBIEL Valdirene do Carmo Estudos de arqueologia forense aplicados aos remanescentes humanos dos primeiros imperadores do Brasil depositados no monumento agrave Independecircncia 2013 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Arqueologia) Museu de Arqueologia e Etnologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2013 Aleacutem de procurar esclarecer se tais restos se encontravam depositados no Monumento agrave Independecircncia em Satildeo Paulo e diagnosticar o estado de conservaccedilatildeo dos mesmos Ambiel procurou chamar a atenccedilatildeo para as possiacuteveis causas da morte dos monarcas e sobre os procedimentos funeraacuterios com eles entatildeo utilizados Tais resultados foram divulgados pela imprensa nacional como ldquoverdadesrdquo sobre a famiacutelia imperial brasileira supostamente ausentes dos livros de histoacuteria ldquosegredosrdquo agora ldquoreveladosrdquo Por exemplo Pedro I tinha quatro

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possibilidade de se chegar a dados de uma cultura de histoacuteria inclusive em suas negaccedilotildees em seus silecircncios e interdiccedilotildees Em seguida o questionaacuterio recorreu a um artifiacutecio muito presente no meio social sobre o qual incidiu foi pedido ao entrevistado que atribuiacutesse notas de um a dez para a impor-tacircncia que acha que a Independecircncia teve para a histoacuteria do Brasil e para a histoacuteria do mundo Nos historiadores profissionais em geral esses rankings com sua gigantesca capacidade de simplificar a realidade costumam despertar ojeriza no entanto para os demais agentes sociais dessa cultura pode significar uma forma uacutetil de representaccedilatildeo da realidade acostumados que estatildeo a ela em muitos aspectos de sua vida cotidiana39 Assim tambeacutem daqui pode-se extrair elementos para a anaacutelise de uma cultura de histoacuteria Jaacute as trecircs perguntas seguintes buscaram outra aproximaccedilatildeo foi pedido ao entrevistado que diante de uma lista de 28 palavras escolhesse as trecircs que acreditasse que mais combinam e as trecircs que menos combinam com a Independecircncia40 Tais palavras incidem sobre personagens fatos proces-sos conceitos e mitos constituindo um bom leque de possibilidades de aproximaccedilatildeo linguiacutestica e conceitual com formas de ver a Independecircncia presentes na sociedade inclusive por contemplarem vaacuterios antinocircmicos Por fim perguntou-se ao entrevistado se seria capaz de dizer as datas da chegada da corte portuguesa no Brasil da Independecircncia do Brasil da pri-meira Constituiccedilatildeo e da abdicaccedilatildeo de D Pedro I41 Aqui o intuito era aferir ateacute que ponto essa cultura de histoacuteria se organiza e se faz representar por marcos cronoloacutegicos convencionais bem como se enseja formas alternati-vas de historicizaccedilatildeo e temporalizaccedilatildeo

Desse modo por meio de estrateacutegias de abordagem complementares (graus de relaccedilatildeo ativa ou passiva diante do tema o peso de linguagens conceitos e informaccedilotildees formas temporais) o questionaacuterio procurou fazer convergirem possibilidades de posturas dos entrevistados em relaccedilatildeo agrave histoacuteria e agrave Independecircncia do Brasil bem como dimensotildees variadas e even-tualmente contraditoacuterias de tais posturas relacionando-as inclusive com as cinco perguntas baacutesicas que seriam posteriormente dirigidas agraves fontes secundaacuterias conforme enunciado ao final do item anterior

Apoacutes um curto periacuteodo de testes foram entrevistadas presencialmen-te 311 pessoas na cidade de Satildeo Paulo Grande ABC e interior do estado entre os dias 19 de setembro de 2012 e 02 de agosto de 2013 Propositada-mente foram evitadas as duas Semanas da Paacutetria desses anos bem como um periacuteodo de vinte dias de superexposiccedilatildeo midiaacutetica especiacutefica do tema42 As abordagens foram realizadas de modo direto em 994 das vezes em espaccedilos puacuteblicos tendo cada uma ndash com poucas exceccedilotildees -a duraccedilatildeo de cerca de sete minutos durante os quais evitou-se ao maacuteximo qualquer tipo de constrangimento direcionamento ou auxiacutelio nas respostas

O que foi possiacutevel obter nessas entrevistas Os entrevistados com-potildeem um grupo de forte contato com a televisatildeo (93 assistem com frequecircncia e 51 todos os dias sendo que 58 possuem tevecirc aberta e a cabo apenas 6 disseram natildeo assistir tevecirc) de leitores frequentes (78) e de assistentes a cinemas (58) e teatros (28) o que o aproxima de um perfil de classe meacutedia escolarizada conforme jaacute apontado anteriormente de todo modo haacute que se lembrar que em muitos outros aspectos relevan-tes esse eacute um grupo heterogecircneo Daiacute a importacircncia do fato de que 77 dos que o compotildeem disseram se interessar por histoacuteria (sendo que 60 afirmaram buscar informaccedilotildees a respeito) Esse eacute um nuacutemero alto ou bai-xo A questatildeo natildeo parece das mais importantes jaacute que de acordo com a

costelas quebradas quando morreu era mais baixo do que se supunha natildeo foi cremado mas enterrado acompanhado de porccedilotildees de terra de Portugal e com roupas de general com insiacutegnias portuguesas e natildeo brasileiras Leopoldina natildeo teve o fecircmur quebrado antes de morrer como acreditava-se ateacute entatildeo foi enterrada com a mesma roupa com que foi coroada imperatriz e seus brincos natildeo eram de ouro mas bijuterias de resina Jaacute Ameacutelia quando morreu tinha escoliose e osteoporose foi enterrada de preto e mumificada Na internet tais ldquorevelaccedilotildeesrdquo foram no total comentadas milhares de vezes ldquorecomendadasrdquo e em geral bem-recebidas (fotosestadaocombrmudanca-na-historia-dez-verdades-sobre-a-familia-imperial-que-nao-estao-nos-livros-de-historiagaleria70481949100htmpPosicaoFoto=1carousel acesso em 27032014 folhauolcombrfspcienciasaude94655-corpos-da-familia-imperial-sao-exumadosshtml acesso em 02042014 folhauolcombrfspcienciasaude94656-descoberta-mostra-abandono-de-d-leopoldina-diz-historiadorashtml acesso em 02042014 estadaocombrnoticiascidadessob-sigilo-dom-pedro-i-e-suas-duas-mulheres-sao-exumados-pela-primeira-vez9983670htm acesso em 02042014 vejaabrilcombrblogricardo-settitema-livreabertura-para-estudos-dos-sarcofagos-de-d-pedro-i-e-de-suas-duas-esposas-e-fato-extraordinario-parabens-ao-estadao-por-divulgar-tudo acesso em 02042014 brnoticiasyahoocomexumaC3A7C3A3o-d-pedro-i-mulheres-reconta-histC3B3ria-115400981htmlgt acesso em 02042014 g1globocomciencia-e-saudenoticia201302cientistas-brasileiros-exumam-restos-mortais-de-d-pedro-i-e-suas-mulhereshtml acesso em 02042014 youtubecomwatchv=y8jcdXyx3hAgt acesso em 02042014 vestibularuolcombrresumo-das-disciplinasatualidadeshistoria-do-brasil-exumacao-traz-novidades-sobre-d-pedro-ihtm acesso em 02042014 ltgooglecombrsearchq= exumaC3A7C3A3o+de+dom+pedroampoq= exumaC3A7C3A3o+ampaqs= chrome469i57j0l55749j0j8ampsourceid= chromeampespv=210ampes_sm=93ampie=UTF-8gt acesso em 02042014 noticiasseuhistorycomexumacao-revela-detalhes-surpreendentes-da-vida-e-morte-de-d-pedro-i-e-suas-mulheresgt acesso em 02042014 istoecombrreportagens277892_A+VOLTA+DE+DOM+PEDRO+I acesso em 02042014 bahiaatualcomnoticiasexumacao-de-corpos-de-d-pedro-i-revela-detalhes-da-famiila-real acesso em 02042014 Site Uacuteltimo Segundo ldquoExumaccedilatildeo de D Pedro I e suas mulheres reconta a Histoacuteriardquo disponiacutevel em ultimosegundoigcombrciencia2013-02-19exumacao-de-dpedro-i-e-suas-mulheres-reconta-a-historiahtml acesso em 02042014 diariodepernambucocombrappnoticiaciencia-e-saude20130219internas_cienciaesaude424273restos-mortais-de-d-pedro-i-sao-exumados-para-realizacao-de-pesquisashtml acesso em 02042014 httpopiniaoenoticiacombrbrasilrestos-mortais-de-dom-pedro-i-sao-exumadosgt acesso em 02042014 noticiasbanduolcombrjornaldabandconteudoaspid=100000576688 acesso em 02042014

15Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

definiccedilatildeo aqui proposta de cultura de histoacuteria o desinteresse tambeacutem eacute um dado relevante pois traduz uma atitude em si e que dificilmente poderia ser considerada de modo absoluto (como pretender que esse desinteresse se traduza por exemplo em descaso com a proacutepria histoacuteria ou com a da famiacutelia Difiacutecil acreditar ser esse o caso de 23 dos entrevistados) Aleacutem disso bem sabemos que seu contraacuterio o interesse pode se manifestar de muitas maneiras que natildeo necessariamente encontram guarida em praacuteticas acadecircmicas e profissionais relacionadas ao estudo do passado tampouco que resultam em um estudo da histoacuteria minimamente organizado O que implica que os dois contraacuterios nem sempre estabeleceratildeo limites claros entre si diante da apreciaccedilatildeo geral de uma cultura de histoacuteria interesse e desinteresse pela histoacuteria podem flertar com muita proximidade bem como intercambiarem elementos regularmente

Observemos mais atentamente esse panorama Considerando-se tais caracteriacutesticas de uma cultura de histoacuteria como a brasileira perguntou-se a todos os entrevistados incluindo aos 23 que afirmaram natildeo se inte-ressar por histoacuteria por ldquoqual histoacuteriardquo poderia dizer que mais se interessa Aqui as respostas que de alguma forma se referem diretamente agrave histoacuteria do Brasil (ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo ldquoHistoacuteria geral e do Brasilrdquo ldquoHistoacuteria da nos-sa regiatildeordquo ldquoHistoacuteria do Brasil e andinardquo) perfazem 34 do total aiacute sim um nuacutemero relativamente baixo diante dos 66 que em suas respostas exclu-iacuteram o Brasil Portanto independentemente do interesse pela mateacuteria ser alto ou baixo a relaccedilatildeo com a Histoacuteria do Brasil parece gozar de especial desprestiacutegio Seraacute o desprezo pela histoacuteria nacional um dado da cultura de histoacuteria no Brasil43 Mais adiante quando da anaacutelise das outras fontes vol-taremos a esse ponto De todo modo tal desprestiacutegio evidentemente traraacute implicaccedilotildees para as posturas dos brasileiros em relaccedilatildeo agrave Independecircncia

A princiacutepio os entrevistados tendem a se interessar pouco pela Inde-pendecircncia do Brasil mas essa natildeo eacute uma tendecircncia absoluta se 39 tecircm ldquonenhumrdquo ldquopoucordquo ou ldquopequenordquo interesse 44 tem ldquomeacutediordquo e 17 ldquoentre meacutedio e granderdquo e ldquogranderdquo Ora em se tratando de uma cultura de histoacuteria dinacircmica e fluida com fronteiras pouco claras entre o interesse e o desinte-resse pela histoacuteria de modo geral (e a despeito da clara tendecircncia a um maior desinteresse pela Histoacuteria do Brasil) a Independecircncia eacute pouco interessante mas natildeo eacute inteiramente desprezada (apenas 11 declararam ldquonenhumrdquo inte-resse por ela cifra menor do que a dos grandes interessados)

Parece entatildeo haver espaccedilo aqui para diferentes formas de pensar representar e reinventar a Independecircncia do Brasil como verificar-se-aacute mais adiante de momento constata-se uma correspondecircncia estatiacutestica entre os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram ter dela ldquobomrdquo ou ldquoexcelenterdquo conhecimento (os de ldquonenhumrdquo ldquopoucordquo ou apenas ldquorazoaacutevelrdquo conhecimento compotildee os demais 83) e os 30 que afirma-ram buscar informaccedilotildees a respeito (sendo 60 os que buscam informaccedilotildees sobre histoacuteria em geral) Provavelmente trata-se de um subgrupo dos mais ativos no circuito de consumo-reproduccedilatildeo-criaccedilatildeo de toacutepicos relativos agrave Independecircncia na cultura de histoacuteria no Brasil Dentre esses 30 exclusi-vamente 305 afirmaram buscar informaccedilotildees sobre a Independecircncia em livros 291 na escola e nos livros didaacuteticos (evidentemente mais confina-dos ao puacuteblico jovem) 208 na internet 97 em raacutedio tevecirc eou jornais impressos e outros 97 ldquocom pessoas e lugares44 Os que responderam ler ou ter lido algo a respeito nos uacuteltimos dois anos foram 34 (os demais responderam ldquonatildeordquoldquonatildeo se lembrardquo ou natildeo responderam)

43Natildeo parece ser o caso da cultura histoacuterica

portuguesa de acordo com trabalhos recentes como os de PAIS Joseacute Machado Op Cit SOBRAL Joseacute Manuel Op Cit e MATOS Seacutergio Campos Consciecircncia histoacuterica e nacionalismo Portugal seacuteculos XIX e XX Lisboa Horizonte 2008

44A ausecircncia de menccedilotildees a outros tipos de suporte

de informaccedilotildees sobre a Independecircncia reforccedila a escolha das fontes secundaacuterias da pesquisa analisadas no proacuteximo item

45Embora seja muito frequente a consideraccedilatildeo de

que o principal marco fundacional da histoacuteria brasileira tenha sido o ldquodescobrimentordquo (isto eacute a chegada dos portugueses agrave Ameacuterica em 1500) e natildeo a ruptura poliacutetica entre Brasil e Portugal Muito provavelmente isso se conecta com uma tambeacutem muito frequente concepccedilatildeo da Independecircncia como ldquonatildeo-rupturardquo como processo negociado amigaacutevel e sem grandes solavancos Retornaremos agrave questatildeo

46Todas as 28 palavras oferecidas aos entrevistados

receberam no miacutenimo quatro menccedilotildees sendo que 22 tiveram mais de uma dezena de menccedilotildees a mesclarem termos que remetem a caracteriacutesticas atribuiacutedas agrave Independecircncia que ensejam relaccedilotildees diretas ou indiretas com ela ou que se referem a simples informaccedilotildees

47Foram feitas 310 menccedilotildees de termos positivos em

relaccedilatildeo agrave Independecircncia (liberdade democracia revoluccedilatildeo heroiacutesmo mudanccedila drama) contra 210 dos mesmos como natildeo combinando com ela essa tendecircncia eacute reforccedilada por 190 menccedilotildees a termos negativos que combinariam com ela (acordo escravidatildeo negociaccedilatildeo continuaccedilatildeo ditadura comeacutedia invenccedilatildeo tirania) sendo que os mesmos foram mencionados 391 vezes como natildeo combinando Esclarecer o caso de escravidatildeo pode ser referecircncia a uma realidade (em geral negativa) mas tambeacutem como metaacutefora poliacutetica Para todos os efeitos como mencionar o termo de outras maneiras

48148 escolhas incidiram sobre termos conflitivos

que com ela combinariam (guerra revoluccedilatildeo mudanccedila) contra 101 menccedilotildees a tais termos como natildeo combinando poreacutem tal tendecircncia se inverte nas 119 escolhas de termos paciacuteficos que com ela combinariam (paz acordo negociaccedilatildeo) contra 70 menccedilotildees aos mesmos como natildeo combinando

49Foram feitas 27 escolhas de povo como combinando

contra 22 do mesmo termo como natildeo combinando e 35 a elitepoderosos como combinando contra 14 em termos opostos o que indica certo equiliacutebrio tendente agrave segunda possibilidade

50Natildeo se pode deixar de mencionar algumas

outras palavras que natildeo se encontravam na lista mas foram acrescidas pelos entrevistados sendo portanto de menccedilatildeo espontacircnea As mais recorrentes combinando num sentido depreciativo foram ldquointeresserdquo e ldquocorrupccedilatildeordquo Outras palavras tais quais ldquounificaccedilatildeordquo ldquomorterdquo

16Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

A hipoacutetese da constituiccedilatildeo de um subgrupo ativo na cultura de histoacuteria por meio do tema da Independecircncia encontra respaldo nos resulta-dos do ranking do questionaacuterio para a importacircncia que ela teria tido para a Histoacuteria do Brasil 43 deram nota 10 e outros 31 notas entre 8 e 9 sendo que apenas 6 deram notas entre 0 e 4 ou natildeo souberam responder Ou seja mesmo quem natildeo se interessa pela Independecircncia ou pela Histoacute-ria do Brasil em geral tende a reconhecer o tema como sendo de grande importacircncia embora tal reconhecimento seja menor em se tratando de sua relaccedilatildeo com a Histoacuteria ldquoem geralrdquo (a essa pergunta 25 respondeu com nota 10 e outros 25 com notas 8 ou 9 em contraposiccedilatildeo a um elevado percentual de 22 que deu notas entre 0 e 4 ou natildeo soube responder) Ainda assim portanto a Independecircncia eacute fortemente valorizada por um percentual que extrapola os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram dela serem conhecedores ou os 20 que afirmaram buscar informaccedilotildees a seu respeito Valorizada poreacutem em meio ao que parece ser uma dificuldade de se pensaacute-la para aleacutem de sua tradicional circunscriccedilatildeo nacional (o que encontra como logo veremos enorme correspondecircncia nas fontes secundaacuterias) para aleacutem dos limites a ela convencionalmente impos-tos por tradiccedilotildees historiograacuteficas ainda fortes e mesmo por uma cultura de histoacuteria que tendo atributos fortemente nacionais tende a nela enxergar um marco fundacional importante isto eacute um marco diferenciador entre a histoacuteria do Brasil e a de outros paiacuteses45

O que nesse sentido nos mostram as escolhas de palavras que ldquocom-binamrdquo e ldquonatildeo combinamrdquo com a Independecircncia46 Em primeiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista mais em perspectiva positivaenalte-cedora do que negativadepreciativa47 Em segundo lugar a possibilidade da Independecircncia ser considerada tanto como rupturaconflitiva quanto como continuidadepaciacutefica48 Em terceiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista como algo menos popular do que elitista49 Em quarto e uacuteltimo lu-gar ateacute que ponto os entrevistados se mostraram conhecedores da histoacuteria 55 respostas indicaram termos informativos descabidos (Tiradentes combina D Pedro I D Joatildeo VI Joseacute Bonifaacutecio e Portugal natildeo) contra uma maioria de 190 menccedilotildees a tais termos de modo inverso Aqui os resultados podem indicar a prevalecircncia de um tipo de conhecimento de histoacuteria estruturado em personagens e trajetoacuterias individuais (como logo veremos as fontes secundaacute-rias tambeacutem referendaratildeo amplamente essa hipoacutetese)50

Na uacuteltima parte do questionaacuterio perguntou-se aos entrevistados acerca de datas de quatro eventos que podem ser considerados como marcos do processo de Independecircncia 68 responderam natildeo saber ou natildeo se lembrar da data da chegada da Corte portuguesa ao Brasil 13 deram respostas claramente erradas em muitas das quais (ldquomil e quinhentosrdquo ldquomil quinhentos e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo etc) natildeo obstan-te se vislumbra uma referecircncia adequada poreacutem tratada de modo equivo-cado e somente 9 souberam responder de modo preciso (ldquomil oitocentos e oitordquo) Diante da pergunta quanto agrave data da primeira constituiccedilatildeo do Brasil 85 disseram natildeo saber ou natildeo se lembrar 7 deram respostas claramente erradas (ldquomil e quatrocentosrdquo ldquomil quinhentos e oitentardquo) algumas das quais poreacutem se aproximando da evocaccedilatildeo de alguma consti-tuiccedilatildeo brasileira (ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquomil novecentos e trintardquo ldquomil novecentos e oitenta e oitordquo) e apenas 13 souberam responder com firmeza isto eacute com a presenccedila de ldquomil oitocentos e vinte e quatrordquo na resposta Jaacute a pergunta sobre a data

(em alusatildeo ao Grito) e ldquoprogressordquo enriqueceram a fileira dos termos valorativos

51Essa percepccedilatildeo eacute reforccedilada por alguns dos

dados obtidos por Purificaccedilatildeo Em meio a representaccedilotildees da Independecircncia produzidas por crianccedilas entre 09 e 13 anos encontram-se frases como ldquoQuando D Pedro viu terra gritou Independecircncia ou Morterdquo e ldquoPouco depois de descobrirem o Brasil gritaram a independecircnciardquo PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p40-41 Cabe lembrar que tais crianccedilas natildeo haviam tido ainda contato formal (na escola) com o tema da Independecircncia ldquoapenasrdquo por meio de uma cultura de histoacuteria a envolverem-nas

52O que parece impor uma urgente reflexatildeo em

torno dos efeitos do violento desprestiacutegio das referecircncias factuais que o sistema escolar impocircs ao ensino de Histoacuteria no Brasil das uacuteltimas deacutecadas O quecirc ademais natildeo parece uma situaccedilatildeo exclusivamente brasileira de acordo com a sugestatildeo que nos foi dada por Nuno Gonccedilalo Monteiro a ver aqui paralelismo com o ensino de Histoacuteria em Portugal

53Outras duas possibilidades promissoras seriam

analisar respostas a questotildees de vestibulares relativas agrave Independecircncia e entrevistas com professores e coordenadores pedagoacutegicos que de alguma forma lidem com o tema no cotidiano escolar

54MORENO Jean Carlos Limites escolhas e

expectativas horizontes metodoloacutegicos para anaacutelise dos livros didaacuteticos de histoacuteria Antiacuteteses Londrina v5 n10 p729 juldez2012

55O que eacute atestado por exemplo pela recente

consolidaccedilatildeo da presenccedila nos livros didaacuteticos de toacutepicos relativos agrave Histoacuteria do continente africano

56Dos 49 autores de livros didaacuteticos aqui

considerados 36 satildeo identificados pelos termos ldquomestrerdquo ldquodoutorrdquo ou ldquoprofessor universitaacuteriordquo O que natildeo significa como eacute bem sabido que tais autores sejam integralmente responsaacuteveis pelo conteuacutedo de suas obras

57MORENO Jean Carlos Op Cit p724

58Segundo dados oficiais somente no ano de

2012 esse governo comprou cerca de 408 milhotildees de livros didaacuteticos para os anos do Ensino Meacutedio (Assessoria de Comunicaccedilatildeo Social do FNDE 24 de agosto de 2012)

59Sua produccedilatildeo no entanto eacute regionalmente

concentrada na seleccedilatildeo das coleccedilotildees de didaacuteticos feita pelo MEC em 2010 oito editoras de Satildeo Paulo responderam por 842 da produccedilatildeo aprovada enquanto trecircs de Curitiba ficaram com os 158 restantes

60DIAS Adriana M GRINBERG Keila e

PELLEGRINI Marco Novo Olhar Histoacuteria v2 Satildeo

17Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

da abdicaccedilatildeo de D Pedro I foi a campeatilde em respostas imprecisas 92 dis-seram natildeo saber ou natildeo se lembrar 16 deu respostas erradas e apenas 12 soube responder ldquomil oitocentos e trinta e umrdquo

E quanto agrave data da Independecircncia do Brasil Em comparaccedilatildeo com as perguntas anteriores esta obteve respostas de qualidade superior natildeo obstante um nuacutemero ainda alto de respostas ldquonatildeo souberdquo e ldquonatildeo lembrardquo 33 dos entrevistados Haacute que se lembrar inclusive que desde a segunda parte do questionaacuterio o entrevistado jaacute sabia tratar-se de algo focado na Independecircncia ou seja se nas demais perguntas pode-se dizer que ele foi pego totalmente surpresa nesta natildeo Por isso e se considerarmos ainda os 14 que deram respostas claramente erradas a esta pergunta (ldquomil e qui-nhentosrdquo ldquovinte e um de abril de mil e quinhentosrdquo ldquovinte e dois de abril de mil e quinhentosrdquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquovinte e um de abrilrdquo ldquovinte e dois de abrilrdquo ldquonove de julhordquo) chega-se a um total de 47 de pessoas incapazes de dizer quando ocorreu a Independecircncia do Brasil Por outra parte os que souberam responder (ldquosete de setembro de mil oito-centos e vinte e doisrdquo ou ldquomil oitocentos e vinte e doisrdquo) chegaram a 16 iacutendice muito proacuteximo das dimensotildees do hipoteacutetico grupo de interessados e razoaacuteveis conhecedores da Histoacuteria da Independecircncia referido alguns paraacutegrafos acima

Trata-se de um nuacutemero elevado ainda mais se reafirmarmos que a Independecircncia natildeo eacute jamais completamente ignorada em meio agrave cultura brasileira de histoacuteria De certo modo sim mas natildeo deve escapar agrave obser-vaccedilatildeo de ningueacutem que nessa pergunta especiacutefica a confusatildeo de datas se daacute dentro de referecircncias histoacutericas e cronoloacutegicas bastante demarcadas a Independecircncia o ldquodescobrimento do Brasilrdquo Tiradentes e a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica todos eles marcos fundacionais em uma memoacuteria histoacuteri-ca oficial logo fundamentais na constituiccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil51 Tais resultados indicam preliminarmente a precariedade da concepccedilatildeo de histoacuteria ndash da Independecircncia em particular - segundo formas convencionais de organizaccedilatildeo cronoloacutegica e isso a despeito dessa socieda-de ser permeada e carregada de referecircncias cronoloacutegicas que organizam a vida das pessoas em muitos de seus interstiacutecios (vida familiar vida profis-sional praacuteticas de lazer e de culto etc) Pouquiacutessimas respostas ndash esta-tisticamente despreziacuteveis -parecem esboccedilar a forja de alguma modalidade alternativa de organizaccedilatildeo temporal da histoacuteria (ldquoquase duzentos anosrdquo ldquomil oitocentos e alguma coisardquo ou ldquoD Pedro saiu para brigar com o irmatildeo e deixou D Pedro IIrdquo) diante do quecirc ganha forccedila a hipoacutetese de uma enorme e generalizada dificuldade apresentada por essa sociedade no manejo de recursos baacutesicos de historicizaccedilatildeo da histoacuteria como a cronologia52

Ateacute aqui as conclusotildees a que se pode chegar ainda satildeo excessiva-mente parciais extraiacutedas apenas da sondagem de opiniatildeo conveacutem no entanto sumarizaacute-las de modo a reforccedilaacute-las como hipoacuteteses capazes de nortear a anaacutelise vindoura Segundo o que nos mostram os entrevistados a Independecircncia eacute pouco frequentada por muitos mas assiduamente por um grupo razoaacutevel (seratildeo seus membros os uacutenicos capazes de pensaacute-la segundo marcos cronoloacutegicos) eacute amplamente considerada tema da maior importacircncia para a Histoacuteria do Brasil e de menor importacircncia para a His-toacuteria do Mundo ela eacute menos interessante do que outros temas (quais natildeo sabemos) assim como a Histoacuteria do Brasil eacute menos do que a Histoacuteria Geral mas tende a ser vista como algo respeitaacutevel eventualmente positivo para o Brasil o que parece evocar um imaginaacuterio oficial ainda muito vigente de

Paulo FTD 2010 ALVES Alexandre e OLIVEIRA Letiacutecia F de Conexotildees com a Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Moderna 2010 PEDRO Antocircnio e LIMA Lizacircnias de Souza Histoacuteria sempre presente v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VICENTINO Claacuteudio R e DORIGO Gianpaolo F Histoacuteria Geral e do Brasil v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FIGUEIRA Divalte G Histoacuteria em foco v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2011 NOGUEIRA Fausto G e CAPELLARI Marcos Ser protagonista Histoacuteria 2ordm ano do Ensino Meacutedio Satildeo Paulo Ediccedilotildees SM 2010 BURITTI Flaacutevio Caminhos do Homem v2 Curitiba Base Editorial 2010 CAMPOS Flaacutevio de CLARO Regina A escrita da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 COTRIM Gilberto Histoacuteria Global Brasil e Geral v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 AZEVEDO Gislane C e SERIACOPI Reinaldo Histoacuteria em movimento v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2010 MORENO Jean Carlos e GOMES Sandro V Histoacuteria cultura e sociedade v3 Curitiba Positivo 2010 FERREIRA Joatildeo Paulo e FERNANDES Luiz Estevam Nova Histoacuteria integrada v2 2a ed Curitiba Moacutedulo 2010 MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Histoacuteria Geral e Brasil v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam B Histoacuteria Das cavernas ao terceiro milecircnio v2 2a ed Satildeo Paulo Moderna SANTIAGO Pedro CERQUEIRA Ceacutelia e PONTES Maria Aparecida Por dentro da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 MOCELLIN Renato e CAMARGO Rosiane Histoacuteria em debate v2 Satildeo Paulo Editora do Brasil 2010 CATELLI Jr Roberto GANDINI Mariacutea Soledad M e ASPIS Renata L Histoacuteria texto e contexto v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FARIA Ricardo de M MIRANDA Mocircnica Liz e CAMPOS Helena Estudos de Histoacuteria v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010

61PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit

62Conforme observou o Guia de livros didaacuteticos

PNLD 2012 Histoacuteria 17 das coleccedilotildees aprovadas adotaram a perspectiva da Histoacuteria Integrada na qual se expotildee o conteuacutedo histoacuterico a partir da ldquosequecircncia cronoloacutegica de base europeiardquo havendo o predomiacutenio da ldquoHistoacuteria Geral eurocecircntricardquo linear Os assuntos sobre a Histoacuteria da Ameacuterica e do Brasil estatildeo intercalados nesta grande Histoacuteria Geral As outras duas coleccedilotildees optaram pelo formato temaacutetico organizando os assuntos ldquoem torno de muacuteltiplos espaccedilos e temporalidadesrdquo mas guiados por um eixo cronoloacutegico Guia de livros didaacuteticos PNLD 2012 Histoacuteria Op Cit p 18-19

63Uma afirmaccedilatildeo tiacutepica ldquoO nascimento do

Brasil como paiacutes independente encontra-se dentro do contexto de crise do Antigo Regime e do sistema colonial mercantilistardquo VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p89 Os paradigmas historiograacuteficos a que tal tipo de afirmaccedilatildeo remete satildeo evidentemente as obras de Caio Prado Juacutenior e Fernando Novais jaacute amplamente presentes tambeacutem nos livros de Ensino Fundamental PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit cap3

18Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

glorificaccedilatildeo da Independecircncia laudatoacuterio e a destacar seus personagens centrais No entanto tal tendecircncia encontra obstaacuteculo em outras contraacute-rias minoritaacuterias mas natildeo despreziacuteveis a verem a Independecircncia como algo pouco ou nada importante uma histoacuteria restrita espacialmente e socialmente e mais de continuidades do que de rupturas

Assim jaacute eacute possiacutevel afirmar que a Independecircncia enseja disputas a seu respeito em torno de suas representaccedilotildees e memoacuterias oficiais ou natildeo Muito provavelmente alguns dos motivos que explicam sua rejeiccedilatildeo por muitos explicam igualmente sua ativa e entusiasmada frequecircncia por um grupo menor Em uma terceira via ela jamais deixou de ser pensada e divulgada em perspectivas complexas fortemente criacuteticas e analiacuteticas Para todos os efeitos a Independecircncia contribui sem duacutevida para tipificar uma cultura de histoacuteria no Brasil plural variada e apenas parcialmente organizada em padrotildees cronoloacutegicos (temporais) na qual ocupa um papel central e da qual irradiam outros elementos valiosos para um melhor en-tendimento dessa mesma cultura

4 ndash A Independecircncia nas escolas A principal fonte de fomento e irradiaccedilatildeo de atitudes do brasileiro diante da Independecircncia eacute o sistema escolar com sua diversidade de agentes es-paccedilos procedimentos materiais e valores Aqui seraacute analisado apenas um componente prenhe de significados desse sistema o livro didaacutetico53

Segundo um estudioso da mateacuteria os autores de livros didaacuteticos de Histoacuteria em geral ndash grupo no qual ele mesmo estaacute incluiacutedo -ldquonatildeo tecircm por objetivo somente transpor a Histoacuteria acadecircmica eles identificam necessi-dades sociais estatildeo imersos na sociedade e portanto na proacutepria histoacuteria sobre a qual escrevemrdquo54 Tais livros satildeo assim documentos privilegiados de uma cultura de histoacuteria trazem conteuacutedos de acordo com padrotildees e paracircmetros de uma sociedade agrave qual servem sendo inclusive cada vez mais sensiacuteveis a impulsos de origem natildeo acadecircmica55 contam com a colaboraccedilatildeo ou autoria de historiadores profissionais56 que trabalham junto a editores assistentes revisores iconoacutegrafos diagramadores e designers graacuteficos57 satildeo consumidos preferencialmente por educadores e educandos mas chegam tambeacutem agraves famiacutelias destes e ao puacuteblico em geral tendem a permanecer por algum tempo disponiacuteveis em salas de aula residecircncias livrarias e bibliotecas e satildeo fortemente condicionados pelas exigecircncias de um grande mercado editorial cujas demandas capi-talistas natildeo satildeo menos evidentes do que as pedagoacutegicas O livro didaacutetico eacute o segundo suporte de leitura mais lido no Brasil sendo sua produccedilatildeo o mais lucrativo negoacutecio de uma induacutestria editorial brasileira que tem no governo federal seu maior cliente58 Essa produccedilatildeo dos livros didaacuteticos movimenta enormes cifras veicula paacuteginas e paacuteginas de conteuacutedos de Histoacuteria produzidos por e destinados a um amplo conjunto de agentes sociais e tecircm circulaccedilatildeo nacional59

A Independecircncia estaacute presente em todos os 21 livros destinados ao Ensino Meacutedio aqui considerados60 assim como estava em outros 12 de Ensino Fundamental contemplados por um estudo acadecircmico a respeito61 Nessa dupla frente abre-se uma possibilidade de anaacutelise valiosa jaacute que alguns livros circulam atualmente enquanto outros circularam agrave eacutepoca em que jovens adultos que hoje tecircm entre 22 e 26 anos eram crianccedilas entre 9 e 13 Unem-se assim duas temporalidades de tratamentos da Independecircn-cia que podem ser unificadas por uma cultura de histoacuteria

64Exemplo eacute a afirmaccedilatildeo de que ldquoem

reconhecimento agrave importacircncia da Batalha do Jenipapo como um episoacutedio fundamental no processo de independecircncia e de consolidaccedilatildeo do territoacuterio a data de 13 de marccedilo de 1823 foi estampada na bandeira do estado do Piauiacuterdquo DIAS Adriana GRINBERG Keila e PELLEGRINI Marco Op Cit p240

65Excelente demonstraccedilatildeo eacute dada por uma

proposta pedagoacutegica de um jogo didaacutetico elaborado pelo Laboratoacuterio de Ensino de Histoacuteria da Universidade Federal de Pelotas descrita em GASPAROTTO Alessandra ESPIacuteRITO SANTO Marco Viniacutecio do SILVA Eduarda Borges da Jogo didaacutetico vira-vira a metroacutepole vira colocircnia a colocircnia vira-metroacutepole Revista Latino-Americana de Histoacuteria v2 n6 agosto de 2013 (Ediccedilatildeo Especial) p648-661

66Os preferidos satildeo D Joatildeo Carlota Joaquina Joseacute

Bonifaacutecio e D Pedro

67Um exemplo apoacutes afirmar que ldquodurante anos a

historiografia oficial tentou idealizar o processo de independecircncia e seus autores explicado como um ato de heroiacutesmo contra a tirania e em defesa da liberdaderdquo uma das obras afirma em tom de contraposiccedilatildeo ldquoMas nas uacuteltimas deacutecadas novos estudos permitiram lanccedilar um novo olhar sobre esse periacuteodo Expressotildees dessa mudanccedila satildeo algumas produccedilotildees culturais recentes que tratam desse momento com uma visatildeo criacutetica e ateacute mesmo sarcaacutestica como por exemplo o romance O Chalaccedila (1999) de Joseacute Roberto Torerordquo Por fim propotildee como ldquoSugestatildeo de atividaderdquo supostamente para aguccedilar o senso criacutetico do aluno ldquocomparar o romance de Torero citado acima com a visatildeo oficial dos eventos fornecida pela ceacutelebre pintura Independecircncia ou morte (O Grito do Ipiranga) de Pedro Ameacuterico ou pelo filme Independecircncia ou morte (1972) de Carlos Coimbrardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p80-81) Aleacutem de ignorar os momentos objetivos e naturezas distintos das obras recomendadas tal atividade sugere a ultrapassagem de uma visatildeo ldquotradicionalrdquo da Independecircncia por outra ldquocriacuteticardquo ndash logo mais aceitaacutevel Assim o aluno eacute encorajado a conceber a histoacuteria por meio de sua livre-interpretaccedilatildeo mas sendo impelido a endossar a de um romance satiacuterico (logo voltaremos a ele)

68Em um livro para o Ensino Fundamental de

1996 lia-se que ldquopara a realizaccedilatildeo do nosso trabalho foi importante a participaccedilatildeo de Mariana Massarani artista que desenhou com alegria e bom humor os acontecimentos estudadosrdquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Do mundo indiacutegena ao periacuteodo regencial no Brasil Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1994 p1 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p79) Essa eacute uma tendecircncia antiga como nos mostra o poema de Murilo Mendes ldquoA pescariardquo (publicado em Histoacuteria do Brasil de 1932) evocativo da tatildeo ceacutelebre quanto historicamente irrelevante disenteria de D Pedro em 7 de setembro de 1822 e transcrito em outro didaacutetico ldquoFoi nas margens

19Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Natildeo haacute duacutevida que a maioria dos livros didaacuteticos de Histoacuteria voltados ao Ensino Meacutedio abre possibilidades de construccedilatildeo de um conhecimento acerca da Independecircncia multifacetado matizado criacutetico e criterioso e deles pode-se extrair muitos exemplos a revelarem diaacutelogos propositi-vos entre saberes acadecircmicos e didaacuteticos da Histoacuteria (afinal os proacuteprios autores e avaliadores dos livros estatildeo quase todos diretamente ligados ao meio acadecircmico) aliaacutes em comparaccedilatildeo com os de Ensino Fundamental de cerca de uma deacutecada atraacutes essas possibilidades soacute cresceram Poreacutem como natildeo eacute objetivo deste estudo analisar tais livros em si mesmos -somente deles extrair elementos que tipifiquem uma cultura de histoacuteria por meio da Independecircncia ndash mais relevantes parecem ser justamente alguns de seus pontos sensiacuteveis nos quais tais livros se fazem menos acadecircmicos e nos quais se traduzem de modo mais significativo componentes mais amplos da sociedade que lhes daacute sentido

Em todos esses livros a Independecircncia eacute invariavelmente vista como parte de um processo mais amplo no qual se incluem outros acontecimen-tos poliacuteticos americanos e europeus de finais do seacuteculo XVIII e comeccedilos do seacuteculo XIX (embora quase nunca sejam feitas conexotildees fundamentais entre eles deficiecircncia notaacutevel sobretudo no tocante agraves independecircncias da Ameacuterica espanhola vistas sempre como supostos contraexemplos da Independecircncia do Brasil62) O episoacutedico se faz presente na menccedilatildeo a vaacuterios temas menores ndash a vinda da Corte a abertura dos Portos o governo de D Joatildeo no Rio de Janeiro a Revoluccedilatildeo de Pernambuco a Revoluccedilatildeo do Porto etc ndash mas sempre em observacircncia a contextos histoacutericos espaciais e temporais mais amplos63 Destaque-se que 80 dos livros fazem referecircncia expliacutecita ao termo ldquoguerra(s) de independecircnciardquo64 o que enseja uma con-cepccedilatildeo tambeacutem multirregional do tema e vaacuterios o aprofundam O mesmo pode ser dito de perfis biograacuteficos presentes mas submetidos a uma loacutegica processual da Histoacuteria

Essa ecircnfase em processos em detrimento parcial de acontecimentos e personagens eacute importante indiacutecio de uma sintonia entre saberes aca-decircmicos e natildeo acadecircmicos65 Contudo deve-se relativizar o peso desse diaacutelogo jaacute no que tange ao tratamento dispensado agraves biografias aleacutem de pouco ou nada inovarem na escolha dos personagens destacados66 alguns livros didaacuteticos trazem fragmentos anedoacuteticos de tais trajetoacuterias hoje em dia pouco ou nada uacuteteis a historiadores profissionais (embora as comilan-ccedilas de D Joatildeo os amantes de D Carlota ou as noitadas de D Pedro natildeo os distingua de outros agentes histoacutericos de sua eacutepoca tampouco satildeo trata-dos como tiacutepicos67) Parece razoaacutevel argumentar que ao menos parcial-mente tal insistecircncia da parte do livro didaacutetico atende ao gosto do leitorconsumidor tornando tais suportes materiais mais agradaacuteveis e sedutores assim sendo constata-se justamente um limite no diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e saberes didaacuteticos expressos em tais livros bem como se anuncia uma tendecircncia de representaccedilatildeo humoriacutestica do passado em uma cultura de histoacuteria como a brasileira muito forte em outros suportes68 Eis um mercado ndash que no Brasil mescla dimensotildees editoriais e midiaacuteticas com outras educacionais e culturais mais amplas ndash impondo seus padrotildees de representaccedilatildeo do passado

Aleacutem de envolverem historiadores profissionais em sua produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo os livros didaacuteticos de Ensino Meacutedio parecem esforccedilar-se cada vez mais em trazer conteuacutedos extraiacutedos de obras acadecircmicas bem como apresentar ao leitor uma pluralidade de posiccedilotildees acerca de um determina-

do IpirangaEm meio a uma pescariaSentindo-se mal D PedroComera demais cuscuzDesaperta a braguilhaE grita roxo de raivaOu me livro desta coacutelicaOu morro logo de uma vezO priacutencipe se aliviouSai no caminho cantandoJaacute me sinto independenteSafa Vou de perto a morteVamos cair no fadinhoPra celebrar o sucessordquo MACEDO Joseacute Rivair Brasil ndash uma histoacuteria em construccedilatildeo Satildeo Paulo Brasil 1996 p166 Cit por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p101

69Tomemos por exemplo esta afirmaccedilatildeo ldquoDe acordo

com alguns historiadores as raiacutezes da independecircncia brasileira estatildeo na segunda metade do seacuteculo XVIII quando se multiplicaram atividades produtivas e comerciais na colocircnia sobretudo na regiatildeo Centro-Sulrdquo (MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Op Cit p113) Nela eacute possiacutevel reconhecer a presenccedila de influente e importante interpretaccedilatildeo acadecircmica acerca da Independecircncia do Brasil (DIAS Maria Odila A interiorizaccedilatildeo da metroacutepole (1808-1853) In MOTA Carlos Guilherme 1822 dimensotildees Satildeo Paulo Perspectiva 1972 p160-184) no entanto natildeo eacute apresentada qualquer contraposiccedilatildeo (se esta posiccedilatildeo eacute da parte de ldquoalguns historiadoresrdquo outra divergente deve ser da parte de outros) Mais adiante lecirc-se que ldquoo fato relevante foi que a transferecircncia da corte para o Brasil provocou uma inversatildeo histoacuterica de modo significativo e irreversiacutevel nas relaccedilotildees entre a metroacutepole portuguesa e a colocircnia brasileirardquo (Idem p114) Ora o que seria uma inversatildeo irreversiacutevel dessas relaccedilotildees Portugal teria se tornado para sempre colocircnia do Brasil

70Nos livros didaacuteticos de Ensino Fundamental

analisados por Purificaccedilatildeo jaacute eram abundantes as transcriccedilotildees de trechos de textos de historiadores profissionais sem que deles resultasse qualquer ensejo de pluralidade de pensamento ou de estiacutemulo agrave interpretaccedilatildeo

71VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA

Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p 103

72O capiacutetulo 14 de uma das obras intitulado

ldquoO processo de independecircncia da Ameacuterica portuguesardquo inicia-se com um excerto do Romanceiro da Inconfidecircncia de Ceciacutelia Meireles tambeacutem indutor a essa interpretaccedilatildeo ldquoAtraveacutes de grossas portas sentem-se luzes acesas e haacute indagaccedilotildees minuciosas dentro das casas fronteiras Que estatildeo fazendo tatildeo tarde Que escrevem conversam pensam Mostram livros proibidos Leem notiacutecias nas GazetasTeratildeo recebido cartasde potecircncias estrangeiras [] Oacute vitoacuterias festas flores das lutas da Independecircncia Liberdade ndash essa palavra que o sonho humano alimenta que natildeo haacute ningueacutem que explique e ningueacutem que natildeo entendardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p 202) Jaacute nas ldquosugestotildees de leitura e consulta para o professorrdquo de outra encontra-se indicaccedilatildeo de uma obra de J J Chiavenato - Inconfidecircncia mineira as vaacuterias faces Satildeo Paulo Global 2000 - com este comentaacuterio ldquoo autor mostra o movimento que buscava a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Adotando uma abordagem que parte da realidade socioeconocircmica do periacuteodo este livro releva diferentes aspectos desse momento singular da histoacuteria brasileirardquo (NOGUEIRA Fausto

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do toacutepico que seja decorrente de debates acadecircmicos No entanto ainda eacute frequente que tais conteuacutedos se inclinem agrave pura formalidade dificilmente explicitando divergecircncias oriundas da academia ou resultando em uma tomada de posiccedilatildeo realmente criacutetica perante a histoacuteria69 Ao usuaacuterio do livro eacute apresentada uma suposta pluralidade de pensamento natildeo como ferramenta de obtenccedilatildeo dessa pluralidade mas como estilo de composiccedilatildeo e padronizaccedilatildeo do material didaacutetico70

Esse tipo de atitude formalista pode ser encontrada tambeacutem em propostas de atividades dirigidas ao aluno como esta

A interpretaccedilatildeo sobre a independecircncia do Brasil provocou e ainda provoca muitas divergecircncias Sob o ponto de vista econocircmico alguns pesquisadores defendem que a separaccedilatildeo ocorreu de fato em 1808 [] Outros com interpretaccedilotildees mais poliacuteticas indicam o 7 de setembro de 1822 embora nenhuma medida formal tenha sido tomada nessa data ndash foi um ato simboacutelico Depois da Guerra do Paraguai jornais republicanos argumentavam que [] D Pedro havia atendido aos apelos de independecircncia dos brasileiros mas os teria traiacutedo quando fechou a Assembleia Constituinte em 1823 Enalteciam entatildeo a Inconfidecircncia Mineira (1789) a Revoluccedilatildeo Pernambucana (1817) e a Confederaccedilatildeo do Equador (1824) movimentos com teor republicano conforme as reais aspiraccedilotildees dos brasileiros

Satildeo vaacuterias interpretaccedilotildees que variam de acordo com a posiccedilatildeo poliacutetica ou momento histoacuterico dos autores Alguns intelectuais consideram ateacute mesmo que o Brasil hoje tem uma independecircncia mais nominal do que real pois continuaria dependente dos paiacuteses mais ricos

Em sua opiniatildeo quando o Brasil se tornou um paiacutes independente71

Aqui novamente eacute apresentada uma divergecircncia de interpretaccedilatildeo e vaacuterias satildeo as possibilidades de resposta agrave pergunta quando o Brasil se tornou um paiacutes independente No entanto todas as posiccedilotildees apresentadas parecem equivaler-se pois tudo depende da ldquoposiccedilatildeo poliacuteticardquo ou ldquodo mo-mento histoacutericordquo da pessoa disposta a respondecirc-la Assim e por induccedilatildeo a Inconfidecircncia Mineira poderia ser uma resposta aceitaacutevel conforme visatildeo ainda presente em alguns livros72 e a despeito do contraacuterio que historia-dores vecircm afirmando nas uacuteltimas deacutecadas Do mesmo modo a atividade pareceria aceitar a ldquonatildeo independecircncia de fatordquo ideia muito presente na cultura de histoacuteria no Brasil73 tatildeo sedutora quanto inconsistente do ponto de vista acadecircmico Para o aluno tratar-se-ia de uma questatildeo de simples opccedilatildeo (poliacutetica) diante da qual a Histoacuteria se destemporaliza

Uma Histoacuteria processual mais do que episoacutedica ou personalista uma Histoacuteria permeada de explicaccedilotildees acadecircmicas ao mesmo tempo uma Histoacuteria com limitaccedilotildees em termos de divergecircncias relativizaccedilotildees e possibilidades em aberto condicionada a suportes materiais repletos de convenccedilotildees a tornarem-nos muito parecidos entre si Talvez seja no tra-tamento dispensado a imagens que os livros didaacuteticos melhor revelam tais convenccedilotildees reforccedilando as limitaccedilotildees de seu diaacutelogo com a Histoacuteria acadecirc-mica bem como acentuando suas caracteriacutesticas de mercadoria Todos os livros aqui considerados satildeo carregados de itens especiacuteficos a quebrarem a continuidade do texto e suas paacuteginas satildeo multicoloridas e povoadas por fi-guras como obras de pintores dos seacuteculos XIX e XX74 Quase nunca poreacutem tais imagens satildeo analisadas como fontes histoacutericas confinadas agrave funccedilatildeo de mera ilustraccedilatildeo frequentemente modificadas em cor e tamanho ateacute mesmo mutiladas ndash sem esclarecimento ndash em prol da diagramaccedilatildeo75 Em tais casos inevitavelmente cria-se uma ideia natildeo de uma histoacuteria sujeita a muacuteltiplas interpretaccedilotildees (contrapondo-se portanto a vaacuterias das atividades

e CAPELLARI Marcos Op Cit p71) Em uma terceira obra logo na abertura de um capiacutetulo intitulado ldquoA independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo lecirc-se que ldquoos dias 21 de abril e 7 de setembro feriados nacionais nos fazem lembrar de dois momentos do processo histoacuterico que levou a independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo (COTRIM Gilberto Op Cit p223) A associaccedilatildeo direta entre Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia era mais comumente feita em livros didaacuteticos de deacutecadas atraacutes Um de Ensino Fundamental caracterizava a Revolta de Beckman a Guerra dos Emboabas a Revolta de Felipe dos Santos a Guerra dos Mascates e as conjuraccedilotildees Mineira e Baiana como movimentos nos quais ldquoos revoltosos se opuseram agrave metroacutepole sonhando e lutando pela autonomia do paiacutesrdquo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Nas trilhas da histoacuteria Ensino Fundamental Belo Horizonte Dimensatildeo 1999 v4) Citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p108

73FIGUEIRA Divalte G Op Cit p191 Nos de

Ensino Fundamental AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 CARMO Socircnia S do COUTO Eliane F B A A consolidaccedilatildeo do capitalismo e o Brasil impeacuterio Satildeo Paulo Atual 1997 (Histoacuteria Passado Presente 3) p105 FERREIRA Joseacute Roberto Histoacuteria Ediccedilatildeo Reformulada Satildeo Paulo FTD 1997 (7ordf seacuterie) p65 ALVES Kaacutetia Correia Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p 128 Citados por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p78 84-85 96 e 111

74Debret Rugendas Moreaux Feacutelix Taunay

Constantino Fontes Polliegravere Parreiras Benedito Calixto Delerive Martins Viana Oscar Pereira da Silva Georgina de Albuquerque e Aldemir Martins entre outros

75Isso jaacute era frequente haacute uma deacutecada com livros

de Ensino Fundamental como por exemplo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p126 e COTRIM Geraldo Op Cit p 112 conforme anaacutelise de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p113 e 123 Haacute que se dizer que livros didaacuteticos natildeo satildeo meio exclusivo para esse esvaziamento do valor documental da iconografia havendo na proacutepria publicaccedilatildeo acadecircmica problema semelhante como demonstra CAVENAGHI Airton Joseacute O atlas do impeacuterio do Brazil e as representaccedilotildees presentes no livro Projeto Histoacuteria v 41 2010 p 383-403

76Constataccedilatildeo semelhante agrave de PURIFICACcedilAtildeO Ana

Teresa da Op Cit para os didaacuteticos de Ensino Fundamental

77NOGUEIRA Fausto e CAPELLARI Marcos Op

Cit p255

78Para um deles ldquoo pintor Pedro Ameacuterico imaginou

a cena ocorrida agraves margens do riacho do Ipirangardquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 para outro um ceacutelebre quadro mostraria uma ldquocena de uma

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sessatildeo das cortes de Lisboa reconstituiacuteda pelo pintor Oscar Pereira da Silvardquo Cfr CARMO Socircnia do COUTO Eliane F B A Op Cit p 73 um terceiro propunha ao aluno a seguinte atividade ldquoobserve cuidadosamente as gravuras de Debret que aparecem no texto Descreva cada uma delas e compare as cenas nelas retratadas com as cenas de nossas ruas de hoje Haacute diferenccedila Em que sentidordquo Cfr GARCIA Leocircnidas F Estudos de histoacuteria sociedades contemporacircneas 2 ed rev Goiacircnia Editora da UFG 1996 Manual do Professor p 111 Todas as informaccedilotildees foram retiradas de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p81 88 e 137

79Conforme bem mostrado por Elias Saliba Cfr

SALIBA Elias Experiecircncias e representaccedilotildees sociais reflexotildees sobre o uso e o consumo das imagens Anais do II Encontro Perspectivas do Ensino de Histoacuteria Satildeo Paulo FEUSP 1996 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p119

80Produzida pela Secretaria de Ensino agrave

Distacircncia do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo em parceria com a TV Escola e a Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco com a companhia teatral Matildeo Molenga Parte 1 disponiacutevel em youtubecomwatchv=Z60eHBJ1xjY 18082 visualizaccedilotildees e 15 comentaacuterios parte 2 disponiacutevel em youtubecomwatchv=2QLkP2NDhMg 30100 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios (parte desse episoacutedio tambeacutem disponiacutevel em youtubecomwatchv=bAPUjP7l-lI 18398 visualizaccedilotildees e 16 comentaacuterios acesso em 13022014

81Como Clemente Pereira Gonccedilalves Ledo Cipriano

Barata Paes de Andrade e frei Caneca O fato de se tratar de uma produccedilatildeo pernambucana contribui para tanto

82Semelhante observaccedilatildeo pode ser feita a respeito

dos doze curtos episoacutedios da seacuterie D Joatildeo no Brasil inspirada em uma narrativa em quadrinhos da chegada da Corte ao Brasil seacuterie de animaccedilatildeo produzida pelo Canal Futura baseada no livro de histoacuteria em quadrinhos D Joatildeo Carioca a corte portuguesa chega ao Brasil (1808 - 1821) escrito pela historiadora Lilia Schwarcz e pelo desenhista Spacca (Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007) Novamente tem-se um material convincente afinado em muitos sentidos com um conhecimento acadecircmico mas que ao recorrer agrave saacutetira tambeacutem evoca estereoacutetipos convencionais como por exemplo os mesmos acima mencionados em referecircncia a priacutencipe e princesa Poder-se-ia atribuir tal convencionalismo dentre outros fatores ao de que a primazia da linguagem visual aqui opera duplamente isto eacute com os quadrinhos e tambeacutem com o programa televisivo criado a partir deles amplificando assim os efeitos decorrentes da saturaccedilatildeo visual da sociedade que daacute origem e significado a esse material Para todos os efeitos a imposiccedilatildeo de tais convenccedilotildees eacute forte ateacute mesmo conforme jaacute visto em materiais menos visuais que este Episoacutedio 01 youtubecomwatchv= 9f5RB1zcD5Eamplist=PLyP1ks9vaqhj2y6MmckU DyuXtWmHgPLe5ampindex=1 331 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio episoacutedio 02 youtubecomwatchv= w-BLqvhYPGkamplist=PL5837763F26AB1B87

oferecidas pelos proacuteprios livros) mas de uma histoacuteria imoacutevel a ser captada de modo instantacircneo uma histoacuteria verdadeira Aleacutem do mais confundem-se os diferentes contextos motivaccedilotildees e condiccedilotildees de produccedilatildeo de tais imagens o que equivale agrave oferta de uma confusatildeo temporal que impossibi-lita a compreensatildeo dessa histoacuteria76

As uacutenicas exceccedilotildees satildeo os ceacutelebres quadros de Moreaux e de Pe-dro Ameacuterico Todos os livros didaacuteticos aqui considerados se esforccedilam por submetecirc-los a uma criacutetica muitas vezes comparativa considerando forma conteuacutedo e contexto mesmo assim eacute possiacutevel encontrar afirmaccedilotildees como a de que Ameacuterico teria tido ldquoo intuito de fazer a representaccedilatildeo desse famoso acontecimento da maneira mais fiel possiacutevelrdquo e que ldquomuitos dos elementos representados pelo pintor satildeo sabidamente falsosrdquo77 Provavel-mente satildeo resquiacutecios de um momento anterior no qual os livros didaacuteticos mostravam-se muito menos cuidadosos ateacute mesmo na utilizaccedilatildeo do quadro de Ameacuterico78 mas tambeacutem marcas atuais de uma sociedade de haacutebitos fortemente visuais cuja saturaccedilatildeo de imagens tende a resultar em posturas pouco criacuteticas em relaccedilatildeo ao que se vecirc bem como em indistinccedilatildeo tempo-ral das mesmas79 Haacute que se lembrar por fim e novamente que os textos desses livros satildeo cheios de descontinuidades como se cada pedaccedilo de cada paacutegina tivesse autonomia prescindindo de certo modo da leitura dos demais Guardaratildeo tais constataccedilotildees alguma relaccedilatildeo com as dificuldades apresentadas pelos entrevistados na sondagem de opiniatildeo de organizar visotildees da Histoacuteria da Independecircncia segundo marcos cronoloacutegicos bem como de distinguir diferenccedilas entre intervalos temporais Eacute bem possiacutevel sobretudo porque ela seraacute endossada pela observaccedilatildeo de outras fontes

5 - A Independecircncia na internet e na tevecircExiste farto e rico material audiovisual disponiacutevel na internet com referecircncias agrave Independecircncia do Brasil e que a exemplo dos livros didaacuteticos represen-tam a convergecircncia de esforccedilos profissionais muacuteltiplos (mais os programas de tevecirc do que os viacutedeos independentes) como pesquisadores roteiristas apresentadores repoacuterteres cenoacutegrafos teacutecnicos variados etc As fontes aqui delimitadas perfazem 107 viacutedeos acessiacuteveis no YouTube e que natildeo obstante sua ampliacutessima diversidade convergem em muitos significados

Observe-se o caso de viacutedeos educativos documentaacuterios e programas de televisatildeo com entrevistas e debates que em comum apresentam objetivos formativos e esforccedilos verdadeiros de incorporaccedilatildeo de conteuacutedos acadecircmicos traduzidos em linguagens didaacuteticas Um caso exemplar eacute a seacuterie 500 anos o Brasil - Impeacuterio na TV que conta uma histoacuteria do Brasil da chegada da Corte ao periacuteodo das regecircncias em formato de telejornal com trama romanceada e teatro de bonecos80 Aqui vecirc-se uma Histoacuteria processual com informa-ccedilotildees corretas e amparadas em datas deslocamentos frequentes dos eixos espaciais de observaccedilatildeo (regional internacional) com menccedilatildeo a persona-gens que extrapolam o tradicional ciacuterculo da Corte portuguesa81 e ecircnfase no caraacuteter violento e conflitivo da formaccedilatildeo do Brasil no seacuteculo XIX Mesmo um material histoacuterico-pedagoacutegico desse quilate evoca por exemplo a falta de atributos esteacuteticos de Carlota Joaquina ou a pusilanimidade de seu marido a revelarem mais uma vez o mercadologicamente eficiente componente bio-graacutefico-anedoacutetico no tratamento da Independecircncia advindo de sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria mais ampla82

Em outros casos o fato de programas de televisatildeo buscarem o auxiacutelio de especialistas na Independecircncia revela uma convenccedilatildeo formal como nos

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16566 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios episoacutedio 03 youtubecomwatchv=QvWSE-sF-w4amplist =PL5837763F26AB1B87 18406 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios episoacutedio 04 youtubecomwatchv= 2N5wBvpgyXEamplist=PL5837763F26AB1B87 12808 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 05 youtubecomwatchv=VaHrSAFBf1Uamplist =PL5837763F26AB1B87 14615 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 06 youtubecomwatchv= 8RrCMbOZTsAamplist=PL5837763F26AB1B87 12649 visualizaccedilotildees 10 comentaacuterios episoacutedio 07 youtubecomwatchv=I4cgWo_GHaQ 601 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 08 youtubecomwatchv=rI71YNrLo7o 12299 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 09 youtubecomwatchv=huv2ngnqUd4 367 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios episoacutedio 10 youtubecomwatchv=F2MaLs_kj-w 10842 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios episoacutedio 11 youtubecomwatchv=8zK3D01dXc0 9388 visualizaccedilotildees 05 comentaacuterios episoacutedio 12 youtubecomwatchv=R76BHD--vB8amplist=PL5837763F26AB1B87 12108 visualizaccedilotildees 9 comentaacuterios acessos em 03042014

83NAPOLITANO Marcos A Histoacuteria depois do

papel In Carla Pinsky (org) Fontes Histoacutericas Satildeo Paulo Contexto 2005 p250-252 Napolitano afirma com base em Umberto Eco que a televisatildeo introduziu uma mudanccedila de ritmo de vida familiar e cotidiana bem como o que se pode chamar de hipertrofia sensorial em detrimento da assimilaccedilatildeo conceitual Destaca ainda que eacute preciso pensar a televisatildeo como uma nova experiecircncia social do tempo histoacuterico na medida em que ela faz coincidir o verdadeiro o imaginaacuterio e o real no ponto indivisiacutevel do presente

84Produzida pela rede de emissoras puacuteblicas

TV Brasil Sobre a Revolta dos Alfaiates parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo 767 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=dj04LJJM8bk 2592 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio Sobre a Batalha do Jenipapo parte 1 youtubecomwatchv=zlgsZcj-V3o 2426 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios acesso em 24032013 parte 2 youtubecomwatchv=rAS3dHAvWPQ 1283 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio Sobre Tiradentes youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 408 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013)

85Marco Morel e Luiacutes Henrique Dias Tavares

86Programa De laacute pra caacute Revolta dos Alfaiates

parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo

87Exceccedilatildeo satildeo as entrevistas realizadas por

Mocircnica Teixeira na UnivespTV que estabelecem comunicaccedilatildeo bastante profiacutecua entre a entrevistadora e os acadecircmicos entrevistados (youtubecomwatchv=syXf3WHQRPM 4450 visualizaccedilotildees 06 comentaacuterios youtubecomwatchv=pZk5pFlboqw 3303 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=5pUDP2KUYCY 4128 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios

livros didaacuteticos e a exemplo destes a intenccedilatildeo de acolher uma multipli-cidade de vozes raramente enseja verdadeira pluralidade de pensamento o que ademais eacute dificultado pela natureza curta sinteacutetica e acelerada dos materiais televisivos Nessas situaccedilotildees constata-se que o historiador fala uma coisa mas o entrevistador e o produtor continuam a ldquoescutarrdquo outra o que muitas vezes reforccedila a percepccedilatildeo de descontinuidade narrativa an-teriormente tambeacutem diagnosticada nos livros didaacuteticos e que na televisatildeo adquire contornos de regra83 Os episoacutedios da seacuterie De laacute para caacute educati-vos didaacuteticos aacutevidos por com conhecimentos acadecircmicos e produzidos por uma rede puacuteblica de televisatildeo sem fins lucrativos apresentam interessante exemplo84 No programa dedicado aos acontecimentos de 1798 na Bahia dois historiadores profissionais85 esclarecem que os revoltosos ldquobahien-sesrdquo almejavam a independecircncia apenas da capitania da Bahia o que tem enormes implicaccedilotildees a destituiacuterem tais acontecimentos de qualquer atribu-to supostamente preparatoacuterio da Independecircncia do Brasil (situaccedilatildeo muito semelhante conforme vimos agrave da Inconfidecircncia Mineira) natildeo obstante na abertura do programa seu apresentador declara

A luta pela independecircncia do Brasil foi escrita nas paacuteginas memoraacuteveis da nossa histoacuteria com o sangue de um punhado de brasileiros O mais celebrado foi Tiradentes Mas sete anos depois do martiacuterio de Tiradentes quatro brasileiros pretos pobres pelos mesmos ideais foram enforcados e sentenciados em Salvador86

Em outros momentos o apresentador apesar de ouvir de forma soliacutecita e atenta ao que o entrevistado tem a dizer acaba por negar com sua proacutepria fala parte do conteuacutedo receacutem-ouvido mas sem demonstrar ser essa atitude premeditada ou consciente Afinal eacute difiacutecil desvencilhar-se daquilo que jaacute se ldquosaberdquo daquilo que adveacutem de um ambiente que o tempo todo nos ldquoensinardquo Histoacuteria sem necessariamente disso nos darmos conta87

A incapacidade de assimilaccedilatildeo reciacuteproca de ideias acerca da histoacute-ria entre agentes sociais diversos pode revelar-se de muitos modos Um dos programas da seacuterie Caminhos da Reportagem intitulado Caminhos da Independecircncia o grito nas ruas produzido com as mesmas caracteriacutesticas do anterior aborda a Independecircncia focada em seus panfletos poliacuteticos a partir da pesquisa recente de trecircs historiadores profissionais88 No entan-to e a despeito natildeo soacute de dar ampla voz a eles mas tambeacutem de abordar conteuacutedos didaticamente inovadores a equipe de entrevista que foi agraves ruas natildeo estabeleceu qualquer mediaccedilatildeo entre histoacuterias acadecircmicas e natildeo acadecircmicas pressupondo que todas as pessoas ocupam uma mesma posiccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria Por isso perguntas incompreensiacuteveis89 resultam apenas em situaccedilotildees vexatoacuterias impeditivas da construccedilatildeo de conhecimento sobre o tema

A abordagem de pessoas nas ruas recurso frequentemente utiliza-do por programas televisivos revela dados importantes acerca de como os brasileiros veem a Independecircncia muitas vezes mais por aquilo que eacute perguntado do que por aquilo que eacute respondido90 O programa + Estilo de 07 de setembro de 2011 produzido pela TV Campo Grande com conteuacutedo de variedades destinado a telespectadores de meio de tarde foi agraves ruas (provavelmente de Campo Grande Mato Grosso do Sul) perguntar se as pessoas saberiam dizer o que se comemorava naquele dia Primeiro res-ponde uma jovem com um bebecirc no colo

23Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

youtubecomwatchv=0ZVgCwkt1ms 1384 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1016 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1227 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=ANSHAFLau04 1175 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios) Acessos em 21042014

88Joseacute Murilo de Carvalho Luacutecia Pereira das Neves

e Marcello Basile

89A apresentadora ldquoVocecircs sabem o que significa

corcundardquo Um professor de coleacutegio ldquoDeve ser alguma coisa que estaacute surgindo aiacute no mundo um pouco mais ciberneacutetico porque eu nem na faculdade ouvi falar dos corcundasrdquo Marcos Tomazzeti produtor multimiacutedia ldquoNa minha cabeccedila vem algo de monarquia de rei algo meio poliacuteticordquo Simone Granda bancaacuteria ldquoDicionaacuterio de corcundice Natildeo seirdquo Marilu Guimaratildees dona de casa ldquoPuxa tem tanta coisa importante pra ter dicionaacuterio vai ter justo do corcundistardquo Caminhos da Independecircncia youtubecomwatchv=37XH5UEpjlI acesso em 24032013

90Em perspectiva oposta mas complementar agrave da

sondagem de opiniatildeo aqui utilizada

91E que portanto muito provavelmente ainda natildeo

tinha tido contato formal (escolar) com o tema

92O programa prossegue entatildeo com uma entrevista

com o professor Ian Rari que trata de uma Histoacuteria da Independecircncia processual natildeo centrada em uma uacutenica data ou fato criacutetica etc Mais um momento onde as vaacuterias vozes contempladas pelo programa natildeo dialogam entre si (youtubecomwatchv=xv1LOlwUfFQ 289 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio) Outro exemplo significativo eacute dado pelo programa Conexatildeo Jovem exibido em 06 de setembro de 2012 no qual dois entrevistados ndash Prof Bira professor de Histoacuteria e Marcos Eduardo socioacutelogo ndash utilizam com competecircncia o pouco tempo a eles destinado discorrendo de modo criacutetico sobre a Independecircncia e em linguagem adequada ao puacuteblico jovem ao qual o programa se destina (produccedilatildeo da TV Novo Tempo adventista parte 1 youtubecomwatchv=1IvYOYtju9sgt 74 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=Ofv7QWOJpHo 47 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013) Logo o programa traz uma abordagem feita na rua na qual a entrevistadora pergunta a uma jovem ldquoQuem falou lsquoindependecircncia ou mortersquo agraves margens do riacho do Ipirangardquo Diante da correta resposta a entrevistadora tenta induzir um erro ldquo15 de novembro ou 7 de setembrordquo Aliaacutes a expectativa do programa parece revelada pela entrevistadora logo na primeira pergunta feita a um dos convidados ldquoseraacute que os jovens se interessam pela histoacuteria de seu paiacutesrdquo E embora o material recolhido pelo proacuteprio programa permita resposta afirmativa manteacutem-se a postura negativa preacute-concebida

93Daiacute a relevacircncia de um viacutedeo com fotografias e

um aacuteudio (youtubecomwatchv=UdQ_aAAl3DE)

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoE isso em que ano que foi que aconteceurdquoResposta ldquo1822rdquo

Em seguida outro jovem que provavelmente jaacute tinha respondido a outra pergunta

Pergunta ldquoQuem foi o imperador vocecirc lembrardquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoAcertou Canta pra gente um trecho do hino da independecircnciardquoResposta ldquoAgora natildeo lembrordquo

Agora o programa aborda uma menina de cerca de dez anos clara-mente intimada91

Pergunta Por que eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoNatildeo seirdquoPergunta ldquoNatildeo lembra Vou dar uma dica um fato histoacuterico muito importante para o BrasilrdquoResposta (negativa com a cabeccedila)

Em quarto lugar outra jovem que procura se afastar da cacircmera

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta (ainda tentando se esquivar sorrindo) ldquoNatildeordquoPergunta ldquoNatildeo saberdquoResposta ldquoAh A Independecircncia Eu natildeo prestei atenccedilatildeordquoPergunta Que ano aconteceu a Independecircncia vocecirc lembrardquoResposta ldquoNatildeordquoPergunta ldquoE quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoTambeacutem natildeo lembrordquo

Por fim a entrevista com um senhor de meia-idade comeccedila jaacute com uma resposta

Resposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoQue ano aconteceu issordquoResposta ldquo1888rdquoPergunta ldquo1822 Quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoCerto E onde foi que aconteceu tudo issordquoResposta ldquoSatildeo PaulordquoPergunta ldquoOK [breve silecircncio] Canta um trechinho para noacutes do hino da IndependecircnciardquoResposta ldquoJaacute podeis da paacutetria matildeerdquo [sic -prossegue cantando corretamente]

Em seguida o programa corta para uma sala de aula onde a despeito dos ldquoacertosrdquo obtidos nas ruas a entrevistadora afirma

Diante da dificuldade que noacutes encontramos no centro da cidade para saber informaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil eu vim parar na sala de aula Vai ser aqui que a gente vai descobrir a histoacuteria do paiacutes92

A ideia a priori de que o brasileiro natildeo conhece e natildeo se interessa pela histoacuteria subsidia este e muitos outros programas Aqui o dado mais relevante parece estar precisamente nessa arraigada crenccedila no desinteres-

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da entatildeo prefeita de Ribeiratildeo Preto (Satildeo Paulo) Darcy Vera que afirma durante um desfile de 7 de Setembro dentre vaacuterios desvarios que ldquoTiradentes gritou lsquoIndependecircncia ou mortersquordquo Com 169919 acessos e 149 comentaacuterios (em geral criacuteticos bem humorados e depreciativos) ateacute 20082014 condensa a possibilidade de amplificaccedilatildeo do estigma do natildeo domiacutenio de referecircncias convencionais agrave Independecircncia mas sem fomentar nenhum conhecimento da mesma

94Novamente surge a questatildeo natildeo teratildeo as

renovaccedilotildees curriculares promovidas no ensino de Histoacuteria (no Brasil e alhures) das uacuteltimas deacutecadas exagerado nessa incompatibilidade Teratildeo elas sido capazes de mensurar seus efeitos deleteacuterios diante de sociedades jaacute bastante refrataacuterias a uma histoacuteria cronoloacutegica

95ldquoPouco importa que sua figura tenha sido

mitificada pela propaganda republicana O que importa eacute que ele foi um heroacutei Ele deu sua vida pela paacutetria e pela liberdaderdquo (Programa De laacute pra caacute youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032013) Essa exaltaccedilatildeo da figura de Tiradentes associada agrave Independecircncia conduz o discurso da propaganda eleitoral de um candidato agrave prefeitura de Ouro Preto em 2012 (youtubecomwatchv=eGefgLoRhec 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032014) Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo no dia 09 de setembro de 2013 apoacutes se autocaracterizar como realizador de uma ldquohistoacuteria de carne e ossordquo em contraposiccedilatildeo a produccedilotildees ldquocontaminadas pela anaacutelise marxistardquo que retirariam os personagens da Histoacuteria o jornalista Laurentino Gomes afirma ldquoNo 1822 faccedilo uma comparaccedilatildeo e digo que o uacutenico problema do Joseacute Bonifaacutecio foi nascer no Brasil pois se ele tivesse nascido nos Estados Unidos teria sido maior que o Thomas Jefferson Porque aparentemente ele era mais preparado mais luacutecido que o Thomas Jeffersonrdquo (parte 1 youtubecomwatchv=uGibbLxsZK0 4501 visualizaccedilotildees e 5 comentaacuterios parte 2 youtubecomwatchv=2LQcEcb5kLU 2302 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios acesso em 26032014 Logo voltaremos agrave obra e agraves ideias de L Gomes

96Um exemplo adveacutem do viacutedeo ldquoA verdadeira

independecircncia do Brasilrdquo em que um pastor evangeacutelico em meio a uma cerimocircnia religiosa ldquodesconstroacuteirdquo o quadro de Pedro Ameacuterico acusando-o de pouco verossiacutemil e aponta os desvios morais de D Pedro I de modo a inviabilizaacute-lo como figura histoacuterica digna de memoacuteria (youtubecomwatchv=RsKQr6bgzLA 178 visualizaccedilotildees e 2 comentaacuterios acesso em 24032014) A suposta irrelevacircncia dos personagens envolvidos no processo da independecircncia eacute notaacutevel na fala de um professor de Ensino Meacutedio (youtubecomwatchv=gvWVF9j2KEU 597 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) e de um apresentador de temas religiosos que relativizam a importacircncia do tema ao afirmarem a atual ldquodependecircncia econocircmicardquo do Brasil (youtubecomwatchv=EXyUBY7StF4 383 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Tambeacutem retornaremos a esse tema

sedesconhecimento do brasileiro pela histoacuteria bem como em um de seus efeitos mais contundentes a crenccedila de que eacute possiacutevel reverter tal situaccedilatildeo pela simples mobilizaccedilatildeo formal de datas nomes e eventos Contudo se a Independecircncia se converte em uma catalizadora de referecircncias cronoloacute-gicas ou nominais isso natildeo leva necessariamente a uma historicizaccedilatildeo do tema pelo contraacuterio a mobilizaccedilatildeo de tais referecircncias em termos como os acima mencionados (a data ou o nome por si soacutes) pode resultar no apro-fundamento da tendecircncia agrave confusatildeo temporal jaacute aqui apontada93

Nos meios intelectuais a discussatildeo em torno das formas tempo-rais de vivecircncia coletiva naquilo que se pode chamar ndash recorrendo-se a uma categoria uacutetil ndash de modernidade natildeo eacute nova tampouco estaacute em vias de esgotamento A dificuldade de organizaccedilatildeo do mundo social segundo referecircncias cronoloacutegicas natildeo seraacute em absoluto distintiva de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil embora o contraacuterio deva ser dito em relaccedilatildeo agraves formas assumidas por tais dificuldades (como as noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia) Percebe-se entatildeo o peso do estigma da dificuldade em manejar datas nomes e fatos suposta prova de um desin-teresseignoracircncia que poderia ser combatido com um retorno a velhas formas de se fazer Histoacuteria e nas quais tais elementos eram considera-dos com a essecircncia da compreensatildeo histoacuterica Natildeo parece que as coisas devam propriamente se passar segundo essa representaccedilatildeo embora um dos confrontos existentes na cultura de histoacuteria no Brasil seja sem duacutevida a polarizaccedilatildeo entre a valorizaccedilatildeo da Independecircncia (= de suas datas nomes eventos siacutembolos e supostos valores etc) e a desvalorizaccedilatildeo da mesma (=seu caraacuteter elitista e negociador a diminuiccedilatildeo da histoacuteria do Brasil em comparaccedilatildeo com a de outros paiacuteses a comicidade dessa histoacuteria etc) Eacute plausiacutevel conceber que esta segunda posiccedilatildeo encontre um aliado na con-cepccedilatildeo de incompatibilidade entre uma histoacuteria amparada por referecircncias cronoloacutegicas e ao mesmo tempo em processos estruturas e temas trans-versais do gosto inclusive de muitos acadecircmicos e educadores94

Os exemplos de materiais audiovisuais a traduzirem veicularem e fomentarem esse confronto entre valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo da Inde-pendecircncia satildeo muitos Aleacutem dos jaacute tratados ateacute aqui pode-se mencionar viacutedeos contendo propaganda de instituiccedilotildees puacuteblicas civis e militares de partidos poliacuteticos de grupos maccedilocircnicos de igrejas e de empresas variadas bem como produccedilotildees independentes Neles eacute possiacutevel encontrar desde a exaltaccedilatildeo das referecircncias mais convencionais agrave Independecircncia como a seus personagens (incluindo seu suposto maacutertir Tiradentes)95 ateacute a afirma-ccedilatildeo de sua total irrelevacircncia96 isso costuma ocorrer sem muitos matizes obedecendo a uma loacutegica dicotocircmica plasmada em linguagens simples com descontinuidades discursivas e imageacuteticas e num ritmo de exposiccedilatildeo acelerado Em suma tratam da Independecircncia segundo padrotildees parcial-mente compartilhados tambeacutem por outras fontes ateacute aqui analisadas

Todas essas fontes com suas noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia satildeo sintomaacuteticas de estados de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema bem como potenciais formadores de opiniatildeo dos mesmos Sua capacidade de criaccedilatildeo de conhecimento no entanto se mostra muito limi-tada Eacute bem verdade que esta eacute por vocaccedilatildeo uma tarefa confiada a saberes acadecircmicos ndash jaacute que no Brasil a quase totalidade da pesquisa em Histoacuteria estaacute entregue agraves universidades salvo a de interesse corporativo ndash de modo que natildeo seria de esperar inovaccedilatildeo em suportes tatildeo variados e socialmen-te diversificados quanto os ateacute aqui analisados Mas parece haver aiacute certo

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ciacuterculo vicioso a envolver tambeacutem parte da academia Basta observar que a ideia da ldquonatildeo Independecircncia de fatordquo tatildeo em voga entre tantos historiadores durante tanto tempo reverbera com forccedila na sociedade em geral97 e ainda goza de prestiacutegio ateacute mesmo entre alguns acadecircmicos que bebem-na da sociedade e apoacutes modificaacute-la parcialmente devolvem-na aos espaccedilos de di-vulgaccedilatildeo98 Essa versatildeo da Histoacuteria eacute capaz de transpor fronteiras temporais de atualizar-se em diferentes contextos e ateacute mesmo de superar abissais diferenccedilas poliacuteticas ela estaacute representada por exemplo e de modo quase idecircntico na propaganda poliacutetica de um partido trotskista e na pregaccedilatildeo nacionalista-direitista de um polecircmico professor de histoacuteria99

Por fim tome-se o caso de trecircs produccedilotildees da Rede Globo de Televi-satildeo voltadas ao puacuteblico em geral com consideraacuteveis aportes financeiros e complexa produccedilatildeo a seacuterie documental A Corte no Brasil para exibiccedilatildeo em tevecirc fechada100 e as seacuteries humoriacutesticas O Quinto dos Infernos101 e Eacute muita Histoacuteria Dia de Fuacuteria102 veiculadas amplamente em tevecirc aberta No pri-meiro caso siacutetios histoacutericos visitados pelas apresentadoras uma narrativa soacutebria e informativa de fatos e processos grande quantidade de entrevistas com historiadores ecircnfase em diferentes espaccedilos regionais e internacio-nais e tratamento do tema em muacuteltiplas dimensotildees (poliacutetica econocircmica cultural) No segundo caso uma narrativa romanceada teatral e cocircmica fortemente despolitizada e livremente baseada em trecircs livros de igual teor (um deles publicado haacute quase um seacuteculo)103 praticamente centrada no Rio de Janeiro (um pouco tambeacutem em Portugal muito menos alhures) e nos membros da famiacutelia real portuguesa cuja vida pessoal eacute estruturada em torno de seus haacutebitos excecircntricos (principalmente os sexuais) e vez ou outra de passageiros dramas pessoais104

Finalmente no terceiro caso uma encenaccedilatildeo tambeacutem cocircmica pro-tagonizada por um escritor-autor-ator-palhaccedilo com grande liberdade de criaccedilatildeo mas amparada em informaccedilotildees convenccedilotildees e mitos a oferecer uma versatildeo do Sete de Setembro segundo o estado psico-fisioloacutegico de D Pedro

Eis um exemplo de uma das modalidades assumidas pela disputa em torno de uma Independecircncia valorizada e outra depreciada Pareceria justificaacutevel opor a tal diagnoacutestico a constataccedilatildeo de se tratarem de obras televisivas de distinto teor o que desobriga a segunda e a terceira de qual-quer compromisso com a verdade No entanto interessam-nos mais seus significados e efeitos do que intenccedilotildees Note-se que a primeira documen-tal eacute de circulaccedilatildeo mais restrita que a segunda e a terceira voltadas para grande puacuteblico por isso seus efeitos nesse jogo de criaccedilatildeorecriaccedilatildeo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da Independecircncia satildeo natildeo apenas assimeacutetricos mas tambeacutem concorrentes105 Os esforccedilos de um pro-grama por posicionar o espectador diante de uma histoacuteria processual de encadeamentos temporais e de grupos e conflitos sociais satildeo naturalmente obstados pelos dos outros dois a oferecer uma histoacuteria repleta de anacro-nismos anedoacutetica e biograacutefica em perfeita sintonia com demandas mais amplas de uma sociedade ndash e de alguns de seus componentes mercadoloacutegi-cos jaacute aqui mencionados ndash na qual a vida privada eacute mais valorizada do que a puacuteblica106 Nesse confronto embora as trecircs convivam na mesma cultura de histoacuteria uma Independecircncia tende a prevalecer sobre a outra107

6 ndash A Independecircncia no cinemaEm relaccedilatildeo a livros didaacuteticos programas de televisatildeo e outros materiais audiovisuais as fontes cinematograacuteficas aqui consideradas naturalmente

97Exemplo encontra-se no viacutedeo ldquoAway Nilzer ndash

Independecircncia do Brasilrdquo com grande nuacutemero de visualizaccedilotildees (130677) e de comentaacuterios (1016) que minimiza e ridiculariza natildeo apenas o processo da independecircncia como quaisquer fatos histoacutericos brasileiros de maneira geral (youtubecomwatchv=Vd_kloNeQV0) O Brasil atual como viacutetima de uma exploraccedilatildeo econocircmica mais intensa do que nos tempos coloniais e portanto natildeo-independente aparece na fala de outro professor (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2806 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) e nos comentaacuterios de um boneco marionete de um programa infantil (youtubecomwatchv=9mh3Tu6c4_w 173 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032014)

98Exemplo desse processo de ldquodevoluccedilatildeordquo pode ser

comprovado no viacutedeo ldquoIndependecircncia ou morterdquo (youtubecomwatchv=QUvnz1no1m8 934 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Outros dois exemplos pertinentes satildeo a insistecircncia nas ideias de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil e que a Independecircncia foi uma luta entre brasileiros e portugueses

99Em entrevista a uma rede local de televisatildeo

ouvimos do professor de histoacuteria do Ensino Meacutedio Wander Pugliesi ldquoSe noacutes formos trabalhar com sinceridade o Brasil ainda natildeo eacute independente Na verdade somos muito mais explorados do que quando eacuteramos colocircnia de Portugalrdquo (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2815 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) A mesma relativizaccedilatildeo do processo de independecircncia aparece na fala do candidato agrave presidecircncia em 2010 pelo PSTU Zeacute Maria ldquohoje infelizmente natildeo podemos comemorar uma verdadeira independecircncia do paiacutes Eacute preciso dizer a verdade as multinacionais controlam a economia brasileira As decisotildees fundamentais satildeo tomadas por elas fora do paiacutesrdquo (youtubecomwatchv=ht9Yt0PlGnU 1803 visualizaccedilotildees um comentaacuterio) Acessos em 26032013

100Direccedilatildeo de Carlos Henrique Schroder 2008

Produccedilatildeo de 16 episoacutedios de cerca de 20 minutos cada para o canal da TV fechada GloboNews A seacuterie foi comercializada em DVD e pode ser vista tambeacutem no canal Globosat no Youtube (youtubecomwatchfeature= player_detailpageampv= OUX-zSyaMIc e viacutedeos relacionados Acesso em 27032014)

101Direccedilatildeo de Wolf Maya e Alexandre Avancini e

criaccedilatildeo de Carlos Lombardi 2002 Produccedilatildeo de 48 episoacutedios com cerca de 40 minutos cada para o canal da TV aberta Rede Globo de Televisatildeo A minisseacuterie tambeacutem foi comercializada em DVD e vem sendo (desde janeiro de 2014) reprisada no Canal Viva (rede fechada de televisatildeo filiada Globosat) uma reprise anterior ocorreu de agosto a novembro de 2011 sempre por volta das 23h

102Direccedilatildeo de Joatildeo Carrascosa e Pedro Bial 2007

Produccedilatildeo de 9 capiacutetulos de cerca de 15 minutos

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apresentam especificidades Tendem a diversificar (eventualmente ampliar) o rol de profissionais envolvidos em sua produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo bem como a tratar conteuacutedos em um tempo mais lento criando uma sensaccedilatildeo de homogeneidade de significados reforccedilada pela aderecircncia de tais conteuacutedos a uma trama central Tal homogeneidade por seu turno eacute relativizada por uma liberdade de criaccedilatildeo que dificilmente encontra paralelo em outros dos materiais aqui considerados ndash com a possiacutevel exceccedilatildeo da minisseacuterie O Quinto dos Infernos No entanto quando a comparaccedilatildeo eacute feita com os li-vros didaacuteticos os conteuacutedos relativos agrave Independecircncia no cinema tendem a ser menos numerosos mais superficiais e efecircmeros justamente por serem menos assumidamente informativos do que os dos livros embora isso possa encontrar alguma compensaccedilatildeo em uma linguagem visual de forte apelo emotivo Para todos os efeitos como aponta um estudioso da mateacuteria os filmes de temaacutetica histoacuterica carregam sempre certa ambiguidade ocupam uma espeacutecie de ldquoentrelugarrdquo com forccedila para criar ldquoverdadesrdquo socialmente aceitas108 Nos cinco filmes aqui considerados109 as ldquoverdadesrdquo sobre a Independecircncia tendem a replicar linhas de forccedila jaacute conhecidas mesclando temporalidades correspondentes tanto aos momentos em que foram pro-duzidos quanto aos momentos posteriores em que foram sendo exibidos110

Independecircncia ou Morte produccedilatildeo a serviccedilo das comemoraccedilotildees oficiais do sesquicentenaacuterio da Independecircncia levadas a cabo pelo go-verno ditatorial brasileiro em 1972 mostra uma narrativa de forte teor didaacutetico-pedagoacutegico sem grandes pretensotildees artiacutesticas expliacutecitas111 com diaacutelogos e situaccedilotildees muitas vezes retirados de obras sobre a Independecircncia e tratados de forma literal Sua finalidade eacute clara ldquoensinarrdquo aos especta-dores uma histoacuteria e uma memoacuteria coletivas homogecircneas aplainadas de pluralidades ou de desavenccedilas Uma histoacuteria supostamente indiscutiacutevel porque verdadeira posta a serviccedilo dos tambeacutem supostos interesses mais elevados da naccedilatildeo brasileira (por isso nela a vida privada dos persona-gens eacute toda submetida agrave sua funccedilatildeo poliacutetica inclusive no caso da relaccedilatildeo afetiva entre um D Pedro de boa aparecircncia querido do povo e mulherengo e uma ambiciosa romacircntica e sensiacutevel Domitila112) Uma espeacutecie de cartilha oficial da Independecircncia em imagens na qual se faz presente ateacute mesmo uma recomposiccedilatildeo cecircnica do quadro de Pedro Ameacuterico

Eacute interessante observar como Os Inconfidentes produzido no mesmo ano de 1972 mesmo sendo um filme amparado em abundantes liberdades e experimentos esteacuteticos cheio de ambiguidades propositais e contra-pondo-se ao oficialismo histoacuterico tatildeo em voga agrave eacutepoca por meio de uma metaacutefora na qual os contestadores agrave ditadura brasileira se convertem em sediciosos das Minas Gerais do seacuteculo XVIII natildeo se configura como mate-rial singular e discrepante de Independecircncia ou Morte em pelo menos trecircs sentidos primeiro porque em vaacuterios momentos associa a Inconfidecircncia Mi-neira com a Independecircncia do Brasil a exemplo do que Independecircncia ou Morte prega jaacute em seu primeiro texto didaacutetico113 Segundo porque tambeacutem oficializa eventos convencionalmente tidos por fundacionais da histoacuteria do Brasil (soacute que natildeo os de 1808-1822 mas os de 1788-1789) Terceiro reforccedila a prevalecircncia de indiviacuteduos sobre coletividades da imagem de um heroacutei central da trama e de uma oposiccedilatildeo de interesses maniqueiacutesta que certamente poderia se aplicar com mais rigor ao contexto em que foi feito o filme do que agravequele ao qual formalmente se refere Assim para todos os efeitos substratos de uma concepccedilatildeo de histoacuteria satildeo em ambos convergentes Em um ambiente social multifacetado em termos de no-

cada dentro do programa dominical Fantaacutestico da Rede Globo de Televisatildeo A seacuterie foi baseada no livro Brasil uma Histoacuteria de Eduardo Bueno jornalista que tambeacutem atua na seacuterie (youtubecomwatchv=3LzGKt9Pd0M acesso em 27032014)

103SETUacuteBAL Paulo As Maluquices do Imperador

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1927 CALADO Ivanir A Imperatriz no Fim do Mundo memoacuterias duacutebias de Ameacutelia de Leichtenberg Rio de Janeiro Rio Fundo Editora 1992 e TORERO Joseacute Roberto Galantes memoacuterias e admiraacuteveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes o Chalaccedila Satildeo Paulo Companhia das Letras 1994

104A trama e a narrativa do Quinto dos Infernos

recusam explicitamente a inserccedilatildeo de quaisquer componentes que natildeo os da ordem privada de seus convencionais personagens assim questotildees poliacuteticas satildeo sempre menores do que o apetite sexual de Carlota Joaquina as perversotildees de D Miguel ou a fogosidade de Domitila a economia soacute surge em pontuais pretextos cocircmicos enquanto a escravidatildeo eacute referida exclusivamente por meio de alegres e libidinosas criadas (negras) permanentemente dispostas a servirem aos desejos do heroacutei da histoacuteria D Pedro

105A anaacutelise poderia se completar com a minisseacuterie

A Marquesa de Santos dirigida por Ary Coslov e exibida pela extinta Rede Manchete de televisatildeo em 1984 agrave qual infelizmente natildeo se obteve acesso satisfatoacuterio

106Tal predileccedilatildeo pode ser entendida como mais

um fator caracteriacutestico de um momento em que a articulaccedilatildeo entre aquilo que Guy Debord chamaria de ldquosociedade do espetaacuteculordquo e Adorno e Horkheimer (dentre muitos outros) de ldquoinduacutestria culturalrdquo torna sintomaacutetico a saliecircncia do indiviacuteduo e o esvaziamento da esfera puacuteblica

107A comprovaccedilatildeo do encontro concorrente entre

dois caminhos vem do depoimento de alguns dos proacuteprios envolvidos com a produccedilatildeo do Quinto dos Infernos como o diretor Carlos Lombardi que a ele se refere como ldquoum painel dos personagens importantes do periacuteodordquo Para o produtor Wolf Maia seu objetivo foi ldquorecontar com humor uma velha histoacuteriardquo O ator Humberto Martins viu a seacuterie ldquocontar um pedaccedilo da nossa histoacuteria da histoacuteria do Brasil do nosso povo das nossas raiacutezes pateacutetica e engraccedilada tal como ela se mostra dentro desse produto poreacutem claro mesclada com uma boa dose de humorrdquo enquanto o protagonista Marcos Pasquim afirmou que ldquo[ao fazecirc-la] aprendi muita coisa que natildeo aprendi na escola eu vim aprender agora fazendo a pesquisa para fazer esse personagemrdquo Finalmente para a tambeacutem atriz Bruna Lombardi ldquoO lsquoQuintorsquo contou assim a histoacuteria que a Histoacuteria natildeo conta sabe como eacute as fraquezas da histoacuteriardquo Em ldquoDia de Fuacuteriardquo Pedro Bial e Eduardo Bueno reforccedilam seu discurso satiacuterico por meio de um verniz de verdade trazido pela citaccedilatildeo de documentos oficiais como o relato do Padre Belchior sobre o grito do Ipiranga Aleacutem disso seu discurso eacute elaborado sob o nome de tese logo bem se vecirc como seus propaladores (BialBueno) manipulam siacutembolos

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ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

28Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

29Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

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131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

31Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

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Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

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por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

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muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

36Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 5: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

9Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

paiacutes a paiacutes embora ndash repita-se ndash deva-se esperar tambeacutem feiccedilotildees comuns entre diferentes culturas histoacutericas Ao mesmo tempo haacute uma tendecircncia agrave unificaccedilatildeo dessas formas e temas no interior de um mesmo paiacutes resultado da vigecircncia de memoacuterias e identidades bem como de estruturas institu-cionais de tipo nacional tais como sistemas poliacuteticos escolares e univer-sitaacuterios tambeacutem eles prenhes de conteuacutedos referentes a temas histoacutericos comparaacuteveis em importacircncia em cada contexto respectivo ao da Indepen-decircncia no Brasil Como bem tem mostrado a historiografia da questatildeo na-cional o passado coletivo eacute pretexto especialmente forte para a constitui-ccedilatildeo e reproduccedilatildeo de identidades nacionais20 Eacute por isso que aqui cultura de histoacuteria eacute tratada no singular pressupondo contudo uma homogeneidade apenas relativa e parcial do fenocircmeno

Tambeacutem haacute dimensotildees regionais nessa cultura de histoacuteria com varia-ccedilotildees a depender dos diferentes modos de contar evocar e silenciar conteuacutedos da histoacuteria coletiva caracteriacutesticos de cada quadrante espacial dessa unidade nacional sem contudo romper com a unidade que a engloba As limitaccedilotildees do presente estudo quanto a esse ponto satildeo expliacutecitas ao mesmo tempo em que contribuem para um desenho das feiccedilotildees mais gerais do fenocircmeno Afinal uma parte dos materiais empiacutericos aqui utilizados (mais precisamente a sondagem de opiniatildeo apresentada no item 3) refere-se primordialmente a Satildeo Paulo e sua capital21 outros poreacutem satildeo de alcance claramente nacio-nal o que permite o estabelecimento de mediaccedilotildees entre as esferas micro e macro histoacutericas constitutivas do fenocircmeno No entanto fica a advertecircncia eacute possiacutevel que a expansatildeo dessa base empiacuterica para materiais regionalmente mais circunscritos a outros Estados do Brasil como Paraacute Maranhatildeo Pernam-buco Bahia Minas Gerais Rio de Janeiro ou Rio Grande do Sul por exemplo ou mesmo a cidades singularmente marcadas pela histoacuteria da Independecircn-cia como Cametaacute Cachoeira e Goiana nos mostrasse variaccedilotildees capazes de redefinir o fenocircmeno geral Natildeo foi a Independecircncia do Brasil um processo histoacuterico cheio de nuances regionais e locais capazes de legar agrave posteridade um leque de memoacuterias ainda operativas na sociedade brasileira atual Poreacutem a histoacuteria da Independecircncia na cultura brasileira de histoacuteria precisa de algum ponto de partida mesmo que limitado

Finalmente haacute que se explicitar que haacute uma dimensatildeo histoacuterica nessa cultura de histoacuteria o que implica a concepccedilatildeo de um fenocircmeno que embora marcado por consideraacutevel estabilidade e regularidade eacute dinacircmico Isso quer dizer que as conclusotildees daqui extraiacutedas forccedilosamente trazem uma limitaccedilatildeo conjuntural podendo ser revistas ou mesmo invalidadas no futuro natildeo apenas em funccedilatildeo da inescapaacutevel (e oacutebvia) condiccedilatildeo proteica do conhecimento histoacuterico mas tambeacutem porque o sistema que constitui esse fenocircmeno eacute composto de uma grande quantidade de fenocircmenos me-nores que podem efetivamente modificar a essecircncia do conjunto ndash novas poliacuteticas educacionais um seriado de televisatildeo de grande audiecircncia um best-seller de divulgaccedilatildeo histoacuterica uma efemeacuteride de impacto etc

2 ndash Como apreender uma cultura de histoacuteria Fontes e questotildees centraisComo descrever e analisar um fenocircmeno histoacuterico com tais caracteriacutesticas Aqui definiu-se estrategicamente uma fonte central a organizar as demais uma sondagem de opiniatildeo aplicada presencialmente nas ruas da cidade de Satildeo Paulo por meio de um questionaacuterio e que incidiu sobre uma amostra-gem de 311 pessoas de diversa formaccedilatildeo escolar faixa etaacuteria caracteriacutesticas soacutecio-econocircmico-culturais e procedecircncia regional22 Embora se consti-

19CHARLE Christophe Homo historicus reacuteflexions

sur lrsquohistoire les historiens et les sciences sociales Paris Armand Colin 2013

20SOBRAL Joseacute Manuel Op Cit SMITH Anthony

D Myths and Memories of the Nation New York Oxford University Press 1999 ANDERSON Benedict Naccedilatildeo e consciecircncia nacional Satildeo Paulo Aacutetica 1989 HOBSBAWM Eric J Naccedilotildees e nacionalismo desde 1780 programa mito realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 JANCSOacute Istvaacuten Brasil e brasileiros notas sobre modelagem de significados poliacuteticos na crise do Antigo Regime portuguecircs na Ameacuterica Estudos Avanccedilados v22 p257-274 2008 Mesmo suportes midiaacuteticos eminentemente transnacionais ou ateacute mesmo supranacionais tiacutepicos do mundo digital natildeo apenas se mostram incapazes de romper com a dimensatildeo nacional do fenocircmeno como em muitos casos ateacute contribuem para reforccedilaacute-la

21Embora como logo se veraacute a ela tenha-se procurado

dar em parte um perfil nacional brasileiro

22Os criteacuterios exatos dessa sondagem bem como

os detalhes relativos agraves outras fontes utilizadas encontram-se descritos nos proacuteximos itens

10Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

tua em um universo numeacuterico bastante pequeno diante da totalidade da populaccedilatildeo brasileira a partir de 15 anos (144814538 indiviacuteduos de acordo com o censo do IBGE de 201023) meacutetodos especiacuteficos que subsidiaram a concepccedilatildeo e aplicaccedilatildeo dessa sondagem permitiram o alcance de resultados relevantes como se veraacute adiante24 A utilizaccedilatildeo de tal abordagem em estu-dos de Histoacuteria eacute pouco frequente mas natildeo ineacutedita Deve-se aqui mencionar dois estudos importantes e parcialmente convergentes com os propoacutesitos desta pesquisa o de Isabela Cosse e Vania Markarian sobre a consciecircncia histoacuterica nacional no Uruguai publicado em 1994 e o coordenado por Joseacute Machado Pais sobre a consciecircncia histoacuterica dos jovens portugueses nos contextos europeu e israelensepalestino de 199925 Ambos satildeo excelen-tes demonstraccedilotildees dos potenciais oferecidos por esse tipo de abordagem e forneceram norte e estiacutemulo a esta pesquisa mas dela diferem em trecircs pontos fundamentais sua circunscriccedilatildeo nacionalcontinental26 os contextos histoacutericos de sua elaboraccedilatildeo e a abordagem realizada em torno de temas de histoacuteria em geral pressupondo que os entrevistados possuiriam posiccedilotildees ativas em torno do passado Assim abordam formas de consciecircncia histoacuteri-ca mas natildeo a ampliam em direccedilatildeo a uma cultura de histoacuteria

A sondagem de opiniatildeo eacute aqui central mas natildeo exclusiva tendo sido seus resultados cotejados com os extraiacutedos da anaacutelise de um conjunto de fontes complementares Em primeiro lugar livros didaacuteticos de Ensino Meacute-dio utilizados por professores e alunos em 2013 nos quais foram buscados especificamente toacutepicos relativos agrave Independecircncia do Brasil Esse conjunto de fontes perfaz 19 tiacutetulos que foram avaliados e aprovados pelo Governo Federal brasileiro no Programa Nacional do Livro Didaacutetico em 2012 cujos cerca de 7 milhotildees e 500 mil exemplares foram distribuiacutedos a algo como 18 mil escolas puacuteblicas de todo o paiacutes aleacutem de serem utilizados tambeacutem em es-colas privadas27 completaram a anaacutelise dados obtidos por uma estudiosa de livros didaacuteticos de Ensino Fundamental tambeacutem recomendados pelo governo em 1998 e que analisou 12 tiacutetulos28 Em segundo lugar viacutedeos disponiacuteveis no YouTube e portadores de conteuacutedos relativos agrave Independecircncia Aqui depa-rou-se com material muito variado distribuiacutedo em 107 viacutedeos que perfazem um riquiacutessimo conjunto dada sua grande diversidade morfoloacutegica e de con-teuacutedo (seriados educativos entrevistas programas jornaliacutesticos propagandas de partidos poliacuteticos ou de outras associaccedilotildees trailers de filmes programas voltados para puacuteblico jovem produccedilotildees independentes etc) e tambeacutem pelas possibilidades de mensuraccedilatildeo parcial de seu alcance via o nuacutemero de visualizaccedilotildees indicadas pelo siacutetio e de anaacutelise dos respectivos ldquocomentaacuteriosrdquo tambeacutem laacute disponiacuteveis Em terceiro lugar obras televisivas e cinematograacutefi-cas relacionadas com a Independecircncia do Brasil Aqui foram analisadas trecircs seacuteries televisivas e cinco longas-metragens todos tambeacutem disponiacuteveis no YouTube com os mesmos dados complementares acima apontados Em quar-to lugar livros de divulgaccedilatildeo acadecircmica ou jornaliacutestica romances histoacutericos comics livros paradidaacuteticos e outras obras de difiacutecil definiccedilatildeo a possuiacuterem em comum abordagens da histoacuteria da Independecircncia apresentadas em linguagem natildeo acadecircmica destinadas a um puacuteblico potencialmente amplo e diversificado natildeo restrito portanto a estudantes e professores de Histoacuteria29 Em meio a esse conjunto foram selecionados 19 livros Finalmente em quin-to lugar foram analisados artigos sobre a Independecircncia publicados em cinco magazines de Histoacuteria vendidos em bancas de jornal e livrarias e que visam divulgar saberes especializados para um puacuteblico mais aleacutem do frequentador de cursos universitaacuterios de Histoacuteria

23Sendo a populaccedilatildeo total 190732694 de

acordo com o Censo Demograacutefico 2010 do IBGE Disponiacutevel em ibgegovbrhomeestatisticapopulacaocenso2010defaultshtm Acesso em 01042014

24A realizaccedilatildeo da mesma assim como a

interpretaccedilatildeo de seus dados teve em conta premissas metodoloacutegicas gerais estabelecidas por Patrick Champagne CHAMPAGNE Patrick Formar a opiniatildeo o novo jogo poliacutetico Petroacutepolis Vozes 1998 ZALLER John R The Nature and Origins of Mass Opnion Cambridge Cambridge University Press 1992 WILHOIT Cleveland e WEAVER David H Neswroom Guide to Polls amp Surveys Bloomington and Indianapolis Indiana University Press 1990 e MONZOacuteN ARRIBAS Caacutendido La opinioacuten puacuteblica teoriacuteas conceptos y meacutetodos Madri Tecnos 1987

25COSSE Isabela e MARKARIAN Vania Memorias

de la historia una aproximacioacuten al estudio de la consciencia histoacuterica nacional Montevideacuteu Trilce 1994 PAIS Joseacute Machado Consciecircncia histoacuterica e identidade os jovens portugueses num contexto europeu Oeiras CeltaSecretaria de Estado da Juventude 1999 Este uacuteltimo inclui vaacuterios dos resultados obtidos pelo inqueacuterito geral europeu realizado com jovens e professores de Histoacuteria de 26 paiacuteses do continente mais Israel ldquoIsrael Aacuteraberdquo e ldquoPalestinardquo

26Seria importante considerar ainda atitudes

de pessoas em relaccedilatildeo a lugares de memoacuteria especificamente ligados agrave Independecircncia do Brasil dentro das cidades existentes aliaacutes em praticamente todo e qualquer centro urbano do paiacutes No caso de Satildeo Paulo tal desafio pode encontrar estimulante ponto de partida em duas pesquisas OLIVEIRA Cecilia Helena de Salles Museu Paulista espaccedilo de evocaccedilatildeo do passado e reflexatildeo sobre a histoacuteria Anais do Museu Paulista Satildeo Paulo Nova Seacuterie v1011 20022003 p105-126 e ALMEIDA Adriana Mortara Os visitantes do Museu Paulista um estudo comparativo com os visitantes da Pinacoteca do Estado e do Museu de Zoologia Anais do Museu Paulista Satildeo Paulo Nova Seacuterie v12 2004 p269-306

27O PNLD tem como objetivo central ldquosubsidiar

o trabalho pedagoacutegico dos professores por meio da distribuiccedilatildeo de coleccedilotildees de livros didaacuteticos aos alunos da educaccedilatildeo baacutesica Apoacutes a avaliaccedilatildeo das obras o Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) publica o Guia de Livros Didaacuteticos com resenhas das coleccedilotildees consideradas aprovadas O guia eacute encaminhado agraves escolas que escolhem entre os tiacutetulos disponiacuteveis aqueles que melhor atendem ao seu projeto poliacutetico pedagoacutegicordquo (portalmecgovbrindexphpItemid=668id=12391option=com_contentview=article) A avaliaccedilatildeo e seleccedilatildeo dos tiacutetulos aprovados pelo programa coube agrave Secretaria de Educaccedilatildeo Baacutesica (SEB) do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo sendo a equipe avaliadora formada por professores de vaacuterias universidades puacuteblicas Guia de livros didaacuteticos PNLD 2012 Histoacuteria Brasiacutelia Ministeacuterio da Educaccedilatildeo Secretaria de Educaccedilatildeo Baacutesica 2011

11Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Bem se vecirc que tais fontes complementares extrapolam o acircmbito espa-cial parcialmente circunscrito da sondagem de opiniatildeo aleacutem de permitirem a consideraccedilatildeo de uma grande pluralidade de vozes de agentes sociais ndash inclu-sive mas natildeo preferencialmente os historiadores acadecircmicos ndash responsaacuteveis pela inexistecircncia de um monopoacutelio profissional na reproduccedilatildeo divulgaccedilatildeo e eventual produccedilatildeo de conhecimentos acerca da Independecircncia do Brasil A exemplo dos procedimentos adotados para a realizaccedilatildeo da sondagem de opi-niatildeo tambeacutem a utilizaccedilatildeo de tais fontes partiu de uma amostragem jaacute que nenhum de seus conjuntos corresponde agrave totalidade de materiais disponiacuteveis No entanto acredita-se que a somatoacuteria dessas amostragens seja satisfatoacuteria para a persecuccedilatildeo dos objetivos aqui propostos

Como tratar metodologicamente fontes tatildeo diferentes entre si e como fazecirc-las convergirem para um mesmo fim Os conteuacutedos extraiacutedos da sondagem de opiniatildeo merecem tratamento algo peculiar jaacute que tendo permanecido ineacuteditos ateacute o momento natildeo podem ser considerados como elementos capazes de agir naquela mesma realidade que os informou soacute podem ser vistos como traduccedilatildeo (indireta matizada) de uma realidade por eles denunciada Jaacute as demais fontes satildeo consideradas de ambos os modos como instrumentos de reconfiguraccedilatildeo da realidade em termos de poten-ciais formadoras de opiniatildeo dos brasileiros acerca da Independecircncia mas tambeacutem como sintomaacuteticas de um estado de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema Portadoras de indiacutecios de uma cultura de histoacuteria que elas criam e recriam e protagonistas ativos dessa mesma cultura30 O que natildeo quer dizer de modo algum que a todos os suportes materiais aqui consi-derados como fontes primaacuterias possa ser atribuiacutedo um caraacuteter de inovaccedilatildeo em seus tratamentos dos conteuacutedos relativos agrave Independecircncia do Brasil (se assim o fosse os historiadores profissionais da Independecircncia teriam muitos motivos para comemorar o fato de que os demais agentes sociais natildeo apenas estariam dispostos a ouvi-los como aptos a compreendecirc-los E se assim o fosse estariacuteamos frente a uma cultura histoacuterica muito mais dinacircmica e instaacutevel do que ela parece ser)

Para aferir ateacute que ponto um livro uma revista um filme ou um viacute-deo contribuem mais para a criaccedilatildeo ou para a recriaccedilatildeo (pois natildeo haacute aqui estrito senso simples reproduccedilatildeo) de conteuacutedos a metodologia adotada abordou tais suportes materiais por meio de cinco perguntas baacutesicas Seu tratamento da Independecircncia tende a uma Histoacuteria 1) Factual eou biograacute-fica ou a uma histoacuteria processual 2) Que respeita historicidades e orde-namentos cronoloacutegicos e temporais ou que tende a dar pouca importacircncia a tais elementos (neste caso de que modos o faz) 3) Centrada em uma uacutenica regiatildeo (qual) ou em vaacuterias ao mesmo tempo e inclusive a outras partes do mundo da eacutepoca (quais) 4) Que dialoga (de que modos) com a produccedilatildeo acadecircmica (qual de quando) ou que busca outros referenciais no universo natildeo especializado 5) De ecircnfase anedoacutetica laudatoacuteria soacutebria positiva ou negativa As respostas a tais perguntas nem sempre bem claras e definidas foram buscadas a partir tambeacutem de substratos metodo-loacutegicos especiacuteficos para cada tipo de fonte e chegaram a envolver parcial-mente tambeacutem a sondagem de opiniatildeo

3 - A sondagem de opiniatildeo A Independecircncia nas ruasA sondagem de opiniatildeo partiu da aplicaccedilatildeo de um questionaacuterio que mes-clou respostas dirigidas e objetivas com respostas abertas e subjetivas sen-do dividido em trecircs partes correspondentes a trecircs perfis a serem extraiacutedos

28PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit

29Tal tipo de fonte eacute o que melhor permite uma

anaacutelise de mais largo escopo temporal do que o aqui contemplado Uma excelente reuniatildeo preliminar de material encontra-se em CALMON Pedro Histoacuteria do Brasil na poesia do povo Nova ediccedilatildeo aumentada Rio de Janeiro Bloch 1973 Para noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia na literatura e na dramaturgia portuguesa vaacuterios apontamentos em OLIVEIRA Paulo da Motta (org) Op Cit

30Muitas jaacute vecircm sendo analisadas separadamente

de acordo com uma tendecircncia apontada acima Para os livros didaacuteticos a produccedilatildeo eacute imensa e inclui trabalhos importantes como os de BITTENCOURT Circe Fernandes Livro didaacutetico e conhecimento histoacuterico uma histoacuteria do saber escolar 1993 Tese (Doutorado em Histoacuteria Social) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1993 MUNAKATA Kazumi Produzindo livros didaacuteticos e paradidaacuteticos Tese 1997 (Doutorado em Histoacuteria e Filosofia da Educaccedilatildeo) Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1997 DIEHL Astor Antocircnio (org) O livro didaacutetico e o curriacuteculo de histoacuteria em transiccedilatildeo Passo Fundo EDIUPF 1999 e CARDOSO Oldimar Pontes A didaacutetica da histoacuteria e o slogan da formaccedilatildeo de cidadatildeos 2007 Tese (Doutorado em Educaccedilatildeo) Faculdade de Educaccedilatildeo Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2007 Sobre cinema e histoacuteria dentre outros FONSECA Vitoacuteria Azevedo da Histoacuteria imaginada no cinema anaacutelise de Carlota Joaquina princesa do Brazil e Independecircncia ou morte 2002 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria Cultural) Universidade Estadual de Campinas Campinas 2002

31Esse eacute o perfil mostrado pelo censo do IBGE de

2010 com algumas poucas exceccedilotildees no caso da amostragem a uacutenica importante se observa com a faixa etaacuteria de 25 a 29 anos (14) mais numerosa do que a anterior entre 20 e 24 anos (8) sendo que a porcentagem da populaccedilatildeo brasileira em tais faixas etaacuterias eacute praticamente a mesma (respectivamente 8 e 9) De resto foi possiacutevel estabelecer nesse quesito uma satisfatoacuteria correlaccedilatildeo com o perfil brasileiro a amostragem abordou indiviacuteduos a partir de 15 anos sendo que dos 14 grupos de cinco anos obtidos (o uacuteltimo corresponde a 80 anos ou mais) quatro apresentaram perfeita correspondecircncia percentual com os dados nacionais oito uma diferenccedila de no maacuteximo 2 e apenas dois forte discrepacircncia

32Para se atingir perfis ocupacionais desejados

algumas entrevistas foram realizadas na regiatildeo do Grande ABC e no interior do estado de Satildeo Paulo

33Dados do uacuteltimo Censo do IBGE (2010)

disponiacutevel em censo2010ibgegovbramostra Acesso em 01042014

34O censo do IBGE de 2010 indicou a porcentagem

de 76 para desocupados considerando o total da populaccedilatildeo maior de 10 anos Para o estado

12Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

do entrevistado um soacutecio-econocircmico-escolar um cultural e um relativo agrave sua relaccedilatildeo com a Histoacuteria em especial a da Independecircncia

A obtenccedilatildeo do primeiro perfil se fez segundo gecircnero faixa etaacuteria (em grupos de cinco anos a partir de 15 anos de idade) local de nasci-mento (segundo regiotildees do Brasil e cidade) ocupaccedilatildeo profissional renda familiar (em valores ou quantidade de salaacuterios miacutenimos isto eacute R$ 62000) e instruccedilatildeo formal (por niacuteveis e se realizada em escolas puacuteblicas eou pri-vadas cidade e instituiccedilatildeo) Com isso buscou-se aproximar o universo da amostragem ndash 311 indiviacuteduos ndash do perfil geral do paiacutes quando isso natildeo foi possiacutevel a aproximaccedilatildeo se deu com o Estado e com a cidade de Satildeo Paulo

No quesito gecircnero foram entrevistadas 52 de mulheres e 48 de homens (um dos entrevistados natildeo quis declarar seu gecircnero) estabelecen-do-se uma perfeita correlaccedilatildeo de porcentagem com o mostrado pelo censo populacional do IBGE de 2010 seja em termos nacionais ou estaduais de Satildeo Paulo Jaacute a constituiccedilatildeo da faixa etaacuteria dos entrevistados buscou um modelo de ldquopiracircmiderdquo isto eacute com um nuacutemero de mais jovens sempre mais elevado do que o de mais idosos31 No entanto aqui a amostragem privile-giou mais jovens entre 15 e 19 anos (21) do que a realidade populacional brasileira (8) e mais adultos entre 25 e 29 anos

No tocante ao local de nascimento a amostragem natildeo pocircde se valer de dados do IBGE Desse modo buscou-se uma aproximaccedilatildeo estatiacutestica com a cidade de Satildeo Paulo local onde 97 das entrevistas foram reali-zadas32 Os nascidos na regiatildeo sudeste perfizeram 73 das abordagens sendo 67 naturais do estado de Satildeo Paulo (dados do IBGE mostram 77 de habitantes da cidade nascidos no estado sendo 69 do total na cida-de)33 A realizaccedilatildeo da amostragem procurou uma compensaccedilatildeo para essa hipertrofia de perfil (do nacional ao regional) por meio da diversificaccedilatildeo de unidades da federaccedilatildeo para os 23 de habitantes do estado de Satildeo Paulo que natildeo nasceram nele foram entatildeo entrevistados 112 indiviacuteduos (326 da amostragem) naturais dos outros estados brasileiros agrave exceccedilatildeo de Acre Amapaacute Distrito Federal Roraima e Tocantins

Quanto a suas ocupaccedilotildees profissionais os entrevistados declararam livremente 118 diferentes funccedilotildees (sendo 005 desempregados34) apoacutes uma anaacutelise preliminar das mesmas foi possiacutevel agrupaacute-las em 90 incluin-do um leque muito variado que inclui comerciantes donas de casa empre-gadas domeacutesticas estudantes funcionaacuterios puacuteblicos educadores operaacuterios empresaacuterios cabeleireiras agricultores faxineiros jornalistas prostitutas militares e meacutedicos dentre outros (ressalte-se que no momento da pesqui-sa nenhum deles se encontrava ligado profissionalmente agrave Histoacuteria) Nesse quesito eacute impossiacutevel estabelecer uma perfeita correlaccedilatildeo entre a amostra-gem e o panorama laboral brasileiro buscou-se apenas incluir uma ampla gama de perfis profissionais

O perfil dos entrevistados segundo renda familiar tambeacutem se mos-trou de difiacutecil equivalecircncia com dados do IBGE jaacute que estes indicam rendas individuais e natildeo familiares Assim mesmo observa-se que a amostragem seguiu uma tendecircncia tambeacutem de ldquopiracircmiderdquo que faz com que o nuacutemero de brasileiros dos estratos de renda mais baixa sejam sempre mais nume-roso que os de renda mais alta a diferenccedila entre o conjunto da populaccedilatildeo brasileira e a amostragem estaacute seguramente nas dimensotildees de tais estra-tos enquanto os dados do IBGE mostram mais de 64 de indiviacuteduos sem rendimentos ou com renda entre 1 e 5 salaacuterios miacutenimos na amostragem esse percentual (por famiacutelias) pouco passou de 3035

de Satildeo Paulo a porcentagem eacute tambeacutem de 76 Disponiacutevel em censo2010ibgegovbramostra Acesso em 01042014

35Haacute aqui algumas discrepacircncias em relaccedilatildeo as

categorias do IBGE que devem ser explicitadas no que se refere aos criteacuterios de renda estatildeo ausentes do questionaacuterio ldquomais de 2 a 3 salaacuterios miacutenimosrdquo aleacutem disto a renda calculada pelo questionaacuterio tem como base a unidade familiar enquanto os dados do IBGE aqui contrastados referem-se agrave renda de indiviacuteduos

36Dos 161981299 indiviacuteduos totais ldquoa partir de

10 anosrdquo subtraiu-se 17166761 indiviacuteduos entre 10 e 14 anos de modo a limitar a estatiacutestica nacional aos jovens contemplados pela amostragem Uma distorccedilatildeo contudo permanece na cifra dos indiviacuteduos ldquosem instruccedilatildeo e fundamental completordquo da tabela 154 pois crianccedilas entre 10 e 14 anos podem perfeitamente ser ldquosem instruccedilatildeordquo embora o sejam em pequena minoria ldquofundamental completordquo para todos os efeitos as porcentagens das demais rubricas da mesma tabela foram assim corrigidas jaacute que crianccedilas de 14 anos estaratildeo necessariamente ausentes da rubrica seguinte ldquomeacutedio completordquo (tabelas 154 e 112 respectivamente)

37Nos dados do IBGE a maioria da populaccedilatildeo

(59) encontra-se na rubrica ldquonatildeo frequentavam mas jaacute frequentaramrdquo Dentre os que ldquofrequentavamrdquo 78 o faziam em estabelecimentos puacuteblicos e 22 em privados na amostragem esses percentuais que incidem sobre frequecircncia em cursojaacute realizada foram respectivamente 63 e 27 sendo que 11 se enquadravam em ambos

38Tambeacutem nessa segunda parte o questionaacuterio

se afastou progressivamente da possibilidade de estabelecimento de equivalecircncias estatiacutesticas com a totalidade da populaccedilatildeo brasileira Isso se deu por um motivo principal o censo do IBGE natildeo chega ao grau de detalhamento dos dados aqui obtidos (seus objetivos e natureza satildeo outros) e embora existam sondagens de opiniatildeo focadas em perfis culturais do brasileiro (como a ediccedilatildeo de 2011 de Retratos da leitura no Brasil do Instituto Proacute-Livro aqui utilizada como se veraacute mais adiante) a busca por tais equivalecircncias implicaria o seacuterio risco de um engessamento na obtenccedilatildeo de dados qualitativos Tendo em vista os objetivos centrais dessa pesquisa ndash esboccedilar a caracterizaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil por meio da Independecircncia assim como refletir em torno de implicaccedilotildees do tratamento acadecircmico do tema a partir de sua inserccedilatildeo nessa mesma cultura ndash o estabelecimento preliminar completo do perfil dos entrevistados natildeo garantiria a validade do material a ser extraiacutedo e analisado Trata-se justamente do contraacuterio submeter os resultados finais da pesquisa aos paracircmetros dados pelas condiccedilotildees de sua proacutepria realizaccedilatildeo

39Haacute pelo menos dois exemplos de como rankings

se fazem presentes no pensar a Histoacuteria nesse escopo Um primeiro de grande participaccedilatildeo popular eacute o programa de tevecirc O maior brasileiro de todos os tempos exibido entre 1107 e

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No tocante a instruccedilatildeo formal os dados nacionais oficiais incidem sobre crianccedilas a partir de 10 anos de idade sendo que a amostragem rea-lizada focou em jovens a partir de 15 anos desse modo a aproximaccedilatildeo da amostragem com o perfil brasileiro partiu de uma retificaccedilatildeo dos nuacutemeros apresentados pelo IBGE36 E se em termos de renda familiar a amostragem mostrou clara inclinaccedilatildeo a um perfil excessivamente de classe meacutedia o mesmo pode-se dizer quanto agrave instruccedilatildeo formal que perfez um grupo mais escolarizado do que a meacutedia do paiacutes O principal problema aqui ocorre no baixo nuacutemero de entrevistados entre ldquosem instruccedilatildeo e fundamental incom-pletordquo (7 sendo a porcentagem nacional entre 44 e 50) em prol de um nuacutemero por demais elevado de indiviacuteduos que cursaram universidades (27 contra 9) as demais rubricas tambeacutem apresentam discrepacircncias 25 de entrevistados entre ldquofundamental completo e meacutedio incomple-tordquo (contra 19) e 23 entre ldquomeacutedio incompleto e superior incompletordquo (contra 26) A anaacutelise de todo o material obtido assim como das fontes primaacuterias levou em conta tais inclinaccedilotildees e como se veraacute mais adiante elas parecem ateacute mesmo reforccedilar algumas das conclusotildees aqui obtidas Ainda no mesmo quesito os dados do IBGE classificam os brasileiros de acordo com ldquorede de ensino que frequentavamrdquo quando da realizaccedilatildeo da coleta de dados sendo que o questionaacuterio abordou os entrevistados de acordo com frequecircncia em cursojaacute realizada37 Mesmo assim os nuacutemeros aqui disponiacuteveis serviram bem agrave constituiccedilatildeo da amostragem

Na segunda parte do questionaacuterio a obtenccedilatildeo do perfil cultural do entrevistado se deu a partir de uma identificaccedilatildeo de seu acesso agrave televisatildeo (se assiste caso positivo com qual frequecircncia que tipo de programas se em tevecirc aberta eou a cabo e quais os trecircs programas que mais assiste) leitura (se lecirc com frequecircncia que tipo de coisa e quais os uacuteltimos trecircs livros que leu) cinema e teatro (em ambos os casos apenas se costuma ou natildeo frequentar)38 Apoacutes tais perguntas que procuraram diagnosticar eventuais proximidades do entrevistado em relaccedilatildeo a fontes secundaacuterias da pesquisa o questionaacuterio introduziu a questatildeo especiacutefica de seu interesse pela Histoacuteria Foi entatildeo perguntado se ele se interessa ou natildeo por Histoacuteria e por qual (do Brasil geral ou outraqual) se busca informaccedilotildees sobre e em caso positivo onde (livros televisatildeo internet revistas cursos museus outroqual) e se nos uacuteltimos dois anos leu algo ou frequentou algum curso a respeito (em caso positivo qual) Tais perguntas foram elaboradas visando uma aproximaccedilatildeo realista com caracteriacutesticas que de modo hipo-teacutetico foram atribuiacutedas a essa cultura de histoacuteria no Brasil Por isso foram preteridas formas linguiacutesticas quiccedilaacute muito acadecircmicas em prol de outras que permitissem que o entrevistado se expressasse de modo a fornecer dados vaacutelidos daiacute por exemplo o uso da tradicional divisatildeo entre Histoacuteria do Brasil e Histoacuteria Geral (com abertura para identificaccedilatildeo de ldquooutrardquo qual-quer) de muito pouca serventia para os historiadores profissionais

Finalmente a terceira parte do questionaacuterio visou agrave obtenccedilatildeo de conteuacutedos diretamente relacionados agrave Independecircncia do Brasil valendo-se mais amplamente ainda dessa estrateacutegia de utilizaccedilatildeo de formas linguiacutes-ticas coloquiais assim como de perguntas cujas respostas seriam tanto dirigidas como abertas grau de interesse sobre a histoacuteria da Independecircncia do Brasil (nenhum pequeno meacutedio ou grande seguido de uma justificati-va) grau de conhecimento do tema (nenhum pouco razoaacutevel bom exce-lente) se procura se informar sobre (natildeo simcomo) e se estaacute lendo ou leu algo a respeito nos uacuteltimos dois anos (natildeo simo quecirc) Ou seja abriu-se a

03102012 pelo SBT Conforme a sinopse da emissora ldquobaseado no formato criado pela BBC The Greats o programa elege[u] aquele que fez mais pela naccedilatildeo que se destacou pelo seu legado agrave sociedade Diversos paiacuteses jaacute apontaram os seus maiores representantes Na Inglaterra Winston Churchill saiu vencedor Os italianos elegeram Leonardo da Vincirdquo (sbtcombromaiorbrasileiroprograma Acesso em 21032014) A escolha dos candidatos e a definiccedilatildeo de seus confrontos ndash os personagens iam se enfrentando programa a programa em caraacuteter eliminatoacuterio ndash foi feita pelo telespectador sendo o ldquocampeatildeordquo Chico Xavier seguido por Santos Dummont e pela princesa Isabel Semelhante mas de menor alcance foi a pesquisa realizada pela Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional divulgada em abril de 2008 que convocou ldquopara a tarefa de eleger os lsquoheroacuteisrsquo e os lsquovilotildeesrsquo do Brasil uma distinta seleccedilatildeo de historiadores professores jornalistas economistas poliacuteticos e artistas protegidos pelo anonimato para louvar e condenar quem bem entendessemrdquo Entre os mais bem avaliados estavam Rui Barbosa Machado de Assis e D Pedro II no polo oposto Meacutedici e Costa e Silva (revistadehistoriacombrsecaoreportagemranking-dos-brasileiros Acesso em 21032014)

40As palavras satildeo acordo comeacutedia continuaccedilatildeo

democracia ditadura drama elitespoderosos escravidatildeo Estados Unidos exeacutercito guerra heroiacutesmo Inglaterra invenccedilatildeo Joatildeo VI Joseacute Bonifaacutecio liberdade mudanccedila naccedilatildeo nascimento negociaccedilatildeo paz Pedro I Portugal povo revoluccedilatildeo Tiradentes tirania O entrevistado poderia incluir outra palavra qualquer que desejasse

41O questionaacuterio encerrava-se com a possibilidade

do entrevistado acrescentar livremente algo bem como a opccedilatildeo de identificaccedilatildeo nominal Um proveitoso desdobramento da pesquisa poderia resultar de uma anaacutelise de nuances e matizes de interessantes jogos discursivos presentes em muitas das respostas obtidas sobretudo no caso de uma expansatildeo numeacuterica da amostragem

42Quando em fevereiro de 2013 foram

amplamente divulgados resultados de pesquisas biomeacutedicas (com tentativas de conclusotildees tambeacutem histoacutericas) realizadas com os restos mortais de Pedro I Leopoldina e Ameacutelia realizadas por Valdirene Ambiel Cfr AMBIEL Valdirene do Carmo Estudos de arqueologia forense aplicados aos remanescentes humanos dos primeiros imperadores do Brasil depositados no monumento agrave Independecircncia 2013 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Arqueologia) Museu de Arqueologia e Etnologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2013 Aleacutem de procurar esclarecer se tais restos se encontravam depositados no Monumento agrave Independecircncia em Satildeo Paulo e diagnosticar o estado de conservaccedilatildeo dos mesmos Ambiel procurou chamar a atenccedilatildeo para as possiacuteveis causas da morte dos monarcas e sobre os procedimentos funeraacuterios com eles entatildeo utilizados Tais resultados foram divulgados pela imprensa nacional como ldquoverdadesrdquo sobre a famiacutelia imperial brasileira supostamente ausentes dos livros de histoacuteria ldquosegredosrdquo agora ldquoreveladosrdquo Por exemplo Pedro I tinha quatro

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possibilidade de se chegar a dados de uma cultura de histoacuteria inclusive em suas negaccedilotildees em seus silecircncios e interdiccedilotildees Em seguida o questionaacuterio recorreu a um artifiacutecio muito presente no meio social sobre o qual incidiu foi pedido ao entrevistado que atribuiacutesse notas de um a dez para a impor-tacircncia que acha que a Independecircncia teve para a histoacuteria do Brasil e para a histoacuteria do mundo Nos historiadores profissionais em geral esses rankings com sua gigantesca capacidade de simplificar a realidade costumam despertar ojeriza no entanto para os demais agentes sociais dessa cultura pode significar uma forma uacutetil de representaccedilatildeo da realidade acostumados que estatildeo a ela em muitos aspectos de sua vida cotidiana39 Assim tambeacutem daqui pode-se extrair elementos para a anaacutelise de uma cultura de histoacuteria Jaacute as trecircs perguntas seguintes buscaram outra aproximaccedilatildeo foi pedido ao entrevistado que diante de uma lista de 28 palavras escolhesse as trecircs que acreditasse que mais combinam e as trecircs que menos combinam com a Independecircncia40 Tais palavras incidem sobre personagens fatos proces-sos conceitos e mitos constituindo um bom leque de possibilidades de aproximaccedilatildeo linguiacutestica e conceitual com formas de ver a Independecircncia presentes na sociedade inclusive por contemplarem vaacuterios antinocircmicos Por fim perguntou-se ao entrevistado se seria capaz de dizer as datas da chegada da corte portuguesa no Brasil da Independecircncia do Brasil da pri-meira Constituiccedilatildeo e da abdicaccedilatildeo de D Pedro I41 Aqui o intuito era aferir ateacute que ponto essa cultura de histoacuteria se organiza e se faz representar por marcos cronoloacutegicos convencionais bem como se enseja formas alternati-vas de historicizaccedilatildeo e temporalizaccedilatildeo

Desse modo por meio de estrateacutegias de abordagem complementares (graus de relaccedilatildeo ativa ou passiva diante do tema o peso de linguagens conceitos e informaccedilotildees formas temporais) o questionaacuterio procurou fazer convergirem possibilidades de posturas dos entrevistados em relaccedilatildeo agrave histoacuteria e agrave Independecircncia do Brasil bem como dimensotildees variadas e even-tualmente contraditoacuterias de tais posturas relacionando-as inclusive com as cinco perguntas baacutesicas que seriam posteriormente dirigidas agraves fontes secundaacuterias conforme enunciado ao final do item anterior

Apoacutes um curto periacuteodo de testes foram entrevistadas presencialmen-te 311 pessoas na cidade de Satildeo Paulo Grande ABC e interior do estado entre os dias 19 de setembro de 2012 e 02 de agosto de 2013 Propositada-mente foram evitadas as duas Semanas da Paacutetria desses anos bem como um periacuteodo de vinte dias de superexposiccedilatildeo midiaacutetica especiacutefica do tema42 As abordagens foram realizadas de modo direto em 994 das vezes em espaccedilos puacuteblicos tendo cada uma ndash com poucas exceccedilotildees -a duraccedilatildeo de cerca de sete minutos durante os quais evitou-se ao maacuteximo qualquer tipo de constrangimento direcionamento ou auxiacutelio nas respostas

O que foi possiacutevel obter nessas entrevistas Os entrevistados com-potildeem um grupo de forte contato com a televisatildeo (93 assistem com frequecircncia e 51 todos os dias sendo que 58 possuem tevecirc aberta e a cabo apenas 6 disseram natildeo assistir tevecirc) de leitores frequentes (78) e de assistentes a cinemas (58) e teatros (28) o que o aproxima de um perfil de classe meacutedia escolarizada conforme jaacute apontado anteriormente de todo modo haacute que se lembrar que em muitos outros aspectos relevan-tes esse eacute um grupo heterogecircneo Daiacute a importacircncia do fato de que 77 dos que o compotildeem disseram se interessar por histoacuteria (sendo que 60 afirmaram buscar informaccedilotildees a respeito) Esse eacute um nuacutemero alto ou bai-xo A questatildeo natildeo parece das mais importantes jaacute que de acordo com a

costelas quebradas quando morreu era mais baixo do que se supunha natildeo foi cremado mas enterrado acompanhado de porccedilotildees de terra de Portugal e com roupas de general com insiacutegnias portuguesas e natildeo brasileiras Leopoldina natildeo teve o fecircmur quebrado antes de morrer como acreditava-se ateacute entatildeo foi enterrada com a mesma roupa com que foi coroada imperatriz e seus brincos natildeo eram de ouro mas bijuterias de resina Jaacute Ameacutelia quando morreu tinha escoliose e osteoporose foi enterrada de preto e mumificada Na internet tais ldquorevelaccedilotildeesrdquo foram no total comentadas milhares de vezes ldquorecomendadasrdquo e em geral bem-recebidas (fotosestadaocombrmudanca-na-historia-dez-verdades-sobre-a-familia-imperial-que-nao-estao-nos-livros-de-historiagaleria70481949100htmpPosicaoFoto=1carousel acesso em 27032014 folhauolcombrfspcienciasaude94655-corpos-da-familia-imperial-sao-exumadosshtml acesso em 02042014 folhauolcombrfspcienciasaude94656-descoberta-mostra-abandono-de-d-leopoldina-diz-historiadorashtml acesso em 02042014 estadaocombrnoticiascidadessob-sigilo-dom-pedro-i-e-suas-duas-mulheres-sao-exumados-pela-primeira-vez9983670htm acesso em 02042014 vejaabrilcombrblogricardo-settitema-livreabertura-para-estudos-dos-sarcofagos-de-d-pedro-i-e-de-suas-duas-esposas-e-fato-extraordinario-parabens-ao-estadao-por-divulgar-tudo acesso em 02042014 brnoticiasyahoocomexumaC3A7C3A3o-d-pedro-i-mulheres-reconta-histC3B3ria-115400981htmlgt acesso em 02042014 g1globocomciencia-e-saudenoticia201302cientistas-brasileiros-exumam-restos-mortais-de-d-pedro-i-e-suas-mulhereshtml acesso em 02042014 youtubecomwatchv=y8jcdXyx3hAgt acesso em 02042014 vestibularuolcombrresumo-das-disciplinasatualidadeshistoria-do-brasil-exumacao-traz-novidades-sobre-d-pedro-ihtm acesso em 02042014 ltgooglecombrsearchq= exumaC3A7C3A3o+de+dom+pedroampoq= exumaC3A7C3A3o+ampaqs= chrome469i57j0l55749j0j8ampsourceid= chromeampespv=210ampes_sm=93ampie=UTF-8gt acesso em 02042014 noticiasseuhistorycomexumacao-revela-detalhes-surpreendentes-da-vida-e-morte-de-d-pedro-i-e-suas-mulheresgt acesso em 02042014 istoecombrreportagens277892_A+VOLTA+DE+DOM+PEDRO+I acesso em 02042014 bahiaatualcomnoticiasexumacao-de-corpos-de-d-pedro-i-revela-detalhes-da-famiila-real acesso em 02042014 Site Uacuteltimo Segundo ldquoExumaccedilatildeo de D Pedro I e suas mulheres reconta a Histoacuteriardquo disponiacutevel em ultimosegundoigcombrciencia2013-02-19exumacao-de-dpedro-i-e-suas-mulheres-reconta-a-historiahtml acesso em 02042014 diariodepernambucocombrappnoticiaciencia-e-saude20130219internas_cienciaesaude424273restos-mortais-de-d-pedro-i-sao-exumados-para-realizacao-de-pesquisashtml acesso em 02042014 httpopiniaoenoticiacombrbrasilrestos-mortais-de-dom-pedro-i-sao-exumadosgt acesso em 02042014 noticiasbanduolcombrjornaldabandconteudoaspid=100000576688 acesso em 02042014

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definiccedilatildeo aqui proposta de cultura de histoacuteria o desinteresse tambeacutem eacute um dado relevante pois traduz uma atitude em si e que dificilmente poderia ser considerada de modo absoluto (como pretender que esse desinteresse se traduza por exemplo em descaso com a proacutepria histoacuteria ou com a da famiacutelia Difiacutecil acreditar ser esse o caso de 23 dos entrevistados) Aleacutem disso bem sabemos que seu contraacuterio o interesse pode se manifestar de muitas maneiras que natildeo necessariamente encontram guarida em praacuteticas acadecircmicas e profissionais relacionadas ao estudo do passado tampouco que resultam em um estudo da histoacuteria minimamente organizado O que implica que os dois contraacuterios nem sempre estabeleceratildeo limites claros entre si diante da apreciaccedilatildeo geral de uma cultura de histoacuteria interesse e desinteresse pela histoacuteria podem flertar com muita proximidade bem como intercambiarem elementos regularmente

Observemos mais atentamente esse panorama Considerando-se tais caracteriacutesticas de uma cultura de histoacuteria como a brasileira perguntou-se a todos os entrevistados incluindo aos 23 que afirmaram natildeo se inte-ressar por histoacuteria por ldquoqual histoacuteriardquo poderia dizer que mais se interessa Aqui as respostas que de alguma forma se referem diretamente agrave histoacuteria do Brasil (ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo ldquoHistoacuteria geral e do Brasilrdquo ldquoHistoacuteria da nos-sa regiatildeordquo ldquoHistoacuteria do Brasil e andinardquo) perfazem 34 do total aiacute sim um nuacutemero relativamente baixo diante dos 66 que em suas respostas exclu-iacuteram o Brasil Portanto independentemente do interesse pela mateacuteria ser alto ou baixo a relaccedilatildeo com a Histoacuteria do Brasil parece gozar de especial desprestiacutegio Seraacute o desprezo pela histoacuteria nacional um dado da cultura de histoacuteria no Brasil43 Mais adiante quando da anaacutelise das outras fontes vol-taremos a esse ponto De todo modo tal desprestiacutegio evidentemente traraacute implicaccedilotildees para as posturas dos brasileiros em relaccedilatildeo agrave Independecircncia

A princiacutepio os entrevistados tendem a se interessar pouco pela Inde-pendecircncia do Brasil mas essa natildeo eacute uma tendecircncia absoluta se 39 tecircm ldquonenhumrdquo ldquopoucordquo ou ldquopequenordquo interesse 44 tem ldquomeacutediordquo e 17 ldquoentre meacutedio e granderdquo e ldquogranderdquo Ora em se tratando de uma cultura de histoacuteria dinacircmica e fluida com fronteiras pouco claras entre o interesse e o desinte-resse pela histoacuteria de modo geral (e a despeito da clara tendecircncia a um maior desinteresse pela Histoacuteria do Brasil) a Independecircncia eacute pouco interessante mas natildeo eacute inteiramente desprezada (apenas 11 declararam ldquonenhumrdquo inte-resse por ela cifra menor do que a dos grandes interessados)

Parece entatildeo haver espaccedilo aqui para diferentes formas de pensar representar e reinventar a Independecircncia do Brasil como verificar-se-aacute mais adiante de momento constata-se uma correspondecircncia estatiacutestica entre os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram ter dela ldquobomrdquo ou ldquoexcelenterdquo conhecimento (os de ldquonenhumrdquo ldquopoucordquo ou apenas ldquorazoaacutevelrdquo conhecimento compotildee os demais 83) e os 30 que afirma-ram buscar informaccedilotildees a respeito (sendo 60 os que buscam informaccedilotildees sobre histoacuteria em geral) Provavelmente trata-se de um subgrupo dos mais ativos no circuito de consumo-reproduccedilatildeo-criaccedilatildeo de toacutepicos relativos agrave Independecircncia na cultura de histoacuteria no Brasil Dentre esses 30 exclusi-vamente 305 afirmaram buscar informaccedilotildees sobre a Independecircncia em livros 291 na escola e nos livros didaacuteticos (evidentemente mais confina-dos ao puacuteblico jovem) 208 na internet 97 em raacutedio tevecirc eou jornais impressos e outros 97 ldquocom pessoas e lugares44 Os que responderam ler ou ter lido algo a respeito nos uacuteltimos dois anos foram 34 (os demais responderam ldquonatildeordquoldquonatildeo se lembrardquo ou natildeo responderam)

43Natildeo parece ser o caso da cultura histoacuterica

portuguesa de acordo com trabalhos recentes como os de PAIS Joseacute Machado Op Cit SOBRAL Joseacute Manuel Op Cit e MATOS Seacutergio Campos Consciecircncia histoacuterica e nacionalismo Portugal seacuteculos XIX e XX Lisboa Horizonte 2008

44A ausecircncia de menccedilotildees a outros tipos de suporte

de informaccedilotildees sobre a Independecircncia reforccedila a escolha das fontes secundaacuterias da pesquisa analisadas no proacuteximo item

45Embora seja muito frequente a consideraccedilatildeo de

que o principal marco fundacional da histoacuteria brasileira tenha sido o ldquodescobrimentordquo (isto eacute a chegada dos portugueses agrave Ameacuterica em 1500) e natildeo a ruptura poliacutetica entre Brasil e Portugal Muito provavelmente isso se conecta com uma tambeacutem muito frequente concepccedilatildeo da Independecircncia como ldquonatildeo-rupturardquo como processo negociado amigaacutevel e sem grandes solavancos Retornaremos agrave questatildeo

46Todas as 28 palavras oferecidas aos entrevistados

receberam no miacutenimo quatro menccedilotildees sendo que 22 tiveram mais de uma dezena de menccedilotildees a mesclarem termos que remetem a caracteriacutesticas atribuiacutedas agrave Independecircncia que ensejam relaccedilotildees diretas ou indiretas com ela ou que se referem a simples informaccedilotildees

47Foram feitas 310 menccedilotildees de termos positivos em

relaccedilatildeo agrave Independecircncia (liberdade democracia revoluccedilatildeo heroiacutesmo mudanccedila drama) contra 210 dos mesmos como natildeo combinando com ela essa tendecircncia eacute reforccedilada por 190 menccedilotildees a termos negativos que combinariam com ela (acordo escravidatildeo negociaccedilatildeo continuaccedilatildeo ditadura comeacutedia invenccedilatildeo tirania) sendo que os mesmos foram mencionados 391 vezes como natildeo combinando Esclarecer o caso de escravidatildeo pode ser referecircncia a uma realidade (em geral negativa) mas tambeacutem como metaacutefora poliacutetica Para todos os efeitos como mencionar o termo de outras maneiras

48148 escolhas incidiram sobre termos conflitivos

que com ela combinariam (guerra revoluccedilatildeo mudanccedila) contra 101 menccedilotildees a tais termos como natildeo combinando poreacutem tal tendecircncia se inverte nas 119 escolhas de termos paciacuteficos que com ela combinariam (paz acordo negociaccedilatildeo) contra 70 menccedilotildees aos mesmos como natildeo combinando

49Foram feitas 27 escolhas de povo como combinando

contra 22 do mesmo termo como natildeo combinando e 35 a elitepoderosos como combinando contra 14 em termos opostos o que indica certo equiliacutebrio tendente agrave segunda possibilidade

50Natildeo se pode deixar de mencionar algumas

outras palavras que natildeo se encontravam na lista mas foram acrescidas pelos entrevistados sendo portanto de menccedilatildeo espontacircnea As mais recorrentes combinando num sentido depreciativo foram ldquointeresserdquo e ldquocorrupccedilatildeordquo Outras palavras tais quais ldquounificaccedilatildeordquo ldquomorterdquo

16Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

A hipoacutetese da constituiccedilatildeo de um subgrupo ativo na cultura de histoacuteria por meio do tema da Independecircncia encontra respaldo nos resulta-dos do ranking do questionaacuterio para a importacircncia que ela teria tido para a Histoacuteria do Brasil 43 deram nota 10 e outros 31 notas entre 8 e 9 sendo que apenas 6 deram notas entre 0 e 4 ou natildeo souberam responder Ou seja mesmo quem natildeo se interessa pela Independecircncia ou pela Histoacute-ria do Brasil em geral tende a reconhecer o tema como sendo de grande importacircncia embora tal reconhecimento seja menor em se tratando de sua relaccedilatildeo com a Histoacuteria ldquoem geralrdquo (a essa pergunta 25 respondeu com nota 10 e outros 25 com notas 8 ou 9 em contraposiccedilatildeo a um elevado percentual de 22 que deu notas entre 0 e 4 ou natildeo soube responder) Ainda assim portanto a Independecircncia eacute fortemente valorizada por um percentual que extrapola os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram dela serem conhecedores ou os 20 que afirmaram buscar informaccedilotildees a seu respeito Valorizada poreacutem em meio ao que parece ser uma dificuldade de se pensaacute-la para aleacutem de sua tradicional circunscriccedilatildeo nacional (o que encontra como logo veremos enorme correspondecircncia nas fontes secundaacuterias) para aleacutem dos limites a ela convencionalmente impos-tos por tradiccedilotildees historiograacuteficas ainda fortes e mesmo por uma cultura de histoacuteria que tendo atributos fortemente nacionais tende a nela enxergar um marco fundacional importante isto eacute um marco diferenciador entre a histoacuteria do Brasil e a de outros paiacuteses45

O que nesse sentido nos mostram as escolhas de palavras que ldquocom-binamrdquo e ldquonatildeo combinamrdquo com a Independecircncia46 Em primeiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista mais em perspectiva positivaenalte-cedora do que negativadepreciativa47 Em segundo lugar a possibilidade da Independecircncia ser considerada tanto como rupturaconflitiva quanto como continuidadepaciacutefica48 Em terceiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista como algo menos popular do que elitista49 Em quarto e uacuteltimo lu-gar ateacute que ponto os entrevistados se mostraram conhecedores da histoacuteria 55 respostas indicaram termos informativos descabidos (Tiradentes combina D Pedro I D Joatildeo VI Joseacute Bonifaacutecio e Portugal natildeo) contra uma maioria de 190 menccedilotildees a tais termos de modo inverso Aqui os resultados podem indicar a prevalecircncia de um tipo de conhecimento de histoacuteria estruturado em personagens e trajetoacuterias individuais (como logo veremos as fontes secundaacute-rias tambeacutem referendaratildeo amplamente essa hipoacutetese)50

Na uacuteltima parte do questionaacuterio perguntou-se aos entrevistados acerca de datas de quatro eventos que podem ser considerados como marcos do processo de Independecircncia 68 responderam natildeo saber ou natildeo se lembrar da data da chegada da Corte portuguesa ao Brasil 13 deram respostas claramente erradas em muitas das quais (ldquomil e quinhentosrdquo ldquomil quinhentos e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo etc) natildeo obstan-te se vislumbra uma referecircncia adequada poreacutem tratada de modo equivo-cado e somente 9 souberam responder de modo preciso (ldquomil oitocentos e oitordquo) Diante da pergunta quanto agrave data da primeira constituiccedilatildeo do Brasil 85 disseram natildeo saber ou natildeo se lembrar 7 deram respostas claramente erradas (ldquomil e quatrocentosrdquo ldquomil quinhentos e oitentardquo) algumas das quais poreacutem se aproximando da evocaccedilatildeo de alguma consti-tuiccedilatildeo brasileira (ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquomil novecentos e trintardquo ldquomil novecentos e oitenta e oitordquo) e apenas 13 souberam responder com firmeza isto eacute com a presenccedila de ldquomil oitocentos e vinte e quatrordquo na resposta Jaacute a pergunta sobre a data

(em alusatildeo ao Grito) e ldquoprogressordquo enriqueceram a fileira dos termos valorativos

51Essa percepccedilatildeo eacute reforccedilada por alguns dos

dados obtidos por Purificaccedilatildeo Em meio a representaccedilotildees da Independecircncia produzidas por crianccedilas entre 09 e 13 anos encontram-se frases como ldquoQuando D Pedro viu terra gritou Independecircncia ou Morterdquo e ldquoPouco depois de descobrirem o Brasil gritaram a independecircnciardquo PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p40-41 Cabe lembrar que tais crianccedilas natildeo haviam tido ainda contato formal (na escola) com o tema da Independecircncia ldquoapenasrdquo por meio de uma cultura de histoacuteria a envolverem-nas

52O que parece impor uma urgente reflexatildeo em

torno dos efeitos do violento desprestiacutegio das referecircncias factuais que o sistema escolar impocircs ao ensino de Histoacuteria no Brasil das uacuteltimas deacutecadas O quecirc ademais natildeo parece uma situaccedilatildeo exclusivamente brasileira de acordo com a sugestatildeo que nos foi dada por Nuno Gonccedilalo Monteiro a ver aqui paralelismo com o ensino de Histoacuteria em Portugal

53Outras duas possibilidades promissoras seriam

analisar respostas a questotildees de vestibulares relativas agrave Independecircncia e entrevistas com professores e coordenadores pedagoacutegicos que de alguma forma lidem com o tema no cotidiano escolar

54MORENO Jean Carlos Limites escolhas e

expectativas horizontes metodoloacutegicos para anaacutelise dos livros didaacuteticos de histoacuteria Antiacuteteses Londrina v5 n10 p729 juldez2012

55O que eacute atestado por exemplo pela recente

consolidaccedilatildeo da presenccedila nos livros didaacuteticos de toacutepicos relativos agrave Histoacuteria do continente africano

56Dos 49 autores de livros didaacuteticos aqui

considerados 36 satildeo identificados pelos termos ldquomestrerdquo ldquodoutorrdquo ou ldquoprofessor universitaacuteriordquo O que natildeo significa como eacute bem sabido que tais autores sejam integralmente responsaacuteveis pelo conteuacutedo de suas obras

57MORENO Jean Carlos Op Cit p724

58Segundo dados oficiais somente no ano de

2012 esse governo comprou cerca de 408 milhotildees de livros didaacuteticos para os anos do Ensino Meacutedio (Assessoria de Comunicaccedilatildeo Social do FNDE 24 de agosto de 2012)

59Sua produccedilatildeo no entanto eacute regionalmente

concentrada na seleccedilatildeo das coleccedilotildees de didaacuteticos feita pelo MEC em 2010 oito editoras de Satildeo Paulo responderam por 842 da produccedilatildeo aprovada enquanto trecircs de Curitiba ficaram com os 158 restantes

60DIAS Adriana M GRINBERG Keila e

PELLEGRINI Marco Novo Olhar Histoacuteria v2 Satildeo

17Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

da abdicaccedilatildeo de D Pedro I foi a campeatilde em respostas imprecisas 92 dis-seram natildeo saber ou natildeo se lembrar 16 deu respostas erradas e apenas 12 soube responder ldquomil oitocentos e trinta e umrdquo

E quanto agrave data da Independecircncia do Brasil Em comparaccedilatildeo com as perguntas anteriores esta obteve respostas de qualidade superior natildeo obstante um nuacutemero ainda alto de respostas ldquonatildeo souberdquo e ldquonatildeo lembrardquo 33 dos entrevistados Haacute que se lembrar inclusive que desde a segunda parte do questionaacuterio o entrevistado jaacute sabia tratar-se de algo focado na Independecircncia ou seja se nas demais perguntas pode-se dizer que ele foi pego totalmente surpresa nesta natildeo Por isso e se considerarmos ainda os 14 que deram respostas claramente erradas a esta pergunta (ldquomil e qui-nhentosrdquo ldquovinte e um de abril de mil e quinhentosrdquo ldquovinte e dois de abril de mil e quinhentosrdquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquovinte e um de abrilrdquo ldquovinte e dois de abrilrdquo ldquonove de julhordquo) chega-se a um total de 47 de pessoas incapazes de dizer quando ocorreu a Independecircncia do Brasil Por outra parte os que souberam responder (ldquosete de setembro de mil oito-centos e vinte e doisrdquo ou ldquomil oitocentos e vinte e doisrdquo) chegaram a 16 iacutendice muito proacuteximo das dimensotildees do hipoteacutetico grupo de interessados e razoaacuteveis conhecedores da Histoacuteria da Independecircncia referido alguns paraacutegrafos acima

Trata-se de um nuacutemero elevado ainda mais se reafirmarmos que a Independecircncia natildeo eacute jamais completamente ignorada em meio agrave cultura brasileira de histoacuteria De certo modo sim mas natildeo deve escapar agrave obser-vaccedilatildeo de ningueacutem que nessa pergunta especiacutefica a confusatildeo de datas se daacute dentro de referecircncias histoacutericas e cronoloacutegicas bastante demarcadas a Independecircncia o ldquodescobrimento do Brasilrdquo Tiradentes e a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica todos eles marcos fundacionais em uma memoacuteria histoacuteri-ca oficial logo fundamentais na constituiccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil51 Tais resultados indicam preliminarmente a precariedade da concepccedilatildeo de histoacuteria ndash da Independecircncia em particular - segundo formas convencionais de organizaccedilatildeo cronoloacutegica e isso a despeito dessa socieda-de ser permeada e carregada de referecircncias cronoloacutegicas que organizam a vida das pessoas em muitos de seus interstiacutecios (vida familiar vida profis-sional praacuteticas de lazer e de culto etc) Pouquiacutessimas respostas ndash esta-tisticamente despreziacuteveis -parecem esboccedilar a forja de alguma modalidade alternativa de organizaccedilatildeo temporal da histoacuteria (ldquoquase duzentos anosrdquo ldquomil oitocentos e alguma coisardquo ou ldquoD Pedro saiu para brigar com o irmatildeo e deixou D Pedro IIrdquo) diante do quecirc ganha forccedila a hipoacutetese de uma enorme e generalizada dificuldade apresentada por essa sociedade no manejo de recursos baacutesicos de historicizaccedilatildeo da histoacuteria como a cronologia52

Ateacute aqui as conclusotildees a que se pode chegar ainda satildeo excessiva-mente parciais extraiacutedas apenas da sondagem de opiniatildeo conveacutem no entanto sumarizaacute-las de modo a reforccedilaacute-las como hipoacuteteses capazes de nortear a anaacutelise vindoura Segundo o que nos mostram os entrevistados a Independecircncia eacute pouco frequentada por muitos mas assiduamente por um grupo razoaacutevel (seratildeo seus membros os uacutenicos capazes de pensaacute-la segundo marcos cronoloacutegicos) eacute amplamente considerada tema da maior importacircncia para a Histoacuteria do Brasil e de menor importacircncia para a His-toacuteria do Mundo ela eacute menos interessante do que outros temas (quais natildeo sabemos) assim como a Histoacuteria do Brasil eacute menos do que a Histoacuteria Geral mas tende a ser vista como algo respeitaacutevel eventualmente positivo para o Brasil o que parece evocar um imaginaacuterio oficial ainda muito vigente de

Paulo FTD 2010 ALVES Alexandre e OLIVEIRA Letiacutecia F de Conexotildees com a Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Moderna 2010 PEDRO Antocircnio e LIMA Lizacircnias de Souza Histoacuteria sempre presente v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VICENTINO Claacuteudio R e DORIGO Gianpaolo F Histoacuteria Geral e do Brasil v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FIGUEIRA Divalte G Histoacuteria em foco v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2011 NOGUEIRA Fausto G e CAPELLARI Marcos Ser protagonista Histoacuteria 2ordm ano do Ensino Meacutedio Satildeo Paulo Ediccedilotildees SM 2010 BURITTI Flaacutevio Caminhos do Homem v2 Curitiba Base Editorial 2010 CAMPOS Flaacutevio de CLARO Regina A escrita da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 COTRIM Gilberto Histoacuteria Global Brasil e Geral v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 AZEVEDO Gislane C e SERIACOPI Reinaldo Histoacuteria em movimento v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2010 MORENO Jean Carlos e GOMES Sandro V Histoacuteria cultura e sociedade v3 Curitiba Positivo 2010 FERREIRA Joatildeo Paulo e FERNANDES Luiz Estevam Nova Histoacuteria integrada v2 2a ed Curitiba Moacutedulo 2010 MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Histoacuteria Geral e Brasil v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam B Histoacuteria Das cavernas ao terceiro milecircnio v2 2a ed Satildeo Paulo Moderna SANTIAGO Pedro CERQUEIRA Ceacutelia e PONTES Maria Aparecida Por dentro da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 MOCELLIN Renato e CAMARGO Rosiane Histoacuteria em debate v2 Satildeo Paulo Editora do Brasil 2010 CATELLI Jr Roberto GANDINI Mariacutea Soledad M e ASPIS Renata L Histoacuteria texto e contexto v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FARIA Ricardo de M MIRANDA Mocircnica Liz e CAMPOS Helena Estudos de Histoacuteria v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010

61PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit

62Conforme observou o Guia de livros didaacuteticos

PNLD 2012 Histoacuteria 17 das coleccedilotildees aprovadas adotaram a perspectiva da Histoacuteria Integrada na qual se expotildee o conteuacutedo histoacuterico a partir da ldquosequecircncia cronoloacutegica de base europeiardquo havendo o predomiacutenio da ldquoHistoacuteria Geral eurocecircntricardquo linear Os assuntos sobre a Histoacuteria da Ameacuterica e do Brasil estatildeo intercalados nesta grande Histoacuteria Geral As outras duas coleccedilotildees optaram pelo formato temaacutetico organizando os assuntos ldquoem torno de muacuteltiplos espaccedilos e temporalidadesrdquo mas guiados por um eixo cronoloacutegico Guia de livros didaacuteticos PNLD 2012 Histoacuteria Op Cit p 18-19

63Uma afirmaccedilatildeo tiacutepica ldquoO nascimento do

Brasil como paiacutes independente encontra-se dentro do contexto de crise do Antigo Regime e do sistema colonial mercantilistardquo VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p89 Os paradigmas historiograacuteficos a que tal tipo de afirmaccedilatildeo remete satildeo evidentemente as obras de Caio Prado Juacutenior e Fernando Novais jaacute amplamente presentes tambeacutem nos livros de Ensino Fundamental PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit cap3

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glorificaccedilatildeo da Independecircncia laudatoacuterio e a destacar seus personagens centrais No entanto tal tendecircncia encontra obstaacuteculo em outras contraacute-rias minoritaacuterias mas natildeo despreziacuteveis a verem a Independecircncia como algo pouco ou nada importante uma histoacuteria restrita espacialmente e socialmente e mais de continuidades do que de rupturas

Assim jaacute eacute possiacutevel afirmar que a Independecircncia enseja disputas a seu respeito em torno de suas representaccedilotildees e memoacuterias oficiais ou natildeo Muito provavelmente alguns dos motivos que explicam sua rejeiccedilatildeo por muitos explicam igualmente sua ativa e entusiasmada frequecircncia por um grupo menor Em uma terceira via ela jamais deixou de ser pensada e divulgada em perspectivas complexas fortemente criacuteticas e analiacuteticas Para todos os efeitos a Independecircncia contribui sem duacutevida para tipificar uma cultura de histoacuteria no Brasil plural variada e apenas parcialmente organizada em padrotildees cronoloacutegicos (temporais) na qual ocupa um papel central e da qual irradiam outros elementos valiosos para um melhor en-tendimento dessa mesma cultura

4 ndash A Independecircncia nas escolas A principal fonte de fomento e irradiaccedilatildeo de atitudes do brasileiro diante da Independecircncia eacute o sistema escolar com sua diversidade de agentes es-paccedilos procedimentos materiais e valores Aqui seraacute analisado apenas um componente prenhe de significados desse sistema o livro didaacutetico53

Segundo um estudioso da mateacuteria os autores de livros didaacuteticos de Histoacuteria em geral ndash grupo no qual ele mesmo estaacute incluiacutedo -ldquonatildeo tecircm por objetivo somente transpor a Histoacuteria acadecircmica eles identificam necessi-dades sociais estatildeo imersos na sociedade e portanto na proacutepria histoacuteria sobre a qual escrevemrdquo54 Tais livros satildeo assim documentos privilegiados de uma cultura de histoacuteria trazem conteuacutedos de acordo com padrotildees e paracircmetros de uma sociedade agrave qual servem sendo inclusive cada vez mais sensiacuteveis a impulsos de origem natildeo acadecircmica55 contam com a colaboraccedilatildeo ou autoria de historiadores profissionais56 que trabalham junto a editores assistentes revisores iconoacutegrafos diagramadores e designers graacuteficos57 satildeo consumidos preferencialmente por educadores e educandos mas chegam tambeacutem agraves famiacutelias destes e ao puacuteblico em geral tendem a permanecer por algum tempo disponiacuteveis em salas de aula residecircncias livrarias e bibliotecas e satildeo fortemente condicionados pelas exigecircncias de um grande mercado editorial cujas demandas capi-talistas natildeo satildeo menos evidentes do que as pedagoacutegicas O livro didaacutetico eacute o segundo suporte de leitura mais lido no Brasil sendo sua produccedilatildeo o mais lucrativo negoacutecio de uma induacutestria editorial brasileira que tem no governo federal seu maior cliente58 Essa produccedilatildeo dos livros didaacuteticos movimenta enormes cifras veicula paacuteginas e paacuteginas de conteuacutedos de Histoacuteria produzidos por e destinados a um amplo conjunto de agentes sociais e tecircm circulaccedilatildeo nacional59

A Independecircncia estaacute presente em todos os 21 livros destinados ao Ensino Meacutedio aqui considerados60 assim como estava em outros 12 de Ensino Fundamental contemplados por um estudo acadecircmico a respeito61 Nessa dupla frente abre-se uma possibilidade de anaacutelise valiosa jaacute que alguns livros circulam atualmente enquanto outros circularam agrave eacutepoca em que jovens adultos que hoje tecircm entre 22 e 26 anos eram crianccedilas entre 9 e 13 Unem-se assim duas temporalidades de tratamentos da Independecircn-cia que podem ser unificadas por uma cultura de histoacuteria

64Exemplo eacute a afirmaccedilatildeo de que ldquoem

reconhecimento agrave importacircncia da Batalha do Jenipapo como um episoacutedio fundamental no processo de independecircncia e de consolidaccedilatildeo do territoacuterio a data de 13 de marccedilo de 1823 foi estampada na bandeira do estado do Piauiacuterdquo DIAS Adriana GRINBERG Keila e PELLEGRINI Marco Op Cit p240

65Excelente demonstraccedilatildeo eacute dada por uma

proposta pedagoacutegica de um jogo didaacutetico elaborado pelo Laboratoacuterio de Ensino de Histoacuteria da Universidade Federal de Pelotas descrita em GASPAROTTO Alessandra ESPIacuteRITO SANTO Marco Viniacutecio do SILVA Eduarda Borges da Jogo didaacutetico vira-vira a metroacutepole vira colocircnia a colocircnia vira-metroacutepole Revista Latino-Americana de Histoacuteria v2 n6 agosto de 2013 (Ediccedilatildeo Especial) p648-661

66Os preferidos satildeo D Joatildeo Carlota Joaquina Joseacute

Bonifaacutecio e D Pedro

67Um exemplo apoacutes afirmar que ldquodurante anos a

historiografia oficial tentou idealizar o processo de independecircncia e seus autores explicado como um ato de heroiacutesmo contra a tirania e em defesa da liberdaderdquo uma das obras afirma em tom de contraposiccedilatildeo ldquoMas nas uacuteltimas deacutecadas novos estudos permitiram lanccedilar um novo olhar sobre esse periacuteodo Expressotildees dessa mudanccedila satildeo algumas produccedilotildees culturais recentes que tratam desse momento com uma visatildeo criacutetica e ateacute mesmo sarcaacutestica como por exemplo o romance O Chalaccedila (1999) de Joseacute Roberto Torerordquo Por fim propotildee como ldquoSugestatildeo de atividaderdquo supostamente para aguccedilar o senso criacutetico do aluno ldquocomparar o romance de Torero citado acima com a visatildeo oficial dos eventos fornecida pela ceacutelebre pintura Independecircncia ou morte (O Grito do Ipiranga) de Pedro Ameacuterico ou pelo filme Independecircncia ou morte (1972) de Carlos Coimbrardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p80-81) Aleacutem de ignorar os momentos objetivos e naturezas distintos das obras recomendadas tal atividade sugere a ultrapassagem de uma visatildeo ldquotradicionalrdquo da Independecircncia por outra ldquocriacuteticardquo ndash logo mais aceitaacutevel Assim o aluno eacute encorajado a conceber a histoacuteria por meio de sua livre-interpretaccedilatildeo mas sendo impelido a endossar a de um romance satiacuterico (logo voltaremos a ele)

68Em um livro para o Ensino Fundamental de

1996 lia-se que ldquopara a realizaccedilatildeo do nosso trabalho foi importante a participaccedilatildeo de Mariana Massarani artista que desenhou com alegria e bom humor os acontecimentos estudadosrdquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Do mundo indiacutegena ao periacuteodo regencial no Brasil Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1994 p1 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p79) Essa eacute uma tendecircncia antiga como nos mostra o poema de Murilo Mendes ldquoA pescariardquo (publicado em Histoacuteria do Brasil de 1932) evocativo da tatildeo ceacutelebre quanto historicamente irrelevante disenteria de D Pedro em 7 de setembro de 1822 e transcrito em outro didaacutetico ldquoFoi nas margens

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Natildeo haacute duacutevida que a maioria dos livros didaacuteticos de Histoacuteria voltados ao Ensino Meacutedio abre possibilidades de construccedilatildeo de um conhecimento acerca da Independecircncia multifacetado matizado criacutetico e criterioso e deles pode-se extrair muitos exemplos a revelarem diaacutelogos propositi-vos entre saberes acadecircmicos e didaacuteticos da Histoacuteria (afinal os proacuteprios autores e avaliadores dos livros estatildeo quase todos diretamente ligados ao meio acadecircmico) aliaacutes em comparaccedilatildeo com os de Ensino Fundamental de cerca de uma deacutecada atraacutes essas possibilidades soacute cresceram Poreacutem como natildeo eacute objetivo deste estudo analisar tais livros em si mesmos -somente deles extrair elementos que tipifiquem uma cultura de histoacuteria por meio da Independecircncia ndash mais relevantes parecem ser justamente alguns de seus pontos sensiacuteveis nos quais tais livros se fazem menos acadecircmicos e nos quais se traduzem de modo mais significativo componentes mais amplos da sociedade que lhes daacute sentido

Em todos esses livros a Independecircncia eacute invariavelmente vista como parte de um processo mais amplo no qual se incluem outros acontecimen-tos poliacuteticos americanos e europeus de finais do seacuteculo XVIII e comeccedilos do seacuteculo XIX (embora quase nunca sejam feitas conexotildees fundamentais entre eles deficiecircncia notaacutevel sobretudo no tocante agraves independecircncias da Ameacuterica espanhola vistas sempre como supostos contraexemplos da Independecircncia do Brasil62) O episoacutedico se faz presente na menccedilatildeo a vaacuterios temas menores ndash a vinda da Corte a abertura dos Portos o governo de D Joatildeo no Rio de Janeiro a Revoluccedilatildeo de Pernambuco a Revoluccedilatildeo do Porto etc ndash mas sempre em observacircncia a contextos histoacutericos espaciais e temporais mais amplos63 Destaque-se que 80 dos livros fazem referecircncia expliacutecita ao termo ldquoguerra(s) de independecircnciardquo64 o que enseja uma con-cepccedilatildeo tambeacutem multirregional do tema e vaacuterios o aprofundam O mesmo pode ser dito de perfis biograacuteficos presentes mas submetidos a uma loacutegica processual da Histoacuteria

Essa ecircnfase em processos em detrimento parcial de acontecimentos e personagens eacute importante indiacutecio de uma sintonia entre saberes aca-decircmicos e natildeo acadecircmicos65 Contudo deve-se relativizar o peso desse diaacutelogo jaacute no que tange ao tratamento dispensado agraves biografias aleacutem de pouco ou nada inovarem na escolha dos personagens destacados66 alguns livros didaacuteticos trazem fragmentos anedoacuteticos de tais trajetoacuterias hoje em dia pouco ou nada uacuteteis a historiadores profissionais (embora as comilan-ccedilas de D Joatildeo os amantes de D Carlota ou as noitadas de D Pedro natildeo os distingua de outros agentes histoacutericos de sua eacutepoca tampouco satildeo trata-dos como tiacutepicos67) Parece razoaacutevel argumentar que ao menos parcial-mente tal insistecircncia da parte do livro didaacutetico atende ao gosto do leitorconsumidor tornando tais suportes materiais mais agradaacuteveis e sedutores assim sendo constata-se justamente um limite no diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e saberes didaacuteticos expressos em tais livros bem como se anuncia uma tendecircncia de representaccedilatildeo humoriacutestica do passado em uma cultura de histoacuteria como a brasileira muito forte em outros suportes68 Eis um mercado ndash que no Brasil mescla dimensotildees editoriais e midiaacuteticas com outras educacionais e culturais mais amplas ndash impondo seus padrotildees de representaccedilatildeo do passado

Aleacutem de envolverem historiadores profissionais em sua produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo os livros didaacuteticos de Ensino Meacutedio parecem esforccedilar-se cada vez mais em trazer conteuacutedos extraiacutedos de obras acadecircmicas bem como apresentar ao leitor uma pluralidade de posiccedilotildees acerca de um determina-

do IpirangaEm meio a uma pescariaSentindo-se mal D PedroComera demais cuscuzDesaperta a braguilhaE grita roxo de raivaOu me livro desta coacutelicaOu morro logo de uma vezO priacutencipe se aliviouSai no caminho cantandoJaacute me sinto independenteSafa Vou de perto a morteVamos cair no fadinhoPra celebrar o sucessordquo MACEDO Joseacute Rivair Brasil ndash uma histoacuteria em construccedilatildeo Satildeo Paulo Brasil 1996 p166 Cit por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p101

69Tomemos por exemplo esta afirmaccedilatildeo ldquoDe acordo

com alguns historiadores as raiacutezes da independecircncia brasileira estatildeo na segunda metade do seacuteculo XVIII quando se multiplicaram atividades produtivas e comerciais na colocircnia sobretudo na regiatildeo Centro-Sulrdquo (MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Op Cit p113) Nela eacute possiacutevel reconhecer a presenccedila de influente e importante interpretaccedilatildeo acadecircmica acerca da Independecircncia do Brasil (DIAS Maria Odila A interiorizaccedilatildeo da metroacutepole (1808-1853) In MOTA Carlos Guilherme 1822 dimensotildees Satildeo Paulo Perspectiva 1972 p160-184) no entanto natildeo eacute apresentada qualquer contraposiccedilatildeo (se esta posiccedilatildeo eacute da parte de ldquoalguns historiadoresrdquo outra divergente deve ser da parte de outros) Mais adiante lecirc-se que ldquoo fato relevante foi que a transferecircncia da corte para o Brasil provocou uma inversatildeo histoacuterica de modo significativo e irreversiacutevel nas relaccedilotildees entre a metroacutepole portuguesa e a colocircnia brasileirardquo (Idem p114) Ora o que seria uma inversatildeo irreversiacutevel dessas relaccedilotildees Portugal teria se tornado para sempre colocircnia do Brasil

70Nos livros didaacuteticos de Ensino Fundamental

analisados por Purificaccedilatildeo jaacute eram abundantes as transcriccedilotildees de trechos de textos de historiadores profissionais sem que deles resultasse qualquer ensejo de pluralidade de pensamento ou de estiacutemulo agrave interpretaccedilatildeo

71VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA

Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p 103

72O capiacutetulo 14 de uma das obras intitulado

ldquoO processo de independecircncia da Ameacuterica portuguesardquo inicia-se com um excerto do Romanceiro da Inconfidecircncia de Ceciacutelia Meireles tambeacutem indutor a essa interpretaccedilatildeo ldquoAtraveacutes de grossas portas sentem-se luzes acesas e haacute indagaccedilotildees minuciosas dentro das casas fronteiras Que estatildeo fazendo tatildeo tarde Que escrevem conversam pensam Mostram livros proibidos Leem notiacutecias nas GazetasTeratildeo recebido cartasde potecircncias estrangeiras [] Oacute vitoacuterias festas flores das lutas da Independecircncia Liberdade ndash essa palavra que o sonho humano alimenta que natildeo haacute ningueacutem que explique e ningueacutem que natildeo entendardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p 202) Jaacute nas ldquosugestotildees de leitura e consulta para o professorrdquo de outra encontra-se indicaccedilatildeo de uma obra de J J Chiavenato - Inconfidecircncia mineira as vaacuterias faces Satildeo Paulo Global 2000 - com este comentaacuterio ldquoo autor mostra o movimento que buscava a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Adotando uma abordagem que parte da realidade socioeconocircmica do periacuteodo este livro releva diferentes aspectos desse momento singular da histoacuteria brasileirardquo (NOGUEIRA Fausto

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do toacutepico que seja decorrente de debates acadecircmicos No entanto ainda eacute frequente que tais conteuacutedos se inclinem agrave pura formalidade dificilmente explicitando divergecircncias oriundas da academia ou resultando em uma tomada de posiccedilatildeo realmente criacutetica perante a histoacuteria69 Ao usuaacuterio do livro eacute apresentada uma suposta pluralidade de pensamento natildeo como ferramenta de obtenccedilatildeo dessa pluralidade mas como estilo de composiccedilatildeo e padronizaccedilatildeo do material didaacutetico70

Esse tipo de atitude formalista pode ser encontrada tambeacutem em propostas de atividades dirigidas ao aluno como esta

A interpretaccedilatildeo sobre a independecircncia do Brasil provocou e ainda provoca muitas divergecircncias Sob o ponto de vista econocircmico alguns pesquisadores defendem que a separaccedilatildeo ocorreu de fato em 1808 [] Outros com interpretaccedilotildees mais poliacuteticas indicam o 7 de setembro de 1822 embora nenhuma medida formal tenha sido tomada nessa data ndash foi um ato simboacutelico Depois da Guerra do Paraguai jornais republicanos argumentavam que [] D Pedro havia atendido aos apelos de independecircncia dos brasileiros mas os teria traiacutedo quando fechou a Assembleia Constituinte em 1823 Enalteciam entatildeo a Inconfidecircncia Mineira (1789) a Revoluccedilatildeo Pernambucana (1817) e a Confederaccedilatildeo do Equador (1824) movimentos com teor republicano conforme as reais aspiraccedilotildees dos brasileiros

Satildeo vaacuterias interpretaccedilotildees que variam de acordo com a posiccedilatildeo poliacutetica ou momento histoacuterico dos autores Alguns intelectuais consideram ateacute mesmo que o Brasil hoje tem uma independecircncia mais nominal do que real pois continuaria dependente dos paiacuteses mais ricos

Em sua opiniatildeo quando o Brasil se tornou um paiacutes independente71

Aqui novamente eacute apresentada uma divergecircncia de interpretaccedilatildeo e vaacuterias satildeo as possibilidades de resposta agrave pergunta quando o Brasil se tornou um paiacutes independente No entanto todas as posiccedilotildees apresentadas parecem equivaler-se pois tudo depende da ldquoposiccedilatildeo poliacuteticardquo ou ldquodo mo-mento histoacutericordquo da pessoa disposta a respondecirc-la Assim e por induccedilatildeo a Inconfidecircncia Mineira poderia ser uma resposta aceitaacutevel conforme visatildeo ainda presente em alguns livros72 e a despeito do contraacuterio que historia-dores vecircm afirmando nas uacuteltimas deacutecadas Do mesmo modo a atividade pareceria aceitar a ldquonatildeo independecircncia de fatordquo ideia muito presente na cultura de histoacuteria no Brasil73 tatildeo sedutora quanto inconsistente do ponto de vista acadecircmico Para o aluno tratar-se-ia de uma questatildeo de simples opccedilatildeo (poliacutetica) diante da qual a Histoacuteria se destemporaliza

Uma Histoacuteria processual mais do que episoacutedica ou personalista uma Histoacuteria permeada de explicaccedilotildees acadecircmicas ao mesmo tempo uma Histoacuteria com limitaccedilotildees em termos de divergecircncias relativizaccedilotildees e possibilidades em aberto condicionada a suportes materiais repletos de convenccedilotildees a tornarem-nos muito parecidos entre si Talvez seja no tra-tamento dispensado a imagens que os livros didaacuteticos melhor revelam tais convenccedilotildees reforccedilando as limitaccedilotildees de seu diaacutelogo com a Histoacuteria acadecirc-mica bem como acentuando suas caracteriacutesticas de mercadoria Todos os livros aqui considerados satildeo carregados de itens especiacuteficos a quebrarem a continuidade do texto e suas paacuteginas satildeo multicoloridas e povoadas por fi-guras como obras de pintores dos seacuteculos XIX e XX74 Quase nunca poreacutem tais imagens satildeo analisadas como fontes histoacutericas confinadas agrave funccedilatildeo de mera ilustraccedilatildeo frequentemente modificadas em cor e tamanho ateacute mesmo mutiladas ndash sem esclarecimento ndash em prol da diagramaccedilatildeo75 Em tais casos inevitavelmente cria-se uma ideia natildeo de uma histoacuteria sujeita a muacuteltiplas interpretaccedilotildees (contrapondo-se portanto a vaacuterias das atividades

e CAPELLARI Marcos Op Cit p71) Em uma terceira obra logo na abertura de um capiacutetulo intitulado ldquoA independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo lecirc-se que ldquoos dias 21 de abril e 7 de setembro feriados nacionais nos fazem lembrar de dois momentos do processo histoacuterico que levou a independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo (COTRIM Gilberto Op Cit p223) A associaccedilatildeo direta entre Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia era mais comumente feita em livros didaacuteticos de deacutecadas atraacutes Um de Ensino Fundamental caracterizava a Revolta de Beckman a Guerra dos Emboabas a Revolta de Felipe dos Santos a Guerra dos Mascates e as conjuraccedilotildees Mineira e Baiana como movimentos nos quais ldquoos revoltosos se opuseram agrave metroacutepole sonhando e lutando pela autonomia do paiacutesrdquo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Nas trilhas da histoacuteria Ensino Fundamental Belo Horizonte Dimensatildeo 1999 v4) Citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p108

73FIGUEIRA Divalte G Op Cit p191 Nos de

Ensino Fundamental AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 CARMO Socircnia S do COUTO Eliane F B A A consolidaccedilatildeo do capitalismo e o Brasil impeacuterio Satildeo Paulo Atual 1997 (Histoacuteria Passado Presente 3) p105 FERREIRA Joseacute Roberto Histoacuteria Ediccedilatildeo Reformulada Satildeo Paulo FTD 1997 (7ordf seacuterie) p65 ALVES Kaacutetia Correia Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p 128 Citados por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p78 84-85 96 e 111

74Debret Rugendas Moreaux Feacutelix Taunay

Constantino Fontes Polliegravere Parreiras Benedito Calixto Delerive Martins Viana Oscar Pereira da Silva Georgina de Albuquerque e Aldemir Martins entre outros

75Isso jaacute era frequente haacute uma deacutecada com livros

de Ensino Fundamental como por exemplo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p126 e COTRIM Geraldo Op Cit p 112 conforme anaacutelise de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p113 e 123 Haacute que se dizer que livros didaacuteticos natildeo satildeo meio exclusivo para esse esvaziamento do valor documental da iconografia havendo na proacutepria publicaccedilatildeo acadecircmica problema semelhante como demonstra CAVENAGHI Airton Joseacute O atlas do impeacuterio do Brazil e as representaccedilotildees presentes no livro Projeto Histoacuteria v 41 2010 p 383-403

76Constataccedilatildeo semelhante agrave de PURIFICACcedilAtildeO Ana

Teresa da Op Cit para os didaacuteticos de Ensino Fundamental

77NOGUEIRA Fausto e CAPELLARI Marcos Op

Cit p255

78Para um deles ldquoo pintor Pedro Ameacuterico imaginou

a cena ocorrida agraves margens do riacho do Ipirangardquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 para outro um ceacutelebre quadro mostraria uma ldquocena de uma

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sessatildeo das cortes de Lisboa reconstituiacuteda pelo pintor Oscar Pereira da Silvardquo Cfr CARMO Socircnia do COUTO Eliane F B A Op Cit p 73 um terceiro propunha ao aluno a seguinte atividade ldquoobserve cuidadosamente as gravuras de Debret que aparecem no texto Descreva cada uma delas e compare as cenas nelas retratadas com as cenas de nossas ruas de hoje Haacute diferenccedila Em que sentidordquo Cfr GARCIA Leocircnidas F Estudos de histoacuteria sociedades contemporacircneas 2 ed rev Goiacircnia Editora da UFG 1996 Manual do Professor p 111 Todas as informaccedilotildees foram retiradas de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p81 88 e 137

79Conforme bem mostrado por Elias Saliba Cfr

SALIBA Elias Experiecircncias e representaccedilotildees sociais reflexotildees sobre o uso e o consumo das imagens Anais do II Encontro Perspectivas do Ensino de Histoacuteria Satildeo Paulo FEUSP 1996 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p119

80Produzida pela Secretaria de Ensino agrave

Distacircncia do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo em parceria com a TV Escola e a Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco com a companhia teatral Matildeo Molenga Parte 1 disponiacutevel em youtubecomwatchv=Z60eHBJ1xjY 18082 visualizaccedilotildees e 15 comentaacuterios parte 2 disponiacutevel em youtubecomwatchv=2QLkP2NDhMg 30100 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios (parte desse episoacutedio tambeacutem disponiacutevel em youtubecomwatchv=bAPUjP7l-lI 18398 visualizaccedilotildees e 16 comentaacuterios acesso em 13022014

81Como Clemente Pereira Gonccedilalves Ledo Cipriano

Barata Paes de Andrade e frei Caneca O fato de se tratar de uma produccedilatildeo pernambucana contribui para tanto

82Semelhante observaccedilatildeo pode ser feita a respeito

dos doze curtos episoacutedios da seacuterie D Joatildeo no Brasil inspirada em uma narrativa em quadrinhos da chegada da Corte ao Brasil seacuterie de animaccedilatildeo produzida pelo Canal Futura baseada no livro de histoacuteria em quadrinhos D Joatildeo Carioca a corte portuguesa chega ao Brasil (1808 - 1821) escrito pela historiadora Lilia Schwarcz e pelo desenhista Spacca (Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007) Novamente tem-se um material convincente afinado em muitos sentidos com um conhecimento acadecircmico mas que ao recorrer agrave saacutetira tambeacutem evoca estereoacutetipos convencionais como por exemplo os mesmos acima mencionados em referecircncia a priacutencipe e princesa Poder-se-ia atribuir tal convencionalismo dentre outros fatores ao de que a primazia da linguagem visual aqui opera duplamente isto eacute com os quadrinhos e tambeacutem com o programa televisivo criado a partir deles amplificando assim os efeitos decorrentes da saturaccedilatildeo visual da sociedade que daacute origem e significado a esse material Para todos os efeitos a imposiccedilatildeo de tais convenccedilotildees eacute forte ateacute mesmo conforme jaacute visto em materiais menos visuais que este Episoacutedio 01 youtubecomwatchv= 9f5RB1zcD5Eamplist=PLyP1ks9vaqhj2y6MmckU DyuXtWmHgPLe5ampindex=1 331 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio episoacutedio 02 youtubecomwatchv= w-BLqvhYPGkamplist=PL5837763F26AB1B87

oferecidas pelos proacuteprios livros) mas de uma histoacuteria imoacutevel a ser captada de modo instantacircneo uma histoacuteria verdadeira Aleacutem do mais confundem-se os diferentes contextos motivaccedilotildees e condiccedilotildees de produccedilatildeo de tais imagens o que equivale agrave oferta de uma confusatildeo temporal que impossibi-lita a compreensatildeo dessa histoacuteria76

As uacutenicas exceccedilotildees satildeo os ceacutelebres quadros de Moreaux e de Pe-dro Ameacuterico Todos os livros didaacuteticos aqui considerados se esforccedilam por submetecirc-los a uma criacutetica muitas vezes comparativa considerando forma conteuacutedo e contexto mesmo assim eacute possiacutevel encontrar afirmaccedilotildees como a de que Ameacuterico teria tido ldquoo intuito de fazer a representaccedilatildeo desse famoso acontecimento da maneira mais fiel possiacutevelrdquo e que ldquomuitos dos elementos representados pelo pintor satildeo sabidamente falsosrdquo77 Provavel-mente satildeo resquiacutecios de um momento anterior no qual os livros didaacuteticos mostravam-se muito menos cuidadosos ateacute mesmo na utilizaccedilatildeo do quadro de Ameacuterico78 mas tambeacutem marcas atuais de uma sociedade de haacutebitos fortemente visuais cuja saturaccedilatildeo de imagens tende a resultar em posturas pouco criacuteticas em relaccedilatildeo ao que se vecirc bem como em indistinccedilatildeo tempo-ral das mesmas79 Haacute que se lembrar por fim e novamente que os textos desses livros satildeo cheios de descontinuidades como se cada pedaccedilo de cada paacutegina tivesse autonomia prescindindo de certo modo da leitura dos demais Guardaratildeo tais constataccedilotildees alguma relaccedilatildeo com as dificuldades apresentadas pelos entrevistados na sondagem de opiniatildeo de organizar visotildees da Histoacuteria da Independecircncia segundo marcos cronoloacutegicos bem como de distinguir diferenccedilas entre intervalos temporais Eacute bem possiacutevel sobretudo porque ela seraacute endossada pela observaccedilatildeo de outras fontes

5 - A Independecircncia na internet e na tevecircExiste farto e rico material audiovisual disponiacutevel na internet com referecircncias agrave Independecircncia do Brasil e que a exemplo dos livros didaacuteticos represen-tam a convergecircncia de esforccedilos profissionais muacuteltiplos (mais os programas de tevecirc do que os viacutedeos independentes) como pesquisadores roteiristas apresentadores repoacuterteres cenoacutegrafos teacutecnicos variados etc As fontes aqui delimitadas perfazem 107 viacutedeos acessiacuteveis no YouTube e que natildeo obstante sua ampliacutessima diversidade convergem em muitos significados

Observe-se o caso de viacutedeos educativos documentaacuterios e programas de televisatildeo com entrevistas e debates que em comum apresentam objetivos formativos e esforccedilos verdadeiros de incorporaccedilatildeo de conteuacutedos acadecircmicos traduzidos em linguagens didaacuteticas Um caso exemplar eacute a seacuterie 500 anos o Brasil - Impeacuterio na TV que conta uma histoacuteria do Brasil da chegada da Corte ao periacuteodo das regecircncias em formato de telejornal com trama romanceada e teatro de bonecos80 Aqui vecirc-se uma Histoacuteria processual com informa-ccedilotildees corretas e amparadas em datas deslocamentos frequentes dos eixos espaciais de observaccedilatildeo (regional internacional) com menccedilatildeo a persona-gens que extrapolam o tradicional ciacuterculo da Corte portuguesa81 e ecircnfase no caraacuteter violento e conflitivo da formaccedilatildeo do Brasil no seacuteculo XIX Mesmo um material histoacuterico-pedagoacutegico desse quilate evoca por exemplo a falta de atributos esteacuteticos de Carlota Joaquina ou a pusilanimidade de seu marido a revelarem mais uma vez o mercadologicamente eficiente componente bio-graacutefico-anedoacutetico no tratamento da Independecircncia advindo de sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria mais ampla82

Em outros casos o fato de programas de televisatildeo buscarem o auxiacutelio de especialistas na Independecircncia revela uma convenccedilatildeo formal como nos

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16566 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios episoacutedio 03 youtubecomwatchv=QvWSE-sF-w4amplist =PL5837763F26AB1B87 18406 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios episoacutedio 04 youtubecomwatchv= 2N5wBvpgyXEamplist=PL5837763F26AB1B87 12808 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 05 youtubecomwatchv=VaHrSAFBf1Uamplist =PL5837763F26AB1B87 14615 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 06 youtubecomwatchv= 8RrCMbOZTsAamplist=PL5837763F26AB1B87 12649 visualizaccedilotildees 10 comentaacuterios episoacutedio 07 youtubecomwatchv=I4cgWo_GHaQ 601 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 08 youtubecomwatchv=rI71YNrLo7o 12299 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 09 youtubecomwatchv=huv2ngnqUd4 367 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios episoacutedio 10 youtubecomwatchv=F2MaLs_kj-w 10842 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios episoacutedio 11 youtubecomwatchv=8zK3D01dXc0 9388 visualizaccedilotildees 05 comentaacuterios episoacutedio 12 youtubecomwatchv=R76BHD--vB8amplist=PL5837763F26AB1B87 12108 visualizaccedilotildees 9 comentaacuterios acessos em 03042014

83NAPOLITANO Marcos A Histoacuteria depois do

papel In Carla Pinsky (org) Fontes Histoacutericas Satildeo Paulo Contexto 2005 p250-252 Napolitano afirma com base em Umberto Eco que a televisatildeo introduziu uma mudanccedila de ritmo de vida familiar e cotidiana bem como o que se pode chamar de hipertrofia sensorial em detrimento da assimilaccedilatildeo conceitual Destaca ainda que eacute preciso pensar a televisatildeo como uma nova experiecircncia social do tempo histoacuterico na medida em que ela faz coincidir o verdadeiro o imaginaacuterio e o real no ponto indivisiacutevel do presente

84Produzida pela rede de emissoras puacuteblicas

TV Brasil Sobre a Revolta dos Alfaiates parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo 767 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=dj04LJJM8bk 2592 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio Sobre a Batalha do Jenipapo parte 1 youtubecomwatchv=zlgsZcj-V3o 2426 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios acesso em 24032013 parte 2 youtubecomwatchv=rAS3dHAvWPQ 1283 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio Sobre Tiradentes youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 408 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013)

85Marco Morel e Luiacutes Henrique Dias Tavares

86Programa De laacute pra caacute Revolta dos Alfaiates

parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo

87Exceccedilatildeo satildeo as entrevistas realizadas por

Mocircnica Teixeira na UnivespTV que estabelecem comunicaccedilatildeo bastante profiacutecua entre a entrevistadora e os acadecircmicos entrevistados (youtubecomwatchv=syXf3WHQRPM 4450 visualizaccedilotildees 06 comentaacuterios youtubecomwatchv=pZk5pFlboqw 3303 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=5pUDP2KUYCY 4128 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios

livros didaacuteticos e a exemplo destes a intenccedilatildeo de acolher uma multipli-cidade de vozes raramente enseja verdadeira pluralidade de pensamento o que ademais eacute dificultado pela natureza curta sinteacutetica e acelerada dos materiais televisivos Nessas situaccedilotildees constata-se que o historiador fala uma coisa mas o entrevistador e o produtor continuam a ldquoescutarrdquo outra o que muitas vezes reforccedila a percepccedilatildeo de descontinuidade narrativa an-teriormente tambeacutem diagnosticada nos livros didaacuteticos e que na televisatildeo adquire contornos de regra83 Os episoacutedios da seacuterie De laacute para caacute educati-vos didaacuteticos aacutevidos por com conhecimentos acadecircmicos e produzidos por uma rede puacuteblica de televisatildeo sem fins lucrativos apresentam interessante exemplo84 No programa dedicado aos acontecimentos de 1798 na Bahia dois historiadores profissionais85 esclarecem que os revoltosos ldquobahien-sesrdquo almejavam a independecircncia apenas da capitania da Bahia o que tem enormes implicaccedilotildees a destituiacuterem tais acontecimentos de qualquer atribu-to supostamente preparatoacuterio da Independecircncia do Brasil (situaccedilatildeo muito semelhante conforme vimos agrave da Inconfidecircncia Mineira) natildeo obstante na abertura do programa seu apresentador declara

A luta pela independecircncia do Brasil foi escrita nas paacuteginas memoraacuteveis da nossa histoacuteria com o sangue de um punhado de brasileiros O mais celebrado foi Tiradentes Mas sete anos depois do martiacuterio de Tiradentes quatro brasileiros pretos pobres pelos mesmos ideais foram enforcados e sentenciados em Salvador86

Em outros momentos o apresentador apesar de ouvir de forma soliacutecita e atenta ao que o entrevistado tem a dizer acaba por negar com sua proacutepria fala parte do conteuacutedo receacutem-ouvido mas sem demonstrar ser essa atitude premeditada ou consciente Afinal eacute difiacutecil desvencilhar-se daquilo que jaacute se ldquosaberdquo daquilo que adveacutem de um ambiente que o tempo todo nos ldquoensinardquo Histoacuteria sem necessariamente disso nos darmos conta87

A incapacidade de assimilaccedilatildeo reciacuteproca de ideias acerca da histoacute-ria entre agentes sociais diversos pode revelar-se de muitos modos Um dos programas da seacuterie Caminhos da Reportagem intitulado Caminhos da Independecircncia o grito nas ruas produzido com as mesmas caracteriacutesticas do anterior aborda a Independecircncia focada em seus panfletos poliacuteticos a partir da pesquisa recente de trecircs historiadores profissionais88 No entan-to e a despeito natildeo soacute de dar ampla voz a eles mas tambeacutem de abordar conteuacutedos didaticamente inovadores a equipe de entrevista que foi agraves ruas natildeo estabeleceu qualquer mediaccedilatildeo entre histoacuterias acadecircmicas e natildeo acadecircmicas pressupondo que todas as pessoas ocupam uma mesma posiccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria Por isso perguntas incompreensiacuteveis89 resultam apenas em situaccedilotildees vexatoacuterias impeditivas da construccedilatildeo de conhecimento sobre o tema

A abordagem de pessoas nas ruas recurso frequentemente utiliza-do por programas televisivos revela dados importantes acerca de como os brasileiros veem a Independecircncia muitas vezes mais por aquilo que eacute perguntado do que por aquilo que eacute respondido90 O programa + Estilo de 07 de setembro de 2011 produzido pela TV Campo Grande com conteuacutedo de variedades destinado a telespectadores de meio de tarde foi agraves ruas (provavelmente de Campo Grande Mato Grosso do Sul) perguntar se as pessoas saberiam dizer o que se comemorava naquele dia Primeiro res-ponde uma jovem com um bebecirc no colo

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youtubecomwatchv=0ZVgCwkt1ms 1384 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1016 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1227 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=ANSHAFLau04 1175 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios) Acessos em 21042014

88Joseacute Murilo de Carvalho Luacutecia Pereira das Neves

e Marcello Basile

89A apresentadora ldquoVocecircs sabem o que significa

corcundardquo Um professor de coleacutegio ldquoDeve ser alguma coisa que estaacute surgindo aiacute no mundo um pouco mais ciberneacutetico porque eu nem na faculdade ouvi falar dos corcundasrdquo Marcos Tomazzeti produtor multimiacutedia ldquoNa minha cabeccedila vem algo de monarquia de rei algo meio poliacuteticordquo Simone Granda bancaacuteria ldquoDicionaacuterio de corcundice Natildeo seirdquo Marilu Guimaratildees dona de casa ldquoPuxa tem tanta coisa importante pra ter dicionaacuterio vai ter justo do corcundistardquo Caminhos da Independecircncia youtubecomwatchv=37XH5UEpjlI acesso em 24032013

90Em perspectiva oposta mas complementar agrave da

sondagem de opiniatildeo aqui utilizada

91E que portanto muito provavelmente ainda natildeo

tinha tido contato formal (escolar) com o tema

92O programa prossegue entatildeo com uma entrevista

com o professor Ian Rari que trata de uma Histoacuteria da Independecircncia processual natildeo centrada em uma uacutenica data ou fato criacutetica etc Mais um momento onde as vaacuterias vozes contempladas pelo programa natildeo dialogam entre si (youtubecomwatchv=xv1LOlwUfFQ 289 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio) Outro exemplo significativo eacute dado pelo programa Conexatildeo Jovem exibido em 06 de setembro de 2012 no qual dois entrevistados ndash Prof Bira professor de Histoacuteria e Marcos Eduardo socioacutelogo ndash utilizam com competecircncia o pouco tempo a eles destinado discorrendo de modo criacutetico sobre a Independecircncia e em linguagem adequada ao puacuteblico jovem ao qual o programa se destina (produccedilatildeo da TV Novo Tempo adventista parte 1 youtubecomwatchv=1IvYOYtju9sgt 74 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=Ofv7QWOJpHo 47 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013) Logo o programa traz uma abordagem feita na rua na qual a entrevistadora pergunta a uma jovem ldquoQuem falou lsquoindependecircncia ou mortersquo agraves margens do riacho do Ipirangardquo Diante da correta resposta a entrevistadora tenta induzir um erro ldquo15 de novembro ou 7 de setembrordquo Aliaacutes a expectativa do programa parece revelada pela entrevistadora logo na primeira pergunta feita a um dos convidados ldquoseraacute que os jovens se interessam pela histoacuteria de seu paiacutesrdquo E embora o material recolhido pelo proacuteprio programa permita resposta afirmativa manteacutem-se a postura negativa preacute-concebida

93Daiacute a relevacircncia de um viacutedeo com fotografias e

um aacuteudio (youtubecomwatchv=UdQ_aAAl3DE)

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoE isso em que ano que foi que aconteceurdquoResposta ldquo1822rdquo

Em seguida outro jovem que provavelmente jaacute tinha respondido a outra pergunta

Pergunta ldquoQuem foi o imperador vocecirc lembrardquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoAcertou Canta pra gente um trecho do hino da independecircnciardquoResposta ldquoAgora natildeo lembrordquo

Agora o programa aborda uma menina de cerca de dez anos clara-mente intimada91

Pergunta Por que eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoNatildeo seirdquoPergunta ldquoNatildeo lembra Vou dar uma dica um fato histoacuterico muito importante para o BrasilrdquoResposta (negativa com a cabeccedila)

Em quarto lugar outra jovem que procura se afastar da cacircmera

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta (ainda tentando se esquivar sorrindo) ldquoNatildeordquoPergunta ldquoNatildeo saberdquoResposta ldquoAh A Independecircncia Eu natildeo prestei atenccedilatildeordquoPergunta Que ano aconteceu a Independecircncia vocecirc lembrardquoResposta ldquoNatildeordquoPergunta ldquoE quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoTambeacutem natildeo lembrordquo

Por fim a entrevista com um senhor de meia-idade comeccedila jaacute com uma resposta

Resposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoQue ano aconteceu issordquoResposta ldquo1888rdquoPergunta ldquo1822 Quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoCerto E onde foi que aconteceu tudo issordquoResposta ldquoSatildeo PaulordquoPergunta ldquoOK [breve silecircncio] Canta um trechinho para noacutes do hino da IndependecircnciardquoResposta ldquoJaacute podeis da paacutetria matildeerdquo [sic -prossegue cantando corretamente]

Em seguida o programa corta para uma sala de aula onde a despeito dos ldquoacertosrdquo obtidos nas ruas a entrevistadora afirma

Diante da dificuldade que noacutes encontramos no centro da cidade para saber informaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil eu vim parar na sala de aula Vai ser aqui que a gente vai descobrir a histoacuteria do paiacutes92

A ideia a priori de que o brasileiro natildeo conhece e natildeo se interessa pela histoacuteria subsidia este e muitos outros programas Aqui o dado mais relevante parece estar precisamente nessa arraigada crenccedila no desinteres-

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da entatildeo prefeita de Ribeiratildeo Preto (Satildeo Paulo) Darcy Vera que afirma durante um desfile de 7 de Setembro dentre vaacuterios desvarios que ldquoTiradentes gritou lsquoIndependecircncia ou mortersquordquo Com 169919 acessos e 149 comentaacuterios (em geral criacuteticos bem humorados e depreciativos) ateacute 20082014 condensa a possibilidade de amplificaccedilatildeo do estigma do natildeo domiacutenio de referecircncias convencionais agrave Independecircncia mas sem fomentar nenhum conhecimento da mesma

94Novamente surge a questatildeo natildeo teratildeo as

renovaccedilotildees curriculares promovidas no ensino de Histoacuteria (no Brasil e alhures) das uacuteltimas deacutecadas exagerado nessa incompatibilidade Teratildeo elas sido capazes de mensurar seus efeitos deleteacuterios diante de sociedades jaacute bastante refrataacuterias a uma histoacuteria cronoloacutegica

95ldquoPouco importa que sua figura tenha sido

mitificada pela propaganda republicana O que importa eacute que ele foi um heroacutei Ele deu sua vida pela paacutetria e pela liberdaderdquo (Programa De laacute pra caacute youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032013) Essa exaltaccedilatildeo da figura de Tiradentes associada agrave Independecircncia conduz o discurso da propaganda eleitoral de um candidato agrave prefeitura de Ouro Preto em 2012 (youtubecomwatchv=eGefgLoRhec 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032014) Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo no dia 09 de setembro de 2013 apoacutes se autocaracterizar como realizador de uma ldquohistoacuteria de carne e ossordquo em contraposiccedilatildeo a produccedilotildees ldquocontaminadas pela anaacutelise marxistardquo que retirariam os personagens da Histoacuteria o jornalista Laurentino Gomes afirma ldquoNo 1822 faccedilo uma comparaccedilatildeo e digo que o uacutenico problema do Joseacute Bonifaacutecio foi nascer no Brasil pois se ele tivesse nascido nos Estados Unidos teria sido maior que o Thomas Jefferson Porque aparentemente ele era mais preparado mais luacutecido que o Thomas Jeffersonrdquo (parte 1 youtubecomwatchv=uGibbLxsZK0 4501 visualizaccedilotildees e 5 comentaacuterios parte 2 youtubecomwatchv=2LQcEcb5kLU 2302 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios acesso em 26032014 Logo voltaremos agrave obra e agraves ideias de L Gomes

96Um exemplo adveacutem do viacutedeo ldquoA verdadeira

independecircncia do Brasilrdquo em que um pastor evangeacutelico em meio a uma cerimocircnia religiosa ldquodesconstroacuteirdquo o quadro de Pedro Ameacuterico acusando-o de pouco verossiacutemil e aponta os desvios morais de D Pedro I de modo a inviabilizaacute-lo como figura histoacuterica digna de memoacuteria (youtubecomwatchv=RsKQr6bgzLA 178 visualizaccedilotildees e 2 comentaacuterios acesso em 24032014) A suposta irrelevacircncia dos personagens envolvidos no processo da independecircncia eacute notaacutevel na fala de um professor de Ensino Meacutedio (youtubecomwatchv=gvWVF9j2KEU 597 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) e de um apresentador de temas religiosos que relativizam a importacircncia do tema ao afirmarem a atual ldquodependecircncia econocircmicardquo do Brasil (youtubecomwatchv=EXyUBY7StF4 383 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Tambeacutem retornaremos a esse tema

sedesconhecimento do brasileiro pela histoacuteria bem como em um de seus efeitos mais contundentes a crenccedila de que eacute possiacutevel reverter tal situaccedilatildeo pela simples mobilizaccedilatildeo formal de datas nomes e eventos Contudo se a Independecircncia se converte em uma catalizadora de referecircncias cronoloacute-gicas ou nominais isso natildeo leva necessariamente a uma historicizaccedilatildeo do tema pelo contraacuterio a mobilizaccedilatildeo de tais referecircncias em termos como os acima mencionados (a data ou o nome por si soacutes) pode resultar no apro-fundamento da tendecircncia agrave confusatildeo temporal jaacute aqui apontada93

Nos meios intelectuais a discussatildeo em torno das formas tempo-rais de vivecircncia coletiva naquilo que se pode chamar ndash recorrendo-se a uma categoria uacutetil ndash de modernidade natildeo eacute nova tampouco estaacute em vias de esgotamento A dificuldade de organizaccedilatildeo do mundo social segundo referecircncias cronoloacutegicas natildeo seraacute em absoluto distintiva de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil embora o contraacuterio deva ser dito em relaccedilatildeo agraves formas assumidas por tais dificuldades (como as noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia) Percebe-se entatildeo o peso do estigma da dificuldade em manejar datas nomes e fatos suposta prova de um desin-teresseignoracircncia que poderia ser combatido com um retorno a velhas formas de se fazer Histoacuteria e nas quais tais elementos eram considera-dos com a essecircncia da compreensatildeo histoacuterica Natildeo parece que as coisas devam propriamente se passar segundo essa representaccedilatildeo embora um dos confrontos existentes na cultura de histoacuteria no Brasil seja sem duacutevida a polarizaccedilatildeo entre a valorizaccedilatildeo da Independecircncia (= de suas datas nomes eventos siacutembolos e supostos valores etc) e a desvalorizaccedilatildeo da mesma (=seu caraacuteter elitista e negociador a diminuiccedilatildeo da histoacuteria do Brasil em comparaccedilatildeo com a de outros paiacuteses a comicidade dessa histoacuteria etc) Eacute plausiacutevel conceber que esta segunda posiccedilatildeo encontre um aliado na con-cepccedilatildeo de incompatibilidade entre uma histoacuteria amparada por referecircncias cronoloacutegicas e ao mesmo tempo em processos estruturas e temas trans-versais do gosto inclusive de muitos acadecircmicos e educadores94

Os exemplos de materiais audiovisuais a traduzirem veicularem e fomentarem esse confronto entre valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo da Inde-pendecircncia satildeo muitos Aleacutem dos jaacute tratados ateacute aqui pode-se mencionar viacutedeos contendo propaganda de instituiccedilotildees puacuteblicas civis e militares de partidos poliacuteticos de grupos maccedilocircnicos de igrejas e de empresas variadas bem como produccedilotildees independentes Neles eacute possiacutevel encontrar desde a exaltaccedilatildeo das referecircncias mais convencionais agrave Independecircncia como a seus personagens (incluindo seu suposto maacutertir Tiradentes)95 ateacute a afirma-ccedilatildeo de sua total irrelevacircncia96 isso costuma ocorrer sem muitos matizes obedecendo a uma loacutegica dicotocircmica plasmada em linguagens simples com descontinuidades discursivas e imageacuteticas e num ritmo de exposiccedilatildeo acelerado Em suma tratam da Independecircncia segundo padrotildees parcial-mente compartilhados tambeacutem por outras fontes ateacute aqui analisadas

Todas essas fontes com suas noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia satildeo sintomaacuteticas de estados de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema bem como potenciais formadores de opiniatildeo dos mesmos Sua capacidade de criaccedilatildeo de conhecimento no entanto se mostra muito limi-tada Eacute bem verdade que esta eacute por vocaccedilatildeo uma tarefa confiada a saberes acadecircmicos ndash jaacute que no Brasil a quase totalidade da pesquisa em Histoacuteria estaacute entregue agraves universidades salvo a de interesse corporativo ndash de modo que natildeo seria de esperar inovaccedilatildeo em suportes tatildeo variados e socialmen-te diversificados quanto os ateacute aqui analisados Mas parece haver aiacute certo

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ciacuterculo vicioso a envolver tambeacutem parte da academia Basta observar que a ideia da ldquonatildeo Independecircncia de fatordquo tatildeo em voga entre tantos historiadores durante tanto tempo reverbera com forccedila na sociedade em geral97 e ainda goza de prestiacutegio ateacute mesmo entre alguns acadecircmicos que bebem-na da sociedade e apoacutes modificaacute-la parcialmente devolvem-na aos espaccedilos de di-vulgaccedilatildeo98 Essa versatildeo da Histoacuteria eacute capaz de transpor fronteiras temporais de atualizar-se em diferentes contextos e ateacute mesmo de superar abissais diferenccedilas poliacuteticas ela estaacute representada por exemplo e de modo quase idecircntico na propaganda poliacutetica de um partido trotskista e na pregaccedilatildeo nacionalista-direitista de um polecircmico professor de histoacuteria99

Por fim tome-se o caso de trecircs produccedilotildees da Rede Globo de Televi-satildeo voltadas ao puacuteblico em geral com consideraacuteveis aportes financeiros e complexa produccedilatildeo a seacuterie documental A Corte no Brasil para exibiccedilatildeo em tevecirc fechada100 e as seacuteries humoriacutesticas O Quinto dos Infernos101 e Eacute muita Histoacuteria Dia de Fuacuteria102 veiculadas amplamente em tevecirc aberta No pri-meiro caso siacutetios histoacutericos visitados pelas apresentadoras uma narrativa soacutebria e informativa de fatos e processos grande quantidade de entrevistas com historiadores ecircnfase em diferentes espaccedilos regionais e internacio-nais e tratamento do tema em muacuteltiplas dimensotildees (poliacutetica econocircmica cultural) No segundo caso uma narrativa romanceada teatral e cocircmica fortemente despolitizada e livremente baseada em trecircs livros de igual teor (um deles publicado haacute quase um seacuteculo)103 praticamente centrada no Rio de Janeiro (um pouco tambeacutem em Portugal muito menos alhures) e nos membros da famiacutelia real portuguesa cuja vida pessoal eacute estruturada em torno de seus haacutebitos excecircntricos (principalmente os sexuais) e vez ou outra de passageiros dramas pessoais104

Finalmente no terceiro caso uma encenaccedilatildeo tambeacutem cocircmica pro-tagonizada por um escritor-autor-ator-palhaccedilo com grande liberdade de criaccedilatildeo mas amparada em informaccedilotildees convenccedilotildees e mitos a oferecer uma versatildeo do Sete de Setembro segundo o estado psico-fisioloacutegico de D Pedro

Eis um exemplo de uma das modalidades assumidas pela disputa em torno de uma Independecircncia valorizada e outra depreciada Pareceria justificaacutevel opor a tal diagnoacutestico a constataccedilatildeo de se tratarem de obras televisivas de distinto teor o que desobriga a segunda e a terceira de qual-quer compromisso com a verdade No entanto interessam-nos mais seus significados e efeitos do que intenccedilotildees Note-se que a primeira documen-tal eacute de circulaccedilatildeo mais restrita que a segunda e a terceira voltadas para grande puacuteblico por isso seus efeitos nesse jogo de criaccedilatildeorecriaccedilatildeo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da Independecircncia satildeo natildeo apenas assimeacutetricos mas tambeacutem concorrentes105 Os esforccedilos de um pro-grama por posicionar o espectador diante de uma histoacuteria processual de encadeamentos temporais e de grupos e conflitos sociais satildeo naturalmente obstados pelos dos outros dois a oferecer uma histoacuteria repleta de anacro-nismos anedoacutetica e biograacutefica em perfeita sintonia com demandas mais amplas de uma sociedade ndash e de alguns de seus componentes mercadoloacutegi-cos jaacute aqui mencionados ndash na qual a vida privada eacute mais valorizada do que a puacuteblica106 Nesse confronto embora as trecircs convivam na mesma cultura de histoacuteria uma Independecircncia tende a prevalecer sobre a outra107

6 ndash A Independecircncia no cinemaEm relaccedilatildeo a livros didaacuteticos programas de televisatildeo e outros materiais audiovisuais as fontes cinematograacuteficas aqui consideradas naturalmente

97Exemplo encontra-se no viacutedeo ldquoAway Nilzer ndash

Independecircncia do Brasilrdquo com grande nuacutemero de visualizaccedilotildees (130677) e de comentaacuterios (1016) que minimiza e ridiculariza natildeo apenas o processo da independecircncia como quaisquer fatos histoacutericos brasileiros de maneira geral (youtubecomwatchv=Vd_kloNeQV0) O Brasil atual como viacutetima de uma exploraccedilatildeo econocircmica mais intensa do que nos tempos coloniais e portanto natildeo-independente aparece na fala de outro professor (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2806 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) e nos comentaacuterios de um boneco marionete de um programa infantil (youtubecomwatchv=9mh3Tu6c4_w 173 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032014)

98Exemplo desse processo de ldquodevoluccedilatildeordquo pode ser

comprovado no viacutedeo ldquoIndependecircncia ou morterdquo (youtubecomwatchv=QUvnz1no1m8 934 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Outros dois exemplos pertinentes satildeo a insistecircncia nas ideias de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil e que a Independecircncia foi uma luta entre brasileiros e portugueses

99Em entrevista a uma rede local de televisatildeo

ouvimos do professor de histoacuteria do Ensino Meacutedio Wander Pugliesi ldquoSe noacutes formos trabalhar com sinceridade o Brasil ainda natildeo eacute independente Na verdade somos muito mais explorados do que quando eacuteramos colocircnia de Portugalrdquo (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2815 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) A mesma relativizaccedilatildeo do processo de independecircncia aparece na fala do candidato agrave presidecircncia em 2010 pelo PSTU Zeacute Maria ldquohoje infelizmente natildeo podemos comemorar uma verdadeira independecircncia do paiacutes Eacute preciso dizer a verdade as multinacionais controlam a economia brasileira As decisotildees fundamentais satildeo tomadas por elas fora do paiacutesrdquo (youtubecomwatchv=ht9Yt0PlGnU 1803 visualizaccedilotildees um comentaacuterio) Acessos em 26032013

100Direccedilatildeo de Carlos Henrique Schroder 2008

Produccedilatildeo de 16 episoacutedios de cerca de 20 minutos cada para o canal da TV fechada GloboNews A seacuterie foi comercializada em DVD e pode ser vista tambeacutem no canal Globosat no Youtube (youtubecomwatchfeature= player_detailpageampv= OUX-zSyaMIc e viacutedeos relacionados Acesso em 27032014)

101Direccedilatildeo de Wolf Maya e Alexandre Avancini e

criaccedilatildeo de Carlos Lombardi 2002 Produccedilatildeo de 48 episoacutedios com cerca de 40 minutos cada para o canal da TV aberta Rede Globo de Televisatildeo A minisseacuterie tambeacutem foi comercializada em DVD e vem sendo (desde janeiro de 2014) reprisada no Canal Viva (rede fechada de televisatildeo filiada Globosat) uma reprise anterior ocorreu de agosto a novembro de 2011 sempre por volta das 23h

102Direccedilatildeo de Joatildeo Carrascosa e Pedro Bial 2007

Produccedilatildeo de 9 capiacutetulos de cerca de 15 minutos

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apresentam especificidades Tendem a diversificar (eventualmente ampliar) o rol de profissionais envolvidos em sua produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo bem como a tratar conteuacutedos em um tempo mais lento criando uma sensaccedilatildeo de homogeneidade de significados reforccedilada pela aderecircncia de tais conteuacutedos a uma trama central Tal homogeneidade por seu turno eacute relativizada por uma liberdade de criaccedilatildeo que dificilmente encontra paralelo em outros dos materiais aqui considerados ndash com a possiacutevel exceccedilatildeo da minisseacuterie O Quinto dos Infernos No entanto quando a comparaccedilatildeo eacute feita com os li-vros didaacuteticos os conteuacutedos relativos agrave Independecircncia no cinema tendem a ser menos numerosos mais superficiais e efecircmeros justamente por serem menos assumidamente informativos do que os dos livros embora isso possa encontrar alguma compensaccedilatildeo em uma linguagem visual de forte apelo emotivo Para todos os efeitos como aponta um estudioso da mateacuteria os filmes de temaacutetica histoacuterica carregam sempre certa ambiguidade ocupam uma espeacutecie de ldquoentrelugarrdquo com forccedila para criar ldquoverdadesrdquo socialmente aceitas108 Nos cinco filmes aqui considerados109 as ldquoverdadesrdquo sobre a Independecircncia tendem a replicar linhas de forccedila jaacute conhecidas mesclando temporalidades correspondentes tanto aos momentos em que foram pro-duzidos quanto aos momentos posteriores em que foram sendo exibidos110

Independecircncia ou Morte produccedilatildeo a serviccedilo das comemoraccedilotildees oficiais do sesquicentenaacuterio da Independecircncia levadas a cabo pelo go-verno ditatorial brasileiro em 1972 mostra uma narrativa de forte teor didaacutetico-pedagoacutegico sem grandes pretensotildees artiacutesticas expliacutecitas111 com diaacutelogos e situaccedilotildees muitas vezes retirados de obras sobre a Independecircncia e tratados de forma literal Sua finalidade eacute clara ldquoensinarrdquo aos especta-dores uma histoacuteria e uma memoacuteria coletivas homogecircneas aplainadas de pluralidades ou de desavenccedilas Uma histoacuteria supostamente indiscutiacutevel porque verdadeira posta a serviccedilo dos tambeacutem supostos interesses mais elevados da naccedilatildeo brasileira (por isso nela a vida privada dos persona-gens eacute toda submetida agrave sua funccedilatildeo poliacutetica inclusive no caso da relaccedilatildeo afetiva entre um D Pedro de boa aparecircncia querido do povo e mulherengo e uma ambiciosa romacircntica e sensiacutevel Domitila112) Uma espeacutecie de cartilha oficial da Independecircncia em imagens na qual se faz presente ateacute mesmo uma recomposiccedilatildeo cecircnica do quadro de Pedro Ameacuterico

Eacute interessante observar como Os Inconfidentes produzido no mesmo ano de 1972 mesmo sendo um filme amparado em abundantes liberdades e experimentos esteacuteticos cheio de ambiguidades propositais e contra-pondo-se ao oficialismo histoacuterico tatildeo em voga agrave eacutepoca por meio de uma metaacutefora na qual os contestadores agrave ditadura brasileira se convertem em sediciosos das Minas Gerais do seacuteculo XVIII natildeo se configura como mate-rial singular e discrepante de Independecircncia ou Morte em pelo menos trecircs sentidos primeiro porque em vaacuterios momentos associa a Inconfidecircncia Mi-neira com a Independecircncia do Brasil a exemplo do que Independecircncia ou Morte prega jaacute em seu primeiro texto didaacutetico113 Segundo porque tambeacutem oficializa eventos convencionalmente tidos por fundacionais da histoacuteria do Brasil (soacute que natildeo os de 1808-1822 mas os de 1788-1789) Terceiro reforccedila a prevalecircncia de indiviacuteduos sobre coletividades da imagem de um heroacutei central da trama e de uma oposiccedilatildeo de interesses maniqueiacutesta que certamente poderia se aplicar com mais rigor ao contexto em que foi feito o filme do que agravequele ao qual formalmente se refere Assim para todos os efeitos substratos de uma concepccedilatildeo de histoacuteria satildeo em ambos convergentes Em um ambiente social multifacetado em termos de no-

cada dentro do programa dominical Fantaacutestico da Rede Globo de Televisatildeo A seacuterie foi baseada no livro Brasil uma Histoacuteria de Eduardo Bueno jornalista que tambeacutem atua na seacuterie (youtubecomwatchv=3LzGKt9Pd0M acesso em 27032014)

103SETUacuteBAL Paulo As Maluquices do Imperador

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1927 CALADO Ivanir A Imperatriz no Fim do Mundo memoacuterias duacutebias de Ameacutelia de Leichtenberg Rio de Janeiro Rio Fundo Editora 1992 e TORERO Joseacute Roberto Galantes memoacuterias e admiraacuteveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes o Chalaccedila Satildeo Paulo Companhia das Letras 1994

104A trama e a narrativa do Quinto dos Infernos

recusam explicitamente a inserccedilatildeo de quaisquer componentes que natildeo os da ordem privada de seus convencionais personagens assim questotildees poliacuteticas satildeo sempre menores do que o apetite sexual de Carlota Joaquina as perversotildees de D Miguel ou a fogosidade de Domitila a economia soacute surge em pontuais pretextos cocircmicos enquanto a escravidatildeo eacute referida exclusivamente por meio de alegres e libidinosas criadas (negras) permanentemente dispostas a servirem aos desejos do heroacutei da histoacuteria D Pedro

105A anaacutelise poderia se completar com a minisseacuterie

A Marquesa de Santos dirigida por Ary Coslov e exibida pela extinta Rede Manchete de televisatildeo em 1984 agrave qual infelizmente natildeo se obteve acesso satisfatoacuterio

106Tal predileccedilatildeo pode ser entendida como mais

um fator caracteriacutestico de um momento em que a articulaccedilatildeo entre aquilo que Guy Debord chamaria de ldquosociedade do espetaacuteculordquo e Adorno e Horkheimer (dentre muitos outros) de ldquoinduacutestria culturalrdquo torna sintomaacutetico a saliecircncia do indiviacuteduo e o esvaziamento da esfera puacuteblica

107A comprovaccedilatildeo do encontro concorrente entre

dois caminhos vem do depoimento de alguns dos proacuteprios envolvidos com a produccedilatildeo do Quinto dos Infernos como o diretor Carlos Lombardi que a ele se refere como ldquoum painel dos personagens importantes do periacuteodordquo Para o produtor Wolf Maia seu objetivo foi ldquorecontar com humor uma velha histoacuteriardquo O ator Humberto Martins viu a seacuterie ldquocontar um pedaccedilo da nossa histoacuteria da histoacuteria do Brasil do nosso povo das nossas raiacutezes pateacutetica e engraccedilada tal como ela se mostra dentro desse produto poreacutem claro mesclada com uma boa dose de humorrdquo enquanto o protagonista Marcos Pasquim afirmou que ldquo[ao fazecirc-la] aprendi muita coisa que natildeo aprendi na escola eu vim aprender agora fazendo a pesquisa para fazer esse personagemrdquo Finalmente para a tambeacutem atriz Bruna Lombardi ldquoO lsquoQuintorsquo contou assim a histoacuteria que a Histoacuteria natildeo conta sabe como eacute as fraquezas da histoacuteriardquo Em ldquoDia de Fuacuteriardquo Pedro Bial e Eduardo Bueno reforccedilam seu discurso satiacuterico por meio de um verniz de verdade trazido pela citaccedilatildeo de documentos oficiais como o relato do Padre Belchior sobre o grito do Ipiranga Aleacutem disso seu discurso eacute elaborado sob o nome de tese logo bem se vecirc como seus propaladores (BialBueno) manipulam siacutembolos

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ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

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Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

29Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

30Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

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138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

32Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

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por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

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muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

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Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 6: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

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tua em um universo numeacuterico bastante pequeno diante da totalidade da populaccedilatildeo brasileira a partir de 15 anos (144814538 indiviacuteduos de acordo com o censo do IBGE de 201023) meacutetodos especiacuteficos que subsidiaram a concepccedilatildeo e aplicaccedilatildeo dessa sondagem permitiram o alcance de resultados relevantes como se veraacute adiante24 A utilizaccedilatildeo de tal abordagem em estu-dos de Histoacuteria eacute pouco frequente mas natildeo ineacutedita Deve-se aqui mencionar dois estudos importantes e parcialmente convergentes com os propoacutesitos desta pesquisa o de Isabela Cosse e Vania Markarian sobre a consciecircncia histoacuterica nacional no Uruguai publicado em 1994 e o coordenado por Joseacute Machado Pais sobre a consciecircncia histoacuterica dos jovens portugueses nos contextos europeu e israelensepalestino de 199925 Ambos satildeo excelen-tes demonstraccedilotildees dos potenciais oferecidos por esse tipo de abordagem e forneceram norte e estiacutemulo a esta pesquisa mas dela diferem em trecircs pontos fundamentais sua circunscriccedilatildeo nacionalcontinental26 os contextos histoacutericos de sua elaboraccedilatildeo e a abordagem realizada em torno de temas de histoacuteria em geral pressupondo que os entrevistados possuiriam posiccedilotildees ativas em torno do passado Assim abordam formas de consciecircncia histoacuteri-ca mas natildeo a ampliam em direccedilatildeo a uma cultura de histoacuteria

A sondagem de opiniatildeo eacute aqui central mas natildeo exclusiva tendo sido seus resultados cotejados com os extraiacutedos da anaacutelise de um conjunto de fontes complementares Em primeiro lugar livros didaacuteticos de Ensino Meacute-dio utilizados por professores e alunos em 2013 nos quais foram buscados especificamente toacutepicos relativos agrave Independecircncia do Brasil Esse conjunto de fontes perfaz 19 tiacutetulos que foram avaliados e aprovados pelo Governo Federal brasileiro no Programa Nacional do Livro Didaacutetico em 2012 cujos cerca de 7 milhotildees e 500 mil exemplares foram distribuiacutedos a algo como 18 mil escolas puacuteblicas de todo o paiacutes aleacutem de serem utilizados tambeacutem em es-colas privadas27 completaram a anaacutelise dados obtidos por uma estudiosa de livros didaacuteticos de Ensino Fundamental tambeacutem recomendados pelo governo em 1998 e que analisou 12 tiacutetulos28 Em segundo lugar viacutedeos disponiacuteveis no YouTube e portadores de conteuacutedos relativos agrave Independecircncia Aqui depa-rou-se com material muito variado distribuiacutedo em 107 viacutedeos que perfazem um riquiacutessimo conjunto dada sua grande diversidade morfoloacutegica e de con-teuacutedo (seriados educativos entrevistas programas jornaliacutesticos propagandas de partidos poliacuteticos ou de outras associaccedilotildees trailers de filmes programas voltados para puacuteblico jovem produccedilotildees independentes etc) e tambeacutem pelas possibilidades de mensuraccedilatildeo parcial de seu alcance via o nuacutemero de visualizaccedilotildees indicadas pelo siacutetio e de anaacutelise dos respectivos ldquocomentaacuteriosrdquo tambeacutem laacute disponiacuteveis Em terceiro lugar obras televisivas e cinematograacutefi-cas relacionadas com a Independecircncia do Brasil Aqui foram analisadas trecircs seacuteries televisivas e cinco longas-metragens todos tambeacutem disponiacuteveis no YouTube com os mesmos dados complementares acima apontados Em quar-to lugar livros de divulgaccedilatildeo acadecircmica ou jornaliacutestica romances histoacutericos comics livros paradidaacuteticos e outras obras de difiacutecil definiccedilatildeo a possuiacuterem em comum abordagens da histoacuteria da Independecircncia apresentadas em linguagem natildeo acadecircmica destinadas a um puacuteblico potencialmente amplo e diversificado natildeo restrito portanto a estudantes e professores de Histoacuteria29 Em meio a esse conjunto foram selecionados 19 livros Finalmente em quin-to lugar foram analisados artigos sobre a Independecircncia publicados em cinco magazines de Histoacuteria vendidos em bancas de jornal e livrarias e que visam divulgar saberes especializados para um puacuteblico mais aleacutem do frequentador de cursos universitaacuterios de Histoacuteria

23Sendo a populaccedilatildeo total 190732694 de

acordo com o Censo Demograacutefico 2010 do IBGE Disponiacutevel em ibgegovbrhomeestatisticapopulacaocenso2010defaultshtm Acesso em 01042014

24A realizaccedilatildeo da mesma assim como a

interpretaccedilatildeo de seus dados teve em conta premissas metodoloacutegicas gerais estabelecidas por Patrick Champagne CHAMPAGNE Patrick Formar a opiniatildeo o novo jogo poliacutetico Petroacutepolis Vozes 1998 ZALLER John R The Nature and Origins of Mass Opnion Cambridge Cambridge University Press 1992 WILHOIT Cleveland e WEAVER David H Neswroom Guide to Polls amp Surveys Bloomington and Indianapolis Indiana University Press 1990 e MONZOacuteN ARRIBAS Caacutendido La opinioacuten puacuteblica teoriacuteas conceptos y meacutetodos Madri Tecnos 1987

25COSSE Isabela e MARKARIAN Vania Memorias

de la historia una aproximacioacuten al estudio de la consciencia histoacuterica nacional Montevideacuteu Trilce 1994 PAIS Joseacute Machado Consciecircncia histoacuterica e identidade os jovens portugueses num contexto europeu Oeiras CeltaSecretaria de Estado da Juventude 1999 Este uacuteltimo inclui vaacuterios dos resultados obtidos pelo inqueacuterito geral europeu realizado com jovens e professores de Histoacuteria de 26 paiacuteses do continente mais Israel ldquoIsrael Aacuteraberdquo e ldquoPalestinardquo

26Seria importante considerar ainda atitudes

de pessoas em relaccedilatildeo a lugares de memoacuteria especificamente ligados agrave Independecircncia do Brasil dentro das cidades existentes aliaacutes em praticamente todo e qualquer centro urbano do paiacutes No caso de Satildeo Paulo tal desafio pode encontrar estimulante ponto de partida em duas pesquisas OLIVEIRA Cecilia Helena de Salles Museu Paulista espaccedilo de evocaccedilatildeo do passado e reflexatildeo sobre a histoacuteria Anais do Museu Paulista Satildeo Paulo Nova Seacuterie v1011 20022003 p105-126 e ALMEIDA Adriana Mortara Os visitantes do Museu Paulista um estudo comparativo com os visitantes da Pinacoteca do Estado e do Museu de Zoologia Anais do Museu Paulista Satildeo Paulo Nova Seacuterie v12 2004 p269-306

27O PNLD tem como objetivo central ldquosubsidiar

o trabalho pedagoacutegico dos professores por meio da distribuiccedilatildeo de coleccedilotildees de livros didaacuteticos aos alunos da educaccedilatildeo baacutesica Apoacutes a avaliaccedilatildeo das obras o Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) publica o Guia de Livros Didaacuteticos com resenhas das coleccedilotildees consideradas aprovadas O guia eacute encaminhado agraves escolas que escolhem entre os tiacutetulos disponiacuteveis aqueles que melhor atendem ao seu projeto poliacutetico pedagoacutegicordquo (portalmecgovbrindexphpItemid=668id=12391option=com_contentview=article) A avaliaccedilatildeo e seleccedilatildeo dos tiacutetulos aprovados pelo programa coube agrave Secretaria de Educaccedilatildeo Baacutesica (SEB) do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo sendo a equipe avaliadora formada por professores de vaacuterias universidades puacuteblicas Guia de livros didaacuteticos PNLD 2012 Histoacuteria Brasiacutelia Ministeacuterio da Educaccedilatildeo Secretaria de Educaccedilatildeo Baacutesica 2011

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Bem se vecirc que tais fontes complementares extrapolam o acircmbito espa-cial parcialmente circunscrito da sondagem de opiniatildeo aleacutem de permitirem a consideraccedilatildeo de uma grande pluralidade de vozes de agentes sociais ndash inclu-sive mas natildeo preferencialmente os historiadores acadecircmicos ndash responsaacuteveis pela inexistecircncia de um monopoacutelio profissional na reproduccedilatildeo divulgaccedilatildeo e eventual produccedilatildeo de conhecimentos acerca da Independecircncia do Brasil A exemplo dos procedimentos adotados para a realizaccedilatildeo da sondagem de opi-niatildeo tambeacutem a utilizaccedilatildeo de tais fontes partiu de uma amostragem jaacute que nenhum de seus conjuntos corresponde agrave totalidade de materiais disponiacuteveis No entanto acredita-se que a somatoacuteria dessas amostragens seja satisfatoacuteria para a persecuccedilatildeo dos objetivos aqui propostos

Como tratar metodologicamente fontes tatildeo diferentes entre si e como fazecirc-las convergirem para um mesmo fim Os conteuacutedos extraiacutedos da sondagem de opiniatildeo merecem tratamento algo peculiar jaacute que tendo permanecido ineacuteditos ateacute o momento natildeo podem ser considerados como elementos capazes de agir naquela mesma realidade que os informou soacute podem ser vistos como traduccedilatildeo (indireta matizada) de uma realidade por eles denunciada Jaacute as demais fontes satildeo consideradas de ambos os modos como instrumentos de reconfiguraccedilatildeo da realidade em termos de poten-ciais formadoras de opiniatildeo dos brasileiros acerca da Independecircncia mas tambeacutem como sintomaacuteticas de um estado de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema Portadoras de indiacutecios de uma cultura de histoacuteria que elas criam e recriam e protagonistas ativos dessa mesma cultura30 O que natildeo quer dizer de modo algum que a todos os suportes materiais aqui consi-derados como fontes primaacuterias possa ser atribuiacutedo um caraacuteter de inovaccedilatildeo em seus tratamentos dos conteuacutedos relativos agrave Independecircncia do Brasil (se assim o fosse os historiadores profissionais da Independecircncia teriam muitos motivos para comemorar o fato de que os demais agentes sociais natildeo apenas estariam dispostos a ouvi-los como aptos a compreendecirc-los E se assim o fosse estariacuteamos frente a uma cultura histoacuterica muito mais dinacircmica e instaacutevel do que ela parece ser)

Para aferir ateacute que ponto um livro uma revista um filme ou um viacute-deo contribuem mais para a criaccedilatildeo ou para a recriaccedilatildeo (pois natildeo haacute aqui estrito senso simples reproduccedilatildeo) de conteuacutedos a metodologia adotada abordou tais suportes materiais por meio de cinco perguntas baacutesicas Seu tratamento da Independecircncia tende a uma Histoacuteria 1) Factual eou biograacute-fica ou a uma histoacuteria processual 2) Que respeita historicidades e orde-namentos cronoloacutegicos e temporais ou que tende a dar pouca importacircncia a tais elementos (neste caso de que modos o faz) 3) Centrada em uma uacutenica regiatildeo (qual) ou em vaacuterias ao mesmo tempo e inclusive a outras partes do mundo da eacutepoca (quais) 4) Que dialoga (de que modos) com a produccedilatildeo acadecircmica (qual de quando) ou que busca outros referenciais no universo natildeo especializado 5) De ecircnfase anedoacutetica laudatoacuteria soacutebria positiva ou negativa As respostas a tais perguntas nem sempre bem claras e definidas foram buscadas a partir tambeacutem de substratos metodo-loacutegicos especiacuteficos para cada tipo de fonte e chegaram a envolver parcial-mente tambeacutem a sondagem de opiniatildeo

3 - A sondagem de opiniatildeo A Independecircncia nas ruasA sondagem de opiniatildeo partiu da aplicaccedilatildeo de um questionaacuterio que mes-clou respostas dirigidas e objetivas com respostas abertas e subjetivas sen-do dividido em trecircs partes correspondentes a trecircs perfis a serem extraiacutedos

28PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit

29Tal tipo de fonte eacute o que melhor permite uma

anaacutelise de mais largo escopo temporal do que o aqui contemplado Uma excelente reuniatildeo preliminar de material encontra-se em CALMON Pedro Histoacuteria do Brasil na poesia do povo Nova ediccedilatildeo aumentada Rio de Janeiro Bloch 1973 Para noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia na literatura e na dramaturgia portuguesa vaacuterios apontamentos em OLIVEIRA Paulo da Motta (org) Op Cit

30Muitas jaacute vecircm sendo analisadas separadamente

de acordo com uma tendecircncia apontada acima Para os livros didaacuteticos a produccedilatildeo eacute imensa e inclui trabalhos importantes como os de BITTENCOURT Circe Fernandes Livro didaacutetico e conhecimento histoacuterico uma histoacuteria do saber escolar 1993 Tese (Doutorado em Histoacuteria Social) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1993 MUNAKATA Kazumi Produzindo livros didaacuteticos e paradidaacuteticos Tese 1997 (Doutorado em Histoacuteria e Filosofia da Educaccedilatildeo) Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1997 DIEHL Astor Antocircnio (org) O livro didaacutetico e o curriacuteculo de histoacuteria em transiccedilatildeo Passo Fundo EDIUPF 1999 e CARDOSO Oldimar Pontes A didaacutetica da histoacuteria e o slogan da formaccedilatildeo de cidadatildeos 2007 Tese (Doutorado em Educaccedilatildeo) Faculdade de Educaccedilatildeo Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2007 Sobre cinema e histoacuteria dentre outros FONSECA Vitoacuteria Azevedo da Histoacuteria imaginada no cinema anaacutelise de Carlota Joaquina princesa do Brazil e Independecircncia ou morte 2002 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria Cultural) Universidade Estadual de Campinas Campinas 2002

31Esse eacute o perfil mostrado pelo censo do IBGE de

2010 com algumas poucas exceccedilotildees no caso da amostragem a uacutenica importante se observa com a faixa etaacuteria de 25 a 29 anos (14) mais numerosa do que a anterior entre 20 e 24 anos (8) sendo que a porcentagem da populaccedilatildeo brasileira em tais faixas etaacuterias eacute praticamente a mesma (respectivamente 8 e 9) De resto foi possiacutevel estabelecer nesse quesito uma satisfatoacuteria correlaccedilatildeo com o perfil brasileiro a amostragem abordou indiviacuteduos a partir de 15 anos sendo que dos 14 grupos de cinco anos obtidos (o uacuteltimo corresponde a 80 anos ou mais) quatro apresentaram perfeita correspondecircncia percentual com os dados nacionais oito uma diferenccedila de no maacuteximo 2 e apenas dois forte discrepacircncia

32Para se atingir perfis ocupacionais desejados

algumas entrevistas foram realizadas na regiatildeo do Grande ABC e no interior do estado de Satildeo Paulo

33Dados do uacuteltimo Censo do IBGE (2010)

disponiacutevel em censo2010ibgegovbramostra Acesso em 01042014

34O censo do IBGE de 2010 indicou a porcentagem

de 76 para desocupados considerando o total da populaccedilatildeo maior de 10 anos Para o estado

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do entrevistado um soacutecio-econocircmico-escolar um cultural e um relativo agrave sua relaccedilatildeo com a Histoacuteria em especial a da Independecircncia

A obtenccedilatildeo do primeiro perfil se fez segundo gecircnero faixa etaacuteria (em grupos de cinco anos a partir de 15 anos de idade) local de nasci-mento (segundo regiotildees do Brasil e cidade) ocupaccedilatildeo profissional renda familiar (em valores ou quantidade de salaacuterios miacutenimos isto eacute R$ 62000) e instruccedilatildeo formal (por niacuteveis e se realizada em escolas puacuteblicas eou pri-vadas cidade e instituiccedilatildeo) Com isso buscou-se aproximar o universo da amostragem ndash 311 indiviacuteduos ndash do perfil geral do paiacutes quando isso natildeo foi possiacutevel a aproximaccedilatildeo se deu com o Estado e com a cidade de Satildeo Paulo

No quesito gecircnero foram entrevistadas 52 de mulheres e 48 de homens (um dos entrevistados natildeo quis declarar seu gecircnero) estabelecen-do-se uma perfeita correlaccedilatildeo de porcentagem com o mostrado pelo censo populacional do IBGE de 2010 seja em termos nacionais ou estaduais de Satildeo Paulo Jaacute a constituiccedilatildeo da faixa etaacuteria dos entrevistados buscou um modelo de ldquopiracircmiderdquo isto eacute com um nuacutemero de mais jovens sempre mais elevado do que o de mais idosos31 No entanto aqui a amostragem privile-giou mais jovens entre 15 e 19 anos (21) do que a realidade populacional brasileira (8) e mais adultos entre 25 e 29 anos

No tocante ao local de nascimento a amostragem natildeo pocircde se valer de dados do IBGE Desse modo buscou-se uma aproximaccedilatildeo estatiacutestica com a cidade de Satildeo Paulo local onde 97 das entrevistas foram reali-zadas32 Os nascidos na regiatildeo sudeste perfizeram 73 das abordagens sendo 67 naturais do estado de Satildeo Paulo (dados do IBGE mostram 77 de habitantes da cidade nascidos no estado sendo 69 do total na cida-de)33 A realizaccedilatildeo da amostragem procurou uma compensaccedilatildeo para essa hipertrofia de perfil (do nacional ao regional) por meio da diversificaccedilatildeo de unidades da federaccedilatildeo para os 23 de habitantes do estado de Satildeo Paulo que natildeo nasceram nele foram entatildeo entrevistados 112 indiviacuteduos (326 da amostragem) naturais dos outros estados brasileiros agrave exceccedilatildeo de Acre Amapaacute Distrito Federal Roraima e Tocantins

Quanto a suas ocupaccedilotildees profissionais os entrevistados declararam livremente 118 diferentes funccedilotildees (sendo 005 desempregados34) apoacutes uma anaacutelise preliminar das mesmas foi possiacutevel agrupaacute-las em 90 incluin-do um leque muito variado que inclui comerciantes donas de casa empre-gadas domeacutesticas estudantes funcionaacuterios puacuteblicos educadores operaacuterios empresaacuterios cabeleireiras agricultores faxineiros jornalistas prostitutas militares e meacutedicos dentre outros (ressalte-se que no momento da pesqui-sa nenhum deles se encontrava ligado profissionalmente agrave Histoacuteria) Nesse quesito eacute impossiacutevel estabelecer uma perfeita correlaccedilatildeo entre a amostra-gem e o panorama laboral brasileiro buscou-se apenas incluir uma ampla gama de perfis profissionais

O perfil dos entrevistados segundo renda familiar tambeacutem se mos-trou de difiacutecil equivalecircncia com dados do IBGE jaacute que estes indicam rendas individuais e natildeo familiares Assim mesmo observa-se que a amostragem seguiu uma tendecircncia tambeacutem de ldquopiracircmiderdquo que faz com que o nuacutemero de brasileiros dos estratos de renda mais baixa sejam sempre mais nume-roso que os de renda mais alta a diferenccedila entre o conjunto da populaccedilatildeo brasileira e a amostragem estaacute seguramente nas dimensotildees de tais estra-tos enquanto os dados do IBGE mostram mais de 64 de indiviacuteduos sem rendimentos ou com renda entre 1 e 5 salaacuterios miacutenimos na amostragem esse percentual (por famiacutelias) pouco passou de 3035

de Satildeo Paulo a porcentagem eacute tambeacutem de 76 Disponiacutevel em censo2010ibgegovbramostra Acesso em 01042014

35Haacute aqui algumas discrepacircncias em relaccedilatildeo as

categorias do IBGE que devem ser explicitadas no que se refere aos criteacuterios de renda estatildeo ausentes do questionaacuterio ldquomais de 2 a 3 salaacuterios miacutenimosrdquo aleacutem disto a renda calculada pelo questionaacuterio tem como base a unidade familiar enquanto os dados do IBGE aqui contrastados referem-se agrave renda de indiviacuteduos

36Dos 161981299 indiviacuteduos totais ldquoa partir de

10 anosrdquo subtraiu-se 17166761 indiviacuteduos entre 10 e 14 anos de modo a limitar a estatiacutestica nacional aos jovens contemplados pela amostragem Uma distorccedilatildeo contudo permanece na cifra dos indiviacuteduos ldquosem instruccedilatildeo e fundamental completordquo da tabela 154 pois crianccedilas entre 10 e 14 anos podem perfeitamente ser ldquosem instruccedilatildeordquo embora o sejam em pequena minoria ldquofundamental completordquo para todos os efeitos as porcentagens das demais rubricas da mesma tabela foram assim corrigidas jaacute que crianccedilas de 14 anos estaratildeo necessariamente ausentes da rubrica seguinte ldquomeacutedio completordquo (tabelas 154 e 112 respectivamente)

37Nos dados do IBGE a maioria da populaccedilatildeo

(59) encontra-se na rubrica ldquonatildeo frequentavam mas jaacute frequentaramrdquo Dentre os que ldquofrequentavamrdquo 78 o faziam em estabelecimentos puacuteblicos e 22 em privados na amostragem esses percentuais que incidem sobre frequecircncia em cursojaacute realizada foram respectivamente 63 e 27 sendo que 11 se enquadravam em ambos

38Tambeacutem nessa segunda parte o questionaacuterio

se afastou progressivamente da possibilidade de estabelecimento de equivalecircncias estatiacutesticas com a totalidade da populaccedilatildeo brasileira Isso se deu por um motivo principal o censo do IBGE natildeo chega ao grau de detalhamento dos dados aqui obtidos (seus objetivos e natureza satildeo outros) e embora existam sondagens de opiniatildeo focadas em perfis culturais do brasileiro (como a ediccedilatildeo de 2011 de Retratos da leitura no Brasil do Instituto Proacute-Livro aqui utilizada como se veraacute mais adiante) a busca por tais equivalecircncias implicaria o seacuterio risco de um engessamento na obtenccedilatildeo de dados qualitativos Tendo em vista os objetivos centrais dessa pesquisa ndash esboccedilar a caracterizaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil por meio da Independecircncia assim como refletir em torno de implicaccedilotildees do tratamento acadecircmico do tema a partir de sua inserccedilatildeo nessa mesma cultura ndash o estabelecimento preliminar completo do perfil dos entrevistados natildeo garantiria a validade do material a ser extraiacutedo e analisado Trata-se justamente do contraacuterio submeter os resultados finais da pesquisa aos paracircmetros dados pelas condiccedilotildees de sua proacutepria realizaccedilatildeo

39Haacute pelo menos dois exemplos de como rankings

se fazem presentes no pensar a Histoacuteria nesse escopo Um primeiro de grande participaccedilatildeo popular eacute o programa de tevecirc O maior brasileiro de todos os tempos exibido entre 1107 e

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No tocante a instruccedilatildeo formal os dados nacionais oficiais incidem sobre crianccedilas a partir de 10 anos de idade sendo que a amostragem rea-lizada focou em jovens a partir de 15 anos desse modo a aproximaccedilatildeo da amostragem com o perfil brasileiro partiu de uma retificaccedilatildeo dos nuacutemeros apresentados pelo IBGE36 E se em termos de renda familiar a amostragem mostrou clara inclinaccedilatildeo a um perfil excessivamente de classe meacutedia o mesmo pode-se dizer quanto agrave instruccedilatildeo formal que perfez um grupo mais escolarizado do que a meacutedia do paiacutes O principal problema aqui ocorre no baixo nuacutemero de entrevistados entre ldquosem instruccedilatildeo e fundamental incom-pletordquo (7 sendo a porcentagem nacional entre 44 e 50) em prol de um nuacutemero por demais elevado de indiviacuteduos que cursaram universidades (27 contra 9) as demais rubricas tambeacutem apresentam discrepacircncias 25 de entrevistados entre ldquofundamental completo e meacutedio incomple-tordquo (contra 19) e 23 entre ldquomeacutedio incompleto e superior incompletordquo (contra 26) A anaacutelise de todo o material obtido assim como das fontes primaacuterias levou em conta tais inclinaccedilotildees e como se veraacute mais adiante elas parecem ateacute mesmo reforccedilar algumas das conclusotildees aqui obtidas Ainda no mesmo quesito os dados do IBGE classificam os brasileiros de acordo com ldquorede de ensino que frequentavamrdquo quando da realizaccedilatildeo da coleta de dados sendo que o questionaacuterio abordou os entrevistados de acordo com frequecircncia em cursojaacute realizada37 Mesmo assim os nuacutemeros aqui disponiacuteveis serviram bem agrave constituiccedilatildeo da amostragem

Na segunda parte do questionaacuterio a obtenccedilatildeo do perfil cultural do entrevistado se deu a partir de uma identificaccedilatildeo de seu acesso agrave televisatildeo (se assiste caso positivo com qual frequecircncia que tipo de programas se em tevecirc aberta eou a cabo e quais os trecircs programas que mais assiste) leitura (se lecirc com frequecircncia que tipo de coisa e quais os uacuteltimos trecircs livros que leu) cinema e teatro (em ambos os casos apenas se costuma ou natildeo frequentar)38 Apoacutes tais perguntas que procuraram diagnosticar eventuais proximidades do entrevistado em relaccedilatildeo a fontes secundaacuterias da pesquisa o questionaacuterio introduziu a questatildeo especiacutefica de seu interesse pela Histoacuteria Foi entatildeo perguntado se ele se interessa ou natildeo por Histoacuteria e por qual (do Brasil geral ou outraqual) se busca informaccedilotildees sobre e em caso positivo onde (livros televisatildeo internet revistas cursos museus outroqual) e se nos uacuteltimos dois anos leu algo ou frequentou algum curso a respeito (em caso positivo qual) Tais perguntas foram elaboradas visando uma aproximaccedilatildeo realista com caracteriacutesticas que de modo hipo-teacutetico foram atribuiacutedas a essa cultura de histoacuteria no Brasil Por isso foram preteridas formas linguiacutesticas quiccedilaacute muito acadecircmicas em prol de outras que permitissem que o entrevistado se expressasse de modo a fornecer dados vaacutelidos daiacute por exemplo o uso da tradicional divisatildeo entre Histoacuteria do Brasil e Histoacuteria Geral (com abertura para identificaccedilatildeo de ldquooutrardquo qual-quer) de muito pouca serventia para os historiadores profissionais

Finalmente a terceira parte do questionaacuterio visou agrave obtenccedilatildeo de conteuacutedos diretamente relacionados agrave Independecircncia do Brasil valendo-se mais amplamente ainda dessa estrateacutegia de utilizaccedilatildeo de formas linguiacutes-ticas coloquiais assim como de perguntas cujas respostas seriam tanto dirigidas como abertas grau de interesse sobre a histoacuteria da Independecircncia do Brasil (nenhum pequeno meacutedio ou grande seguido de uma justificati-va) grau de conhecimento do tema (nenhum pouco razoaacutevel bom exce-lente) se procura se informar sobre (natildeo simcomo) e se estaacute lendo ou leu algo a respeito nos uacuteltimos dois anos (natildeo simo quecirc) Ou seja abriu-se a

03102012 pelo SBT Conforme a sinopse da emissora ldquobaseado no formato criado pela BBC The Greats o programa elege[u] aquele que fez mais pela naccedilatildeo que se destacou pelo seu legado agrave sociedade Diversos paiacuteses jaacute apontaram os seus maiores representantes Na Inglaterra Winston Churchill saiu vencedor Os italianos elegeram Leonardo da Vincirdquo (sbtcombromaiorbrasileiroprograma Acesso em 21032014) A escolha dos candidatos e a definiccedilatildeo de seus confrontos ndash os personagens iam se enfrentando programa a programa em caraacuteter eliminatoacuterio ndash foi feita pelo telespectador sendo o ldquocampeatildeordquo Chico Xavier seguido por Santos Dummont e pela princesa Isabel Semelhante mas de menor alcance foi a pesquisa realizada pela Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional divulgada em abril de 2008 que convocou ldquopara a tarefa de eleger os lsquoheroacuteisrsquo e os lsquovilotildeesrsquo do Brasil uma distinta seleccedilatildeo de historiadores professores jornalistas economistas poliacuteticos e artistas protegidos pelo anonimato para louvar e condenar quem bem entendessemrdquo Entre os mais bem avaliados estavam Rui Barbosa Machado de Assis e D Pedro II no polo oposto Meacutedici e Costa e Silva (revistadehistoriacombrsecaoreportagemranking-dos-brasileiros Acesso em 21032014)

40As palavras satildeo acordo comeacutedia continuaccedilatildeo

democracia ditadura drama elitespoderosos escravidatildeo Estados Unidos exeacutercito guerra heroiacutesmo Inglaterra invenccedilatildeo Joatildeo VI Joseacute Bonifaacutecio liberdade mudanccedila naccedilatildeo nascimento negociaccedilatildeo paz Pedro I Portugal povo revoluccedilatildeo Tiradentes tirania O entrevistado poderia incluir outra palavra qualquer que desejasse

41O questionaacuterio encerrava-se com a possibilidade

do entrevistado acrescentar livremente algo bem como a opccedilatildeo de identificaccedilatildeo nominal Um proveitoso desdobramento da pesquisa poderia resultar de uma anaacutelise de nuances e matizes de interessantes jogos discursivos presentes em muitas das respostas obtidas sobretudo no caso de uma expansatildeo numeacuterica da amostragem

42Quando em fevereiro de 2013 foram

amplamente divulgados resultados de pesquisas biomeacutedicas (com tentativas de conclusotildees tambeacutem histoacutericas) realizadas com os restos mortais de Pedro I Leopoldina e Ameacutelia realizadas por Valdirene Ambiel Cfr AMBIEL Valdirene do Carmo Estudos de arqueologia forense aplicados aos remanescentes humanos dos primeiros imperadores do Brasil depositados no monumento agrave Independecircncia 2013 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Arqueologia) Museu de Arqueologia e Etnologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2013 Aleacutem de procurar esclarecer se tais restos se encontravam depositados no Monumento agrave Independecircncia em Satildeo Paulo e diagnosticar o estado de conservaccedilatildeo dos mesmos Ambiel procurou chamar a atenccedilatildeo para as possiacuteveis causas da morte dos monarcas e sobre os procedimentos funeraacuterios com eles entatildeo utilizados Tais resultados foram divulgados pela imprensa nacional como ldquoverdadesrdquo sobre a famiacutelia imperial brasileira supostamente ausentes dos livros de histoacuteria ldquosegredosrdquo agora ldquoreveladosrdquo Por exemplo Pedro I tinha quatro

14Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

possibilidade de se chegar a dados de uma cultura de histoacuteria inclusive em suas negaccedilotildees em seus silecircncios e interdiccedilotildees Em seguida o questionaacuterio recorreu a um artifiacutecio muito presente no meio social sobre o qual incidiu foi pedido ao entrevistado que atribuiacutesse notas de um a dez para a impor-tacircncia que acha que a Independecircncia teve para a histoacuteria do Brasil e para a histoacuteria do mundo Nos historiadores profissionais em geral esses rankings com sua gigantesca capacidade de simplificar a realidade costumam despertar ojeriza no entanto para os demais agentes sociais dessa cultura pode significar uma forma uacutetil de representaccedilatildeo da realidade acostumados que estatildeo a ela em muitos aspectos de sua vida cotidiana39 Assim tambeacutem daqui pode-se extrair elementos para a anaacutelise de uma cultura de histoacuteria Jaacute as trecircs perguntas seguintes buscaram outra aproximaccedilatildeo foi pedido ao entrevistado que diante de uma lista de 28 palavras escolhesse as trecircs que acreditasse que mais combinam e as trecircs que menos combinam com a Independecircncia40 Tais palavras incidem sobre personagens fatos proces-sos conceitos e mitos constituindo um bom leque de possibilidades de aproximaccedilatildeo linguiacutestica e conceitual com formas de ver a Independecircncia presentes na sociedade inclusive por contemplarem vaacuterios antinocircmicos Por fim perguntou-se ao entrevistado se seria capaz de dizer as datas da chegada da corte portuguesa no Brasil da Independecircncia do Brasil da pri-meira Constituiccedilatildeo e da abdicaccedilatildeo de D Pedro I41 Aqui o intuito era aferir ateacute que ponto essa cultura de histoacuteria se organiza e se faz representar por marcos cronoloacutegicos convencionais bem como se enseja formas alternati-vas de historicizaccedilatildeo e temporalizaccedilatildeo

Desse modo por meio de estrateacutegias de abordagem complementares (graus de relaccedilatildeo ativa ou passiva diante do tema o peso de linguagens conceitos e informaccedilotildees formas temporais) o questionaacuterio procurou fazer convergirem possibilidades de posturas dos entrevistados em relaccedilatildeo agrave histoacuteria e agrave Independecircncia do Brasil bem como dimensotildees variadas e even-tualmente contraditoacuterias de tais posturas relacionando-as inclusive com as cinco perguntas baacutesicas que seriam posteriormente dirigidas agraves fontes secundaacuterias conforme enunciado ao final do item anterior

Apoacutes um curto periacuteodo de testes foram entrevistadas presencialmen-te 311 pessoas na cidade de Satildeo Paulo Grande ABC e interior do estado entre os dias 19 de setembro de 2012 e 02 de agosto de 2013 Propositada-mente foram evitadas as duas Semanas da Paacutetria desses anos bem como um periacuteodo de vinte dias de superexposiccedilatildeo midiaacutetica especiacutefica do tema42 As abordagens foram realizadas de modo direto em 994 das vezes em espaccedilos puacuteblicos tendo cada uma ndash com poucas exceccedilotildees -a duraccedilatildeo de cerca de sete minutos durante os quais evitou-se ao maacuteximo qualquer tipo de constrangimento direcionamento ou auxiacutelio nas respostas

O que foi possiacutevel obter nessas entrevistas Os entrevistados com-potildeem um grupo de forte contato com a televisatildeo (93 assistem com frequecircncia e 51 todos os dias sendo que 58 possuem tevecirc aberta e a cabo apenas 6 disseram natildeo assistir tevecirc) de leitores frequentes (78) e de assistentes a cinemas (58) e teatros (28) o que o aproxima de um perfil de classe meacutedia escolarizada conforme jaacute apontado anteriormente de todo modo haacute que se lembrar que em muitos outros aspectos relevan-tes esse eacute um grupo heterogecircneo Daiacute a importacircncia do fato de que 77 dos que o compotildeem disseram se interessar por histoacuteria (sendo que 60 afirmaram buscar informaccedilotildees a respeito) Esse eacute um nuacutemero alto ou bai-xo A questatildeo natildeo parece das mais importantes jaacute que de acordo com a

costelas quebradas quando morreu era mais baixo do que se supunha natildeo foi cremado mas enterrado acompanhado de porccedilotildees de terra de Portugal e com roupas de general com insiacutegnias portuguesas e natildeo brasileiras Leopoldina natildeo teve o fecircmur quebrado antes de morrer como acreditava-se ateacute entatildeo foi enterrada com a mesma roupa com que foi coroada imperatriz e seus brincos natildeo eram de ouro mas bijuterias de resina Jaacute Ameacutelia quando morreu tinha escoliose e osteoporose foi enterrada de preto e mumificada Na internet tais ldquorevelaccedilotildeesrdquo foram no total comentadas milhares de vezes ldquorecomendadasrdquo e em geral bem-recebidas (fotosestadaocombrmudanca-na-historia-dez-verdades-sobre-a-familia-imperial-que-nao-estao-nos-livros-de-historiagaleria70481949100htmpPosicaoFoto=1carousel acesso em 27032014 folhauolcombrfspcienciasaude94655-corpos-da-familia-imperial-sao-exumadosshtml acesso em 02042014 folhauolcombrfspcienciasaude94656-descoberta-mostra-abandono-de-d-leopoldina-diz-historiadorashtml acesso em 02042014 estadaocombrnoticiascidadessob-sigilo-dom-pedro-i-e-suas-duas-mulheres-sao-exumados-pela-primeira-vez9983670htm acesso em 02042014 vejaabrilcombrblogricardo-settitema-livreabertura-para-estudos-dos-sarcofagos-de-d-pedro-i-e-de-suas-duas-esposas-e-fato-extraordinario-parabens-ao-estadao-por-divulgar-tudo acesso em 02042014 brnoticiasyahoocomexumaC3A7C3A3o-d-pedro-i-mulheres-reconta-histC3B3ria-115400981htmlgt acesso em 02042014 g1globocomciencia-e-saudenoticia201302cientistas-brasileiros-exumam-restos-mortais-de-d-pedro-i-e-suas-mulhereshtml acesso em 02042014 youtubecomwatchv=y8jcdXyx3hAgt acesso em 02042014 vestibularuolcombrresumo-das-disciplinasatualidadeshistoria-do-brasil-exumacao-traz-novidades-sobre-d-pedro-ihtm acesso em 02042014 ltgooglecombrsearchq= exumaC3A7C3A3o+de+dom+pedroampoq= exumaC3A7C3A3o+ampaqs= chrome469i57j0l55749j0j8ampsourceid= chromeampespv=210ampes_sm=93ampie=UTF-8gt acesso em 02042014 noticiasseuhistorycomexumacao-revela-detalhes-surpreendentes-da-vida-e-morte-de-d-pedro-i-e-suas-mulheresgt acesso em 02042014 istoecombrreportagens277892_A+VOLTA+DE+DOM+PEDRO+I acesso em 02042014 bahiaatualcomnoticiasexumacao-de-corpos-de-d-pedro-i-revela-detalhes-da-famiila-real acesso em 02042014 Site Uacuteltimo Segundo ldquoExumaccedilatildeo de D Pedro I e suas mulheres reconta a Histoacuteriardquo disponiacutevel em ultimosegundoigcombrciencia2013-02-19exumacao-de-dpedro-i-e-suas-mulheres-reconta-a-historiahtml acesso em 02042014 diariodepernambucocombrappnoticiaciencia-e-saude20130219internas_cienciaesaude424273restos-mortais-de-d-pedro-i-sao-exumados-para-realizacao-de-pesquisashtml acesso em 02042014 httpopiniaoenoticiacombrbrasilrestos-mortais-de-dom-pedro-i-sao-exumadosgt acesso em 02042014 noticiasbanduolcombrjornaldabandconteudoaspid=100000576688 acesso em 02042014

15Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

definiccedilatildeo aqui proposta de cultura de histoacuteria o desinteresse tambeacutem eacute um dado relevante pois traduz uma atitude em si e que dificilmente poderia ser considerada de modo absoluto (como pretender que esse desinteresse se traduza por exemplo em descaso com a proacutepria histoacuteria ou com a da famiacutelia Difiacutecil acreditar ser esse o caso de 23 dos entrevistados) Aleacutem disso bem sabemos que seu contraacuterio o interesse pode se manifestar de muitas maneiras que natildeo necessariamente encontram guarida em praacuteticas acadecircmicas e profissionais relacionadas ao estudo do passado tampouco que resultam em um estudo da histoacuteria minimamente organizado O que implica que os dois contraacuterios nem sempre estabeleceratildeo limites claros entre si diante da apreciaccedilatildeo geral de uma cultura de histoacuteria interesse e desinteresse pela histoacuteria podem flertar com muita proximidade bem como intercambiarem elementos regularmente

Observemos mais atentamente esse panorama Considerando-se tais caracteriacutesticas de uma cultura de histoacuteria como a brasileira perguntou-se a todos os entrevistados incluindo aos 23 que afirmaram natildeo se inte-ressar por histoacuteria por ldquoqual histoacuteriardquo poderia dizer que mais se interessa Aqui as respostas que de alguma forma se referem diretamente agrave histoacuteria do Brasil (ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo ldquoHistoacuteria geral e do Brasilrdquo ldquoHistoacuteria da nos-sa regiatildeordquo ldquoHistoacuteria do Brasil e andinardquo) perfazem 34 do total aiacute sim um nuacutemero relativamente baixo diante dos 66 que em suas respostas exclu-iacuteram o Brasil Portanto independentemente do interesse pela mateacuteria ser alto ou baixo a relaccedilatildeo com a Histoacuteria do Brasil parece gozar de especial desprestiacutegio Seraacute o desprezo pela histoacuteria nacional um dado da cultura de histoacuteria no Brasil43 Mais adiante quando da anaacutelise das outras fontes vol-taremos a esse ponto De todo modo tal desprestiacutegio evidentemente traraacute implicaccedilotildees para as posturas dos brasileiros em relaccedilatildeo agrave Independecircncia

A princiacutepio os entrevistados tendem a se interessar pouco pela Inde-pendecircncia do Brasil mas essa natildeo eacute uma tendecircncia absoluta se 39 tecircm ldquonenhumrdquo ldquopoucordquo ou ldquopequenordquo interesse 44 tem ldquomeacutediordquo e 17 ldquoentre meacutedio e granderdquo e ldquogranderdquo Ora em se tratando de uma cultura de histoacuteria dinacircmica e fluida com fronteiras pouco claras entre o interesse e o desinte-resse pela histoacuteria de modo geral (e a despeito da clara tendecircncia a um maior desinteresse pela Histoacuteria do Brasil) a Independecircncia eacute pouco interessante mas natildeo eacute inteiramente desprezada (apenas 11 declararam ldquonenhumrdquo inte-resse por ela cifra menor do que a dos grandes interessados)

Parece entatildeo haver espaccedilo aqui para diferentes formas de pensar representar e reinventar a Independecircncia do Brasil como verificar-se-aacute mais adiante de momento constata-se uma correspondecircncia estatiacutestica entre os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram ter dela ldquobomrdquo ou ldquoexcelenterdquo conhecimento (os de ldquonenhumrdquo ldquopoucordquo ou apenas ldquorazoaacutevelrdquo conhecimento compotildee os demais 83) e os 30 que afirma-ram buscar informaccedilotildees a respeito (sendo 60 os que buscam informaccedilotildees sobre histoacuteria em geral) Provavelmente trata-se de um subgrupo dos mais ativos no circuito de consumo-reproduccedilatildeo-criaccedilatildeo de toacutepicos relativos agrave Independecircncia na cultura de histoacuteria no Brasil Dentre esses 30 exclusi-vamente 305 afirmaram buscar informaccedilotildees sobre a Independecircncia em livros 291 na escola e nos livros didaacuteticos (evidentemente mais confina-dos ao puacuteblico jovem) 208 na internet 97 em raacutedio tevecirc eou jornais impressos e outros 97 ldquocom pessoas e lugares44 Os que responderam ler ou ter lido algo a respeito nos uacuteltimos dois anos foram 34 (os demais responderam ldquonatildeordquoldquonatildeo se lembrardquo ou natildeo responderam)

43Natildeo parece ser o caso da cultura histoacuterica

portuguesa de acordo com trabalhos recentes como os de PAIS Joseacute Machado Op Cit SOBRAL Joseacute Manuel Op Cit e MATOS Seacutergio Campos Consciecircncia histoacuterica e nacionalismo Portugal seacuteculos XIX e XX Lisboa Horizonte 2008

44A ausecircncia de menccedilotildees a outros tipos de suporte

de informaccedilotildees sobre a Independecircncia reforccedila a escolha das fontes secundaacuterias da pesquisa analisadas no proacuteximo item

45Embora seja muito frequente a consideraccedilatildeo de

que o principal marco fundacional da histoacuteria brasileira tenha sido o ldquodescobrimentordquo (isto eacute a chegada dos portugueses agrave Ameacuterica em 1500) e natildeo a ruptura poliacutetica entre Brasil e Portugal Muito provavelmente isso se conecta com uma tambeacutem muito frequente concepccedilatildeo da Independecircncia como ldquonatildeo-rupturardquo como processo negociado amigaacutevel e sem grandes solavancos Retornaremos agrave questatildeo

46Todas as 28 palavras oferecidas aos entrevistados

receberam no miacutenimo quatro menccedilotildees sendo que 22 tiveram mais de uma dezena de menccedilotildees a mesclarem termos que remetem a caracteriacutesticas atribuiacutedas agrave Independecircncia que ensejam relaccedilotildees diretas ou indiretas com ela ou que se referem a simples informaccedilotildees

47Foram feitas 310 menccedilotildees de termos positivos em

relaccedilatildeo agrave Independecircncia (liberdade democracia revoluccedilatildeo heroiacutesmo mudanccedila drama) contra 210 dos mesmos como natildeo combinando com ela essa tendecircncia eacute reforccedilada por 190 menccedilotildees a termos negativos que combinariam com ela (acordo escravidatildeo negociaccedilatildeo continuaccedilatildeo ditadura comeacutedia invenccedilatildeo tirania) sendo que os mesmos foram mencionados 391 vezes como natildeo combinando Esclarecer o caso de escravidatildeo pode ser referecircncia a uma realidade (em geral negativa) mas tambeacutem como metaacutefora poliacutetica Para todos os efeitos como mencionar o termo de outras maneiras

48148 escolhas incidiram sobre termos conflitivos

que com ela combinariam (guerra revoluccedilatildeo mudanccedila) contra 101 menccedilotildees a tais termos como natildeo combinando poreacutem tal tendecircncia se inverte nas 119 escolhas de termos paciacuteficos que com ela combinariam (paz acordo negociaccedilatildeo) contra 70 menccedilotildees aos mesmos como natildeo combinando

49Foram feitas 27 escolhas de povo como combinando

contra 22 do mesmo termo como natildeo combinando e 35 a elitepoderosos como combinando contra 14 em termos opostos o que indica certo equiliacutebrio tendente agrave segunda possibilidade

50Natildeo se pode deixar de mencionar algumas

outras palavras que natildeo se encontravam na lista mas foram acrescidas pelos entrevistados sendo portanto de menccedilatildeo espontacircnea As mais recorrentes combinando num sentido depreciativo foram ldquointeresserdquo e ldquocorrupccedilatildeordquo Outras palavras tais quais ldquounificaccedilatildeordquo ldquomorterdquo

16Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

A hipoacutetese da constituiccedilatildeo de um subgrupo ativo na cultura de histoacuteria por meio do tema da Independecircncia encontra respaldo nos resulta-dos do ranking do questionaacuterio para a importacircncia que ela teria tido para a Histoacuteria do Brasil 43 deram nota 10 e outros 31 notas entre 8 e 9 sendo que apenas 6 deram notas entre 0 e 4 ou natildeo souberam responder Ou seja mesmo quem natildeo se interessa pela Independecircncia ou pela Histoacute-ria do Brasil em geral tende a reconhecer o tema como sendo de grande importacircncia embora tal reconhecimento seja menor em se tratando de sua relaccedilatildeo com a Histoacuteria ldquoem geralrdquo (a essa pergunta 25 respondeu com nota 10 e outros 25 com notas 8 ou 9 em contraposiccedilatildeo a um elevado percentual de 22 que deu notas entre 0 e 4 ou natildeo soube responder) Ainda assim portanto a Independecircncia eacute fortemente valorizada por um percentual que extrapola os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram dela serem conhecedores ou os 20 que afirmaram buscar informaccedilotildees a seu respeito Valorizada poreacutem em meio ao que parece ser uma dificuldade de se pensaacute-la para aleacutem de sua tradicional circunscriccedilatildeo nacional (o que encontra como logo veremos enorme correspondecircncia nas fontes secundaacuterias) para aleacutem dos limites a ela convencionalmente impos-tos por tradiccedilotildees historiograacuteficas ainda fortes e mesmo por uma cultura de histoacuteria que tendo atributos fortemente nacionais tende a nela enxergar um marco fundacional importante isto eacute um marco diferenciador entre a histoacuteria do Brasil e a de outros paiacuteses45

O que nesse sentido nos mostram as escolhas de palavras que ldquocom-binamrdquo e ldquonatildeo combinamrdquo com a Independecircncia46 Em primeiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista mais em perspectiva positivaenalte-cedora do que negativadepreciativa47 Em segundo lugar a possibilidade da Independecircncia ser considerada tanto como rupturaconflitiva quanto como continuidadepaciacutefica48 Em terceiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista como algo menos popular do que elitista49 Em quarto e uacuteltimo lu-gar ateacute que ponto os entrevistados se mostraram conhecedores da histoacuteria 55 respostas indicaram termos informativos descabidos (Tiradentes combina D Pedro I D Joatildeo VI Joseacute Bonifaacutecio e Portugal natildeo) contra uma maioria de 190 menccedilotildees a tais termos de modo inverso Aqui os resultados podem indicar a prevalecircncia de um tipo de conhecimento de histoacuteria estruturado em personagens e trajetoacuterias individuais (como logo veremos as fontes secundaacute-rias tambeacutem referendaratildeo amplamente essa hipoacutetese)50

Na uacuteltima parte do questionaacuterio perguntou-se aos entrevistados acerca de datas de quatro eventos que podem ser considerados como marcos do processo de Independecircncia 68 responderam natildeo saber ou natildeo se lembrar da data da chegada da Corte portuguesa ao Brasil 13 deram respostas claramente erradas em muitas das quais (ldquomil e quinhentosrdquo ldquomil quinhentos e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo etc) natildeo obstan-te se vislumbra uma referecircncia adequada poreacutem tratada de modo equivo-cado e somente 9 souberam responder de modo preciso (ldquomil oitocentos e oitordquo) Diante da pergunta quanto agrave data da primeira constituiccedilatildeo do Brasil 85 disseram natildeo saber ou natildeo se lembrar 7 deram respostas claramente erradas (ldquomil e quatrocentosrdquo ldquomil quinhentos e oitentardquo) algumas das quais poreacutem se aproximando da evocaccedilatildeo de alguma consti-tuiccedilatildeo brasileira (ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquomil novecentos e trintardquo ldquomil novecentos e oitenta e oitordquo) e apenas 13 souberam responder com firmeza isto eacute com a presenccedila de ldquomil oitocentos e vinte e quatrordquo na resposta Jaacute a pergunta sobre a data

(em alusatildeo ao Grito) e ldquoprogressordquo enriqueceram a fileira dos termos valorativos

51Essa percepccedilatildeo eacute reforccedilada por alguns dos

dados obtidos por Purificaccedilatildeo Em meio a representaccedilotildees da Independecircncia produzidas por crianccedilas entre 09 e 13 anos encontram-se frases como ldquoQuando D Pedro viu terra gritou Independecircncia ou Morterdquo e ldquoPouco depois de descobrirem o Brasil gritaram a independecircnciardquo PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p40-41 Cabe lembrar que tais crianccedilas natildeo haviam tido ainda contato formal (na escola) com o tema da Independecircncia ldquoapenasrdquo por meio de uma cultura de histoacuteria a envolverem-nas

52O que parece impor uma urgente reflexatildeo em

torno dos efeitos do violento desprestiacutegio das referecircncias factuais que o sistema escolar impocircs ao ensino de Histoacuteria no Brasil das uacuteltimas deacutecadas O quecirc ademais natildeo parece uma situaccedilatildeo exclusivamente brasileira de acordo com a sugestatildeo que nos foi dada por Nuno Gonccedilalo Monteiro a ver aqui paralelismo com o ensino de Histoacuteria em Portugal

53Outras duas possibilidades promissoras seriam

analisar respostas a questotildees de vestibulares relativas agrave Independecircncia e entrevistas com professores e coordenadores pedagoacutegicos que de alguma forma lidem com o tema no cotidiano escolar

54MORENO Jean Carlos Limites escolhas e

expectativas horizontes metodoloacutegicos para anaacutelise dos livros didaacuteticos de histoacuteria Antiacuteteses Londrina v5 n10 p729 juldez2012

55O que eacute atestado por exemplo pela recente

consolidaccedilatildeo da presenccedila nos livros didaacuteticos de toacutepicos relativos agrave Histoacuteria do continente africano

56Dos 49 autores de livros didaacuteticos aqui

considerados 36 satildeo identificados pelos termos ldquomestrerdquo ldquodoutorrdquo ou ldquoprofessor universitaacuteriordquo O que natildeo significa como eacute bem sabido que tais autores sejam integralmente responsaacuteveis pelo conteuacutedo de suas obras

57MORENO Jean Carlos Op Cit p724

58Segundo dados oficiais somente no ano de

2012 esse governo comprou cerca de 408 milhotildees de livros didaacuteticos para os anos do Ensino Meacutedio (Assessoria de Comunicaccedilatildeo Social do FNDE 24 de agosto de 2012)

59Sua produccedilatildeo no entanto eacute regionalmente

concentrada na seleccedilatildeo das coleccedilotildees de didaacuteticos feita pelo MEC em 2010 oito editoras de Satildeo Paulo responderam por 842 da produccedilatildeo aprovada enquanto trecircs de Curitiba ficaram com os 158 restantes

60DIAS Adriana M GRINBERG Keila e

PELLEGRINI Marco Novo Olhar Histoacuteria v2 Satildeo

17Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

da abdicaccedilatildeo de D Pedro I foi a campeatilde em respostas imprecisas 92 dis-seram natildeo saber ou natildeo se lembrar 16 deu respostas erradas e apenas 12 soube responder ldquomil oitocentos e trinta e umrdquo

E quanto agrave data da Independecircncia do Brasil Em comparaccedilatildeo com as perguntas anteriores esta obteve respostas de qualidade superior natildeo obstante um nuacutemero ainda alto de respostas ldquonatildeo souberdquo e ldquonatildeo lembrardquo 33 dos entrevistados Haacute que se lembrar inclusive que desde a segunda parte do questionaacuterio o entrevistado jaacute sabia tratar-se de algo focado na Independecircncia ou seja se nas demais perguntas pode-se dizer que ele foi pego totalmente surpresa nesta natildeo Por isso e se considerarmos ainda os 14 que deram respostas claramente erradas a esta pergunta (ldquomil e qui-nhentosrdquo ldquovinte e um de abril de mil e quinhentosrdquo ldquovinte e dois de abril de mil e quinhentosrdquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquovinte e um de abrilrdquo ldquovinte e dois de abrilrdquo ldquonove de julhordquo) chega-se a um total de 47 de pessoas incapazes de dizer quando ocorreu a Independecircncia do Brasil Por outra parte os que souberam responder (ldquosete de setembro de mil oito-centos e vinte e doisrdquo ou ldquomil oitocentos e vinte e doisrdquo) chegaram a 16 iacutendice muito proacuteximo das dimensotildees do hipoteacutetico grupo de interessados e razoaacuteveis conhecedores da Histoacuteria da Independecircncia referido alguns paraacutegrafos acima

Trata-se de um nuacutemero elevado ainda mais se reafirmarmos que a Independecircncia natildeo eacute jamais completamente ignorada em meio agrave cultura brasileira de histoacuteria De certo modo sim mas natildeo deve escapar agrave obser-vaccedilatildeo de ningueacutem que nessa pergunta especiacutefica a confusatildeo de datas se daacute dentro de referecircncias histoacutericas e cronoloacutegicas bastante demarcadas a Independecircncia o ldquodescobrimento do Brasilrdquo Tiradentes e a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica todos eles marcos fundacionais em uma memoacuteria histoacuteri-ca oficial logo fundamentais na constituiccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil51 Tais resultados indicam preliminarmente a precariedade da concepccedilatildeo de histoacuteria ndash da Independecircncia em particular - segundo formas convencionais de organizaccedilatildeo cronoloacutegica e isso a despeito dessa socieda-de ser permeada e carregada de referecircncias cronoloacutegicas que organizam a vida das pessoas em muitos de seus interstiacutecios (vida familiar vida profis-sional praacuteticas de lazer e de culto etc) Pouquiacutessimas respostas ndash esta-tisticamente despreziacuteveis -parecem esboccedilar a forja de alguma modalidade alternativa de organizaccedilatildeo temporal da histoacuteria (ldquoquase duzentos anosrdquo ldquomil oitocentos e alguma coisardquo ou ldquoD Pedro saiu para brigar com o irmatildeo e deixou D Pedro IIrdquo) diante do quecirc ganha forccedila a hipoacutetese de uma enorme e generalizada dificuldade apresentada por essa sociedade no manejo de recursos baacutesicos de historicizaccedilatildeo da histoacuteria como a cronologia52

Ateacute aqui as conclusotildees a que se pode chegar ainda satildeo excessiva-mente parciais extraiacutedas apenas da sondagem de opiniatildeo conveacutem no entanto sumarizaacute-las de modo a reforccedilaacute-las como hipoacuteteses capazes de nortear a anaacutelise vindoura Segundo o que nos mostram os entrevistados a Independecircncia eacute pouco frequentada por muitos mas assiduamente por um grupo razoaacutevel (seratildeo seus membros os uacutenicos capazes de pensaacute-la segundo marcos cronoloacutegicos) eacute amplamente considerada tema da maior importacircncia para a Histoacuteria do Brasil e de menor importacircncia para a His-toacuteria do Mundo ela eacute menos interessante do que outros temas (quais natildeo sabemos) assim como a Histoacuteria do Brasil eacute menos do que a Histoacuteria Geral mas tende a ser vista como algo respeitaacutevel eventualmente positivo para o Brasil o que parece evocar um imaginaacuterio oficial ainda muito vigente de

Paulo FTD 2010 ALVES Alexandre e OLIVEIRA Letiacutecia F de Conexotildees com a Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Moderna 2010 PEDRO Antocircnio e LIMA Lizacircnias de Souza Histoacuteria sempre presente v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VICENTINO Claacuteudio R e DORIGO Gianpaolo F Histoacuteria Geral e do Brasil v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FIGUEIRA Divalte G Histoacuteria em foco v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2011 NOGUEIRA Fausto G e CAPELLARI Marcos Ser protagonista Histoacuteria 2ordm ano do Ensino Meacutedio Satildeo Paulo Ediccedilotildees SM 2010 BURITTI Flaacutevio Caminhos do Homem v2 Curitiba Base Editorial 2010 CAMPOS Flaacutevio de CLARO Regina A escrita da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 COTRIM Gilberto Histoacuteria Global Brasil e Geral v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 AZEVEDO Gislane C e SERIACOPI Reinaldo Histoacuteria em movimento v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2010 MORENO Jean Carlos e GOMES Sandro V Histoacuteria cultura e sociedade v3 Curitiba Positivo 2010 FERREIRA Joatildeo Paulo e FERNANDES Luiz Estevam Nova Histoacuteria integrada v2 2a ed Curitiba Moacutedulo 2010 MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Histoacuteria Geral e Brasil v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam B Histoacuteria Das cavernas ao terceiro milecircnio v2 2a ed Satildeo Paulo Moderna SANTIAGO Pedro CERQUEIRA Ceacutelia e PONTES Maria Aparecida Por dentro da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 MOCELLIN Renato e CAMARGO Rosiane Histoacuteria em debate v2 Satildeo Paulo Editora do Brasil 2010 CATELLI Jr Roberto GANDINI Mariacutea Soledad M e ASPIS Renata L Histoacuteria texto e contexto v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FARIA Ricardo de M MIRANDA Mocircnica Liz e CAMPOS Helena Estudos de Histoacuteria v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010

61PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit

62Conforme observou o Guia de livros didaacuteticos

PNLD 2012 Histoacuteria 17 das coleccedilotildees aprovadas adotaram a perspectiva da Histoacuteria Integrada na qual se expotildee o conteuacutedo histoacuterico a partir da ldquosequecircncia cronoloacutegica de base europeiardquo havendo o predomiacutenio da ldquoHistoacuteria Geral eurocecircntricardquo linear Os assuntos sobre a Histoacuteria da Ameacuterica e do Brasil estatildeo intercalados nesta grande Histoacuteria Geral As outras duas coleccedilotildees optaram pelo formato temaacutetico organizando os assuntos ldquoem torno de muacuteltiplos espaccedilos e temporalidadesrdquo mas guiados por um eixo cronoloacutegico Guia de livros didaacuteticos PNLD 2012 Histoacuteria Op Cit p 18-19

63Uma afirmaccedilatildeo tiacutepica ldquoO nascimento do

Brasil como paiacutes independente encontra-se dentro do contexto de crise do Antigo Regime e do sistema colonial mercantilistardquo VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p89 Os paradigmas historiograacuteficos a que tal tipo de afirmaccedilatildeo remete satildeo evidentemente as obras de Caio Prado Juacutenior e Fernando Novais jaacute amplamente presentes tambeacutem nos livros de Ensino Fundamental PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit cap3

18Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

glorificaccedilatildeo da Independecircncia laudatoacuterio e a destacar seus personagens centrais No entanto tal tendecircncia encontra obstaacuteculo em outras contraacute-rias minoritaacuterias mas natildeo despreziacuteveis a verem a Independecircncia como algo pouco ou nada importante uma histoacuteria restrita espacialmente e socialmente e mais de continuidades do que de rupturas

Assim jaacute eacute possiacutevel afirmar que a Independecircncia enseja disputas a seu respeito em torno de suas representaccedilotildees e memoacuterias oficiais ou natildeo Muito provavelmente alguns dos motivos que explicam sua rejeiccedilatildeo por muitos explicam igualmente sua ativa e entusiasmada frequecircncia por um grupo menor Em uma terceira via ela jamais deixou de ser pensada e divulgada em perspectivas complexas fortemente criacuteticas e analiacuteticas Para todos os efeitos a Independecircncia contribui sem duacutevida para tipificar uma cultura de histoacuteria no Brasil plural variada e apenas parcialmente organizada em padrotildees cronoloacutegicos (temporais) na qual ocupa um papel central e da qual irradiam outros elementos valiosos para um melhor en-tendimento dessa mesma cultura

4 ndash A Independecircncia nas escolas A principal fonte de fomento e irradiaccedilatildeo de atitudes do brasileiro diante da Independecircncia eacute o sistema escolar com sua diversidade de agentes es-paccedilos procedimentos materiais e valores Aqui seraacute analisado apenas um componente prenhe de significados desse sistema o livro didaacutetico53

Segundo um estudioso da mateacuteria os autores de livros didaacuteticos de Histoacuteria em geral ndash grupo no qual ele mesmo estaacute incluiacutedo -ldquonatildeo tecircm por objetivo somente transpor a Histoacuteria acadecircmica eles identificam necessi-dades sociais estatildeo imersos na sociedade e portanto na proacutepria histoacuteria sobre a qual escrevemrdquo54 Tais livros satildeo assim documentos privilegiados de uma cultura de histoacuteria trazem conteuacutedos de acordo com padrotildees e paracircmetros de uma sociedade agrave qual servem sendo inclusive cada vez mais sensiacuteveis a impulsos de origem natildeo acadecircmica55 contam com a colaboraccedilatildeo ou autoria de historiadores profissionais56 que trabalham junto a editores assistentes revisores iconoacutegrafos diagramadores e designers graacuteficos57 satildeo consumidos preferencialmente por educadores e educandos mas chegam tambeacutem agraves famiacutelias destes e ao puacuteblico em geral tendem a permanecer por algum tempo disponiacuteveis em salas de aula residecircncias livrarias e bibliotecas e satildeo fortemente condicionados pelas exigecircncias de um grande mercado editorial cujas demandas capi-talistas natildeo satildeo menos evidentes do que as pedagoacutegicas O livro didaacutetico eacute o segundo suporte de leitura mais lido no Brasil sendo sua produccedilatildeo o mais lucrativo negoacutecio de uma induacutestria editorial brasileira que tem no governo federal seu maior cliente58 Essa produccedilatildeo dos livros didaacuteticos movimenta enormes cifras veicula paacuteginas e paacuteginas de conteuacutedos de Histoacuteria produzidos por e destinados a um amplo conjunto de agentes sociais e tecircm circulaccedilatildeo nacional59

A Independecircncia estaacute presente em todos os 21 livros destinados ao Ensino Meacutedio aqui considerados60 assim como estava em outros 12 de Ensino Fundamental contemplados por um estudo acadecircmico a respeito61 Nessa dupla frente abre-se uma possibilidade de anaacutelise valiosa jaacute que alguns livros circulam atualmente enquanto outros circularam agrave eacutepoca em que jovens adultos que hoje tecircm entre 22 e 26 anos eram crianccedilas entre 9 e 13 Unem-se assim duas temporalidades de tratamentos da Independecircn-cia que podem ser unificadas por uma cultura de histoacuteria

64Exemplo eacute a afirmaccedilatildeo de que ldquoem

reconhecimento agrave importacircncia da Batalha do Jenipapo como um episoacutedio fundamental no processo de independecircncia e de consolidaccedilatildeo do territoacuterio a data de 13 de marccedilo de 1823 foi estampada na bandeira do estado do Piauiacuterdquo DIAS Adriana GRINBERG Keila e PELLEGRINI Marco Op Cit p240

65Excelente demonstraccedilatildeo eacute dada por uma

proposta pedagoacutegica de um jogo didaacutetico elaborado pelo Laboratoacuterio de Ensino de Histoacuteria da Universidade Federal de Pelotas descrita em GASPAROTTO Alessandra ESPIacuteRITO SANTO Marco Viniacutecio do SILVA Eduarda Borges da Jogo didaacutetico vira-vira a metroacutepole vira colocircnia a colocircnia vira-metroacutepole Revista Latino-Americana de Histoacuteria v2 n6 agosto de 2013 (Ediccedilatildeo Especial) p648-661

66Os preferidos satildeo D Joatildeo Carlota Joaquina Joseacute

Bonifaacutecio e D Pedro

67Um exemplo apoacutes afirmar que ldquodurante anos a

historiografia oficial tentou idealizar o processo de independecircncia e seus autores explicado como um ato de heroiacutesmo contra a tirania e em defesa da liberdaderdquo uma das obras afirma em tom de contraposiccedilatildeo ldquoMas nas uacuteltimas deacutecadas novos estudos permitiram lanccedilar um novo olhar sobre esse periacuteodo Expressotildees dessa mudanccedila satildeo algumas produccedilotildees culturais recentes que tratam desse momento com uma visatildeo criacutetica e ateacute mesmo sarcaacutestica como por exemplo o romance O Chalaccedila (1999) de Joseacute Roberto Torerordquo Por fim propotildee como ldquoSugestatildeo de atividaderdquo supostamente para aguccedilar o senso criacutetico do aluno ldquocomparar o romance de Torero citado acima com a visatildeo oficial dos eventos fornecida pela ceacutelebre pintura Independecircncia ou morte (O Grito do Ipiranga) de Pedro Ameacuterico ou pelo filme Independecircncia ou morte (1972) de Carlos Coimbrardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p80-81) Aleacutem de ignorar os momentos objetivos e naturezas distintos das obras recomendadas tal atividade sugere a ultrapassagem de uma visatildeo ldquotradicionalrdquo da Independecircncia por outra ldquocriacuteticardquo ndash logo mais aceitaacutevel Assim o aluno eacute encorajado a conceber a histoacuteria por meio de sua livre-interpretaccedilatildeo mas sendo impelido a endossar a de um romance satiacuterico (logo voltaremos a ele)

68Em um livro para o Ensino Fundamental de

1996 lia-se que ldquopara a realizaccedilatildeo do nosso trabalho foi importante a participaccedilatildeo de Mariana Massarani artista que desenhou com alegria e bom humor os acontecimentos estudadosrdquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Do mundo indiacutegena ao periacuteodo regencial no Brasil Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1994 p1 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p79) Essa eacute uma tendecircncia antiga como nos mostra o poema de Murilo Mendes ldquoA pescariardquo (publicado em Histoacuteria do Brasil de 1932) evocativo da tatildeo ceacutelebre quanto historicamente irrelevante disenteria de D Pedro em 7 de setembro de 1822 e transcrito em outro didaacutetico ldquoFoi nas margens

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Natildeo haacute duacutevida que a maioria dos livros didaacuteticos de Histoacuteria voltados ao Ensino Meacutedio abre possibilidades de construccedilatildeo de um conhecimento acerca da Independecircncia multifacetado matizado criacutetico e criterioso e deles pode-se extrair muitos exemplos a revelarem diaacutelogos propositi-vos entre saberes acadecircmicos e didaacuteticos da Histoacuteria (afinal os proacuteprios autores e avaliadores dos livros estatildeo quase todos diretamente ligados ao meio acadecircmico) aliaacutes em comparaccedilatildeo com os de Ensino Fundamental de cerca de uma deacutecada atraacutes essas possibilidades soacute cresceram Poreacutem como natildeo eacute objetivo deste estudo analisar tais livros em si mesmos -somente deles extrair elementos que tipifiquem uma cultura de histoacuteria por meio da Independecircncia ndash mais relevantes parecem ser justamente alguns de seus pontos sensiacuteveis nos quais tais livros se fazem menos acadecircmicos e nos quais se traduzem de modo mais significativo componentes mais amplos da sociedade que lhes daacute sentido

Em todos esses livros a Independecircncia eacute invariavelmente vista como parte de um processo mais amplo no qual se incluem outros acontecimen-tos poliacuteticos americanos e europeus de finais do seacuteculo XVIII e comeccedilos do seacuteculo XIX (embora quase nunca sejam feitas conexotildees fundamentais entre eles deficiecircncia notaacutevel sobretudo no tocante agraves independecircncias da Ameacuterica espanhola vistas sempre como supostos contraexemplos da Independecircncia do Brasil62) O episoacutedico se faz presente na menccedilatildeo a vaacuterios temas menores ndash a vinda da Corte a abertura dos Portos o governo de D Joatildeo no Rio de Janeiro a Revoluccedilatildeo de Pernambuco a Revoluccedilatildeo do Porto etc ndash mas sempre em observacircncia a contextos histoacutericos espaciais e temporais mais amplos63 Destaque-se que 80 dos livros fazem referecircncia expliacutecita ao termo ldquoguerra(s) de independecircnciardquo64 o que enseja uma con-cepccedilatildeo tambeacutem multirregional do tema e vaacuterios o aprofundam O mesmo pode ser dito de perfis biograacuteficos presentes mas submetidos a uma loacutegica processual da Histoacuteria

Essa ecircnfase em processos em detrimento parcial de acontecimentos e personagens eacute importante indiacutecio de uma sintonia entre saberes aca-decircmicos e natildeo acadecircmicos65 Contudo deve-se relativizar o peso desse diaacutelogo jaacute no que tange ao tratamento dispensado agraves biografias aleacutem de pouco ou nada inovarem na escolha dos personagens destacados66 alguns livros didaacuteticos trazem fragmentos anedoacuteticos de tais trajetoacuterias hoje em dia pouco ou nada uacuteteis a historiadores profissionais (embora as comilan-ccedilas de D Joatildeo os amantes de D Carlota ou as noitadas de D Pedro natildeo os distingua de outros agentes histoacutericos de sua eacutepoca tampouco satildeo trata-dos como tiacutepicos67) Parece razoaacutevel argumentar que ao menos parcial-mente tal insistecircncia da parte do livro didaacutetico atende ao gosto do leitorconsumidor tornando tais suportes materiais mais agradaacuteveis e sedutores assim sendo constata-se justamente um limite no diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e saberes didaacuteticos expressos em tais livros bem como se anuncia uma tendecircncia de representaccedilatildeo humoriacutestica do passado em uma cultura de histoacuteria como a brasileira muito forte em outros suportes68 Eis um mercado ndash que no Brasil mescla dimensotildees editoriais e midiaacuteticas com outras educacionais e culturais mais amplas ndash impondo seus padrotildees de representaccedilatildeo do passado

Aleacutem de envolverem historiadores profissionais em sua produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo os livros didaacuteticos de Ensino Meacutedio parecem esforccedilar-se cada vez mais em trazer conteuacutedos extraiacutedos de obras acadecircmicas bem como apresentar ao leitor uma pluralidade de posiccedilotildees acerca de um determina-

do IpirangaEm meio a uma pescariaSentindo-se mal D PedroComera demais cuscuzDesaperta a braguilhaE grita roxo de raivaOu me livro desta coacutelicaOu morro logo de uma vezO priacutencipe se aliviouSai no caminho cantandoJaacute me sinto independenteSafa Vou de perto a morteVamos cair no fadinhoPra celebrar o sucessordquo MACEDO Joseacute Rivair Brasil ndash uma histoacuteria em construccedilatildeo Satildeo Paulo Brasil 1996 p166 Cit por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p101

69Tomemos por exemplo esta afirmaccedilatildeo ldquoDe acordo

com alguns historiadores as raiacutezes da independecircncia brasileira estatildeo na segunda metade do seacuteculo XVIII quando se multiplicaram atividades produtivas e comerciais na colocircnia sobretudo na regiatildeo Centro-Sulrdquo (MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Op Cit p113) Nela eacute possiacutevel reconhecer a presenccedila de influente e importante interpretaccedilatildeo acadecircmica acerca da Independecircncia do Brasil (DIAS Maria Odila A interiorizaccedilatildeo da metroacutepole (1808-1853) In MOTA Carlos Guilherme 1822 dimensotildees Satildeo Paulo Perspectiva 1972 p160-184) no entanto natildeo eacute apresentada qualquer contraposiccedilatildeo (se esta posiccedilatildeo eacute da parte de ldquoalguns historiadoresrdquo outra divergente deve ser da parte de outros) Mais adiante lecirc-se que ldquoo fato relevante foi que a transferecircncia da corte para o Brasil provocou uma inversatildeo histoacuterica de modo significativo e irreversiacutevel nas relaccedilotildees entre a metroacutepole portuguesa e a colocircnia brasileirardquo (Idem p114) Ora o que seria uma inversatildeo irreversiacutevel dessas relaccedilotildees Portugal teria se tornado para sempre colocircnia do Brasil

70Nos livros didaacuteticos de Ensino Fundamental

analisados por Purificaccedilatildeo jaacute eram abundantes as transcriccedilotildees de trechos de textos de historiadores profissionais sem que deles resultasse qualquer ensejo de pluralidade de pensamento ou de estiacutemulo agrave interpretaccedilatildeo

71VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA

Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p 103

72O capiacutetulo 14 de uma das obras intitulado

ldquoO processo de independecircncia da Ameacuterica portuguesardquo inicia-se com um excerto do Romanceiro da Inconfidecircncia de Ceciacutelia Meireles tambeacutem indutor a essa interpretaccedilatildeo ldquoAtraveacutes de grossas portas sentem-se luzes acesas e haacute indagaccedilotildees minuciosas dentro das casas fronteiras Que estatildeo fazendo tatildeo tarde Que escrevem conversam pensam Mostram livros proibidos Leem notiacutecias nas GazetasTeratildeo recebido cartasde potecircncias estrangeiras [] Oacute vitoacuterias festas flores das lutas da Independecircncia Liberdade ndash essa palavra que o sonho humano alimenta que natildeo haacute ningueacutem que explique e ningueacutem que natildeo entendardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p 202) Jaacute nas ldquosugestotildees de leitura e consulta para o professorrdquo de outra encontra-se indicaccedilatildeo de uma obra de J J Chiavenato - Inconfidecircncia mineira as vaacuterias faces Satildeo Paulo Global 2000 - com este comentaacuterio ldquoo autor mostra o movimento que buscava a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Adotando uma abordagem que parte da realidade socioeconocircmica do periacuteodo este livro releva diferentes aspectos desse momento singular da histoacuteria brasileirardquo (NOGUEIRA Fausto

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do toacutepico que seja decorrente de debates acadecircmicos No entanto ainda eacute frequente que tais conteuacutedos se inclinem agrave pura formalidade dificilmente explicitando divergecircncias oriundas da academia ou resultando em uma tomada de posiccedilatildeo realmente criacutetica perante a histoacuteria69 Ao usuaacuterio do livro eacute apresentada uma suposta pluralidade de pensamento natildeo como ferramenta de obtenccedilatildeo dessa pluralidade mas como estilo de composiccedilatildeo e padronizaccedilatildeo do material didaacutetico70

Esse tipo de atitude formalista pode ser encontrada tambeacutem em propostas de atividades dirigidas ao aluno como esta

A interpretaccedilatildeo sobre a independecircncia do Brasil provocou e ainda provoca muitas divergecircncias Sob o ponto de vista econocircmico alguns pesquisadores defendem que a separaccedilatildeo ocorreu de fato em 1808 [] Outros com interpretaccedilotildees mais poliacuteticas indicam o 7 de setembro de 1822 embora nenhuma medida formal tenha sido tomada nessa data ndash foi um ato simboacutelico Depois da Guerra do Paraguai jornais republicanos argumentavam que [] D Pedro havia atendido aos apelos de independecircncia dos brasileiros mas os teria traiacutedo quando fechou a Assembleia Constituinte em 1823 Enalteciam entatildeo a Inconfidecircncia Mineira (1789) a Revoluccedilatildeo Pernambucana (1817) e a Confederaccedilatildeo do Equador (1824) movimentos com teor republicano conforme as reais aspiraccedilotildees dos brasileiros

Satildeo vaacuterias interpretaccedilotildees que variam de acordo com a posiccedilatildeo poliacutetica ou momento histoacuterico dos autores Alguns intelectuais consideram ateacute mesmo que o Brasil hoje tem uma independecircncia mais nominal do que real pois continuaria dependente dos paiacuteses mais ricos

Em sua opiniatildeo quando o Brasil se tornou um paiacutes independente71

Aqui novamente eacute apresentada uma divergecircncia de interpretaccedilatildeo e vaacuterias satildeo as possibilidades de resposta agrave pergunta quando o Brasil se tornou um paiacutes independente No entanto todas as posiccedilotildees apresentadas parecem equivaler-se pois tudo depende da ldquoposiccedilatildeo poliacuteticardquo ou ldquodo mo-mento histoacutericordquo da pessoa disposta a respondecirc-la Assim e por induccedilatildeo a Inconfidecircncia Mineira poderia ser uma resposta aceitaacutevel conforme visatildeo ainda presente em alguns livros72 e a despeito do contraacuterio que historia-dores vecircm afirmando nas uacuteltimas deacutecadas Do mesmo modo a atividade pareceria aceitar a ldquonatildeo independecircncia de fatordquo ideia muito presente na cultura de histoacuteria no Brasil73 tatildeo sedutora quanto inconsistente do ponto de vista acadecircmico Para o aluno tratar-se-ia de uma questatildeo de simples opccedilatildeo (poliacutetica) diante da qual a Histoacuteria se destemporaliza

Uma Histoacuteria processual mais do que episoacutedica ou personalista uma Histoacuteria permeada de explicaccedilotildees acadecircmicas ao mesmo tempo uma Histoacuteria com limitaccedilotildees em termos de divergecircncias relativizaccedilotildees e possibilidades em aberto condicionada a suportes materiais repletos de convenccedilotildees a tornarem-nos muito parecidos entre si Talvez seja no tra-tamento dispensado a imagens que os livros didaacuteticos melhor revelam tais convenccedilotildees reforccedilando as limitaccedilotildees de seu diaacutelogo com a Histoacuteria acadecirc-mica bem como acentuando suas caracteriacutesticas de mercadoria Todos os livros aqui considerados satildeo carregados de itens especiacuteficos a quebrarem a continuidade do texto e suas paacuteginas satildeo multicoloridas e povoadas por fi-guras como obras de pintores dos seacuteculos XIX e XX74 Quase nunca poreacutem tais imagens satildeo analisadas como fontes histoacutericas confinadas agrave funccedilatildeo de mera ilustraccedilatildeo frequentemente modificadas em cor e tamanho ateacute mesmo mutiladas ndash sem esclarecimento ndash em prol da diagramaccedilatildeo75 Em tais casos inevitavelmente cria-se uma ideia natildeo de uma histoacuteria sujeita a muacuteltiplas interpretaccedilotildees (contrapondo-se portanto a vaacuterias das atividades

e CAPELLARI Marcos Op Cit p71) Em uma terceira obra logo na abertura de um capiacutetulo intitulado ldquoA independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo lecirc-se que ldquoos dias 21 de abril e 7 de setembro feriados nacionais nos fazem lembrar de dois momentos do processo histoacuterico que levou a independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo (COTRIM Gilberto Op Cit p223) A associaccedilatildeo direta entre Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia era mais comumente feita em livros didaacuteticos de deacutecadas atraacutes Um de Ensino Fundamental caracterizava a Revolta de Beckman a Guerra dos Emboabas a Revolta de Felipe dos Santos a Guerra dos Mascates e as conjuraccedilotildees Mineira e Baiana como movimentos nos quais ldquoos revoltosos se opuseram agrave metroacutepole sonhando e lutando pela autonomia do paiacutesrdquo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Nas trilhas da histoacuteria Ensino Fundamental Belo Horizonte Dimensatildeo 1999 v4) Citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p108

73FIGUEIRA Divalte G Op Cit p191 Nos de

Ensino Fundamental AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 CARMO Socircnia S do COUTO Eliane F B A A consolidaccedilatildeo do capitalismo e o Brasil impeacuterio Satildeo Paulo Atual 1997 (Histoacuteria Passado Presente 3) p105 FERREIRA Joseacute Roberto Histoacuteria Ediccedilatildeo Reformulada Satildeo Paulo FTD 1997 (7ordf seacuterie) p65 ALVES Kaacutetia Correia Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p 128 Citados por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p78 84-85 96 e 111

74Debret Rugendas Moreaux Feacutelix Taunay

Constantino Fontes Polliegravere Parreiras Benedito Calixto Delerive Martins Viana Oscar Pereira da Silva Georgina de Albuquerque e Aldemir Martins entre outros

75Isso jaacute era frequente haacute uma deacutecada com livros

de Ensino Fundamental como por exemplo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p126 e COTRIM Geraldo Op Cit p 112 conforme anaacutelise de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p113 e 123 Haacute que se dizer que livros didaacuteticos natildeo satildeo meio exclusivo para esse esvaziamento do valor documental da iconografia havendo na proacutepria publicaccedilatildeo acadecircmica problema semelhante como demonstra CAVENAGHI Airton Joseacute O atlas do impeacuterio do Brazil e as representaccedilotildees presentes no livro Projeto Histoacuteria v 41 2010 p 383-403

76Constataccedilatildeo semelhante agrave de PURIFICACcedilAtildeO Ana

Teresa da Op Cit para os didaacuteticos de Ensino Fundamental

77NOGUEIRA Fausto e CAPELLARI Marcos Op

Cit p255

78Para um deles ldquoo pintor Pedro Ameacuterico imaginou

a cena ocorrida agraves margens do riacho do Ipirangardquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 para outro um ceacutelebre quadro mostraria uma ldquocena de uma

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sessatildeo das cortes de Lisboa reconstituiacuteda pelo pintor Oscar Pereira da Silvardquo Cfr CARMO Socircnia do COUTO Eliane F B A Op Cit p 73 um terceiro propunha ao aluno a seguinte atividade ldquoobserve cuidadosamente as gravuras de Debret que aparecem no texto Descreva cada uma delas e compare as cenas nelas retratadas com as cenas de nossas ruas de hoje Haacute diferenccedila Em que sentidordquo Cfr GARCIA Leocircnidas F Estudos de histoacuteria sociedades contemporacircneas 2 ed rev Goiacircnia Editora da UFG 1996 Manual do Professor p 111 Todas as informaccedilotildees foram retiradas de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p81 88 e 137

79Conforme bem mostrado por Elias Saliba Cfr

SALIBA Elias Experiecircncias e representaccedilotildees sociais reflexotildees sobre o uso e o consumo das imagens Anais do II Encontro Perspectivas do Ensino de Histoacuteria Satildeo Paulo FEUSP 1996 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p119

80Produzida pela Secretaria de Ensino agrave

Distacircncia do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo em parceria com a TV Escola e a Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco com a companhia teatral Matildeo Molenga Parte 1 disponiacutevel em youtubecomwatchv=Z60eHBJ1xjY 18082 visualizaccedilotildees e 15 comentaacuterios parte 2 disponiacutevel em youtubecomwatchv=2QLkP2NDhMg 30100 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios (parte desse episoacutedio tambeacutem disponiacutevel em youtubecomwatchv=bAPUjP7l-lI 18398 visualizaccedilotildees e 16 comentaacuterios acesso em 13022014

81Como Clemente Pereira Gonccedilalves Ledo Cipriano

Barata Paes de Andrade e frei Caneca O fato de se tratar de uma produccedilatildeo pernambucana contribui para tanto

82Semelhante observaccedilatildeo pode ser feita a respeito

dos doze curtos episoacutedios da seacuterie D Joatildeo no Brasil inspirada em uma narrativa em quadrinhos da chegada da Corte ao Brasil seacuterie de animaccedilatildeo produzida pelo Canal Futura baseada no livro de histoacuteria em quadrinhos D Joatildeo Carioca a corte portuguesa chega ao Brasil (1808 - 1821) escrito pela historiadora Lilia Schwarcz e pelo desenhista Spacca (Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007) Novamente tem-se um material convincente afinado em muitos sentidos com um conhecimento acadecircmico mas que ao recorrer agrave saacutetira tambeacutem evoca estereoacutetipos convencionais como por exemplo os mesmos acima mencionados em referecircncia a priacutencipe e princesa Poder-se-ia atribuir tal convencionalismo dentre outros fatores ao de que a primazia da linguagem visual aqui opera duplamente isto eacute com os quadrinhos e tambeacutem com o programa televisivo criado a partir deles amplificando assim os efeitos decorrentes da saturaccedilatildeo visual da sociedade que daacute origem e significado a esse material Para todos os efeitos a imposiccedilatildeo de tais convenccedilotildees eacute forte ateacute mesmo conforme jaacute visto em materiais menos visuais que este Episoacutedio 01 youtubecomwatchv= 9f5RB1zcD5Eamplist=PLyP1ks9vaqhj2y6MmckU DyuXtWmHgPLe5ampindex=1 331 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio episoacutedio 02 youtubecomwatchv= w-BLqvhYPGkamplist=PL5837763F26AB1B87

oferecidas pelos proacuteprios livros) mas de uma histoacuteria imoacutevel a ser captada de modo instantacircneo uma histoacuteria verdadeira Aleacutem do mais confundem-se os diferentes contextos motivaccedilotildees e condiccedilotildees de produccedilatildeo de tais imagens o que equivale agrave oferta de uma confusatildeo temporal que impossibi-lita a compreensatildeo dessa histoacuteria76

As uacutenicas exceccedilotildees satildeo os ceacutelebres quadros de Moreaux e de Pe-dro Ameacuterico Todos os livros didaacuteticos aqui considerados se esforccedilam por submetecirc-los a uma criacutetica muitas vezes comparativa considerando forma conteuacutedo e contexto mesmo assim eacute possiacutevel encontrar afirmaccedilotildees como a de que Ameacuterico teria tido ldquoo intuito de fazer a representaccedilatildeo desse famoso acontecimento da maneira mais fiel possiacutevelrdquo e que ldquomuitos dos elementos representados pelo pintor satildeo sabidamente falsosrdquo77 Provavel-mente satildeo resquiacutecios de um momento anterior no qual os livros didaacuteticos mostravam-se muito menos cuidadosos ateacute mesmo na utilizaccedilatildeo do quadro de Ameacuterico78 mas tambeacutem marcas atuais de uma sociedade de haacutebitos fortemente visuais cuja saturaccedilatildeo de imagens tende a resultar em posturas pouco criacuteticas em relaccedilatildeo ao que se vecirc bem como em indistinccedilatildeo tempo-ral das mesmas79 Haacute que se lembrar por fim e novamente que os textos desses livros satildeo cheios de descontinuidades como se cada pedaccedilo de cada paacutegina tivesse autonomia prescindindo de certo modo da leitura dos demais Guardaratildeo tais constataccedilotildees alguma relaccedilatildeo com as dificuldades apresentadas pelos entrevistados na sondagem de opiniatildeo de organizar visotildees da Histoacuteria da Independecircncia segundo marcos cronoloacutegicos bem como de distinguir diferenccedilas entre intervalos temporais Eacute bem possiacutevel sobretudo porque ela seraacute endossada pela observaccedilatildeo de outras fontes

5 - A Independecircncia na internet e na tevecircExiste farto e rico material audiovisual disponiacutevel na internet com referecircncias agrave Independecircncia do Brasil e que a exemplo dos livros didaacuteticos represen-tam a convergecircncia de esforccedilos profissionais muacuteltiplos (mais os programas de tevecirc do que os viacutedeos independentes) como pesquisadores roteiristas apresentadores repoacuterteres cenoacutegrafos teacutecnicos variados etc As fontes aqui delimitadas perfazem 107 viacutedeos acessiacuteveis no YouTube e que natildeo obstante sua ampliacutessima diversidade convergem em muitos significados

Observe-se o caso de viacutedeos educativos documentaacuterios e programas de televisatildeo com entrevistas e debates que em comum apresentam objetivos formativos e esforccedilos verdadeiros de incorporaccedilatildeo de conteuacutedos acadecircmicos traduzidos em linguagens didaacuteticas Um caso exemplar eacute a seacuterie 500 anos o Brasil - Impeacuterio na TV que conta uma histoacuteria do Brasil da chegada da Corte ao periacuteodo das regecircncias em formato de telejornal com trama romanceada e teatro de bonecos80 Aqui vecirc-se uma Histoacuteria processual com informa-ccedilotildees corretas e amparadas em datas deslocamentos frequentes dos eixos espaciais de observaccedilatildeo (regional internacional) com menccedilatildeo a persona-gens que extrapolam o tradicional ciacuterculo da Corte portuguesa81 e ecircnfase no caraacuteter violento e conflitivo da formaccedilatildeo do Brasil no seacuteculo XIX Mesmo um material histoacuterico-pedagoacutegico desse quilate evoca por exemplo a falta de atributos esteacuteticos de Carlota Joaquina ou a pusilanimidade de seu marido a revelarem mais uma vez o mercadologicamente eficiente componente bio-graacutefico-anedoacutetico no tratamento da Independecircncia advindo de sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria mais ampla82

Em outros casos o fato de programas de televisatildeo buscarem o auxiacutelio de especialistas na Independecircncia revela uma convenccedilatildeo formal como nos

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16566 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios episoacutedio 03 youtubecomwatchv=QvWSE-sF-w4amplist =PL5837763F26AB1B87 18406 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios episoacutedio 04 youtubecomwatchv= 2N5wBvpgyXEamplist=PL5837763F26AB1B87 12808 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 05 youtubecomwatchv=VaHrSAFBf1Uamplist =PL5837763F26AB1B87 14615 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 06 youtubecomwatchv= 8RrCMbOZTsAamplist=PL5837763F26AB1B87 12649 visualizaccedilotildees 10 comentaacuterios episoacutedio 07 youtubecomwatchv=I4cgWo_GHaQ 601 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 08 youtubecomwatchv=rI71YNrLo7o 12299 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 09 youtubecomwatchv=huv2ngnqUd4 367 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios episoacutedio 10 youtubecomwatchv=F2MaLs_kj-w 10842 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios episoacutedio 11 youtubecomwatchv=8zK3D01dXc0 9388 visualizaccedilotildees 05 comentaacuterios episoacutedio 12 youtubecomwatchv=R76BHD--vB8amplist=PL5837763F26AB1B87 12108 visualizaccedilotildees 9 comentaacuterios acessos em 03042014

83NAPOLITANO Marcos A Histoacuteria depois do

papel In Carla Pinsky (org) Fontes Histoacutericas Satildeo Paulo Contexto 2005 p250-252 Napolitano afirma com base em Umberto Eco que a televisatildeo introduziu uma mudanccedila de ritmo de vida familiar e cotidiana bem como o que se pode chamar de hipertrofia sensorial em detrimento da assimilaccedilatildeo conceitual Destaca ainda que eacute preciso pensar a televisatildeo como uma nova experiecircncia social do tempo histoacuterico na medida em que ela faz coincidir o verdadeiro o imaginaacuterio e o real no ponto indivisiacutevel do presente

84Produzida pela rede de emissoras puacuteblicas

TV Brasil Sobre a Revolta dos Alfaiates parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo 767 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=dj04LJJM8bk 2592 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio Sobre a Batalha do Jenipapo parte 1 youtubecomwatchv=zlgsZcj-V3o 2426 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios acesso em 24032013 parte 2 youtubecomwatchv=rAS3dHAvWPQ 1283 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio Sobre Tiradentes youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 408 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013)

85Marco Morel e Luiacutes Henrique Dias Tavares

86Programa De laacute pra caacute Revolta dos Alfaiates

parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo

87Exceccedilatildeo satildeo as entrevistas realizadas por

Mocircnica Teixeira na UnivespTV que estabelecem comunicaccedilatildeo bastante profiacutecua entre a entrevistadora e os acadecircmicos entrevistados (youtubecomwatchv=syXf3WHQRPM 4450 visualizaccedilotildees 06 comentaacuterios youtubecomwatchv=pZk5pFlboqw 3303 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=5pUDP2KUYCY 4128 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios

livros didaacuteticos e a exemplo destes a intenccedilatildeo de acolher uma multipli-cidade de vozes raramente enseja verdadeira pluralidade de pensamento o que ademais eacute dificultado pela natureza curta sinteacutetica e acelerada dos materiais televisivos Nessas situaccedilotildees constata-se que o historiador fala uma coisa mas o entrevistador e o produtor continuam a ldquoescutarrdquo outra o que muitas vezes reforccedila a percepccedilatildeo de descontinuidade narrativa an-teriormente tambeacutem diagnosticada nos livros didaacuteticos e que na televisatildeo adquire contornos de regra83 Os episoacutedios da seacuterie De laacute para caacute educati-vos didaacuteticos aacutevidos por com conhecimentos acadecircmicos e produzidos por uma rede puacuteblica de televisatildeo sem fins lucrativos apresentam interessante exemplo84 No programa dedicado aos acontecimentos de 1798 na Bahia dois historiadores profissionais85 esclarecem que os revoltosos ldquobahien-sesrdquo almejavam a independecircncia apenas da capitania da Bahia o que tem enormes implicaccedilotildees a destituiacuterem tais acontecimentos de qualquer atribu-to supostamente preparatoacuterio da Independecircncia do Brasil (situaccedilatildeo muito semelhante conforme vimos agrave da Inconfidecircncia Mineira) natildeo obstante na abertura do programa seu apresentador declara

A luta pela independecircncia do Brasil foi escrita nas paacuteginas memoraacuteveis da nossa histoacuteria com o sangue de um punhado de brasileiros O mais celebrado foi Tiradentes Mas sete anos depois do martiacuterio de Tiradentes quatro brasileiros pretos pobres pelos mesmos ideais foram enforcados e sentenciados em Salvador86

Em outros momentos o apresentador apesar de ouvir de forma soliacutecita e atenta ao que o entrevistado tem a dizer acaba por negar com sua proacutepria fala parte do conteuacutedo receacutem-ouvido mas sem demonstrar ser essa atitude premeditada ou consciente Afinal eacute difiacutecil desvencilhar-se daquilo que jaacute se ldquosaberdquo daquilo que adveacutem de um ambiente que o tempo todo nos ldquoensinardquo Histoacuteria sem necessariamente disso nos darmos conta87

A incapacidade de assimilaccedilatildeo reciacuteproca de ideias acerca da histoacute-ria entre agentes sociais diversos pode revelar-se de muitos modos Um dos programas da seacuterie Caminhos da Reportagem intitulado Caminhos da Independecircncia o grito nas ruas produzido com as mesmas caracteriacutesticas do anterior aborda a Independecircncia focada em seus panfletos poliacuteticos a partir da pesquisa recente de trecircs historiadores profissionais88 No entan-to e a despeito natildeo soacute de dar ampla voz a eles mas tambeacutem de abordar conteuacutedos didaticamente inovadores a equipe de entrevista que foi agraves ruas natildeo estabeleceu qualquer mediaccedilatildeo entre histoacuterias acadecircmicas e natildeo acadecircmicas pressupondo que todas as pessoas ocupam uma mesma posiccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria Por isso perguntas incompreensiacuteveis89 resultam apenas em situaccedilotildees vexatoacuterias impeditivas da construccedilatildeo de conhecimento sobre o tema

A abordagem de pessoas nas ruas recurso frequentemente utiliza-do por programas televisivos revela dados importantes acerca de como os brasileiros veem a Independecircncia muitas vezes mais por aquilo que eacute perguntado do que por aquilo que eacute respondido90 O programa + Estilo de 07 de setembro de 2011 produzido pela TV Campo Grande com conteuacutedo de variedades destinado a telespectadores de meio de tarde foi agraves ruas (provavelmente de Campo Grande Mato Grosso do Sul) perguntar se as pessoas saberiam dizer o que se comemorava naquele dia Primeiro res-ponde uma jovem com um bebecirc no colo

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youtubecomwatchv=0ZVgCwkt1ms 1384 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1016 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1227 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=ANSHAFLau04 1175 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios) Acessos em 21042014

88Joseacute Murilo de Carvalho Luacutecia Pereira das Neves

e Marcello Basile

89A apresentadora ldquoVocecircs sabem o que significa

corcundardquo Um professor de coleacutegio ldquoDeve ser alguma coisa que estaacute surgindo aiacute no mundo um pouco mais ciberneacutetico porque eu nem na faculdade ouvi falar dos corcundasrdquo Marcos Tomazzeti produtor multimiacutedia ldquoNa minha cabeccedila vem algo de monarquia de rei algo meio poliacuteticordquo Simone Granda bancaacuteria ldquoDicionaacuterio de corcundice Natildeo seirdquo Marilu Guimaratildees dona de casa ldquoPuxa tem tanta coisa importante pra ter dicionaacuterio vai ter justo do corcundistardquo Caminhos da Independecircncia youtubecomwatchv=37XH5UEpjlI acesso em 24032013

90Em perspectiva oposta mas complementar agrave da

sondagem de opiniatildeo aqui utilizada

91E que portanto muito provavelmente ainda natildeo

tinha tido contato formal (escolar) com o tema

92O programa prossegue entatildeo com uma entrevista

com o professor Ian Rari que trata de uma Histoacuteria da Independecircncia processual natildeo centrada em uma uacutenica data ou fato criacutetica etc Mais um momento onde as vaacuterias vozes contempladas pelo programa natildeo dialogam entre si (youtubecomwatchv=xv1LOlwUfFQ 289 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio) Outro exemplo significativo eacute dado pelo programa Conexatildeo Jovem exibido em 06 de setembro de 2012 no qual dois entrevistados ndash Prof Bira professor de Histoacuteria e Marcos Eduardo socioacutelogo ndash utilizam com competecircncia o pouco tempo a eles destinado discorrendo de modo criacutetico sobre a Independecircncia e em linguagem adequada ao puacuteblico jovem ao qual o programa se destina (produccedilatildeo da TV Novo Tempo adventista parte 1 youtubecomwatchv=1IvYOYtju9sgt 74 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=Ofv7QWOJpHo 47 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013) Logo o programa traz uma abordagem feita na rua na qual a entrevistadora pergunta a uma jovem ldquoQuem falou lsquoindependecircncia ou mortersquo agraves margens do riacho do Ipirangardquo Diante da correta resposta a entrevistadora tenta induzir um erro ldquo15 de novembro ou 7 de setembrordquo Aliaacutes a expectativa do programa parece revelada pela entrevistadora logo na primeira pergunta feita a um dos convidados ldquoseraacute que os jovens se interessam pela histoacuteria de seu paiacutesrdquo E embora o material recolhido pelo proacuteprio programa permita resposta afirmativa manteacutem-se a postura negativa preacute-concebida

93Daiacute a relevacircncia de um viacutedeo com fotografias e

um aacuteudio (youtubecomwatchv=UdQ_aAAl3DE)

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoE isso em que ano que foi que aconteceurdquoResposta ldquo1822rdquo

Em seguida outro jovem que provavelmente jaacute tinha respondido a outra pergunta

Pergunta ldquoQuem foi o imperador vocecirc lembrardquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoAcertou Canta pra gente um trecho do hino da independecircnciardquoResposta ldquoAgora natildeo lembrordquo

Agora o programa aborda uma menina de cerca de dez anos clara-mente intimada91

Pergunta Por que eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoNatildeo seirdquoPergunta ldquoNatildeo lembra Vou dar uma dica um fato histoacuterico muito importante para o BrasilrdquoResposta (negativa com a cabeccedila)

Em quarto lugar outra jovem que procura se afastar da cacircmera

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta (ainda tentando se esquivar sorrindo) ldquoNatildeordquoPergunta ldquoNatildeo saberdquoResposta ldquoAh A Independecircncia Eu natildeo prestei atenccedilatildeordquoPergunta Que ano aconteceu a Independecircncia vocecirc lembrardquoResposta ldquoNatildeordquoPergunta ldquoE quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoTambeacutem natildeo lembrordquo

Por fim a entrevista com um senhor de meia-idade comeccedila jaacute com uma resposta

Resposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoQue ano aconteceu issordquoResposta ldquo1888rdquoPergunta ldquo1822 Quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoCerto E onde foi que aconteceu tudo issordquoResposta ldquoSatildeo PaulordquoPergunta ldquoOK [breve silecircncio] Canta um trechinho para noacutes do hino da IndependecircnciardquoResposta ldquoJaacute podeis da paacutetria matildeerdquo [sic -prossegue cantando corretamente]

Em seguida o programa corta para uma sala de aula onde a despeito dos ldquoacertosrdquo obtidos nas ruas a entrevistadora afirma

Diante da dificuldade que noacutes encontramos no centro da cidade para saber informaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil eu vim parar na sala de aula Vai ser aqui que a gente vai descobrir a histoacuteria do paiacutes92

A ideia a priori de que o brasileiro natildeo conhece e natildeo se interessa pela histoacuteria subsidia este e muitos outros programas Aqui o dado mais relevante parece estar precisamente nessa arraigada crenccedila no desinteres-

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da entatildeo prefeita de Ribeiratildeo Preto (Satildeo Paulo) Darcy Vera que afirma durante um desfile de 7 de Setembro dentre vaacuterios desvarios que ldquoTiradentes gritou lsquoIndependecircncia ou mortersquordquo Com 169919 acessos e 149 comentaacuterios (em geral criacuteticos bem humorados e depreciativos) ateacute 20082014 condensa a possibilidade de amplificaccedilatildeo do estigma do natildeo domiacutenio de referecircncias convencionais agrave Independecircncia mas sem fomentar nenhum conhecimento da mesma

94Novamente surge a questatildeo natildeo teratildeo as

renovaccedilotildees curriculares promovidas no ensino de Histoacuteria (no Brasil e alhures) das uacuteltimas deacutecadas exagerado nessa incompatibilidade Teratildeo elas sido capazes de mensurar seus efeitos deleteacuterios diante de sociedades jaacute bastante refrataacuterias a uma histoacuteria cronoloacutegica

95ldquoPouco importa que sua figura tenha sido

mitificada pela propaganda republicana O que importa eacute que ele foi um heroacutei Ele deu sua vida pela paacutetria e pela liberdaderdquo (Programa De laacute pra caacute youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032013) Essa exaltaccedilatildeo da figura de Tiradentes associada agrave Independecircncia conduz o discurso da propaganda eleitoral de um candidato agrave prefeitura de Ouro Preto em 2012 (youtubecomwatchv=eGefgLoRhec 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032014) Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo no dia 09 de setembro de 2013 apoacutes se autocaracterizar como realizador de uma ldquohistoacuteria de carne e ossordquo em contraposiccedilatildeo a produccedilotildees ldquocontaminadas pela anaacutelise marxistardquo que retirariam os personagens da Histoacuteria o jornalista Laurentino Gomes afirma ldquoNo 1822 faccedilo uma comparaccedilatildeo e digo que o uacutenico problema do Joseacute Bonifaacutecio foi nascer no Brasil pois se ele tivesse nascido nos Estados Unidos teria sido maior que o Thomas Jefferson Porque aparentemente ele era mais preparado mais luacutecido que o Thomas Jeffersonrdquo (parte 1 youtubecomwatchv=uGibbLxsZK0 4501 visualizaccedilotildees e 5 comentaacuterios parte 2 youtubecomwatchv=2LQcEcb5kLU 2302 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios acesso em 26032014 Logo voltaremos agrave obra e agraves ideias de L Gomes

96Um exemplo adveacutem do viacutedeo ldquoA verdadeira

independecircncia do Brasilrdquo em que um pastor evangeacutelico em meio a uma cerimocircnia religiosa ldquodesconstroacuteirdquo o quadro de Pedro Ameacuterico acusando-o de pouco verossiacutemil e aponta os desvios morais de D Pedro I de modo a inviabilizaacute-lo como figura histoacuterica digna de memoacuteria (youtubecomwatchv=RsKQr6bgzLA 178 visualizaccedilotildees e 2 comentaacuterios acesso em 24032014) A suposta irrelevacircncia dos personagens envolvidos no processo da independecircncia eacute notaacutevel na fala de um professor de Ensino Meacutedio (youtubecomwatchv=gvWVF9j2KEU 597 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) e de um apresentador de temas religiosos que relativizam a importacircncia do tema ao afirmarem a atual ldquodependecircncia econocircmicardquo do Brasil (youtubecomwatchv=EXyUBY7StF4 383 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Tambeacutem retornaremos a esse tema

sedesconhecimento do brasileiro pela histoacuteria bem como em um de seus efeitos mais contundentes a crenccedila de que eacute possiacutevel reverter tal situaccedilatildeo pela simples mobilizaccedilatildeo formal de datas nomes e eventos Contudo se a Independecircncia se converte em uma catalizadora de referecircncias cronoloacute-gicas ou nominais isso natildeo leva necessariamente a uma historicizaccedilatildeo do tema pelo contraacuterio a mobilizaccedilatildeo de tais referecircncias em termos como os acima mencionados (a data ou o nome por si soacutes) pode resultar no apro-fundamento da tendecircncia agrave confusatildeo temporal jaacute aqui apontada93

Nos meios intelectuais a discussatildeo em torno das formas tempo-rais de vivecircncia coletiva naquilo que se pode chamar ndash recorrendo-se a uma categoria uacutetil ndash de modernidade natildeo eacute nova tampouco estaacute em vias de esgotamento A dificuldade de organizaccedilatildeo do mundo social segundo referecircncias cronoloacutegicas natildeo seraacute em absoluto distintiva de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil embora o contraacuterio deva ser dito em relaccedilatildeo agraves formas assumidas por tais dificuldades (como as noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia) Percebe-se entatildeo o peso do estigma da dificuldade em manejar datas nomes e fatos suposta prova de um desin-teresseignoracircncia que poderia ser combatido com um retorno a velhas formas de se fazer Histoacuteria e nas quais tais elementos eram considera-dos com a essecircncia da compreensatildeo histoacuterica Natildeo parece que as coisas devam propriamente se passar segundo essa representaccedilatildeo embora um dos confrontos existentes na cultura de histoacuteria no Brasil seja sem duacutevida a polarizaccedilatildeo entre a valorizaccedilatildeo da Independecircncia (= de suas datas nomes eventos siacutembolos e supostos valores etc) e a desvalorizaccedilatildeo da mesma (=seu caraacuteter elitista e negociador a diminuiccedilatildeo da histoacuteria do Brasil em comparaccedilatildeo com a de outros paiacuteses a comicidade dessa histoacuteria etc) Eacute plausiacutevel conceber que esta segunda posiccedilatildeo encontre um aliado na con-cepccedilatildeo de incompatibilidade entre uma histoacuteria amparada por referecircncias cronoloacutegicas e ao mesmo tempo em processos estruturas e temas trans-versais do gosto inclusive de muitos acadecircmicos e educadores94

Os exemplos de materiais audiovisuais a traduzirem veicularem e fomentarem esse confronto entre valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo da Inde-pendecircncia satildeo muitos Aleacutem dos jaacute tratados ateacute aqui pode-se mencionar viacutedeos contendo propaganda de instituiccedilotildees puacuteblicas civis e militares de partidos poliacuteticos de grupos maccedilocircnicos de igrejas e de empresas variadas bem como produccedilotildees independentes Neles eacute possiacutevel encontrar desde a exaltaccedilatildeo das referecircncias mais convencionais agrave Independecircncia como a seus personagens (incluindo seu suposto maacutertir Tiradentes)95 ateacute a afirma-ccedilatildeo de sua total irrelevacircncia96 isso costuma ocorrer sem muitos matizes obedecendo a uma loacutegica dicotocircmica plasmada em linguagens simples com descontinuidades discursivas e imageacuteticas e num ritmo de exposiccedilatildeo acelerado Em suma tratam da Independecircncia segundo padrotildees parcial-mente compartilhados tambeacutem por outras fontes ateacute aqui analisadas

Todas essas fontes com suas noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia satildeo sintomaacuteticas de estados de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema bem como potenciais formadores de opiniatildeo dos mesmos Sua capacidade de criaccedilatildeo de conhecimento no entanto se mostra muito limi-tada Eacute bem verdade que esta eacute por vocaccedilatildeo uma tarefa confiada a saberes acadecircmicos ndash jaacute que no Brasil a quase totalidade da pesquisa em Histoacuteria estaacute entregue agraves universidades salvo a de interesse corporativo ndash de modo que natildeo seria de esperar inovaccedilatildeo em suportes tatildeo variados e socialmen-te diversificados quanto os ateacute aqui analisados Mas parece haver aiacute certo

25Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

ciacuterculo vicioso a envolver tambeacutem parte da academia Basta observar que a ideia da ldquonatildeo Independecircncia de fatordquo tatildeo em voga entre tantos historiadores durante tanto tempo reverbera com forccedila na sociedade em geral97 e ainda goza de prestiacutegio ateacute mesmo entre alguns acadecircmicos que bebem-na da sociedade e apoacutes modificaacute-la parcialmente devolvem-na aos espaccedilos de di-vulgaccedilatildeo98 Essa versatildeo da Histoacuteria eacute capaz de transpor fronteiras temporais de atualizar-se em diferentes contextos e ateacute mesmo de superar abissais diferenccedilas poliacuteticas ela estaacute representada por exemplo e de modo quase idecircntico na propaganda poliacutetica de um partido trotskista e na pregaccedilatildeo nacionalista-direitista de um polecircmico professor de histoacuteria99

Por fim tome-se o caso de trecircs produccedilotildees da Rede Globo de Televi-satildeo voltadas ao puacuteblico em geral com consideraacuteveis aportes financeiros e complexa produccedilatildeo a seacuterie documental A Corte no Brasil para exibiccedilatildeo em tevecirc fechada100 e as seacuteries humoriacutesticas O Quinto dos Infernos101 e Eacute muita Histoacuteria Dia de Fuacuteria102 veiculadas amplamente em tevecirc aberta No pri-meiro caso siacutetios histoacutericos visitados pelas apresentadoras uma narrativa soacutebria e informativa de fatos e processos grande quantidade de entrevistas com historiadores ecircnfase em diferentes espaccedilos regionais e internacio-nais e tratamento do tema em muacuteltiplas dimensotildees (poliacutetica econocircmica cultural) No segundo caso uma narrativa romanceada teatral e cocircmica fortemente despolitizada e livremente baseada em trecircs livros de igual teor (um deles publicado haacute quase um seacuteculo)103 praticamente centrada no Rio de Janeiro (um pouco tambeacutem em Portugal muito menos alhures) e nos membros da famiacutelia real portuguesa cuja vida pessoal eacute estruturada em torno de seus haacutebitos excecircntricos (principalmente os sexuais) e vez ou outra de passageiros dramas pessoais104

Finalmente no terceiro caso uma encenaccedilatildeo tambeacutem cocircmica pro-tagonizada por um escritor-autor-ator-palhaccedilo com grande liberdade de criaccedilatildeo mas amparada em informaccedilotildees convenccedilotildees e mitos a oferecer uma versatildeo do Sete de Setembro segundo o estado psico-fisioloacutegico de D Pedro

Eis um exemplo de uma das modalidades assumidas pela disputa em torno de uma Independecircncia valorizada e outra depreciada Pareceria justificaacutevel opor a tal diagnoacutestico a constataccedilatildeo de se tratarem de obras televisivas de distinto teor o que desobriga a segunda e a terceira de qual-quer compromisso com a verdade No entanto interessam-nos mais seus significados e efeitos do que intenccedilotildees Note-se que a primeira documen-tal eacute de circulaccedilatildeo mais restrita que a segunda e a terceira voltadas para grande puacuteblico por isso seus efeitos nesse jogo de criaccedilatildeorecriaccedilatildeo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da Independecircncia satildeo natildeo apenas assimeacutetricos mas tambeacutem concorrentes105 Os esforccedilos de um pro-grama por posicionar o espectador diante de uma histoacuteria processual de encadeamentos temporais e de grupos e conflitos sociais satildeo naturalmente obstados pelos dos outros dois a oferecer uma histoacuteria repleta de anacro-nismos anedoacutetica e biograacutefica em perfeita sintonia com demandas mais amplas de uma sociedade ndash e de alguns de seus componentes mercadoloacutegi-cos jaacute aqui mencionados ndash na qual a vida privada eacute mais valorizada do que a puacuteblica106 Nesse confronto embora as trecircs convivam na mesma cultura de histoacuteria uma Independecircncia tende a prevalecer sobre a outra107

6 ndash A Independecircncia no cinemaEm relaccedilatildeo a livros didaacuteticos programas de televisatildeo e outros materiais audiovisuais as fontes cinematograacuteficas aqui consideradas naturalmente

97Exemplo encontra-se no viacutedeo ldquoAway Nilzer ndash

Independecircncia do Brasilrdquo com grande nuacutemero de visualizaccedilotildees (130677) e de comentaacuterios (1016) que minimiza e ridiculariza natildeo apenas o processo da independecircncia como quaisquer fatos histoacutericos brasileiros de maneira geral (youtubecomwatchv=Vd_kloNeQV0) O Brasil atual como viacutetima de uma exploraccedilatildeo econocircmica mais intensa do que nos tempos coloniais e portanto natildeo-independente aparece na fala de outro professor (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2806 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) e nos comentaacuterios de um boneco marionete de um programa infantil (youtubecomwatchv=9mh3Tu6c4_w 173 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032014)

98Exemplo desse processo de ldquodevoluccedilatildeordquo pode ser

comprovado no viacutedeo ldquoIndependecircncia ou morterdquo (youtubecomwatchv=QUvnz1no1m8 934 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Outros dois exemplos pertinentes satildeo a insistecircncia nas ideias de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil e que a Independecircncia foi uma luta entre brasileiros e portugueses

99Em entrevista a uma rede local de televisatildeo

ouvimos do professor de histoacuteria do Ensino Meacutedio Wander Pugliesi ldquoSe noacutes formos trabalhar com sinceridade o Brasil ainda natildeo eacute independente Na verdade somos muito mais explorados do que quando eacuteramos colocircnia de Portugalrdquo (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2815 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) A mesma relativizaccedilatildeo do processo de independecircncia aparece na fala do candidato agrave presidecircncia em 2010 pelo PSTU Zeacute Maria ldquohoje infelizmente natildeo podemos comemorar uma verdadeira independecircncia do paiacutes Eacute preciso dizer a verdade as multinacionais controlam a economia brasileira As decisotildees fundamentais satildeo tomadas por elas fora do paiacutesrdquo (youtubecomwatchv=ht9Yt0PlGnU 1803 visualizaccedilotildees um comentaacuterio) Acessos em 26032013

100Direccedilatildeo de Carlos Henrique Schroder 2008

Produccedilatildeo de 16 episoacutedios de cerca de 20 minutos cada para o canal da TV fechada GloboNews A seacuterie foi comercializada em DVD e pode ser vista tambeacutem no canal Globosat no Youtube (youtubecomwatchfeature= player_detailpageampv= OUX-zSyaMIc e viacutedeos relacionados Acesso em 27032014)

101Direccedilatildeo de Wolf Maya e Alexandre Avancini e

criaccedilatildeo de Carlos Lombardi 2002 Produccedilatildeo de 48 episoacutedios com cerca de 40 minutos cada para o canal da TV aberta Rede Globo de Televisatildeo A minisseacuterie tambeacutem foi comercializada em DVD e vem sendo (desde janeiro de 2014) reprisada no Canal Viva (rede fechada de televisatildeo filiada Globosat) uma reprise anterior ocorreu de agosto a novembro de 2011 sempre por volta das 23h

102Direccedilatildeo de Joatildeo Carrascosa e Pedro Bial 2007

Produccedilatildeo de 9 capiacutetulos de cerca de 15 minutos

26Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

apresentam especificidades Tendem a diversificar (eventualmente ampliar) o rol de profissionais envolvidos em sua produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo bem como a tratar conteuacutedos em um tempo mais lento criando uma sensaccedilatildeo de homogeneidade de significados reforccedilada pela aderecircncia de tais conteuacutedos a uma trama central Tal homogeneidade por seu turno eacute relativizada por uma liberdade de criaccedilatildeo que dificilmente encontra paralelo em outros dos materiais aqui considerados ndash com a possiacutevel exceccedilatildeo da minisseacuterie O Quinto dos Infernos No entanto quando a comparaccedilatildeo eacute feita com os li-vros didaacuteticos os conteuacutedos relativos agrave Independecircncia no cinema tendem a ser menos numerosos mais superficiais e efecircmeros justamente por serem menos assumidamente informativos do que os dos livros embora isso possa encontrar alguma compensaccedilatildeo em uma linguagem visual de forte apelo emotivo Para todos os efeitos como aponta um estudioso da mateacuteria os filmes de temaacutetica histoacuterica carregam sempre certa ambiguidade ocupam uma espeacutecie de ldquoentrelugarrdquo com forccedila para criar ldquoverdadesrdquo socialmente aceitas108 Nos cinco filmes aqui considerados109 as ldquoverdadesrdquo sobre a Independecircncia tendem a replicar linhas de forccedila jaacute conhecidas mesclando temporalidades correspondentes tanto aos momentos em que foram pro-duzidos quanto aos momentos posteriores em que foram sendo exibidos110

Independecircncia ou Morte produccedilatildeo a serviccedilo das comemoraccedilotildees oficiais do sesquicentenaacuterio da Independecircncia levadas a cabo pelo go-verno ditatorial brasileiro em 1972 mostra uma narrativa de forte teor didaacutetico-pedagoacutegico sem grandes pretensotildees artiacutesticas expliacutecitas111 com diaacutelogos e situaccedilotildees muitas vezes retirados de obras sobre a Independecircncia e tratados de forma literal Sua finalidade eacute clara ldquoensinarrdquo aos especta-dores uma histoacuteria e uma memoacuteria coletivas homogecircneas aplainadas de pluralidades ou de desavenccedilas Uma histoacuteria supostamente indiscutiacutevel porque verdadeira posta a serviccedilo dos tambeacutem supostos interesses mais elevados da naccedilatildeo brasileira (por isso nela a vida privada dos persona-gens eacute toda submetida agrave sua funccedilatildeo poliacutetica inclusive no caso da relaccedilatildeo afetiva entre um D Pedro de boa aparecircncia querido do povo e mulherengo e uma ambiciosa romacircntica e sensiacutevel Domitila112) Uma espeacutecie de cartilha oficial da Independecircncia em imagens na qual se faz presente ateacute mesmo uma recomposiccedilatildeo cecircnica do quadro de Pedro Ameacuterico

Eacute interessante observar como Os Inconfidentes produzido no mesmo ano de 1972 mesmo sendo um filme amparado em abundantes liberdades e experimentos esteacuteticos cheio de ambiguidades propositais e contra-pondo-se ao oficialismo histoacuterico tatildeo em voga agrave eacutepoca por meio de uma metaacutefora na qual os contestadores agrave ditadura brasileira se convertem em sediciosos das Minas Gerais do seacuteculo XVIII natildeo se configura como mate-rial singular e discrepante de Independecircncia ou Morte em pelo menos trecircs sentidos primeiro porque em vaacuterios momentos associa a Inconfidecircncia Mi-neira com a Independecircncia do Brasil a exemplo do que Independecircncia ou Morte prega jaacute em seu primeiro texto didaacutetico113 Segundo porque tambeacutem oficializa eventos convencionalmente tidos por fundacionais da histoacuteria do Brasil (soacute que natildeo os de 1808-1822 mas os de 1788-1789) Terceiro reforccedila a prevalecircncia de indiviacuteduos sobre coletividades da imagem de um heroacutei central da trama e de uma oposiccedilatildeo de interesses maniqueiacutesta que certamente poderia se aplicar com mais rigor ao contexto em que foi feito o filme do que agravequele ao qual formalmente se refere Assim para todos os efeitos substratos de uma concepccedilatildeo de histoacuteria satildeo em ambos convergentes Em um ambiente social multifacetado em termos de no-

cada dentro do programa dominical Fantaacutestico da Rede Globo de Televisatildeo A seacuterie foi baseada no livro Brasil uma Histoacuteria de Eduardo Bueno jornalista que tambeacutem atua na seacuterie (youtubecomwatchv=3LzGKt9Pd0M acesso em 27032014)

103SETUacuteBAL Paulo As Maluquices do Imperador

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1927 CALADO Ivanir A Imperatriz no Fim do Mundo memoacuterias duacutebias de Ameacutelia de Leichtenberg Rio de Janeiro Rio Fundo Editora 1992 e TORERO Joseacute Roberto Galantes memoacuterias e admiraacuteveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes o Chalaccedila Satildeo Paulo Companhia das Letras 1994

104A trama e a narrativa do Quinto dos Infernos

recusam explicitamente a inserccedilatildeo de quaisquer componentes que natildeo os da ordem privada de seus convencionais personagens assim questotildees poliacuteticas satildeo sempre menores do que o apetite sexual de Carlota Joaquina as perversotildees de D Miguel ou a fogosidade de Domitila a economia soacute surge em pontuais pretextos cocircmicos enquanto a escravidatildeo eacute referida exclusivamente por meio de alegres e libidinosas criadas (negras) permanentemente dispostas a servirem aos desejos do heroacutei da histoacuteria D Pedro

105A anaacutelise poderia se completar com a minisseacuterie

A Marquesa de Santos dirigida por Ary Coslov e exibida pela extinta Rede Manchete de televisatildeo em 1984 agrave qual infelizmente natildeo se obteve acesso satisfatoacuterio

106Tal predileccedilatildeo pode ser entendida como mais

um fator caracteriacutestico de um momento em que a articulaccedilatildeo entre aquilo que Guy Debord chamaria de ldquosociedade do espetaacuteculordquo e Adorno e Horkheimer (dentre muitos outros) de ldquoinduacutestria culturalrdquo torna sintomaacutetico a saliecircncia do indiviacuteduo e o esvaziamento da esfera puacuteblica

107A comprovaccedilatildeo do encontro concorrente entre

dois caminhos vem do depoimento de alguns dos proacuteprios envolvidos com a produccedilatildeo do Quinto dos Infernos como o diretor Carlos Lombardi que a ele se refere como ldquoum painel dos personagens importantes do periacuteodordquo Para o produtor Wolf Maia seu objetivo foi ldquorecontar com humor uma velha histoacuteriardquo O ator Humberto Martins viu a seacuterie ldquocontar um pedaccedilo da nossa histoacuteria da histoacuteria do Brasil do nosso povo das nossas raiacutezes pateacutetica e engraccedilada tal como ela se mostra dentro desse produto poreacutem claro mesclada com uma boa dose de humorrdquo enquanto o protagonista Marcos Pasquim afirmou que ldquo[ao fazecirc-la] aprendi muita coisa que natildeo aprendi na escola eu vim aprender agora fazendo a pesquisa para fazer esse personagemrdquo Finalmente para a tambeacutem atriz Bruna Lombardi ldquoO lsquoQuintorsquo contou assim a histoacuteria que a Histoacuteria natildeo conta sabe como eacute as fraquezas da histoacuteriardquo Em ldquoDia de Fuacuteriardquo Pedro Bial e Eduardo Bueno reforccedilam seu discurso satiacuterico por meio de um verniz de verdade trazido pela citaccedilatildeo de documentos oficiais como o relato do Padre Belchior sobre o grito do Ipiranga Aleacutem disso seu discurso eacute elaborado sob o nome de tese logo bem se vecirc como seus propaladores (BialBueno) manipulam siacutembolos

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ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

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Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

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123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

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131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

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138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

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Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

33Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

34Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

35Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

36Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 7: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

11Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Bem se vecirc que tais fontes complementares extrapolam o acircmbito espa-cial parcialmente circunscrito da sondagem de opiniatildeo aleacutem de permitirem a consideraccedilatildeo de uma grande pluralidade de vozes de agentes sociais ndash inclu-sive mas natildeo preferencialmente os historiadores acadecircmicos ndash responsaacuteveis pela inexistecircncia de um monopoacutelio profissional na reproduccedilatildeo divulgaccedilatildeo e eventual produccedilatildeo de conhecimentos acerca da Independecircncia do Brasil A exemplo dos procedimentos adotados para a realizaccedilatildeo da sondagem de opi-niatildeo tambeacutem a utilizaccedilatildeo de tais fontes partiu de uma amostragem jaacute que nenhum de seus conjuntos corresponde agrave totalidade de materiais disponiacuteveis No entanto acredita-se que a somatoacuteria dessas amostragens seja satisfatoacuteria para a persecuccedilatildeo dos objetivos aqui propostos

Como tratar metodologicamente fontes tatildeo diferentes entre si e como fazecirc-las convergirem para um mesmo fim Os conteuacutedos extraiacutedos da sondagem de opiniatildeo merecem tratamento algo peculiar jaacute que tendo permanecido ineacuteditos ateacute o momento natildeo podem ser considerados como elementos capazes de agir naquela mesma realidade que os informou soacute podem ser vistos como traduccedilatildeo (indireta matizada) de uma realidade por eles denunciada Jaacute as demais fontes satildeo consideradas de ambos os modos como instrumentos de reconfiguraccedilatildeo da realidade em termos de poten-ciais formadoras de opiniatildeo dos brasileiros acerca da Independecircncia mas tambeacutem como sintomaacuteticas de um estado de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema Portadoras de indiacutecios de uma cultura de histoacuteria que elas criam e recriam e protagonistas ativos dessa mesma cultura30 O que natildeo quer dizer de modo algum que a todos os suportes materiais aqui consi-derados como fontes primaacuterias possa ser atribuiacutedo um caraacuteter de inovaccedilatildeo em seus tratamentos dos conteuacutedos relativos agrave Independecircncia do Brasil (se assim o fosse os historiadores profissionais da Independecircncia teriam muitos motivos para comemorar o fato de que os demais agentes sociais natildeo apenas estariam dispostos a ouvi-los como aptos a compreendecirc-los E se assim o fosse estariacuteamos frente a uma cultura histoacuterica muito mais dinacircmica e instaacutevel do que ela parece ser)

Para aferir ateacute que ponto um livro uma revista um filme ou um viacute-deo contribuem mais para a criaccedilatildeo ou para a recriaccedilatildeo (pois natildeo haacute aqui estrito senso simples reproduccedilatildeo) de conteuacutedos a metodologia adotada abordou tais suportes materiais por meio de cinco perguntas baacutesicas Seu tratamento da Independecircncia tende a uma Histoacuteria 1) Factual eou biograacute-fica ou a uma histoacuteria processual 2) Que respeita historicidades e orde-namentos cronoloacutegicos e temporais ou que tende a dar pouca importacircncia a tais elementos (neste caso de que modos o faz) 3) Centrada em uma uacutenica regiatildeo (qual) ou em vaacuterias ao mesmo tempo e inclusive a outras partes do mundo da eacutepoca (quais) 4) Que dialoga (de que modos) com a produccedilatildeo acadecircmica (qual de quando) ou que busca outros referenciais no universo natildeo especializado 5) De ecircnfase anedoacutetica laudatoacuteria soacutebria positiva ou negativa As respostas a tais perguntas nem sempre bem claras e definidas foram buscadas a partir tambeacutem de substratos metodo-loacutegicos especiacuteficos para cada tipo de fonte e chegaram a envolver parcial-mente tambeacutem a sondagem de opiniatildeo

3 - A sondagem de opiniatildeo A Independecircncia nas ruasA sondagem de opiniatildeo partiu da aplicaccedilatildeo de um questionaacuterio que mes-clou respostas dirigidas e objetivas com respostas abertas e subjetivas sen-do dividido em trecircs partes correspondentes a trecircs perfis a serem extraiacutedos

28PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit

29Tal tipo de fonte eacute o que melhor permite uma

anaacutelise de mais largo escopo temporal do que o aqui contemplado Uma excelente reuniatildeo preliminar de material encontra-se em CALMON Pedro Histoacuteria do Brasil na poesia do povo Nova ediccedilatildeo aumentada Rio de Janeiro Bloch 1973 Para noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia na literatura e na dramaturgia portuguesa vaacuterios apontamentos em OLIVEIRA Paulo da Motta (org) Op Cit

30Muitas jaacute vecircm sendo analisadas separadamente

de acordo com uma tendecircncia apontada acima Para os livros didaacuteticos a produccedilatildeo eacute imensa e inclui trabalhos importantes como os de BITTENCOURT Circe Fernandes Livro didaacutetico e conhecimento histoacuterico uma histoacuteria do saber escolar 1993 Tese (Doutorado em Histoacuteria Social) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1993 MUNAKATA Kazumi Produzindo livros didaacuteticos e paradidaacuteticos Tese 1997 (Doutorado em Histoacuteria e Filosofia da Educaccedilatildeo) Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1997 DIEHL Astor Antocircnio (org) O livro didaacutetico e o curriacuteculo de histoacuteria em transiccedilatildeo Passo Fundo EDIUPF 1999 e CARDOSO Oldimar Pontes A didaacutetica da histoacuteria e o slogan da formaccedilatildeo de cidadatildeos 2007 Tese (Doutorado em Educaccedilatildeo) Faculdade de Educaccedilatildeo Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2007 Sobre cinema e histoacuteria dentre outros FONSECA Vitoacuteria Azevedo da Histoacuteria imaginada no cinema anaacutelise de Carlota Joaquina princesa do Brazil e Independecircncia ou morte 2002 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria Cultural) Universidade Estadual de Campinas Campinas 2002

31Esse eacute o perfil mostrado pelo censo do IBGE de

2010 com algumas poucas exceccedilotildees no caso da amostragem a uacutenica importante se observa com a faixa etaacuteria de 25 a 29 anos (14) mais numerosa do que a anterior entre 20 e 24 anos (8) sendo que a porcentagem da populaccedilatildeo brasileira em tais faixas etaacuterias eacute praticamente a mesma (respectivamente 8 e 9) De resto foi possiacutevel estabelecer nesse quesito uma satisfatoacuteria correlaccedilatildeo com o perfil brasileiro a amostragem abordou indiviacuteduos a partir de 15 anos sendo que dos 14 grupos de cinco anos obtidos (o uacuteltimo corresponde a 80 anos ou mais) quatro apresentaram perfeita correspondecircncia percentual com os dados nacionais oito uma diferenccedila de no maacuteximo 2 e apenas dois forte discrepacircncia

32Para se atingir perfis ocupacionais desejados

algumas entrevistas foram realizadas na regiatildeo do Grande ABC e no interior do estado de Satildeo Paulo

33Dados do uacuteltimo Censo do IBGE (2010)

disponiacutevel em censo2010ibgegovbramostra Acesso em 01042014

34O censo do IBGE de 2010 indicou a porcentagem

de 76 para desocupados considerando o total da populaccedilatildeo maior de 10 anos Para o estado

12Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

do entrevistado um soacutecio-econocircmico-escolar um cultural e um relativo agrave sua relaccedilatildeo com a Histoacuteria em especial a da Independecircncia

A obtenccedilatildeo do primeiro perfil se fez segundo gecircnero faixa etaacuteria (em grupos de cinco anos a partir de 15 anos de idade) local de nasci-mento (segundo regiotildees do Brasil e cidade) ocupaccedilatildeo profissional renda familiar (em valores ou quantidade de salaacuterios miacutenimos isto eacute R$ 62000) e instruccedilatildeo formal (por niacuteveis e se realizada em escolas puacuteblicas eou pri-vadas cidade e instituiccedilatildeo) Com isso buscou-se aproximar o universo da amostragem ndash 311 indiviacuteduos ndash do perfil geral do paiacutes quando isso natildeo foi possiacutevel a aproximaccedilatildeo se deu com o Estado e com a cidade de Satildeo Paulo

No quesito gecircnero foram entrevistadas 52 de mulheres e 48 de homens (um dos entrevistados natildeo quis declarar seu gecircnero) estabelecen-do-se uma perfeita correlaccedilatildeo de porcentagem com o mostrado pelo censo populacional do IBGE de 2010 seja em termos nacionais ou estaduais de Satildeo Paulo Jaacute a constituiccedilatildeo da faixa etaacuteria dos entrevistados buscou um modelo de ldquopiracircmiderdquo isto eacute com um nuacutemero de mais jovens sempre mais elevado do que o de mais idosos31 No entanto aqui a amostragem privile-giou mais jovens entre 15 e 19 anos (21) do que a realidade populacional brasileira (8) e mais adultos entre 25 e 29 anos

No tocante ao local de nascimento a amostragem natildeo pocircde se valer de dados do IBGE Desse modo buscou-se uma aproximaccedilatildeo estatiacutestica com a cidade de Satildeo Paulo local onde 97 das entrevistas foram reali-zadas32 Os nascidos na regiatildeo sudeste perfizeram 73 das abordagens sendo 67 naturais do estado de Satildeo Paulo (dados do IBGE mostram 77 de habitantes da cidade nascidos no estado sendo 69 do total na cida-de)33 A realizaccedilatildeo da amostragem procurou uma compensaccedilatildeo para essa hipertrofia de perfil (do nacional ao regional) por meio da diversificaccedilatildeo de unidades da federaccedilatildeo para os 23 de habitantes do estado de Satildeo Paulo que natildeo nasceram nele foram entatildeo entrevistados 112 indiviacuteduos (326 da amostragem) naturais dos outros estados brasileiros agrave exceccedilatildeo de Acre Amapaacute Distrito Federal Roraima e Tocantins

Quanto a suas ocupaccedilotildees profissionais os entrevistados declararam livremente 118 diferentes funccedilotildees (sendo 005 desempregados34) apoacutes uma anaacutelise preliminar das mesmas foi possiacutevel agrupaacute-las em 90 incluin-do um leque muito variado que inclui comerciantes donas de casa empre-gadas domeacutesticas estudantes funcionaacuterios puacuteblicos educadores operaacuterios empresaacuterios cabeleireiras agricultores faxineiros jornalistas prostitutas militares e meacutedicos dentre outros (ressalte-se que no momento da pesqui-sa nenhum deles se encontrava ligado profissionalmente agrave Histoacuteria) Nesse quesito eacute impossiacutevel estabelecer uma perfeita correlaccedilatildeo entre a amostra-gem e o panorama laboral brasileiro buscou-se apenas incluir uma ampla gama de perfis profissionais

O perfil dos entrevistados segundo renda familiar tambeacutem se mos-trou de difiacutecil equivalecircncia com dados do IBGE jaacute que estes indicam rendas individuais e natildeo familiares Assim mesmo observa-se que a amostragem seguiu uma tendecircncia tambeacutem de ldquopiracircmiderdquo que faz com que o nuacutemero de brasileiros dos estratos de renda mais baixa sejam sempre mais nume-roso que os de renda mais alta a diferenccedila entre o conjunto da populaccedilatildeo brasileira e a amostragem estaacute seguramente nas dimensotildees de tais estra-tos enquanto os dados do IBGE mostram mais de 64 de indiviacuteduos sem rendimentos ou com renda entre 1 e 5 salaacuterios miacutenimos na amostragem esse percentual (por famiacutelias) pouco passou de 3035

de Satildeo Paulo a porcentagem eacute tambeacutem de 76 Disponiacutevel em censo2010ibgegovbramostra Acesso em 01042014

35Haacute aqui algumas discrepacircncias em relaccedilatildeo as

categorias do IBGE que devem ser explicitadas no que se refere aos criteacuterios de renda estatildeo ausentes do questionaacuterio ldquomais de 2 a 3 salaacuterios miacutenimosrdquo aleacutem disto a renda calculada pelo questionaacuterio tem como base a unidade familiar enquanto os dados do IBGE aqui contrastados referem-se agrave renda de indiviacuteduos

36Dos 161981299 indiviacuteduos totais ldquoa partir de

10 anosrdquo subtraiu-se 17166761 indiviacuteduos entre 10 e 14 anos de modo a limitar a estatiacutestica nacional aos jovens contemplados pela amostragem Uma distorccedilatildeo contudo permanece na cifra dos indiviacuteduos ldquosem instruccedilatildeo e fundamental completordquo da tabela 154 pois crianccedilas entre 10 e 14 anos podem perfeitamente ser ldquosem instruccedilatildeordquo embora o sejam em pequena minoria ldquofundamental completordquo para todos os efeitos as porcentagens das demais rubricas da mesma tabela foram assim corrigidas jaacute que crianccedilas de 14 anos estaratildeo necessariamente ausentes da rubrica seguinte ldquomeacutedio completordquo (tabelas 154 e 112 respectivamente)

37Nos dados do IBGE a maioria da populaccedilatildeo

(59) encontra-se na rubrica ldquonatildeo frequentavam mas jaacute frequentaramrdquo Dentre os que ldquofrequentavamrdquo 78 o faziam em estabelecimentos puacuteblicos e 22 em privados na amostragem esses percentuais que incidem sobre frequecircncia em cursojaacute realizada foram respectivamente 63 e 27 sendo que 11 se enquadravam em ambos

38Tambeacutem nessa segunda parte o questionaacuterio

se afastou progressivamente da possibilidade de estabelecimento de equivalecircncias estatiacutesticas com a totalidade da populaccedilatildeo brasileira Isso se deu por um motivo principal o censo do IBGE natildeo chega ao grau de detalhamento dos dados aqui obtidos (seus objetivos e natureza satildeo outros) e embora existam sondagens de opiniatildeo focadas em perfis culturais do brasileiro (como a ediccedilatildeo de 2011 de Retratos da leitura no Brasil do Instituto Proacute-Livro aqui utilizada como se veraacute mais adiante) a busca por tais equivalecircncias implicaria o seacuterio risco de um engessamento na obtenccedilatildeo de dados qualitativos Tendo em vista os objetivos centrais dessa pesquisa ndash esboccedilar a caracterizaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil por meio da Independecircncia assim como refletir em torno de implicaccedilotildees do tratamento acadecircmico do tema a partir de sua inserccedilatildeo nessa mesma cultura ndash o estabelecimento preliminar completo do perfil dos entrevistados natildeo garantiria a validade do material a ser extraiacutedo e analisado Trata-se justamente do contraacuterio submeter os resultados finais da pesquisa aos paracircmetros dados pelas condiccedilotildees de sua proacutepria realizaccedilatildeo

39Haacute pelo menos dois exemplos de como rankings

se fazem presentes no pensar a Histoacuteria nesse escopo Um primeiro de grande participaccedilatildeo popular eacute o programa de tevecirc O maior brasileiro de todos os tempos exibido entre 1107 e

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No tocante a instruccedilatildeo formal os dados nacionais oficiais incidem sobre crianccedilas a partir de 10 anos de idade sendo que a amostragem rea-lizada focou em jovens a partir de 15 anos desse modo a aproximaccedilatildeo da amostragem com o perfil brasileiro partiu de uma retificaccedilatildeo dos nuacutemeros apresentados pelo IBGE36 E se em termos de renda familiar a amostragem mostrou clara inclinaccedilatildeo a um perfil excessivamente de classe meacutedia o mesmo pode-se dizer quanto agrave instruccedilatildeo formal que perfez um grupo mais escolarizado do que a meacutedia do paiacutes O principal problema aqui ocorre no baixo nuacutemero de entrevistados entre ldquosem instruccedilatildeo e fundamental incom-pletordquo (7 sendo a porcentagem nacional entre 44 e 50) em prol de um nuacutemero por demais elevado de indiviacuteduos que cursaram universidades (27 contra 9) as demais rubricas tambeacutem apresentam discrepacircncias 25 de entrevistados entre ldquofundamental completo e meacutedio incomple-tordquo (contra 19) e 23 entre ldquomeacutedio incompleto e superior incompletordquo (contra 26) A anaacutelise de todo o material obtido assim como das fontes primaacuterias levou em conta tais inclinaccedilotildees e como se veraacute mais adiante elas parecem ateacute mesmo reforccedilar algumas das conclusotildees aqui obtidas Ainda no mesmo quesito os dados do IBGE classificam os brasileiros de acordo com ldquorede de ensino que frequentavamrdquo quando da realizaccedilatildeo da coleta de dados sendo que o questionaacuterio abordou os entrevistados de acordo com frequecircncia em cursojaacute realizada37 Mesmo assim os nuacutemeros aqui disponiacuteveis serviram bem agrave constituiccedilatildeo da amostragem

Na segunda parte do questionaacuterio a obtenccedilatildeo do perfil cultural do entrevistado se deu a partir de uma identificaccedilatildeo de seu acesso agrave televisatildeo (se assiste caso positivo com qual frequecircncia que tipo de programas se em tevecirc aberta eou a cabo e quais os trecircs programas que mais assiste) leitura (se lecirc com frequecircncia que tipo de coisa e quais os uacuteltimos trecircs livros que leu) cinema e teatro (em ambos os casos apenas se costuma ou natildeo frequentar)38 Apoacutes tais perguntas que procuraram diagnosticar eventuais proximidades do entrevistado em relaccedilatildeo a fontes secundaacuterias da pesquisa o questionaacuterio introduziu a questatildeo especiacutefica de seu interesse pela Histoacuteria Foi entatildeo perguntado se ele se interessa ou natildeo por Histoacuteria e por qual (do Brasil geral ou outraqual) se busca informaccedilotildees sobre e em caso positivo onde (livros televisatildeo internet revistas cursos museus outroqual) e se nos uacuteltimos dois anos leu algo ou frequentou algum curso a respeito (em caso positivo qual) Tais perguntas foram elaboradas visando uma aproximaccedilatildeo realista com caracteriacutesticas que de modo hipo-teacutetico foram atribuiacutedas a essa cultura de histoacuteria no Brasil Por isso foram preteridas formas linguiacutesticas quiccedilaacute muito acadecircmicas em prol de outras que permitissem que o entrevistado se expressasse de modo a fornecer dados vaacutelidos daiacute por exemplo o uso da tradicional divisatildeo entre Histoacuteria do Brasil e Histoacuteria Geral (com abertura para identificaccedilatildeo de ldquooutrardquo qual-quer) de muito pouca serventia para os historiadores profissionais

Finalmente a terceira parte do questionaacuterio visou agrave obtenccedilatildeo de conteuacutedos diretamente relacionados agrave Independecircncia do Brasil valendo-se mais amplamente ainda dessa estrateacutegia de utilizaccedilatildeo de formas linguiacutes-ticas coloquiais assim como de perguntas cujas respostas seriam tanto dirigidas como abertas grau de interesse sobre a histoacuteria da Independecircncia do Brasil (nenhum pequeno meacutedio ou grande seguido de uma justificati-va) grau de conhecimento do tema (nenhum pouco razoaacutevel bom exce-lente) se procura se informar sobre (natildeo simcomo) e se estaacute lendo ou leu algo a respeito nos uacuteltimos dois anos (natildeo simo quecirc) Ou seja abriu-se a

03102012 pelo SBT Conforme a sinopse da emissora ldquobaseado no formato criado pela BBC The Greats o programa elege[u] aquele que fez mais pela naccedilatildeo que se destacou pelo seu legado agrave sociedade Diversos paiacuteses jaacute apontaram os seus maiores representantes Na Inglaterra Winston Churchill saiu vencedor Os italianos elegeram Leonardo da Vincirdquo (sbtcombromaiorbrasileiroprograma Acesso em 21032014) A escolha dos candidatos e a definiccedilatildeo de seus confrontos ndash os personagens iam se enfrentando programa a programa em caraacuteter eliminatoacuterio ndash foi feita pelo telespectador sendo o ldquocampeatildeordquo Chico Xavier seguido por Santos Dummont e pela princesa Isabel Semelhante mas de menor alcance foi a pesquisa realizada pela Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional divulgada em abril de 2008 que convocou ldquopara a tarefa de eleger os lsquoheroacuteisrsquo e os lsquovilotildeesrsquo do Brasil uma distinta seleccedilatildeo de historiadores professores jornalistas economistas poliacuteticos e artistas protegidos pelo anonimato para louvar e condenar quem bem entendessemrdquo Entre os mais bem avaliados estavam Rui Barbosa Machado de Assis e D Pedro II no polo oposto Meacutedici e Costa e Silva (revistadehistoriacombrsecaoreportagemranking-dos-brasileiros Acesso em 21032014)

40As palavras satildeo acordo comeacutedia continuaccedilatildeo

democracia ditadura drama elitespoderosos escravidatildeo Estados Unidos exeacutercito guerra heroiacutesmo Inglaterra invenccedilatildeo Joatildeo VI Joseacute Bonifaacutecio liberdade mudanccedila naccedilatildeo nascimento negociaccedilatildeo paz Pedro I Portugal povo revoluccedilatildeo Tiradentes tirania O entrevistado poderia incluir outra palavra qualquer que desejasse

41O questionaacuterio encerrava-se com a possibilidade

do entrevistado acrescentar livremente algo bem como a opccedilatildeo de identificaccedilatildeo nominal Um proveitoso desdobramento da pesquisa poderia resultar de uma anaacutelise de nuances e matizes de interessantes jogos discursivos presentes em muitas das respostas obtidas sobretudo no caso de uma expansatildeo numeacuterica da amostragem

42Quando em fevereiro de 2013 foram

amplamente divulgados resultados de pesquisas biomeacutedicas (com tentativas de conclusotildees tambeacutem histoacutericas) realizadas com os restos mortais de Pedro I Leopoldina e Ameacutelia realizadas por Valdirene Ambiel Cfr AMBIEL Valdirene do Carmo Estudos de arqueologia forense aplicados aos remanescentes humanos dos primeiros imperadores do Brasil depositados no monumento agrave Independecircncia 2013 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Arqueologia) Museu de Arqueologia e Etnologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2013 Aleacutem de procurar esclarecer se tais restos se encontravam depositados no Monumento agrave Independecircncia em Satildeo Paulo e diagnosticar o estado de conservaccedilatildeo dos mesmos Ambiel procurou chamar a atenccedilatildeo para as possiacuteveis causas da morte dos monarcas e sobre os procedimentos funeraacuterios com eles entatildeo utilizados Tais resultados foram divulgados pela imprensa nacional como ldquoverdadesrdquo sobre a famiacutelia imperial brasileira supostamente ausentes dos livros de histoacuteria ldquosegredosrdquo agora ldquoreveladosrdquo Por exemplo Pedro I tinha quatro

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possibilidade de se chegar a dados de uma cultura de histoacuteria inclusive em suas negaccedilotildees em seus silecircncios e interdiccedilotildees Em seguida o questionaacuterio recorreu a um artifiacutecio muito presente no meio social sobre o qual incidiu foi pedido ao entrevistado que atribuiacutesse notas de um a dez para a impor-tacircncia que acha que a Independecircncia teve para a histoacuteria do Brasil e para a histoacuteria do mundo Nos historiadores profissionais em geral esses rankings com sua gigantesca capacidade de simplificar a realidade costumam despertar ojeriza no entanto para os demais agentes sociais dessa cultura pode significar uma forma uacutetil de representaccedilatildeo da realidade acostumados que estatildeo a ela em muitos aspectos de sua vida cotidiana39 Assim tambeacutem daqui pode-se extrair elementos para a anaacutelise de uma cultura de histoacuteria Jaacute as trecircs perguntas seguintes buscaram outra aproximaccedilatildeo foi pedido ao entrevistado que diante de uma lista de 28 palavras escolhesse as trecircs que acreditasse que mais combinam e as trecircs que menos combinam com a Independecircncia40 Tais palavras incidem sobre personagens fatos proces-sos conceitos e mitos constituindo um bom leque de possibilidades de aproximaccedilatildeo linguiacutestica e conceitual com formas de ver a Independecircncia presentes na sociedade inclusive por contemplarem vaacuterios antinocircmicos Por fim perguntou-se ao entrevistado se seria capaz de dizer as datas da chegada da corte portuguesa no Brasil da Independecircncia do Brasil da pri-meira Constituiccedilatildeo e da abdicaccedilatildeo de D Pedro I41 Aqui o intuito era aferir ateacute que ponto essa cultura de histoacuteria se organiza e se faz representar por marcos cronoloacutegicos convencionais bem como se enseja formas alternati-vas de historicizaccedilatildeo e temporalizaccedilatildeo

Desse modo por meio de estrateacutegias de abordagem complementares (graus de relaccedilatildeo ativa ou passiva diante do tema o peso de linguagens conceitos e informaccedilotildees formas temporais) o questionaacuterio procurou fazer convergirem possibilidades de posturas dos entrevistados em relaccedilatildeo agrave histoacuteria e agrave Independecircncia do Brasil bem como dimensotildees variadas e even-tualmente contraditoacuterias de tais posturas relacionando-as inclusive com as cinco perguntas baacutesicas que seriam posteriormente dirigidas agraves fontes secundaacuterias conforme enunciado ao final do item anterior

Apoacutes um curto periacuteodo de testes foram entrevistadas presencialmen-te 311 pessoas na cidade de Satildeo Paulo Grande ABC e interior do estado entre os dias 19 de setembro de 2012 e 02 de agosto de 2013 Propositada-mente foram evitadas as duas Semanas da Paacutetria desses anos bem como um periacuteodo de vinte dias de superexposiccedilatildeo midiaacutetica especiacutefica do tema42 As abordagens foram realizadas de modo direto em 994 das vezes em espaccedilos puacuteblicos tendo cada uma ndash com poucas exceccedilotildees -a duraccedilatildeo de cerca de sete minutos durante os quais evitou-se ao maacuteximo qualquer tipo de constrangimento direcionamento ou auxiacutelio nas respostas

O que foi possiacutevel obter nessas entrevistas Os entrevistados com-potildeem um grupo de forte contato com a televisatildeo (93 assistem com frequecircncia e 51 todos os dias sendo que 58 possuem tevecirc aberta e a cabo apenas 6 disseram natildeo assistir tevecirc) de leitores frequentes (78) e de assistentes a cinemas (58) e teatros (28) o que o aproxima de um perfil de classe meacutedia escolarizada conforme jaacute apontado anteriormente de todo modo haacute que se lembrar que em muitos outros aspectos relevan-tes esse eacute um grupo heterogecircneo Daiacute a importacircncia do fato de que 77 dos que o compotildeem disseram se interessar por histoacuteria (sendo que 60 afirmaram buscar informaccedilotildees a respeito) Esse eacute um nuacutemero alto ou bai-xo A questatildeo natildeo parece das mais importantes jaacute que de acordo com a

costelas quebradas quando morreu era mais baixo do que se supunha natildeo foi cremado mas enterrado acompanhado de porccedilotildees de terra de Portugal e com roupas de general com insiacutegnias portuguesas e natildeo brasileiras Leopoldina natildeo teve o fecircmur quebrado antes de morrer como acreditava-se ateacute entatildeo foi enterrada com a mesma roupa com que foi coroada imperatriz e seus brincos natildeo eram de ouro mas bijuterias de resina Jaacute Ameacutelia quando morreu tinha escoliose e osteoporose foi enterrada de preto e mumificada Na internet tais ldquorevelaccedilotildeesrdquo foram no total comentadas milhares de vezes ldquorecomendadasrdquo e em geral bem-recebidas (fotosestadaocombrmudanca-na-historia-dez-verdades-sobre-a-familia-imperial-que-nao-estao-nos-livros-de-historiagaleria70481949100htmpPosicaoFoto=1carousel acesso em 27032014 folhauolcombrfspcienciasaude94655-corpos-da-familia-imperial-sao-exumadosshtml acesso em 02042014 folhauolcombrfspcienciasaude94656-descoberta-mostra-abandono-de-d-leopoldina-diz-historiadorashtml acesso em 02042014 estadaocombrnoticiascidadessob-sigilo-dom-pedro-i-e-suas-duas-mulheres-sao-exumados-pela-primeira-vez9983670htm acesso em 02042014 vejaabrilcombrblogricardo-settitema-livreabertura-para-estudos-dos-sarcofagos-de-d-pedro-i-e-de-suas-duas-esposas-e-fato-extraordinario-parabens-ao-estadao-por-divulgar-tudo acesso em 02042014 brnoticiasyahoocomexumaC3A7C3A3o-d-pedro-i-mulheres-reconta-histC3B3ria-115400981htmlgt acesso em 02042014 g1globocomciencia-e-saudenoticia201302cientistas-brasileiros-exumam-restos-mortais-de-d-pedro-i-e-suas-mulhereshtml acesso em 02042014 youtubecomwatchv=y8jcdXyx3hAgt acesso em 02042014 vestibularuolcombrresumo-das-disciplinasatualidadeshistoria-do-brasil-exumacao-traz-novidades-sobre-d-pedro-ihtm acesso em 02042014 ltgooglecombrsearchq= exumaC3A7C3A3o+de+dom+pedroampoq= exumaC3A7C3A3o+ampaqs= chrome469i57j0l55749j0j8ampsourceid= chromeampespv=210ampes_sm=93ampie=UTF-8gt acesso em 02042014 noticiasseuhistorycomexumacao-revela-detalhes-surpreendentes-da-vida-e-morte-de-d-pedro-i-e-suas-mulheresgt acesso em 02042014 istoecombrreportagens277892_A+VOLTA+DE+DOM+PEDRO+I acesso em 02042014 bahiaatualcomnoticiasexumacao-de-corpos-de-d-pedro-i-revela-detalhes-da-famiila-real acesso em 02042014 Site Uacuteltimo Segundo ldquoExumaccedilatildeo de D Pedro I e suas mulheres reconta a Histoacuteriardquo disponiacutevel em ultimosegundoigcombrciencia2013-02-19exumacao-de-dpedro-i-e-suas-mulheres-reconta-a-historiahtml acesso em 02042014 diariodepernambucocombrappnoticiaciencia-e-saude20130219internas_cienciaesaude424273restos-mortais-de-d-pedro-i-sao-exumados-para-realizacao-de-pesquisashtml acesso em 02042014 httpopiniaoenoticiacombrbrasilrestos-mortais-de-dom-pedro-i-sao-exumadosgt acesso em 02042014 noticiasbanduolcombrjornaldabandconteudoaspid=100000576688 acesso em 02042014

15Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

definiccedilatildeo aqui proposta de cultura de histoacuteria o desinteresse tambeacutem eacute um dado relevante pois traduz uma atitude em si e que dificilmente poderia ser considerada de modo absoluto (como pretender que esse desinteresse se traduza por exemplo em descaso com a proacutepria histoacuteria ou com a da famiacutelia Difiacutecil acreditar ser esse o caso de 23 dos entrevistados) Aleacutem disso bem sabemos que seu contraacuterio o interesse pode se manifestar de muitas maneiras que natildeo necessariamente encontram guarida em praacuteticas acadecircmicas e profissionais relacionadas ao estudo do passado tampouco que resultam em um estudo da histoacuteria minimamente organizado O que implica que os dois contraacuterios nem sempre estabeleceratildeo limites claros entre si diante da apreciaccedilatildeo geral de uma cultura de histoacuteria interesse e desinteresse pela histoacuteria podem flertar com muita proximidade bem como intercambiarem elementos regularmente

Observemos mais atentamente esse panorama Considerando-se tais caracteriacutesticas de uma cultura de histoacuteria como a brasileira perguntou-se a todos os entrevistados incluindo aos 23 que afirmaram natildeo se inte-ressar por histoacuteria por ldquoqual histoacuteriardquo poderia dizer que mais se interessa Aqui as respostas que de alguma forma se referem diretamente agrave histoacuteria do Brasil (ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo ldquoHistoacuteria geral e do Brasilrdquo ldquoHistoacuteria da nos-sa regiatildeordquo ldquoHistoacuteria do Brasil e andinardquo) perfazem 34 do total aiacute sim um nuacutemero relativamente baixo diante dos 66 que em suas respostas exclu-iacuteram o Brasil Portanto independentemente do interesse pela mateacuteria ser alto ou baixo a relaccedilatildeo com a Histoacuteria do Brasil parece gozar de especial desprestiacutegio Seraacute o desprezo pela histoacuteria nacional um dado da cultura de histoacuteria no Brasil43 Mais adiante quando da anaacutelise das outras fontes vol-taremos a esse ponto De todo modo tal desprestiacutegio evidentemente traraacute implicaccedilotildees para as posturas dos brasileiros em relaccedilatildeo agrave Independecircncia

A princiacutepio os entrevistados tendem a se interessar pouco pela Inde-pendecircncia do Brasil mas essa natildeo eacute uma tendecircncia absoluta se 39 tecircm ldquonenhumrdquo ldquopoucordquo ou ldquopequenordquo interesse 44 tem ldquomeacutediordquo e 17 ldquoentre meacutedio e granderdquo e ldquogranderdquo Ora em se tratando de uma cultura de histoacuteria dinacircmica e fluida com fronteiras pouco claras entre o interesse e o desinte-resse pela histoacuteria de modo geral (e a despeito da clara tendecircncia a um maior desinteresse pela Histoacuteria do Brasil) a Independecircncia eacute pouco interessante mas natildeo eacute inteiramente desprezada (apenas 11 declararam ldquonenhumrdquo inte-resse por ela cifra menor do que a dos grandes interessados)

Parece entatildeo haver espaccedilo aqui para diferentes formas de pensar representar e reinventar a Independecircncia do Brasil como verificar-se-aacute mais adiante de momento constata-se uma correspondecircncia estatiacutestica entre os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram ter dela ldquobomrdquo ou ldquoexcelenterdquo conhecimento (os de ldquonenhumrdquo ldquopoucordquo ou apenas ldquorazoaacutevelrdquo conhecimento compotildee os demais 83) e os 30 que afirma-ram buscar informaccedilotildees a respeito (sendo 60 os que buscam informaccedilotildees sobre histoacuteria em geral) Provavelmente trata-se de um subgrupo dos mais ativos no circuito de consumo-reproduccedilatildeo-criaccedilatildeo de toacutepicos relativos agrave Independecircncia na cultura de histoacuteria no Brasil Dentre esses 30 exclusi-vamente 305 afirmaram buscar informaccedilotildees sobre a Independecircncia em livros 291 na escola e nos livros didaacuteticos (evidentemente mais confina-dos ao puacuteblico jovem) 208 na internet 97 em raacutedio tevecirc eou jornais impressos e outros 97 ldquocom pessoas e lugares44 Os que responderam ler ou ter lido algo a respeito nos uacuteltimos dois anos foram 34 (os demais responderam ldquonatildeordquoldquonatildeo se lembrardquo ou natildeo responderam)

43Natildeo parece ser o caso da cultura histoacuterica

portuguesa de acordo com trabalhos recentes como os de PAIS Joseacute Machado Op Cit SOBRAL Joseacute Manuel Op Cit e MATOS Seacutergio Campos Consciecircncia histoacuterica e nacionalismo Portugal seacuteculos XIX e XX Lisboa Horizonte 2008

44A ausecircncia de menccedilotildees a outros tipos de suporte

de informaccedilotildees sobre a Independecircncia reforccedila a escolha das fontes secundaacuterias da pesquisa analisadas no proacuteximo item

45Embora seja muito frequente a consideraccedilatildeo de

que o principal marco fundacional da histoacuteria brasileira tenha sido o ldquodescobrimentordquo (isto eacute a chegada dos portugueses agrave Ameacuterica em 1500) e natildeo a ruptura poliacutetica entre Brasil e Portugal Muito provavelmente isso se conecta com uma tambeacutem muito frequente concepccedilatildeo da Independecircncia como ldquonatildeo-rupturardquo como processo negociado amigaacutevel e sem grandes solavancos Retornaremos agrave questatildeo

46Todas as 28 palavras oferecidas aos entrevistados

receberam no miacutenimo quatro menccedilotildees sendo que 22 tiveram mais de uma dezena de menccedilotildees a mesclarem termos que remetem a caracteriacutesticas atribuiacutedas agrave Independecircncia que ensejam relaccedilotildees diretas ou indiretas com ela ou que se referem a simples informaccedilotildees

47Foram feitas 310 menccedilotildees de termos positivos em

relaccedilatildeo agrave Independecircncia (liberdade democracia revoluccedilatildeo heroiacutesmo mudanccedila drama) contra 210 dos mesmos como natildeo combinando com ela essa tendecircncia eacute reforccedilada por 190 menccedilotildees a termos negativos que combinariam com ela (acordo escravidatildeo negociaccedilatildeo continuaccedilatildeo ditadura comeacutedia invenccedilatildeo tirania) sendo que os mesmos foram mencionados 391 vezes como natildeo combinando Esclarecer o caso de escravidatildeo pode ser referecircncia a uma realidade (em geral negativa) mas tambeacutem como metaacutefora poliacutetica Para todos os efeitos como mencionar o termo de outras maneiras

48148 escolhas incidiram sobre termos conflitivos

que com ela combinariam (guerra revoluccedilatildeo mudanccedila) contra 101 menccedilotildees a tais termos como natildeo combinando poreacutem tal tendecircncia se inverte nas 119 escolhas de termos paciacuteficos que com ela combinariam (paz acordo negociaccedilatildeo) contra 70 menccedilotildees aos mesmos como natildeo combinando

49Foram feitas 27 escolhas de povo como combinando

contra 22 do mesmo termo como natildeo combinando e 35 a elitepoderosos como combinando contra 14 em termos opostos o que indica certo equiliacutebrio tendente agrave segunda possibilidade

50Natildeo se pode deixar de mencionar algumas

outras palavras que natildeo se encontravam na lista mas foram acrescidas pelos entrevistados sendo portanto de menccedilatildeo espontacircnea As mais recorrentes combinando num sentido depreciativo foram ldquointeresserdquo e ldquocorrupccedilatildeordquo Outras palavras tais quais ldquounificaccedilatildeordquo ldquomorterdquo

16Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

A hipoacutetese da constituiccedilatildeo de um subgrupo ativo na cultura de histoacuteria por meio do tema da Independecircncia encontra respaldo nos resulta-dos do ranking do questionaacuterio para a importacircncia que ela teria tido para a Histoacuteria do Brasil 43 deram nota 10 e outros 31 notas entre 8 e 9 sendo que apenas 6 deram notas entre 0 e 4 ou natildeo souberam responder Ou seja mesmo quem natildeo se interessa pela Independecircncia ou pela Histoacute-ria do Brasil em geral tende a reconhecer o tema como sendo de grande importacircncia embora tal reconhecimento seja menor em se tratando de sua relaccedilatildeo com a Histoacuteria ldquoem geralrdquo (a essa pergunta 25 respondeu com nota 10 e outros 25 com notas 8 ou 9 em contraposiccedilatildeo a um elevado percentual de 22 que deu notas entre 0 e 4 ou natildeo soube responder) Ainda assim portanto a Independecircncia eacute fortemente valorizada por um percentual que extrapola os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram dela serem conhecedores ou os 20 que afirmaram buscar informaccedilotildees a seu respeito Valorizada poreacutem em meio ao que parece ser uma dificuldade de se pensaacute-la para aleacutem de sua tradicional circunscriccedilatildeo nacional (o que encontra como logo veremos enorme correspondecircncia nas fontes secundaacuterias) para aleacutem dos limites a ela convencionalmente impos-tos por tradiccedilotildees historiograacuteficas ainda fortes e mesmo por uma cultura de histoacuteria que tendo atributos fortemente nacionais tende a nela enxergar um marco fundacional importante isto eacute um marco diferenciador entre a histoacuteria do Brasil e a de outros paiacuteses45

O que nesse sentido nos mostram as escolhas de palavras que ldquocom-binamrdquo e ldquonatildeo combinamrdquo com a Independecircncia46 Em primeiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista mais em perspectiva positivaenalte-cedora do que negativadepreciativa47 Em segundo lugar a possibilidade da Independecircncia ser considerada tanto como rupturaconflitiva quanto como continuidadepaciacutefica48 Em terceiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista como algo menos popular do que elitista49 Em quarto e uacuteltimo lu-gar ateacute que ponto os entrevistados se mostraram conhecedores da histoacuteria 55 respostas indicaram termos informativos descabidos (Tiradentes combina D Pedro I D Joatildeo VI Joseacute Bonifaacutecio e Portugal natildeo) contra uma maioria de 190 menccedilotildees a tais termos de modo inverso Aqui os resultados podem indicar a prevalecircncia de um tipo de conhecimento de histoacuteria estruturado em personagens e trajetoacuterias individuais (como logo veremos as fontes secundaacute-rias tambeacutem referendaratildeo amplamente essa hipoacutetese)50

Na uacuteltima parte do questionaacuterio perguntou-se aos entrevistados acerca de datas de quatro eventos que podem ser considerados como marcos do processo de Independecircncia 68 responderam natildeo saber ou natildeo se lembrar da data da chegada da Corte portuguesa ao Brasil 13 deram respostas claramente erradas em muitas das quais (ldquomil e quinhentosrdquo ldquomil quinhentos e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo etc) natildeo obstan-te se vislumbra uma referecircncia adequada poreacutem tratada de modo equivo-cado e somente 9 souberam responder de modo preciso (ldquomil oitocentos e oitordquo) Diante da pergunta quanto agrave data da primeira constituiccedilatildeo do Brasil 85 disseram natildeo saber ou natildeo se lembrar 7 deram respostas claramente erradas (ldquomil e quatrocentosrdquo ldquomil quinhentos e oitentardquo) algumas das quais poreacutem se aproximando da evocaccedilatildeo de alguma consti-tuiccedilatildeo brasileira (ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquomil novecentos e trintardquo ldquomil novecentos e oitenta e oitordquo) e apenas 13 souberam responder com firmeza isto eacute com a presenccedila de ldquomil oitocentos e vinte e quatrordquo na resposta Jaacute a pergunta sobre a data

(em alusatildeo ao Grito) e ldquoprogressordquo enriqueceram a fileira dos termos valorativos

51Essa percepccedilatildeo eacute reforccedilada por alguns dos

dados obtidos por Purificaccedilatildeo Em meio a representaccedilotildees da Independecircncia produzidas por crianccedilas entre 09 e 13 anos encontram-se frases como ldquoQuando D Pedro viu terra gritou Independecircncia ou Morterdquo e ldquoPouco depois de descobrirem o Brasil gritaram a independecircnciardquo PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p40-41 Cabe lembrar que tais crianccedilas natildeo haviam tido ainda contato formal (na escola) com o tema da Independecircncia ldquoapenasrdquo por meio de uma cultura de histoacuteria a envolverem-nas

52O que parece impor uma urgente reflexatildeo em

torno dos efeitos do violento desprestiacutegio das referecircncias factuais que o sistema escolar impocircs ao ensino de Histoacuteria no Brasil das uacuteltimas deacutecadas O quecirc ademais natildeo parece uma situaccedilatildeo exclusivamente brasileira de acordo com a sugestatildeo que nos foi dada por Nuno Gonccedilalo Monteiro a ver aqui paralelismo com o ensino de Histoacuteria em Portugal

53Outras duas possibilidades promissoras seriam

analisar respostas a questotildees de vestibulares relativas agrave Independecircncia e entrevistas com professores e coordenadores pedagoacutegicos que de alguma forma lidem com o tema no cotidiano escolar

54MORENO Jean Carlos Limites escolhas e

expectativas horizontes metodoloacutegicos para anaacutelise dos livros didaacuteticos de histoacuteria Antiacuteteses Londrina v5 n10 p729 juldez2012

55O que eacute atestado por exemplo pela recente

consolidaccedilatildeo da presenccedila nos livros didaacuteticos de toacutepicos relativos agrave Histoacuteria do continente africano

56Dos 49 autores de livros didaacuteticos aqui

considerados 36 satildeo identificados pelos termos ldquomestrerdquo ldquodoutorrdquo ou ldquoprofessor universitaacuteriordquo O que natildeo significa como eacute bem sabido que tais autores sejam integralmente responsaacuteveis pelo conteuacutedo de suas obras

57MORENO Jean Carlos Op Cit p724

58Segundo dados oficiais somente no ano de

2012 esse governo comprou cerca de 408 milhotildees de livros didaacuteticos para os anos do Ensino Meacutedio (Assessoria de Comunicaccedilatildeo Social do FNDE 24 de agosto de 2012)

59Sua produccedilatildeo no entanto eacute regionalmente

concentrada na seleccedilatildeo das coleccedilotildees de didaacuteticos feita pelo MEC em 2010 oito editoras de Satildeo Paulo responderam por 842 da produccedilatildeo aprovada enquanto trecircs de Curitiba ficaram com os 158 restantes

60DIAS Adriana M GRINBERG Keila e

PELLEGRINI Marco Novo Olhar Histoacuteria v2 Satildeo

17Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

da abdicaccedilatildeo de D Pedro I foi a campeatilde em respostas imprecisas 92 dis-seram natildeo saber ou natildeo se lembrar 16 deu respostas erradas e apenas 12 soube responder ldquomil oitocentos e trinta e umrdquo

E quanto agrave data da Independecircncia do Brasil Em comparaccedilatildeo com as perguntas anteriores esta obteve respostas de qualidade superior natildeo obstante um nuacutemero ainda alto de respostas ldquonatildeo souberdquo e ldquonatildeo lembrardquo 33 dos entrevistados Haacute que se lembrar inclusive que desde a segunda parte do questionaacuterio o entrevistado jaacute sabia tratar-se de algo focado na Independecircncia ou seja se nas demais perguntas pode-se dizer que ele foi pego totalmente surpresa nesta natildeo Por isso e se considerarmos ainda os 14 que deram respostas claramente erradas a esta pergunta (ldquomil e qui-nhentosrdquo ldquovinte e um de abril de mil e quinhentosrdquo ldquovinte e dois de abril de mil e quinhentosrdquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquovinte e um de abrilrdquo ldquovinte e dois de abrilrdquo ldquonove de julhordquo) chega-se a um total de 47 de pessoas incapazes de dizer quando ocorreu a Independecircncia do Brasil Por outra parte os que souberam responder (ldquosete de setembro de mil oito-centos e vinte e doisrdquo ou ldquomil oitocentos e vinte e doisrdquo) chegaram a 16 iacutendice muito proacuteximo das dimensotildees do hipoteacutetico grupo de interessados e razoaacuteveis conhecedores da Histoacuteria da Independecircncia referido alguns paraacutegrafos acima

Trata-se de um nuacutemero elevado ainda mais se reafirmarmos que a Independecircncia natildeo eacute jamais completamente ignorada em meio agrave cultura brasileira de histoacuteria De certo modo sim mas natildeo deve escapar agrave obser-vaccedilatildeo de ningueacutem que nessa pergunta especiacutefica a confusatildeo de datas se daacute dentro de referecircncias histoacutericas e cronoloacutegicas bastante demarcadas a Independecircncia o ldquodescobrimento do Brasilrdquo Tiradentes e a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica todos eles marcos fundacionais em uma memoacuteria histoacuteri-ca oficial logo fundamentais na constituiccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil51 Tais resultados indicam preliminarmente a precariedade da concepccedilatildeo de histoacuteria ndash da Independecircncia em particular - segundo formas convencionais de organizaccedilatildeo cronoloacutegica e isso a despeito dessa socieda-de ser permeada e carregada de referecircncias cronoloacutegicas que organizam a vida das pessoas em muitos de seus interstiacutecios (vida familiar vida profis-sional praacuteticas de lazer e de culto etc) Pouquiacutessimas respostas ndash esta-tisticamente despreziacuteveis -parecem esboccedilar a forja de alguma modalidade alternativa de organizaccedilatildeo temporal da histoacuteria (ldquoquase duzentos anosrdquo ldquomil oitocentos e alguma coisardquo ou ldquoD Pedro saiu para brigar com o irmatildeo e deixou D Pedro IIrdquo) diante do quecirc ganha forccedila a hipoacutetese de uma enorme e generalizada dificuldade apresentada por essa sociedade no manejo de recursos baacutesicos de historicizaccedilatildeo da histoacuteria como a cronologia52

Ateacute aqui as conclusotildees a que se pode chegar ainda satildeo excessiva-mente parciais extraiacutedas apenas da sondagem de opiniatildeo conveacutem no entanto sumarizaacute-las de modo a reforccedilaacute-las como hipoacuteteses capazes de nortear a anaacutelise vindoura Segundo o que nos mostram os entrevistados a Independecircncia eacute pouco frequentada por muitos mas assiduamente por um grupo razoaacutevel (seratildeo seus membros os uacutenicos capazes de pensaacute-la segundo marcos cronoloacutegicos) eacute amplamente considerada tema da maior importacircncia para a Histoacuteria do Brasil e de menor importacircncia para a His-toacuteria do Mundo ela eacute menos interessante do que outros temas (quais natildeo sabemos) assim como a Histoacuteria do Brasil eacute menos do que a Histoacuteria Geral mas tende a ser vista como algo respeitaacutevel eventualmente positivo para o Brasil o que parece evocar um imaginaacuterio oficial ainda muito vigente de

Paulo FTD 2010 ALVES Alexandre e OLIVEIRA Letiacutecia F de Conexotildees com a Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Moderna 2010 PEDRO Antocircnio e LIMA Lizacircnias de Souza Histoacuteria sempre presente v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VICENTINO Claacuteudio R e DORIGO Gianpaolo F Histoacuteria Geral e do Brasil v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FIGUEIRA Divalte G Histoacuteria em foco v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2011 NOGUEIRA Fausto G e CAPELLARI Marcos Ser protagonista Histoacuteria 2ordm ano do Ensino Meacutedio Satildeo Paulo Ediccedilotildees SM 2010 BURITTI Flaacutevio Caminhos do Homem v2 Curitiba Base Editorial 2010 CAMPOS Flaacutevio de CLARO Regina A escrita da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 COTRIM Gilberto Histoacuteria Global Brasil e Geral v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 AZEVEDO Gislane C e SERIACOPI Reinaldo Histoacuteria em movimento v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2010 MORENO Jean Carlos e GOMES Sandro V Histoacuteria cultura e sociedade v3 Curitiba Positivo 2010 FERREIRA Joatildeo Paulo e FERNANDES Luiz Estevam Nova Histoacuteria integrada v2 2a ed Curitiba Moacutedulo 2010 MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Histoacuteria Geral e Brasil v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam B Histoacuteria Das cavernas ao terceiro milecircnio v2 2a ed Satildeo Paulo Moderna SANTIAGO Pedro CERQUEIRA Ceacutelia e PONTES Maria Aparecida Por dentro da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 MOCELLIN Renato e CAMARGO Rosiane Histoacuteria em debate v2 Satildeo Paulo Editora do Brasil 2010 CATELLI Jr Roberto GANDINI Mariacutea Soledad M e ASPIS Renata L Histoacuteria texto e contexto v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FARIA Ricardo de M MIRANDA Mocircnica Liz e CAMPOS Helena Estudos de Histoacuteria v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010

61PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit

62Conforme observou o Guia de livros didaacuteticos

PNLD 2012 Histoacuteria 17 das coleccedilotildees aprovadas adotaram a perspectiva da Histoacuteria Integrada na qual se expotildee o conteuacutedo histoacuterico a partir da ldquosequecircncia cronoloacutegica de base europeiardquo havendo o predomiacutenio da ldquoHistoacuteria Geral eurocecircntricardquo linear Os assuntos sobre a Histoacuteria da Ameacuterica e do Brasil estatildeo intercalados nesta grande Histoacuteria Geral As outras duas coleccedilotildees optaram pelo formato temaacutetico organizando os assuntos ldquoem torno de muacuteltiplos espaccedilos e temporalidadesrdquo mas guiados por um eixo cronoloacutegico Guia de livros didaacuteticos PNLD 2012 Histoacuteria Op Cit p 18-19

63Uma afirmaccedilatildeo tiacutepica ldquoO nascimento do

Brasil como paiacutes independente encontra-se dentro do contexto de crise do Antigo Regime e do sistema colonial mercantilistardquo VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p89 Os paradigmas historiograacuteficos a que tal tipo de afirmaccedilatildeo remete satildeo evidentemente as obras de Caio Prado Juacutenior e Fernando Novais jaacute amplamente presentes tambeacutem nos livros de Ensino Fundamental PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit cap3

18Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

glorificaccedilatildeo da Independecircncia laudatoacuterio e a destacar seus personagens centrais No entanto tal tendecircncia encontra obstaacuteculo em outras contraacute-rias minoritaacuterias mas natildeo despreziacuteveis a verem a Independecircncia como algo pouco ou nada importante uma histoacuteria restrita espacialmente e socialmente e mais de continuidades do que de rupturas

Assim jaacute eacute possiacutevel afirmar que a Independecircncia enseja disputas a seu respeito em torno de suas representaccedilotildees e memoacuterias oficiais ou natildeo Muito provavelmente alguns dos motivos que explicam sua rejeiccedilatildeo por muitos explicam igualmente sua ativa e entusiasmada frequecircncia por um grupo menor Em uma terceira via ela jamais deixou de ser pensada e divulgada em perspectivas complexas fortemente criacuteticas e analiacuteticas Para todos os efeitos a Independecircncia contribui sem duacutevida para tipificar uma cultura de histoacuteria no Brasil plural variada e apenas parcialmente organizada em padrotildees cronoloacutegicos (temporais) na qual ocupa um papel central e da qual irradiam outros elementos valiosos para um melhor en-tendimento dessa mesma cultura

4 ndash A Independecircncia nas escolas A principal fonte de fomento e irradiaccedilatildeo de atitudes do brasileiro diante da Independecircncia eacute o sistema escolar com sua diversidade de agentes es-paccedilos procedimentos materiais e valores Aqui seraacute analisado apenas um componente prenhe de significados desse sistema o livro didaacutetico53

Segundo um estudioso da mateacuteria os autores de livros didaacuteticos de Histoacuteria em geral ndash grupo no qual ele mesmo estaacute incluiacutedo -ldquonatildeo tecircm por objetivo somente transpor a Histoacuteria acadecircmica eles identificam necessi-dades sociais estatildeo imersos na sociedade e portanto na proacutepria histoacuteria sobre a qual escrevemrdquo54 Tais livros satildeo assim documentos privilegiados de uma cultura de histoacuteria trazem conteuacutedos de acordo com padrotildees e paracircmetros de uma sociedade agrave qual servem sendo inclusive cada vez mais sensiacuteveis a impulsos de origem natildeo acadecircmica55 contam com a colaboraccedilatildeo ou autoria de historiadores profissionais56 que trabalham junto a editores assistentes revisores iconoacutegrafos diagramadores e designers graacuteficos57 satildeo consumidos preferencialmente por educadores e educandos mas chegam tambeacutem agraves famiacutelias destes e ao puacuteblico em geral tendem a permanecer por algum tempo disponiacuteveis em salas de aula residecircncias livrarias e bibliotecas e satildeo fortemente condicionados pelas exigecircncias de um grande mercado editorial cujas demandas capi-talistas natildeo satildeo menos evidentes do que as pedagoacutegicas O livro didaacutetico eacute o segundo suporte de leitura mais lido no Brasil sendo sua produccedilatildeo o mais lucrativo negoacutecio de uma induacutestria editorial brasileira que tem no governo federal seu maior cliente58 Essa produccedilatildeo dos livros didaacuteticos movimenta enormes cifras veicula paacuteginas e paacuteginas de conteuacutedos de Histoacuteria produzidos por e destinados a um amplo conjunto de agentes sociais e tecircm circulaccedilatildeo nacional59

A Independecircncia estaacute presente em todos os 21 livros destinados ao Ensino Meacutedio aqui considerados60 assim como estava em outros 12 de Ensino Fundamental contemplados por um estudo acadecircmico a respeito61 Nessa dupla frente abre-se uma possibilidade de anaacutelise valiosa jaacute que alguns livros circulam atualmente enquanto outros circularam agrave eacutepoca em que jovens adultos que hoje tecircm entre 22 e 26 anos eram crianccedilas entre 9 e 13 Unem-se assim duas temporalidades de tratamentos da Independecircn-cia que podem ser unificadas por uma cultura de histoacuteria

64Exemplo eacute a afirmaccedilatildeo de que ldquoem

reconhecimento agrave importacircncia da Batalha do Jenipapo como um episoacutedio fundamental no processo de independecircncia e de consolidaccedilatildeo do territoacuterio a data de 13 de marccedilo de 1823 foi estampada na bandeira do estado do Piauiacuterdquo DIAS Adriana GRINBERG Keila e PELLEGRINI Marco Op Cit p240

65Excelente demonstraccedilatildeo eacute dada por uma

proposta pedagoacutegica de um jogo didaacutetico elaborado pelo Laboratoacuterio de Ensino de Histoacuteria da Universidade Federal de Pelotas descrita em GASPAROTTO Alessandra ESPIacuteRITO SANTO Marco Viniacutecio do SILVA Eduarda Borges da Jogo didaacutetico vira-vira a metroacutepole vira colocircnia a colocircnia vira-metroacutepole Revista Latino-Americana de Histoacuteria v2 n6 agosto de 2013 (Ediccedilatildeo Especial) p648-661

66Os preferidos satildeo D Joatildeo Carlota Joaquina Joseacute

Bonifaacutecio e D Pedro

67Um exemplo apoacutes afirmar que ldquodurante anos a

historiografia oficial tentou idealizar o processo de independecircncia e seus autores explicado como um ato de heroiacutesmo contra a tirania e em defesa da liberdaderdquo uma das obras afirma em tom de contraposiccedilatildeo ldquoMas nas uacuteltimas deacutecadas novos estudos permitiram lanccedilar um novo olhar sobre esse periacuteodo Expressotildees dessa mudanccedila satildeo algumas produccedilotildees culturais recentes que tratam desse momento com uma visatildeo criacutetica e ateacute mesmo sarcaacutestica como por exemplo o romance O Chalaccedila (1999) de Joseacute Roberto Torerordquo Por fim propotildee como ldquoSugestatildeo de atividaderdquo supostamente para aguccedilar o senso criacutetico do aluno ldquocomparar o romance de Torero citado acima com a visatildeo oficial dos eventos fornecida pela ceacutelebre pintura Independecircncia ou morte (O Grito do Ipiranga) de Pedro Ameacuterico ou pelo filme Independecircncia ou morte (1972) de Carlos Coimbrardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p80-81) Aleacutem de ignorar os momentos objetivos e naturezas distintos das obras recomendadas tal atividade sugere a ultrapassagem de uma visatildeo ldquotradicionalrdquo da Independecircncia por outra ldquocriacuteticardquo ndash logo mais aceitaacutevel Assim o aluno eacute encorajado a conceber a histoacuteria por meio de sua livre-interpretaccedilatildeo mas sendo impelido a endossar a de um romance satiacuterico (logo voltaremos a ele)

68Em um livro para o Ensino Fundamental de

1996 lia-se que ldquopara a realizaccedilatildeo do nosso trabalho foi importante a participaccedilatildeo de Mariana Massarani artista que desenhou com alegria e bom humor os acontecimentos estudadosrdquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Do mundo indiacutegena ao periacuteodo regencial no Brasil Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1994 p1 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p79) Essa eacute uma tendecircncia antiga como nos mostra o poema de Murilo Mendes ldquoA pescariardquo (publicado em Histoacuteria do Brasil de 1932) evocativo da tatildeo ceacutelebre quanto historicamente irrelevante disenteria de D Pedro em 7 de setembro de 1822 e transcrito em outro didaacutetico ldquoFoi nas margens

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Natildeo haacute duacutevida que a maioria dos livros didaacuteticos de Histoacuteria voltados ao Ensino Meacutedio abre possibilidades de construccedilatildeo de um conhecimento acerca da Independecircncia multifacetado matizado criacutetico e criterioso e deles pode-se extrair muitos exemplos a revelarem diaacutelogos propositi-vos entre saberes acadecircmicos e didaacuteticos da Histoacuteria (afinal os proacuteprios autores e avaliadores dos livros estatildeo quase todos diretamente ligados ao meio acadecircmico) aliaacutes em comparaccedilatildeo com os de Ensino Fundamental de cerca de uma deacutecada atraacutes essas possibilidades soacute cresceram Poreacutem como natildeo eacute objetivo deste estudo analisar tais livros em si mesmos -somente deles extrair elementos que tipifiquem uma cultura de histoacuteria por meio da Independecircncia ndash mais relevantes parecem ser justamente alguns de seus pontos sensiacuteveis nos quais tais livros se fazem menos acadecircmicos e nos quais se traduzem de modo mais significativo componentes mais amplos da sociedade que lhes daacute sentido

Em todos esses livros a Independecircncia eacute invariavelmente vista como parte de um processo mais amplo no qual se incluem outros acontecimen-tos poliacuteticos americanos e europeus de finais do seacuteculo XVIII e comeccedilos do seacuteculo XIX (embora quase nunca sejam feitas conexotildees fundamentais entre eles deficiecircncia notaacutevel sobretudo no tocante agraves independecircncias da Ameacuterica espanhola vistas sempre como supostos contraexemplos da Independecircncia do Brasil62) O episoacutedico se faz presente na menccedilatildeo a vaacuterios temas menores ndash a vinda da Corte a abertura dos Portos o governo de D Joatildeo no Rio de Janeiro a Revoluccedilatildeo de Pernambuco a Revoluccedilatildeo do Porto etc ndash mas sempre em observacircncia a contextos histoacutericos espaciais e temporais mais amplos63 Destaque-se que 80 dos livros fazem referecircncia expliacutecita ao termo ldquoguerra(s) de independecircnciardquo64 o que enseja uma con-cepccedilatildeo tambeacutem multirregional do tema e vaacuterios o aprofundam O mesmo pode ser dito de perfis biograacuteficos presentes mas submetidos a uma loacutegica processual da Histoacuteria

Essa ecircnfase em processos em detrimento parcial de acontecimentos e personagens eacute importante indiacutecio de uma sintonia entre saberes aca-decircmicos e natildeo acadecircmicos65 Contudo deve-se relativizar o peso desse diaacutelogo jaacute no que tange ao tratamento dispensado agraves biografias aleacutem de pouco ou nada inovarem na escolha dos personagens destacados66 alguns livros didaacuteticos trazem fragmentos anedoacuteticos de tais trajetoacuterias hoje em dia pouco ou nada uacuteteis a historiadores profissionais (embora as comilan-ccedilas de D Joatildeo os amantes de D Carlota ou as noitadas de D Pedro natildeo os distingua de outros agentes histoacutericos de sua eacutepoca tampouco satildeo trata-dos como tiacutepicos67) Parece razoaacutevel argumentar que ao menos parcial-mente tal insistecircncia da parte do livro didaacutetico atende ao gosto do leitorconsumidor tornando tais suportes materiais mais agradaacuteveis e sedutores assim sendo constata-se justamente um limite no diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e saberes didaacuteticos expressos em tais livros bem como se anuncia uma tendecircncia de representaccedilatildeo humoriacutestica do passado em uma cultura de histoacuteria como a brasileira muito forte em outros suportes68 Eis um mercado ndash que no Brasil mescla dimensotildees editoriais e midiaacuteticas com outras educacionais e culturais mais amplas ndash impondo seus padrotildees de representaccedilatildeo do passado

Aleacutem de envolverem historiadores profissionais em sua produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo os livros didaacuteticos de Ensino Meacutedio parecem esforccedilar-se cada vez mais em trazer conteuacutedos extraiacutedos de obras acadecircmicas bem como apresentar ao leitor uma pluralidade de posiccedilotildees acerca de um determina-

do IpirangaEm meio a uma pescariaSentindo-se mal D PedroComera demais cuscuzDesaperta a braguilhaE grita roxo de raivaOu me livro desta coacutelicaOu morro logo de uma vezO priacutencipe se aliviouSai no caminho cantandoJaacute me sinto independenteSafa Vou de perto a morteVamos cair no fadinhoPra celebrar o sucessordquo MACEDO Joseacute Rivair Brasil ndash uma histoacuteria em construccedilatildeo Satildeo Paulo Brasil 1996 p166 Cit por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p101

69Tomemos por exemplo esta afirmaccedilatildeo ldquoDe acordo

com alguns historiadores as raiacutezes da independecircncia brasileira estatildeo na segunda metade do seacuteculo XVIII quando se multiplicaram atividades produtivas e comerciais na colocircnia sobretudo na regiatildeo Centro-Sulrdquo (MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Op Cit p113) Nela eacute possiacutevel reconhecer a presenccedila de influente e importante interpretaccedilatildeo acadecircmica acerca da Independecircncia do Brasil (DIAS Maria Odila A interiorizaccedilatildeo da metroacutepole (1808-1853) In MOTA Carlos Guilherme 1822 dimensotildees Satildeo Paulo Perspectiva 1972 p160-184) no entanto natildeo eacute apresentada qualquer contraposiccedilatildeo (se esta posiccedilatildeo eacute da parte de ldquoalguns historiadoresrdquo outra divergente deve ser da parte de outros) Mais adiante lecirc-se que ldquoo fato relevante foi que a transferecircncia da corte para o Brasil provocou uma inversatildeo histoacuterica de modo significativo e irreversiacutevel nas relaccedilotildees entre a metroacutepole portuguesa e a colocircnia brasileirardquo (Idem p114) Ora o que seria uma inversatildeo irreversiacutevel dessas relaccedilotildees Portugal teria se tornado para sempre colocircnia do Brasil

70Nos livros didaacuteticos de Ensino Fundamental

analisados por Purificaccedilatildeo jaacute eram abundantes as transcriccedilotildees de trechos de textos de historiadores profissionais sem que deles resultasse qualquer ensejo de pluralidade de pensamento ou de estiacutemulo agrave interpretaccedilatildeo

71VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA

Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p 103

72O capiacutetulo 14 de uma das obras intitulado

ldquoO processo de independecircncia da Ameacuterica portuguesardquo inicia-se com um excerto do Romanceiro da Inconfidecircncia de Ceciacutelia Meireles tambeacutem indutor a essa interpretaccedilatildeo ldquoAtraveacutes de grossas portas sentem-se luzes acesas e haacute indagaccedilotildees minuciosas dentro das casas fronteiras Que estatildeo fazendo tatildeo tarde Que escrevem conversam pensam Mostram livros proibidos Leem notiacutecias nas GazetasTeratildeo recebido cartasde potecircncias estrangeiras [] Oacute vitoacuterias festas flores das lutas da Independecircncia Liberdade ndash essa palavra que o sonho humano alimenta que natildeo haacute ningueacutem que explique e ningueacutem que natildeo entendardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p 202) Jaacute nas ldquosugestotildees de leitura e consulta para o professorrdquo de outra encontra-se indicaccedilatildeo de uma obra de J J Chiavenato - Inconfidecircncia mineira as vaacuterias faces Satildeo Paulo Global 2000 - com este comentaacuterio ldquoo autor mostra o movimento que buscava a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Adotando uma abordagem que parte da realidade socioeconocircmica do periacuteodo este livro releva diferentes aspectos desse momento singular da histoacuteria brasileirardquo (NOGUEIRA Fausto

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do toacutepico que seja decorrente de debates acadecircmicos No entanto ainda eacute frequente que tais conteuacutedos se inclinem agrave pura formalidade dificilmente explicitando divergecircncias oriundas da academia ou resultando em uma tomada de posiccedilatildeo realmente criacutetica perante a histoacuteria69 Ao usuaacuterio do livro eacute apresentada uma suposta pluralidade de pensamento natildeo como ferramenta de obtenccedilatildeo dessa pluralidade mas como estilo de composiccedilatildeo e padronizaccedilatildeo do material didaacutetico70

Esse tipo de atitude formalista pode ser encontrada tambeacutem em propostas de atividades dirigidas ao aluno como esta

A interpretaccedilatildeo sobre a independecircncia do Brasil provocou e ainda provoca muitas divergecircncias Sob o ponto de vista econocircmico alguns pesquisadores defendem que a separaccedilatildeo ocorreu de fato em 1808 [] Outros com interpretaccedilotildees mais poliacuteticas indicam o 7 de setembro de 1822 embora nenhuma medida formal tenha sido tomada nessa data ndash foi um ato simboacutelico Depois da Guerra do Paraguai jornais republicanos argumentavam que [] D Pedro havia atendido aos apelos de independecircncia dos brasileiros mas os teria traiacutedo quando fechou a Assembleia Constituinte em 1823 Enalteciam entatildeo a Inconfidecircncia Mineira (1789) a Revoluccedilatildeo Pernambucana (1817) e a Confederaccedilatildeo do Equador (1824) movimentos com teor republicano conforme as reais aspiraccedilotildees dos brasileiros

Satildeo vaacuterias interpretaccedilotildees que variam de acordo com a posiccedilatildeo poliacutetica ou momento histoacuterico dos autores Alguns intelectuais consideram ateacute mesmo que o Brasil hoje tem uma independecircncia mais nominal do que real pois continuaria dependente dos paiacuteses mais ricos

Em sua opiniatildeo quando o Brasil se tornou um paiacutes independente71

Aqui novamente eacute apresentada uma divergecircncia de interpretaccedilatildeo e vaacuterias satildeo as possibilidades de resposta agrave pergunta quando o Brasil se tornou um paiacutes independente No entanto todas as posiccedilotildees apresentadas parecem equivaler-se pois tudo depende da ldquoposiccedilatildeo poliacuteticardquo ou ldquodo mo-mento histoacutericordquo da pessoa disposta a respondecirc-la Assim e por induccedilatildeo a Inconfidecircncia Mineira poderia ser uma resposta aceitaacutevel conforme visatildeo ainda presente em alguns livros72 e a despeito do contraacuterio que historia-dores vecircm afirmando nas uacuteltimas deacutecadas Do mesmo modo a atividade pareceria aceitar a ldquonatildeo independecircncia de fatordquo ideia muito presente na cultura de histoacuteria no Brasil73 tatildeo sedutora quanto inconsistente do ponto de vista acadecircmico Para o aluno tratar-se-ia de uma questatildeo de simples opccedilatildeo (poliacutetica) diante da qual a Histoacuteria se destemporaliza

Uma Histoacuteria processual mais do que episoacutedica ou personalista uma Histoacuteria permeada de explicaccedilotildees acadecircmicas ao mesmo tempo uma Histoacuteria com limitaccedilotildees em termos de divergecircncias relativizaccedilotildees e possibilidades em aberto condicionada a suportes materiais repletos de convenccedilotildees a tornarem-nos muito parecidos entre si Talvez seja no tra-tamento dispensado a imagens que os livros didaacuteticos melhor revelam tais convenccedilotildees reforccedilando as limitaccedilotildees de seu diaacutelogo com a Histoacuteria acadecirc-mica bem como acentuando suas caracteriacutesticas de mercadoria Todos os livros aqui considerados satildeo carregados de itens especiacuteficos a quebrarem a continuidade do texto e suas paacuteginas satildeo multicoloridas e povoadas por fi-guras como obras de pintores dos seacuteculos XIX e XX74 Quase nunca poreacutem tais imagens satildeo analisadas como fontes histoacutericas confinadas agrave funccedilatildeo de mera ilustraccedilatildeo frequentemente modificadas em cor e tamanho ateacute mesmo mutiladas ndash sem esclarecimento ndash em prol da diagramaccedilatildeo75 Em tais casos inevitavelmente cria-se uma ideia natildeo de uma histoacuteria sujeita a muacuteltiplas interpretaccedilotildees (contrapondo-se portanto a vaacuterias das atividades

e CAPELLARI Marcos Op Cit p71) Em uma terceira obra logo na abertura de um capiacutetulo intitulado ldquoA independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo lecirc-se que ldquoos dias 21 de abril e 7 de setembro feriados nacionais nos fazem lembrar de dois momentos do processo histoacuterico que levou a independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo (COTRIM Gilberto Op Cit p223) A associaccedilatildeo direta entre Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia era mais comumente feita em livros didaacuteticos de deacutecadas atraacutes Um de Ensino Fundamental caracterizava a Revolta de Beckman a Guerra dos Emboabas a Revolta de Felipe dos Santos a Guerra dos Mascates e as conjuraccedilotildees Mineira e Baiana como movimentos nos quais ldquoos revoltosos se opuseram agrave metroacutepole sonhando e lutando pela autonomia do paiacutesrdquo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Nas trilhas da histoacuteria Ensino Fundamental Belo Horizonte Dimensatildeo 1999 v4) Citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p108

73FIGUEIRA Divalte G Op Cit p191 Nos de

Ensino Fundamental AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 CARMO Socircnia S do COUTO Eliane F B A A consolidaccedilatildeo do capitalismo e o Brasil impeacuterio Satildeo Paulo Atual 1997 (Histoacuteria Passado Presente 3) p105 FERREIRA Joseacute Roberto Histoacuteria Ediccedilatildeo Reformulada Satildeo Paulo FTD 1997 (7ordf seacuterie) p65 ALVES Kaacutetia Correia Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p 128 Citados por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p78 84-85 96 e 111

74Debret Rugendas Moreaux Feacutelix Taunay

Constantino Fontes Polliegravere Parreiras Benedito Calixto Delerive Martins Viana Oscar Pereira da Silva Georgina de Albuquerque e Aldemir Martins entre outros

75Isso jaacute era frequente haacute uma deacutecada com livros

de Ensino Fundamental como por exemplo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p126 e COTRIM Geraldo Op Cit p 112 conforme anaacutelise de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p113 e 123 Haacute que se dizer que livros didaacuteticos natildeo satildeo meio exclusivo para esse esvaziamento do valor documental da iconografia havendo na proacutepria publicaccedilatildeo acadecircmica problema semelhante como demonstra CAVENAGHI Airton Joseacute O atlas do impeacuterio do Brazil e as representaccedilotildees presentes no livro Projeto Histoacuteria v 41 2010 p 383-403

76Constataccedilatildeo semelhante agrave de PURIFICACcedilAtildeO Ana

Teresa da Op Cit para os didaacuteticos de Ensino Fundamental

77NOGUEIRA Fausto e CAPELLARI Marcos Op

Cit p255

78Para um deles ldquoo pintor Pedro Ameacuterico imaginou

a cena ocorrida agraves margens do riacho do Ipirangardquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 para outro um ceacutelebre quadro mostraria uma ldquocena de uma

21Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

sessatildeo das cortes de Lisboa reconstituiacuteda pelo pintor Oscar Pereira da Silvardquo Cfr CARMO Socircnia do COUTO Eliane F B A Op Cit p 73 um terceiro propunha ao aluno a seguinte atividade ldquoobserve cuidadosamente as gravuras de Debret que aparecem no texto Descreva cada uma delas e compare as cenas nelas retratadas com as cenas de nossas ruas de hoje Haacute diferenccedila Em que sentidordquo Cfr GARCIA Leocircnidas F Estudos de histoacuteria sociedades contemporacircneas 2 ed rev Goiacircnia Editora da UFG 1996 Manual do Professor p 111 Todas as informaccedilotildees foram retiradas de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p81 88 e 137

79Conforme bem mostrado por Elias Saliba Cfr

SALIBA Elias Experiecircncias e representaccedilotildees sociais reflexotildees sobre o uso e o consumo das imagens Anais do II Encontro Perspectivas do Ensino de Histoacuteria Satildeo Paulo FEUSP 1996 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p119

80Produzida pela Secretaria de Ensino agrave

Distacircncia do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo em parceria com a TV Escola e a Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco com a companhia teatral Matildeo Molenga Parte 1 disponiacutevel em youtubecomwatchv=Z60eHBJ1xjY 18082 visualizaccedilotildees e 15 comentaacuterios parte 2 disponiacutevel em youtubecomwatchv=2QLkP2NDhMg 30100 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios (parte desse episoacutedio tambeacutem disponiacutevel em youtubecomwatchv=bAPUjP7l-lI 18398 visualizaccedilotildees e 16 comentaacuterios acesso em 13022014

81Como Clemente Pereira Gonccedilalves Ledo Cipriano

Barata Paes de Andrade e frei Caneca O fato de se tratar de uma produccedilatildeo pernambucana contribui para tanto

82Semelhante observaccedilatildeo pode ser feita a respeito

dos doze curtos episoacutedios da seacuterie D Joatildeo no Brasil inspirada em uma narrativa em quadrinhos da chegada da Corte ao Brasil seacuterie de animaccedilatildeo produzida pelo Canal Futura baseada no livro de histoacuteria em quadrinhos D Joatildeo Carioca a corte portuguesa chega ao Brasil (1808 - 1821) escrito pela historiadora Lilia Schwarcz e pelo desenhista Spacca (Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007) Novamente tem-se um material convincente afinado em muitos sentidos com um conhecimento acadecircmico mas que ao recorrer agrave saacutetira tambeacutem evoca estereoacutetipos convencionais como por exemplo os mesmos acima mencionados em referecircncia a priacutencipe e princesa Poder-se-ia atribuir tal convencionalismo dentre outros fatores ao de que a primazia da linguagem visual aqui opera duplamente isto eacute com os quadrinhos e tambeacutem com o programa televisivo criado a partir deles amplificando assim os efeitos decorrentes da saturaccedilatildeo visual da sociedade que daacute origem e significado a esse material Para todos os efeitos a imposiccedilatildeo de tais convenccedilotildees eacute forte ateacute mesmo conforme jaacute visto em materiais menos visuais que este Episoacutedio 01 youtubecomwatchv= 9f5RB1zcD5Eamplist=PLyP1ks9vaqhj2y6MmckU DyuXtWmHgPLe5ampindex=1 331 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio episoacutedio 02 youtubecomwatchv= w-BLqvhYPGkamplist=PL5837763F26AB1B87

oferecidas pelos proacuteprios livros) mas de uma histoacuteria imoacutevel a ser captada de modo instantacircneo uma histoacuteria verdadeira Aleacutem do mais confundem-se os diferentes contextos motivaccedilotildees e condiccedilotildees de produccedilatildeo de tais imagens o que equivale agrave oferta de uma confusatildeo temporal que impossibi-lita a compreensatildeo dessa histoacuteria76

As uacutenicas exceccedilotildees satildeo os ceacutelebres quadros de Moreaux e de Pe-dro Ameacuterico Todos os livros didaacuteticos aqui considerados se esforccedilam por submetecirc-los a uma criacutetica muitas vezes comparativa considerando forma conteuacutedo e contexto mesmo assim eacute possiacutevel encontrar afirmaccedilotildees como a de que Ameacuterico teria tido ldquoo intuito de fazer a representaccedilatildeo desse famoso acontecimento da maneira mais fiel possiacutevelrdquo e que ldquomuitos dos elementos representados pelo pintor satildeo sabidamente falsosrdquo77 Provavel-mente satildeo resquiacutecios de um momento anterior no qual os livros didaacuteticos mostravam-se muito menos cuidadosos ateacute mesmo na utilizaccedilatildeo do quadro de Ameacuterico78 mas tambeacutem marcas atuais de uma sociedade de haacutebitos fortemente visuais cuja saturaccedilatildeo de imagens tende a resultar em posturas pouco criacuteticas em relaccedilatildeo ao que se vecirc bem como em indistinccedilatildeo tempo-ral das mesmas79 Haacute que se lembrar por fim e novamente que os textos desses livros satildeo cheios de descontinuidades como se cada pedaccedilo de cada paacutegina tivesse autonomia prescindindo de certo modo da leitura dos demais Guardaratildeo tais constataccedilotildees alguma relaccedilatildeo com as dificuldades apresentadas pelos entrevistados na sondagem de opiniatildeo de organizar visotildees da Histoacuteria da Independecircncia segundo marcos cronoloacutegicos bem como de distinguir diferenccedilas entre intervalos temporais Eacute bem possiacutevel sobretudo porque ela seraacute endossada pela observaccedilatildeo de outras fontes

5 - A Independecircncia na internet e na tevecircExiste farto e rico material audiovisual disponiacutevel na internet com referecircncias agrave Independecircncia do Brasil e que a exemplo dos livros didaacuteticos represen-tam a convergecircncia de esforccedilos profissionais muacuteltiplos (mais os programas de tevecirc do que os viacutedeos independentes) como pesquisadores roteiristas apresentadores repoacuterteres cenoacutegrafos teacutecnicos variados etc As fontes aqui delimitadas perfazem 107 viacutedeos acessiacuteveis no YouTube e que natildeo obstante sua ampliacutessima diversidade convergem em muitos significados

Observe-se o caso de viacutedeos educativos documentaacuterios e programas de televisatildeo com entrevistas e debates que em comum apresentam objetivos formativos e esforccedilos verdadeiros de incorporaccedilatildeo de conteuacutedos acadecircmicos traduzidos em linguagens didaacuteticas Um caso exemplar eacute a seacuterie 500 anos o Brasil - Impeacuterio na TV que conta uma histoacuteria do Brasil da chegada da Corte ao periacuteodo das regecircncias em formato de telejornal com trama romanceada e teatro de bonecos80 Aqui vecirc-se uma Histoacuteria processual com informa-ccedilotildees corretas e amparadas em datas deslocamentos frequentes dos eixos espaciais de observaccedilatildeo (regional internacional) com menccedilatildeo a persona-gens que extrapolam o tradicional ciacuterculo da Corte portuguesa81 e ecircnfase no caraacuteter violento e conflitivo da formaccedilatildeo do Brasil no seacuteculo XIX Mesmo um material histoacuterico-pedagoacutegico desse quilate evoca por exemplo a falta de atributos esteacuteticos de Carlota Joaquina ou a pusilanimidade de seu marido a revelarem mais uma vez o mercadologicamente eficiente componente bio-graacutefico-anedoacutetico no tratamento da Independecircncia advindo de sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria mais ampla82

Em outros casos o fato de programas de televisatildeo buscarem o auxiacutelio de especialistas na Independecircncia revela uma convenccedilatildeo formal como nos

22Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

16566 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios episoacutedio 03 youtubecomwatchv=QvWSE-sF-w4amplist =PL5837763F26AB1B87 18406 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios episoacutedio 04 youtubecomwatchv= 2N5wBvpgyXEamplist=PL5837763F26AB1B87 12808 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 05 youtubecomwatchv=VaHrSAFBf1Uamplist =PL5837763F26AB1B87 14615 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 06 youtubecomwatchv= 8RrCMbOZTsAamplist=PL5837763F26AB1B87 12649 visualizaccedilotildees 10 comentaacuterios episoacutedio 07 youtubecomwatchv=I4cgWo_GHaQ 601 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 08 youtubecomwatchv=rI71YNrLo7o 12299 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 09 youtubecomwatchv=huv2ngnqUd4 367 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios episoacutedio 10 youtubecomwatchv=F2MaLs_kj-w 10842 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios episoacutedio 11 youtubecomwatchv=8zK3D01dXc0 9388 visualizaccedilotildees 05 comentaacuterios episoacutedio 12 youtubecomwatchv=R76BHD--vB8amplist=PL5837763F26AB1B87 12108 visualizaccedilotildees 9 comentaacuterios acessos em 03042014

83NAPOLITANO Marcos A Histoacuteria depois do

papel In Carla Pinsky (org) Fontes Histoacutericas Satildeo Paulo Contexto 2005 p250-252 Napolitano afirma com base em Umberto Eco que a televisatildeo introduziu uma mudanccedila de ritmo de vida familiar e cotidiana bem como o que se pode chamar de hipertrofia sensorial em detrimento da assimilaccedilatildeo conceitual Destaca ainda que eacute preciso pensar a televisatildeo como uma nova experiecircncia social do tempo histoacuterico na medida em que ela faz coincidir o verdadeiro o imaginaacuterio e o real no ponto indivisiacutevel do presente

84Produzida pela rede de emissoras puacuteblicas

TV Brasil Sobre a Revolta dos Alfaiates parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo 767 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=dj04LJJM8bk 2592 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio Sobre a Batalha do Jenipapo parte 1 youtubecomwatchv=zlgsZcj-V3o 2426 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios acesso em 24032013 parte 2 youtubecomwatchv=rAS3dHAvWPQ 1283 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio Sobre Tiradentes youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 408 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013)

85Marco Morel e Luiacutes Henrique Dias Tavares

86Programa De laacute pra caacute Revolta dos Alfaiates

parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo

87Exceccedilatildeo satildeo as entrevistas realizadas por

Mocircnica Teixeira na UnivespTV que estabelecem comunicaccedilatildeo bastante profiacutecua entre a entrevistadora e os acadecircmicos entrevistados (youtubecomwatchv=syXf3WHQRPM 4450 visualizaccedilotildees 06 comentaacuterios youtubecomwatchv=pZk5pFlboqw 3303 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=5pUDP2KUYCY 4128 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios

livros didaacuteticos e a exemplo destes a intenccedilatildeo de acolher uma multipli-cidade de vozes raramente enseja verdadeira pluralidade de pensamento o que ademais eacute dificultado pela natureza curta sinteacutetica e acelerada dos materiais televisivos Nessas situaccedilotildees constata-se que o historiador fala uma coisa mas o entrevistador e o produtor continuam a ldquoescutarrdquo outra o que muitas vezes reforccedila a percepccedilatildeo de descontinuidade narrativa an-teriormente tambeacutem diagnosticada nos livros didaacuteticos e que na televisatildeo adquire contornos de regra83 Os episoacutedios da seacuterie De laacute para caacute educati-vos didaacuteticos aacutevidos por com conhecimentos acadecircmicos e produzidos por uma rede puacuteblica de televisatildeo sem fins lucrativos apresentam interessante exemplo84 No programa dedicado aos acontecimentos de 1798 na Bahia dois historiadores profissionais85 esclarecem que os revoltosos ldquobahien-sesrdquo almejavam a independecircncia apenas da capitania da Bahia o que tem enormes implicaccedilotildees a destituiacuterem tais acontecimentos de qualquer atribu-to supostamente preparatoacuterio da Independecircncia do Brasil (situaccedilatildeo muito semelhante conforme vimos agrave da Inconfidecircncia Mineira) natildeo obstante na abertura do programa seu apresentador declara

A luta pela independecircncia do Brasil foi escrita nas paacuteginas memoraacuteveis da nossa histoacuteria com o sangue de um punhado de brasileiros O mais celebrado foi Tiradentes Mas sete anos depois do martiacuterio de Tiradentes quatro brasileiros pretos pobres pelos mesmos ideais foram enforcados e sentenciados em Salvador86

Em outros momentos o apresentador apesar de ouvir de forma soliacutecita e atenta ao que o entrevistado tem a dizer acaba por negar com sua proacutepria fala parte do conteuacutedo receacutem-ouvido mas sem demonstrar ser essa atitude premeditada ou consciente Afinal eacute difiacutecil desvencilhar-se daquilo que jaacute se ldquosaberdquo daquilo que adveacutem de um ambiente que o tempo todo nos ldquoensinardquo Histoacuteria sem necessariamente disso nos darmos conta87

A incapacidade de assimilaccedilatildeo reciacuteproca de ideias acerca da histoacute-ria entre agentes sociais diversos pode revelar-se de muitos modos Um dos programas da seacuterie Caminhos da Reportagem intitulado Caminhos da Independecircncia o grito nas ruas produzido com as mesmas caracteriacutesticas do anterior aborda a Independecircncia focada em seus panfletos poliacuteticos a partir da pesquisa recente de trecircs historiadores profissionais88 No entan-to e a despeito natildeo soacute de dar ampla voz a eles mas tambeacutem de abordar conteuacutedos didaticamente inovadores a equipe de entrevista que foi agraves ruas natildeo estabeleceu qualquer mediaccedilatildeo entre histoacuterias acadecircmicas e natildeo acadecircmicas pressupondo que todas as pessoas ocupam uma mesma posiccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria Por isso perguntas incompreensiacuteveis89 resultam apenas em situaccedilotildees vexatoacuterias impeditivas da construccedilatildeo de conhecimento sobre o tema

A abordagem de pessoas nas ruas recurso frequentemente utiliza-do por programas televisivos revela dados importantes acerca de como os brasileiros veem a Independecircncia muitas vezes mais por aquilo que eacute perguntado do que por aquilo que eacute respondido90 O programa + Estilo de 07 de setembro de 2011 produzido pela TV Campo Grande com conteuacutedo de variedades destinado a telespectadores de meio de tarde foi agraves ruas (provavelmente de Campo Grande Mato Grosso do Sul) perguntar se as pessoas saberiam dizer o que se comemorava naquele dia Primeiro res-ponde uma jovem com um bebecirc no colo

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youtubecomwatchv=0ZVgCwkt1ms 1384 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1016 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1227 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=ANSHAFLau04 1175 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios) Acessos em 21042014

88Joseacute Murilo de Carvalho Luacutecia Pereira das Neves

e Marcello Basile

89A apresentadora ldquoVocecircs sabem o que significa

corcundardquo Um professor de coleacutegio ldquoDeve ser alguma coisa que estaacute surgindo aiacute no mundo um pouco mais ciberneacutetico porque eu nem na faculdade ouvi falar dos corcundasrdquo Marcos Tomazzeti produtor multimiacutedia ldquoNa minha cabeccedila vem algo de monarquia de rei algo meio poliacuteticordquo Simone Granda bancaacuteria ldquoDicionaacuterio de corcundice Natildeo seirdquo Marilu Guimaratildees dona de casa ldquoPuxa tem tanta coisa importante pra ter dicionaacuterio vai ter justo do corcundistardquo Caminhos da Independecircncia youtubecomwatchv=37XH5UEpjlI acesso em 24032013

90Em perspectiva oposta mas complementar agrave da

sondagem de opiniatildeo aqui utilizada

91E que portanto muito provavelmente ainda natildeo

tinha tido contato formal (escolar) com o tema

92O programa prossegue entatildeo com uma entrevista

com o professor Ian Rari que trata de uma Histoacuteria da Independecircncia processual natildeo centrada em uma uacutenica data ou fato criacutetica etc Mais um momento onde as vaacuterias vozes contempladas pelo programa natildeo dialogam entre si (youtubecomwatchv=xv1LOlwUfFQ 289 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio) Outro exemplo significativo eacute dado pelo programa Conexatildeo Jovem exibido em 06 de setembro de 2012 no qual dois entrevistados ndash Prof Bira professor de Histoacuteria e Marcos Eduardo socioacutelogo ndash utilizam com competecircncia o pouco tempo a eles destinado discorrendo de modo criacutetico sobre a Independecircncia e em linguagem adequada ao puacuteblico jovem ao qual o programa se destina (produccedilatildeo da TV Novo Tempo adventista parte 1 youtubecomwatchv=1IvYOYtju9sgt 74 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=Ofv7QWOJpHo 47 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013) Logo o programa traz uma abordagem feita na rua na qual a entrevistadora pergunta a uma jovem ldquoQuem falou lsquoindependecircncia ou mortersquo agraves margens do riacho do Ipirangardquo Diante da correta resposta a entrevistadora tenta induzir um erro ldquo15 de novembro ou 7 de setembrordquo Aliaacutes a expectativa do programa parece revelada pela entrevistadora logo na primeira pergunta feita a um dos convidados ldquoseraacute que os jovens se interessam pela histoacuteria de seu paiacutesrdquo E embora o material recolhido pelo proacuteprio programa permita resposta afirmativa manteacutem-se a postura negativa preacute-concebida

93Daiacute a relevacircncia de um viacutedeo com fotografias e

um aacuteudio (youtubecomwatchv=UdQ_aAAl3DE)

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoE isso em que ano que foi que aconteceurdquoResposta ldquo1822rdquo

Em seguida outro jovem que provavelmente jaacute tinha respondido a outra pergunta

Pergunta ldquoQuem foi o imperador vocecirc lembrardquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoAcertou Canta pra gente um trecho do hino da independecircnciardquoResposta ldquoAgora natildeo lembrordquo

Agora o programa aborda uma menina de cerca de dez anos clara-mente intimada91

Pergunta Por que eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoNatildeo seirdquoPergunta ldquoNatildeo lembra Vou dar uma dica um fato histoacuterico muito importante para o BrasilrdquoResposta (negativa com a cabeccedila)

Em quarto lugar outra jovem que procura se afastar da cacircmera

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta (ainda tentando se esquivar sorrindo) ldquoNatildeordquoPergunta ldquoNatildeo saberdquoResposta ldquoAh A Independecircncia Eu natildeo prestei atenccedilatildeordquoPergunta Que ano aconteceu a Independecircncia vocecirc lembrardquoResposta ldquoNatildeordquoPergunta ldquoE quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoTambeacutem natildeo lembrordquo

Por fim a entrevista com um senhor de meia-idade comeccedila jaacute com uma resposta

Resposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoQue ano aconteceu issordquoResposta ldquo1888rdquoPergunta ldquo1822 Quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoCerto E onde foi que aconteceu tudo issordquoResposta ldquoSatildeo PaulordquoPergunta ldquoOK [breve silecircncio] Canta um trechinho para noacutes do hino da IndependecircnciardquoResposta ldquoJaacute podeis da paacutetria matildeerdquo [sic -prossegue cantando corretamente]

Em seguida o programa corta para uma sala de aula onde a despeito dos ldquoacertosrdquo obtidos nas ruas a entrevistadora afirma

Diante da dificuldade que noacutes encontramos no centro da cidade para saber informaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil eu vim parar na sala de aula Vai ser aqui que a gente vai descobrir a histoacuteria do paiacutes92

A ideia a priori de que o brasileiro natildeo conhece e natildeo se interessa pela histoacuteria subsidia este e muitos outros programas Aqui o dado mais relevante parece estar precisamente nessa arraigada crenccedila no desinteres-

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da entatildeo prefeita de Ribeiratildeo Preto (Satildeo Paulo) Darcy Vera que afirma durante um desfile de 7 de Setembro dentre vaacuterios desvarios que ldquoTiradentes gritou lsquoIndependecircncia ou mortersquordquo Com 169919 acessos e 149 comentaacuterios (em geral criacuteticos bem humorados e depreciativos) ateacute 20082014 condensa a possibilidade de amplificaccedilatildeo do estigma do natildeo domiacutenio de referecircncias convencionais agrave Independecircncia mas sem fomentar nenhum conhecimento da mesma

94Novamente surge a questatildeo natildeo teratildeo as

renovaccedilotildees curriculares promovidas no ensino de Histoacuteria (no Brasil e alhures) das uacuteltimas deacutecadas exagerado nessa incompatibilidade Teratildeo elas sido capazes de mensurar seus efeitos deleteacuterios diante de sociedades jaacute bastante refrataacuterias a uma histoacuteria cronoloacutegica

95ldquoPouco importa que sua figura tenha sido

mitificada pela propaganda republicana O que importa eacute que ele foi um heroacutei Ele deu sua vida pela paacutetria e pela liberdaderdquo (Programa De laacute pra caacute youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032013) Essa exaltaccedilatildeo da figura de Tiradentes associada agrave Independecircncia conduz o discurso da propaganda eleitoral de um candidato agrave prefeitura de Ouro Preto em 2012 (youtubecomwatchv=eGefgLoRhec 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032014) Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo no dia 09 de setembro de 2013 apoacutes se autocaracterizar como realizador de uma ldquohistoacuteria de carne e ossordquo em contraposiccedilatildeo a produccedilotildees ldquocontaminadas pela anaacutelise marxistardquo que retirariam os personagens da Histoacuteria o jornalista Laurentino Gomes afirma ldquoNo 1822 faccedilo uma comparaccedilatildeo e digo que o uacutenico problema do Joseacute Bonifaacutecio foi nascer no Brasil pois se ele tivesse nascido nos Estados Unidos teria sido maior que o Thomas Jefferson Porque aparentemente ele era mais preparado mais luacutecido que o Thomas Jeffersonrdquo (parte 1 youtubecomwatchv=uGibbLxsZK0 4501 visualizaccedilotildees e 5 comentaacuterios parte 2 youtubecomwatchv=2LQcEcb5kLU 2302 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios acesso em 26032014 Logo voltaremos agrave obra e agraves ideias de L Gomes

96Um exemplo adveacutem do viacutedeo ldquoA verdadeira

independecircncia do Brasilrdquo em que um pastor evangeacutelico em meio a uma cerimocircnia religiosa ldquodesconstroacuteirdquo o quadro de Pedro Ameacuterico acusando-o de pouco verossiacutemil e aponta os desvios morais de D Pedro I de modo a inviabilizaacute-lo como figura histoacuterica digna de memoacuteria (youtubecomwatchv=RsKQr6bgzLA 178 visualizaccedilotildees e 2 comentaacuterios acesso em 24032014) A suposta irrelevacircncia dos personagens envolvidos no processo da independecircncia eacute notaacutevel na fala de um professor de Ensino Meacutedio (youtubecomwatchv=gvWVF9j2KEU 597 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) e de um apresentador de temas religiosos que relativizam a importacircncia do tema ao afirmarem a atual ldquodependecircncia econocircmicardquo do Brasil (youtubecomwatchv=EXyUBY7StF4 383 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Tambeacutem retornaremos a esse tema

sedesconhecimento do brasileiro pela histoacuteria bem como em um de seus efeitos mais contundentes a crenccedila de que eacute possiacutevel reverter tal situaccedilatildeo pela simples mobilizaccedilatildeo formal de datas nomes e eventos Contudo se a Independecircncia se converte em uma catalizadora de referecircncias cronoloacute-gicas ou nominais isso natildeo leva necessariamente a uma historicizaccedilatildeo do tema pelo contraacuterio a mobilizaccedilatildeo de tais referecircncias em termos como os acima mencionados (a data ou o nome por si soacutes) pode resultar no apro-fundamento da tendecircncia agrave confusatildeo temporal jaacute aqui apontada93

Nos meios intelectuais a discussatildeo em torno das formas tempo-rais de vivecircncia coletiva naquilo que se pode chamar ndash recorrendo-se a uma categoria uacutetil ndash de modernidade natildeo eacute nova tampouco estaacute em vias de esgotamento A dificuldade de organizaccedilatildeo do mundo social segundo referecircncias cronoloacutegicas natildeo seraacute em absoluto distintiva de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil embora o contraacuterio deva ser dito em relaccedilatildeo agraves formas assumidas por tais dificuldades (como as noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia) Percebe-se entatildeo o peso do estigma da dificuldade em manejar datas nomes e fatos suposta prova de um desin-teresseignoracircncia que poderia ser combatido com um retorno a velhas formas de se fazer Histoacuteria e nas quais tais elementos eram considera-dos com a essecircncia da compreensatildeo histoacuterica Natildeo parece que as coisas devam propriamente se passar segundo essa representaccedilatildeo embora um dos confrontos existentes na cultura de histoacuteria no Brasil seja sem duacutevida a polarizaccedilatildeo entre a valorizaccedilatildeo da Independecircncia (= de suas datas nomes eventos siacutembolos e supostos valores etc) e a desvalorizaccedilatildeo da mesma (=seu caraacuteter elitista e negociador a diminuiccedilatildeo da histoacuteria do Brasil em comparaccedilatildeo com a de outros paiacuteses a comicidade dessa histoacuteria etc) Eacute plausiacutevel conceber que esta segunda posiccedilatildeo encontre um aliado na con-cepccedilatildeo de incompatibilidade entre uma histoacuteria amparada por referecircncias cronoloacutegicas e ao mesmo tempo em processos estruturas e temas trans-versais do gosto inclusive de muitos acadecircmicos e educadores94

Os exemplos de materiais audiovisuais a traduzirem veicularem e fomentarem esse confronto entre valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo da Inde-pendecircncia satildeo muitos Aleacutem dos jaacute tratados ateacute aqui pode-se mencionar viacutedeos contendo propaganda de instituiccedilotildees puacuteblicas civis e militares de partidos poliacuteticos de grupos maccedilocircnicos de igrejas e de empresas variadas bem como produccedilotildees independentes Neles eacute possiacutevel encontrar desde a exaltaccedilatildeo das referecircncias mais convencionais agrave Independecircncia como a seus personagens (incluindo seu suposto maacutertir Tiradentes)95 ateacute a afirma-ccedilatildeo de sua total irrelevacircncia96 isso costuma ocorrer sem muitos matizes obedecendo a uma loacutegica dicotocircmica plasmada em linguagens simples com descontinuidades discursivas e imageacuteticas e num ritmo de exposiccedilatildeo acelerado Em suma tratam da Independecircncia segundo padrotildees parcial-mente compartilhados tambeacutem por outras fontes ateacute aqui analisadas

Todas essas fontes com suas noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia satildeo sintomaacuteticas de estados de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema bem como potenciais formadores de opiniatildeo dos mesmos Sua capacidade de criaccedilatildeo de conhecimento no entanto se mostra muito limi-tada Eacute bem verdade que esta eacute por vocaccedilatildeo uma tarefa confiada a saberes acadecircmicos ndash jaacute que no Brasil a quase totalidade da pesquisa em Histoacuteria estaacute entregue agraves universidades salvo a de interesse corporativo ndash de modo que natildeo seria de esperar inovaccedilatildeo em suportes tatildeo variados e socialmen-te diversificados quanto os ateacute aqui analisados Mas parece haver aiacute certo

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ciacuterculo vicioso a envolver tambeacutem parte da academia Basta observar que a ideia da ldquonatildeo Independecircncia de fatordquo tatildeo em voga entre tantos historiadores durante tanto tempo reverbera com forccedila na sociedade em geral97 e ainda goza de prestiacutegio ateacute mesmo entre alguns acadecircmicos que bebem-na da sociedade e apoacutes modificaacute-la parcialmente devolvem-na aos espaccedilos de di-vulgaccedilatildeo98 Essa versatildeo da Histoacuteria eacute capaz de transpor fronteiras temporais de atualizar-se em diferentes contextos e ateacute mesmo de superar abissais diferenccedilas poliacuteticas ela estaacute representada por exemplo e de modo quase idecircntico na propaganda poliacutetica de um partido trotskista e na pregaccedilatildeo nacionalista-direitista de um polecircmico professor de histoacuteria99

Por fim tome-se o caso de trecircs produccedilotildees da Rede Globo de Televi-satildeo voltadas ao puacuteblico em geral com consideraacuteveis aportes financeiros e complexa produccedilatildeo a seacuterie documental A Corte no Brasil para exibiccedilatildeo em tevecirc fechada100 e as seacuteries humoriacutesticas O Quinto dos Infernos101 e Eacute muita Histoacuteria Dia de Fuacuteria102 veiculadas amplamente em tevecirc aberta No pri-meiro caso siacutetios histoacutericos visitados pelas apresentadoras uma narrativa soacutebria e informativa de fatos e processos grande quantidade de entrevistas com historiadores ecircnfase em diferentes espaccedilos regionais e internacio-nais e tratamento do tema em muacuteltiplas dimensotildees (poliacutetica econocircmica cultural) No segundo caso uma narrativa romanceada teatral e cocircmica fortemente despolitizada e livremente baseada em trecircs livros de igual teor (um deles publicado haacute quase um seacuteculo)103 praticamente centrada no Rio de Janeiro (um pouco tambeacutem em Portugal muito menos alhures) e nos membros da famiacutelia real portuguesa cuja vida pessoal eacute estruturada em torno de seus haacutebitos excecircntricos (principalmente os sexuais) e vez ou outra de passageiros dramas pessoais104

Finalmente no terceiro caso uma encenaccedilatildeo tambeacutem cocircmica pro-tagonizada por um escritor-autor-ator-palhaccedilo com grande liberdade de criaccedilatildeo mas amparada em informaccedilotildees convenccedilotildees e mitos a oferecer uma versatildeo do Sete de Setembro segundo o estado psico-fisioloacutegico de D Pedro

Eis um exemplo de uma das modalidades assumidas pela disputa em torno de uma Independecircncia valorizada e outra depreciada Pareceria justificaacutevel opor a tal diagnoacutestico a constataccedilatildeo de se tratarem de obras televisivas de distinto teor o que desobriga a segunda e a terceira de qual-quer compromisso com a verdade No entanto interessam-nos mais seus significados e efeitos do que intenccedilotildees Note-se que a primeira documen-tal eacute de circulaccedilatildeo mais restrita que a segunda e a terceira voltadas para grande puacuteblico por isso seus efeitos nesse jogo de criaccedilatildeorecriaccedilatildeo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da Independecircncia satildeo natildeo apenas assimeacutetricos mas tambeacutem concorrentes105 Os esforccedilos de um pro-grama por posicionar o espectador diante de uma histoacuteria processual de encadeamentos temporais e de grupos e conflitos sociais satildeo naturalmente obstados pelos dos outros dois a oferecer uma histoacuteria repleta de anacro-nismos anedoacutetica e biograacutefica em perfeita sintonia com demandas mais amplas de uma sociedade ndash e de alguns de seus componentes mercadoloacutegi-cos jaacute aqui mencionados ndash na qual a vida privada eacute mais valorizada do que a puacuteblica106 Nesse confronto embora as trecircs convivam na mesma cultura de histoacuteria uma Independecircncia tende a prevalecer sobre a outra107

6 ndash A Independecircncia no cinemaEm relaccedilatildeo a livros didaacuteticos programas de televisatildeo e outros materiais audiovisuais as fontes cinematograacuteficas aqui consideradas naturalmente

97Exemplo encontra-se no viacutedeo ldquoAway Nilzer ndash

Independecircncia do Brasilrdquo com grande nuacutemero de visualizaccedilotildees (130677) e de comentaacuterios (1016) que minimiza e ridiculariza natildeo apenas o processo da independecircncia como quaisquer fatos histoacutericos brasileiros de maneira geral (youtubecomwatchv=Vd_kloNeQV0) O Brasil atual como viacutetima de uma exploraccedilatildeo econocircmica mais intensa do que nos tempos coloniais e portanto natildeo-independente aparece na fala de outro professor (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2806 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) e nos comentaacuterios de um boneco marionete de um programa infantil (youtubecomwatchv=9mh3Tu6c4_w 173 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032014)

98Exemplo desse processo de ldquodevoluccedilatildeordquo pode ser

comprovado no viacutedeo ldquoIndependecircncia ou morterdquo (youtubecomwatchv=QUvnz1no1m8 934 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Outros dois exemplos pertinentes satildeo a insistecircncia nas ideias de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil e que a Independecircncia foi uma luta entre brasileiros e portugueses

99Em entrevista a uma rede local de televisatildeo

ouvimos do professor de histoacuteria do Ensino Meacutedio Wander Pugliesi ldquoSe noacutes formos trabalhar com sinceridade o Brasil ainda natildeo eacute independente Na verdade somos muito mais explorados do que quando eacuteramos colocircnia de Portugalrdquo (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2815 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) A mesma relativizaccedilatildeo do processo de independecircncia aparece na fala do candidato agrave presidecircncia em 2010 pelo PSTU Zeacute Maria ldquohoje infelizmente natildeo podemos comemorar uma verdadeira independecircncia do paiacutes Eacute preciso dizer a verdade as multinacionais controlam a economia brasileira As decisotildees fundamentais satildeo tomadas por elas fora do paiacutesrdquo (youtubecomwatchv=ht9Yt0PlGnU 1803 visualizaccedilotildees um comentaacuterio) Acessos em 26032013

100Direccedilatildeo de Carlos Henrique Schroder 2008

Produccedilatildeo de 16 episoacutedios de cerca de 20 minutos cada para o canal da TV fechada GloboNews A seacuterie foi comercializada em DVD e pode ser vista tambeacutem no canal Globosat no Youtube (youtubecomwatchfeature= player_detailpageampv= OUX-zSyaMIc e viacutedeos relacionados Acesso em 27032014)

101Direccedilatildeo de Wolf Maya e Alexandre Avancini e

criaccedilatildeo de Carlos Lombardi 2002 Produccedilatildeo de 48 episoacutedios com cerca de 40 minutos cada para o canal da TV aberta Rede Globo de Televisatildeo A minisseacuterie tambeacutem foi comercializada em DVD e vem sendo (desde janeiro de 2014) reprisada no Canal Viva (rede fechada de televisatildeo filiada Globosat) uma reprise anterior ocorreu de agosto a novembro de 2011 sempre por volta das 23h

102Direccedilatildeo de Joatildeo Carrascosa e Pedro Bial 2007

Produccedilatildeo de 9 capiacutetulos de cerca de 15 minutos

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apresentam especificidades Tendem a diversificar (eventualmente ampliar) o rol de profissionais envolvidos em sua produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo bem como a tratar conteuacutedos em um tempo mais lento criando uma sensaccedilatildeo de homogeneidade de significados reforccedilada pela aderecircncia de tais conteuacutedos a uma trama central Tal homogeneidade por seu turno eacute relativizada por uma liberdade de criaccedilatildeo que dificilmente encontra paralelo em outros dos materiais aqui considerados ndash com a possiacutevel exceccedilatildeo da minisseacuterie O Quinto dos Infernos No entanto quando a comparaccedilatildeo eacute feita com os li-vros didaacuteticos os conteuacutedos relativos agrave Independecircncia no cinema tendem a ser menos numerosos mais superficiais e efecircmeros justamente por serem menos assumidamente informativos do que os dos livros embora isso possa encontrar alguma compensaccedilatildeo em uma linguagem visual de forte apelo emotivo Para todos os efeitos como aponta um estudioso da mateacuteria os filmes de temaacutetica histoacuterica carregam sempre certa ambiguidade ocupam uma espeacutecie de ldquoentrelugarrdquo com forccedila para criar ldquoverdadesrdquo socialmente aceitas108 Nos cinco filmes aqui considerados109 as ldquoverdadesrdquo sobre a Independecircncia tendem a replicar linhas de forccedila jaacute conhecidas mesclando temporalidades correspondentes tanto aos momentos em que foram pro-duzidos quanto aos momentos posteriores em que foram sendo exibidos110

Independecircncia ou Morte produccedilatildeo a serviccedilo das comemoraccedilotildees oficiais do sesquicentenaacuterio da Independecircncia levadas a cabo pelo go-verno ditatorial brasileiro em 1972 mostra uma narrativa de forte teor didaacutetico-pedagoacutegico sem grandes pretensotildees artiacutesticas expliacutecitas111 com diaacutelogos e situaccedilotildees muitas vezes retirados de obras sobre a Independecircncia e tratados de forma literal Sua finalidade eacute clara ldquoensinarrdquo aos especta-dores uma histoacuteria e uma memoacuteria coletivas homogecircneas aplainadas de pluralidades ou de desavenccedilas Uma histoacuteria supostamente indiscutiacutevel porque verdadeira posta a serviccedilo dos tambeacutem supostos interesses mais elevados da naccedilatildeo brasileira (por isso nela a vida privada dos persona-gens eacute toda submetida agrave sua funccedilatildeo poliacutetica inclusive no caso da relaccedilatildeo afetiva entre um D Pedro de boa aparecircncia querido do povo e mulherengo e uma ambiciosa romacircntica e sensiacutevel Domitila112) Uma espeacutecie de cartilha oficial da Independecircncia em imagens na qual se faz presente ateacute mesmo uma recomposiccedilatildeo cecircnica do quadro de Pedro Ameacuterico

Eacute interessante observar como Os Inconfidentes produzido no mesmo ano de 1972 mesmo sendo um filme amparado em abundantes liberdades e experimentos esteacuteticos cheio de ambiguidades propositais e contra-pondo-se ao oficialismo histoacuterico tatildeo em voga agrave eacutepoca por meio de uma metaacutefora na qual os contestadores agrave ditadura brasileira se convertem em sediciosos das Minas Gerais do seacuteculo XVIII natildeo se configura como mate-rial singular e discrepante de Independecircncia ou Morte em pelo menos trecircs sentidos primeiro porque em vaacuterios momentos associa a Inconfidecircncia Mi-neira com a Independecircncia do Brasil a exemplo do que Independecircncia ou Morte prega jaacute em seu primeiro texto didaacutetico113 Segundo porque tambeacutem oficializa eventos convencionalmente tidos por fundacionais da histoacuteria do Brasil (soacute que natildeo os de 1808-1822 mas os de 1788-1789) Terceiro reforccedila a prevalecircncia de indiviacuteduos sobre coletividades da imagem de um heroacutei central da trama e de uma oposiccedilatildeo de interesses maniqueiacutesta que certamente poderia se aplicar com mais rigor ao contexto em que foi feito o filme do que agravequele ao qual formalmente se refere Assim para todos os efeitos substratos de uma concepccedilatildeo de histoacuteria satildeo em ambos convergentes Em um ambiente social multifacetado em termos de no-

cada dentro do programa dominical Fantaacutestico da Rede Globo de Televisatildeo A seacuterie foi baseada no livro Brasil uma Histoacuteria de Eduardo Bueno jornalista que tambeacutem atua na seacuterie (youtubecomwatchv=3LzGKt9Pd0M acesso em 27032014)

103SETUacuteBAL Paulo As Maluquices do Imperador

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1927 CALADO Ivanir A Imperatriz no Fim do Mundo memoacuterias duacutebias de Ameacutelia de Leichtenberg Rio de Janeiro Rio Fundo Editora 1992 e TORERO Joseacute Roberto Galantes memoacuterias e admiraacuteveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes o Chalaccedila Satildeo Paulo Companhia das Letras 1994

104A trama e a narrativa do Quinto dos Infernos

recusam explicitamente a inserccedilatildeo de quaisquer componentes que natildeo os da ordem privada de seus convencionais personagens assim questotildees poliacuteticas satildeo sempre menores do que o apetite sexual de Carlota Joaquina as perversotildees de D Miguel ou a fogosidade de Domitila a economia soacute surge em pontuais pretextos cocircmicos enquanto a escravidatildeo eacute referida exclusivamente por meio de alegres e libidinosas criadas (negras) permanentemente dispostas a servirem aos desejos do heroacutei da histoacuteria D Pedro

105A anaacutelise poderia se completar com a minisseacuterie

A Marquesa de Santos dirigida por Ary Coslov e exibida pela extinta Rede Manchete de televisatildeo em 1984 agrave qual infelizmente natildeo se obteve acesso satisfatoacuterio

106Tal predileccedilatildeo pode ser entendida como mais

um fator caracteriacutestico de um momento em que a articulaccedilatildeo entre aquilo que Guy Debord chamaria de ldquosociedade do espetaacuteculordquo e Adorno e Horkheimer (dentre muitos outros) de ldquoinduacutestria culturalrdquo torna sintomaacutetico a saliecircncia do indiviacuteduo e o esvaziamento da esfera puacuteblica

107A comprovaccedilatildeo do encontro concorrente entre

dois caminhos vem do depoimento de alguns dos proacuteprios envolvidos com a produccedilatildeo do Quinto dos Infernos como o diretor Carlos Lombardi que a ele se refere como ldquoum painel dos personagens importantes do periacuteodordquo Para o produtor Wolf Maia seu objetivo foi ldquorecontar com humor uma velha histoacuteriardquo O ator Humberto Martins viu a seacuterie ldquocontar um pedaccedilo da nossa histoacuteria da histoacuteria do Brasil do nosso povo das nossas raiacutezes pateacutetica e engraccedilada tal como ela se mostra dentro desse produto poreacutem claro mesclada com uma boa dose de humorrdquo enquanto o protagonista Marcos Pasquim afirmou que ldquo[ao fazecirc-la] aprendi muita coisa que natildeo aprendi na escola eu vim aprender agora fazendo a pesquisa para fazer esse personagemrdquo Finalmente para a tambeacutem atriz Bruna Lombardi ldquoO lsquoQuintorsquo contou assim a histoacuteria que a Histoacuteria natildeo conta sabe como eacute as fraquezas da histoacuteriardquo Em ldquoDia de Fuacuteriardquo Pedro Bial e Eduardo Bueno reforccedilam seu discurso satiacuterico por meio de um verniz de verdade trazido pela citaccedilatildeo de documentos oficiais como o relato do Padre Belchior sobre o grito do Ipiranga Aleacutem disso seu discurso eacute elaborado sob o nome de tese logo bem se vecirc como seus propaladores (BialBueno) manipulam siacutembolos

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ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

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Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

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123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

30Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

31Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

32Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

33Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

34Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

36Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 8: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

12Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

do entrevistado um soacutecio-econocircmico-escolar um cultural e um relativo agrave sua relaccedilatildeo com a Histoacuteria em especial a da Independecircncia

A obtenccedilatildeo do primeiro perfil se fez segundo gecircnero faixa etaacuteria (em grupos de cinco anos a partir de 15 anos de idade) local de nasci-mento (segundo regiotildees do Brasil e cidade) ocupaccedilatildeo profissional renda familiar (em valores ou quantidade de salaacuterios miacutenimos isto eacute R$ 62000) e instruccedilatildeo formal (por niacuteveis e se realizada em escolas puacuteblicas eou pri-vadas cidade e instituiccedilatildeo) Com isso buscou-se aproximar o universo da amostragem ndash 311 indiviacuteduos ndash do perfil geral do paiacutes quando isso natildeo foi possiacutevel a aproximaccedilatildeo se deu com o Estado e com a cidade de Satildeo Paulo

No quesito gecircnero foram entrevistadas 52 de mulheres e 48 de homens (um dos entrevistados natildeo quis declarar seu gecircnero) estabelecen-do-se uma perfeita correlaccedilatildeo de porcentagem com o mostrado pelo censo populacional do IBGE de 2010 seja em termos nacionais ou estaduais de Satildeo Paulo Jaacute a constituiccedilatildeo da faixa etaacuteria dos entrevistados buscou um modelo de ldquopiracircmiderdquo isto eacute com um nuacutemero de mais jovens sempre mais elevado do que o de mais idosos31 No entanto aqui a amostragem privile-giou mais jovens entre 15 e 19 anos (21) do que a realidade populacional brasileira (8) e mais adultos entre 25 e 29 anos

No tocante ao local de nascimento a amostragem natildeo pocircde se valer de dados do IBGE Desse modo buscou-se uma aproximaccedilatildeo estatiacutestica com a cidade de Satildeo Paulo local onde 97 das entrevistas foram reali-zadas32 Os nascidos na regiatildeo sudeste perfizeram 73 das abordagens sendo 67 naturais do estado de Satildeo Paulo (dados do IBGE mostram 77 de habitantes da cidade nascidos no estado sendo 69 do total na cida-de)33 A realizaccedilatildeo da amostragem procurou uma compensaccedilatildeo para essa hipertrofia de perfil (do nacional ao regional) por meio da diversificaccedilatildeo de unidades da federaccedilatildeo para os 23 de habitantes do estado de Satildeo Paulo que natildeo nasceram nele foram entatildeo entrevistados 112 indiviacuteduos (326 da amostragem) naturais dos outros estados brasileiros agrave exceccedilatildeo de Acre Amapaacute Distrito Federal Roraima e Tocantins

Quanto a suas ocupaccedilotildees profissionais os entrevistados declararam livremente 118 diferentes funccedilotildees (sendo 005 desempregados34) apoacutes uma anaacutelise preliminar das mesmas foi possiacutevel agrupaacute-las em 90 incluin-do um leque muito variado que inclui comerciantes donas de casa empre-gadas domeacutesticas estudantes funcionaacuterios puacuteblicos educadores operaacuterios empresaacuterios cabeleireiras agricultores faxineiros jornalistas prostitutas militares e meacutedicos dentre outros (ressalte-se que no momento da pesqui-sa nenhum deles se encontrava ligado profissionalmente agrave Histoacuteria) Nesse quesito eacute impossiacutevel estabelecer uma perfeita correlaccedilatildeo entre a amostra-gem e o panorama laboral brasileiro buscou-se apenas incluir uma ampla gama de perfis profissionais

O perfil dos entrevistados segundo renda familiar tambeacutem se mos-trou de difiacutecil equivalecircncia com dados do IBGE jaacute que estes indicam rendas individuais e natildeo familiares Assim mesmo observa-se que a amostragem seguiu uma tendecircncia tambeacutem de ldquopiracircmiderdquo que faz com que o nuacutemero de brasileiros dos estratos de renda mais baixa sejam sempre mais nume-roso que os de renda mais alta a diferenccedila entre o conjunto da populaccedilatildeo brasileira e a amostragem estaacute seguramente nas dimensotildees de tais estra-tos enquanto os dados do IBGE mostram mais de 64 de indiviacuteduos sem rendimentos ou com renda entre 1 e 5 salaacuterios miacutenimos na amostragem esse percentual (por famiacutelias) pouco passou de 3035

de Satildeo Paulo a porcentagem eacute tambeacutem de 76 Disponiacutevel em censo2010ibgegovbramostra Acesso em 01042014

35Haacute aqui algumas discrepacircncias em relaccedilatildeo as

categorias do IBGE que devem ser explicitadas no que se refere aos criteacuterios de renda estatildeo ausentes do questionaacuterio ldquomais de 2 a 3 salaacuterios miacutenimosrdquo aleacutem disto a renda calculada pelo questionaacuterio tem como base a unidade familiar enquanto os dados do IBGE aqui contrastados referem-se agrave renda de indiviacuteduos

36Dos 161981299 indiviacuteduos totais ldquoa partir de

10 anosrdquo subtraiu-se 17166761 indiviacuteduos entre 10 e 14 anos de modo a limitar a estatiacutestica nacional aos jovens contemplados pela amostragem Uma distorccedilatildeo contudo permanece na cifra dos indiviacuteduos ldquosem instruccedilatildeo e fundamental completordquo da tabela 154 pois crianccedilas entre 10 e 14 anos podem perfeitamente ser ldquosem instruccedilatildeordquo embora o sejam em pequena minoria ldquofundamental completordquo para todos os efeitos as porcentagens das demais rubricas da mesma tabela foram assim corrigidas jaacute que crianccedilas de 14 anos estaratildeo necessariamente ausentes da rubrica seguinte ldquomeacutedio completordquo (tabelas 154 e 112 respectivamente)

37Nos dados do IBGE a maioria da populaccedilatildeo

(59) encontra-se na rubrica ldquonatildeo frequentavam mas jaacute frequentaramrdquo Dentre os que ldquofrequentavamrdquo 78 o faziam em estabelecimentos puacuteblicos e 22 em privados na amostragem esses percentuais que incidem sobre frequecircncia em cursojaacute realizada foram respectivamente 63 e 27 sendo que 11 se enquadravam em ambos

38Tambeacutem nessa segunda parte o questionaacuterio

se afastou progressivamente da possibilidade de estabelecimento de equivalecircncias estatiacutesticas com a totalidade da populaccedilatildeo brasileira Isso se deu por um motivo principal o censo do IBGE natildeo chega ao grau de detalhamento dos dados aqui obtidos (seus objetivos e natureza satildeo outros) e embora existam sondagens de opiniatildeo focadas em perfis culturais do brasileiro (como a ediccedilatildeo de 2011 de Retratos da leitura no Brasil do Instituto Proacute-Livro aqui utilizada como se veraacute mais adiante) a busca por tais equivalecircncias implicaria o seacuterio risco de um engessamento na obtenccedilatildeo de dados qualitativos Tendo em vista os objetivos centrais dessa pesquisa ndash esboccedilar a caracterizaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil por meio da Independecircncia assim como refletir em torno de implicaccedilotildees do tratamento acadecircmico do tema a partir de sua inserccedilatildeo nessa mesma cultura ndash o estabelecimento preliminar completo do perfil dos entrevistados natildeo garantiria a validade do material a ser extraiacutedo e analisado Trata-se justamente do contraacuterio submeter os resultados finais da pesquisa aos paracircmetros dados pelas condiccedilotildees de sua proacutepria realizaccedilatildeo

39Haacute pelo menos dois exemplos de como rankings

se fazem presentes no pensar a Histoacuteria nesse escopo Um primeiro de grande participaccedilatildeo popular eacute o programa de tevecirc O maior brasileiro de todos os tempos exibido entre 1107 e

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No tocante a instruccedilatildeo formal os dados nacionais oficiais incidem sobre crianccedilas a partir de 10 anos de idade sendo que a amostragem rea-lizada focou em jovens a partir de 15 anos desse modo a aproximaccedilatildeo da amostragem com o perfil brasileiro partiu de uma retificaccedilatildeo dos nuacutemeros apresentados pelo IBGE36 E se em termos de renda familiar a amostragem mostrou clara inclinaccedilatildeo a um perfil excessivamente de classe meacutedia o mesmo pode-se dizer quanto agrave instruccedilatildeo formal que perfez um grupo mais escolarizado do que a meacutedia do paiacutes O principal problema aqui ocorre no baixo nuacutemero de entrevistados entre ldquosem instruccedilatildeo e fundamental incom-pletordquo (7 sendo a porcentagem nacional entre 44 e 50) em prol de um nuacutemero por demais elevado de indiviacuteduos que cursaram universidades (27 contra 9) as demais rubricas tambeacutem apresentam discrepacircncias 25 de entrevistados entre ldquofundamental completo e meacutedio incomple-tordquo (contra 19) e 23 entre ldquomeacutedio incompleto e superior incompletordquo (contra 26) A anaacutelise de todo o material obtido assim como das fontes primaacuterias levou em conta tais inclinaccedilotildees e como se veraacute mais adiante elas parecem ateacute mesmo reforccedilar algumas das conclusotildees aqui obtidas Ainda no mesmo quesito os dados do IBGE classificam os brasileiros de acordo com ldquorede de ensino que frequentavamrdquo quando da realizaccedilatildeo da coleta de dados sendo que o questionaacuterio abordou os entrevistados de acordo com frequecircncia em cursojaacute realizada37 Mesmo assim os nuacutemeros aqui disponiacuteveis serviram bem agrave constituiccedilatildeo da amostragem

Na segunda parte do questionaacuterio a obtenccedilatildeo do perfil cultural do entrevistado se deu a partir de uma identificaccedilatildeo de seu acesso agrave televisatildeo (se assiste caso positivo com qual frequecircncia que tipo de programas se em tevecirc aberta eou a cabo e quais os trecircs programas que mais assiste) leitura (se lecirc com frequecircncia que tipo de coisa e quais os uacuteltimos trecircs livros que leu) cinema e teatro (em ambos os casos apenas se costuma ou natildeo frequentar)38 Apoacutes tais perguntas que procuraram diagnosticar eventuais proximidades do entrevistado em relaccedilatildeo a fontes secundaacuterias da pesquisa o questionaacuterio introduziu a questatildeo especiacutefica de seu interesse pela Histoacuteria Foi entatildeo perguntado se ele se interessa ou natildeo por Histoacuteria e por qual (do Brasil geral ou outraqual) se busca informaccedilotildees sobre e em caso positivo onde (livros televisatildeo internet revistas cursos museus outroqual) e se nos uacuteltimos dois anos leu algo ou frequentou algum curso a respeito (em caso positivo qual) Tais perguntas foram elaboradas visando uma aproximaccedilatildeo realista com caracteriacutesticas que de modo hipo-teacutetico foram atribuiacutedas a essa cultura de histoacuteria no Brasil Por isso foram preteridas formas linguiacutesticas quiccedilaacute muito acadecircmicas em prol de outras que permitissem que o entrevistado se expressasse de modo a fornecer dados vaacutelidos daiacute por exemplo o uso da tradicional divisatildeo entre Histoacuteria do Brasil e Histoacuteria Geral (com abertura para identificaccedilatildeo de ldquooutrardquo qual-quer) de muito pouca serventia para os historiadores profissionais

Finalmente a terceira parte do questionaacuterio visou agrave obtenccedilatildeo de conteuacutedos diretamente relacionados agrave Independecircncia do Brasil valendo-se mais amplamente ainda dessa estrateacutegia de utilizaccedilatildeo de formas linguiacutes-ticas coloquiais assim como de perguntas cujas respostas seriam tanto dirigidas como abertas grau de interesse sobre a histoacuteria da Independecircncia do Brasil (nenhum pequeno meacutedio ou grande seguido de uma justificati-va) grau de conhecimento do tema (nenhum pouco razoaacutevel bom exce-lente) se procura se informar sobre (natildeo simcomo) e se estaacute lendo ou leu algo a respeito nos uacuteltimos dois anos (natildeo simo quecirc) Ou seja abriu-se a

03102012 pelo SBT Conforme a sinopse da emissora ldquobaseado no formato criado pela BBC The Greats o programa elege[u] aquele que fez mais pela naccedilatildeo que se destacou pelo seu legado agrave sociedade Diversos paiacuteses jaacute apontaram os seus maiores representantes Na Inglaterra Winston Churchill saiu vencedor Os italianos elegeram Leonardo da Vincirdquo (sbtcombromaiorbrasileiroprograma Acesso em 21032014) A escolha dos candidatos e a definiccedilatildeo de seus confrontos ndash os personagens iam se enfrentando programa a programa em caraacuteter eliminatoacuterio ndash foi feita pelo telespectador sendo o ldquocampeatildeordquo Chico Xavier seguido por Santos Dummont e pela princesa Isabel Semelhante mas de menor alcance foi a pesquisa realizada pela Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional divulgada em abril de 2008 que convocou ldquopara a tarefa de eleger os lsquoheroacuteisrsquo e os lsquovilotildeesrsquo do Brasil uma distinta seleccedilatildeo de historiadores professores jornalistas economistas poliacuteticos e artistas protegidos pelo anonimato para louvar e condenar quem bem entendessemrdquo Entre os mais bem avaliados estavam Rui Barbosa Machado de Assis e D Pedro II no polo oposto Meacutedici e Costa e Silva (revistadehistoriacombrsecaoreportagemranking-dos-brasileiros Acesso em 21032014)

40As palavras satildeo acordo comeacutedia continuaccedilatildeo

democracia ditadura drama elitespoderosos escravidatildeo Estados Unidos exeacutercito guerra heroiacutesmo Inglaterra invenccedilatildeo Joatildeo VI Joseacute Bonifaacutecio liberdade mudanccedila naccedilatildeo nascimento negociaccedilatildeo paz Pedro I Portugal povo revoluccedilatildeo Tiradentes tirania O entrevistado poderia incluir outra palavra qualquer que desejasse

41O questionaacuterio encerrava-se com a possibilidade

do entrevistado acrescentar livremente algo bem como a opccedilatildeo de identificaccedilatildeo nominal Um proveitoso desdobramento da pesquisa poderia resultar de uma anaacutelise de nuances e matizes de interessantes jogos discursivos presentes em muitas das respostas obtidas sobretudo no caso de uma expansatildeo numeacuterica da amostragem

42Quando em fevereiro de 2013 foram

amplamente divulgados resultados de pesquisas biomeacutedicas (com tentativas de conclusotildees tambeacutem histoacutericas) realizadas com os restos mortais de Pedro I Leopoldina e Ameacutelia realizadas por Valdirene Ambiel Cfr AMBIEL Valdirene do Carmo Estudos de arqueologia forense aplicados aos remanescentes humanos dos primeiros imperadores do Brasil depositados no monumento agrave Independecircncia 2013 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Arqueologia) Museu de Arqueologia e Etnologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2013 Aleacutem de procurar esclarecer se tais restos se encontravam depositados no Monumento agrave Independecircncia em Satildeo Paulo e diagnosticar o estado de conservaccedilatildeo dos mesmos Ambiel procurou chamar a atenccedilatildeo para as possiacuteveis causas da morte dos monarcas e sobre os procedimentos funeraacuterios com eles entatildeo utilizados Tais resultados foram divulgados pela imprensa nacional como ldquoverdadesrdquo sobre a famiacutelia imperial brasileira supostamente ausentes dos livros de histoacuteria ldquosegredosrdquo agora ldquoreveladosrdquo Por exemplo Pedro I tinha quatro

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possibilidade de se chegar a dados de uma cultura de histoacuteria inclusive em suas negaccedilotildees em seus silecircncios e interdiccedilotildees Em seguida o questionaacuterio recorreu a um artifiacutecio muito presente no meio social sobre o qual incidiu foi pedido ao entrevistado que atribuiacutesse notas de um a dez para a impor-tacircncia que acha que a Independecircncia teve para a histoacuteria do Brasil e para a histoacuteria do mundo Nos historiadores profissionais em geral esses rankings com sua gigantesca capacidade de simplificar a realidade costumam despertar ojeriza no entanto para os demais agentes sociais dessa cultura pode significar uma forma uacutetil de representaccedilatildeo da realidade acostumados que estatildeo a ela em muitos aspectos de sua vida cotidiana39 Assim tambeacutem daqui pode-se extrair elementos para a anaacutelise de uma cultura de histoacuteria Jaacute as trecircs perguntas seguintes buscaram outra aproximaccedilatildeo foi pedido ao entrevistado que diante de uma lista de 28 palavras escolhesse as trecircs que acreditasse que mais combinam e as trecircs que menos combinam com a Independecircncia40 Tais palavras incidem sobre personagens fatos proces-sos conceitos e mitos constituindo um bom leque de possibilidades de aproximaccedilatildeo linguiacutestica e conceitual com formas de ver a Independecircncia presentes na sociedade inclusive por contemplarem vaacuterios antinocircmicos Por fim perguntou-se ao entrevistado se seria capaz de dizer as datas da chegada da corte portuguesa no Brasil da Independecircncia do Brasil da pri-meira Constituiccedilatildeo e da abdicaccedilatildeo de D Pedro I41 Aqui o intuito era aferir ateacute que ponto essa cultura de histoacuteria se organiza e se faz representar por marcos cronoloacutegicos convencionais bem como se enseja formas alternati-vas de historicizaccedilatildeo e temporalizaccedilatildeo

Desse modo por meio de estrateacutegias de abordagem complementares (graus de relaccedilatildeo ativa ou passiva diante do tema o peso de linguagens conceitos e informaccedilotildees formas temporais) o questionaacuterio procurou fazer convergirem possibilidades de posturas dos entrevistados em relaccedilatildeo agrave histoacuteria e agrave Independecircncia do Brasil bem como dimensotildees variadas e even-tualmente contraditoacuterias de tais posturas relacionando-as inclusive com as cinco perguntas baacutesicas que seriam posteriormente dirigidas agraves fontes secundaacuterias conforme enunciado ao final do item anterior

Apoacutes um curto periacuteodo de testes foram entrevistadas presencialmen-te 311 pessoas na cidade de Satildeo Paulo Grande ABC e interior do estado entre os dias 19 de setembro de 2012 e 02 de agosto de 2013 Propositada-mente foram evitadas as duas Semanas da Paacutetria desses anos bem como um periacuteodo de vinte dias de superexposiccedilatildeo midiaacutetica especiacutefica do tema42 As abordagens foram realizadas de modo direto em 994 das vezes em espaccedilos puacuteblicos tendo cada uma ndash com poucas exceccedilotildees -a duraccedilatildeo de cerca de sete minutos durante os quais evitou-se ao maacuteximo qualquer tipo de constrangimento direcionamento ou auxiacutelio nas respostas

O que foi possiacutevel obter nessas entrevistas Os entrevistados com-potildeem um grupo de forte contato com a televisatildeo (93 assistem com frequecircncia e 51 todos os dias sendo que 58 possuem tevecirc aberta e a cabo apenas 6 disseram natildeo assistir tevecirc) de leitores frequentes (78) e de assistentes a cinemas (58) e teatros (28) o que o aproxima de um perfil de classe meacutedia escolarizada conforme jaacute apontado anteriormente de todo modo haacute que se lembrar que em muitos outros aspectos relevan-tes esse eacute um grupo heterogecircneo Daiacute a importacircncia do fato de que 77 dos que o compotildeem disseram se interessar por histoacuteria (sendo que 60 afirmaram buscar informaccedilotildees a respeito) Esse eacute um nuacutemero alto ou bai-xo A questatildeo natildeo parece das mais importantes jaacute que de acordo com a

costelas quebradas quando morreu era mais baixo do que se supunha natildeo foi cremado mas enterrado acompanhado de porccedilotildees de terra de Portugal e com roupas de general com insiacutegnias portuguesas e natildeo brasileiras Leopoldina natildeo teve o fecircmur quebrado antes de morrer como acreditava-se ateacute entatildeo foi enterrada com a mesma roupa com que foi coroada imperatriz e seus brincos natildeo eram de ouro mas bijuterias de resina Jaacute Ameacutelia quando morreu tinha escoliose e osteoporose foi enterrada de preto e mumificada Na internet tais ldquorevelaccedilotildeesrdquo foram no total comentadas milhares de vezes ldquorecomendadasrdquo e em geral bem-recebidas (fotosestadaocombrmudanca-na-historia-dez-verdades-sobre-a-familia-imperial-que-nao-estao-nos-livros-de-historiagaleria70481949100htmpPosicaoFoto=1carousel acesso em 27032014 folhauolcombrfspcienciasaude94655-corpos-da-familia-imperial-sao-exumadosshtml acesso em 02042014 folhauolcombrfspcienciasaude94656-descoberta-mostra-abandono-de-d-leopoldina-diz-historiadorashtml acesso em 02042014 estadaocombrnoticiascidadessob-sigilo-dom-pedro-i-e-suas-duas-mulheres-sao-exumados-pela-primeira-vez9983670htm acesso em 02042014 vejaabrilcombrblogricardo-settitema-livreabertura-para-estudos-dos-sarcofagos-de-d-pedro-i-e-de-suas-duas-esposas-e-fato-extraordinario-parabens-ao-estadao-por-divulgar-tudo acesso em 02042014 brnoticiasyahoocomexumaC3A7C3A3o-d-pedro-i-mulheres-reconta-histC3B3ria-115400981htmlgt acesso em 02042014 g1globocomciencia-e-saudenoticia201302cientistas-brasileiros-exumam-restos-mortais-de-d-pedro-i-e-suas-mulhereshtml acesso em 02042014 youtubecomwatchv=y8jcdXyx3hAgt acesso em 02042014 vestibularuolcombrresumo-das-disciplinasatualidadeshistoria-do-brasil-exumacao-traz-novidades-sobre-d-pedro-ihtm acesso em 02042014 ltgooglecombrsearchq= exumaC3A7C3A3o+de+dom+pedroampoq= exumaC3A7C3A3o+ampaqs= chrome469i57j0l55749j0j8ampsourceid= chromeampespv=210ampes_sm=93ampie=UTF-8gt acesso em 02042014 noticiasseuhistorycomexumacao-revela-detalhes-surpreendentes-da-vida-e-morte-de-d-pedro-i-e-suas-mulheresgt acesso em 02042014 istoecombrreportagens277892_A+VOLTA+DE+DOM+PEDRO+I acesso em 02042014 bahiaatualcomnoticiasexumacao-de-corpos-de-d-pedro-i-revela-detalhes-da-famiila-real acesso em 02042014 Site Uacuteltimo Segundo ldquoExumaccedilatildeo de D Pedro I e suas mulheres reconta a Histoacuteriardquo disponiacutevel em ultimosegundoigcombrciencia2013-02-19exumacao-de-dpedro-i-e-suas-mulheres-reconta-a-historiahtml acesso em 02042014 diariodepernambucocombrappnoticiaciencia-e-saude20130219internas_cienciaesaude424273restos-mortais-de-d-pedro-i-sao-exumados-para-realizacao-de-pesquisashtml acesso em 02042014 httpopiniaoenoticiacombrbrasilrestos-mortais-de-dom-pedro-i-sao-exumadosgt acesso em 02042014 noticiasbanduolcombrjornaldabandconteudoaspid=100000576688 acesso em 02042014

15Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

definiccedilatildeo aqui proposta de cultura de histoacuteria o desinteresse tambeacutem eacute um dado relevante pois traduz uma atitude em si e que dificilmente poderia ser considerada de modo absoluto (como pretender que esse desinteresse se traduza por exemplo em descaso com a proacutepria histoacuteria ou com a da famiacutelia Difiacutecil acreditar ser esse o caso de 23 dos entrevistados) Aleacutem disso bem sabemos que seu contraacuterio o interesse pode se manifestar de muitas maneiras que natildeo necessariamente encontram guarida em praacuteticas acadecircmicas e profissionais relacionadas ao estudo do passado tampouco que resultam em um estudo da histoacuteria minimamente organizado O que implica que os dois contraacuterios nem sempre estabeleceratildeo limites claros entre si diante da apreciaccedilatildeo geral de uma cultura de histoacuteria interesse e desinteresse pela histoacuteria podem flertar com muita proximidade bem como intercambiarem elementos regularmente

Observemos mais atentamente esse panorama Considerando-se tais caracteriacutesticas de uma cultura de histoacuteria como a brasileira perguntou-se a todos os entrevistados incluindo aos 23 que afirmaram natildeo se inte-ressar por histoacuteria por ldquoqual histoacuteriardquo poderia dizer que mais se interessa Aqui as respostas que de alguma forma se referem diretamente agrave histoacuteria do Brasil (ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo ldquoHistoacuteria geral e do Brasilrdquo ldquoHistoacuteria da nos-sa regiatildeordquo ldquoHistoacuteria do Brasil e andinardquo) perfazem 34 do total aiacute sim um nuacutemero relativamente baixo diante dos 66 que em suas respostas exclu-iacuteram o Brasil Portanto independentemente do interesse pela mateacuteria ser alto ou baixo a relaccedilatildeo com a Histoacuteria do Brasil parece gozar de especial desprestiacutegio Seraacute o desprezo pela histoacuteria nacional um dado da cultura de histoacuteria no Brasil43 Mais adiante quando da anaacutelise das outras fontes vol-taremos a esse ponto De todo modo tal desprestiacutegio evidentemente traraacute implicaccedilotildees para as posturas dos brasileiros em relaccedilatildeo agrave Independecircncia

A princiacutepio os entrevistados tendem a se interessar pouco pela Inde-pendecircncia do Brasil mas essa natildeo eacute uma tendecircncia absoluta se 39 tecircm ldquonenhumrdquo ldquopoucordquo ou ldquopequenordquo interesse 44 tem ldquomeacutediordquo e 17 ldquoentre meacutedio e granderdquo e ldquogranderdquo Ora em se tratando de uma cultura de histoacuteria dinacircmica e fluida com fronteiras pouco claras entre o interesse e o desinte-resse pela histoacuteria de modo geral (e a despeito da clara tendecircncia a um maior desinteresse pela Histoacuteria do Brasil) a Independecircncia eacute pouco interessante mas natildeo eacute inteiramente desprezada (apenas 11 declararam ldquonenhumrdquo inte-resse por ela cifra menor do que a dos grandes interessados)

Parece entatildeo haver espaccedilo aqui para diferentes formas de pensar representar e reinventar a Independecircncia do Brasil como verificar-se-aacute mais adiante de momento constata-se uma correspondecircncia estatiacutestica entre os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram ter dela ldquobomrdquo ou ldquoexcelenterdquo conhecimento (os de ldquonenhumrdquo ldquopoucordquo ou apenas ldquorazoaacutevelrdquo conhecimento compotildee os demais 83) e os 30 que afirma-ram buscar informaccedilotildees a respeito (sendo 60 os que buscam informaccedilotildees sobre histoacuteria em geral) Provavelmente trata-se de um subgrupo dos mais ativos no circuito de consumo-reproduccedilatildeo-criaccedilatildeo de toacutepicos relativos agrave Independecircncia na cultura de histoacuteria no Brasil Dentre esses 30 exclusi-vamente 305 afirmaram buscar informaccedilotildees sobre a Independecircncia em livros 291 na escola e nos livros didaacuteticos (evidentemente mais confina-dos ao puacuteblico jovem) 208 na internet 97 em raacutedio tevecirc eou jornais impressos e outros 97 ldquocom pessoas e lugares44 Os que responderam ler ou ter lido algo a respeito nos uacuteltimos dois anos foram 34 (os demais responderam ldquonatildeordquoldquonatildeo se lembrardquo ou natildeo responderam)

43Natildeo parece ser o caso da cultura histoacuterica

portuguesa de acordo com trabalhos recentes como os de PAIS Joseacute Machado Op Cit SOBRAL Joseacute Manuel Op Cit e MATOS Seacutergio Campos Consciecircncia histoacuterica e nacionalismo Portugal seacuteculos XIX e XX Lisboa Horizonte 2008

44A ausecircncia de menccedilotildees a outros tipos de suporte

de informaccedilotildees sobre a Independecircncia reforccedila a escolha das fontes secundaacuterias da pesquisa analisadas no proacuteximo item

45Embora seja muito frequente a consideraccedilatildeo de

que o principal marco fundacional da histoacuteria brasileira tenha sido o ldquodescobrimentordquo (isto eacute a chegada dos portugueses agrave Ameacuterica em 1500) e natildeo a ruptura poliacutetica entre Brasil e Portugal Muito provavelmente isso se conecta com uma tambeacutem muito frequente concepccedilatildeo da Independecircncia como ldquonatildeo-rupturardquo como processo negociado amigaacutevel e sem grandes solavancos Retornaremos agrave questatildeo

46Todas as 28 palavras oferecidas aos entrevistados

receberam no miacutenimo quatro menccedilotildees sendo que 22 tiveram mais de uma dezena de menccedilotildees a mesclarem termos que remetem a caracteriacutesticas atribuiacutedas agrave Independecircncia que ensejam relaccedilotildees diretas ou indiretas com ela ou que se referem a simples informaccedilotildees

47Foram feitas 310 menccedilotildees de termos positivos em

relaccedilatildeo agrave Independecircncia (liberdade democracia revoluccedilatildeo heroiacutesmo mudanccedila drama) contra 210 dos mesmos como natildeo combinando com ela essa tendecircncia eacute reforccedilada por 190 menccedilotildees a termos negativos que combinariam com ela (acordo escravidatildeo negociaccedilatildeo continuaccedilatildeo ditadura comeacutedia invenccedilatildeo tirania) sendo que os mesmos foram mencionados 391 vezes como natildeo combinando Esclarecer o caso de escravidatildeo pode ser referecircncia a uma realidade (em geral negativa) mas tambeacutem como metaacutefora poliacutetica Para todos os efeitos como mencionar o termo de outras maneiras

48148 escolhas incidiram sobre termos conflitivos

que com ela combinariam (guerra revoluccedilatildeo mudanccedila) contra 101 menccedilotildees a tais termos como natildeo combinando poreacutem tal tendecircncia se inverte nas 119 escolhas de termos paciacuteficos que com ela combinariam (paz acordo negociaccedilatildeo) contra 70 menccedilotildees aos mesmos como natildeo combinando

49Foram feitas 27 escolhas de povo como combinando

contra 22 do mesmo termo como natildeo combinando e 35 a elitepoderosos como combinando contra 14 em termos opostos o que indica certo equiliacutebrio tendente agrave segunda possibilidade

50Natildeo se pode deixar de mencionar algumas

outras palavras que natildeo se encontravam na lista mas foram acrescidas pelos entrevistados sendo portanto de menccedilatildeo espontacircnea As mais recorrentes combinando num sentido depreciativo foram ldquointeresserdquo e ldquocorrupccedilatildeordquo Outras palavras tais quais ldquounificaccedilatildeordquo ldquomorterdquo

16Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

A hipoacutetese da constituiccedilatildeo de um subgrupo ativo na cultura de histoacuteria por meio do tema da Independecircncia encontra respaldo nos resulta-dos do ranking do questionaacuterio para a importacircncia que ela teria tido para a Histoacuteria do Brasil 43 deram nota 10 e outros 31 notas entre 8 e 9 sendo que apenas 6 deram notas entre 0 e 4 ou natildeo souberam responder Ou seja mesmo quem natildeo se interessa pela Independecircncia ou pela Histoacute-ria do Brasil em geral tende a reconhecer o tema como sendo de grande importacircncia embora tal reconhecimento seja menor em se tratando de sua relaccedilatildeo com a Histoacuteria ldquoem geralrdquo (a essa pergunta 25 respondeu com nota 10 e outros 25 com notas 8 ou 9 em contraposiccedilatildeo a um elevado percentual de 22 que deu notas entre 0 e 4 ou natildeo soube responder) Ainda assim portanto a Independecircncia eacute fortemente valorizada por um percentual que extrapola os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram dela serem conhecedores ou os 20 que afirmaram buscar informaccedilotildees a seu respeito Valorizada poreacutem em meio ao que parece ser uma dificuldade de se pensaacute-la para aleacutem de sua tradicional circunscriccedilatildeo nacional (o que encontra como logo veremos enorme correspondecircncia nas fontes secundaacuterias) para aleacutem dos limites a ela convencionalmente impos-tos por tradiccedilotildees historiograacuteficas ainda fortes e mesmo por uma cultura de histoacuteria que tendo atributos fortemente nacionais tende a nela enxergar um marco fundacional importante isto eacute um marco diferenciador entre a histoacuteria do Brasil e a de outros paiacuteses45

O que nesse sentido nos mostram as escolhas de palavras que ldquocom-binamrdquo e ldquonatildeo combinamrdquo com a Independecircncia46 Em primeiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista mais em perspectiva positivaenalte-cedora do que negativadepreciativa47 Em segundo lugar a possibilidade da Independecircncia ser considerada tanto como rupturaconflitiva quanto como continuidadepaciacutefica48 Em terceiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista como algo menos popular do que elitista49 Em quarto e uacuteltimo lu-gar ateacute que ponto os entrevistados se mostraram conhecedores da histoacuteria 55 respostas indicaram termos informativos descabidos (Tiradentes combina D Pedro I D Joatildeo VI Joseacute Bonifaacutecio e Portugal natildeo) contra uma maioria de 190 menccedilotildees a tais termos de modo inverso Aqui os resultados podem indicar a prevalecircncia de um tipo de conhecimento de histoacuteria estruturado em personagens e trajetoacuterias individuais (como logo veremos as fontes secundaacute-rias tambeacutem referendaratildeo amplamente essa hipoacutetese)50

Na uacuteltima parte do questionaacuterio perguntou-se aos entrevistados acerca de datas de quatro eventos que podem ser considerados como marcos do processo de Independecircncia 68 responderam natildeo saber ou natildeo se lembrar da data da chegada da Corte portuguesa ao Brasil 13 deram respostas claramente erradas em muitas das quais (ldquomil e quinhentosrdquo ldquomil quinhentos e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo etc) natildeo obstan-te se vislumbra uma referecircncia adequada poreacutem tratada de modo equivo-cado e somente 9 souberam responder de modo preciso (ldquomil oitocentos e oitordquo) Diante da pergunta quanto agrave data da primeira constituiccedilatildeo do Brasil 85 disseram natildeo saber ou natildeo se lembrar 7 deram respostas claramente erradas (ldquomil e quatrocentosrdquo ldquomil quinhentos e oitentardquo) algumas das quais poreacutem se aproximando da evocaccedilatildeo de alguma consti-tuiccedilatildeo brasileira (ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquomil novecentos e trintardquo ldquomil novecentos e oitenta e oitordquo) e apenas 13 souberam responder com firmeza isto eacute com a presenccedila de ldquomil oitocentos e vinte e quatrordquo na resposta Jaacute a pergunta sobre a data

(em alusatildeo ao Grito) e ldquoprogressordquo enriqueceram a fileira dos termos valorativos

51Essa percepccedilatildeo eacute reforccedilada por alguns dos

dados obtidos por Purificaccedilatildeo Em meio a representaccedilotildees da Independecircncia produzidas por crianccedilas entre 09 e 13 anos encontram-se frases como ldquoQuando D Pedro viu terra gritou Independecircncia ou Morterdquo e ldquoPouco depois de descobrirem o Brasil gritaram a independecircnciardquo PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p40-41 Cabe lembrar que tais crianccedilas natildeo haviam tido ainda contato formal (na escola) com o tema da Independecircncia ldquoapenasrdquo por meio de uma cultura de histoacuteria a envolverem-nas

52O que parece impor uma urgente reflexatildeo em

torno dos efeitos do violento desprestiacutegio das referecircncias factuais que o sistema escolar impocircs ao ensino de Histoacuteria no Brasil das uacuteltimas deacutecadas O quecirc ademais natildeo parece uma situaccedilatildeo exclusivamente brasileira de acordo com a sugestatildeo que nos foi dada por Nuno Gonccedilalo Monteiro a ver aqui paralelismo com o ensino de Histoacuteria em Portugal

53Outras duas possibilidades promissoras seriam

analisar respostas a questotildees de vestibulares relativas agrave Independecircncia e entrevistas com professores e coordenadores pedagoacutegicos que de alguma forma lidem com o tema no cotidiano escolar

54MORENO Jean Carlos Limites escolhas e

expectativas horizontes metodoloacutegicos para anaacutelise dos livros didaacuteticos de histoacuteria Antiacuteteses Londrina v5 n10 p729 juldez2012

55O que eacute atestado por exemplo pela recente

consolidaccedilatildeo da presenccedila nos livros didaacuteticos de toacutepicos relativos agrave Histoacuteria do continente africano

56Dos 49 autores de livros didaacuteticos aqui

considerados 36 satildeo identificados pelos termos ldquomestrerdquo ldquodoutorrdquo ou ldquoprofessor universitaacuteriordquo O que natildeo significa como eacute bem sabido que tais autores sejam integralmente responsaacuteveis pelo conteuacutedo de suas obras

57MORENO Jean Carlos Op Cit p724

58Segundo dados oficiais somente no ano de

2012 esse governo comprou cerca de 408 milhotildees de livros didaacuteticos para os anos do Ensino Meacutedio (Assessoria de Comunicaccedilatildeo Social do FNDE 24 de agosto de 2012)

59Sua produccedilatildeo no entanto eacute regionalmente

concentrada na seleccedilatildeo das coleccedilotildees de didaacuteticos feita pelo MEC em 2010 oito editoras de Satildeo Paulo responderam por 842 da produccedilatildeo aprovada enquanto trecircs de Curitiba ficaram com os 158 restantes

60DIAS Adriana M GRINBERG Keila e

PELLEGRINI Marco Novo Olhar Histoacuteria v2 Satildeo

17Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

da abdicaccedilatildeo de D Pedro I foi a campeatilde em respostas imprecisas 92 dis-seram natildeo saber ou natildeo se lembrar 16 deu respostas erradas e apenas 12 soube responder ldquomil oitocentos e trinta e umrdquo

E quanto agrave data da Independecircncia do Brasil Em comparaccedilatildeo com as perguntas anteriores esta obteve respostas de qualidade superior natildeo obstante um nuacutemero ainda alto de respostas ldquonatildeo souberdquo e ldquonatildeo lembrardquo 33 dos entrevistados Haacute que se lembrar inclusive que desde a segunda parte do questionaacuterio o entrevistado jaacute sabia tratar-se de algo focado na Independecircncia ou seja se nas demais perguntas pode-se dizer que ele foi pego totalmente surpresa nesta natildeo Por isso e se considerarmos ainda os 14 que deram respostas claramente erradas a esta pergunta (ldquomil e qui-nhentosrdquo ldquovinte e um de abril de mil e quinhentosrdquo ldquovinte e dois de abril de mil e quinhentosrdquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquovinte e um de abrilrdquo ldquovinte e dois de abrilrdquo ldquonove de julhordquo) chega-se a um total de 47 de pessoas incapazes de dizer quando ocorreu a Independecircncia do Brasil Por outra parte os que souberam responder (ldquosete de setembro de mil oito-centos e vinte e doisrdquo ou ldquomil oitocentos e vinte e doisrdquo) chegaram a 16 iacutendice muito proacuteximo das dimensotildees do hipoteacutetico grupo de interessados e razoaacuteveis conhecedores da Histoacuteria da Independecircncia referido alguns paraacutegrafos acima

Trata-se de um nuacutemero elevado ainda mais se reafirmarmos que a Independecircncia natildeo eacute jamais completamente ignorada em meio agrave cultura brasileira de histoacuteria De certo modo sim mas natildeo deve escapar agrave obser-vaccedilatildeo de ningueacutem que nessa pergunta especiacutefica a confusatildeo de datas se daacute dentro de referecircncias histoacutericas e cronoloacutegicas bastante demarcadas a Independecircncia o ldquodescobrimento do Brasilrdquo Tiradentes e a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica todos eles marcos fundacionais em uma memoacuteria histoacuteri-ca oficial logo fundamentais na constituiccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil51 Tais resultados indicam preliminarmente a precariedade da concepccedilatildeo de histoacuteria ndash da Independecircncia em particular - segundo formas convencionais de organizaccedilatildeo cronoloacutegica e isso a despeito dessa socieda-de ser permeada e carregada de referecircncias cronoloacutegicas que organizam a vida das pessoas em muitos de seus interstiacutecios (vida familiar vida profis-sional praacuteticas de lazer e de culto etc) Pouquiacutessimas respostas ndash esta-tisticamente despreziacuteveis -parecem esboccedilar a forja de alguma modalidade alternativa de organizaccedilatildeo temporal da histoacuteria (ldquoquase duzentos anosrdquo ldquomil oitocentos e alguma coisardquo ou ldquoD Pedro saiu para brigar com o irmatildeo e deixou D Pedro IIrdquo) diante do quecirc ganha forccedila a hipoacutetese de uma enorme e generalizada dificuldade apresentada por essa sociedade no manejo de recursos baacutesicos de historicizaccedilatildeo da histoacuteria como a cronologia52

Ateacute aqui as conclusotildees a que se pode chegar ainda satildeo excessiva-mente parciais extraiacutedas apenas da sondagem de opiniatildeo conveacutem no entanto sumarizaacute-las de modo a reforccedilaacute-las como hipoacuteteses capazes de nortear a anaacutelise vindoura Segundo o que nos mostram os entrevistados a Independecircncia eacute pouco frequentada por muitos mas assiduamente por um grupo razoaacutevel (seratildeo seus membros os uacutenicos capazes de pensaacute-la segundo marcos cronoloacutegicos) eacute amplamente considerada tema da maior importacircncia para a Histoacuteria do Brasil e de menor importacircncia para a His-toacuteria do Mundo ela eacute menos interessante do que outros temas (quais natildeo sabemos) assim como a Histoacuteria do Brasil eacute menos do que a Histoacuteria Geral mas tende a ser vista como algo respeitaacutevel eventualmente positivo para o Brasil o que parece evocar um imaginaacuterio oficial ainda muito vigente de

Paulo FTD 2010 ALVES Alexandre e OLIVEIRA Letiacutecia F de Conexotildees com a Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Moderna 2010 PEDRO Antocircnio e LIMA Lizacircnias de Souza Histoacuteria sempre presente v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VICENTINO Claacuteudio R e DORIGO Gianpaolo F Histoacuteria Geral e do Brasil v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FIGUEIRA Divalte G Histoacuteria em foco v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2011 NOGUEIRA Fausto G e CAPELLARI Marcos Ser protagonista Histoacuteria 2ordm ano do Ensino Meacutedio Satildeo Paulo Ediccedilotildees SM 2010 BURITTI Flaacutevio Caminhos do Homem v2 Curitiba Base Editorial 2010 CAMPOS Flaacutevio de CLARO Regina A escrita da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 COTRIM Gilberto Histoacuteria Global Brasil e Geral v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 AZEVEDO Gislane C e SERIACOPI Reinaldo Histoacuteria em movimento v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2010 MORENO Jean Carlos e GOMES Sandro V Histoacuteria cultura e sociedade v3 Curitiba Positivo 2010 FERREIRA Joatildeo Paulo e FERNANDES Luiz Estevam Nova Histoacuteria integrada v2 2a ed Curitiba Moacutedulo 2010 MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Histoacuteria Geral e Brasil v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam B Histoacuteria Das cavernas ao terceiro milecircnio v2 2a ed Satildeo Paulo Moderna SANTIAGO Pedro CERQUEIRA Ceacutelia e PONTES Maria Aparecida Por dentro da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 MOCELLIN Renato e CAMARGO Rosiane Histoacuteria em debate v2 Satildeo Paulo Editora do Brasil 2010 CATELLI Jr Roberto GANDINI Mariacutea Soledad M e ASPIS Renata L Histoacuteria texto e contexto v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FARIA Ricardo de M MIRANDA Mocircnica Liz e CAMPOS Helena Estudos de Histoacuteria v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010

61PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit

62Conforme observou o Guia de livros didaacuteticos

PNLD 2012 Histoacuteria 17 das coleccedilotildees aprovadas adotaram a perspectiva da Histoacuteria Integrada na qual se expotildee o conteuacutedo histoacuterico a partir da ldquosequecircncia cronoloacutegica de base europeiardquo havendo o predomiacutenio da ldquoHistoacuteria Geral eurocecircntricardquo linear Os assuntos sobre a Histoacuteria da Ameacuterica e do Brasil estatildeo intercalados nesta grande Histoacuteria Geral As outras duas coleccedilotildees optaram pelo formato temaacutetico organizando os assuntos ldquoem torno de muacuteltiplos espaccedilos e temporalidadesrdquo mas guiados por um eixo cronoloacutegico Guia de livros didaacuteticos PNLD 2012 Histoacuteria Op Cit p 18-19

63Uma afirmaccedilatildeo tiacutepica ldquoO nascimento do

Brasil como paiacutes independente encontra-se dentro do contexto de crise do Antigo Regime e do sistema colonial mercantilistardquo VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p89 Os paradigmas historiograacuteficos a que tal tipo de afirmaccedilatildeo remete satildeo evidentemente as obras de Caio Prado Juacutenior e Fernando Novais jaacute amplamente presentes tambeacutem nos livros de Ensino Fundamental PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit cap3

18Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

glorificaccedilatildeo da Independecircncia laudatoacuterio e a destacar seus personagens centrais No entanto tal tendecircncia encontra obstaacuteculo em outras contraacute-rias minoritaacuterias mas natildeo despreziacuteveis a verem a Independecircncia como algo pouco ou nada importante uma histoacuteria restrita espacialmente e socialmente e mais de continuidades do que de rupturas

Assim jaacute eacute possiacutevel afirmar que a Independecircncia enseja disputas a seu respeito em torno de suas representaccedilotildees e memoacuterias oficiais ou natildeo Muito provavelmente alguns dos motivos que explicam sua rejeiccedilatildeo por muitos explicam igualmente sua ativa e entusiasmada frequecircncia por um grupo menor Em uma terceira via ela jamais deixou de ser pensada e divulgada em perspectivas complexas fortemente criacuteticas e analiacuteticas Para todos os efeitos a Independecircncia contribui sem duacutevida para tipificar uma cultura de histoacuteria no Brasil plural variada e apenas parcialmente organizada em padrotildees cronoloacutegicos (temporais) na qual ocupa um papel central e da qual irradiam outros elementos valiosos para um melhor en-tendimento dessa mesma cultura

4 ndash A Independecircncia nas escolas A principal fonte de fomento e irradiaccedilatildeo de atitudes do brasileiro diante da Independecircncia eacute o sistema escolar com sua diversidade de agentes es-paccedilos procedimentos materiais e valores Aqui seraacute analisado apenas um componente prenhe de significados desse sistema o livro didaacutetico53

Segundo um estudioso da mateacuteria os autores de livros didaacuteticos de Histoacuteria em geral ndash grupo no qual ele mesmo estaacute incluiacutedo -ldquonatildeo tecircm por objetivo somente transpor a Histoacuteria acadecircmica eles identificam necessi-dades sociais estatildeo imersos na sociedade e portanto na proacutepria histoacuteria sobre a qual escrevemrdquo54 Tais livros satildeo assim documentos privilegiados de uma cultura de histoacuteria trazem conteuacutedos de acordo com padrotildees e paracircmetros de uma sociedade agrave qual servem sendo inclusive cada vez mais sensiacuteveis a impulsos de origem natildeo acadecircmica55 contam com a colaboraccedilatildeo ou autoria de historiadores profissionais56 que trabalham junto a editores assistentes revisores iconoacutegrafos diagramadores e designers graacuteficos57 satildeo consumidos preferencialmente por educadores e educandos mas chegam tambeacutem agraves famiacutelias destes e ao puacuteblico em geral tendem a permanecer por algum tempo disponiacuteveis em salas de aula residecircncias livrarias e bibliotecas e satildeo fortemente condicionados pelas exigecircncias de um grande mercado editorial cujas demandas capi-talistas natildeo satildeo menos evidentes do que as pedagoacutegicas O livro didaacutetico eacute o segundo suporte de leitura mais lido no Brasil sendo sua produccedilatildeo o mais lucrativo negoacutecio de uma induacutestria editorial brasileira que tem no governo federal seu maior cliente58 Essa produccedilatildeo dos livros didaacuteticos movimenta enormes cifras veicula paacuteginas e paacuteginas de conteuacutedos de Histoacuteria produzidos por e destinados a um amplo conjunto de agentes sociais e tecircm circulaccedilatildeo nacional59

A Independecircncia estaacute presente em todos os 21 livros destinados ao Ensino Meacutedio aqui considerados60 assim como estava em outros 12 de Ensino Fundamental contemplados por um estudo acadecircmico a respeito61 Nessa dupla frente abre-se uma possibilidade de anaacutelise valiosa jaacute que alguns livros circulam atualmente enquanto outros circularam agrave eacutepoca em que jovens adultos que hoje tecircm entre 22 e 26 anos eram crianccedilas entre 9 e 13 Unem-se assim duas temporalidades de tratamentos da Independecircn-cia que podem ser unificadas por uma cultura de histoacuteria

64Exemplo eacute a afirmaccedilatildeo de que ldquoem

reconhecimento agrave importacircncia da Batalha do Jenipapo como um episoacutedio fundamental no processo de independecircncia e de consolidaccedilatildeo do territoacuterio a data de 13 de marccedilo de 1823 foi estampada na bandeira do estado do Piauiacuterdquo DIAS Adriana GRINBERG Keila e PELLEGRINI Marco Op Cit p240

65Excelente demonstraccedilatildeo eacute dada por uma

proposta pedagoacutegica de um jogo didaacutetico elaborado pelo Laboratoacuterio de Ensino de Histoacuteria da Universidade Federal de Pelotas descrita em GASPAROTTO Alessandra ESPIacuteRITO SANTO Marco Viniacutecio do SILVA Eduarda Borges da Jogo didaacutetico vira-vira a metroacutepole vira colocircnia a colocircnia vira-metroacutepole Revista Latino-Americana de Histoacuteria v2 n6 agosto de 2013 (Ediccedilatildeo Especial) p648-661

66Os preferidos satildeo D Joatildeo Carlota Joaquina Joseacute

Bonifaacutecio e D Pedro

67Um exemplo apoacutes afirmar que ldquodurante anos a

historiografia oficial tentou idealizar o processo de independecircncia e seus autores explicado como um ato de heroiacutesmo contra a tirania e em defesa da liberdaderdquo uma das obras afirma em tom de contraposiccedilatildeo ldquoMas nas uacuteltimas deacutecadas novos estudos permitiram lanccedilar um novo olhar sobre esse periacuteodo Expressotildees dessa mudanccedila satildeo algumas produccedilotildees culturais recentes que tratam desse momento com uma visatildeo criacutetica e ateacute mesmo sarcaacutestica como por exemplo o romance O Chalaccedila (1999) de Joseacute Roberto Torerordquo Por fim propotildee como ldquoSugestatildeo de atividaderdquo supostamente para aguccedilar o senso criacutetico do aluno ldquocomparar o romance de Torero citado acima com a visatildeo oficial dos eventos fornecida pela ceacutelebre pintura Independecircncia ou morte (O Grito do Ipiranga) de Pedro Ameacuterico ou pelo filme Independecircncia ou morte (1972) de Carlos Coimbrardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p80-81) Aleacutem de ignorar os momentos objetivos e naturezas distintos das obras recomendadas tal atividade sugere a ultrapassagem de uma visatildeo ldquotradicionalrdquo da Independecircncia por outra ldquocriacuteticardquo ndash logo mais aceitaacutevel Assim o aluno eacute encorajado a conceber a histoacuteria por meio de sua livre-interpretaccedilatildeo mas sendo impelido a endossar a de um romance satiacuterico (logo voltaremos a ele)

68Em um livro para o Ensino Fundamental de

1996 lia-se que ldquopara a realizaccedilatildeo do nosso trabalho foi importante a participaccedilatildeo de Mariana Massarani artista que desenhou com alegria e bom humor os acontecimentos estudadosrdquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Do mundo indiacutegena ao periacuteodo regencial no Brasil Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1994 p1 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p79) Essa eacute uma tendecircncia antiga como nos mostra o poema de Murilo Mendes ldquoA pescariardquo (publicado em Histoacuteria do Brasil de 1932) evocativo da tatildeo ceacutelebre quanto historicamente irrelevante disenteria de D Pedro em 7 de setembro de 1822 e transcrito em outro didaacutetico ldquoFoi nas margens

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Natildeo haacute duacutevida que a maioria dos livros didaacuteticos de Histoacuteria voltados ao Ensino Meacutedio abre possibilidades de construccedilatildeo de um conhecimento acerca da Independecircncia multifacetado matizado criacutetico e criterioso e deles pode-se extrair muitos exemplos a revelarem diaacutelogos propositi-vos entre saberes acadecircmicos e didaacuteticos da Histoacuteria (afinal os proacuteprios autores e avaliadores dos livros estatildeo quase todos diretamente ligados ao meio acadecircmico) aliaacutes em comparaccedilatildeo com os de Ensino Fundamental de cerca de uma deacutecada atraacutes essas possibilidades soacute cresceram Poreacutem como natildeo eacute objetivo deste estudo analisar tais livros em si mesmos -somente deles extrair elementos que tipifiquem uma cultura de histoacuteria por meio da Independecircncia ndash mais relevantes parecem ser justamente alguns de seus pontos sensiacuteveis nos quais tais livros se fazem menos acadecircmicos e nos quais se traduzem de modo mais significativo componentes mais amplos da sociedade que lhes daacute sentido

Em todos esses livros a Independecircncia eacute invariavelmente vista como parte de um processo mais amplo no qual se incluem outros acontecimen-tos poliacuteticos americanos e europeus de finais do seacuteculo XVIII e comeccedilos do seacuteculo XIX (embora quase nunca sejam feitas conexotildees fundamentais entre eles deficiecircncia notaacutevel sobretudo no tocante agraves independecircncias da Ameacuterica espanhola vistas sempre como supostos contraexemplos da Independecircncia do Brasil62) O episoacutedico se faz presente na menccedilatildeo a vaacuterios temas menores ndash a vinda da Corte a abertura dos Portos o governo de D Joatildeo no Rio de Janeiro a Revoluccedilatildeo de Pernambuco a Revoluccedilatildeo do Porto etc ndash mas sempre em observacircncia a contextos histoacutericos espaciais e temporais mais amplos63 Destaque-se que 80 dos livros fazem referecircncia expliacutecita ao termo ldquoguerra(s) de independecircnciardquo64 o que enseja uma con-cepccedilatildeo tambeacutem multirregional do tema e vaacuterios o aprofundam O mesmo pode ser dito de perfis biograacuteficos presentes mas submetidos a uma loacutegica processual da Histoacuteria

Essa ecircnfase em processos em detrimento parcial de acontecimentos e personagens eacute importante indiacutecio de uma sintonia entre saberes aca-decircmicos e natildeo acadecircmicos65 Contudo deve-se relativizar o peso desse diaacutelogo jaacute no que tange ao tratamento dispensado agraves biografias aleacutem de pouco ou nada inovarem na escolha dos personagens destacados66 alguns livros didaacuteticos trazem fragmentos anedoacuteticos de tais trajetoacuterias hoje em dia pouco ou nada uacuteteis a historiadores profissionais (embora as comilan-ccedilas de D Joatildeo os amantes de D Carlota ou as noitadas de D Pedro natildeo os distingua de outros agentes histoacutericos de sua eacutepoca tampouco satildeo trata-dos como tiacutepicos67) Parece razoaacutevel argumentar que ao menos parcial-mente tal insistecircncia da parte do livro didaacutetico atende ao gosto do leitorconsumidor tornando tais suportes materiais mais agradaacuteveis e sedutores assim sendo constata-se justamente um limite no diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e saberes didaacuteticos expressos em tais livros bem como se anuncia uma tendecircncia de representaccedilatildeo humoriacutestica do passado em uma cultura de histoacuteria como a brasileira muito forte em outros suportes68 Eis um mercado ndash que no Brasil mescla dimensotildees editoriais e midiaacuteticas com outras educacionais e culturais mais amplas ndash impondo seus padrotildees de representaccedilatildeo do passado

Aleacutem de envolverem historiadores profissionais em sua produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo os livros didaacuteticos de Ensino Meacutedio parecem esforccedilar-se cada vez mais em trazer conteuacutedos extraiacutedos de obras acadecircmicas bem como apresentar ao leitor uma pluralidade de posiccedilotildees acerca de um determina-

do IpirangaEm meio a uma pescariaSentindo-se mal D PedroComera demais cuscuzDesaperta a braguilhaE grita roxo de raivaOu me livro desta coacutelicaOu morro logo de uma vezO priacutencipe se aliviouSai no caminho cantandoJaacute me sinto independenteSafa Vou de perto a morteVamos cair no fadinhoPra celebrar o sucessordquo MACEDO Joseacute Rivair Brasil ndash uma histoacuteria em construccedilatildeo Satildeo Paulo Brasil 1996 p166 Cit por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p101

69Tomemos por exemplo esta afirmaccedilatildeo ldquoDe acordo

com alguns historiadores as raiacutezes da independecircncia brasileira estatildeo na segunda metade do seacuteculo XVIII quando se multiplicaram atividades produtivas e comerciais na colocircnia sobretudo na regiatildeo Centro-Sulrdquo (MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Op Cit p113) Nela eacute possiacutevel reconhecer a presenccedila de influente e importante interpretaccedilatildeo acadecircmica acerca da Independecircncia do Brasil (DIAS Maria Odila A interiorizaccedilatildeo da metroacutepole (1808-1853) In MOTA Carlos Guilherme 1822 dimensotildees Satildeo Paulo Perspectiva 1972 p160-184) no entanto natildeo eacute apresentada qualquer contraposiccedilatildeo (se esta posiccedilatildeo eacute da parte de ldquoalguns historiadoresrdquo outra divergente deve ser da parte de outros) Mais adiante lecirc-se que ldquoo fato relevante foi que a transferecircncia da corte para o Brasil provocou uma inversatildeo histoacuterica de modo significativo e irreversiacutevel nas relaccedilotildees entre a metroacutepole portuguesa e a colocircnia brasileirardquo (Idem p114) Ora o que seria uma inversatildeo irreversiacutevel dessas relaccedilotildees Portugal teria se tornado para sempre colocircnia do Brasil

70Nos livros didaacuteticos de Ensino Fundamental

analisados por Purificaccedilatildeo jaacute eram abundantes as transcriccedilotildees de trechos de textos de historiadores profissionais sem que deles resultasse qualquer ensejo de pluralidade de pensamento ou de estiacutemulo agrave interpretaccedilatildeo

71VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA

Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p 103

72O capiacutetulo 14 de uma das obras intitulado

ldquoO processo de independecircncia da Ameacuterica portuguesardquo inicia-se com um excerto do Romanceiro da Inconfidecircncia de Ceciacutelia Meireles tambeacutem indutor a essa interpretaccedilatildeo ldquoAtraveacutes de grossas portas sentem-se luzes acesas e haacute indagaccedilotildees minuciosas dentro das casas fronteiras Que estatildeo fazendo tatildeo tarde Que escrevem conversam pensam Mostram livros proibidos Leem notiacutecias nas GazetasTeratildeo recebido cartasde potecircncias estrangeiras [] Oacute vitoacuterias festas flores das lutas da Independecircncia Liberdade ndash essa palavra que o sonho humano alimenta que natildeo haacute ningueacutem que explique e ningueacutem que natildeo entendardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p 202) Jaacute nas ldquosugestotildees de leitura e consulta para o professorrdquo de outra encontra-se indicaccedilatildeo de uma obra de J J Chiavenato - Inconfidecircncia mineira as vaacuterias faces Satildeo Paulo Global 2000 - com este comentaacuterio ldquoo autor mostra o movimento que buscava a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Adotando uma abordagem que parte da realidade socioeconocircmica do periacuteodo este livro releva diferentes aspectos desse momento singular da histoacuteria brasileirardquo (NOGUEIRA Fausto

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do toacutepico que seja decorrente de debates acadecircmicos No entanto ainda eacute frequente que tais conteuacutedos se inclinem agrave pura formalidade dificilmente explicitando divergecircncias oriundas da academia ou resultando em uma tomada de posiccedilatildeo realmente criacutetica perante a histoacuteria69 Ao usuaacuterio do livro eacute apresentada uma suposta pluralidade de pensamento natildeo como ferramenta de obtenccedilatildeo dessa pluralidade mas como estilo de composiccedilatildeo e padronizaccedilatildeo do material didaacutetico70

Esse tipo de atitude formalista pode ser encontrada tambeacutem em propostas de atividades dirigidas ao aluno como esta

A interpretaccedilatildeo sobre a independecircncia do Brasil provocou e ainda provoca muitas divergecircncias Sob o ponto de vista econocircmico alguns pesquisadores defendem que a separaccedilatildeo ocorreu de fato em 1808 [] Outros com interpretaccedilotildees mais poliacuteticas indicam o 7 de setembro de 1822 embora nenhuma medida formal tenha sido tomada nessa data ndash foi um ato simboacutelico Depois da Guerra do Paraguai jornais republicanos argumentavam que [] D Pedro havia atendido aos apelos de independecircncia dos brasileiros mas os teria traiacutedo quando fechou a Assembleia Constituinte em 1823 Enalteciam entatildeo a Inconfidecircncia Mineira (1789) a Revoluccedilatildeo Pernambucana (1817) e a Confederaccedilatildeo do Equador (1824) movimentos com teor republicano conforme as reais aspiraccedilotildees dos brasileiros

Satildeo vaacuterias interpretaccedilotildees que variam de acordo com a posiccedilatildeo poliacutetica ou momento histoacuterico dos autores Alguns intelectuais consideram ateacute mesmo que o Brasil hoje tem uma independecircncia mais nominal do que real pois continuaria dependente dos paiacuteses mais ricos

Em sua opiniatildeo quando o Brasil se tornou um paiacutes independente71

Aqui novamente eacute apresentada uma divergecircncia de interpretaccedilatildeo e vaacuterias satildeo as possibilidades de resposta agrave pergunta quando o Brasil se tornou um paiacutes independente No entanto todas as posiccedilotildees apresentadas parecem equivaler-se pois tudo depende da ldquoposiccedilatildeo poliacuteticardquo ou ldquodo mo-mento histoacutericordquo da pessoa disposta a respondecirc-la Assim e por induccedilatildeo a Inconfidecircncia Mineira poderia ser uma resposta aceitaacutevel conforme visatildeo ainda presente em alguns livros72 e a despeito do contraacuterio que historia-dores vecircm afirmando nas uacuteltimas deacutecadas Do mesmo modo a atividade pareceria aceitar a ldquonatildeo independecircncia de fatordquo ideia muito presente na cultura de histoacuteria no Brasil73 tatildeo sedutora quanto inconsistente do ponto de vista acadecircmico Para o aluno tratar-se-ia de uma questatildeo de simples opccedilatildeo (poliacutetica) diante da qual a Histoacuteria se destemporaliza

Uma Histoacuteria processual mais do que episoacutedica ou personalista uma Histoacuteria permeada de explicaccedilotildees acadecircmicas ao mesmo tempo uma Histoacuteria com limitaccedilotildees em termos de divergecircncias relativizaccedilotildees e possibilidades em aberto condicionada a suportes materiais repletos de convenccedilotildees a tornarem-nos muito parecidos entre si Talvez seja no tra-tamento dispensado a imagens que os livros didaacuteticos melhor revelam tais convenccedilotildees reforccedilando as limitaccedilotildees de seu diaacutelogo com a Histoacuteria acadecirc-mica bem como acentuando suas caracteriacutesticas de mercadoria Todos os livros aqui considerados satildeo carregados de itens especiacuteficos a quebrarem a continuidade do texto e suas paacuteginas satildeo multicoloridas e povoadas por fi-guras como obras de pintores dos seacuteculos XIX e XX74 Quase nunca poreacutem tais imagens satildeo analisadas como fontes histoacutericas confinadas agrave funccedilatildeo de mera ilustraccedilatildeo frequentemente modificadas em cor e tamanho ateacute mesmo mutiladas ndash sem esclarecimento ndash em prol da diagramaccedilatildeo75 Em tais casos inevitavelmente cria-se uma ideia natildeo de uma histoacuteria sujeita a muacuteltiplas interpretaccedilotildees (contrapondo-se portanto a vaacuterias das atividades

e CAPELLARI Marcos Op Cit p71) Em uma terceira obra logo na abertura de um capiacutetulo intitulado ldquoA independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo lecirc-se que ldquoos dias 21 de abril e 7 de setembro feriados nacionais nos fazem lembrar de dois momentos do processo histoacuterico que levou a independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo (COTRIM Gilberto Op Cit p223) A associaccedilatildeo direta entre Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia era mais comumente feita em livros didaacuteticos de deacutecadas atraacutes Um de Ensino Fundamental caracterizava a Revolta de Beckman a Guerra dos Emboabas a Revolta de Felipe dos Santos a Guerra dos Mascates e as conjuraccedilotildees Mineira e Baiana como movimentos nos quais ldquoos revoltosos se opuseram agrave metroacutepole sonhando e lutando pela autonomia do paiacutesrdquo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Nas trilhas da histoacuteria Ensino Fundamental Belo Horizonte Dimensatildeo 1999 v4) Citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p108

73FIGUEIRA Divalte G Op Cit p191 Nos de

Ensino Fundamental AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 CARMO Socircnia S do COUTO Eliane F B A A consolidaccedilatildeo do capitalismo e o Brasil impeacuterio Satildeo Paulo Atual 1997 (Histoacuteria Passado Presente 3) p105 FERREIRA Joseacute Roberto Histoacuteria Ediccedilatildeo Reformulada Satildeo Paulo FTD 1997 (7ordf seacuterie) p65 ALVES Kaacutetia Correia Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p 128 Citados por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p78 84-85 96 e 111

74Debret Rugendas Moreaux Feacutelix Taunay

Constantino Fontes Polliegravere Parreiras Benedito Calixto Delerive Martins Viana Oscar Pereira da Silva Georgina de Albuquerque e Aldemir Martins entre outros

75Isso jaacute era frequente haacute uma deacutecada com livros

de Ensino Fundamental como por exemplo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p126 e COTRIM Geraldo Op Cit p 112 conforme anaacutelise de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p113 e 123 Haacute que se dizer que livros didaacuteticos natildeo satildeo meio exclusivo para esse esvaziamento do valor documental da iconografia havendo na proacutepria publicaccedilatildeo acadecircmica problema semelhante como demonstra CAVENAGHI Airton Joseacute O atlas do impeacuterio do Brazil e as representaccedilotildees presentes no livro Projeto Histoacuteria v 41 2010 p 383-403

76Constataccedilatildeo semelhante agrave de PURIFICACcedilAtildeO Ana

Teresa da Op Cit para os didaacuteticos de Ensino Fundamental

77NOGUEIRA Fausto e CAPELLARI Marcos Op

Cit p255

78Para um deles ldquoo pintor Pedro Ameacuterico imaginou

a cena ocorrida agraves margens do riacho do Ipirangardquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 para outro um ceacutelebre quadro mostraria uma ldquocena de uma

21Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

sessatildeo das cortes de Lisboa reconstituiacuteda pelo pintor Oscar Pereira da Silvardquo Cfr CARMO Socircnia do COUTO Eliane F B A Op Cit p 73 um terceiro propunha ao aluno a seguinte atividade ldquoobserve cuidadosamente as gravuras de Debret que aparecem no texto Descreva cada uma delas e compare as cenas nelas retratadas com as cenas de nossas ruas de hoje Haacute diferenccedila Em que sentidordquo Cfr GARCIA Leocircnidas F Estudos de histoacuteria sociedades contemporacircneas 2 ed rev Goiacircnia Editora da UFG 1996 Manual do Professor p 111 Todas as informaccedilotildees foram retiradas de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p81 88 e 137

79Conforme bem mostrado por Elias Saliba Cfr

SALIBA Elias Experiecircncias e representaccedilotildees sociais reflexotildees sobre o uso e o consumo das imagens Anais do II Encontro Perspectivas do Ensino de Histoacuteria Satildeo Paulo FEUSP 1996 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p119

80Produzida pela Secretaria de Ensino agrave

Distacircncia do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo em parceria com a TV Escola e a Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco com a companhia teatral Matildeo Molenga Parte 1 disponiacutevel em youtubecomwatchv=Z60eHBJ1xjY 18082 visualizaccedilotildees e 15 comentaacuterios parte 2 disponiacutevel em youtubecomwatchv=2QLkP2NDhMg 30100 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios (parte desse episoacutedio tambeacutem disponiacutevel em youtubecomwatchv=bAPUjP7l-lI 18398 visualizaccedilotildees e 16 comentaacuterios acesso em 13022014

81Como Clemente Pereira Gonccedilalves Ledo Cipriano

Barata Paes de Andrade e frei Caneca O fato de se tratar de uma produccedilatildeo pernambucana contribui para tanto

82Semelhante observaccedilatildeo pode ser feita a respeito

dos doze curtos episoacutedios da seacuterie D Joatildeo no Brasil inspirada em uma narrativa em quadrinhos da chegada da Corte ao Brasil seacuterie de animaccedilatildeo produzida pelo Canal Futura baseada no livro de histoacuteria em quadrinhos D Joatildeo Carioca a corte portuguesa chega ao Brasil (1808 - 1821) escrito pela historiadora Lilia Schwarcz e pelo desenhista Spacca (Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007) Novamente tem-se um material convincente afinado em muitos sentidos com um conhecimento acadecircmico mas que ao recorrer agrave saacutetira tambeacutem evoca estereoacutetipos convencionais como por exemplo os mesmos acima mencionados em referecircncia a priacutencipe e princesa Poder-se-ia atribuir tal convencionalismo dentre outros fatores ao de que a primazia da linguagem visual aqui opera duplamente isto eacute com os quadrinhos e tambeacutem com o programa televisivo criado a partir deles amplificando assim os efeitos decorrentes da saturaccedilatildeo visual da sociedade que daacute origem e significado a esse material Para todos os efeitos a imposiccedilatildeo de tais convenccedilotildees eacute forte ateacute mesmo conforme jaacute visto em materiais menos visuais que este Episoacutedio 01 youtubecomwatchv= 9f5RB1zcD5Eamplist=PLyP1ks9vaqhj2y6MmckU DyuXtWmHgPLe5ampindex=1 331 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio episoacutedio 02 youtubecomwatchv= w-BLqvhYPGkamplist=PL5837763F26AB1B87

oferecidas pelos proacuteprios livros) mas de uma histoacuteria imoacutevel a ser captada de modo instantacircneo uma histoacuteria verdadeira Aleacutem do mais confundem-se os diferentes contextos motivaccedilotildees e condiccedilotildees de produccedilatildeo de tais imagens o que equivale agrave oferta de uma confusatildeo temporal que impossibi-lita a compreensatildeo dessa histoacuteria76

As uacutenicas exceccedilotildees satildeo os ceacutelebres quadros de Moreaux e de Pe-dro Ameacuterico Todos os livros didaacuteticos aqui considerados se esforccedilam por submetecirc-los a uma criacutetica muitas vezes comparativa considerando forma conteuacutedo e contexto mesmo assim eacute possiacutevel encontrar afirmaccedilotildees como a de que Ameacuterico teria tido ldquoo intuito de fazer a representaccedilatildeo desse famoso acontecimento da maneira mais fiel possiacutevelrdquo e que ldquomuitos dos elementos representados pelo pintor satildeo sabidamente falsosrdquo77 Provavel-mente satildeo resquiacutecios de um momento anterior no qual os livros didaacuteticos mostravam-se muito menos cuidadosos ateacute mesmo na utilizaccedilatildeo do quadro de Ameacuterico78 mas tambeacutem marcas atuais de uma sociedade de haacutebitos fortemente visuais cuja saturaccedilatildeo de imagens tende a resultar em posturas pouco criacuteticas em relaccedilatildeo ao que se vecirc bem como em indistinccedilatildeo tempo-ral das mesmas79 Haacute que se lembrar por fim e novamente que os textos desses livros satildeo cheios de descontinuidades como se cada pedaccedilo de cada paacutegina tivesse autonomia prescindindo de certo modo da leitura dos demais Guardaratildeo tais constataccedilotildees alguma relaccedilatildeo com as dificuldades apresentadas pelos entrevistados na sondagem de opiniatildeo de organizar visotildees da Histoacuteria da Independecircncia segundo marcos cronoloacutegicos bem como de distinguir diferenccedilas entre intervalos temporais Eacute bem possiacutevel sobretudo porque ela seraacute endossada pela observaccedilatildeo de outras fontes

5 - A Independecircncia na internet e na tevecircExiste farto e rico material audiovisual disponiacutevel na internet com referecircncias agrave Independecircncia do Brasil e que a exemplo dos livros didaacuteticos represen-tam a convergecircncia de esforccedilos profissionais muacuteltiplos (mais os programas de tevecirc do que os viacutedeos independentes) como pesquisadores roteiristas apresentadores repoacuterteres cenoacutegrafos teacutecnicos variados etc As fontes aqui delimitadas perfazem 107 viacutedeos acessiacuteveis no YouTube e que natildeo obstante sua ampliacutessima diversidade convergem em muitos significados

Observe-se o caso de viacutedeos educativos documentaacuterios e programas de televisatildeo com entrevistas e debates que em comum apresentam objetivos formativos e esforccedilos verdadeiros de incorporaccedilatildeo de conteuacutedos acadecircmicos traduzidos em linguagens didaacuteticas Um caso exemplar eacute a seacuterie 500 anos o Brasil - Impeacuterio na TV que conta uma histoacuteria do Brasil da chegada da Corte ao periacuteodo das regecircncias em formato de telejornal com trama romanceada e teatro de bonecos80 Aqui vecirc-se uma Histoacuteria processual com informa-ccedilotildees corretas e amparadas em datas deslocamentos frequentes dos eixos espaciais de observaccedilatildeo (regional internacional) com menccedilatildeo a persona-gens que extrapolam o tradicional ciacuterculo da Corte portuguesa81 e ecircnfase no caraacuteter violento e conflitivo da formaccedilatildeo do Brasil no seacuteculo XIX Mesmo um material histoacuterico-pedagoacutegico desse quilate evoca por exemplo a falta de atributos esteacuteticos de Carlota Joaquina ou a pusilanimidade de seu marido a revelarem mais uma vez o mercadologicamente eficiente componente bio-graacutefico-anedoacutetico no tratamento da Independecircncia advindo de sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria mais ampla82

Em outros casos o fato de programas de televisatildeo buscarem o auxiacutelio de especialistas na Independecircncia revela uma convenccedilatildeo formal como nos

22Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

16566 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios episoacutedio 03 youtubecomwatchv=QvWSE-sF-w4amplist =PL5837763F26AB1B87 18406 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios episoacutedio 04 youtubecomwatchv= 2N5wBvpgyXEamplist=PL5837763F26AB1B87 12808 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 05 youtubecomwatchv=VaHrSAFBf1Uamplist =PL5837763F26AB1B87 14615 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 06 youtubecomwatchv= 8RrCMbOZTsAamplist=PL5837763F26AB1B87 12649 visualizaccedilotildees 10 comentaacuterios episoacutedio 07 youtubecomwatchv=I4cgWo_GHaQ 601 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 08 youtubecomwatchv=rI71YNrLo7o 12299 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 09 youtubecomwatchv=huv2ngnqUd4 367 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios episoacutedio 10 youtubecomwatchv=F2MaLs_kj-w 10842 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios episoacutedio 11 youtubecomwatchv=8zK3D01dXc0 9388 visualizaccedilotildees 05 comentaacuterios episoacutedio 12 youtubecomwatchv=R76BHD--vB8amplist=PL5837763F26AB1B87 12108 visualizaccedilotildees 9 comentaacuterios acessos em 03042014

83NAPOLITANO Marcos A Histoacuteria depois do

papel In Carla Pinsky (org) Fontes Histoacutericas Satildeo Paulo Contexto 2005 p250-252 Napolitano afirma com base em Umberto Eco que a televisatildeo introduziu uma mudanccedila de ritmo de vida familiar e cotidiana bem como o que se pode chamar de hipertrofia sensorial em detrimento da assimilaccedilatildeo conceitual Destaca ainda que eacute preciso pensar a televisatildeo como uma nova experiecircncia social do tempo histoacuterico na medida em que ela faz coincidir o verdadeiro o imaginaacuterio e o real no ponto indivisiacutevel do presente

84Produzida pela rede de emissoras puacuteblicas

TV Brasil Sobre a Revolta dos Alfaiates parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo 767 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=dj04LJJM8bk 2592 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio Sobre a Batalha do Jenipapo parte 1 youtubecomwatchv=zlgsZcj-V3o 2426 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios acesso em 24032013 parte 2 youtubecomwatchv=rAS3dHAvWPQ 1283 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio Sobre Tiradentes youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 408 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013)

85Marco Morel e Luiacutes Henrique Dias Tavares

86Programa De laacute pra caacute Revolta dos Alfaiates

parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo

87Exceccedilatildeo satildeo as entrevistas realizadas por

Mocircnica Teixeira na UnivespTV que estabelecem comunicaccedilatildeo bastante profiacutecua entre a entrevistadora e os acadecircmicos entrevistados (youtubecomwatchv=syXf3WHQRPM 4450 visualizaccedilotildees 06 comentaacuterios youtubecomwatchv=pZk5pFlboqw 3303 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=5pUDP2KUYCY 4128 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios

livros didaacuteticos e a exemplo destes a intenccedilatildeo de acolher uma multipli-cidade de vozes raramente enseja verdadeira pluralidade de pensamento o que ademais eacute dificultado pela natureza curta sinteacutetica e acelerada dos materiais televisivos Nessas situaccedilotildees constata-se que o historiador fala uma coisa mas o entrevistador e o produtor continuam a ldquoescutarrdquo outra o que muitas vezes reforccedila a percepccedilatildeo de descontinuidade narrativa an-teriormente tambeacutem diagnosticada nos livros didaacuteticos e que na televisatildeo adquire contornos de regra83 Os episoacutedios da seacuterie De laacute para caacute educati-vos didaacuteticos aacutevidos por com conhecimentos acadecircmicos e produzidos por uma rede puacuteblica de televisatildeo sem fins lucrativos apresentam interessante exemplo84 No programa dedicado aos acontecimentos de 1798 na Bahia dois historiadores profissionais85 esclarecem que os revoltosos ldquobahien-sesrdquo almejavam a independecircncia apenas da capitania da Bahia o que tem enormes implicaccedilotildees a destituiacuterem tais acontecimentos de qualquer atribu-to supostamente preparatoacuterio da Independecircncia do Brasil (situaccedilatildeo muito semelhante conforme vimos agrave da Inconfidecircncia Mineira) natildeo obstante na abertura do programa seu apresentador declara

A luta pela independecircncia do Brasil foi escrita nas paacuteginas memoraacuteveis da nossa histoacuteria com o sangue de um punhado de brasileiros O mais celebrado foi Tiradentes Mas sete anos depois do martiacuterio de Tiradentes quatro brasileiros pretos pobres pelos mesmos ideais foram enforcados e sentenciados em Salvador86

Em outros momentos o apresentador apesar de ouvir de forma soliacutecita e atenta ao que o entrevistado tem a dizer acaba por negar com sua proacutepria fala parte do conteuacutedo receacutem-ouvido mas sem demonstrar ser essa atitude premeditada ou consciente Afinal eacute difiacutecil desvencilhar-se daquilo que jaacute se ldquosaberdquo daquilo que adveacutem de um ambiente que o tempo todo nos ldquoensinardquo Histoacuteria sem necessariamente disso nos darmos conta87

A incapacidade de assimilaccedilatildeo reciacuteproca de ideias acerca da histoacute-ria entre agentes sociais diversos pode revelar-se de muitos modos Um dos programas da seacuterie Caminhos da Reportagem intitulado Caminhos da Independecircncia o grito nas ruas produzido com as mesmas caracteriacutesticas do anterior aborda a Independecircncia focada em seus panfletos poliacuteticos a partir da pesquisa recente de trecircs historiadores profissionais88 No entan-to e a despeito natildeo soacute de dar ampla voz a eles mas tambeacutem de abordar conteuacutedos didaticamente inovadores a equipe de entrevista que foi agraves ruas natildeo estabeleceu qualquer mediaccedilatildeo entre histoacuterias acadecircmicas e natildeo acadecircmicas pressupondo que todas as pessoas ocupam uma mesma posiccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria Por isso perguntas incompreensiacuteveis89 resultam apenas em situaccedilotildees vexatoacuterias impeditivas da construccedilatildeo de conhecimento sobre o tema

A abordagem de pessoas nas ruas recurso frequentemente utiliza-do por programas televisivos revela dados importantes acerca de como os brasileiros veem a Independecircncia muitas vezes mais por aquilo que eacute perguntado do que por aquilo que eacute respondido90 O programa + Estilo de 07 de setembro de 2011 produzido pela TV Campo Grande com conteuacutedo de variedades destinado a telespectadores de meio de tarde foi agraves ruas (provavelmente de Campo Grande Mato Grosso do Sul) perguntar se as pessoas saberiam dizer o que se comemorava naquele dia Primeiro res-ponde uma jovem com um bebecirc no colo

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youtubecomwatchv=0ZVgCwkt1ms 1384 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1016 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1227 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=ANSHAFLau04 1175 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios) Acessos em 21042014

88Joseacute Murilo de Carvalho Luacutecia Pereira das Neves

e Marcello Basile

89A apresentadora ldquoVocecircs sabem o que significa

corcundardquo Um professor de coleacutegio ldquoDeve ser alguma coisa que estaacute surgindo aiacute no mundo um pouco mais ciberneacutetico porque eu nem na faculdade ouvi falar dos corcundasrdquo Marcos Tomazzeti produtor multimiacutedia ldquoNa minha cabeccedila vem algo de monarquia de rei algo meio poliacuteticordquo Simone Granda bancaacuteria ldquoDicionaacuterio de corcundice Natildeo seirdquo Marilu Guimaratildees dona de casa ldquoPuxa tem tanta coisa importante pra ter dicionaacuterio vai ter justo do corcundistardquo Caminhos da Independecircncia youtubecomwatchv=37XH5UEpjlI acesso em 24032013

90Em perspectiva oposta mas complementar agrave da

sondagem de opiniatildeo aqui utilizada

91E que portanto muito provavelmente ainda natildeo

tinha tido contato formal (escolar) com o tema

92O programa prossegue entatildeo com uma entrevista

com o professor Ian Rari que trata de uma Histoacuteria da Independecircncia processual natildeo centrada em uma uacutenica data ou fato criacutetica etc Mais um momento onde as vaacuterias vozes contempladas pelo programa natildeo dialogam entre si (youtubecomwatchv=xv1LOlwUfFQ 289 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio) Outro exemplo significativo eacute dado pelo programa Conexatildeo Jovem exibido em 06 de setembro de 2012 no qual dois entrevistados ndash Prof Bira professor de Histoacuteria e Marcos Eduardo socioacutelogo ndash utilizam com competecircncia o pouco tempo a eles destinado discorrendo de modo criacutetico sobre a Independecircncia e em linguagem adequada ao puacuteblico jovem ao qual o programa se destina (produccedilatildeo da TV Novo Tempo adventista parte 1 youtubecomwatchv=1IvYOYtju9sgt 74 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=Ofv7QWOJpHo 47 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013) Logo o programa traz uma abordagem feita na rua na qual a entrevistadora pergunta a uma jovem ldquoQuem falou lsquoindependecircncia ou mortersquo agraves margens do riacho do Ipirangardquo Diante da correta resposta a entrevistadora tenta induzir um erro ldquo15 de novembro ou 7 de setembrordquo Aliaacutes a expectativa do programa parece revelada pela entrevistadora logo na primeira pergunta feita a um dos convidados ldquoseraacute que os jovens se interessam pela histoacuteria de seu paiacutesrdquo E embora o material recolhido pelo proacuteprio programa permita resposta afirmativa manteacutem-se a postura negativa preacute-concebida

93Daiacute a relevacircncia de um viacutedeo com fotografias e

um aacuteudio (youtubecomwatchv=UdQ_aAAl3DE)

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoE isso em que ano que foi que aconteceurdquoResposta ldquo1822rdquo

Em seguida outro jovem que provavelmente jaacute tinha respondido a outra pergunta

Pergunta ldquoQuem foi o imperador vocecirc lembrardquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoAcertou Canta pra gente um trecho do hino da independecircnciardquoResposta ldquoAgora natildeo lembrordquo

Agora o programa aborda uma menina de cerca de dez anos clara-mente intimada91

Pergunta Por que eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoNatildeo seirdquoPergunta ldquoNatildeo lembra Vou dar uma dica um fato histoacuterico muito importante para o BrasilrdquoResposta (negativa com a cabeccedila)

Em quarto lugar outra jovem que procura se afastar da cacircmera

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta (ainda tentando se esquivar sorrindo) ldquoNatildeordquoPergunta ldquoNatildeo saberdquoResposta ldquoAh A Independecircncia Eu natildeo prestei atenccedilatildeordquoPergunta Que ano aconteceu a Independecircncia vocecirc lembrardquoResposta ldquoNatildeordquoPergunta ldquoE quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoTambeacutem natildeo lembrordquo

Por fim a entrevista com um senhor de meia-idade comeccedila jaacute com uma resposta

Resposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoQue ano aconteceu issordquoResposta ldquo1888rdquoPergunta ldquo1822 Quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoCerto E onde foi que aconteceu tudo issordquoResposta ldquoSatildeo PaulordquoPergunta ldquoOK [breve silecircncio] Canta um trechinho para noacutes do hino da IndependecircnciardquoResposta ldquoJaacute podeis da paacutetria matildeerdquo [sic -prossegue cantando corretamente]

Em seguida o programa corta para uma sala de aula onde a despeito dos ldquoacertosrdquo obtidos nas ruas a entrevistadora afirma

Diante da dificuldade que noacutes encontramos no centro da cidade para saber informaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil eu vim parar na sala de aula Vai ser aqui que a gente vai descobrir a histoacuteria do paiacutes92

A ideia a priori de que o brasileiro natildeo conhece e natildeo se interessa pela histoacuteria subsidia este e muitos outros programas Aqui o dado mais relevante parece estar precisamente nessa arraigada crenccedila no desinteres-

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da entatildeo prefeita de Ribeiratildeo Preto (Satildeo Paulo) Darcy Vera que afirma durante um desfile de 7 de Setembro dentre vaacuterios desvarios que ldquoTiradentes gritou lsquoIndependecircncia ou mortersquordquo Com 169919 acessos e 149 comentaacuterios (em geral criacuteticos bem humorados e depreciativos) ateacute 20082014 condensa a possibilidade de amplificaccedilatildeo do estigma do natildeo domiacutenio de referecircncias convencionais agrave Independecircncia mas sem fomentar nenhum conhecimento da mesma

94Novamente surge a questatildeo natildeo teratildeo as

renovaccedilotildees curriculares promovidas no ensino de Histoacuteria (no Brasil e alhures) das uacuteltimas deacutecadas exagerado nessa incompatibilidade Teratildeo elas sido capazes de mensurar seus efeitos deleteacuterios diante de sociedades jaacute bastante refrataacuterias a uma histoacuteria cronoloacutegica

95ldquoPouco importa que sua figura tenha sido

mitificada pela propaganda republicana O que importa eacute que ele foi um heroacutei Ele deu sua vida pela paacutetria e pela liberdaderdquo (Programa De laacute pra caacute youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032013) Essa exaltaccedilatildeo da figura de Tiradentes associada agrave Independecircncia conduz o discurso da propaganda eleitoral de um candidato agrave prefeitura de Ouro Preto em 2012 (youtubecomwatchv=eGefgLoRhec 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032014) Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo no dia 09 de setembro de 2013 apoacutes se autocaracterizar como realizador de uma ldquohistoacuteria de carne e ossordquo em contraposiccedilatildeo a produccedilotildees ldquocontaminadas pela anaacutelise marxistardquo que retirariam os personagens da Histoacuteria o jornalista Laurentino Gomes afirma ldquoNo 1822 faccedilo uma comparaccedilatildeo e digo que o uacutenico problema do Joseacute Bonifaacutecio foi nascer no Brasil pois se ele tivesse nascido nos Estados Unidos teria sido maior que o Thomas Jefferson Porque aparentemente ele era mais preparado mais luacutecido que o Thomas Jeffersonrdquo (parte 1 youtubecomwatchv=uGibbLxsZK0 4501 visualizaccedilotildees e 5 comentaacuterios parte 2 youtubecomwatchv=2LQcEcb5kLU 2302 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios acesso em 26032014 Logo voltaremos agrave obra e agraves ideias de L Gomes

96Um exemplo adveacutem do viacutedeo ldquoA verdadeira

independecircncia do Brasilrdquo em que um pastor evangeacutelico em meio a uma cerimocircnia religiosa ldquodesconstroacuteirdquo o quadro de Pedro Ameacuterico acusando-o de pouco verossiacutemil e aponta os desvios morais de D Pedro I de modo a inviabilizaacute-lo como figura histoacuterica digna de memoacuteria (youtubecomwatchv=RsKQr6bgzLA 178 visualizaccedilotildees e 2 comentaacuterios acesso em 24032014) A suposta irrelevacircncia dos personagens envolvidos no processo da independecircncia eacute notaacutevel na fala de um professor de Ensino Meacutedio (youtubecomwatchv=gvWVF9j2KEU 597 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) e de um apresentador de temas religiosos que relativizam a importacircncia do tema ao afirmarem a atual ldquodependecircncia econocircmicardquo do Brasil (youtubecomwatchv=EXyUBY7StF4 383 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Tambeacutem retornaremos a esse tema

sedesconhecimento do brasileiro pela histoacuteria bem como em um de seus efeitos mais contundentes a crenccedila de que eacute possiacutevel reverter tal situaccedilatildeo pela simples mobilizaccedilatildeo formal de datas nomes e eventos Contudo se a Independecircncia se converte em uma catalizadora de referecircncias cronoloacute-gicas ou nominais isso natildeo leva necessariamente a uma historicizaccedilatildeo do tema pelo contraacuterio a mobilizaccedilatildeo de tais referecircncias em termos como os acima mencionados (a data ou o nome por si soacutes) pode resultar no apro-fundamento da tendecircncia agrave confusatildeo temporal jaacute aqui apontada93

Nos meios intelectuais a discussatildeo em torno das formas tempo-rais de vivecircncia coletiva naquilo que se pode chamar ndash recorrendo-se a uma categoria uacutetil ndash de modernidade natildeo eacute nova tampouco estaacute em vias de esgotamento A dificuldade de organizaccedilatildeo do mundo social segundo referecircncias cronoloacutegicas natildeo seraacute em absoluto distintiva de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil embora o contraacuterio deva ser dito em relaccedilatildeo agraves formas assumidas por tais dificuldades (como as noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia) Percebe-se entatildeo o peso do estigma da dificuldade em manejar datas nomes e fatos suposta prova de um desin-teresseignoracircncia que poderia ser combatido com um retorno a velhas formas de se fazer Histoacuteria e nas quais tais elementos eram considera-dos com a essecircncia da compreensatildeo histoacuterica Natildeo parece que as coisas devam propriamente se passar segundo essa representaccedilatildeo embora um dos confrontos existentes na cultura de histoacuteria no Brasil seja sem duacutevida a polarizaccedilatildeo entre a valorizaccedilatildeo da Independecircncia (= de suas datas nomes eventos siacutembolos e supostos valores etc) e a desvalorizaccedilatildeo da mesma (=seu caraacuteter elitista e negociador a diminuiccedilatildeo da histoacuteria do Brasil em comparaccedilatildeo com a de outros paiacuteses a comicidade dessa histoacuteria etc) Eacute plausiacutevel conceber que esta segunda posiccedilatildeo encontre um aliado na con-cepccedilatildeo de incompatibilidade entre uma histoacuteria amparada por referecircncias cronoloacutegicas e ao mesmo tempo em processos estruturas e temas trans-versais do gosto inclusive de muitos acadecircmicos e educadores94

Os exemplos de materiais audiovisuais a traduzirem veicularem e fomentarem esse confronto entre valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo da Inde-pendecircncia satildeo muitos Aleacutem dos jaacute tratados ateacute aqui pode-se mencionar viacutedeos contendo propaganda de instituiccedilotildees puacuteblicas civis e militares de partidos poliacuteticos de grupos maccedilocircnicos de igrejas e de empresas variadas bem como produccedilotildees independentes Neles eacute possiacutevel encontrar desde a exaltaccedilatildeo das referecircncias mais convencionais agrave Independecircncia como a seus personagens (incluindo seu suposto maacutertir Tiradentes)95 ateacute a afirma-ccedilatildeo de sua total irrelevacircncia96 isso costuma ocorrer sem muitos matizes obedecendo a uma loacutegica dicotocircmica plasmada em linguagens simples com descontinuidades discursivas e imageacuteticas e num ritmo de exposiccedilatildeo acelerado Em suma tratam da Independecircncia segundo padrotildees parcial-mente compartilhados tambeacutem por outras fontes ateacute aqui analisadas

Todas essas fontes com suas noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia satildeo sintomaacuteticas de estados de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema bem como potenciais formadores de opiniatildeo dos mesmos Sua capacidade de criaccedilatildeo de conhecimento no entanto se mostra muito limi-tada Eacute bem verdade que esta eacute por vocaccedilatildeo uma tarefa confiada a saberes acadecircmicos ndash jaacute que no Brasil a quase totalidade da pesquisa em Histoacuteria estaacute entregue agraves universidades salvo a de interesse corporativo ndash de modo que natildeo seria de esperar inovaccedilatildeo em suportes tatildeo variados e socialmen-te diversificados quanto os ateacute aqui analisados Mas parece haver aiacute certo

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ciacuterculo vicioso a envolver tambeacutem parte da academia Basta observar que a ideia da ldquonatildeo Independecircncia de fatordquo tatildeo em voga entre tantos historiadores durante tanto tempo reverbera com forccedila na sociedade em geral97 e ainda goza de prestiacutegio ateacute mesmo entre alguns acadecircmicos que bebem-na da sociedade e apoacutes modificaacute-la parcialmente devolvem-na aos espaccedilos de di-vulgaccedilatildeo98 Essa versatildeo da Histoacuteria eacute capaz de transpor fronteiras temporais de atualizar-se em diferentes contextos e ateacute mesmo de superar abissais diferenccedilas poliacuteticas ela estaacute representada por exemplo e de modo quase idecircntico na propaganda poliacutetica de um partido trotskista e na pregaccedilatildeo nacionalista-direitista de um polecircmico professor de histoacuteria99

Por fim tome-se o caso de trecircs produccedilotildees da Rede Globo de Televi-satildeo voltadas ao puacuteblico em geral com consideraacuteveis aportes financeiros e complexa produccedilatildeo a seacuterie documental A Corte no Brasil para exibiccedilatildeo em tevecirc fechada100 e as seacuteries humoriacutesticas O Quinto dos Infernos101 e Eacute muita Histoacuteria Dia de Fuacuteria102 veiculadas amplamente em tevecirc aberta No pri-meiro caso siacutetios histoacutericos visitados pelas apresentadoras uma narrativa soacutebria e informativa de fatos e processos grande quantidade de entrevistas com historiadores ecircnfase em diferentes espaccedilos regionais e internacio-nais e tratamento do tema em muacuteltiplas dimensotildees (poliacutetica econocircmica cultural) No segundo caso uma narrativa romanceada teatral e cocircmica fortemente despolitizada e livremente baseada em trecircs livros de igual teor (um deles publicado haacute quase um seacuteculo)103 praticamente centrada no Rio de Janeiro (um pouco tambeacutem em Portugal muito menos alhures) e nos membros da famiacutelia real portuguesa cuja vida pessoal eacute estruturada em torno de seus haacutebitos excecircntricos (principalmente os sexuais) e vez ou outra de passageiros dramas pessoais104

Finalmente no terceiro caso uma encenaccedilatildeo tambeacutem cocircmica pro-tagonizada por um escritor-autor-ator-palhaccedilo com grande liberdade de criaccedilatildeo mas amparada em informaccedilotildees convenccedilotildees e mitos a oferecer uma versatildeo do Sete de Setembro segundo o estado psico-fisioloacutegico de D Pedro

Eis um exemplo de uma das modalidades assumidas pela disputa em torno de uma Independecircncia valorizada e outra depreciada Pareceria justificaacutevel opor a tal diagnoacutestico a constataccedilatildeo de se tratarem de obras televisivas de distinto teor o que desobriga a segunda e a terceira de qual-quer compromisso com a verdade No entanto interessam-nos mais seus significados e efeitos do que intenccedilotildees Note-se que a primeira documen-tal eacute de circulaccedilatildeo mais restrita que a segunda e a terceira voltadas para grande puacuteblico por isso seus efeitos nesse jogo de criaccedilatildeorecriaccedilatildeo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da Independecircncia satildeo natildeo apenas assimeacutetricos mas tambeacutem concorrentes105 Os esforccedilos de um pro-grama por posicionar o espectador diante de uma histoacuteria processual de encadeamentos temporais e de grupos e conflitos sociais satildeo naturalmente obstados pelos dos outros dois a oferecer uma histoacuteria repleta de anacro-nismos anedoacutetica e biograacutefica em perfeita sintonia com demandas mais amplas de uma sociedade ndash e de alguns de seus componentes mercadoloacutegi-cos jaacute aqui mencionados ndash na qual a vida privada eacute mais valorizada do que a puacuteblica106 Nesse confronto embora as trecircs convivam na mesma cultura de histoacuteria uma Independecircncia tende a prevalecer sobre a outra107

6 ndash A Independecircncia no cinemaEm relaccedilatildeo a livros didaacuteticos programas de televisatildeo e outros materiais audiovisuais as fontes cinematograacuteficas aqui consideradas naturalmente

97Exemplo encontra-se no viacutedeo ldquoAway Nilzer ndash

Independecircncia do Brasilrdquo com grande nuacutemero de visualizaccedilotildees (130677) e de comentaacuterios (1016) que minimiza e ridiculariza natildeo apenas o processo da independecircncia como quaisquer fatos histoacutericos brasileiros de maneira geral (youtubecomwatchv=Vd_kloNeQV0) O Brasil atual como viacutetima de uma exploraccedilatildeo econocircmica mais intensa do que nos tempos coloniais e portanto natildeo-independente aparece na fala de outro professor (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2806 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) e nos comentaacuterios de um boneco marionete de um programa infantil (youtubecomwatchv=9mh3Tu6c4_w 173 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032014)

98Exemplo desse processo de ldquodevoluccedilatildeordquo pode ser

comprovado no viacutedeo ldquoIndependecircncia ou morterdquo (youtubecomwatchv=QUvnz1no1m8 934 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Outros dois exemplos pertinentes satildeo a insistecircncia nas ideias de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil e que a Independecircncia foi uma luta entre brasileiros e portugueses

99Em entrevista a uma rede local de televisatildeo

ouvimos do professor de histoacuteria do Ensino Meacutedio Wander Pugliesi ldquoSe noacutes formos trabalhar com sinceridade o Brasil ainda natildeo eacute independente Na verdade somos muito mais explorados do que quando eacuteramos colocircnia de Portugalrdquo (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2815 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) A mesma relativizaccedilatildeo do processo de independecircncia aparece na fala do candidato agrave presidecircncia em 2010 pelo PSTU Zeacute Maria ldquohoje infelizmente natildeo podemos comemorar uma verdadeira independecircncia do paiacutes Eacute preciso dizer a verdade as multinacionais controlam a economia brasileira As decisotildees fundamentais satildeo tomadas por elas fora do paiacutesrdquo (youtubecomwatchv=ht9Yt0PlGnU 1803 visualizaccedilotildees um comentaacuterio) Acessos em 26032013

100Direccedilatildeo de Carlos Henrique Schroder 2008

Produccedilatildeo de 16 episoacutedios de cerca de 20 minutos cada para o canal da TV fechada GloboNews A seacuterie foi comercializada em DVD e pode ser vista tambeacutem no canal Globosat no Youtube (youtubecomwatchfeature= player_detailpageampv= OUX-zSyaMIc e viacutedeos relacionados Acesso em 27032014)

101Direccedilatildeo de Wolf Maya e Alexandre Avancini e

criaccedilatildeo de Carlos Lombardi 2002 Produccedilatildeo de 48 episoacutedios com cerca de 40 minutos cada para o canal da TV aberta Rede Globo de Televisatildeo A minisseacuterie tambeacutem foi comercializada em DVD e vem sendo (desde janeiro de 2014) reprisada no Canal Viva (rede fechada de televisatildeo filiada Globosat) uma reprise anterior ocorreu de agosto a novembro de 2011 sempre por volta das 23h

102Direccedilatildeo de Joatildeo Carrascosa e Pedro Bial 2007

Produccedilatildeo de 9 capiacutetulos de cerca de 15 minutos

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apresentam especificidades Tendem a diversificar (eventualmente ampliar) o rol de profissionais envolvidos em sua produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo bem como a tratar conteuacutedos em um tempo mais lento criando uma sensaccedilatildeo de homogeneidade de significados reforccedilada pela aderecircncia de tais conteuacutedos a uma trama central Tal homogeneidade por seu turno eacute relativizada por uma liberdade de criaccedilatildeo que dificilmente encontra paralelo em outros dos materiais aqui considerados ndash com a possiacutevel exceccedilatildeo da minisseacuterie O Quinto dos Infernos No entanto quando a comparaccedilatildeo eacute feita com os li-vros didaacuteticos os conteuacutedos relativos agrave Independecircncia no cinema tendem a ser menos numerosos mais superficiais e efecircmeros justamente por serem menos assumidamente informativos do que os dos livros embora isso possa encontrar alguma compensaccedilatildeo em uma linguagem visual de forte apelo emotivo Para todos os efeitos como aponta um estudioso da mateacuteria os filmes de temaacutetica histoacuterica carregam sempre certa ambiguidade ocupam uma espeacutecie de ldquoentrelugarrdquo com forccedila para criar ldquoverdadesrdquo socialmente aceitas108 Nos cinco filmes aqui considerados109 as ldquoverdadesrdquo sobre a Independecircncia tendem a replicar linhas de forccedila jaacute conhecidas mesclando temporalidades correspondentes tanto aos momentos em que foram pro-duzidos quanto aos momentos posteriores em que foram sendo exibidos110

Independecircncia ou Morte produccedilatildeo a serviccedilo das comemoraccedilotildees oficiais do sesquicentenaacuterio da Independecircncia levadas a cabo pelo go-verno ditatorial brasileiro em 1972 mostra uma narrativa de forte teor didaacutetico-pedagoacutegico sem grandes pretensotildees artiacutesticas expliacutecitas111 com diaacutelogos e situaccedilotildees muitas vezes retirados de obras sobre a Independecircncia e tratados de forma literal Sua finalidade eacute clara ldquoensinarrdquo aos especta-dores uma histoacuteria e uma memoacuteria coletivas homogecircneas aplainadas de pluralidades ou de desavenccedilas Uma histoacuteria supostamente indiscutiacutevel porque verdadeira posta a serviccedilo dos tambeacutem supostos interesses mais elevados da naccedilatildeo brasileira (por isso nela a vida privada dos persona-gens eacute toda submetida agrave sua funccedilatildeo poliacutetica inclusive no caso da relaccedilatildeo afetiva entre um D Pedro de boa aparecircncia querido do povo e mulherengo e uma ambiciosa romacircntica e sensiacutevel Domitila112) Uma espeacutecie de cartilha oficial da Independecircncia em imagens na qual se faz presente ateacute mesmo uma recomposiccedilatildeo cecircnica do quadro de Pedro Ameacuterico

Eacute interessante observar como Os Inconfidentes produzido no mesmo ano de 1972 mesmo sendo um filme amparado em abundantes liberdades e experimentos esteacuteticos cheio de ambiguidades propositais e contra-pondo-se ao oficialismo histoacuterico tatildeo em voga agrave eacutepoca por meio de uma metaacutefora na qual os contestadores agrave ditadura brasileira se convertem em sediciosos das Minas Gerais do seacuteculo XVIII natildeo se configura como mate-rial singular e discrepante de Independecircncia ou Morte em pelo menos trecircs sentidos primeiro porque em vaacuterios momentos associa a Inconfidecircncia Mi-neira com a Independecircncia do Brasil a exemplo do que Independecircncia ou Morte prega jaacute em seu primeiro texto didaacutetico113 Segundo porque tambeacutem oficializa eventos convencionalmente tidos por fundacionais da histoacuteria do Brasil (soacute que natildeo os de 1808-1822 mas os de 1788-1789) Terceiro reforccedila a prevalecircncia de indiviacuteduos sobre coletividades da imagem de um heroacutei central da trama e de uma oposiccedilatildeo de interesses maniqueiacutesta que certamente poderia se aplicar com mais rigor ao contexto em que foi feito o filme do que agravequele ao qual formalmente se refere Assim para todos os efeitos substratos de uma concepccedilatildeo de histoacuteria satildeo em ambos convergentes Em um ambiente social multifacetado em termos de no-

cada dentro do programa dominical Fantaacutestico da Rede Globo de Televisatildeo A seacuterie foi baseada no livro Brasil uma Histoacuteria de Eduardo Bueno jornalista que tambeacutem atua na seacuterie (youtubecomwatchv=3LzGKt9Pd0M acesso em 27032014)

103SETUacuteBAL Paulo As Maluquices do Imperador

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1927 CALADO Ivanir A Imperatriz no Fim do Mundo memoacuterias duacutebias de Ameacutelia de Leichtenberg Rio de Janeiro Rio Fundo Editora 1992 e TORERO Joseacute Roberto Galantes memoacuterias e admiraacuteveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes o Chalaccedila Satildeo Paulo Companhia das Letras 1994

104A trama e a narrativa do Quinto dos Infernos

recusam explicitamente a inserccedilatildeo de quaisquer componentes que natildeo os da ordem privada de seus convencionais personagens assim questotildees poliacuteticas satildeo sempre menores do que o apetite sexual de Carlota Joaquina as perversotildees de D Miguel ou a fogosidade de Domitila a economia soacute surge em pontuais pretextos cocircmicos enquanto a escravidatildeo eacute referida exclusivamente por meio de alegres e libidinosas criadas (negras) permanentemente dispostas a servirem aos desejos do heroacutei da histoacuteria D Pedro

105A anaacutelise poderia se completar com a minisseacuterie

A Marquesa de Santos dirigida por Ary Coslov e exibida pela extinta Rede Manchete de televisatildeo em 1984 agrave qual infelizmente natildeo se obteve acesso satisfatoacuterio

106Tal predileccedilatildeo pode ser entendida como mais

um fator caracteriacutestico de um momento em que a articulaccedilatildeo entre aquilo que Guy Debord chamaria de ldquosociedade do espetaacuteculordquo e Adorno e Horkheimer (dentre muitos outros) de ldquoinduacutestria culturalrdquo torna sintomaacutetico a saliecircncia do indiviacuteduo e o esvaziamento da esfera puacuteblica

107A comprovaccedilatildeo do encontro concorrente entre

dois caminhos vem do depoimento de alguns dos proacuteprios envolvidos com a produccedilatildeo do Quinto dos Infernos como o diretor Carlos Lombardi que a ele se refere como ldquoum painel dos personagens importantes do periacuteodordquo Para o produtor Wolf Maia seu objetivo foi ldquorecontar com humor uma velha histoacuteriardquo O ator Humberto Martins viu a seacuterie ldquocontar um pedaccedilo da nossa histoacuteria da histoacuteria do Brasil do nosso povo das nossas raiacutezes pateacutetica e engraccedilada tal como ela se mostra dentro desse produto poreacutem claro mesclada com uma boa dose de humorrdquo enquanto o protagonista Marcos Pasquim afirmou que ldquo[ao fazecirc-la] aprendi muita coisa que natildeo aprendi na escola eu vim aprender agora fazendo a pesquisa para fazer esse personagemrdquo Finalmente para a tambeacutem atriz Bruna Lombardi ldquoO lsquoQuintorsquo contou assim a histoacuteria que a Histoacuteria natildeo conta sabe como eacute as fraquezas da histoacuteriardquo Em ldquoDia de Fuacuteriardquo Pedro Bial e Eduardo Bueno reforccedilam seu discurso satiacuterico por meio de um verniz de verdade trazido pela citaccedilatildeo de documentos oficiais como o relato do Padre Belchior sobre o grito do Ipiranga Aleacutem disso seu discurso eacute elaborado sob o nome de tese logo bem se vecirc como seus propaladores (BialBueno) manipulam siacutembolos

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ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

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Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

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123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

30Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

31Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

32Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

33Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

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muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

36Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 9: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

13Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

No tocante a instruccedilatildeo formal os dados nacionais oficiais incidem sobre crianccedilas a partir de 10 anos de idade sendo que a amostragem rea-lizada focou em jovens a partir de 15 anos desse modo a aproximaccedilatildeo da amostragem com o perfil brasileiro partiu de uma retificaccedilatildeo dos nuacutemeros apresentados pelo IBGE36 E se em termos de renda familiar a amostragem mostrou clara inclinaccedilatildeo a um perfil excessivamente de classe meacutedia o mesmo pode-se dizer quanto agrave instruccedilatildeo formal que perfez um grupo mais escolarizado do que a meacutedia do paiacutes O principal problema aqui ocorre no baixo nuacutemero de entrevistados entre ldquosem instruccedilatildeo e fundamental incom-pletordquo (7 sendo a porcentagem nacional entre 44 e 50) em prol de um nuacutemero por demais elevado de indiviacuteduos que cursaram universidades (27 contra 9) as demais rubricas tambeacutem apresentam discrepacircncias 25 de entrevistados entre ldquofundamental completo e meacutedio incomple-tordquo (contra 19) e 23 entre ldquomeacutedio incompleto e superior incompletordquo (contra 26) A anaacutelise de todo o material obtido assim como das fontes primaacuterias levou em conta tais inclinaccedilotildees e como se veraacute mais adiante elas parecem ateacute mesmo reforccedilar algumas das conclusotildees aqui obtidas Ainda no mesmo quesito os dados do IBGE classificam os brasileiros de acordo com ldquorede de ensino que frequentavamrdquo quando da realizaccedilatildeo da coleta de dados sendo que o questionaacuterio abordou os entrevistados de acordo com frequecircncia em cursojaacute realizada37 Mesmo assim os nuacutemeros aqui disponiacuteveis serviram bem agrave constituiccedilatildeo da amostragem

Na segunda parte do questionaacuterio a obtenccedilatildeo do perfil cultural do entrevistado se deu a partir de uma identificaccedilatildeo de seu acesso agrave televisatildeo (se assiste caso positivo com qual frequecircncia que tipo de programas se em tevecirc aberta eou a cabo e quais os trecircs programas que mais assiste) leitura (se lecirc com frequecircncia que tipo de coisa e quais os uacuteltimos trecircs livros que leu) cinema e teatro (em ambos os casos apenas se costuma ou natildeo frequentar)38 Apoacutes tais perguntas que procuraram diagnosticar eventuais proximidades do entrevistado em relaccedilatildeo a fontes secundaacuterias da pesquisa o questionaacuterio introduziu a questatildeo especiacutefica de seu interesse pela Histoacuteria Foi entatildeo perguntado se ele se interessa ou natildeo por Histoacuteria e por qual (do Brasil geral ou outraqual) se busca informaccedilotildees sobre e em caso positivo onde (livros televisatildeo internet revistas cursos museus outroqual) e se nos uacuteltimos dois anos leu algo ou frequentou algum curso a respeito (em caso positivo qual) Tais perguntas foram elaboradas visando uma aproximaccedilatildeo realista com caracteriacutesticas que de modo hipo-teacutetico foram atribuiacutedas a essa cultura de histoacuteria no Brasil Por isso foram preteridas formas linguiacutesticas quiccedilaacute muito acadecircmicas em prol de outras que permitissem que o entrevistado se expressasse de modo a fornecer dados vaacutelidos daiacute por exemplo o uso da tradicional divisatildeo entre Histoacuteria do Brasil e Histoacuteria Geral (com abertura para identificaccedilatildeo de ldquooutrardquo qual-quer) de muito pouca serventia para os historiadores profissionais

Finalmente a terceira parte do questionaacuterio visou agrave obtenccedilatildeo de conteuacutedos diretamente relacionados agrave Independecircncia do Brasil valendo-se mais amplamente ainda dessa estrateacutegia de utilizaccedilatildeo de formas linguiacutes-ticas coloquiais assim como de perguntas cujas respostas seriam tanto dirigidas como abertas grau de interesse sobre a histoacuteria da Independecircncia do Brasil (nenhum pequeno meacutedio ou grande seguido de uma justificati-va) grau de conhecimento do tema (nenhum pouco razoaacutevel bom exce-lente) se procura se informar sobre (natildeo simcomo) e se estaacute lendo ou leu algo a respeito nos uacuteltimos dois anos (natildeo simo quecirc) Ou seja abriu-se a

03102012 pelo SBT Conforme a sinopse da emissora ldquobaseado no formato criado pela BBC The Greats o programa elege[u] aquele que fez mais pela naccedilatildeo que se destacou pelo seu legado agrave sociedade Diversos paiacuteses jaacute apontaram os seus maiores representantes Na Inglaterra Winston Churchill saiu vencedor Os italianos elegeram Leonardo da Vincirdquo (sbtcombromaiorbrasileiroprograma Acesso em 21032014) A escolha dos candidatos e a definiccedilatildeo de seus confrontos ndash os personagens iam se enfrentando programa a programa em caraacuteter eliminatoacuterio ndash foi feita pelo telespectador sendo o ldquocampeatildeordquo Chico Xavier seguido por Santos Dummont e pela princesa Isabel Semelhante mas de menor alcance foi a pesquisa realizada pela Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional divulgada em abril de 2008 que convocou ldquopara a tarefa de eleger os lsquoheroacuteisrsquo e os lsquovilotildeesrsquo do Brasil uma distinta seleccedilatildeo de historiadores professores jornalistas economistas poliacuteticos e artistas protegidos pelo anonimato para louvar e condenar quem bem entendessemrdquo Entre os mais bem avaliados estavam Rui Barbosa Machado de Assis e D Pedro II no polo oposto Meacutedici e Costa e Silva (revistadehistoriacombrsecaoreportagemranking-dos-brasileiros Acesso em 21032014)

40As palavras satildeo acordo comeacutedia continuaccedilatildeo

democracia ditadura drama elitespoderosos escravidatildeo Estados Unidos exeacutercito guerra heroiacutesmo Inglaterra invenccedilatildeo Joatildeo VI Joseacute Bonifaacutecio liberdade mudanccedila naccedilatildeo nascimento negociaccedilatildeo paz Pedro I Portugal povo revoluccedilatildeo Tiradentes tirania O entrevistado poderia incluir outra palavra qualquer que desejasse

41O questionaacuterio encerrava-se com a possibilidade

do entrevistado acrescentar livremente algo bem como a opccedilatildeo de identificaccedilatildeo nominal Um proveitoso desdobramento da pesquisa poderia resultar de uma anaacutelise de nuances e matizes de interessantes jogos discursivos presentes em muitas das respostas obtidas sobretudo no caso de uma expansatildeo numeacuterica da amostragem

42Quando em fevereiro de 2013 foram

amplamente divulgados resultados de pesquisas biomeacutedicas (com tentativas de conclusotildees tambeacutem histoacutericas) realizadas com os restos mortais de Pedro I Leopoldina e Ameacutelia realizadas por Valdirene Ambiel Cfr AMBIEL Valdirene do Carmo Estudos de arqueologia forense aplicados aos remanescentes humanos dos primeiros imperadores do Brasil depositados no monumento agrave Independecircncia 2013 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Arqueologia) Museu de Arqueologia e Etnologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2013 Aleacutem de procurar esclarecer se tais restos se encontravam depositados no Monumento agrave Independecircncia em Satildeo Paulo e diagnosticar o estado de conservaccedilatildeo dos mesmos Ambiel procurou chamar a atenccedilatildeo para as possiacuteveis causas da morte dos monarcas e sobre os procedimentos funeraacuterios com eles entatildeo utilizados Tais resultados foram divulgados pela imprensa nacional como ldquoverdadesrdquo sobre a famiacutelia imperial brasileira supostamente ausentes dos livros de histoacuteria ldquosegredosrdquo agora ldquoreveladosrdquo Por exemplo Pedro I tinha quatro

14Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

possibilidade de se chegar a dados de uma cultura de histoacuteria inclusive em suas negaccedilotildees em seus silecircncios e interdiccedilotildees Em seguida o questionaacuterio recorreu a um artifiacutecio muito presente no meio social sobre o qual incidiu foi pedido ao entrevistado que atribuiacutesse notas de um a dez para a impor-tacircncia que acha que a Independecircncia teve para a histoacuteria do Brasil e para a histoacuteria do mundo Nos historiadores profissionais em geral esses rankings com sua gigantesca capacidade de simplificar a realidade costumam despertar ojeriza no entanto para os demais agentes sociais dessa cultura pode significar uma forma uacutetil de representaccedilatildeo da realidade acostumados que estatildeo a ela em muitos aspectos de sua vida cotidiana39 Assim tambeacutem daqui pode-se extrair elementos para a anaacutelise de uma cultura de histoacuteria Jaacute as trecircs perguntas seguintes buscaram outra aproximaccedilatildeo foi pedido ao entrevistado que diante de uma lista de 28 palavras escolhesse as trecircs que acreditasse que mais combinam e as trecircs que menos combinam com a Independecircncia40 Tais palavras incidem sobre personagens fatos proces-sos conceitos e mitos constituindo um bom leque de possibilidades de aproximaccedilatildeo linguiacutestica e conceitual com formas de ver a Independecircncia presentes na sociedade inclusive por contemplarem vaacuterios antinocircmicos Por fim perguntou-se ao entrevistado se seria capaz de dizer as datas da chegada da corte portuguesa no Brasil da Independecircncia do Brasil da pri-meira Constituiccedilatildeo e da abdicaccedilatildeo de D Pedro I41 Aqui o intuito era aferir ateacute que ponto essa cultura de histoacuteria se organiza e se faz representar por marcos cronoloacutegicos convencionais bem como se enseja formas alternati-vas de historicizaccedilatildeo e temporalizaccedilatildeo

Desse modo por meio de estrateacutegias de abordagem complementares (graus de relaccedilatildeo ativa ou passiva diante do tema o peso de linguagens conceitos e informaccedilotildees formas temporais) o questionaacuterio procurou fazer convergirem possibilidades de posturas dos entrevistados em relaccedilatildeo agrave histoacuteria e agrave Independecircncia do Brasil bem como dimensotildees variadas e even-tualmente contraditoacuterias de tais posturas relacionando-as inclusive com as cinco perguntas baacutesicas que seriam posteriormente dirigidas agraves fontes secundaacuterias conforme enunciado ao final do item anterior

Apoacutes um curto periacuteodo de testes foram entrevistadas presencialmen-te 311 pessoas na cidade de Satildeo Paulo Grande ABC e interior do estado entre os dias 19 de setembro de 2012 e 02 de agosto de 2013 Propositada-mente foram evitadas as duas Semanas da Paacutetria desses anos bem como um periacuteodo de vinte dias de superexposiccedilatildeo midiaacutetica especiacutefica do tema42 As abordagens foram realizadas de modo direto em 994 das vezes em espaccedilos puacuteblicos tendo cada uma ndash com poucas exceccedilotildees -a duraccedilatildeo de cerca de sete minutos durante os quais evitou-se ao maacuteximo qualquer tipo de constrangimento direcionamento ou auxiacutelio nas respostas

O que foi possiacutevel obter nessas entrevistas Os entrevistados com-potildeem um grupo de forte contato com a televisatildeo (93 assistem com frequecircncia e 51 todos os dias sendo que 58 possuem tevecirc aberta e a cabo apenas 6 disseram natildeo assistir tevecirc) de leitores frequentes (78) e de assistentes a cinemas (58) e teatros (28) o que o aproxima de um perfil de classe meacutedia escolarizada conforme jaacute apontado anteriormente de todo modo haacute que se lembrar que em muitos outros aspectos relevan-tes esse eacute um grupo heterogecircneo Daiacute a importacircncia do fato de que 77 dos que o compotildeem disseram se interessar por histoacuteria (sendo que 60 afirmaram buscar informaccedilotildees a respeito) Esse eacute um nuacutemero alto ou bai-xo A questatildeo natildeo parece das mais importantes jaacute que de acordo com a

costelas quebradas quando morreu era mais baixo do que se supunha natildeo foi cremado mas enterrado acompanhado de porccedilotildees de terra de Portugal e com roupas de general com insiacutegnias portuguesas e natildeo brasileiras Leopoldina natildeo teve o fecircmur quebrado antes de morrer como acreditava-se ateacute entatildeo foi enterrada com a mesma roupa com que foi coroada imperatriz e seus brincos natildeo eram de ouro mas bijuterias de resina Jaacute Ameacutelia quando morreu tinha escoliose e osteoporose foi enterrada de preto e mumificada Na internet tais ldquorevelaccedilotildeesrdquo foram no total comentadas milhares de vezes ldquorecomendadasrdquo e em geral bem-recebidas (fotosestadaocombrmudanca-na-historia-dez-verdades-sobre-a-familia-imperial-que-nao-estao-nos-livros-de-historiagaleria70481949100htmpPosicaoFoto=1carousel acesso em 27032014 folhauolcombrfspcienciasaude94655-corpos-da-familia-imperial-sao-exumadosshtml acesso em 02042014 folhauolcombrfspcienciasaude94656-descoberta-mostra-abandono-de-d-leopoldina-diz-historiadorashtml acesso em 02042014 estadaocombrnoticiascidadessob-sigilo-dom-pedro-i-e-suas-duas-mulheres-sao-exumados-pela-primeira-vez9983670htm acesso em 02042014 vejaabrilcombrblogricardo-settitema-livreabertura-para-estudos-dos-sarcofagos-de-d-pedro-i-e-de-suas-duas-esposas-e-fato-extraordinario-parabens-ao-estadao-por-divulgar-tudo acesso em 02042014 brnoticiasyahoocomexumaC3A7C3A3o-d-pedro-i-mulheres-reconta-histC3B3ria-115400981htmlgt acesso em 02042014 g1globocomciencia-e-saudenoticia201302cientistas-brasileiros-exumam-restos-mortais-de-d-pedro-i-e-suas-mulhereshtml acesso em 02042014 youtubecomwatchv=y8jcdXyx3hAgt acesso em 02042014 vestibularuolcombrresumo-das-disciplinasatualidadeshistoria-do-brasil-exumacao-traz-novidades-sobre-d-pedro-ihtm acesso em 02042014 ltgooglecombrsearchq= exumaC3A7C3A3o+de+dom+pedroampoq= exumaC3A7C3A3o+ampaqs= chrome469i57j0l55749j0j8ampsourceid= chromeampespv=210ampes_sm=93ampie=UTF-8gt acesso em 02042014 noticiasseuhistorycomexumacao-revela-detalhes-surpreendentes-da-vida-e-morte-de-d-pedro-i-e-suas-mulheresgt acesso em 02042014 istoecombrreportagens277892_A+VOLTA+DE+DOM+PEDRO+I acesso em 02042014 bahiaatualcomnoticiasexumacao-de-corpos-de-d-pedro-i-revela-detalhes-da-famiila-real acesso em 02042014 Site Uacuteltimo Segundo ldquoExumaccedilatildeo de D Pedro I e suas mulheres reconta a Histoacuteriardquo disponiacutevel em ultimosegundoigcombrciencia2013-02-19exumacao-de-dpedro-i-e-suas-mulheres-reconta-a-historiahtml acesso em 02042014 diariodepernambucocombrappnoticiaciencia-e-saude20130219internas_cienciaesaude424273restos-mortais-de-d-pedro-i-sao-exumados-para-realizacao-de-pesquisashtml acesso em 02042014 httpopiniaoenoticiacombrbrasilrestos-mortais-de-dom-pedro-i-sao-exumadosgt acesso em 02042014 noticiasbanduolcombrjornaldabandconteudoaspid=100000576688 acesso em 02042014

15Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

definiccedilatildeo aqui proposta de cultura de histoacuteria o desinteresse tambeacutem eacute um dado relevante pois traduz uma atitude em si e que dificilmente poderia ser considerada de modo absoluto (como pretender que esse desinteresse se traduza por exemplo em descaso com a proacutepria histoacuteria ou com a da famiacutelia Difiacutecil acreditar ser esse o caso de 23 dos entrevistados) Aleacutem disso bem sabemos que seu contraacuterio o interesse pode se manifestar de muitas maneiras que natildeo necessariamente encontram guarida em praacuteticas acadecircmicas e profissionais relacionadas ao estudo do passado tampouco que resultam em um estudo da histoacuteria minimamente organizado O que implica que os dois contraacuterios nem sempre estabeleceratildeo limites claros entre si diante da apreciaccedilatildeo geral de uma cultura de histoacuteria interesse e desinteresse pela histoacuteria podem flertar com muita proximidade bem como intercambiarem elementos regularmente

Observemos mais atentamente esse panorama Considerando-se tais caracteriacutesticas de uma cultura de histoacuteria como a brasileira perguntou-se a todos os entrevistados incluindo aos 23 que afirmaram natildeo se inte-ressar por histoacuteria por ldquoqual histoacuteriardquo poderia dizer que mais se interessa Aqui as respostas que de alguma forma se referem diretamente agrave histoacuteria do Brasil (ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo ldquoHistoacuteria geral e do Brasilrdquo ldquoHistoacuteria da nos-sa regiatildeordquo ldquoHistoacuteria do Brasil e andinardquo) perfazem 34 do total aiacute sim um nuacutemero relativamente baixo diante dos 66 que em suas respostas exclu-iacuteram o Brasil Portanto independentemente do interesse pela mateacuteria ser alto ou baixo a relaccedilatildeo com a Histoacuteria do Brasil parece gozar de especial desprestiacutegio Seraacute o desprezo pela histoacuteria nacional um dado da cultura de histoacuteria no Brasil43 Mais adiante quando da anaacutelise das outras fontes vol-taremos a esse ponto De todo modo tal desprestiacutegio evidentemente traraacute implicaccedilotildees para as posturas dos brasileiros em relaccedilatildeo agrave Independecircncia

A princiacutepio os entrevistados tendem a se interessar pouco pela Inde-pendecircncia do Brasil mas essa natildeo eacute uma tendecircncia absoluta se 39 tecircm ldquonenhumrdquo ldquopoucordquo ou ldquopequenordquo interesse 44 tem ldquomeacutediordquo e 17 ldquoentre meacutedio e granderdquo e ldquogranderdquo Ora em se tratando de uma cultura de histoacuteria dinacircmica e fluida com fronteiras pouco claras entre o interesse e o desinte-resse pela histoacuteria de modo geral (e a despeito da clara tendecircncia a um maior desinteresse pela Histoacuteria do Brasil) a Independecircncia eacute pouco interessante mas natildeo eacute inteiramente desprezada (apenas 11 declararam ldquonenhumrdquo inte-resse por ela cifra menor do que a dos grandes interessados)

Parece entatildeo haver espaccedilo aqui para diferentes formas de pensar representar e reinventar a Independecircncia do Brasil como verificar-se-aacute mais adiante de momento constata-se uma correspondecircncia estatiacutestica entre os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram ter dela ldquobomrdquo ou ldquoexcelenterdquo conhecimento (os de ldquonenhumrdquo ldquopoucordquo ou apenas ldquorazoaacutevelrdquo conhecimento compotildee os demais 83) e os 30 que afirma-ram buscar informaccedilotildees a respeito (sendo 60 os que buscam informaccedilotildees sobre histoacuteria em geral) Provavelmente trata-se de um subgrupo dos mais ativos no circuito de consumo-reproduccedilatildeo-criaccedilatildeo de toacutepicos relativos agrave Independecircncia na cultura de histoacuteria no Brasil Dentre esses 30 exclusi-vamente 305 afirmaram buscar informaccedilotildees sobre a Independecircncia em livros 291 na escola e nos livros didaacuteticos (evidentemente mais confina-dos ao puacuteblico jovem) 208 na internet 97 em raacutedio tevecirc eou jornais impressos e outros 97 ldquocom pessoas e lugares44 Os que responderam ler ou ter lido algo a respeito nos uacuteltimos dois anos foram 34 (os demais responderam ldquonatildeordquoldquonatildeo se lembrardquo ou natildeo responderam)

43Natildeo parece ser o caso da cultura histoacuterica

portuguesa de acordo com trabalhos recentes como os de PAIS Joseacute Machado Op Cit SOBRAL Joseacute Manuel Op Cit e MATOS Seacutergio Campos Consciecircncia histoacuterica e nacionalismo Portugal seacuteculos XIX e XX Lisboa Horizonte 2008

44A ausecircncia de menccedilotildees a outros tipos de suporte

de informaccedilotildees sobre a Independecircncia reforccedila a escolha das fontes secundaacuterias da pesquisa analisadas no proacuteximo item

45Embora seja muito frequente a consideraccedilatildeo de

que o principal marco fundacional da histoacuteria brasileira tenha sido o ldquodescobrimentordquo (isto eacute a chegada dos portugueses agrave Ameacuterica em 1500) e natildeo a ruptura poliacutetica entre Brasil e Portugal Muito provavelmente isso se conecta com uma tambeacutem muito frequente concepccedilatildeo da Independecircncia como ldquonatildeo-rupturardquo como processo negociado amigaacutevel e sem grandes solavancos Retornaremos agrave questatildeo

46Todas as 28 palavras oferecidas aos entrevistados

receberam no miacutenimo quatro menccedilotildees sendo que 22 tiveram mais de uma dezena de menccedilotildees a mesclarem termos que remetem a caracteriacutesticas atribuiacutedas agrave Independecircncia que ensejam relaccedilotildees diretas ou indiretas com ela ou que se referem a simples informaccedilotildees

47Foram feitas 310 menccedilotildees de termos positivos em

relaccedilatildeo agrave Independecircncia (liberdade democracia revoluccedilatildeo heroiacutesmo mudanccedila drama) contra 210 dos mesmos como natildeo combinando com ela essa tendecircncia eacute reforccedilada por 190 menccedilotildees a termos negativos que combinariam com ela (acordo escravidatildeo negociaccedilatildeo continuaccedilatildeo ditadura comeacutedia invenccedilatildeo tirania) sendo que os mesmos foram mencionados 391 vezes como natildeo combinando Esclarecer o caso de escravidatildeo pode ser referecircncia a uma realidade (em geral negativa) mas tambeacutem como metaacutefora poliacutetica Para todos os efeitos como mencionar o termo de outras maneiras

48148 escolhas incidiram sobre termos conflitivos

que com ela combinariam (guerra revoluccedilatildeo mudanccedila) contra 101 menccedilotildees a tais termos como natildeo combinando poreacutem tal tendecircncia se inverte nas 119 escolhas de termos paciacuteficos que com ela combinariam (paz acordo negociaccedilatildeo) contra 70 menccedilotildees aos mesmos como natildeo combinando

49Foram feitas 27 escolhas de povo como combinando

contra 22 do mesmo termo como natildeo combinando e 35 a elitepoderosos como combinando contra 14 em termos opostos o que indica certo equiliacutebrio tendente agrave segunda possibilidade

50Natildeo se pode deixar de mencionar algumas

outras palavras que natildeo se encontravam na lista mas foram acrescidas pelos entrevistados sendo portanto de menccedilatildeo espontacircnea As mais recorrentes combinando num sentido depreciativo foram ldquointeresserdquo e ldquocorrupccedilatildeordquo Outras palavras tais quais ldquounificaccedilatildeordquo ldquomorterdquo

16Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

A hipoacutetese da constituiccedilatildeo de um subgrupo ativo na cultura de histoacuteria por meio do tema da Independecircncia encontra respaldo nos resulta-dos do ranking do questionaacuterio para a importacircncia que ela teria tido para a Histoacuteria do Brasil 43 deram nota 10 e outros 31 notas entre 8 e 9 sendo que apenas 6 deram notas entre 0 e 4 ou natildeo souberam responder Ou seja mesmo quem natildeo se interessa pela Independecircncia ou pela Histoacute-ria do Brasil em geral tende a reconhecer o tema como sendo de grande importacircncia embora tal reconhecimento seja menor em se tratando de sua relaccedilatildeo com a Histoacuteria ldquoem geralrdquo (a essa pergunta 25 respondeu com nota 10 e outros 25 com notas 8 ou 9 em contraposiccedilatildeo a um elevado percentual de 22 que deu notas entre 0 e 4 ou natildeo soube responder) Ainda assim portanto a Independecircncia eacute fortemente valorizada por um percentual que extrapola os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram dela serem conhecedores ou os 20 que afirmaram buscar informaccedilotildees a seu respeito Valorizada poreacutem em meio ao que parece ser uma dificuldade de se pensaacute-la para aleacutem de sua tradicional circunscriccedilatildeo nacional (o que encontra como logo veremos enorme correspondecircncia nas fontes secundaacuterias) para aleacutem dos limites a ela convencionalmente impos-tos por tradiccedilotildees historiograacuteficas ainda fortes e mesmo por uma cultura de histoacuteria que tendo atributos fortemente nacionais tende a nela enxergar um marco fundacional importante isto eacute um marco diferenciador entre a histoacuteria do Brasil e a de outros paiacuteses45

O que nesse sentido nos mostram as escolhas de palavras que ldquocom-binamrdquo e ldquonatildeo combinamrdquo com a Independecircncia46 Em primeiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista mais em perspectiva positivaenalte-cedora do que negativadepreciativa47 Em segundo lugar a possibilidade da Independecircncia ser considerada tanto como rupturaconflitiva quanto como continuidadepaciacutefica48 Em terceiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista como algo menos popular do que elitista49 Em quarto e uacuteltimo lu-gar ateacute que ponto os entrevistados se mostraram conhecedores da histoacuteria 55 respostas indicaram termos informativos descabidos (Tiradentes combina D Pedro I D Joatildeo VI Joseacute Bonifaacutecio e Portugal natildeo) contra uma maioria de 190 menccedilotildees a tais termos de modo inverso Aqui os resultados podem indicar a prevalecircncia de um tipo de conhecimento de histoacuteria estruturado em personagens e trajetoacuterias individuais (como logo veremos as fontes secundaacute-rias tambeacutem referendaratildeo amplamente essa hipoacutetese)50

Na uacuteltima parte do questionaacuterio perguntou-se aos entrevistados acerca de datas de quatro eventos que podem ser considerados como marcos do processo de Independecircncia 68 responderam natildeo saber ou natildeo se lembrar da data da chegada da Corte portuguesa ao Brasil 13 deram respostas claramente erradas em muitas das quais (ldquomil e quinhentosrdquo ldquomil quinhentos e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo etc) natildeo obstan-te se vislumbra uma referecircncia adequada poreacutem tratada de modo equivo-cado e somente 9 souberam responder de modo preciso (ldquomil oitocentos e oitordquo) Diante da pergunta quanto agrave data da primeira constituiccedilatildeo do Brasil 85 disseram natildeo saber ou natildeo se lembrar 7 deram respostas claramente erradas (ldquomil e quatrocentosrdquo ldquomil quinhentos e oitentardquo) algumas das quais poreacutem se aproximando da evocaccedilatildeo de alguma consti-tuiccedilatildeo brasileira (ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquomil novecentos e trintardquo ldquomil novecentos e oitenta e oitordquo) e apenas 13 souberam responder com firmeza isto eacute com a presenccedila de ldquomil oitocentos e vinte e quatrordquo na resposta Jaacute a pergunta sobre a data

(em alusatildeo ao Grito) e ldquoprogressordquo enriqueceram a fileira dos termos valorativos

51Essa percepccedilatildeo eacute reforccedilada por alguns dos

dados obtidos por Purificaccedilatildeo Em meio a representaccedilotildees da Independecircncia produzidas por crianccedilas entre 09 e 13 anos encontram-se frases como ldquoQuando D Pedro viu terra gritou Independecircncia ou Morterdquo e ldquoPouco depois de descobrirem o Brasil gritaram a independecircnciardquo PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p40-41 Cabe lembrar que tais crianccedilas natildeo haviam tido ainda contato formal (na escola) com o tema da Independecircncia ldquoapenasrdquo por meio de uma cultura de histoacuteria a envolverem-nas

52O que parece impor uma urgente reflexatildeo em

torno dos efeitos do violento desprestiacutegio das referecircncias factuais que o sistema escolar impocircs ao ensino de Histoacuteria no Brasil das uacuteltimas deacutecadas O quecirc ademais natildeo parece uma situaccedilatildeo exclusivamente brasileira de acordo com a sugestatildeo que nos foi dada por Nuno Gonccedilalo Monteiro a ver aqui paralelismo com o ensino de Histoacuteria em Portugal

53Outras duas possibilidades promissoras seriam

analisar respostas a questotildees de vestibulares relativas agrave Independecircncia e entrevistas com professores e coordenadores pedagoacutegicos que de alguma forma lidem com o tema no cotidiano escolar

54MORENO Jean Carlos Limites escolhas e

expectativas horizontes metodoloacutegicos para anaacutelise dos livros didaacuteticos de histoacuteria Antiacuteteses Londrina v5 n10 p729 juldez2012

55O que eacute atestado por exemplo pela recente

consolidaccedilatildeo da presenccedila nos livros didaacuteticos de toacutepicos relativos agrave Histoacuteria do continente africano

56Dos 49 autores de livros didaacuteticos aqui

considerados 36 satildeo identificados pelos termos ldquomestrerdquo ldquodoutorrdquo ou ldquoprofessor universitaacuteriordquo O que natildeo significa como eacute bem sabido que tais autores sejam integralmente responsaacuteveis pelo conteuacutedo de suas obras

57MORENO Jean Carlos Op Cit p724

58Segundo dados oficiais somente no ano de

2012 esse governo comprou cerca de 408 milhotildees de livros didaacuteticos para os anos do Ensino Meacutedio (Assessoria de Comunicaccedilatildeo Social do FNDE 24 de agosto de 2012)

59Sua produccedilatildeo no entanto eacute regionalmente

concentrada na seleccedilatildeo das coleccedilotildees de didaacuteticos feita pelo MEC em 2010 oito editoras de Satildeo Paulo responderam por 842 da produccedilatildeo aprovada enquanto trecircs de Curitiba ficaram com os 158 restantes

60DIAS Adriana M GRINBERG Keila e

PELLEGRINI Marco Novo Olhar Histoacuteria v2 Satildeo

17Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

da abdicaccedilatildeo de D Pedro I foi a campeatilde em respostas imprecisas 92 dis-seram natildeo saber ou natildeo se lembrar 16 deu respostas erradas e apenas 12 soube responder ldquomil oitocentos e trinta e umrdquo

E quanto agrave data da Independecircncia do Brasil Em comparaccedilatildeo com as perguntas anteriores esta obteve respostas de qualidade superior natildeo obstante um nuacutemero ainda alto de respostas ldquonatildeo souberdquo e ldquonatildeo lembrardquo 33 dos entrevistados Haacute que se lembrar inclusive que desde a segunda parte do questionaacuterio o entrevistado jaacute sabia tratar-se de algo focado na Independecircncia ou seja se nas demais perguntas pode-se dizer que ele foi pego totalmente surpresa nesta natildeo Por isso e se considerarmos ainda os 14 que deram respostas claramente erradas a esta pergunta (ldquomil e qui-nhentosrdquo ldquovinte e um de abril de mil e quinhentosrdquo ldquovinte e dois de abril de mil e quinhentosrdquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquovinte e um de abrilrdquo ldquovinte e dois de abrilrdquo ldquonove de julhordquo) chega-se a um total de 47 de pessoas incapazes de dizer quando ocorreu a Independecircncia do Brasil Por outra parte os que souberam responder (ldquosete de setembro de mil oito-centos e vinte e doisrdquo ou ldquomil oitocentos e vinte e doisrdquo) chegaram a 16 iacutendice muito proacuteximo das dimensotildees do hipoteacutetico grupo de interessados e razoaacuteveis conhecedores da Histoacuteria da Independecircncia referido alguns paraacutegrafos acima

Trata-se de um nuacutemero elevado ainda mais se reafirmarmos que a Independecircncia natildeo eacute jamais completamente ignorada em meio agrave cultura brasileira de histoacuteria De certo modo sim mas natildeo deve escapar agrave obser-vaccedilatildeo de ningueacutem que nessa pergunta especiacutefica a confusatildeo de datas se daacute dentro de referecircncias histoacutericas e cronoloacutegicas bastante demarcadas a Independecircncia o ldquodescobrimento do Brasilrdquo Tiradentes e a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica todos eles marcos fundacionais em uma memoacuteria histoacuteri-ca oficial logo fundamentais na constituiccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil51 Tais resultados indicam preliminarmente a precariedade da concepccedilatildeo de histoacuteria ndash da Independecircncia em particular - segundo formas convencionais de organizaccedilatildeo cronoloacutegica e isso a despeito dessa socieda-de ser permeada e carregada de referecircncias cronoloacutegicas que organizam a vida das pessoas em muitos de seus interstiacutecios (vida familiar vida profis-sional praacuteticas de lazer e de culto etc) Pouquiacutessimas respostas ndash esta-tisticamente despreziacuteveis -parecem esboccedilar a forja de alguma modalidade alternativa de organizaccedilatildeo temporal da histoacuteria (ldquoquase duzentos anosrdquo ldquomil oitocentos e alguma coisardquo ou ldquoD Pedro saiu para brigar com o irmatildeo e deixou D Pedro IIrdquo) diante do quecirc ganha forccedila a hipoacutetese de uma enorme e generalizada dificuldade apresentada por essa sociedade no manejo de recursos baacutesicos de historicizaccedilatildeo da histoacuteria como a cronologia52

Ateacute aqui as conclusotildees a que se pode chegar ainda satildeo excessiva-mente parciais extraiacutedas apenas da sondagem de opiniatildeo conveacutem no entanto sumarizaacute-las de modo a reforccedilaacute-las como hipoacuteteses capazes de nortear a anaacutelise vindoura Segundo o que nos mostram os entrevistados a Independecircncia eacute pouco frequentada por muitos mas assiduamente por um grupo razoaacutevel (seratildeo seus membros os uacutenicos capazes de pensaacute-la segundo marcos cronoloacutegicos) eacute amplamente considerada tema da maior importacircncia para a Histoacuteria do Brasil e de menor importacircncia para a His-toacuteria do Mundo ela eacute menos interessante do que outros temas (quais natildeo sabemos) assim como a Histoacuteria do Brasil eacute menos do que a Histoacuteria Geral mas tende a ser vista como algo respeitaacutevel eventualmente positivo para o Brasil o que parece evocar um imaginaacuterio oficial ainda muito vigente de

Paulo FTD 2010 ALVES Alexandre e OLIVEIRA Letiacutecia F de Conexotildees com a Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Moderna 2010 PEDRO Antocircnio e LIMA Lizacircnias de Souza Histoacuteria sempre presente v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VICENTINO Claacuteudio R e DORIGO Gianpaolo F Histoacuteria Geral e do Brasil v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FIGUEIRA Divalte G Histoacuteria em foco v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2011 NOGUEIRA Fausto G e CAPELLARI Marcos Ser protagonista Histoacuteria 2ordm ano do Ensino Meacutedio Satildeo Paulo Ediccedilotildees SM 2010 BURITTI Flaacutevio Caminhos do Homem v2 Curitiba Base Editorial 2010 CAMPOS Flaacutevio de CLARO Regina A escrita da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 COTRIM Gilberto Histoacuteria Global Brasil e Geral v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 AZEVEDO Gislane C e SERIACOPI Reinaldo Histoacuteria em movimento v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2010 MORENO Jean Carlos e GOMES Sandro V Histoacuteria cultura e sociedade v3 Curitiba Positivo 2010 FERREIRA Joatildeo Paulo e FERNANDES Luiz Estevam Nova Histoacuteria integrada v2 2a ed Curitiba Moacutedulo 2010 MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Histoacuteria Geral e Brasil v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam B Histoacuteria Das cavernas ao terceiro milecircnio v2 2a ed Satildeo Paulo Moderna SANTIAGO Pedro CERQUEIRA Ceacutelia e PONTES Maria Aparecida Por dentro da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 MOCELLIN Renato e CAMARGO Rosiane Histoacuteria em debate v2 Satildeo Paulo Editora do Brasil 2010 CATELLI Jr Roberto GANDINI Mariacutea Soledad M e ASPIS Renata L Histoacuteria texto e contexto v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FARIA Ricardo de M MIRANDA Mocircnica Liz e CAMPOS Helena Estudos de Histoacuteria v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010

61PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit

62Conforme observou o Guia de livros didaacuteticos

PNLD 2012 Histoacuteria 17 das coleccedilotildees aprovadas adotaram a perspectiva da Histoacuteria Integrada na qual se expotildee o conteuacutedo histoacuterico a partir da ldquosequecircncia cronoloacutegica de base europeiardquo havendo o predomiacutenio da ldquoHistoacuteria Geral eurocecircntricardquo linear Os assuntos sobre a Histoacuteria da Ameacuterica e do Brasil estatildeo intercalados nesta grande Histoacuteria Geral As outras duas coleccedilotildees optaram pelo formato temaacutetico organizando os assuntos ldquoem torno de muacuteltiplos espaccedilos e temporalidadesrdquo mas guiados por um eixo cronoloacutegico Guia de livros didaacuteticos PNLD 2012 Histoacuteria Op Cit p 18-19

63Uma afirmaccedilatildeo tiacutepica ldquoO nascimento do

Brasil como paiacutes independente encontra-se dentro do contexto de crise do Antigo Regime e do sistema colonial mercantilistardquo VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p89 Os paradigmas historiograacuteficos a que tal tipo de afirmaccedilatildeo remete satildeo evidentemente as obras de Caio Prado Juacutenior e Fernando Novais jaacute amplamente presentes tambeacutem nos livros de Ensino Fundamental PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit cap3

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glorificaccedilatildeo da Independecircncia laudatoacuterio e a destacar seus personagens centrais No entanto tal tendecircncia encontra obstaacuteculo em outras contraacute-rias minoritaacuterias mas natildeo despreziacuteveis a verem a Independecircncia como algo pouco ou nada importante uma histoacuteria restrita espacialmente e socialmente e mais de continuidades do que de rupturas

Assim jaacute eacute possiacutevel afirmar que a Independecircncia enseja disputas a seu respeito em torno de suas representaccedilotildees e memoacuterias oficiais ou natildeo Muito provavelmente alguns dos motivos que explicam sua rejeiccedilatildeo por muitos explicam igualmente sua ativa e entusiasmada frequecircncia por um grupo menor Em uma terceira via ela jamais deixou de ser pensada e divulgada em perspectivas complexas fortemente criacuteticas e analiacuteticas Para todos os efeitos a Independecircncia contribui sem duacutevida para tipificar uma cultura de histoacuteria no Brasil plural variada e apenas parcialmente organizada em padrotildees cronoloacutegicos (temporais) na qual ocupa um papel central e da qual irradiam outros elementos valiosos para um melhor en-tendimento dessa mesma cultura

4 ndash A Independecircncia nas escolas A principal fonte de fomento e irradiaccedilatildeo de atitudes do brasileiro diante da Independecircncia eacute o sistema escolar com sua diversidade de agentes es-paccedilos procedimentos materiais e valores Aqui seraacute analisado apenas um componente prenhe de significados desse sistema o livro didaacutetico53

Segundo um estudioso da mateacuteria os autores de livros didaacuteticos de Histoacuteria em geral ndash grupo no qual ele mesmo estaacute incluiacutedo -ldquonatildeo tecircm por objetivo somente transpor a Histoacuteria acadecircmica eles identificam necessi-dades sociais estatildeo imersos na sociedade e portanto na proacutepria histoacuteria sobre a qual escrevemrdquo54 Tais livros satildeo assim documentos privilegiados de uma cultura de histoacuteria trazem conteuacutedos de acordo com padrotildees e paracircmetros de uma sociedade agrave qual servem sendo inclusive cada vez mais sensiacuteveis a impulsos de origem natildeo acadecircmica55 contam com a colaboraccedilatildeo ou autoria de historiadores profissionais56 que trabalham junto a editores assistentes revisores iconoacutegrafos diagramadores e designers graacuteficos57 satildeo consumidos preferencialmente por educadores e educandos mas chegam tambeacutem agraves famiacutelias destes e ao puacuteblico em geral tendem a permanecer por algum tempo disponiacuteveis em salas de aula residecircncias livrarias e bibliotecas e satildeo fortemente condicionados pelas exigecircncias de um grande mercado editorial cujas demandas capi-talistas natildeo satildeo menos evidentes do que as pedagoacutegicas O livro didaacutetico eacute o segundo suporte de leitura mais lido no Brasil sendo sua produccedilatildeo o mais lucrativo negoacutecio de uma induacutestria editorial brasileira que tem no governo federal seu maior cliente58 Essa produccedilatildeo dos livros didaacuteticos movimenta enormes cifras veicula paacuteginas e paacuteginas de conteuacutedos de Histoacuteria produzidos por e destinados a um amplo conjunto de agentes sociais e tecircm circulaccedilatildeo nacional59

A Independecircncia estaacute presente em todos os 21 livros destinados ao Ensino Meacutedio aqui considerados60 assim como estava em outros 12 de Ensino Fundamental contemplados por um estudo acadecircmico a respeito61 Nessa dupla frente abre-se uma possibilidade de anaacutelise valiosa jaacute que alguns livros circulam atualmente enquanto outros circularam agrave eacutepoca em que jovens adultos que hoje tecircm entre 22 e 26 anos eram crianccedilas entre 9 e 13 Unem-se assim duas temporalidades de tratamentos da Independecircn-cia que podem ser unificadas por uma cultura de histoacuteria

64Exemplo eacute a afirmaccedilatildeo de que ldquoem

reconhecimento agrave importacircncia da Batalha do Jenipapo como um episoacutedio fundamental no processo de independecircncia e de consolidaccedilatildeo do territoacuterio a data de 13 de marccedilo de 1823 foi estampada na bandeira do estado do Piauiacuterdquo DIAS Adriana GRINBERG Keila e PELLEGRINI Marco Op Cit p240

65Excelente demonstraccedilatildeo eacute dada por uma

proposta pedagoacutegica de um jogo didaacutetico elaborado pelo Laboratoacuterio de Ensino de Histoacuteria da Universidade Federal de Pelotas descrita em GASPAROTTO Alessandra ESPIacuteRITO SANTO Marco Viniacutecio do SILVA Eduarda Borges da Jogo didaacutetico vira-vira a metroacutepole vira colocircnia a colocircnia vira-metroacutepole Revista Latino-Americana de Histoacuteria v2 n6 agosto de 2013 (Ediccedilatildeo Especial) p648-661

66Os preferidos satildeo D Joatildeo Carlota Joaquina Joseacute

Bonifaacutecio e D Pedro

67Um exemplo apoacutes afirmar que ldquodurante anos a

historiografia oficial tentou idealizar o processo de independecircncia e seus autores explicado como um ato de heroiacutesmo contra a tirania e em defesa da liberdaderdquo uma das obras afirma em tom de contraposiccedilatildeo ldquoMas nas uacuteltimas deacutecadas novos estudos permitiram lanccedilar um novo olhar sobre esse periacuteodo Expressotildees dessa mudanccedila satildeo algumas produccedilotildees culturais recentes que tratam desse momento com uma visatildeo criacutetica e ateacute mesmo sarcaacutestica como por exemplo o romance O Chalaccedila (1999) de Joseacute Roberto Torerordquo Por fim propotildee como ldquoSugestatildeo de atividaderdquo supostamente para aguccedilar o senso criacutetico do aluno ldquocomparar o romance de Torero citado acima com a visatildeo oficial dos eventos fornecida pela ceacutelebre pintura Independecircncia ou morte (O Grito do Ipiranga) de Pedro Ameacuterico ou pelo filme Independecircncia ou morte (1972) de Carlos Coimbrardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p80-81) Aleacutem de ignorar os momentos objetivos e naturezas distintos das obras recomendadas tal atividade sugere a ultrapassagem de uma visatildeo ldquotradicionalrdquo da Independecircncia por outra ldquocriacuteticardquo ndash logo mais aceitaacutevel Assim o aluno eacute encorajado a conceber a histoacuteria por meio de sua livre-interpretaccedilatildeo mas sendo impelido a endossar a de um romance satiacuterico (logo voltaremos a ele)

68Em um livro para o Ensino Fundamental de

1996 lia-se que ldquopara a realizaccedilatildeo do nosso trabalho foi importante a participaccedilatildeo de Mariana Massarani artista que desenhou com alegria e bom humor os acontecimentos estudadosrdquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Do mundo indiacutegena ao periacuteodo regencial no Brasil Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1994 p1 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p79) Essa eacute uma tendecircncia antiga como nos mostra o poema de Murilo Mendes ldquoA pescariardquo (publicado em Histoacuteria do Brasil de 1932) evocativo da tatildeo ceacutelebre quanto historicamente irrelevante disenteria de D Pedro em 7 de setembro de 1822 e transcrito em outro didaacutetico ldquoFoi nas margens

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Natildeo haacute duacutevida que a maioria dos livros didaacuteticos de Histoacuteria voltados ao Ensino Meacutedio abre possibilidades de construccedilatildeo de um conhecimento acerca da Independecircncia multifacetado matizado criacutetico e criterioso e deles pode-se extrair muitos exemplos a revelarem diaacutelogos propositi-vos entre saberes acadecircmicos e didaacuteticos da Histoacuteria (afinal os proacuteprios autores e avaliadores dos livros estatildeo quase todos diretamente ligados ao meio acadecircmico) aliaacutes em comparaccedilatildeo com os de Ensino Fundamental de cerca de uma deacutecada atraacutes essas possibilidades soacute cresceram Poreacutem como natildeo eacute objetivo deste estudo analisar tais livros em si mesmos -somente deles extrair elementos que tipifiquem uma cultura de histoacuteria por meio da Independecircncia ndash mais relevantes parecem ser justamente alguns de seus pontos sensiacuteveis nos quais tais livros se fazem menos acadecircmicos e nos quais se traduzem de modo mais significativo componentes mais amplos da sociedade que lhes daacute sentido

Em todos esses livros a Independecircncia eacute invariavelmente vista como parte de um processo mais amplo no qual se incluem outros acontecimen-tos poliacuteticos americanos e europeus de finais do seacuteculo XVIII e comeccedilos do seacuteculo XIX (embora quase nunca sejam feitas conexotildees fundamentais entre eles deficiecircncia notaacutevel sobretudo no tocante agraves independecircncias da Ameacuterica espanhola vistas sempre como supostos contraexemplos da Independecircncia do Brasil62) O episoacutedico se faz presente na menccedilatildeo a vaacuterios temas menores ndash a vinda da Corte a abertura dos Portos o governo de D Joatildeo no Rio de Janeiro a Revoluccedilatildeo de Pernambuco a Revoluccedilatildeo do Porto etc ndash mas sempre em observacircncia a contextos histoacutericos espaciais e temporais mais amplos63 Destaque-se que 80 dos livros fazem referecircncia expliacutecita ao termo ldquoguerra(s) de independecircnciardquo64 o que enseja uma con-cepccedilatildeo tambeacutem multirregional do tema e vaacuterios o aprofundam O mesmo pode ser dito de perfis biograacuteficos presentes mas submetidos a uma loacutegica processual da Histoacuteria

Essa ecircnfase em processos em detrimento parcial de acontecimentos e personagens eacute importante indiacutecio de uma sintonia entre saberes aca-decircmicos e natildeo acadecircmicos65 Contudo deve-se relativizar o peso desse diaacutelogo jaacute no que tange ao tratamento dispensado agraves biografias aleacutem de pouco ou nada inovarem na escolha dos personagens destacados66 alguns livros didaacuteticos trazem fragmentos anedoacuteticos de tais trajetoacuterias hoje em dia pouco ou nada uacuteteis a historiadores profissionais (embora as comilan-ccedilas de D Joatildeo os amantes de D Carlota ou as noitadas de D Pedro natildeo os distingua de outros agentes histoacutericos de sua eacutepoca tampouco satildeo trata-dos como tiacutepicos67) Parece razoaacutevel argumentar que ao menos parcial-mente tal insistecircncia da parte do livro didaacutetico atende ao gosto do leitorconsumidor tornando tais suportes materiais mais agradaacuteveis e sedutores assim sendo constata-se justamente um limite no diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e saberes didaacuteticos expressos em tais livros bem como se anuncia uma tendecircncia de representaccedilatildeo humoriacutestica do passado em uma cultura de histoacuteria como a brasileira muito forte em outros suportes68 Eis um mercado ndash que no Brasil mescla dimensotildees editoriais e midiaacuteticas com outras educacionais e culturais mais amplas ndash impondo seus padrotildees de representaccedilatildeo do passado

Aleacutem de envolverem historiadores profissionais em sua produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo os livros didaacuteticos de Ensino Meacutedio parecem esforccedilar-se cada vez mais em trazer conteuacutedos extraiacutedos de obras acadecircmicas bem como apresentar ao leitor uma pluralidade de posiccedilotildees acerca de um determina-

do IpirangaEm meio a uma pescariaSentindo-se mal D PedroComera demais cuscuzDesaperta a braguilhaE grita roxo de raivaOu me livro desta coacutelicaOu morro logo de uma vezO priacutencipe se aliviouSai no caminho cantandoJaacute me sinto independenteSafa Vou de perto a morteVamos cair no fadinhoPra celebrar o sucessordquo MACEDO Joseacute Rivair Brasil ndash uma histoacuteria em construccedilatildeo Satildeo Paulo Brasil 1996 p166 Cit por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p101

69Tomemos por exemplo esta afirmaccedilatildeo ldquoDe acordo

com alguns historiadores as raiacutezes da independecircncia brasileira estatildeo na segunda metade do seacuteculo XVIII quando se multiplicaram atividades produtivas e comerciais na colocircnia sobretudo na regiatildeo Centro-Sulrdquo (MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Op Cit p113) Nela eacute possiacutevel reconhecer a presenccedila de influente e importante interpretaccedilatildeo acadecircmica acerca da Independecircncia do Brasil (DIAS Maria Odila A interiorizaccedilatildeo da metroacutepole (1808-1853) In MOTA Carlos Guilherme 1822 dimensotildees Satildeo Paulo Perspectiva 1972 p160-184) no entanto natildeo eacute apresentada qualquer contraposiccedilatildeo (se esta posiccedilatildeo eacute da parte de ldquoalguns historiadoresrdquo outra divergente deve ser da parte de outros) Mais adiante lecirc-se que ldquoo fato relevante foi que a transferecircncia da corte para o Brasil provocou uma inversatildeo histoacuterica de modo significativo e irreversiacutevel nas relaccedilotildees entre a metroacutepole portuguesa e a colocircnia brasileirardquo (Idem p114) Ora o que seria uma inversatildeo irreversiacutevel dessas relaccedilotildees Portugal teria se tornado para sempre colocircnia do Brasil

70Nos livros didaacuteticos de Ensino Fundamental

analisados por Purificaccedilatildeo jaacute eram abundantes as transcriccedilotildees de trechos de textos de historiadores profissionais sem que deles resultasse qualquer ensejo de pluralidade de pensamento ou de estiacutemulo agrave interpretaccedilatildeo

71VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA

Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p 103

72O capiacutetulo 14 de uma das obras intitulado

ldquoO processo de independecircncia da Ameacuterica portuguesardquo inicia-se com um excerto do Romanceiro da Inconfidecircncia de Ceciacutelia Meireles tambeacutem indutor a essa interpretaccedilatildeo ldquoAtraveacutes de grossas portas sentem-se luzes acesas e haacute indagaccedilotildees minuciosas dentro das casas fronteiras Que estatildeo fazendo tatildeo tarde Que escrevem conversam pensam Mostram livros proibidos Leem notiacutecias nas GazetasTeratildeo recebido cartasde potecircncias estrangeiras [] Oacute vitoacuterias festas flores das lutas da Independecircncia Liberdade ndash essa palavra que o sonho humano alimenta que natildeo haacute ningueacutem que explique e ningueacutem que natildeo entendardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p 202) Jaacute nas ldquosugestotildees de leitura e consulta para o professorrdquo de outra encontra-se indicaccedilatildeo de uma obra de J J Chiavenato - Inconfidecircncia mineira as vaacuterias faces Satildeo Paulo Global 2000 - com este comentaacuterio ldquoo autor mostra o movimento que buscava a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Adotando uma abordagem que parte da realidade socioeconocircmica do periacuteodo este livro releva diferentes aspectos desse momento singular da histoacuteria brasileirardquo (NOGUEIRA Fausto

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do toacutepico que seja decorrente de debates acadecircmicos No entanto ainda eacute frequente que tais conteuacutedos se inclinem agrave pura formalidade dificilmente explicitando divergecircncias oriundas da academia ou resultando em uma tomada de posiccedilatildeo realmente criacutetica perante a histoacuteria69 Ao usuaacuterio do livro eacute apresentada uma suposta pluralidade de pensamento natildeo como ferramenta de obtenccedilatildeo dessa pluralidade mas como estilo de composiccedilatildeo e padronizaccedilatildeo do material didaacutetico70

Esse tipo de atitude formalista pode ser encontrada tambeacutem em propostas de atividades dirigidas ao aluno como esta

A interpretaccedilatildeo sobre a independecircncia do Brasil provocou e ainda provoca muitas divergecircncias Sob o ponto de vista econocircmico alguns pesquisadores defendem que a separaccedilatildeo ocorreu de fato em 1808 [] Outros com interpretaccedilotildees mais poliacuteticas indicam o 7 de setembro de 1822 embora nenhuma medida formal tenha sido tomada nessa data ndash foi um ato simboacutelico Depois da Guerra do Paraguai jornais republicanos argumentavam que [] D Pedro havia atendido aos apelos de independecircncia dos brasileiros mas os teria traiacutedo quando fechou a Assembleia Constituinte em 1823 Enalteciam entatildeo a Inconfidecircncia Mineira (1789) a Revoluccedilatildeo Pernambucana (1817) e a Confederaccedilatildeo do Equador (1824) movimentos com teor republicano conforme as reais aspiraccedilotildees dos brasileiros

Satildeo vaacuterias interpretaccedilotildees que variam de acordo com a posiccedilatildeo poliacutetica ou momento histoacuterico dos autores Alguns intelectuais consideram ateacute mesmo que o Brasil hoje tem uma independecircncia mais nominal do que real pois continuaria dependente dos paiacuteses mais ricos

Em sua opiniatildeo quando o Brasil se tornou um paiacutes independente71

Aqui novamente eacute apresentada uma divergecircncia de interpretaccedilatildeo e vaacuterias satildeo as possibilidades de resposta agrave pergunta quando o Brasil se tornou um paiacutes independente No entanto todas as posiccedilotildees apresentadas parecem equivaler-se pois tudo depende da ldquoposiccedilatildeo poliacuteticardquo ou ldquodo mo-mento histoacutericordquo da pessoa disposta a respondecirc-la Assim e por induccedilatildeo a Inconfidecircncia Mineira poderia ser uma resposta aceitaacutevel conforme visatildeo ainda presente em alguns livros72 e a despeito do contraacuterio que historia-dores vecircm afirmando nas uacuteltimas deacutecadas Do mesmo modo a atividade pareceria aceitar a ldquonatildeo independecircncia de fatordquo ideia muito presente na cultura de histoacuteria no Brasil73 tatildeo sedutora quanto inconsistente do ponto de vista acadecircmico Para o aluno tratar-se-ia de uma questatildeo de simples opccedilatildeo (poliacutetica) diante da qual a Histoacuteria se destemporaliza

Uma Histoacuteria processual mais do que episoacutedica ou personalista uma Histoacuteria permeada de explicaccedilotildees acadecircmicas ao mesmo tempo uma Histoacuteria com limitaccedilotildees em termos de divergecircncias relativizaccedilotildees e possibilidades em aberto condicionada a suportes materiais repletos de convenccedilotildees a tornarem-nos muito parecidos entre si Talvez seja no tra-tamento dispensado a imagens que os livros didaacuteticos melhor revelam tais convenccedilotildees reforccedilando as limitaccedilotildees de seu diaacutelogo com a Histoacuteria acadecirc-mica bem como acentuando suas caracteriacutesticas de mercadoria Todos os livros aqui considerados satildeo carregados de itens especiacuteficos a quebrarem a continuidade do texto e suas paacuteginas satildeo multicoloridas e povoadas por fi-guras como obras de pintores dos seacuteculos XIX e XX74 Quase nunca poreacutem tais imagens satildeo analisadas como fontes histoacutericas confinadas agrave funccedilatildeo de mera ilustraccedilatildeo frequentemente modificadas em cor e tamanho ateacute mesmo mutiladas ndash sem esclarecimento ndash em prol da diagramaccedilatildeo75 Em tais casos inevitavelmente cria-se uma ideia natildeo de uma histoacuteria sujeita a muacuteltiplas interpretaccedilotildees (contrapondo-se portanto a vaacuterias das atividades

e CAPELLARI Marcos Op Cit p71) Em uma terceira obra logo na abertura de um capiacutetulo intitulado ldquoA independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo lecirc-se que ldquoos dias 21 de abril e 7 de setembro feriados nacionais nos fazem lembrar de dois momentos do processo histoacuterico que levou a independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo (COTRIM Gilberto Op Cit p223) A associaccedilatildeo direta entre Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia era mais comumente feita em livros didaacuteticos de deacutecadas atraacutes Um de Ensino Fundamental caracterizava a Revolta de Beckman a Guerra dos Emboabas a Revolta de Felipe dos Santos a Guerra dos Mascates e as conjuraccedilotildees Mineira e Baiana como movimentos nos quais ldquoos revoltosos se opuseram agrave metroacutepole sonhando e lutando pela autonomia do paiacutesrdquo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Nas trilhas da histoacuteria Ensino Fundamental Belo Horizonte Dimensatildeo 1999 v4) Citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p108

73FIGUEIRA Divalte G Op Cit p191 Nos de

Ensino Fundamental AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 CARMO Socircnia S do COUTO Eliane F B A A consolidaccedilatildeo do capitalismo e o Brasil impeacuterio Satildeo Paulo Atual 1997 (Histoacuteria Passado Presente 3) p105 FERREIRA Joseacute Roberto Histoacuteria Ediccedilatildeo Reformulada Satildeo Paulo FTD 1997 (7ordf seacuterie) p65 ALVES Kaacutetia Correia Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p 128 Citados por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p78 84-85 96 e 111

74Debret Rugendas Moreaux Feacutelix Taunay

Constantino Fontes Polliegravere Parreiras Benedito Calixto Delerive Martins Viana Oscar Pereira da Silva Georgina de Albuquerque e Aldemir Martins entre outros

75Isso jaacute era frequente haacute uma deacutecada com livros

de Ensino Fundamental como por exemplo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p126 e COTRIM Geraldo Op Cit p 112 conforme anaacutelise de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p113 e 123 Haacute que se dizer que livros didaacuteticos natildeo satildeo meio exclusivo para esse esvaziamento do valor documental da iconografia havendo na proacutepria publicaccedilatildeo acadecircmica problema semelhante como demonstra CAVENAGHI Airton Joseacute O atlas do impeacuterio do Brazil e as representaccedilotildees presentes no livro Projeto Histoacuteria v 41 2010 p 383-403

76Constataccedilatildeo semelhante agrave de PURIFICACcedilAtildeO Ana

Teresa da Op Cit para os didaacuteticos de Ensino Fundamental

77NOGUEIRA Fausto e CAPELLARI Marcos Op

Cit p255

78Para um deles ldquoo pintor Pedro Ameacuterico imaginou

a cena ocorrida agraves margens do riacho do Ipirangardquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 para outro um ceacutelebre quadro mostraria uma ldquocena de uma

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sessatildeo das cortes de Lisboa reconstituiacuteda pelo pintor Oscar Pereira da Silvardquo Cfr CARMO Socircnia do COUTO Eliane F B A Op Cit p 73 um terceiro propunha ao aluno a seguinte atividade ldquoobserve cuidadosamente as gravuras de Debret que aparecem no texto Descreva cada uma delas e compare as cenas nelas retratadas com as cenas de nossas ruas de hoje Haacute diferenccedila Em que sentidordquo Cfr GARCIA Leocircnidas F Estudos de histoacuteria sociedades contemporacircneas 2 ed rev Goiacircnia Editora da UFG 1996 Manual do Professor p 111 Todas as informaccedilotildees foram retiradas de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p81 88 e 137

79Conforme bem mostrado por Elias Saliba Cfr

SALIBA Elias Experiecircncias e representaccedilotildees sociais reflexotildees sobre o uso e o consumo das imagens Anais do II Encontro Perspectivas do Ensino de Histoacuteria Satildeo Paulo FEUSP 1996 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p119

80Produzida pela Secretaria de Ensino agrave

Distacircncia do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo em parceria com a TV Escola e a Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco com a companhia teatral Matildeo Molenga Parte 1 disponiacutevel em youtubecomwatchv=Z60eHBJ1xjY 18082 visualizaccedilotildees e 15 comentaacuterios parte 2 disponiacutevel em youtubecomwatchv=2QLkP2NDhMg 30100 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios (parte desse episoacutedio tambeacutem disponiacutevel em youtubecomwatchv=bAPUjP7l-lI 18398 visualizaccedilotildees e 16 comentaacuterios acesso em 13022014

81Como Clemente Pereira Gonccedilalves Ledo Cipriano

Barata Paes de Andrade e frei Caneca O fato de se tratar de uma produccedilatildeo pernambucana contribui para tanto

82Semelhante observaccedilatildeo pode ser feita a respeito

dos doze curtos episoacutedios da seacuterie D Joatildeo no Brasil inspirada em uma narrativa em quadrinhos da chegada da Corte ao Brasil seacuterie de animaccedilatildeo produzida pelo Canal Futura baseada no livro de histoacuteria em quadrinhos D Joatildeo Carioca a corte portuguesa chega ao Brasil (1808 - 1821) escrito pela historiadora Lilia Schwarcz e pelo desenhista Spacca (Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007) Novamente tem-se um material convincente afinado em muitos sentidos com um conhecimento acadecircmico mas que ao recorrer agrave saacutetira tambeacutem evoca estereoacutetipos convencionais como por exemplo os mesmos acima mencionados em referecircncia a priacutencipe e princesa Poder-se-ia atribuir tal convencionalismo dentre outros fatores ao de que a primazia da linguagem visual aqui opera duplamente isto eacute com os quadrinhos e tambeacutem com o programa televisivo criado a partir deles amplificando assim os efeitos decorrentes da saturaccedilatildeo visual da sociedade que daacute origem e significado a esse material Para todos os efeitos a imposiccedilatildeo de tais convenccedilotildees eacute forte ateacute mesmo conforme jaacute visto em materiais menos visuais que este Episoacutedio 01 youtubecomwatchv= 9f5RB1zcD5Eamplist=PLyP1ks9vaqhj2y6MmckU DyuXtWmHgPLe5ampindex=1 331 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio episoacutedio 02 youtubecomwatchv= w-BLqvhYPGkamplist=PL5837763F26AB1B87

oferecidas pelos proacuteprios livros) mas de uma histoacuteria imoacutevel a ser captada de modo instantacircneo uma histoacuteria verdadeira Aleacutem do mais confundem-se os diferentes contextos motivaccedilotildees e condiccedilotildees de produccedilatildeo de tais imagens o que equivale agrave oferta de uma confusatildeo temporal que impossibi-lita a compreensatildeo dessa histoacuteria76

As uacutenicas exceccedilotildees satildeo os ceacutelebres quadros de Moreaux e de Pe-dro Ameacuterico Todos os livros didaacuteticos aqui considerados se esforccedilam por submetecirc-los a uma criacutetica muitas vezes comparativa considerando forma conteuacutedo e contexto mesmo assim eacute possiacutevel encontrar afirmaccedilotildees como a de que Ameacuterico teria tido ldquoo intuito de fazer a representaccedilatildeo desse famoso acontecimento da maneira mais fiel possiacutevelrdquo e que ldquomuitos dos elementos representados pelo pintor satildeo sabidamente falsosrdquo77 Provavel-mente satildeo resquiacutecios de um momento anterior no qual os livros didaacuteticos mostravam-se muito menos cuidadosos ateacute mesmo na utilizaccedilatildeo do quadro de Ameacuterico78 mas tambeacutem marcas atuais de uma sociedade de haacutebitos fortemente visuais cuja saturaccedilatildeo de imagens tende a resultar em posturas pouco criacuteticas em relaccedilatildeo ao que se vecirc bem como em indistinccedilatildeo tempo-ral das mesmas79 Haacute que se lembrar por fim e novamente que os textos desses livros satildeo cheios de descontinuidades como se cada pedaccedilo de cada paacutegina tivesse autonomia prescindindo de certo modo da leitura dos demais Guardaratildeo tais constataccedilotildees alguma relaccedilatildeo com as dificuldades apresentadas pelos entrevistados na sondagem de opiniatildeo de organizar visotildees da Histoacuteria da Independecircncia segundo marcos cronoloacutegicos bem como de distinguir diferenccedilas entre intervalos temporais Eacute bem possiacutevel sobretudo porque ela seraacute endossada pela observaccedilatildeo de outras fontes

5 - A Independecircncia na internet e na tevecircExiste farto e rico material audiovisual disponiacutevel na internet com referecircncias agrave Independecircncia do Brasil e que a exemplo dos livros didaacuteticos represen-tam a convergecircncia de esforccedilos profissionais muacuteltiplos (mais os programas de tevecirc do que os viacutedeos independentes) como pesquisadores roteiristas apresentadores repoacuterteres cenoacutegrafos teacutecnicos variados etc As fontes aqui delimitadas perfazem 107 viacutedeos acessiacuteveis no YouTube e que natildeo obstante sua ampliacutessima diversidade convergem em muitos significados

Observe-se o caso de viacutedeos educativos documentaacuterios e programas de televisatildeo com entrevistas e debates que em comum apresentam objetivos formativos e esforccedilos verdadeiros de incorporaccedilatildeo de conteuacutedos acadecircmicos traduzidos em linguagens didaacuteticas Um caso exemplar eacute a seacuterie 500 anos o Brasil - Impeacuterio na TV que conta uma histoacuteria do Brasil da chegada da Corte ao periacuteodo das regecircncias em formato de telejornal com trama romanceada e teatro de bonecos80 Aqui vecirc-se uma Histoacuteria processual com informa-ccedilotildees corretas e amparadas em datas deslocamentos frequentes dos eixos espaciais de observaccedilatildeo (regional internacional) com menccedilatildeo a persona-gens que extrapolam o tradicional ciacuterculo da Corte portuguesa81 e ecircnfase no caraacuteter violento e conflitivo da formaccedilatildeo do Brasil no seacuteculo XIX Mesmo um material histoacuterico-pedagoacutegico desse quilate evoca por exemplo a falta de atributos esteacuteticos de Carlota Joaquina ou a pusilanimidade de seu marido a revelarem mais uma vez o mercadologicamente eficiente componente bio-graacutefico-anedoacutetico no tratamento da Independecircncia advindo de sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria mais ampla82

Em outros casos o fato de programas de televisatildeo buscarem o auxiacutelio de especialistas na Independecircncia revela uma convenccedilatildeo formal como nos

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16566 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios episoacutedio 03 youtubecomwatchv=QvWSE-sF-w4amplist =PL5837763F26AB1B87 18406 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios episoacutedio 04 youtubecomwatchv= 2N5wBvpgyXEamplist=PL5837763F26AB1B87 12808 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 05 youtubecomwatchv=VaHrSAFBf1Uamplist =PL5837763F26AB1B87 14615 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 06 youtubecomwatchv= 8RrCMbOZTsAamplist=PL5837763F26AB1B87 12649 visualizaccedilotildees 10 comentaacuterios episoacutedio 07 youtubecomwatchv=I4cgWo_GHaQ 601 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 08 youtubecomwatchv=rI71YNrLo7o 12299 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 09 youtubecomwatchv=huv2ngnqUd4 367 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios episoacutedio 10 youtubecomwatchv=F2MaLs_kj-w 10842 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios episoacutedio 11 youtubecomwatchv=8zK3D01dXc0 9388 visualizaccedilotildees 05 comentaacuterios episoacutedio 12 youtubecomwatchv=R76BHD--vB8amplist=PL5837763F26AB1B87 12108 visualizaccedilotildees 9 comentaacuterios acessos em 03042014

83NAPOLITANO Marcos A Histoacuteria depois do

papel In Carla Pinsky (org) Fontes Histoacutericas Satildeo Paulo Contexto 2005 p250-252 Napolitano afirma com base em Umberto Eco que a televisatildeo introduziu uma mudanccedila de ritmo de vida familiar e cotidiana bem como o que se pode chamar de hipertrofia sensorial em detrimento da assimilaccedilatildeo conceitual Destaca ainda que eacute preciso pensar a televisatildeo como uma nova experiecircncia social do tempo histoacuterico na medida em que ela faz coincidir o verdadeiro o imaginaacuterio e o real no ponto indivisiacutevel do presente

84Produzida pela rede de emissoras puacuteblicas

TV Brasil Sobre a Revolta dos Alfaiates parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo 767 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=dj04LJJM8bk 2592 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio Sobre a Batalha do Jenipapo parte 1 youtubecomwatchv=zlgsZcj-V3o 2426 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios acesso em 24032013 parte 2 youtubecomwatchv=rAS3dHAvWPQ 1283 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio Sobre Tiradentes youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 408 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013)

85Marco Morel e Luiacutes Henrique Dias Tavares

86Programa De laacute pra caacute Revolta dos Alfaiates

parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo

87Exceccedilatildeo satildeo as entrevistas realizadas por

Mocircnica Teixeira na UnivespTV que estabelecem comunicaccedilatildeo bastante profiacutecua entre a entrevistadora e os acadecircmicos entrevistados (youtubecomwatchv=syXf3WHQRPM 4450 visualizaccedilotildees 06 comentaacuterios youtubecomwatchv=pZk5pFlboqw 3303 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=5pUDP2KUYCY 4128 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios

livros didaacuteticos e a exemplo destes a intenccedilatildeo de acolher uma multipli-cidade de vozes raramente enseja verdadeira pluralidade de pensamento o que ademais eacute dificultado pela natureza curta sinteacutetica e acelerada dos materiais televisivos Nessas situaccedilotildees constata-se que o historiador fala uma coisa mas o entrevistador e o produtor continuam a ldquoescutarrdquo outra o que muitas vezes reforccedila a percepccedilatildeo de descontinuidade narrativa an-teriormente tambeacutem diagnosticada nos livros didaacuteticos e que na televisatildeo adquire contornos de regra83 Os episoacutedios da seacuterie De laacute para caacute educati-vos didaacuteticos aacutevidos por com conhecimentos acadecircmicos e produzidos por uma rede puacuteblica de televisatildeo sem fins lucrativos apresentam interessante exemplo84 No programa dedicado aos acontecimentos de 1798 na Bahia dois historiadores profissionais85 esclarecem que os revoltosos ldquobahien-sesrdquo almejavam a independecircncia apenas da capitania da Bahia o que tem enormes implicaccedilotildees a destituiacuterem tais acontecimentos de qualquer atribu-to supostamente preparatoacuterio da Independecircncia do Brasil (situaccedilatildeo muito semelhante conforme vimos agrave da Inconfidecircncia Mineira) natildeo obstante na abertura do programa seu apresentador declara

A luta pela independecircncia do Brasil foi escrita nas paacuteginas memoraacuteveis da nossa histoacuteria com o sangue de um punhado de brasileiros O mais celebrado foi Tiradentes Mas sete anos depois do martiacuterio de Tiradentes quatro brasileiros pretos pobres pelos mesmos ideais foram enforcados e sentenciados em Salvador86

Em outros momentos o apresentador apesar de ouvir de forma soliacutecita e atenta ao que o entrevistado tem a dizer acaba por negar com sua proacutepria fala parte do conteuacutedo receacutem-ouvido mas sem demonstrar ser essa atitude premeditada ou consciente Afinal eacute difiacutecil desvencilhar-se daquilo que jaacute se ldquosaberdquo daquilo que adveacutem de um ambiente que o tempo todo nos ldquoensinardquo Histoacuteria sem necessariamente disso nos darmos conta87

A incapacidade de assimilaccedilatildeo reciacuteproca de ideias acerca da histoacute-ria entre agentes sociais diversos pode revelar-se de muitos modos Um dos programas da seacuterie Caminhos da Reportagem intitulado Caminhos da Independecircncia o grito nas ruas produzido com as mesmas caracteriacutesticas do anterior aborda a Independecircncia focada em seus panfletos poliacuteticos a partir da pesquisa recente de trecircs historiadores profissionais88 No entan-to e a despeito natildeo soacute de dar ampla voz a eles mas tambeacutem de abordar conteuacutedos didaticamente inovadores a equipe de entrevista que foi agraves ruas natildeo estabeleceu qualquer mediaccedilatildeo entre histoacuterias acadecircmicas e natildeo acadecircmicas pressupondo que todas as pessoas ocupam uma mesma posiccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria Por isso perguntas incompreensiacuteveis89 resultam apenas em situaccedilotildees vexatoacuterias impeditivas da construccedilatildeo de conhecimento sobre o tema

A abordagem de pessoas nas ruas recurso frequentemente utiliza-do por programas televisivos revela dados importantes acerca de como os brasileiros veem a Independecircncia muitas vezes mais por aquilo que eacute perguntado do que por aquilo que eacute respondido90 O programa + Estilo de 07 de setembro de 2011 produzido pela TV Campo Grande com conteuacutedo de variedades destinado a telespectadores de meio de tarde foi agraves ruas (provavelmente de Campo Grande Mato Grosso do Sul) perguntar se as pessoas saberiam dizer o que se comemorava naquele dia Primeiro res-ponde uma jovem com um bebecirc no colo

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youtubecomwatchv=0ZVgCwkt1ms 1384 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1016 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1227 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=ANSHAFLau04 1175 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios) Acessos em 21042014

88Joseacute Murilo de Carvalho Luacutecia Pereira das Neves

e Marcello Basile

89A apresentadora ldquoVocecircs sabem o que significa

corcundardquo Um professor de coleacutegio ldquoDeve ser alguma coisa que estaacute surgindo aiacute no mundo um pouco mais ciberneacutetico porque eu nem na faculdade ouvi falar dos corcundasrdquo Marcos Tomazzeti produtor multimiacutedia ldquoNa minha cabeccedila vem algo de monarquia de rei algo meio poliacuteticordquo Simone Granda bancaacuteria ldquoDicionaacuterio de corcundice Natildeo seirdquo Marilu Guimaratildees dona de casa ldquoPuxa tem tanta coisa importante pra ter dicionaacuterio vai ter justo do corcundistardquo Caminhos da Independecircncia youtubecomwatchv=37XH5UEpjlI acesso em 24032013

90Em perspectiva oposta mas complementar agrave da

sondagem de opiniatildeo aqui utilizada

91E que portanto muito provavelmente ainda natildeo

tinha tido contato formal (escolar) com o tema

92O programa prossegue entatildeo com uma entrevista

com o professor Ian Rari que trata de uma Histoacuteria da Independecircncia processual natildeo centrada em uma uacutenica data ou fato criacutetica etc Mais um momento onde as vaacuterias vozes contempladas pelo programa natildeo dialogam entre si (youtubecomwatchv=xv1LOlwUfFQ 289 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio) Outro exemplo significativo eacute dado pelo programa Conexatildeo Jovem exibido em 06 de setembro de 2012 no qual dois entrevistados ndash Prof Bira professor de Histoacuteria e Marcos Eduardo socioacutelogo ndash utilizam com competecircncia o pouco tempo a eles destinado discorrendo de modo criacutetico sobre a Independecircncia e em linguagem adequada ao puacuteblico jovem ao qual o programa se destina (produccedilatildeo da TV Novo Tempo adventista parte 1 youtubecomwatchv=1IvYOYtju9sgt 74 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=Ofv7QWOJpHo 47 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013) Logo o programa traz uma abordagem feita na rua na qual a entrevistadora pergunta a uma jovem ldquoQuem falou lsquoindependecircncia ou mortersquo agraves margens do riacho do Ipirangardquo Diante da correta resposta a entrevistadora tenta induzir um erro ldquo15 de novembro ou 7 de setembrordquo Aliaacutes a expectativa do programa parece revelada pela entrevistadora logo na primeira pergunta feita a um dos convidados ldquoseraacute que os jovens se interessam pela histoacuteria de seu paiacutesrdquo E embora o material recolhido pelo proacuteprio programa permita resposta afirmativa manteacutem-se a postura negativa preacute-concebida

93Daiacute a relevacircncia de um viacutedeo com fotografias e

um aacuteudio (youtubecomwatchv=UdQ_aAAl3DE)

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoE isso em que ano que foi que aconteceurdquoResposta ldquo1822rdquo

Em seguida outro jovem que provavelmente jaacute tinha respondido a outra pergunta

Pergunta ldquoQuem foi o imperador vocecirc lembrardquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoAcertou Canta pra gente um trecho do hino da independecircnciardquoResposta ldquoAgora natildeo lembrordquo

Agora o programa aborda uma menina de cerca de dez anos clara-mente intimada91

Pergunta Por que eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoNatildeo seirdquoPergunta ldquoNatildeo lembra Vou dar uma dica um fato histoacuterico muito importante para o BrasilrdquoResposta (negativa com a cabeccedila)

Em quarto lugar outra jovem que procura se afastar da cacircmera

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta (ainda tentando se esquivar sorrindo) ldquoNatildeordquoPergunta ldquoNatildeo saberdquoResposta ldquoAh A Independecircncia Eu natildeo prestei atenccedilatildeordquoPergunta Que ano aconteceu a Independecircncia vocecirc lembrardquoResposta ldquoNatildeordquoPergunta ldquoE quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoTambeacutem natildeo lembrordquo

Por fim a entrevista com um senhor de meia-idade comeccedila jaacute com uma resposta

Resposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoQue ano aconteceu issordquoResposta ldquo1888rdquoPergunta ldquo1822 Quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoCerto E onde foi que aconteceu tudo issordquoResposta ldquoSatildeo PaulordquoPergunta ldquoOK [breve silecircncio] Canta um trechinho para noacutes do hino da IndependecircnciardquoResposta ldquoJaacute podeis da paacutetria matildeerdquo [sic -prossegue cantando corretamente]

Em seguida o programa corta para uma sala de aula onde a despeito dos ldquoacertosrdquo obtidos nas ruas a entrevistadora afirma

Diante da dificuldade que noacutes encontramos no centro da cidade para saber informaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil eu vim parar na sala de aula Vai ser aqui que a gente vai descobrir a histoacuteria do paiacutes92

A ideia a priori de que o brasileiro natildeo conhece e natildeo se interessa pela histoacuteria subsidia este e muitos outros programas Aqui o dado mais relevante parece estar precisamente nessa arraigada crenccedila no desinteres-

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da entatildeo prefeita de Ribeiratildeo Preto (Satildeo Paulo) Darcy Vera que afirma durante um desfile de 7 de Setembro dentre vaacuterios desvarios que ldquoTiradentes gritou lsquoIndependecircncia ou mortersquordquo Com 169919 acessos e 149 comentaacuterios (em geral criacuteticos bem humorados e depreciativos) ateacute 20082014 condensa a possibilidade de amplificaccedilatildeo do estigma do natildeo domiacutenio de referecircncias convencionais agrave Independecircncia mas sem fomentar nenhum conhecimento da mesma

94Novamente surge a questatildeo natildeo teratildeo as

renovaccedilotildees curriculares promovidas no ensino de Histoacuteria (no Brasil e alhures) das uacuteltimas deacutecadas exagerado nessa incompatibilidade Teratildeo elas sido capazes de mensurar seus efeitos deleteacuterios diante de sociedades jaacute bastante refrataacuterias a uma histoacuteria cronoloacutegica

95ldquoPouco importa que sua figura tenha sido

mitificada pela propaganda republicana O que importa eacute que ele foi um heroacutei Ele deu sua vida pela paacutetria e pela liberdaderdquo (Programa De laacute pra caacute youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032013) Essa exaltaccedilatildeo da figura de Tiradentes associada agrave Independecircncia conduz o discurso da propaganda eleitoral de um candidato agrave prefeitura de Ouro Preto em 2012 (youtubecomwatchv=eGefgLoRhec 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032014) Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo no dia 09 de setembro de 2013 apoacutes se autocaracterizar como realizador de uma ldquohistoacuteria de carne e ossordquo em contraposiccedilatildeo a produccedilotildees ldquocontaminadas pela anaacutelise marxistardquo que retirariam os personagens da Histoacuteria o jornalista Laurentino Gomes afirma ldquoNo 1822 faccedilo uma comparaccedilatildeo e digo que o uacutenico problema do Joseacute Bonifaacutecio foi nascer no Brasil pois se ele tivesse nascido nos Estados Unidos teria sido maior que o Thomas Jefferson Porque aparentemente ele era mais preparado mais luacutecido que o Thomas Jeffersonrdquo (parte 1 youtubecomwatchv=uGibbLxsZK0 4501 visualizaccedilotildees e 5 comentaacuterios parte 2 youtubecomwatchv=2LQcEcb5kLU 2302 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios acesso em 26032014 Logo voltaremos agrave obra e agraves ideias de L Gomes

96Um exemplo adveacutem do viacutedeo ldquoA verdadeira

independecircncia do Brasilrdquo em que um pastor evangeacutelico em meio a uma cerimocircnia religiosa ldquodesconstroacuteirdquo o quadro de Pedro Ameacuterico acusando-o de pouco verossiacutemil e aponta os desvios morais de D Pedro I de modo a inviabilizaacute-lo como figura histoacuterica digna de memoacuteria (youtubecomwatchv=RsKQr6bgzLA 178 visualizaccedilotildees e 2 comentaacuterios acesso em 24032014) A suposta irrelevacircncia dos personagens envolvidos no processo da independecircncia eacute notaacutevel na fala de um professor de Ensino Meacutedio (youtubecomwatchv=gvWVF9j2KEU 597 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) e de um apresentador de temas religiosos que relativizam a importacircncia do tema ao afirmarem a atual ldquodependecircncia econocircmicardquo do Brasil (youtubecomwatchv=EXyUBY7StF4 383 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Tambeacutem retornaremos a esse tema

sedesconhecimento do brasileiro pela histoacuteria bem como em um de seus efeitos mais contundentes a crenccedila de que eacute possiacutevel reverter tal situaccedilatildeo pela simples mobilizaccedilatildeo formal de datas nomes e eventos Contudo se a Independecircncia se converte em uma catalizadora de referecircncias cronoloacute-gicas ou nominais isso natildeo leva necessariamente a uma historicizaccedilatildeo do tema pelo contraacuterio a mobilizaccedilatildeo de tais referecircncias em termos como os acima mencionados (a data ou o nome por si soacutes) pode resultar no apro-fundamento da tendecircncia agrave confusatildeo temporal jaacute aqui apontada93

Nos meios intelectuais a discussatildeo em torno das formas tempo-rais de vivecircncia coletiva naquilo que se pode chamar ndash recorrendo-se a uma categoria uacutetil ndash de modernidade natildeo eacute nova tampouco estaacute em vias de esgotamento A dificuldade de organizaccedilatildeo do mundo social segundo referecircncias cronoloacutegicas natildeo seraacute em absoluto distintiva de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil embora o contraacuterio deva ser dito em relaccedilatildeo agraves formas assumidas por tais dificuldades (como as noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia) Percebe-se entatildeo o peso do estigma da dificuldade em manejar datas nomes e fatos suposta prova de um desin-teresseignoracircncia que poderia ser combatido com um retorno a velhas formas de se fazer Histoacuteria e nas quais tais elementos eram considera-dos com a essecircncia da compreensatildeo histoacuterica Natildeo parece que as coisas devam propriamente se passar segundo essa representaccedilatildeo embora um dos confrontos existentes na cultura de histoacuteria no Brasil seja sem duacutevida a polarizaccedilatildeo entre a valorizaccedilatildeo da Independecircncia (= de suas datas nomes eventos siacutembolos e supostos valores etc) e a desvalorizaccedilatildeo da mesma (=seu caraacuteter elitista e negociador a diminuiccedilatildeo da histoacuteria do Brasil em comparaccedilatildeo com a de outros paiacuteses a comicidade dessa histoacuteria etc) Eacute plausiacutevel conceber que esta segunda posiccedilatildeo encontre um aliado na con-cepccedilatildeo de incompatibilidade entre uma histoacuteria amparada por referecircncias cronoloacutegicas e ao mesmo tempo em processos estruturas e temas trans-versais do gosto inclusive de muitos acadecircmicos e educadores94

Os exemplos de materiais audiovisuais a traduzirem veicularem e fomentarem esse confronto entre valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo da Inde-pendecircncia satildeo muitos Aleacutem dos jaacute tratados ateacute aqui pode-se mencionar viacutedeos contendo propaganda de instituiccedilotildees puacuteblicas civis e militares de partidos poliacuteticos de grupos maccedilocircnicos de igrejas e de empresas variadas bem como produccedilotildees independentes Neles eacute possiacutevel encontrar desde a exaltaccedilatildeo das referecircncias mais convencionais agrave Independecircncia como a seus personagens (incluindo seu suposto maacutertir Tiradentes)95 ateacute a afirma-ccedilatildeo de sua total irrelevacircncia96 isso costuma ocorrer sem muitos matizes obedecendo a uma loacutegica dicotocircmica plasmada em linguagens simples com descontinuidades discursivas e imageacuteticas e num ritmo de exposiccedilatildeo acelerado Em suma tratam da Independecircncia segundo padrotildees parcial-mente compartilhados tambeacutem por outras fontes ateacute aqui analisadas

Todas essas fontes com suas noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia satildeo sintomaacuteticas de estados de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema bem como potenciais formadores de opiniatildeo dos mesmos Sua capacidade de criaccedilatildeo de conhecimento no entanto se mostra muito limi-tada Eacute bem verdade que esta eacute por vocaccedilatildeo uma tarefa confiada a saberes acadecircmicos ndash jaacute que no Brasil a quase totalidade da pesquisa em Histoacuteria estaacute entregue agraves universidades salvo a de interesse corporativo ndash de modo que natildeo seria de esperar inovaccedilatildeo em suportes tatildeo variados e socialmen-te diversificados quanto os ateacute aqui analisados Mas parece haver aiacute certo

25Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

ciacuterculo vicioso a envolver tambeacutem parte da academia Basta observar que a ideia da ldquonatildeo Independecircncia de fatordquo tatildeo em voga entre tantos historiadores durante tanto tempo reverbera com forccedila na sociedade em geral97 e ainda goza de prestiacutegio ateacute mesmo entre alguns acadecircmicos que bebem-na da sociedade e apoacutes modificaacute-la parcialmente devolvem-na aos espaccedilos de di-vulgaccedilatildeo98 Essa versatildeo da Histoacuteria eacute capaz de transpor fronteiras temporais de atualizar-se em diferentes contextos e ateacute mesmo de superar abissais diferenccedilas poliacuteticas ela estaacute representada por exemplo e de modo quase idecircntico na propaganda poliacutetica de um partido trotskista e na pregaccedilatildeo nacionalista-direitista de um polecircmico professor de histoacuteria99

Por fim tome-se o caso de trecircs produccedilotildees da Rede Globo de Televi-satildeo voltadas ao puacuteblico em geral com consideraacuteveis aportes financeiros e complexa produccedilatildeo a seacuterie documental A Corte no Brasil para exibiccedilatildeo em tevecirc fechada100 e as seacuteries humoriacutesticas O Quinto dos Infernos101 e Eacute muita Histoacuteria Dia de Fuacuteria102 veiculadas amplamente em tevecirc aberta No pri-meiro caso siacutetios histoacutericos visitados pelas apresentadoras uma narrativa soacutebria e informativa de fatos e processos grande quantidade de entrevistas com historiadores ecircnfase em diferentes espaccedilos regionais e internacio-nais e tratamento do tema em muacuteltiplas dimensotildees (poliacutetica econocircmica cultural) No segundo caso uma narrativa romanceada teatral e cocircmica fortemente despolitizada e livremente baseada em trecircs livros de igual teor (um deles publicado haacute quase um seacuteculo)103 praticamente centrada no Rio de Janeiro (um pouco tambeacutem em Portugal muito menos alhures) e nos membros da famiacutelia real portuguesa cuja vida pessoal eacute estruturada em torno de seus haacutebitos excecircntricos (principalmente os sexuais) e vez ou outra de passageiros dramas pessoais104

Finalmente no terceiro caso uma encenaccedilatildeo tambeacutem cocircmica pro-tagonizada por um escritor-autor-ator-palhaccedilo com grande liberdade de criaccedilatildeo mas amparada em informaccedilotildees convenccedilotildees e mitos a oferecer uma versatildeo do Sete de Setembro segundo o estado psico-fisioloacutegico de D Pedro

Eis um exemplo de uma das modalidades assumidas pela disputa em torno de uma Independecircncia valorizada e outra depreciada Pareceria justificaacutevel opor a tal diagnoacutestico a constataccedilatildeo de se tratarem de obras televisivas de distinto teor o que desobriga a segunda e a terceira de qual-quer compromisso com a verdade No entanto interessam-nos mais seus significados e efeitos do que intenccedilotildees Note-se que a primeira documen-tal eacute de circulaccedilatildeo mais restrita que a segunda e a terceira voltadas para grande puacuteblico por isso seus efeitos nesse jogo de criaccedilatildeorecriaccedilatildeo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da Independecircncia satildeo natildeo apenas assimeacutetricos mas tambeacutem concorrentes105 Os esforccedilos de um pro-grama por posicionar o espectador diante de uma histoacuteria processual de encadeamentos temporais e de grupos e conflitos sociais satildeo naturalmente obstados pelos dos outros dois a oferecer uma histoacuteria repleta de anacro-nismos anedoacutetica e biograacutefica em perfeita sintonia com demandas mais amplas de uma sociedade ndash e de alguns de seus componentes mercadoloacutegi-cos jaacute aqui mencionados ndash na qual a vida privada eacute mais valorizada do que a puacuteblica106 Nesse confronto embora as trecircs convivam na mesma cultura de histoacuteria uma Independecircncia tende a prevalecer sobre a outra107

6 ndash A Independecircncia no cinemaEm relaccedilatildeo a livros didaacuteticos programas de televisatildeo e outros materiais audiovisuais as fontes cinematograacuteficas aqui consideradas naturalmente

97Exemplo encontra-se no viacutedeo ldquoAway Nilzer ndash

Independecircncia do Brasilrdquo com grande nuacutemero de visualizaccedilotildees (130677) e de comentaacuterios (1016) que minimiza e ridiculariza natildeo apenas o processo da independecircncia como quaisquer fatos histoacutericos brasileiros de maneira geral (youtubecomwatchv=Vd_kloNeQV0) O Brasil atual como viacutetima de uma exploraccedilatildeo econocircmica mais intensa do que nos tempos coloniais e portanto natildeo-independente aparece na fala de outro professor (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2806 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) e nos comentaacuterios de um boneco marionete de um programa infantil (youtubecomwatchv=9mh3Tu6c4_w 173 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032014)

98Exemplo desse processo de ldquodevoluccedilatildeordquo pode ser

comprovado no viacutedeo ldquoIndependecircncia ou morterdquo (youtubecomwatchv=QUvnz1no1m8 934 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Outros dois exemplos pertinentes satildeo a insistecircncia nas ideias de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil e que a Independecircncia foi uma luta entre brasileiros e portugueses

99Em entrevista a uma rede local de televisatildeo

ouvimos do professor de histoacuteria do Ensino Meacutedio Wander Pugliesi ldquoSe noacutes formos trabalhar com sinceridade o Brasil ainda natildeo eacute independente Na verdade somos muito mais explorados do que quando eacuteramos colocircnia de Portugalrdquo (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2815 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) A mesma relativizaccedilatildeo do processo de independecircncia aparece na fala do candidato agrave presidecircncia em 2010 pelo PSTU Zeacute Maria ldquohoje infelizmente natildeo podemos comemorar uma verdadeira independecircncia do paiacutes Eacute preciso dizer a verdade as multinacionais controlam a economia brasileira As decisotildees fundamentais satildeo tomadas por elas fora do paiacutesrdquo (youtubecomwatchv=ht9Yt0PlGnU 1803 visualizaccedilotildees um comentaacuterio) Acessos em 26032013

100Direccedilatildeo de Carlos Henrique Schroder 2008

Produccedilatildeo de 16 episoacutedios de cerca de 20 minutos cada para o canal da TV fechada GloboNews A seacuterie foi comercializada em DVD e pode ser vista tambeacutem no canal Globosat no Youtube (youtubecomwatchfeature= player_detailpageampv= OUX-zSyaMIc e viacutedeos relacionados Acesso em 27032014)

101Direccedilatildeo de Wolf Maya e Alexandre Avancini e

criaccedilatildeo de Carlos Lombardi 2002 Produccedilatildeo de 48 episoacutedios com cerca de 40 minutos cada para o canal da TV aberta Rede Globo de Televisatildeo A minisseacuterie tambeacutem foi comercializada em DVD e vem sendo (desde janeiro de 2014) reprisada no Canal Viva (rede fechada de televisatildeo filiada Globosat) uma reprise anterior ocorreu de agosto a novembro de 2011 sempre por volta das 23h

102Direccedilatildeo de Joatildeo Carrascosa e Pedro Bial 2007

Produccedilatildeo de 9 capiacutetulos de cerca de 15 minutos

26Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

apresentam especificidades Tendem a diversificar (eventualmente ampliar) o rol de profissionais envolvidos em sua produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo bem como a tratar conteuacutedos em um tempo mais lento criando uma sensaccedilatildeo de homogeneidade de significados reforccedilada pela aderecircncia de tais conteuacutedos a uma trama central Tal homogeneidade por seu turno eacute relativizada por uma liberdade de criaccedilatildeo que dificilmente encontra paralelo em outros dos materiais aqui considerados ndash com a possiacutevel exceccedilatildeo da minisseacuterie O Quinto dos Infernos No entanto quando a comparaccedilatildeo eacute feita com os li-vros didaacuteticos os conteuacutedos relativos agrave Independecircncia no cinema tendem a ser menos numerosos mais superficiais e efecircmeros justamente por serem menos assumidamente informativos do que os dos livros embora isso possa encontrar alguma compensaccedilatildeo em uma linguagem visual de forte apelo emotivo Para todos os efeitos como aponta um estudioso da mateacuteria os filmes de temaacutetica histoacuterica carregam sempre certa ambiguidade ocupam uma espeacutecie de ldquoentrelugarrdquo com forccedila para criar ldquoverdadesrdquo socialmente aceitas108 Nos cinco filmes aqui considerados109 as ldquoverdadesrdquo sobre a Independecircncia tendem a replicar linhas de forccedila jaacute conhecidas mesclando temporalidades correspondentes tanto aos momentos em que foram pro-duzidos quanto aos momentos posteriores em que foram sendo exibidos110

Independecircncia ou Morte produccedilatildeo a serviccedilo das comemoraccedilotildees oficiais do sesquicentenaacuterio da Independecircncia levadas a cabo pelo go-verno ditatorial brasileiro em 1972 mostra uma narrativa de forte teor didaacutetico-pedagoacutegico sem grandes pretensotildees artiacutesticas expliacutecitas111 com diaacutelogos e situaccedilotildees muitas vezes retirados de obras sobre a Independecircncia e tratados de forma literal Sua finalidade eacute clara ldquoensinarrdquo aos especta-dores uma histoacuteria e uma memoacuteria coletivas homogecircneas aplainadas de pluralidades ou de desavenccedilas Uma histoacuteria supostamente indiscutiacutevel porque verdadeira posta a serviccedilo dos tambeacutem supostos interesses mais elevados da naccedilatildeo brasileira (por isso nela a vida privada dos persona-gens eacute toda submetida agrave sua funccedilatildeo poliacutetica inclusive no caso da relaccedilatildeo afetiva entre um D Pedro de boa aparecircncia querido do povo e mulherengo e uma ambiciosa romacircntica e sensiacutevel Domitila112) Uma espeacutecie de cartilha oficial da Independecircncia em imagens na qual se faz presente ateacute mesmo uma recomposiccedilatildeo cecircnica do quadro de Pedro Ameacuterico

Eacute interessante observar como Os Inconfidentes produzido no mesmo ano de 1972 mesmo sendo um filme amparado em abundantes liberdades e experimentos esteacuteticos cheio de ambiguidades propositais e contra-pondo-se ao oficialismo histoacuterico tatildeo em voga agrave eacutepoca por meio de uma metaacutefora na qual os contestadores agrave ditadura brasileira se convertem em sediciosos das Minas Gerais do seacuteculo XVIII natildeo se configura como mate-rial singular e discrepante de Independecircncia ou Morte em pelo menos trecircs sentidos primeiro porque em vaacuterios momentos associa a Inconfidecircncia Mi-neira com a Independecircncia do Brasil a exemplo do que Independecircncia ou Morte prega jaacute em seu primeiro texto didaacutetico113 Segundo porque tambeacutem oficializa eventos convencionalmente tidos por fundacionais da histoacuteria do Brasil (soacute que natildeo os de 1808-1822 mas os de 1788-1789) Terceiro reforccedila a prevalecircncia de indiviacuteduos sobre coletividades da imagem de um heroacutei central da trama e de uma oposiccedilatildeo de interesses maniqueiacutesta que certamente poderia se aplicar com mais rigor ao contexto em que foi feito o filme do que agravequele ao qual formalmente se refere Assim para todos os efeitos substratos de uma concepccedilatildeo de histoacuteria satildeo em ambos convergentes Em um ambiente social multifacetado em termos de no-

cada dentro do programa dominical Fantaacutestico da Rede Globo de Televisatildeo A seacuterie foi baseada no livro Brasil uma Histoacuteria de Eduardo Bueno jornalista que tambeacutem atua na seacuterie (youtubecomwatchv=3LzGKt9Pd0M acesso em 27032014)

103SETUacuteBAL Paulo As Maluquices do Imperador

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1927 CALADO Ivanir A Imperatriz no Fim do Mundo memoacuterias duacutebias de Ameacutelia de Leichtenberg Rio de Janeiro Rio Fundo Editora 1992 e TORERO Joseacute Roberto Galantes memoacuterias e admiraacuteveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes o Chalaccedila Satildeo Paulo Companhia das Letras 1994

104A trama e a narrativa do Quinto dos Infernos

recusam explicitamente a inserccedilatildeo de quaisquer componentes que natildeo os da ordem privada de seus convencionais personagens assim questotildees poliacuteticas satildeo sempre menores do que o apetite sexual de Carlota Joaquina as perversotildees de D Miguel ou a fogosidade de Domitila a economia soacute surge em pontuais pretextos cocircmicos enquanto a escravidatildeo eacute referida exclusivamente por meio de alegres e libidinosas criadas (negras) permanentemente dispostas a servirem aos desejos do heroacutei da histoacuteria D Pedro

105A anaacutelise poderia se completar com a minisseacuterie

A Marquesa de Santos dirigida por Ary Coslov e exibida pela extinta Rede Manchete de televisatildeo em 1984 agrave qual infelizmente natildeo se obteve acesso satisfatoacuterio

106Tal predileccedilatildeo pode ser entendida como mais

um fator caracteriacutestico de um momento em que a articulaccedilatildeo entre aquilo que Guy Debord chamaria de ldquosociedade do espetaacuteculordquo e Adorno e Horkheimer (dentre muitos outros) de ldquoinduacutestria culturalrdquo torna sintomaacutetico a saliecircncia do indiviacuteduo e o esvaziamento da esfera puacuteblica

107A comprovaccedilatildeo do encontro concorrente entre

dois caminhos vem do depoimento de alguns dos proacuteprios envolvidos com a produccedilatildeo do Quinto dos Infernos como o diretor Carlos Lombardi que a ele se refere como ldquoum painel dos personagens importantes do periacuteodordquo Para o produtor Wolf Maia seu objetivo foi ldquorecontar com humor uma velha histoacuteriardquo O ator Humberto Martins viu a seacuterie ldquocontar um pedaccedilo da nossa histoacuteria da histoacuteria do Brasil do nosso povo das nossas raiacutezes pateacutetica e engraccedilada tal como ela se mostra dentro desse produto poreacutem claro mesclada com uma boa dose de humorrdquo enquanto o protagonista Marcos Pasquim afirmou que ldquo[ao fazecirc-la] aprendi muita coisa que natildeo aprendi na escola eu vim aprender agora fazendo a pesquisa para fazer esse personagemrdquo Finalmente para a tambeacutem atriz Bruna Lombardi ldquoO lsquoQuintorsquo contou assim a histoacuteria que a Histoacuteria natildeo conta sabe como eacute as fraquezas da histoacuteriardquo Em ldquoDia de Fuacuteriardquo Pedro Bial e Eduardo Bueno reforccedilam seu discurso satiacuterico por meio de um verniz de verdade trazido pela citaccedilatildeo de documentos oficiais como o relato do Padre Belchior sobre o grito do Ipiranga Aleacutem disso seu discurso eacute elaborado sob o nome de tese logo bem se vecirc como seus propaladores (BialBueno) manipulam siacutembolos

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ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

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Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

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123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

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131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

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138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

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Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

33Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

34Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

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Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 10: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

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possibilidade de se chegar a dados de uma cultura de histoacuteria inclusive em suas negaccedilotildees em seus silecircncios e interdiccedilotildees Em seguida o questionaacuterio recorreu a um artifiacutecio muito presente no meio social sobre o qual incidiu foi pedido ao entrevistado que atribuiacutesse notas de um a dez para a impor-tacircncia que acha que a Independecircncia teve para a histoacuteria do Brasil e para a histoacuteria do mundo Nos historiadores profissionais em geral esses rankings com sua gigantesca capacidade de simplificar a realidade costumam despertar ojeriza no entanto para os demais agentes sociais dessa cultura pode significar uma forma uacutetil de representaccedilatildeo da realidade acostumados que estatildeo a ela em muitos aspectos de sua vida cotidiana39 Assim tambeacutem daqui pode-se extrair elementos para a anaacutelise de uma cultura de histoacuteria Jaacute as trecircs perguntas seguintes buscaram outra aproximaccedilatildeo foi pedido ao entrevistado que diante de uma lista de 28 palavras escolhesse as trecircs que acreditasse que mais combinam e as trecircs que menos combinam com a Independecircncia40 Tais palavras incidem sobre personagens fatos proces-sos conceitos e mitos constituindo um bom leque de possibilidades de aproximaccedilatildeo linguiacutestica e conceitual com formas de ver a Independecircncia presentes na sociedade inclusive por contemplarem vaacuterios antinocircmicos Por fim perguntou-se ao entrevistado se seria capaz de dizer as datas da chegada da corte portuguesa no Brasil da Independecircncia do Brasil da pri-meira Constituiccedilatildeo e da abdicaccedilatildeo de D Pedro I41 Aqui o intuito era aferir ateacute que ponto essa cultura de histoacuteria se organiza e se faz representar por marcos cronoloacutegicos convencionais bem como se enseja formas alternati-vas de historicizaccedilatildeo e temporalizaccedilatildeo

Desse modo por meio de estrateacutegias de abordagem complementares (graus de relaccedilatildeo ativa ou passiva diante do tema o peso de linguagens conceitos e informaccedilotildees formas temporais) o questionaacuterio procurou fazer convergirem possibilidades de posturas dos entrevistados em relaccedilatildeo agrave histoacuteria e agrave Independecircncia do Brasil bem como dimensotildees variadas e even-tualmente contraditoacuterias de tais posturas relacionando-as inclusive com as cinco perguntas baacutesicas que seriam posteriormente dirigidas agraves fontes secundaacuterias conforme enunciado ao final do item anterior

Apoacutes um curto periacuteodo de testes foram entrevistadas presencialmen-te 311 pessoas na cidade de Satildeo Paulo Grande ABC e interior do estado entre os dias 19 de setembro de 2012 e 02 de agosto de 2013 Propositada-mente foram evitadas as duas Semanas da Paacutetria desses anos bem como um periacuteodo de vinte dias de superexposiccedilatildeo midiaacutetica especiacutefica do tema42 As abordagens foram realizadas de modo direto em 994 das vezes em espaccedilos puacuteblicos tendo cada uma ndash com poucas exceccedilotildees -a duraccedilatildeo de cerca de sete minutos durante os quais evitou-se ao maacuteximo qualquer tipo de constrangimento direcionamento ou auxiacutelio nas respostas

O que foi possiacutevel obter nessas entrevistas Os entrevistados com-potildeem um grupo de forte contato com a televisatildeo (93 assistem com frequecircncia e 51 todos os dias sendo que 58 possuem tevecirc aberta e a cabo apenas 6 disseram natildeo assistir tevecirc) de leitores frequentes (78) e de assistentes a cinemas (58) e teatros (28) o que o aproxima de um perfil de classe meacutedia escolarizada conforme jaacute apontado anteriormente de todo modo haacute que se lembrar que em muitos outros aspectos relevan-tes esse eacute um grupo heterogecircneo Daiacute a importacircncia do fato de que 77 dos que o compotildeem disseram se interessar por histoacuteria (sendo que 60 afirmaram buscar informaccedilotildees a respeito) Esse eacute um nuacutemero alto ou bai-xo A questatildeo natildeo parece das mais importantes jaacute que de acordo com a

costelas quebradas quando morreu era mais baixo do que se supunha natildeo foi cremado mas enterrado acompanhado de porccedilotildees de terra de Portugal e com roupas de general com insiacutegnias portuguesas e natildeo brasileiras Leopoldina natildeo teve o fecircmur quebrado antes de morrer como acreditava-se ateacute entatildeo foi enterrada com a mesma roupa com que foi coroada imperatriz e seus brincos natildeo eram de ouro mas bijuterias de resina Jaacute Ameacutelia quando morreu tinha escoliose e osteoporose foi enterrada de preto e mumificada Na internet tais ldquorevelaccedilotildeesrdquo foram no total comentadas milhares de vezes ldquorecomendadasrdquo e em geral bem-recebidas (fotosestadaocombrmudanca-na-historia-dez-verdades-sobre-a-familia-imperial-que-nao-estao-nos-livros-de-historiagaleria70481949100htmpPosicaoFoto=1carousel acesso em 27032014 folhauolcombrfspcienciasaude94655-corpos-da-familia-imperial-sao-exumadosshtml acesso em 02042014 folhauolcombrfspcienciasaude94656-descoberta-mostra-abandono-de-d-leopoldina-diz-historiadorashtml acesso em 02042014 estadaocombrnoticiascidadessob-sigilo-dom-pedro-i-e-suas-duas-mulheres-sao-exumados-pela-primeira-vez9983670htm acesso em 02042014 vejaabrilcombrblogricardo-settitema-livreabertura-para-estudos-dos-sarcofagos-de-d-pedro-i-e-de-suas-duas-esposas-e-fato-extraordinario-parabens-ao-estadao-por-divulgar-tudo acesso em 02042014 brnoticiasyahoocomexumaC3A7C3A3o-d-pedro-i-mulheres-reconta-histC3B3ria-115400981htmlgt acesso em 02042014 g1globocomciencia-e-saudenoticia201302cientistas-brasileiros-exumam-restos-mortais-de-d-pedro-i-e-suas-mulhereshtml acesso em 02042014 youtubecomwatchv=y8jcdXyx3hAgt acesso em 02042014 vestibularuolcombrresumo-das-disciplinasatualidadeshistoria-do-brasil-exumacao-traz-novidades-sobre-d-pedro-ihtm acesso em 02042014 ltgooglecombrsearchq= exumaC3A7C3A3o+de+dom+pedroampoq= exumaC3A7C3A3o+ampaqs= chrome469i57j0l55749j0j8ampsourceid= chromeampespv=210ampes_sm=93ampie=UTF-8gt acesso em 02042014 noticiasseuhistorycomexumacao-revela-detalhes-surpreendentes-da-vida-e-morte-de-d-pedro-i-e-suas-mulheresgt acesso em 02042014 istoecombrreportagens277892_A+VOLTA+DE+DOM+PEDRO+I acesso em 02042014 bahiaatualcomnoticiasexumacao-de-corpos-de-d-pedro-i-revela-detalhes-da-famiila-real acesso em 02042014 Site Uacuteltimo Segundo ldquoExumaccedilatildeo de D Pedro I e suas mulheres reconta a Histoacuteriardquo disponiacutevel em ultimosegundoigcombrciencia2013-02-19exumacao-de-dpedro-i-e-suas-mulheres-reconta-a-historiahtml acesso em 02042014 diariodepernambucocombrappnoticiaciencia-e-saude20130219internas_cienciaesaude424273restos-mortais-de-d-pedro-i-sao-exumados-para-realizacao-de-pesquisashtml acesso em 02042014 httpopiniaoenoticiacombrbrasilrestos-mortais-de-dom-pedro-i-sao-exumadosgt acesso em 02042014 noticiasbanduolcombrjornaldabandconteudoaspid=100000576688 acesso em 02042014

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definiccedilatildeo aqui proposta de cultura de histoacuteria o desinteresse tambeacutem eacute um dado relevante pois traduz uma atitude em si e que dificilmente poderia ser considerada de modo absoluto (como pretender que esse desinteresse se traduza por exemplo em descaso com a proacutepria histoacuteria ou com a da famiacutelia Difiacutecil acreditar ser esse o caso de 23 dos entrevistados) Aleacutem disso bem sabemos que seu contraacuterio o interesse pode se manifestar de muitas maneiras que natildeo necessariamente encontram guarida em praacuteticas acadecircmicas e profissionais relacionadas ao estudo do passado tampouco que resultam em um estudo da histoacuteria minimamente organizado O que implica que os dois contraacuterios nem sempre estabeleceratildeo limites claros entre si diante da apreciaccedilatildeo geral de uma cultura de histoacuteria interesse e desinteresse pela histoacuteria podem flertar com muita proximidade bem como intercambiarem elementos regularmente

Observemos mais atentamente esse panorama Considerando-se tais caracteriacutesticas de uma cultura de histoacuteria como a brasileira perguntou-se a todos os entrevistados incluindo aos 23 que afirmaram natildeo se inte-ressar por histoacuteria por ldquoqual histoacuteriardquo poderia dizer que mais se interessa Aqui as respostas que de alguma forma se referem diretamente agrave histoacuteria do Brasil (ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo ldquoHistoacuteria geral e do Brasilrdquo ldquoHistoacuteria da nos-sa regiatildeordquo ldquoHistoacuteria do Brasil e andinardquo) perfazem 34 do total aiacute sim um nuacutemero relativamente baixo diante dos 66 que em suas respostas exclu-iacuteram o Brasil Portanto independentemente do interesse pela mateacuteria ser alto ou baixo a relaccedilatildeo com a Histoacuteria do Brasil parece gozar de especial desprestiacutegio Seraacute o desprezo pela histoacuteria nacional um dado da cultura de histoacuteria no Brasil43 Mais adiante quando da anaacutelise das outras fontes vol-taremos a esse ponto De todo modo tal desprestiacutegio evidentemente traraacute implicaccedilotildees para as posturas dos brasileiros em relaccedilatildeo agrave Independecircncia

A princiacutepio os entrevistados tendem a se interessar pouco pela Inde-pendecircncia do Brasil mas essa natildeo eacute uma tendecircncia absoluta se 39 tecircm ldquonenhumrdquo ldquopoucordquo ou ldquopequenordquo interesse 44 tem ldquomeacutediordquo e 17 ldquoentre meacutedio e granderdquo e ldquogranderdquo Ora em se tratando de uma cultura de histoacuteria dinacircmica e fluida com fronteiras pouco claras entre o interesse e o desinte-resse pela histoacuteria de modo geral (e a despeito da clara tendecircncia a um maior desinteresse pela Histoacuteria do Brasil) a Independecircncia eacute pouco interessante mas natildeo eacute inteiramente desprezada (apenas 11 declararam ldquonenhumrdquo inte-resse por ela cifra menor do que a dos grandes interessados)

Parece entatildeo haver espaccedilo aqui para diferentes formas de pensar representar e reinventar a Independecircncia do Brasil como verificar-se-aacute mais adiante de momento constata-se uma correspondecircncia estatiacutestica entre os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram ter dela ldquobomrdquo ou ldquoexcelenterdquo conhecimento (os de ldquonenhumrdquo ldquopoucordquo ou apenas ldquorazoaacutevelrdquo conhecimento compotildee os demais 83) e os 30 que afirma-ram buscar informaccedilotildees a respeito (sendo 60 os que buscam informaccedilotildees sobre histoacuteria em geral) Provavelmente trata-se de um subgrupo dos mais ativos no circuito de consumo-reproduccedilatildeo-criaccedilatildeo de toacutepicos relativos agrave Independecircncia na cultura de histoacuteria no Brasil Dentre esses 30 exclusi-vamente 305 afirmaram buscar informaccedilotildees sobre a Independecircncia em livros 291 na escola e nos livros didaacuteticos (evidentemente mais confina-dos ao puacuteblico jovem) 208 na internet 97 em raacutedio tevecirc eou jornais impressos e outros 97 ldquocom pessoas e lugares44 Os que responderam ler ou ter lido algo a respeito nos uacuteltimos dois anos foram 34 (os demais responderam ldquonatildeordquoldquonatildeo se lembrardquo ou natildeo responderam)

43Natildeo parece ser o caso da cultura histoacuterica

portuguesa de acordo com trabalhos recentes como os de PAIS Joseacute Machado Op Cit SOBRAL Joseacute Manuel Op Cit e MATOS Seacutergio Campos Consciecircncia histoacuterica e nacionalismo Portugal seacuteculos XIX e XX Lisboa Horizonte 2008

44A ausecircncia de menccedilotildees a outros tipos de suporte

de informaccedilotildees sobre a Independecircncia reforccedila a escolha das fontes secundaacuterias da pesquisa analisadas no proacuteximo item

45Embora seja muito frequente a consideraccedilatildeo de

que o principal marco fundacional da histoacuteria brasileira tenha sido o ldquodescobrimentordquo (isto eacute a chegada dos portugueses agrave Ameacuterica em 1500) e natildeo a ruptura poliacutetica entre Brasil e Portugal Muito provavelmente isso se conecta com uma tambeacutem muito frequente concepccedilatildeo da Independecircncia como ldquonatildeo-rupturardquo como processo negociado amigaacutevel e sem grandes solavancos Retornaremos agrave questatildeo

46Todas as 28 palavras oferecidas aos entrevistados

receberam no miacutenimo quatro menccedilotildees sendo que 22 tiveram mais de uma dezena de menccedilotildees a mesclarem termos que remetem a caracteriacutesticas atribuiacutedas agrave Independecircncia que ensejam relaccedilotildees diretas ou indiretas com ela ou que se referem a simples informaccedilotildees

47Foram feitas 310 menccedilotildees de termos positivos em

relaccedilatildeo agrave Independecircncia (liberdade democracia revoluccedilatildeo heroiacutesmo mudanccedila drama) contra 210 dos mesmos como natildeo combinando com ela essa tendecircncia eacute reforccedilada por 190 menccedilotildees a termos negativos que combinariam com ela (acordo escravidatildeo negociaccedilatildeo continuaccedilatildeo ditadura comeacutedia invenccedilatildeo tirania) sendo que os mesmos foram mencionados 391 vezes como natildeo combinando Esclarecer o caso de escravidatildeo pode ser referecircncia a uma realidade (em geral negativa) mas tambeacutem como metaacutefora poliacutetica Para todos os efeitos como mencionar o termo de outras maneiras

48148 escolhas incidiram sobre termos conflitivos

que com ela combinariam (guerra revoluccedilatildeo mudanccedila) contra 101 menccedilotildees a tais termos como natildeo combinando poreacutem tal tendecircncia se inverte nas 119 escolhas de termos paciacuteficos que com ela combinariam (paz acordo negociaccedilatildeo) contra 70 menccedilotildees aos mesmos como natildeo combinando

49Foram feitas 27 escolhas de povo como combinando

contra 22 do mesmo termo como natildeo combinando e 35 a elitepoderosos como combinando contra 14 em termos opostos o que indica certo equiliacutebrio tendente agrave segunda possibilidade

50Natildeo se pode deixar de mencionar algumas

outras palavras que natildeo se encontravam na lista mas foram acrescidas pelos entrevistados sendo portanto de menccedilatildeo espontacircnea As mais recorrentes combinando num sentido depreciativo foram ldquointeresserdquo e ldquocorrupccedilatildeordquo Outras palavras tais quais ldquounificaccedilatildeordquo ldquomorterdquo

16Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

A hipoacutetese da constituiccedilatildeo de um subgrupo ativo na cultura de histoacuteria por meio do tema da Independecircncia encontra respaldo nos resulta-dos do ranking do questionaacuterio para a importacircncia que ela teria tido para a Histoacuteria do Brasil 43 deram nota 10 e outros 31 notas entre 8 e 9 sendo que apenas 6 deram notas entre 0 e 4 ou natildeo souberam responder Ou seja mesmo quem natildeo se interessa pela Independecircncia ou pela Histoacute-ria do Brasil em geral tende a reconhecer o tema como sendo de grande importacircncia embora tal reconhecimento seja menor em se tratando de sua relaccedilatildeo com a Histoacuteria ldquoem geralrdquo (a essa pergunta 25 respondeu com nota 10 e outros 25 com notas 8 ou 9 em contraposiccedilatildeo a um elevado percentual de 22 que deu notas entre 0 e 4 ou natildeo soube responder) Ainda assim portanto a Independecircncia eacute fortemente valorizada por um percentual que extrapola os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram dela serem conhecedores ou os 20 que afirmaram buscar informaccedilotildees a seu respeito Valorizada poreacutem em meio ao que parece ser uma dificuldade de se pensaacute-la para aleacutem de sua tradicional circunscriccedilatildeo nacional (o que encontra como logo veremos enorme correspondecircncia nas fontes secundaacuterias) para aleacutem dos limites a ela convencionalmente impos-tos por tradiccedilotildees historiograacuteficas ainda fortes e mesmo por uma cultura de histoacuteria que tendo atributos fortemente nacionais tende a nela enxergar um marco fundacional importante isto eacute um marco diferenciador entre a histoacuteria do Brasil e a de outros paiacuteses45

O que nesse sentido nos mostram as escolhas de palavras que ldquocom-binamrdquo e ldquonatildeo combinamrdquo com a Independecircncia46 Em primeiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista mais em perspectiva positivaenalte-cedora do que negativadepreciativa47 Em segundo lugar a possibilidade da Independecircncia ser considerada tanto como rupturaconflitiva quanto como continuidadepaciacutefica48 Em terceiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista como algo menos popular do que elitista49 Em quarto e uacuteltimo lu-gar ateacute que ponto os entrevistados se mostraram conhecedores da histoacuteria 55 respostas indicaram termos informativos descabidos (Tiradentes combina D Pedro I D Joatildeo VI Joseacute Bonifaacutecio e Portugal natildeo) contra uma maioria de 190 menccedilotildees a tais termos de modo inverso Aqui os resultados podem indicar a prevalecircncia de um tipo de conhecimento de histoacuteria estruturado em personagens e trajetoacuterias individuais (como logo veremos as fontes secundaacute-rias tambeacutem referendaratildeo amplamente essa hipoacutetese)50

Na uacuteltima parte do questionaacuterio perguntou-se aos entrevistados acerca de datas de quatro eventos que podem ser considerados como marcos do processo de Independecircncia 68 responderam natildeo saber ou natildeo se lembrar da data da chegada da Corte portuguesa ao Brasil 13 deram respostas claramente erradas em muitas das quais (ldquomil e quinhentosrdquo ldquomil quinhentos e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo etc) natildeo obstan-te se vislumbra uma referecircncia adequada poreacutem tratada de modo equivo-cado e somente 9 souberam responder de modo preciso (ldquomil oitocentos e oitordquo) Diante da pergunta quanto agrave data da primeira constituiccedilatildeo do Brasil 85 disseram natildeo saber ou natildeo se lembrar 7 deram respostas claramente erradas (ldquomil e quatrocentosrdquo ldquomil quinhentos e oitentardquo) algumas das quais poreacutem se aproximando da evocaccedilatildeo de alguma consti-tuiccedilatildeo brasileira (ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquomil novecentos e trintardquo ldquomil novecentos e oitenta e oitordquo) e apenas 13 souberam responder com firmeza isto eacute com a presenccedila de ldquomil oitocentos e vinte e quatrordquo na resposta Jaacute a pergunta sobre a data

(em alusatildeo ao Grito) e ldquoprogressordquo enriqueceram a fileira dos termos valorativos

51Essa percepccedilatildeo eacute reforccedilada por alguns dos

dados obtidos por Purificaccedilatildeo Em meio a representaccedilotildees da Independecircncia produzidas por crianccedilas entre 09 e 13 anos encontram-se frases como ldquoQuando D Pedro viu terra gritou Independecircncia ou Morterdquo e ldquoPouco depois de descobrirem o Brasil gritaram a independecircnciardquo PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p40-41 Cabe lembrar que tais crianccedilas natildeo haviam tido ainda contato formal (na escola) com o tema da Independecircncia ldquoapenasrdquo por meio de uma cultura de histoacuteria a envolverem-nas

52O que parece impor uma urgente reflexatildeo em

torno dos efeitos do violento desprestiacutegio das referecircncias factuais que o sistema escolar impocircs ao ensino de Histoacuteria no Brasil das uacuteltimas deacutecadas O quecirc ademais natildeo parece uma situaccedilatildeo exclusivamente brasileira de acordo com a sugestatildeo que nos foi dada por Nuno Gonccedilalo Monteiro a ver aqui paralelismo com o ensino de Histoacuteria em Portugal

53Outras duas possibilidades promissoras seriam

analisar respostas a questotildees de vestibulares relativas agrave Independecircncia e entrevistas com professores e coordenadores pedagoacutegicos que de alguma forma lidem com o tema no cotidiano escolar

54MORENO Jean Carlos Limites escolhas e

expectativas horizontes metodoloacutegicos para anaacutelise dos livros didaacuteticos de histoacuteria Antiacuteteses Londrina v5 n10 p729 juldez2012

55O que eacute atestado por exemplo pela recente

consolidaccedilatildeo da presenccedila nos livros didaacuteticos de toacutepicos relativos agrave Histoacuteria do continente africano

56Dos 49 autores de livros didaacuteticos aqui

considerados 36 satildeo identificados pelos termos ldquomestrerdquo ldquodoutorrdquo ou ldquoprofessor universitaacuteriordquo O que natildeo significa como eacute bem sabido que tais autores sejam integralmente responsaacuteveis pelo conteuacutedo de suas obras

57MORENO Jean Carlos Op Cit p724

58Segundo dados oficiais somente no ano de

2012 esse governo comprou cerca de 408 milhotildees de livros didaacuteticos para os anos do Ensino Meacutedio (Assessoria de Comunicaccedilatildeo Social do FNDE 24 de agosto de 2012)

59Sua produccedilatildeo no entanto eacute regionalmente

concentrada na seleccedilatildeo das coleccedilotildees de didaacuteticos feita pelo MEC em 2010 oito editoras de Satildeo Paulo responderam por 842 da produccedilatildeo aprovada enquanto trecircs de Curitiba ficaram com os 158 restantes

60DIAS Adriana M GRINBERG Keila e

PELLEGRINI Marco Novo Olhar Histoacuteria v2 Satildeo

17Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

da abdicaccedilatildeo de D Pedro I foi a campeatilde em respostas imprecisas 92 dis-seram natildeo saber ou natildeo se lembrar 16 deu respostas erradas e apenas 12 soube responder ldquomil oitocentos e trinta e umrdquo

E quanto agrave data da Independecircncia do Brasil Em comparaccedilatildeo com as perguntas anteriores esta obteve respostas de qualidade superior natildeo obstante um nuacutemero ainda alto de respostas ldquonatildeo souberdquo e ldquonatildeo lembrardquo 33 dos entrevistados Haacute que se lembrar inclusive que desde a segunda parte do questionaacuterio o entrevistado jaacute sabia tratar-se de algo focado na Independecircncia ou seja se nas demais perguntas pode-se dizer que ele foi pego totalmente surpresa nesta natildeo Por isso e se considerarmos ainda os 14 que deram respostas claramente erradas a esta pergunta (ldquomil e qui-nhentosrdquo ldquovinte e um de abril de mil e quinhentosrdquo ldquovinte e dois de abril de mil e quinhentosrdquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquovinte e um de abrilrdquo ldquovinte e dois de abrilrdquo ldquonove de julhordquo) chega-se a um total de 47 de pessoas incapazes de dizer quando ocorreu a Independecircncia do Brasil Por outra parte os que souberam responder (ldquosete de setembro de mil oito-centos e vinte e doisrdquo ou ldquomil oitocentos e vinte e doisrdquo) chegaram a 16 iacutendice muito proacuteximo das dimensotildees do hipoteacutetico grupo de interessados e razoaacuteveis conhecedores da Histoacuteria da Independecircncia referido alguns paraacutegrafos acima

Trata-se de um nuacutemero elevado ainda mais se reafirmarmos que a Independecircncia natildeo eacute jamais completamente ignorada em meio agrave cultura brasileira de histoacuteria De certo modo sim mas natildeo deve escapar agrave obser-vaccedilatildeo de ningueacutem que nessa pergunta especiacutefica a confusatildeo de datas se daacute dentro de referecircncias histoacutericas e cronoloacutegicas bastante demarcadas a Independecircncia o ldquodescobrimento do Brasilrdquo Tiradentes e a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica todos eles marcos fundacionais em uma memoacuteria histoacuteri-ca oficial logo fundamentais na constituiccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil51 Tais resultados indicam preliminarmente a precariedade da concepccedilatildeo de histoacuteria ndash da Independecircncia em particular - segundo formas convencionais de organizaccedilatildeo cronoloacutegica e isso a despeito dessa socieda-de ser permeada e carregada de referecircncias cronoloacutegicas que organizam a vida das pessoas em muitos de seus interstiacutecios (vida familiar vida profis-sional praacuteticas de lazer e de culto etc) Pouquiacutessimas respostas ndash esta-tisticamente despreziacuteveis -parecem esboccedilar a forja de alguma modalidade alternativa de organizaccedilatildeo temporal da histoacuteria (ldquoquase duzentos anosrdquo ldquomil oitocentos e alguma coisardquo ou ldquoD Pedro saiu para brigar com o irmatildeo e deixou D Pedro IIrdquo) diante do quecirc ganha forccedila a hipoacutetese de uma enorme e generalizada dificuldade apresentada por essa sociedade no manejo de recursos baacutesicos de historicizaccedilatildeo da histoacuteria como a cronologia52

Ateacute aqui as conclusotildees a que se pode chegar ainda satildeo excessiva-mente parciais extraiacutedas apenas da sondagem de opiniatildeo conveacutem no entanto sumarizaacute-las de modo a reforccedilaacute-las como hipoacuteteses capazes de nortear a anaacutelise vindoura Segundo o que nos mostram os entrevistados a Independecircncia eacute pouco frequentada por muitos mas assiduamente por um grupo razoaacutevel (seratildeo seus membros os uacutenicos capazes de pensaacute-la segundo marcos cronoloacutegicos) eacute amplamente considerada tema da maior importacircncia para a Histoacuteria do Brasil e de menor importacircncia para a His-toacuteria do Mundo ela eacute menos interessante do que outros temas (quais natildeo sabemos) assim como a Histoacuteria do Brasil eacute menos do que a Histoacuteria Geral mas tende a ser vista como algo respeitaacutevel eventualmente positivo para o Brasil o que parece evocar um imaginaacuterio oficial ainda muito vigente de

Paulo FTD 2010 ALVES Alexandre e OLIVEIRA Letiacutecia F de Conexotildees com a Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Moderna 2010 PEDRO Antocircnio e LIMA Lizacircnias de Souza Histoacuteria sempre presente v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VICENTINO Claacuteudio R e DORIGO Gianpaolo F Histoacuteria Geral e do Brasil v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FIGUEIRA Divalte G Histoacuteria em foco v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2011 NOGUEIRA Fausto G e CAPELLARI Marcos Ser protagonista Histoacuteria 2ordm ano do Ensino Meacutedio Satildeo Paulo Ediccedilotildees SM 2010 BURITTI Flaacutevio Caminhos do Homem v2 Curitiba Base Editorial 2010 CAMPOS Flaacutevio de CLARO Regina A escrita da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 COTRIM Gilberto Histoacuteria Global Brasil e Geral v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 AZEVEDO Gislane C e SERIACOPI Reinaldo Histoacuteria em movimento v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2010 MORENO Jean Carlos e GOMES Sandro V Histoacuteria cultura e sociedade v3 Curitiba Positivo 2010 FERREIRA Joatildeo Paulo e FERNANDES Luiz Estevam Nova Histoacuteria integrada v2 2a ed Curitiba Moacutedulo 2010 MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Histoacuteria Geral e Brasil v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam B Histoacuteria Das cavernas ao terceiro milecircnio v2 2a ed Satildeo Paulo Moderna SANTIAGO Pedro CERQUEIRA Ceacutelia e PONTES Maria Aparecida Por dentro da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 MOCELLIN Renato e CAMARGO Rosiane Histoacuteria em debate v2 Satildeo Paulo Editora do Brasil 2010 CATELLI Jr Roberto GANDINI Mariacutea Soledad M e ASPIS Renata L Histoacuteria texto e contexto v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FARIA Ricardo de M MIRANDA Mocircnica Liz e CAMPOS Helena Estudos de Histoacuteria v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010

61PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit

62Conforme observou o Guia de livros didaacuteticos

PNLD 2012 Histoacuteria 17 das coleccedilotildees aprovadas adotaram a perspectiva da Histoacuteria Integrada na qual se expotildee o conteuacutedo histoacuterico a partir da ldquosequecircncia cronoloacutegica de base europeiardquo havendo o predomiacutenio da ldquoHistoacuteria Geral eurocecircntricardquo linear Os assuntos sobre a Histoacuteria da Ameacuterica e do Brasil estatildeo intercalados nesta grande Histoacuteria Geral As outras duas coleccedilotildees optaram pelo formato temaacutetico organizando os assuntos ldquoem torno de muacuteltiplos espaccedilos e temporalidadesrdquo mas guiados por um eixo cronoloacutegico Guia de livros didaacuteticos PNLD 2012 Histoacuteria Op Cit p 18-19

63Uma afirmaccedilatildeo tiacutepica ldquoO nascimento do

Brasil como paiacutes independente encontra-se dentro do contexto de crise do Antigo Regime e do sistema colonial mercantilistardquo VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p89 Os paradigmas historiograacuteficos a que tal tipo de afirmaccedilatildeo remete satildeo evidentemente as obras de Caio Prado Juacutenior e Fernando Novais jaacute amplamente presentes tambeacutem nos livros de Ensino Fundamental PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit cap3

18Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

glorificaccedilatildeo da Independecircncia laudatoacuterio e a destacar seus personagens centrais No entanto tal tendecircncia encontra obstaacuteculo em outras contraacute-rias minoritaacuterias mas natildeo despreziacuteveis a verem a Independecircncia como algo pouco ou nada importante uma histoacuteria restrita espacialmente e socialmente e mais de continuidades do que de rupturas

Assim jaacute eacute possiacutevel afirmar que a Independecircncia enseja disputas a seu respeito em torno de suas representaccedilotildees e memoacuterias oficiais ou natildeo Muito provavelmente alguns dos motivos que explicam sua rejeiccedilatildeo por muitos explicam igualmente sua ativa e entusiasmada frequecircncia por um grupo menor Em uma terceira via ela jamais deixou de ser pensada e divulgada em perspectivas complexas fortemente criacuteticas e analiacuteticas Para todos os efeitos a Independecircncia contribui sem duacutevida para tipificar uma cultura de histoacuteria no Brasil plural variada e apenas parcialmente organizada em padrotildees cronoloacutegicos (temporais) na qual ocupa um papel central e da qual irradiam outros elementos valiosos para um melhor en-tendimento dessa mesma cultura

4 ndash A Independecircncia nas escolas A principal fonte de fomento e irradiaccedilatildeo de atitudes do brasileiro diante da Independecircncia eacute o sistema escolar com sua diversidade de agentes es-paccedilos procedimentos materiais e valores Aqui seraacute analisado apenas um componente prenhe de significados desse sistema o livro didaacutetico53

Segundo um estudioso da mateacuteria os autores de livros didaacuteticos de Histoacuteria em geral ndash grupo no qual ele mesmo estaacute incluiacutedo -ldquonatildeo tecircm por objetivo somente transpor a Histoacuteria acadecircmica eles identificam necessi-dades sociais estatildeo imersos na sociedade e portanto na proacutepria histoacuteria sobre a qual escrevemrdquo54 Tais livros satildeo assim documentos privilegiados de uma cultura de histoacuteria trazem conteuacutedos de acordo com padrotildees e paracircmetros de uma sociedade agrave qual servem sendo inclusive cada vez mais sensiacuteveis a impulsos de origem natildeo acadecircmica55 contam com a colaboraccedilatildeo ou autoria de historiadores profissionais56 que trabalham junto a editores assistentes revisores iconoacutegrafos diagramadores e designers graacuteficos57 satildeo consumidos preferencialmente por educadores e educandos mas chegam tambeacutem agraves famiacutelias destes e ao puacuteblico em geral tendem a permanecer por algum tempo disponiacuteveis em salas de aula residecircncias livrarias e bibliotecas e satildeo fortemente condicionados pelas exigecircncias de um grande mercado editorial cujas demandas capi-talistas natildeo satildeo menos evidentes do que as pedagoacutegicas O livro didaacutetico eacute o segundo suporte de leitura mais lido no Brasil sendo sua produccedilatildeo o mais lucrativo negoacutecio de uma induacutestria editorial brasileira que tem no governo federal seu maior cliente58 Essa produccedilatildeo dos livros didaacuteticos movimenta enormes cifras veicula paacuteginas e paacuteginas de conteuacutedos de Histoacuteria produzidos por e destinados a um amplo conjunto de agentes sociais e tecircm circulaccedilatildeo nacional59

A Independecircncia estaacute presente em todos os 21 livros destinados ao Ensino Meacutedio aqui considerados60 assim como estava em outros 12 de Ensino Fundamental contemplados por um estudo acadecircmico a respeito61 Nessa dupla frente abre-se uma possibilidade de anaacutelise valiosa jaacute que alguns livros circulam atualmente enquanto outros circularam agrave eacutepoca em que jovens adultos que hoje tecircm entre 22 e 26 anos eram crianccedilas entre 9 e 13 Unem-se assim duas temporalidades de tratamentos da Independecircn-cia que podem ser unificadas por uma cultura de histoacuteria

64Exemplo eacute a afirmaccedilatildeo de que ldquoem

reconhecimento agrave importacircncia da Batalha do Jenipapo como um episoacutedio fundamental no processo de independecircncia e de consolidaccedilatildeo do territoacuterio a data de 13 de marccedilo de 1823 foi estampada na bandeira do estado do Piauiacuterdquo DIAS Adriana GRINBERG Keila e PELLEGRINI Marco Op Cit p240

65Excelente demonstraccedilatildeo eacute dada por uma

proposta pedagoacutegica de um jogo didaacutetico elaborado pelo Laboratoacuterio de Ensino de Histoacuteria da Universidade Federal de Pelotas descrita em GASPAROTTO Alessandra ESPIacuteRITO SANTO Marco Viniacutecio do SILVA Eduarda Borges da Jogo didaacutetico vira-vira a metroacutepole vira colocircnia a colocircnia vira-metroacutepole Revista Latino-Americana de Histoacuteria v2 n6 agosto de 2013 (Ediccedilatildeo Especial) p648-661

66Os preferidos satildeo D Joatildeo Carlota Joaquina Joseacute

Bonifaacutecio e D Pedro

67Um exemplo apoacutes afirmar que ldquodurante anos a

historiografia oficial tentou idealizar o processo de independecircncia e seus autores explicado como um ato de heroiacutesmo contra a tirania e em defesa da liberdaderdquo uma das obras afirma em tom de contraposiccedilatildeo ldquoMas nas uacuteltimas deacutecadas novos estudos permitiram lanccedilar um novo olhar sobre esse periacuteodo Expressotildees dessa mudanccedila satildeo algumas produccedilotildees culturais recentes que tratam desse momento com uma visatildeo criacutetica e ateacute mesmo sarcaacutestica como por exemplo o romance O Chalaccedila (1999) de Joseacute Roberto Torerordquo Por fim propotildee como ldquoSugestatildeo de atividaderdquo supostamente para aguccedilar o senso criacutetico do aluno ldquocomparar o romance de Torero citado acima com a visatildeo oficial dos eventos fornecida pela ceacutelebre pintura Independecircncia ou morte (O Grito do Ipiranga) de Pedro Ameacuterico ou pelo filme Independecircncia ou morte (1972) de Carlos Coimbrardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p80-81) Aleacutem de ignorar os momentos objetivos e naturezas distintos das obras recomendadas tal atividade sugere a ultrapassagem de uma visatildeo ldquotradicionalrdquo da Independecircncia por outra ldquocriacuteticardquo ndash logo mais aceitaacutevel Assim o aluno eacute encorajado a conceber a histoacuteria por meio de sua livre-interpretaccedilatildeo mas sendo impelido a endossar a de um romance satiacuterico (logo voltaremos a ele)

68Em um livro para o Ensino Fundamental de

1996 lia-se que ldquopara a realizaccedilatildeo do nosso trabalho foi importante a participaccedilatildeo de Mariana Massarani artista que desenhou com alegria e bom humor os acontecimentos estudadosrdquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Do mundo indiacutegena ao periacuteodo regencial no Brasil Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1994 p1 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p79) Essa eacute uma tendecircncia antiga como nos mostra o poema de Murilo Mendes ldquoA pescariardquo (publicado em Histoacuteria do Brasil de 1932) evocativo da tatildeo ceacutelebre quanto historicamente irrelevante disenteria de D Pedro em 7 de setembro de 1822 e transcrito em outro didaacutetico ldquoFoi nas margens

19Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Natildeo haacute duacutevida que a maioria dos livros didaacuteticos de Histoacuteria voltados ao Ensino Meacutedio abre possibilidades de construccedilatildeo de um conhecimento acerca da Independecircncia multifacetado matizado criacutetico e criterioso e deles pode-se extrair muitos exemplos a revelarem diaacutelogos propositi-vos entre saberes acadecircmicos e didaacuteticos da Histoacuteria (afinal os proacuteprios autores e avaliadores dos livros estatildeo quase todos diretamente ligados ao meio acadecircmico) aliaacutes em comparaccedilatildeo com os de Ensino Fundamental de cerca de uma deacutecada atraacutes essas possibilidades soacute cresceram Poreacutem como natildeo eacute objetivo deste estudo analisar tais livros em si mesmos -somente deles extrair elementos que tipifiquem uma cultura de histoacuteria por meio da Independecircncia ndash mais relevantes parecem ser justamente alguns de seus pontos sensiacuteveis nos quais tais livros se fazem menos acadecircmicos e nos quais se traduzem de modo mais significativo componentes mais amplos da sociedade que lhes daacute sentido

Em todos esses livros a Independecircncia eacute invariavelmente vista como parte de um processo mais amplo no qual se incluem outros acontecimen-tos poliacuteticos americanos e europeus de finais do seacuteculo XVIII e comeccedilos do seacuteculo XIX (embora quase nunca sejam feitas conexotildees fundamentais entre eles deficiecircncia notaacutevel sobretudo no tocante agraves independecircncias da Ameacuterica espanhola vistas sempre como supostos contraexemplos da Independecircncia do Brasil62) O episoacutedico se faz presente na menccedilatildeo a vaacuterios temas menores ndash a vinda da Corte a abertura dos Portos o governo de D Joatildeo no Rio de Janeiro a Revoluccedilatildeo de Pernambuco a Revoluccedilatildeo do Porto etc ndash mas sempre em observacircncia a contextos histoacutericos espaciais e temporais mais amplos63 Destaque-se que 80 dos livros fazem referecircncia expliacutecita ao termo ldquoguerra(s) de independecircnciardquo64 o que enseja uma con-cepccedilatildeo tambeacutem multirregional do tema e vaacuterios o aprofundam O mesmo pode ser dito de perfis biograacuteficos presentes mas submetidos a uma loacutegica processual da Histoacuteria

Essa ecircnfase em processos em detrimento parcial de acontecimentos e personagens eacute importante indiacutecio de uma sintonia entre saberes aca-decircmicos e natildeo acadecircmicos65 Contudo deve-se relativizar o peso desse diaacutelogo jaacute no que tange ao tratamento dispensado agraves biografias aleacutem de pouco ou nada inovarem na escolha dos personagens destacados66 alguns livros didaacuteticos trazem fragmentos anedoacuteticos de tais trajetoacuterias hoje em dia pouco ou nada uacuteteis a historiadores profissionais (embora as comilan-ccedilas de D Joatildeo os amantes de D Carlota ou as noitadas de D Pedro natildeo os distingua de outros agentes histoacutericos de sua eacutepoca tampouco satildeo trata-dos como tiacutepicos67) Parece razoaacutevel argumentar que ao menos parcial-mente tal insistecircncia da parte do livro didaacutetico atende ao gosto do leitorconsumidor tornando tais suportes materiais mais agradaacuteveis e sedutores assim sendo constata-se justamente um limite no diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e saberes didaacuteticos expressos em tais livros bem como se anuncia uma tendecircncia de representaccedilatildeo humoriacutestica do passado em uma cultura de histoacuteria como a brasileira muito forte em outros suportes68 Eis um mercado ndash que no Brasil mescla dimensotildees editoriais e midiaacuteticas com outras educacionais e culturais mais amplas ndash impondo seus padrotildees de representaccedilatildeo do passado

Aleacutem de envolverem historiadores profissionais em sua produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo os livros didaacuteticos de Ensino Meacutedio parecem esforccedilar-se cada vez mais em trazer conteuacutedos extraiacutedos de obras acadecircmicas bem como apresentar ao leitor uma pluralidade de posiccedilotildees acerca de um determina-

do IpirangaEm meio a uma pescariaSentindo-se mal D PedroComera demais cuscuzDesaperta a braguilhaE grita roxo de raivaOu me livro desta coacutelicaOu morro logo de uma vezO priacutencipe se aliviouSai no caminho cantandoJaacute me sinto independenteSafa Vou de perto a morteVamos cair no fadinhoPra celebrar o sucessordquo MACEDO Joseacute Rivair Brasil ndash uma histoacuteria em construccedilatildeo Satildeo Paulo Brasil 1996 p166 Cit por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p101

69Tomemos por exemplo esta afirmaccedilatildeo ldquoDe acordo

com alguns historiadores as raiacutezes da independecircncia brasileira estatildeo na segunda metade do seacuteculo XVIII quando se multiplicaram atividades produtivas e comerciais na colocircnia sobretudo na regiatildeo Centro-Sulrdquo (MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Op Cit p113) Nela eacute possiacutevel reconhecer a presenccedila de influente e importante interpretaccedilatildeo acadecircmica acerca da Independecircncia do Brasil (DIAS Maria Odila A interiorizaccedilatildeo da metroacutepole (1808-1853) In MOTA Carlos Guilherme 1822 dimensotildees Satildeo Paulo Perspectiva 1972 p160-184) no entanto natildeo eacute apresentada qualquer contraposiccedilatildeo (se esta posiccedilatildeo eacute da parte de ldquoalguns historiadoresrdquo outra divergente deve ser da parte de outros) Mais adiante lecirc-se que ldquoo fato relevante foi que a transferecircncia da corte para o Brasil provocou uma inversatildeo histoacuterica de modo significativo e irreversiacutevel nas relaccedilotildees entre a metroacutepole portuguesa e a colocircnia brasileirardquo (Idem p114) Ora o que seria uma inversatildeo irreversiacutevel dessas relaccedilotildees Portugal teria se tornado para sempre colocircnia do Brasil

70Nos livros didaacuteticos de Ensino Fundamental

analisados por Purificaccedilatildeo jaacute eram abundantes as transcriccedilotildees de trechos de textos de historiadores profissionais sem que deles resultasse qualquer ensejo de pluralidade de pensamento ou de estiacutemulo agrave interpretaccedilatildeo

71VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA

Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p 103

72O capiacutetulo 14 de uma das obras intitulado

ldquoO processo de independecircncia da Ameacuterica portuguesardquo inicia-se com um excerto do Romanceiro da Inconfidecircncia de Ceciacutelia Meireles tambeacutem indutor a essa interpretaccedilatildeo ldquoAtraveacutes de grossas portas sentem-se luzes acesas e haacute indagaccedilotildees minuciosas dentro das casas fronteiras Que estatildeo fazendo tatildeo tarde Que escrevem conversam pensam Mostram livros proibidos Leem notiacutecias nas GazetasTeratildeo recebido cartasde potecircncias estrangeiras [] Oacute vitoacuterias festas flores das lutas da Independecircncia Liberdade ndash essa palavra que o sonho humano alimenta que natildeo haacute ningueacutem que explique e ningueacutem que natildeo entendardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p 202) Jaacute nas ldquosugestotildees de leitura e consulta para o professorrdquo de outra encontra-se indicaccedilatildeo de uma obra de J J Chiavenato - Inconfidecircncia mineira as vaacuterias faces Satildeo Paulo Global 2000 - com este comentaacuterio ldquoo autor mostra o movimento que buscava a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Adotando uma abordagem que parte da realidade socioeconocircmica do periacuteodo este livro releva diferentes aspectos desse momento singular da histoacuteria brasileirardquo (NOGUEIRA Fausto

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do toacutepico que seja decorrente de debates acadecircmicos No entanto ainda eacute frequente que tais conteuacutedos se inclinem agrave pura formalidade dificilmente explicitando divergecircncias oriundas da academia ou resultando em uma tomada de posiccedilatildeo realmente criacutetica perante a histoacuteria69 Ao usuaacuterio do livro eacute apresentada uma suposta pluralidade de pensamento natildeo como ferramenta de obtenccedilatildeo dessa pluralidade mas como estilo de composiccedilatildeo e padronizaccedilatildeo do material didaacutetico70

Esse tipo de atitude formalista pode ser encontrada tambeacutem em propostas de atividades dirigidas ao aluno como esta

A interpretaccedilatildeo sobre a independecircncia do Brasil provocou e ainda provoca muitas divergecircncias Sob o ponto de vista econocircmico alguns pesquisadores defendem que a separaccedilatildeo ocorreu de fato em 1808 [] Outros com interpretaccedilotildees mais poliacuteticas indicam o 7 de setembro de 1822 embora nenhuma medida formal tenha sido tomada nessa data ndash foi um ato simboacutelico Depois da Guerra do Paraguai jornais republicanos argumentavam que [] D Pedro havia atendido aos apelos de independecircncia dos brasileiros mas os teria traiacutedo quando fechou a Assembleia Constituinte em 1823 Enalteciam entatildeo a Inconfidecircncia Mineira (1789) a Revoluccedilatildeo Pernambucana (1817) e a Confederaccedilatildeo do Equador (1824) movimentos com teor republicano conforme as reais aspiraccedilotildees dos brasileiros

Satildeo vaacuterias interpretaccedilotildees que variam de acordo com a posiccedilatildeo poliacutetica ou momento histoacuterico dos autores Alguns intelectuais consideram ateacute mesmo que o Brasil hoje tem uma independecircncia mais nominal do que real pois continuaria dependente dos paiacuteses mais ricos

Em sua opiniatildeo quando o Brasil se tornou um paiacutes independente71

Aqui novamente eacute apresentada uma divergecircncia de interpretaccedilatildeo e vaacuterias satildeo as possibilidades de resposta agrave pergunta quando o Brasil se tornou um paiacutes independente No entanto todas as posiccedilotildees apresentadas parecem equivaler-se pois tudo depende da ldquoposiccedilatildeo poliacuteticardquo ou ldquodo mo-mento histoacutericordquo da pessoa disposta a respondecirc-la Assim e por induccedilatildeo a Inconfidecircncia Mineira poderia ser uma resposta aceitaacutevel conforme visatildeo ainda presente em alguns livros72 e a despeito do contraacuterio que historia-dores vecircm afirmando nas uacuteltimas deacutecadas Do mesmo modo a atividade pareceria aceitar a ldquonatildeo independecircncia de fatordquo ideia muito presente na cultura de histoacuteria no Brasil73 tatildeo sedutora quanto inconsistente do ponto de vista acadecircmico Para o aluno tratar-se-ia de uma questatildeo de simples opccedilatildeo (poliacutetica) diante da qual a Histoacuteria se destemporaliza

Uma Histoacuteria processual mais do que episoacutedica ou personalista uma Histoacuteria permeada de explicaccedilotildees acadecircmicas ao mesmo tempo uma Histoacuteria com limitaccedilotildees em termos de divergecircncias relativizaccedilotildees e possibilidades em aberto condicionada a suportes materiais repletos de convenccedilotildees a tornarem-nos muito parecidos entre si Talvez seja no tra-tamento dispensado a imagens que os livros didaacuteticos melhor revelam tais convenccedilotildees reforccedilando as limitaccedilotildees de seu diaacutelogo com a Histoacuteria acadecirc-mica bem como acentuando suas caracteriacutesticas de mercadoria Todos os livros aqui considerados satildeo carregados de itens especiacuteficos a quebrarem a continuidade do texto e suas paacuteginas satildeo multicoloridas e povoadas por fi-guras como obras de pintores dos seacuteculos XIX e XX74 Quase nunca poreacutem tais imagens satildeo analisadas como fontes histoacutericas confinadas agrave funccedilatildeo de mera ilustraccedilatildeo frequentemente modificadas em cor e tamanho ateacute mesmo mutiladas ndash sem esclarecimento ndash em prol da diagramaccedilatildeo75 Em tais casos inevitavelmente cria-se uma ideia natildeo de uma histoacuteria sujeita a muacuteltiplas interpretaccedilotildees (contrapondo-se portanto a vaacuterias das atividades

e CAPELLARI Marcos Op Cit p71) Em uma terceira obra logo na abertura de um capiacutetulo intitulado ldquoA independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo lecirc-se que ldquoos dias 21 de abril e 7 de setembro feriados nacionais nos fazem lembrar de dois momentos do processo histoacuterico que levou a independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo (COTRIM Gilberto Op Cit p223) A associaccedilatildeo direta entre Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia era mais comumente feita em livros didaacuteticos de deacutecadas atraacutes Um de Ensino Fundamental caracterizava a Revolta de Beckman a Guerra dos Emboabas a Revolta de Felipe dos Santos a Guerra dos Mascates e as conjuraccedilotildees Mineira e Baiana como movimentos nos quais ldquoos revoltosos se opuseram agrave metroacutepole sonhando e lutando pela autonomia do paiacutesrdquo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Nas trilhas da histoacuteria Ensino Fundamental Belo Horizonte Dimensatildeo 1999 v4) Citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p108

73FIGUEIRA Divalte G Op Cit p191 Nos de

Ensino Fundamental AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 CARMO Socircnia S do COUTO Eliane F B A A consolidaccedilatildeo do capitalismo e o Brasil impeacuterio Satildeo Paulo Atual 1997 (Histoacuteria Passado Presente 3) p105 FERREIRA Joseacute Roberto Histoacuteria Ediccedilatildeo Reformulada Satildeo Paulo FTD 1997 (7ordf seacuterie) p65 ALVES Kaacutetia Correia Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p 128 Citados por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p78 84-85 96 e 111

74Debret Rugendas Moreaux Feacutelix Taunay

Constantino Fontes Polliegravere Parreiras Benedito Calixto Delerive Martins Viana Oscar Pereira da Silva Georgina de Albuquerque e Aldemir Martins entre outros

75Isso jaacute era frequente haacute uma deacutecada com livros

de Ensino Fundamental como por exemplo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p126 e COTRIM Geraldo Op Cit p 112 conforme anaacutelise de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p113 e 123 Haacute que se dizer que livros didaacuteticos natildeo satildeo meio exclusivo para esse esvaziamento do valor documental da iconografia havendo na proacutepria publicaccedilatildeo acadecircmica problema semelhante como demonstra CAVENAGHI Airton Joseacute O atlas do impeacuterio do Brazil e as representaccedilotildees presentes no livro Projeto Histoacuteria v 41 2010 p 383-403

76Constataccedilatildeo semelhante agrave de PURIFICACcedilAtildeO Ana

Teresa da Op Cit para os didaacuteticos de Ensino Fundamental

77NOGUEIRA Fausto e CAPELLARI Marcos Op

Cit p255

78Para um deles ldquoo pintor Pedro Ameacuterico imaginou

a cena ocorrida agraves margens do riacho do Ipirangardquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 para outro um ceacutelebre quadro mostraria uma ldquocena de uma

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sessatildeo das cortes de Lisboa reconstituiacuteda pelo pintor Oscar Pereira da Silvardquo Cfr CARMO Socircnia do COUTO Eliane F B A Op Cit p 73 um terceiro propunha ao aluno a seguinte atividade ldquoobserve cuidadosamente as gravuras de Debret que aparecem no texto Descreva cada uma delas e compare as cenas nelas retratadas com as cenas de nossas ruas de hoje Haacute diferenccedila Em que sentidordquo Cfr GARCIA Leocircnidas F Estudos de histoacuteria sociedades contemporacircneas 2 ed rev Goiacircnia Editora da UFG 1996 Manual do Professor p 111 Todas as informaccedilotildees foram retiradas de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p81 88 e 137

79Conforme bem mostrado por Elias Saliba Cfr

SALIBA Elias Experiecircncias e representaccedilotildees sociais reflexotildees sobre o uso e o consumo das imagens Anais do II Encontro Perspectivas do Ensino de Histoacuteria Satildeo Paulo FEUSP 1996 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p119

80Produzida pela Secretaria de Ensino agrave

Distacircncia do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo em parceria com a TV Escola e a Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco com a companhia teatral Matildeo Molenga Parte 1 disponiacutevel em youtubecomwatchv=Z60eHBJ1xjY 18082 visualizaccedilotildees e 15 comentaacuterios parte 2 disponiacutevel em youtubecomwatchv=2QLkP2NDhMg 30100 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios (parte desse episoacutedio tambeacutem disponiacutevel em youtubecomwatchv=bAPUjP7l-lI 18398 visualizaccedilotildees e 16 comentaacuterios acesso em 13022014

81Como Clemente Pereira Gonccedilalves Ledo Cipriano

Barata Paes de Andrade e frei Caneca O fato de se tratar de uma produccedilatildeo pernambucana contribui para tanto

82Semelhante observaccedilatildeo pode ser feita a respeito

dos doze curtos episoacutedios da seacuterie D Joatildeo no Brasil inspirada em uma narrativa em quadrinhos da chegada da Corte ao Brasil seacuterie de animaccedilatildeo produzida pelo Canal Futura baseada no livro de histoacuteria em quadrinhos D Joatildeo Carioca a corte portuguesa chega ao Brasil (1808 - 1821) escrito pela historiadora Lilia Schwarcz e pelo desenhista Spacca (Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007) Novamente tem-se um material convincente afinado em muitos sentidos com um conhecimento acadecircmico mas que ao recorrer agrave saacutetira tambeacutem evoca estereoacutetipos convencionais como por exemplo os mesmos acima mencionados em referecircncia a priacutencipe e princesa Poder-se-ia atribuir tal convencionalismo dentre outros fatores ao de que a primazia da linguagem visual aqui opera duplamente isto eacute com os quadrinhos e tambeacutem com o programa televisivo criado a partir deles amplificando assim os efeitos decorrentes da saturaccedilatildeo visual da sociedade que daacute origem e significado a esse material Para todos os efeitos a imposiccedilatildeo de tais convenccedilotildees eacute forte ateacute mesmo conforme jaacute visto em materiais menos visuais que este Episoacutedio 01 youtubecomwatchv= 9f5RB1zcD5Eamplist=PLyP1ks9vaqhj2y6MmckU DyuXtWmHgPLe5ampindex=1 331 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio episoacutedio 02 youtubecomwatchv= w-BLqvhYPGkamplist=PL5837763F26AB1B87

oferecidas pelos proacuteprios livros) mas de uma histoacuteria imoacutevel a ser captada de modo instantacircneo uma histoacuteria verdadeira Aleacutem do mais confundem-se os diferentes contextos motivaccedilotildees e condiccedilotildees de produccedilatildeo de tais imagens o que equivale agrave oferta de uma confusatildeo temporal que impossibi-lita a compreensatildeo dessa histoacuteria76

As uacutenicas exceccedilotildees satildeo os ceacutelebres quadros de Moreaux e de Pe-dro Ameacuterico Todos os livros didaacuteticos aqui considerados se esforccedilam por submetecirc-los a uma criacutetica muitas vezes comparativa considerando forma conteuacutedo e contexto mesmo assim eacute possiacutevel encontrar afirmaccedilotildees como a de que Ameacuterico teria tido ldquoo intuito de fazer a representaccedilatildeo desse famoso acontecimento da maneira mais fiel possiacutevelrdquo e que ldquomuitos dos elementos representados pelo pintor satildeo sabidamente falsosrdquo77 Provavel-mente satildeo resquiacutecios de um momento anterior no qual os livros didaacuteticos mostravam-se muito menos cuidadosos ateacute mesmo na utilizaccedilatildeo do quadro de Ameacuterico78 mas tambeacutem marcas atuais de uma sociedade de haacutebitos fortemente visuais cuja saturaccedilatildeo de imagens tende a resultar em posturas pouco criacuteticas em relaccedilatildeo ao que se vecirc bem como em indistinccedilatildeo tempo-ral das mesmas79 Haacute que se lembrar por fim e novamente que os textos desses livros satildeo cheios de descontinuidades como se cada pedaccedilo de cada paacutegina tivesse autonomia prescindindo de certo modo da leitura dos demais Guardaratildeo tais constataccedilotildees alguma relaccedilatildeo com as dificuldades apresentadas pelos entrevistados na sondagem de opiniatildeo de organizar visotildees da Histoacuteria da Independecircncia segundo marcos cronoloacutegicos bem como de distinguir diferenccedilas entre intervalos temporais Eacute bem possiacutevel sobretudo porque ela seraacute endossada pela observaccedilatildeo de outras fontes

5 - A Independecircncia na internet e na tevecircExiste farto e rico material audiovisual disponiacutevel na internet com referecircncias agrave Independecircncia do Brasil e que a exemplo dos livros didaacuteticos represen-tam a convergecircncia de esforccedilos profissionais muacuteltiplos (mais os programas de tevecirc do que os viacutedeos independentes) como pesquisadores roteiristas apresentadores repoacuterteres cenoacutegrafos teacutecnicos variados etc As fontes aqui delimitadas perfazem 107 viacutedeos acessiacuteveis no YouTube e que natildeo obstante sua ampliacutessima diversidade convergem em muitos significados

Observe-se o caso de viacutedeos educativos documentaacuterios e programas de televisatildeo com entrevistas e debates que em comum apresentam objetivos formativos e esforccedilos verdadeiros de incorporaccedilatildeo de conteuacutedos acadecircmicos traduzidos em linguagens didaacuteticas Um caso exemplar eacute a seacuterie 500 anos o Brasil - Impeacuterio na TV que conta uma histoacuteria do Brasil da chegada da Corte ao periacuteodo das regecircncias em formato de telejornal com trama romanceada e teatro de bonecos80 Aqui vecirc-se uma Histoacuteria processual com informa-ccedilotildees corretas e amparadas em datas deslocamentos frequentes dos eixos espaciais de observaccedilatildeo (regional internacional) com menccedilatildeo a persona-gens que extrapolam o tradicional ciacuterculo da Corte portuguesa81 e ecircnfase no caraacuteter violento e conflitivo da formaccedilatildeo do Brasil no seacuteculo XIX Mesmo um material histoacuterico-pedagoacutegico desse quilate evoca por exemplo a falta de atributos esteacuteticos de Carlota Joaquina ou a pusilanimidade de seu marido a revelarem mais uma vez o mercadologicamente eficiente componente bio-graacutefico-anedoacutetico no tratamento da Independecircncia advindo de sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria mais ampla82

Em outros casos o fato de programas de televisatildeo buscarem o auxiacutelio de especialistas na Independecircncia revela uma convenccedilatildeo formal como nos

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16566 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios episoacutedio 03 youtubecomwatchv=QvWSE-sF-w4amplist =PL5837763F26AB1B87 18406 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios episoacutedio 04 youtubecomwatchv= 2N5wBvpgyXEamplist=PL5837763F26AB1B87 12808 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 05 youtubecomwatchv=VaHrSAFBf1Uamplist =PL5837763F26AB1B87 14615 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 06 youtubecomwatchv= 8RrCMbOZTsAamplist=PL5837763F26AB1B87 12649 visualizaccedilotildees 10 comentaacuterios episoacutedio 07 youtubecomwatchv=I4cgWo_GHaQ 601 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 08 youtubecomwatchv=rI71YNrLo7o 12299 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 09 youtubecomwatchv=huv2ngnqUd4 367 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios episoacutedio 10 youtubecomwatchv=F2MaLs_kj-w 10842 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios episoacutedio 11 youtubecomwatchv=8zK3D01dXc0 9388 visualizaccedilotildees 05 comentaacuterios episoacutedio 12 youtubecomwatchv=R76BHD--vB8amplist=PL5837763F26AB1B87 12108 visualizaccedilotildees 9 comentaacuterios acessos em 03042014

83NAPOLITANO Marcos A Histoacuteria depois do

papel In Carla Pinsky (org) Fontes Histoacutericas Satildeo Paulo Contexto 2005 p250-252 Napolitano afirma com base em Umberto Eco que a televisatildeo introduziu uma mudanccedila de ritmo de vida familiar e cotidiana bem como o que se pode chamar de hipertrofia sensorial em detrimento da assimilaccedilatildeo conceitual Destaca ainda que eacute preciso pensar a televisatildeo como uma nova experiecircncia social do tempo histoacuterico na medida em que ela faz coincidir o verdadeiro o imaginaacuterio e o real no ponto indivisiacutevel do presente

84Produzida pela rede de emissoras puacuteblicas

TV Brasil Sobre a Revolta dos Alfaiates parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo 767 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=dj04LJJM8bk 2592 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio Sobre a Batalha do Jenipapo parte 1 youtubecomwatchv=zlgsZcj-V3o 2426 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios acesso em 24032013 parte 2 youtubecomwatchv=rAS3dHAvWPQ 1283 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio Sobre Tiradentes youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 408 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013)

85Marco Morel e Luiacutes Henrique Dias Tavares

86Programa De laacute pra caacute Revolta dos Alfaiates

parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo

87Exceccedilatildeo satildeo as entrevistas realizadas por

Mocircnica Teixeira na UnivespTV que estabelecem comunicaccedilatildeo bastante profiacutecua entre a entrevistadora e os acadecircmicos entrevistados (youtubecomwatchv=syXf3WHQRPM 4450 visualizaccedilotildees 06 comentaacuterios youtubecomwatchv=pZk5pFlboqw 3303 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=5pUDP2KUYCY 4128 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios

livros didaacuteticos e a exemplo destes a intenccedilatildeo de acolher uma multipli-cidade de vozes raramente enseja verdadeira pluralidade de pensamento o que ademais eacute dificultado pela natureza curta sinteacutetica e acelerada dos materiais televisivos Nessas situaccedilotildees constata-se que o historiador fala uma coisa mas o entrevistador e o produtor continuam a ldquoescutarrdquo outra o que muitas vezes reforccedila a percepccedilatildeo de descontinuidade narrativa an-teriormente tambeacutem diagnosticada nos livros didaacuteticos e que na televisatildeo adquire contornos de regra83 Os episoacutedios da seacuterie De laacute para caacute educati-vos didaacuteticos aacutevidos por com conhecimentos acadecircmicos e produzidos por uma rede puacuteblica de televisatildeo sem fins lucrativos apresentam interessante exemplo84 No programa dedicado aos acontecimentos de 1798 na Bahia dois historiadores profissionais85 esclarecem que os revoltosos ldquobahien-sesrdquo almejavam a independecircncia apenas da capitania da Bahia o que tem enormes implicaccedilotildees a destituiacuterem tais acontecimentos de qualquer atribu-to supostamente preparatoacuterio da Independecircncia do Brasil (situaccedilatildeo muito semelhante conforme vimos agrave da Inconfidecircncia Mineira) natildeo obstante na abertura do programa seu apresentador declara

A luta pela independecircncia do Brasil foi escrita nas paacuteginas memoraacuteveis da nossa histoacuteria com o sangue de um punhado de brasileiros O mais celebrado foi Tiradentes Mas sete anos depois do martiacuterio de Tiradentes quatro brasileiros pretos pobres pelos mesmos ideais foram enforcados e sentenciados em Salvador86

Em outros momentos o apresentador apesar de ouvir de forma soliacutecita e atenta ao que o entrevistado tem a dizer acaba por negar com sua proacutepria fala parte do conteuacutedo receacutem-ouvido mas sem demonstrar ser essa atitude premeditada ou consciente Afinal eacute difiacutecil desvencilhar-se daquilo que jaacute se ldquosaberdquo daquilo que adveacutem de um ambiente que o tempo todo nos ldquoensinardquo Histoacuteria sem necessariamente disso nos darmos conta87

A incapacidade de assimilaccedilatildeo reciacuteproca de ideias acerca da histoacute-ria entre agentes sociais diversos pode revelar-se de muitos modos Um dos programas da seacuterie Caminhos da Reportagem intitulado Caminhos da Independecircncia o grito nas ruas produzido com as mesmas caracteriacutesticas do anterior aborda a Independecircncia focada em seus panfletos poliacuteticos a partir da pesquisa recente de trecircs historiadores profissionais88 No entan-to e a despeito natildeo soacute de dar ampla voz a eles mas tambeacutem de abordar conteuacutedos didaticamente inovadores a equipe de entrevista que foi agraves ruas natildeo estabeleceu qualquer mediaccedilatildeo entre histoacuterias acadecircmicas e natildeo acadecircmicas pressupondo que todas as pessoas ocupam uma mesma posiccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria Por isso perguntas incompreensiacuteveis89 resultam apenas em situaccedilotildees vexatoacuterias impeditivas da construccedilatildeo de conhecimento sobre o tema

A abordagem de pessoas nas ruas recurso frequentemente utiliza-do por programas televisivos revela dados importantes acerca de como os brasileiros veem a Independecircncia muitas vezes mais por aquilo que eacute perguntado do que por aquilo que eacute respondido90 O programa + Estilo de 07 de setembro de 2011 produzido pela TV Campo Grande com conteuacutedo de variedades destinado a telespectadores de meio de tarde foi agraves ruas (provavelmente de Campo Grande Mato Grosso do Sul) perguntar se as pessoas saberiam dizer o que se comemorava naquele dia Primeiro res-ponde uma jovem com um bebecirc no colo

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youtubecomwatchv=0ZVgCwkt1ms 1384 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1016 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1227 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=ANSHAFLau04 1175 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios) Acessos em 21042014

88Joseacute Murilo de Carvalho Luacutecia Pereira das Neves

e Marcello Basile

89A apresentadora ldquoVocecircs sabem o que significa

corcundardquo Um professor de coleacutegio ldquoDeve ser alguma coisa que estaacute surgindo aiacute no mundo um pouco mais ciberneacutetico porque eu nem na faculdade ouvi falar dos corcundasrdquo Marcos Tomazzeti produtor multimiacutedia ldquoNa minha cabeccedila vem algo de monarquia de rei algo meio poliacuteticordquo Simone Granda bancaacuteria ldquoDicionaacuterio de corcundice Natildeo seirdquo Marilu Guimaratildees dona de casa ldquoPuxa tem tanta coisa importante pra ter dicionaacuterio vai ter justo do corcundistardquo Caminhos da Independecircncia youtubecomwatchv=37XH5UEpjlI acesso em 24032013

90Em perspectiva oposta mas complementar agrave da

sondagem de opiniatildeo aqui utilizada

91E que portanto muito provavelmente ainda natildeo

tinha tido contato formal (escolar) com o tema

92O programa prossegue entatildeo com uma entrevista

com o professor Ian Rari que trata de uma Histoacuteria da Independecircncia processual natildeo centrada em uma uacutenica data ou fato criacutetica etc Mais um momento onde as vaacuterias vozes contempladas pelo programa natildeo dialogam entre si (youtubecomwatchv=xv1LOlwUfFQ 289 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio) Outro exemplo significativo eacute dado pelo programa Conexatildeo Jovem exibido em 06 de setembro de 2012 no qual dois entrevistados ndash Prof Bira professor de Histoacuteria e Marcos Eduardo socioacutelogo ndash utilizam com competecircncia o pouco tempo a eles destinado discorrendo de modo criacutetico sobre a Independecircncia e em linguagem adequada ao puacuteblico jovem ao qual o programa se destina (produccedilatildeo da TV Novo Tempo adventista parte 1 youtubecomwatchv=1IvYOYtju9sgt 74 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=Ofv7QWOJpHo 47 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013) Logo o programa traz uma abordagem feita na rua na qual a entrevistadora pergunta a uma jovem ldquoQuem falou lsquoindependecircncia ou mortersquo agraves margens do riacho do Ipirangardquo Diante da correta resposta a entrevistadora tenta induzir um erro ldquo15 de novembro ou 7 de setembrordquo Aliaacutes a expectativa do programa parece revelada pela entrevistadora logo na primeira pergunta feita a um dos convidados ldquoseraacute que os jovens se interessam pela histoacuteria de seu paiacutesrdquo E embora o material recolhido pelo proacuteprio programa permita resposta afirmativa manteacutem-se a postura negativa preacute-concebida

93Daiacute a relevacircncia de um viacutedeo com fotografias e

um aacuteudio (youtubecomwatchv=UdQ_aAAl3DE)

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoE isso em que ano que foi que aconteceurdquoResposta ldquo1822rdquo

Em seguida outro jovem que provavelmente jaacute tinha respondido a outra pergunta

Pergunta ldquoQuem foi o imperador vocecirc lembrardquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoAcertou Canta pra gente um trecho do hino da independecircnciardquoResposta ldquoAgora natildeo lembrordquo

Agora o programa aborda uma menina de cerca de dez anos clara-mente intimada91

Pergunta Por que eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoNatildeo seirdquoPergunta ldquoNatildeo lembra Vou dar uma dica um fato histoacuterico muito importante para o BrasilrdquoResposta (negativa com a cabeccedila)

Em quarto lugar outra jovem que procura se afastar da cacircmera

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta (ainda tentando se esquivar sorrindo) ldquoNatildeordquoPergunta ldquoNatildeo saberdquoResposta ldquoAh A Independecircncia Eu natildeo prestei atenccedilatildeordquoPergunta Que ano aconteceu a Independecircncia vocecirc lembrardquoResposta ldquoNatildeordquoPergunta ldquoE quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoTambeacutem natildeo lembrordquo

Por fim a entrevista com um senhor de meia-idade comeccedila jaacute com uma resposta

Resposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoQue ano aconteceu issordquoResposta ldquo1888rdquoPergunta ldquo1822 Quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoCerto E onde foi que aconteceu tudo issordquoResposta ldquoSatildeo PaulordquoPergunta ldquoOK [breve silecircncio] Canta um trechinho para noacutes do hino da IndependecircnciardquoResposta ldquoJaacute podeis da paacutetria matildeerdquo [sic -prossegue cantando corretamente]

Em seguida o programa corta para uma sala de aula onde a despeito dos ldquoacertosrdquo obtidos nas ruas a entrevistadora afirma

Diante da dificuldade que noacutes encontramos no centro da cidade para saber informaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil eu vim parar na sala de aula Vai ser aqui que a gente vai descobrir a histoacuteria do paiacutes92

A ideia a priori de que o brasileiro natildeo conhece e natildeo se interessa pela histoacuteria subsidia este e muitos outros programas Aqui o dado mais relevante parece estar precisamente nessa arraigada crenccedila no desinteres-

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da entatildeo prefeita de Ribeiratildeo Preto (Satildeo Paulo) Darcy Vera que afirma durante um desfile de 7 de Setembro dentre vaacuterios desvarios que ldquoTiradentes gritou lsquoIndependecircncia ou mortersquordquo Com 169919 acessos e 149 comentaacuterios (em geral criacuteticos bem humorados e depreciativos) ateacute 20082014 condensa a possibilidade de amplificaccedilatildeo do estigma do natildeo domiacutenio de referecircncias convencionais agrave Independecircncia mas sem fomentar nenhum conhecimento da mesma

94Novamente surge a questatildeo natildeo teratildeo as

renovaccedilotildees curriculares promovidas no ensino de Histoacuteria (no Brasil e alhures) das uacuteltimas deacutecadas exagerado nessa incompatibilidade Teratildeo elas sido capazes de mensurar seus efeitos deleteacuterios diante de sociedades jaacute bastante refrataacuterias a uma histoacuteria cronoloacutegica

95ldquoPouco importa que sua figura tenha sido

mitificada pela propaganda republicana O que importa eacute que ele foi um heroacutei Ele deu sua vida pela paacutetria e pela liberdaderdquo (Programa De laacute pra caacute youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032013) Essa exaltaccedilatildeo da figura de Tiradentes associada agrave Independecircncia conduz o discurso da propaganda eleitoral de um candidato agrave prefeitura de Ouro Preto em 2012 (youtubecomwatchv=eGefgLoRhec 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032014) Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo no dia 09 de setembro de 2013 apoacutes se autocaracterizar como realizador de uma ldquohistoacuteria de carne e ossordquo em contraposiccedilatildeo a produccedilotildees ldquocontaminadas pela anaacutelise marxistardquo que retirariam os personagens da Histoacuteria o jornalista Laurentino Gomes afirma ldquoNo 1822 faccedilo uma comparaccedilatildeo e digo que o uacutenico problema do Joseacute Bonifaacutecio foi nascer no Brasil pois se ele tivesse nascido nos Estados Unidos teria sido maior que o Thomas Jefferson Porque aparentemente ele era mais preparado mais luacutecido que o Thomas Jeffersonrdquo (parte 1 youtubecomwatchv=uGibbLxsZK0 4501 visualizaccedilotildees e 5 comentaacuterios parte 2 youtubecomwatchv=2LQcEcb5kLU 2302 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios acesso em 26032014 Logo voltaremos agrave obra e agraves ideias de L Gomes

96Um exemplo adveacutem do viacutedeo ldquoA verdadeira

independecircncia do Brasilrdquo em que um pastor evangeacutelico em meio a uma cerimocircnia religiosa ldquodesconstroacuteirdquo o quadro de Pedro Ameacuterico acusando-o de pouco verossiacutemil e aponta os desvios morais de D Pedro I de modo a inviabilizaacute-lo como figura histoacuterica digna de memoacuteria (youtubecomwatchv=RsKQr6bgzLA 178 visualizaccedilotildees e 2 comentaacuterios acesso em 24032014) A suposta irrelevacircncia dos personagens envolvidos no processo da independecircncia eacute notaacutevel na fala de um professor de Ensino Meacutedio (youtubecomwatchv=gvWVF9j2KEU 597 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) e de um apresentador de temas religiosos que relativizam a importacircncia do tema ao afirmarem a atual ldquodependecircncia econocircmicardquo do Brasil (youtubecomwatchv=EXyUBY7StF4 383 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Tambeacutem retornaremos a esse tema

sedesconhecimento do brasileiro pela histoacuteria bem como em um de seus efeitos mais contundentes a crenccedila de que eacute possiacutevel reverter tal situaccedilatildeo pela simples mobilizaccedilatildeo formal de datas nomes e eventos Contudo se a Independecircncia se converte em uma catalizadora de referecircncias cronoloacute-gicas ou nominais isso natildeo leva necessariamente a uma historicizaccedilatildeo do tema pelo contraacuterio a mobilizaccedilatildeo de tais referecircncias em termos como os acima mencionados (a data ou o nome por si soacutes) pode resultar no apro-fundamento da tendecircncia agrave confusatildeo temporal jaacute aqui apontada93

Nos meios intelectuais a discussatildeo em torno das formas tempo-rais de vivecircncia coletiva naquilo que se pode chamar ndash recorrendo-se a uma categoria uacutetil ndash de modernidade natildeo eacute nova tampouco estaacute em vias de esgotamento A dificuldade de organizaccedilatildeo do mundo social segundo referecircncias cronoloacutegicas natildeo seraacute em absoluto distintiva de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil embora o contraacuterio deva ser dito em relaccedilatildeo agraves formas assumidas por tais dificuldades (como as noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia) Percebe-se entatildeo o peso do estigma da dificuldade em manejar datas nomes e fatos suposta prova de um desin-teresseignoracircncia que poderia ser combatido com um retorno a velhas formas de se fazer Histoacuteria e nas quais tais elementos eram considera-dos com a essecircncia da compreensatildeo histoacuterica Natildeo parece que as coisas devam propriamente se passar segundo essa representaccedilatildeo embora um dos confrontos existentes na cultura de histoacuteria no Brasil seja sem duacutevida a polarizaccedilatildeo entre a valorizaccedilatildeo da Independecircncia (= de suas datas nomes eventos siacutembolos e supostos valores etc) e a desvalorizaccedilatildeo da mesma (=seu caraacuteter elitista e negociador a diminuiccedilatildeo da histoacuteria do Brasil em comparaccedilatildeo com a de outros paiacuteses a comicidade dessa histoacuteria etc) Eacute plausiacutevel conceber que esta segunda posiccedilatildeo encontre um aliado na con-cepccedilatildeo de incompatibilidade entre uma histoacuteria amparada por referecircncias cronoloacutegicas e ao mesmo tempo em processos estruturas e temas trans-versais do gosto inclusive de muitos acadecircmicos e educadores94

Os exemplos de materiais audiovisuais a traduzirem veicularem e fomentarem esse confronto entre valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo da Inde-pendecircncia satildeo muitos Aleacutem dos jaacute tratados ateacute aqui pode-se mencionar viacutedeos contendo propaganda de instituiccedilotildees puacuteblicas civis e militares de partidos poliacuteticos de grupos maccedilocircnicos de igrejas e de empresas variadas bem como produccedilotildees independentes Neles eacute possiacutevel encontrar desde a exaltaccedilatildeo das referecircncias mais convencionais agrave Independecircncia como a seus personagens (incluindo seu suposto maacutertir Tiradentes)95 ateacute a afirma-ccedilatildeo de sua total irrelevacircncia96 isso costuma ocorrer sem muitos matizes obedecendo a uma loacutegica dicotocircmica plasmada em linguagens simples com descontinuidades discursivas e imageacuteticas e num ritmo de exposiccedilatildeo acelerado Em suma tratam da Independecircncia segundo padrotildees parcial-mente compartilhados tambeacutem por outras fontes ateacute aqui analisadas

Todas essas fontes com suas noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia satildeo sintomaacuteticas de estados de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema bem como potenciais formadores de opiniatildeo dos mesmos Sua capacidade de criaccedilatildeo de conhecimento no entanto se mostra muito limi-tada Eacute bem verdade que esta eacute por vocaccedilatildeo uma tarefa confiada a saberes acadecircmicos ndash jaacute que no Brasil a quase totalidade da pesquisa em Histoacuteria estaacute entregue agraves universidades salvo a de interesse corporativo ndash de modo que natildeo seria de esperar inovaccedilatildeo em suportes tatildeo variados e socialmen-te diversificados quanto os ateacute aqui analisados Mas parece haver aiacute certo

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ciacuterculo vicioso a envolver tambeacutem parte da academia Basta observar que a ideia da ldquonatildeo Independecircncia de fatordquo tatildeo em voga entre tantos historiadores durante tanto tempo reverbera com forccedila na sociedade em geral97 e ainda goza de prestiacutegio ateacute mesmo entre alguns acadecircmicos que bebem-na da sociedade e apoacutes modificaacute-la parcialmente devolvem-na aos espaccedilos de di-vulgaccedilatildeo98 Essa versatildeo da Histoacuteria eacute capaz de transpor fronteiras temporais de atualizar-se em diferentes contextos e ateacute mesmo de superar abissais diferenccedilas poliacuteticas ela estaacute representada por exemplo e de modo quase idecircntico na propaganda poliacutetica de um partido trotskista e na pregaccedilatildeo nacionalista-direitista de um polecircmico professor de histoacuteria99

Por fim tome-se o caso de trecircs produccedilotildees da Rede Globo de Televi-satildeo voltadas ao puacuteblico em geral com consideraacuteveis aportes financeiros e complexa produccedilatildeo a seacuterie documental A Corte no Brasil para exibiccedilatildeo em tevecirc fechada100 e as seacuteries humoriacutesticas O Quinto dos Infernos101 e Eacute muita Histoacuteria Dia de Fuacuteria102 veiculadas amplamente em tevecirc aberta No pri-meiro caso siacutetios histoacutericos visitados pelas apresentadoras uma narrativa soacutebria e informativa de fatos e processos grande quantidade de entrevistas com historiadores ecircnfase em diferentes espaccedilos regionais e internacio-nais e tratamento do tema em muacuteltiplas dimensotildees (poliacutetica econocircmica cultural) No segundo caso uma narrativa romanceada teatral e cocircmica fortemente despolitizada e livremente baseada em trecircs livros de igual teor (um deles publicado haacute quase um seacuteculo)103 praticamente centrada no Rio de Janeiro (um pouco tambeacutem em Portugal muito menos alhures) e nos membros da famiacutelia real portuguesa cuja vida pessoal eacute estruturada em torno de seus haacutebitos excecircntricos (principalmente os sexuais) e vez ou outra de passageiros dramas pessoais104

Finalmente no terceiro caso uma encenaccedilatildeo tambeacutem cocircmica pro-tagonizada por um escritor-autor-ator-palhaccedilo com grande liberdade de criaccedilatildeo mas amparada em informaccedilotildees convenccedilotildees e mitos a oferecer uma versatildeo do Sete de Setembro segundo o estado psico-fisioloacutegico de D Pedro

Eis um exemplo de uma das modalidades assumidas pela disputa em torno de uma Independecircncia valorizada e outra depreciada Pareceria justificaacutevel opor a tal diagnoacutestico a constataccedilatildeo de se tratarem de obras televisivas de distinto teor o que desobriga a segunda e a terceira de qual-quer compromisso com a verdade No entanto interessam-nos mais seus significados e efeitos do que intenccedilotildees Note-se que a primeira documen-tal eacute de circulaccedilatildeo mais restrita que a segunda e a terceira voltadas para grande puacuteblico por isso seus efeitos nesse jogo de criaccedilatildeorecriaccedilatildeo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da Independecircncia satildeo natildeo apenas assimeacutetricos mas tambeacutem concorrentes105 Os esforccedilos de um pro-grama por posicionar o espectador diante de uma histoacuteria processual de encadeamentos temporais e de grupos e conflitos sociais satildeo naturalmente obstados pelos dos outros dois a oferecer uma histoacuteria repleta de anacro-nismos anedoacutetica e biograacutefica em perfeita sintonia com demandas mais amplas de uma sociedade ndash e de alguns de seus componentes mercadoloacutegi-cos jaacute aqui mencionados ndash na qual a vida privada eacute mais valorizada do que a puacuteblica106 Nesse confronto embora as trecircs convivam na mesma cultura de histoacuteria uma Independecircncia tende a prevalecer sobre a outra107

6 ndash A Independecircncia no cinemaEm relaccedilatildeo a livros didaacuteticos programas de televisatildeo e outros materiais audiovisuais as fontes cinematograacuteficas aqui consideradas naturalmente

97Exemplo encontra-se no viacutedeo ldquoAway Nilzer ndash

Independecircncia do Brasilrdquo com grande nuacutemero de visualizaccedilotildees (130677) e de comentaacuterios (1016) que minimiza e ridiculariza natildeo apenas o processo da independecircncia como quaisquer fatos histoacutericos brasileiros de maneira geral (youtubecomwatchv=Vd_kloNeQV0) O Brasil atual como viacutetima de uma exploraccedilatildeo econocircmica mais intensa do que nos tempos coloniais e portanto natildeo-independente aparece na fala de outro professor (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2806 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) e nos comentaacuterios de um boneco marionete de um programa infantil (youtubecomwatchv=9mh3Tu6c4_w 173 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032014)

98Exemplo desse processo de ldquodevoluccedilatildeordquo pode ser

comprovado no viacutedeo ldquoIndependecircncia ou morterdquo (youtubecomwatchv=QUvnz1no1m8 934 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Outros dois exemplos pertinentes satildeo a insistecircncia nas ideias de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil e que a Independecircncia foi uma luta entre brasileiros e portugueses

99Em entrevista a uma rede local de televisatildeo

ouvimos do professor de histoacuteria do Ensino Meacutedio Wander Pugliesi ldquoSe noacutes formos trabalhar com sinceridade o Brasil ainda natildeo eacute independente Na verdade somos muito mais explorados do que quando eacuteramos colocircnia de Portugalrdquo (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2815 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) A mesma relativizaccedilatildeo do processo de independecircncia aparece na fala do candidato agrave presidecircncia em 2010 pelo PSTU Zeacute Maria ldquohoje infelizmente natildeo podemos comemorar uma verdadeira independecircncia do paiacutes Eacute preciso dizer a verdade as multinacionais controlam a economia brasileira As decisotildees fundamentais satildeo tomadas por elas fora do paiacutesrdquo (youtubecomwatchv=ht9Yt0PlGnU 1803 visualizaccedilotildees um comentaacuterio) Acessos em 26032013

100Direccedilatildeo de Carlos Henrique Schroder 2008

Produccedilatildeo de 16 episoacutedios de cerca de 20 minutos cada para o canal da TV fechada GloboNews A seacuterie foi comercializada em DVD e pode ser vista tambeacutem no canal Globosat no Youtube (youtubecomwatchfeature= player_detailpageampv= OUX-zSyaMIc e viacutedeos relacionados Acesso em 27032014)

101Direccedilatildeo de Wolf Maya e Alexandre Avancini e

criaccedilatildeo de Carlos Lombardi 2002 Produccedilatildeo de 48 episoacutedios com cerca de 40 minutos cada para o canal da TV aberta Rede Globo de Televisatildeo A minisseacuterie tambeacutem foi comercializada em DVD e vem sendo (desde janeiro de 2014) reprisada no Canal Viva (rede fechada de televisatildeo filiada Globosat) uma reprise anterior ocorreu de agosto a novembro de 2011 sempre por volta das 23h

102Direccedilatildeo de Joatildeo Carrascosa e Pedro Bial 2007

Produccedilatildeo de 9 capiacutetulos de cerca de 15 minutos

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apresentam especificidades Tendem a diversificar (eventualmente ampliar) o rol de profissionais envolvidos em sua produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo bem como a tratar conteuacutedos em um tempo mais lento criando uma sensaccedilatildeo de homogeneidade de significados reforccedilada pela aderecircncia de tais conteuacutedos a uma trama central Tal homogeneidade por seu turno eacute relativizada por uma liberdade de criaccedilatildeo que dificilmente encontra paralelo em outros dos materiais aqui considerados ndash com a possiacutevel exceccedilatildeo da minisseacuterie O Quinto dos Infernos No entanto quando a comparaccedilatildeo eacute feita com os li-vros didaacuteticos os conteuacutedos relativos agrave Independecircncia no cinema tendem a ser menos numerosos mais superficiais e efecircmeros justamente por serem menos assumidamente informativos do que os dos livros embora isso possa encontrar alguma compensaccedilatildeo em uma linguagem visual de forte apelo emotivo Para todos os efeitos como aponta um estudioso da mateacuteria os filmes de temaacutetica histoacuterica carregam sempre certa ambiguidade ocupam uma espeacutecie de ldquoentrelugarrdquo com forccedila para criar ldquoverdadesrdquo socialmente aceitas108 Nos cinco filmes aqui considerados109 as ldquoverdadesrdquo sobre a Independecircncia tendem a replicar linhas de forccedila jaacute conhecidas mesclando temporalidades correspondentes tanto aos momentos em que foram pro-duzidos quanto aos momentos posteriores em que foram sendo exibidos110

Independecircncia ou Morte produccedilatildeo a serviccedilo das comemoraccedilotildees oficiais do sesquicentenaacuterio da Independecircncia levadas a cabo pelo go-verno ditatorial brasileiro em 1972 mostra uma narrativa de forte teor didaacutetico-pedagoacutegico sem grandes pretensotildees artiacutesticas expliacutecitas111 com diaacutelogos e situaccedilotildees muitas vezes retirados de obras sobre a Independecircncia e tratados de forma literal Sua finalidade eacute clara ldquoensinarrdquo aos especta-dores uma histoacuteria e uma memoacuteria coletivas homogecircneas aplainadas de pluralidades ou de desavenccedilas Uma histoacuteria supostamente indiscutiacutevel porque verdadeira posta a serviccedilo dos tambeacutem supostos interesses mais elevados da naccedilatildeo brasileira (por isso nela a vida privada dos persona-gens eacute toda submetida agrave sua funccedilatildeo poliacutetica inclusive no caso da relaccedilatildeo afetiva entre um D Pedro de boa aparecircncia querido do povo e mulherengo e uma ambiciosa romacircntica e sensiacutevel Domitila112) Uma espeacutecie de cartilha oficial da Independecircncia em imagens na qual se faz presente ateacute mesmo uma recomposiccedilatildeo cecircnica do quadro de Pedro Ameacuterico

Eacute interessante observar como Os Inconfidentes produzido no mesmo ano de 1972 mesmo sendo um filme amparado em abundantes liberdades e experimentos esteacuteticos cheio de ambiguidades propositais e contra-pondo-se ao oficialismo histoacuterico tatildeo em voga agrave eacutepoca por meio de uma metaacutefora na qual os contestadores agrave ditadura brasileira se convertem em sediciosos das Minas Gerais do seacuteculo XVIII natildeo se configura como mate-rial singular e discrepante de Independecircncia ou Morte em pelo menos trecircs sentidos primeiro porque em vaacuterios momentos associa a Inconfidecircncia Mi-neira com a Independecircncia do Brasil a exemplo do que Independecircncia ou Morte prega jaacute em seu primeiro texto didaacutetico113 Segundo porque tambeacutem oficializa eventos convencionalmente tidos por fundacionais da histoacuteria do Brasil (soacute que natildeo os de 1808-1822 mas os de 1788-1789) Terceiro reforccedila a prevalecircncia de indiviacuteduos sobre coletividades da imagem de um heroacutei central da trama e de uma oposiccedilatildeo de interesses maniqueiacutesta que certamente poderia se aplicar com mais rigor ao contexto em que foi feito o filme do que agravequele ao qual formalmente se refere Assim para todos os efeitos substratos de uma concepccedilatildeo de histoacuteria satildeo em ambos convergentes Em um ambiente social multifacetado em termos de no-

cada dentro do programa dominical Fantaacutestico da Rede Globo de Televisatildeo A seacuterie foi baseada no livro Brasil uma Histoacuteria de Eduardo Bueno jornalista que tambeacutem atua na seacuterie (youtubecomwatchv=3LzGKt9Pd0M acesso em 27032014)

103SETUacuteBAL Paulo As Maluquices do Imperador

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1927 CALADO Ivanir A Imperatriz no Fim do Mundo memoacuterias duacutebias de Ameacutelia de Leichtenberg Rio de Janeiro Rio Fundo Editora 1992 e TORERO Joseacute Roberto Galantes memoacuterias e admiraacuteveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes o Chalaccedila Satildeo Paulo Companhia das Letras 1994

104A trama e a narrativa do Quinto dos Infernos

recusam explicitamente a inserccedilatildeo de quaisquer componentes que natildeo os da ordem privada de seus convencionais personagens assim questotildees poliacuteticas satildeo sempre menores do que o apetite sexual de Carlota Joaquina as perversotildees de D Miguel ou a fogosidade de Domitila a economia soacute surge em pontuais pretextos cocircmicos enquanto a escravidatildeo eacute referida exclusivamente por meio de alegres e libidinosas criadas (negras) permanentemente dispostas a servirem aos desejos do heroacutei da histoacuteria D Pedro

105A anaacutelise poderia se completar com a minisseacuterie

A Marquesa de Santos dirigida por Ary Coslov e exibida pela extinta Rede Manchete de televisatildeo em 1984 agrave qual infelizmente natildeo se obteve acesso satisfatoacuterio

106Tal predileccedilatildeo pode ser entendida como mais

um fator caracteriacutestico de um momento em que a articulaccedilatildeo entre aquilo que Guy Debord chamaria de ldquosociedade do espetaacuteculordquo e Adorno e Horkheimer (dentre muitos outros) de ldquoinduacutestria culturalrdquo torna sintomaacutetico a saliecircncia do indiviacuteduo e o esvaziamento da esfera puacuteblica

107A comprovaccedilatildeo do encontro concorrente entre

dois caminhos vem do depoimento de alguns dos proacuteprios envolvidos com a produccedilatildeo do Quinto dos Infernos como o diretor Carlos Lombardi que a ele se refere como ldquoum painel dos personagens importantes do periacuteodordquo Para o produtor Wolf Maia seu objetivo foi ldquorecontar com humor uma velha histoacuteriardquo O ator Humberto Martins viu a seacuterie ldquocontar um pedaccedilo da nossa histoacuteria da histoacuteria do Brasil do nosso povo das nossas raiacutezes pateacutetica e engraccedilada tal como ela se mostra dentro desse produto poreacutem claro mesclada com uma boa dose de humorrdquo enquanto o protagonista Marcos Pasquim afirmou que ldquo[ao fazecirc-la] aprendi muita coisa que natildeo aprendi na escola eu vim aprender agora fazendo a pesquisa para fazer esse personagemrdquo Finalmente para a tambeacutem atriz Bruna Lombardi ldquoO lsquoQuintorsquo contou assim a histoacuteria que a Histoacuteria natildeo conta sabe como eacute as fraquezas da histoacuteriardquo Em ldquoDia de Fuacuteriardquo Pedro Bial e Eduardo Bueno reforccedilam seu discurso satiacuterico por meio de um verniz de verdade trazido pela citaccedilatildeo de documentos oficiais como o relato do Padre Belchior sobre o grito do Ipiranga Aleacutem disso seu discurso eacute elaborado sob o nome de tese logo bem se vecirc como seus propaladores (BialBueno) manipulam siacutembolos

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ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

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Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

29Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

30Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

31Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

32Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

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por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

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muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

36Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 11: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

15Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

definiccedilatildeo aqui proposta de cultura de histoacuteria o desinteresse tambeacutem eacute um dado relevante pois traduz uma atitude em si e que dificilmente poderia ser considerada de modo absoluto (como pretender que esse desinteresse se traduza por exemplo em descaso com a proacutepria histoacuteria ou com a da famiacutelia Difiacutecil acreditar ser esse o caso de 23 dos entrevistados) Aleacutem disso bem sabemos que seu contraacuterio o interesse pode se manifestar de muitas maneiras que natildeo necessariamente encontram guarida em praacuteticas acadecircmicas e profissionais relacionadas ao estudo do passado tampouco que resultam em um estudo da histoacuteria minimamente organizado O que implica que os dois contraacuterios nem sempre estabeleceratildeo limites claros entre si diante da apreciaccedilatildeo geral de uma cultura de histoacuteria interesse e desinteresse pela histoacuteria podem flertar com muita proximidade bem como intercambiarem elementos regularmente

Observemos mais atentamente esse panorama Considerando-se tais caracteriacutesticas de uma cultura de histoacuteria como a brasileira perguntou-se a todos os entrevistados incluindo aos 23 que afirmaram natildeo se inte-ressar por histoacuteria por ldquoqual histoacuteriardquo poderia dizer que mais se interessa Aqui as respostas que de alguma forma se referem diretamente agrave histoacuteria do Brasil (ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo ldquoHistoacuteria geral e do Brasilrdquo ldquoHistoacuteria da nos-sa regiatildeordquo ldquoHistoacuteria do Brasil e andinardquo) perfazem 34 do total aiacute sim um nuacutemero relativamente baixo diante dos 66 que em suas respostas exclu-iacuteram o Brasil Portanto independentemente do interesse pela mateacuteria ser alto ou baixo a relaccedilatildeo com a Histoacuteria do Brasil parece gozar de especial desprestiacutegio Seraacute o desprezo pela histoacuteria nacional um dado da cultura de histoacuteria no Brasil43 Mais adiante quando da anaacutelise das outras fontes vol-taremos a esse ponto De todo modo tal desprestiacutegio evidentemente traraacute implicaccedilotildees para as posturas dos brasileiros em relaccedilatildeo agrave Independecircncia

A princiacutepio os entrevistados tendem a se interessar pouco pela Inde-pendecircncia do Brasil mas essa natildeo eacute uma tendecircncia absoluta se 39 tecircm ldquonenhumrdquo ldquopoucordquo ou ldquopequenordquo interesse 44 tem ldquomeacutediordquo e 17 ldquoentre meacutedio e granderdquo e ldquogranderdquo Ora em se tratando de uma cultura de histoacuteria dinacircmica e fluida com fronteiras pouco claras entre o interesse e o desinte-resse pela histoacuteria de modo geral (e a despeito da clara tendecircncia a um maior desinteresse pela Histoacuteria do Brasil) a Independecircncia eacute pouco interessante mas natildeo eacute inteiramente desprezada (apenas 11 declararam ldquonenhumrdquo inte-resse por ela cifra menor do que a dos grandes interessados)

Parece entatildeo haver espaccedilo aqui para diferentes formas de pensar representar e reinventar a Independecircncia do Brasil como verificar-se-aacute mais adiante de momento constata-se uma correspondecircncia estatiacutestica entre os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram ter dela ldquobomrdquo ou ldquoexcelenterdquo conhecimento (os de ldquonenhumrdquo ldquopoucordquo ou apenas ldquorazoaacutevelrdquo conhecimento compotildee os demais 83) e os 30 que afirma-ram buscar informaccedilotildees a respeito (sendo 60 os que buscam informaccedilotildees sobre histoacuteria em geral) Provavelmente trata-se de um subgrupo dos mais ativos no circuito de consumo-reproduccedilatildeo-criaccedilatildeo de toacutepicos relativos agrave Independecircncia na cultura de histoacuteria no Brasil Dentre esses 30 exclusi-vamente 305 afirmaram buscar informaccedilotildees sobre a Independecircncia em livros 291 na escola e nos livros didaacuteticos (evidentemente mais confina-dos ao puacuteblico jovem) 208 na internet 97 em raacutedio tevecirc eou jornais impressos e outros 97 ldquocom pessoas e lugares44 Os que responderam ler ou ter lido algo a respeito nos uacuteltimos dois anos foram 34 (os demais responderam ldquonatildeordquoldquonatildeo se lembrardquo ou natildeo responderam)

43Natildeo parece ser o caso da cultura histoacuterica

portuguesa de acordo com trabalhos recentes como os de PAIS Joseacute Machado Op Cit SOBRAL Joseacute Manuel Op Cit e MATOS Seacutergio Campos Consciecircncia histoacuterica e nacionalismo Portugal seacuteculos XIX e XX Lisboa Horizonte 2008

44A ausecircncia de menccedilotildees a outros tipos de suporte

de informaccedilotildees sobre a Independecircncia reforccedila a escolha das fontes secundaacuterias da pesquisa analisadas no proacuteximo item

45Embora seja muito frequente a consideraccedilatildeo de

que o principal marco fundacional da histoacuteria brasileira tenha sido o ldquodescobrimentordquo (isto eacute a chegada dos portugueses agrave Ameacuterica em 1500) e natildeo a ruptura poliacutetica entre Brasil e Portugal Muito provavelmente isso se conecta com uma tambeacutem muito frequente concepccedilatildeo da Independecircncia como ldquonatildeo-rupturardquo como processo negociado amigaacutevel e sem grandes solavancos Retornaremos agrave questatildeo

46Todas as 28 palavras oferecidas aos entrevistados

receberam no miacutenimo quatro menccedilotildees sendo que 22 tiveram mais de uma dezena de menccedilotildees a mesclarem termos que remetem a caracteriacutesticas atribuiacutedas agrave Independecircncia que ensejam relaccedilotildees diretas ou indiretas com ela ou que se referem a simples informaccedilotildees

47Foram feitas 310 menccedilotildees de termos positivos em

relaccedilatildeo agrave Independecircncia (liberdade democracia revoluccedilatildeo heroiacutesmo mudanccedila drama) contra 210 dos mesmos como natildeo combinando com ela essa tendecircncia eacute reforccedilada por 190 menccedilotildees a termos negativos que combinariam com ela (acordo escravidatildeo negociaccedilatildeo continuaccedilatildeo ditadura comeacutedia invenccedilatildeo tirania) sendo que os mesmos foram mencionados 391 vezes como natildeo combinando Esclarecer o caso de escravidatildeo pode ser referecircncia a uma realidade (em geral negativa) mas tambeacutem como metaacutefora poliacutetica Para todos os efeitos como mencionar o termo de outras maneiras

48148 escolhas incidiram sobre termos conflitivos

que com ela combinariam (guerra revoluccedilatildeo mudanccedila) contra 101 menccedilotildees a tais termos como natildeo combinando poreacutem tal tendecircncia se inverte nas 119 escolhas de termos paciacuteficos que com ela combinariam (paz acordo negociaccedilatildeo) contra 70 menccedilotildees aos mesmos como natildeo combinando

49Foram feitas 27 escolhas de povo como combinando

contra 22 do mesmo termo como natildeo combinando e 35 a elitepoderosos como combinando contra 14 em termos opostos o que indica certo equiliacutebrio tendente agrave segunda possibilidade

50Natildeo se pode deixar de mencionar algumas

outras palavras que natildeo se encontravam na lista mas foram acrescidas pelos entrevistados sendo portanto de menccedilatildeo espontacircnea As mais recorrentes combinando num sentido depreciativo foram ldquointeresserdquo e ldquocorrupccedilatildeordquo Outras palavras tais quais ldquounificaccedilatildeordquo ldquomorterdquo

16Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

A hipoacutetese da constituiccedilatildeo de um subgrupo ativo na cultura de histoacuteria por meio do tema da Independecircncia encontra respaldo nos resulta-dos do ranking do questionaacuterio para a importacircncia que ela teria tido para a Histoacuteria do Brasil 43 deram nota 10 e outros 31 notas entre 8 e 9 sendo que apenas 6 deram notas entre 0 e 4 ou natildeo souberam responder Ou seja mesmo quem natildeo se interessa pela Independecircncia ou pela Histoacute-ria do Brasil em geral tende a reconhecer o tema como sendo de grande importacircncia embora tal reconhecimento seja menor em se tratando de sua relaccedilatildeo com a Histoacuteria ldquoem geralrdquo (a essa pergunta 25 respondeu com nota 10 e outros 25 com notas 8 ou 9 em contraposiccedilatildeo a um elevado percentual de 22 que deu notas entre 0 e 4 ou natildeo soube responder) Ainda assim portanto a Independecircncia eacute fortemente valorizada por um percentual que extrapola os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram dela serem conhecedores ou os 20 que afirmaram buscar informaccedilotildees a seu respeito Valorizada poreacutem em meio ao que parece ser uma dificuldade de se pensaacute-la para aleacutem de sua tradicional circunscriccedilatildeo nacional (o que encontra como logo veremos enorme correspondecircncia nas fontes secundaacuterias) para aleacutem dos limites a ela convencionalmente impos-tos por tradiccedilotildees historiograacuteficas ainda fortes e mesmo por uma cultura de histoacuteria que tendo atributos fortemente nacionais tende a nela enxergar um marco fundacional importante isto eacute um marco diferenciador entre a histoacuteria do Brasil e a de outros paiacuteses45

O que nesse sentido nos mostram as escolhas de palavras que ldquocom-binamrdquo e ldquonatildeo combinamrdquo com a Independecircncia46 Em primeiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista mais em perspectiva positivaenalte-cedora do que negativadepreciativa47 Em segundo lugar a possibilidade da Independecircncia ser considerada tanto como rupturaconflitiva quanto como continuidadepaciacutefica48 Em terceiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista como algo menos popular do que elitista49 Em quarto e uacuteltimo lu-gar ateacute que ponto os entrevistados se mostraram conhecedores da histoacuteria 55 respostas indicaram termos informativos descabidos (Tiradentes combina D Pedro I D Joatildeo VI Joseacute Bonifaacutecio e Portugal natildeo) contra uma maioria de 190 menccedilotildees a tais termos de modo inverso Aqui os resultados podem indicar a prevalecircncia de um tipo de conhecimento de histoacuteria estruturado em personagens e trajetoacuterias individuais (como logo veremos as fontes secundaacute-rias tambeacutem referendaratildeo amplamente essa hipoacutetese)50

Na uacuteltima parte do questionaacuterio perguntou-se aos entrevistados acerca de datas de quatro eventos que podem ser considerados como marcos do processo de Independecircncia 68 responderam natildeo saber ou natildeo se lembrar da data da chegada da Corte portuguesa ao Brasil 13 deram respostas claramente erradas em muitas das quais (ldquomil e quinhentosrdquo ldquomil quinhentos e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo etc) natildeo obstan-te se vislumbra uma referecircncia adequada poreacutem tratada de modo equivo-cado e somente 9 souberam responder de modo preciso (ldquomil oitocentos e oitordquo) Diante da pergunta quanto agrave data da primeira constituiccedilatildeo do Brasil 85 disseram natildeo saber ou natildeo se lembrar 7 deram respostas claramente erradas (ldquomil e quatrocentosrdquo ldquomil quinhentos e oitentardquo) algumas das quais poreacutem se aproximando da evocaccedilatildeo de alguma consti-tuiccedilatildeo brasileira (ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquomil novecentos e trintardquo ldquomil novecentos e oitenta e oitordquo) e apenas 13 souberam responder com firmeza isto eacute com a presenccedila de ldquomil oitocentos e vinte e quatrordquo na resposta Jaacute a pergunta sobre a data

(em alusatildeo ao Grito) e ldquoprogressordquo enriqueceram a fileira dos termos valorativos

51Essa percepccedilatildeo eacute reforccedilada por alguns dos

dados obtidos por Purificaccedilatildeo Em meio a representaccedilotildees da Independecircncia produzidas por crianccedilas entre 09 e 13 anos encontram-se frases como ldquoQuando D Pedro viu terra gritou Independecircncia ou Morterdquo e ldquoPouco depois de descobrirem o Brasil gritaram a independecircnciardquo PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p40-41 Cabe lembrar que tais crianccedilas natildeo haviam tido ainda contato formal (na escola) com o tema da Independecircncia ldquoapenasrdquo por meio de uma cultura de histoacuteria a envolverem-nas

52O que parece impor uma urgente reflexatildeo em

torno dos efeitos do violento desprestiacutegio das referecircncias factuais que o sistema escolar impocircs ao ensino de Histoacuteria no Brasil das uacuteltimas deacutecadas O quecirc ademais natildeo parece uma situaccedilatildeo exclusivamente brasileira de acordo com a sugestatildeo que nos foi dada por Nuno Gonccedilalo Monteiro a ver aqui paralelismo com o ensino de Histoacuteria em Portugal

53Outras duas possibilidades promissoras seriam

analisar respostas a questotildees de vestibulares relativas agrave Independecircncia e entrevistas com professores e coordenadores pedagoacutegicos que de alguma forma lidem com o tema no cotidiano escolar

54MORENO Jean Carlos Limites escolhas e

expectativas horizontes metodoloacutegicos para anaacutelise dos livros didaacuteticos de histoacuteria Antiacuteteses Londrina v5 n10 p729 juldez2012

55O que eacute atestado por exemplo pela recente

consolidaccedilatildeo da presenccedila nos livros didaacuteticos de toacutepicos relativos agrave Histoacuteria do continente africano

56Dos 49 autores de livros didaacuteticos aqui

considerados 36 satildeo identificados pelos termos ldquomestrerdquo ldquodoutorrdquo ou ldquoprofessor universitaacuteriordquo O que natildeo significa como eacute bem sabido que tais autores sejam integralmente responsaacuteveis pelo conteuacutedo de suas obras

57MORENO Jean Carlos Op Cit p724

58Segundo dados oficiais somente no ano de

2012 esse governo comprou cerca de 408 milhotildees de livros didaacuteticos para os anos do Ensino Meacutedio (Assessoria de Comunicaccedilatildeo Social do FNDE 24 de agosto de 2012)

59Sua produccedilatildeo no entanto eacute regionalmente

concentrada na seleccedilatildeo das coleccedilotildees de didaacuteticos feita pelo MEC em 2010 oito editoras de Satildeo Paulo responderam por 842 da produccedilatildeo aprovada enquanto trecircs de Curitiba ficaram com os 158 restantes

60DIAS Adriana M GRINBERG Keila e

PELLEGRINI Marco Novo Olhar Histoacuteria v2 Satildeo

17Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

da abdicaccedilatildeo de D Pedro I foi a campeatilde em respostas imprecisas 92 dis-seram natildeo saber ou natildeo se lembrar 16 deu respostas erradas e apenas 12 soube responder ldquomil oitocentos e trinta e umrdquo

E quanto agrave data da Independecircncia do Brasil Em comparaccedilatildeo com as perguntas anteriores esta obteve respostas de qualidade superior natildeo obstante um nuacutemero ainda alto de respostas ldquonatildeo souberdquo e ldquonatildeo lembrardquo 33 dos entrevistados Haacute que se lembrar inclusive que desde a segunda parte do questionaacuterio o entrevistado jaacute sabia tratar-se de algo focado na Independecircncia ou seja se nas demais perguntas pode-se dizer que ele foi pego totalmente surpresa nesta natildeo Por isso e se considerarmos ainda os 14 que deram respostas claramente erradas a esta pergunta (ldquomil e qui-nhentosrdquo ldquovinte e um de abril de mil e quinhentosrdquo ldquovinte e dois de abril de mil e quinhentosrdquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquovinte e um de abrilrdquo ldquovinte e dois de abrilrdquo ldquonove de julhordquo) chega-se a um total de 47 de pessoas incapazes de dizer quando ocorreu a Independecircncia do Brasil Por outra parte os que souberam responder (ldquosete de setembro de mil oito-centos e vinte e doisrdquo ou ldquomil oitocentos e vinte e doisrdquo) chegaram a 16 iacutendice muito proacuteximo das dimensotildees do hipoteacutetico grupo de interessados e razoaacuteveis conhecedores da Histoacuteria da Independecircncia referido alguns paraacutegrafos acima

Trata-se de um nuacutemero elevado ainda mais se reafirmarmos que a Independecircncia natildeo eacute jamais completamente ignorada em meio agrave cultura brasileira de histoacuteria De certo modo sim mas natildeo deve escapar agrave obser-vaccedilatildeo de ningueacutem que nessa pergunta especiacutefica a confusatildeo de datas se daacute dentro de referecircncias histoacutericas e cronoloacutegicas bastante demarcadas a Independecircncia o ldquodescobrimento do Brasilrdquo Tiradentes e a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica todos eles marcos fundacionais em uma memoacuteria histoacuteri-ca oficial logo fundamentais na constituiccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil51 Tais resultados indicam preliminarmente a precariedade da concepccedilatildeo de histoacuteria ndash da Independecircncia em particular - segundo formas convencionais de organizaccedilatildeo cronoloacutegica e isso a despeito dessa socieda-de ser permeada e carregada de referecircncias cronoloacutegicas que organizam a vida das pessoas em muitos de seus interstiacutecios (vida familiar vida profis-sional praacuteticas de lazer e de culto etc) Pouquiacutessimas respostas ndash esta-tisticamente despreziacuteveis -parecem esboccedilar a forja de alguma modalidade alternativa de organizaccedilatildeo temporal da histoacuteria (ldquoquase duzentos anosrdquo ldquomil oitocentos e alguma coisardquo ou ldquoD Pedro saiu para brigar com o irmatildeo e deixou D Pedro IIrdquo) diante do quecirc ganha forccedila a hipoacutetese de uma enorme e generalizada dificuldade apresentada por essa sociedade no manejo de recursos baacutesicos de historicizaccedilatildeo da histoacuteria como a cronologia52

Ateacute aqui as conclusotildees a que se pode chegar ainda satildeo excessiva-mente parciais extraiacutedas apenas da sondagem de opiniatildeo conveacutem no entanto sumarizaacute-las de modo a reforccedilaacute-las como hipoacuteteses capazes de nortear a anaacutelise vindoura Segundo o que nos mostram os entrevistados a Independecircncia eacute pouco frequentada por muitos mas assiduamente por um grupo razoaacutevel (seratildeo seus membros os uacutenicos capazes de pensaacute-la segundo marcos cronoloacutegicos) eacute amplamente considerada tema da maior importacircncia para a Histoacuteria do Brasil e de menor importacircncia para a His-toacuteria do Mundo ela eacute menos interessante do que outros temas (quais natildeo sabemos) assim como a Histoacuteria do Brasil eacute menos do que a Histoacuteria Geral mas tende a ser vista como algo respeitaacutevel eventualmente positivo para o Brasil o que parece evocar um imaginaacuterio oficial ainda muito vigente de

Paulo FTD 2010 ALVES Alexandre e OLIVEIRA Letiacutecia F de Conexotildees com a Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Moderna 2010 PEDRO Antocircnio e LIMA Lizacircnias de Souza Histoacuteria sempre presente v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VICENTINO Claacuteudio R e DORIGO Gianpaolo F Histoacuteria Geral e do Brasil v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FIGUEIRA Divalte G Histoacuteria em foco v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2011 NOGUEIRA Fausto G e CAPELLARI Marcos Ser protagonista Histoacuteria 2ordm ano do Ensino Meacutedio Satildeo Paulo Ediccedilotildees SM 2010 BURITTI Flaacutevio Caminhos do Homem v2 Curitiba Base Editorial 2010 CAMPOS Flaacutevio de CLARO Regina A escrita da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 COTRIM Gilberto Histoacuteria Global Brasil e Geral v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 AZEVEDO Gislane C e SERIACOPI Reinaldo Histoacuteria em movimento v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2010 MORENO Jean Carlos e GOMES Sandro V Histoacuteria cultura e sociedade v3 Curitiba Positivo 2010 FERREIRA Joatildeo Paulo e FERNANDES Luiz Estevam Nova Histoacuteria integrada v2 2a ed Curitiba Moacutedulo 2010 MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Histoacuteria Geral e Brasil v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam B Histoacuteria Das cavernas ao terceiro milecircnio v2 2a ed Satildeo Paulo Moderna SANTIAGO Pedro CERQUEIRA Ceacutelia e PONTES Maria Aparecida Por dentro da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 MOCELLIN Renato e CAMARGO Rosiane Histoacuteria em debate v2 Satildeo Paulo Editora do Brasil 2010 CATELLI Jr Roberto GANDINI Mariacutea Soledad M e ASPIS Renata L Histoacuteria texto e contexto v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FARIA Ricardo de M MIRANDA Mocircnica Liz e CAMPOS Helena Estudos de Histoacuteria v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010

61PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit

62Conforme observou o Guia de livros didaacuteticos

PNLD 2012 Histoacuteria 17 das coleccedilotildees aprovadas adotaram a perspectiva da Histoacuteria Integrada na qual se expotildee o conteuacutedo histoacuterico a partir da ldquosequecircncia cronoloacutegica de base europeiardquo havendo o predomiacutenio da ldquoHistoacuteria Geral eurocecircntricardquo linear Os assuntos sobre a Histoacuteria da Ameacuterica e do Brasil estatildeo intercalados nesta grande Histoacuteria Geral As outras duas coleccedilotildees optaram pelo formato temaacutetico organizando os assuntos ldquoem torno de muacuteltiplos espaccedilos e temporalidadesrdquo mas guiados por um eixo cronoloacutegico Guia de livros didaacuteticos PNLD 2012 Histoacuteria Op Cit p 18-19

63Uma afirmaccedilatildeo tiacutepica ldquoO nascimento do

Brasil como paiacutes independente encontra-se dentro do contexto de crise do Antigo Regime e do sistema colonial mercantilistardquo VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p89 Os paradigmas historiograacuteficos a que tal tipo de afirmaccedilatildeo remete satildeo evidentemente as obras de Caio Prado Juacutenior e Fernando Novais jaacute amplamente presentes tambeacutem nos livros de Ensino Fundamental PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit cap3

18Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

glorificaccedilatildeo da Independecircncia laudatoacuterio e a destacar seus personagens centrais No entanto tal tendecircncia encontra obstaacuteculo em outras contraacute-rias minoritaacuterias mas natildeo despreziacuteveis a verem a Independecircncia como algo pouco ou nada importante uma histoacuteria restrita espacialmente e socialmente e mais de continuidades do que de rupturas

Assim jaacute eacute possiacutevel afirmar que a Independecircncia enseja disputas a seu respeito em torno de suas representaccedilotildees e memoacuterias oficiais ou natildeo Muito provavelmente alguns dos motivos que explicam sua rejeiccedilatildeo por muitos explicam igualmente sua ativa e entusiasmada frequecircncia por um grupo menor Em uma terceira via ela jamais deixou de ser pensada e divulgada em perspectivas complexas fortemente criacuteticas e analiacuteticas Para todos os efeitos a Independecircncia contribui sem duacutevida para tipificar uma cultura de histoacuteria no Brasil plural variada e apenas parcialmente organizada em padrotildees cronoloacutegicos (temporais) na qual ocupa um papel central e da qual irradiam outros elementos valiosos para um melhor en-tendimento dessa mesma cultura

4 ndash A Independecircncia nas escolas A principal fonte de fomento e irradiaccedilatildeo de atitudes do brasileiro diante da Independecircncia eacute o sistema escolar com sua diversidade de agentes es-paccedilos procedimentos materiais e valores Aqui seraacute analisado apenas um componente prenhe de significados desse sistema o livro didaacutetico53

Segundo um estudioso da mateacuteria os autores de livros didaacuteticos de Histoacuteria em geral ndash grupo no qual ele mesmo estaacute incluiacutedo -ldquonatildeo tecircm por objetivo somente transpor a Histoacuteria acadecircmica eles identificam necessi-dades sociais estatildeo imersos na sociedade e portanto na proacutepria histoacuteria sobre a qual escrevemrdquo54 Tais livros satildeo assim documentos privilegiados de uma cultura de histoacuteria trazem conteuacutedos de acordo com padrotildees e paracircmetros de uma sociedade agrave qual servem sendo inclusive cada vez mais sensiacuteveis a impulsos de origem natildeo acadecircmica55 contam com a colaboraccedilatildeo ou autoria de historiadores profissionais56 que trabalham junto a editores assistentes revisores iconoacutegrafos diagramadores e designers graacuteficos57 satildeo consumidos preferencialmente por educadores e educandos mas chegam tambeacutem agraves famiacutelias destes e ao puacuteblico em geral tendem a permanecer por algum tempo disponiacuteveis em salas de aula residecircncias livrarias e bibliotecas e satildeo fortemente condicionados pelas exigecircncias de um grande mercado editorial cujas demandas capi-talistas natildeo satildeo menos evidentes do que as pedagoacutegicas O livro didaacutetico eacute o segundo suporte de leitura mais lido no Brasil sendo sua produccedilatildeo o mais lucrativo negoacutecio de uma induacutestria editorial brasileira que tem no governo federal seu maior cliente58 Essa produccedilatildeo dos livros didaacuteticos movimenta enormes cifras veicula paacuteginas e paacuteginas de conteuacutedos de Histoacuteria produzidos por e destinados a um amplo conjunto de agentes sociais e tecircm circulaccedilatildeo nacional59

A Independecircncia estaacute presente em todos os 21 livros destinados ao Ensino Meacutedio aqui considerados60 assim como estava em outros 12 de Ensino Fundamental contemplados por um estudo acadecircmico a respeito61 Nessa dupla frente abre-se uma possibilidade de anaacutelise valiosa jaacute que alguns livros circulam atualmente enquanto outros circularam agrave eacutepoca em que jovens adultos que hoje tecircm entre 22 e 26 anos eram crianccedilas entre 9 e 13 Unem-se assim duas temporalidades de tratamentos da Independecircn-cia que podem ser unificadas por uma cultura de histoacuteria

64Exemplo eacute a afirmaccedilatildeo de que ldquoem

reconhecimento agrave importacircncia da Batalha do Jenipapo como um episoacutedio fundamental no processo de independecircncia e de consolidaccedilatildeo do territoacuterio a data de 13 de marccedilo de 1823 foi estampada na bandeira do estado do Piauiacuterdquo DIAS Adriana GRINBERG Keila e PELLEGRINI Marco Op Cit p240

65Excelente demonstraccedilatildeo eacute dada por uma

proposta pedagoacutegica de um jogo didaacutetico elaborado pelo Laboratoacuterio de Ensino de Histoacuteria da Universidade Federal de Pelotas descrita em GASPAROTTO Alessandra ESPIacuteRITO SANTO Marco Viniacutecio do SILVA Eduarda Borges da Jogo didaacutetico vira-vira a metroacutepole vira colocircnia a colocircnia vira-metroacutepole Revista Latino-Americana de Histoacuteria v2 n6 agosto de 2013 (Ediccedilatildeo Especial) p648-661

66Os preferidos satildeo D Joatildeo Carlota Joaquina Joseacute

Bonifaacutecio e D Pedro

67Um exemplo apoacutes afirmar que ldquodurante anos a

historiografia oficial tentou idealizar o processo de independecircncia e seus autores explicado como um ato de heroiacutesmo contra a tirania e em defesa da liberdaderdquo uma das obras afirma em tom de contraposiccedilatildeo ldquoMas nas uacuteltimas deacutecadas novos estudos permitiram lanccedilar um novo olhar sobre esse periacuteodo Expressotildees dessa mudanccedila satildeo algumas produccedilotildees culturais recentes que tratam desse momento com uma visatildeo criacutetica e ateacute mesmo sarcaacutestica como por exemplo o romance O Chalaccedila (1999) de Joseacute Roberto Torerordquo Por fim propotildee como ldquoSugestatildeo de atividaderdquo supostamente para aguccedilar o senso criacutetico do aluno ldquocomparar o romance de Torero citado acima com a visatildeo oficial dos eventos fornecida pela ceacutelebre pintura Independecircncia ou morte (O Grito do Ipiranga) de Pedro Ameacuterico ou pelo filme Independecircncia ou morte (1972) de Carlos Coimbrardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p80-81) Aleacutem de ignorar os momentos objetivos e naturezas distintos das obras recomendadas tal atividade sugere a ultrapassagem de uma visatildeo ldquotradicionalrdquo da Independecircncia por outra ldquocriacuteticardquo ndash logo mais aceitaacutevel Assim o aluno eacute encorajado a conceber a histoacuteria por meio de sua livre-interpretaccedilatildeo mas sendo impelido a endossar a de um romance satiacuterico (logo voltaremos a ele)

68Em um livro para o Ensino Fundamental de

1996 lia-se que ldquopara a realizaccedilatildeo do nosso trabalho foi importante a participaccedilatildeo de Mariana Massarani artista que desenhou com alegria e bom humor os acontecimentos estudadosrdquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Do mundo indiacutegena ao periacuteodo regencial no Brasil Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1994 p1 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p79) Essa eacute uma tendecircncia antiga como nos mostra o poema de Murilo Mendes ldquoA pescariardquo (publicado em Histoacuteria do Brasil de 1932) evocativo da tatildeo ceacutelebre quanto historicamente irrelevante disenteria de D Pedro em 7 de setembro de 1822 e transcrito em outro didaacutetico ldquoFoi nas margens

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Natildeo haacute duacutevida que a maioria dos livros didaacuteticos de Histoacuteria voltados ao Ensino Meacutedio abre possibilidades de construccedilatildeo de um conhecimento acerca da Independecircncia multifacetado matizado criacutetico e criterioso e deles pode-se extrair muitos exemplos a revelarem diaacutelogos propositi-vos entre saberes acadecircmicos e didaacuteticos da Histoacuteria (afinal os proacuteprios autores e avaliadores dos livros estatildeo quase todos diretamente ligados ao meio acadecircmico) aliaacutes em comparaccedilatildeo com os de Ensino Fundamental de cerca de uma deacutecada atraacutes essas possibilidades soacute cresceram Poreacutem como natildeo eacute objetivo deste estudo analisar tais livros em si mesmos -somente deles extrair elementos que tipifiquem uma cultura de histoacuteria por meio da Independecircncia ndash mais relevantes parecem ser justamente alguns de seus pontos sensiacuteveis nos quais tais livros se fazem menos acadecircmicos e nos quais se traduzem de modo mais significativo componentes mais amplos da sociedade que lhes daacute sentido

Em todos esses livros a Independecircncia eacute invariavelmente vista como parte de um processo mais amplo no qual se incluem outros acontecimen-tos poliacuteticos americanos e europeus de finais do seacuteculo XVIII e comeccedilos do seacuteculo XIX (embora quase nunca sejam feitas conexotildees fundamentais entre eles deficiecircncia notaacutevel sobretudo no tocante agraves independecircncias da Ameacuterica espanhola vistas sempre como supostos contraexemplos da Independecircncia do Brasil62) O episoacutedico se faz presente na menccedilatildeo a vaacuterios temas menores ndash a vinda da Corte a abertura dos Portos o governo de D Joatildeo no Rio de Janeiro a Revoluccedilatildeo de Pernambuco a Revoluccedilatildeo do Porto etc ndash mas sempre em observacircncia a contextos histoacutericos espaciais e temporais mais amplos63 Destaque-se que 80 dos livros fazem referecircncia expliacutecita ao termo ldquoguerra(s) de independecircnciardquo64 o que enseja uma con-cepccedilatildeo tambeacutem multirregional do tema e vaacuterios o aprofundam O mesmo pode ser dito de perfis biograacuteficos presentes mas submetidos a uma loacutegica processual da Histoacuteria

Essa ecircnfase em processos em detrimento parcial de acontecimentos e personagens eacute importante indiacutecio de uma sintonia entre saberes aca-decircmicos e natildeo acadecircmicos65 Contudo deve-se relativizar o peso desse diaacutelogo jaacute no que tange ao tratamento dispensado agraves biografias aleacutem de pouco ou nada inovarem na escolha dos personagens destacados66 alguns livros didaacuteticos trazem fragmentos anedoacuteticos de tais trajetoacuterias hoje em dia pouco ou nada uacuteteis a historiadores profissionais (embora as comilan-ccedilas de D Joatildeo os amantes de D Carlota ou as noitadas de D Pedro natildeo os distingua de outros agentes histoacutericos de sua eacutepoca tampouco satildeo trata-dos como tiacutepicos67) Parece razoaacutevel argumentar que ao menos parcial-mente tal insistecircncia da parte do livro didaacutetico atende ao gosto do leitorconsumidor tornando tais suportes materiais mais agradaacuteveis e sedutores assim sendo constata-se justamente um limite no diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e saberes didaacuteticos expressos em tais livros bem como se anuncia uma tendecircncia de representaccedilatildeo humoriacutestica do passado em uma cultura de histoacuteria como a brasileira muito forte em outros suportes68 Eis um mercado ndash que no Brasil mescla dimensotildees editoriais e midiaacuteticas com outras educacionais e culturais mais amplas ndash impondo seus padrotildees de representaccedilatildeo do passado

Aleacutem de envolverem historiadores profissionais em sua produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo os livros didaacuteticos de Ensino Meacutedio parecem esforccedilar-se cada vez mais em trazer conteuacutedos extraiacutedos de obras acadecircmicas bem como apresentar ao leitor uma pluralidade de posiccedilotildees acerca de um determina-

do IpirangaEm meio a uma pescariaSentindo-se mal D PedroComera demais cuscuzDesaperta a braguilhaE grita roxo de raivaOu me livro desta coacutelicaOu morro logo de uma vezO priacutencipe se aliviouSai no caminho cantandoJaacute me sinto independenteSafa Vou de perto a morteVamos cair no fadinhoPra celebrar o sucessordquo MACEDO Joseacute Rivair Brasil ndash uma histoacuteria em construccedilatildeo Satildeo Paulo Brasil 1996 p166 Cit por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p101

69Tomemos por exemplo esta afirmaccedilatildeo ldquoDe acordo

com alguns historiadores as raiacutezes da independecircncia brasileira estatildeo na segunda metade do seacuteculo XVIII quando se multiplicaram atividades produtivas e comerciais na colocircnia sobretudo na regiatildeo Centro-Sulrdquo (MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Op Cit p113) Nela eacute possiacutevel reconhecer a presenccedila de influente e importante interpretaccedilatildeo acadecircmica acerca da Independecircncia do Brasil (DIAS Maria Odila A interiorizaccedilatildeo da metroacutepole (1808-1853) In MOTA Carlos Guilherme 1822 dimensotildees Satildeo Paulo Perspectiva 1972 p160-184) no entanto natildeo eacute apresentada qualquer contraposiccedilatildeo (se esta posiccedilatildeo eacute da parte de ldquoalguns historiadoresrdquo outra divergente deve ser da parte de outros) Mais adiante lecirc-se que ldquoo fato relevante foi que a transferecircncia da corte para o Brasil provocou uma inversatildeo histoacuterica de modo significativo e irreversiacutevel nas relaccedilotildees entre a metroacutepole portuguesa e a colocircnia brasileirardquo (Idem p114) Ora o que seria uma inversatildeo irreversiacutevel dessas relaccedilotildees Portugal teria se tornado para sempre colocircnia do Brasil

70Nos livros didaacuteticos de Ensino Fundamental

analisados por Purificaccedilatildeo jaacute eram abundantes as transcriccedilotildees de trechos de textos de historiadores profissionais sem que deles resultasse qualquer ensejo de pluralidade de pensamento ou de estiacutemulo agrave interpretaccedilatildeo

71VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA

Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p 103

72O capiacutetulo 14 de uma das obras intitulado

ldquoO processo de independecircncia da Ameacuterica portuguesardquo inicia-se com um excerto do Romanceiro da Inconfidecircncia de Ceciacutelia Meireles tambeacutem indutor a essa interpretaccedilatildeo ldquoAtraveacutes de grossas portas sentem-se luzes acesas e haacute indagaccedilotildees minuciosas dentro das casas fronteiras Que estatildeo fazendo tatildeo tarde Que escrevem conversam pensam Mostram livros proibidos Leem notiacutecias nas GazetasTeratildeo recebido cartasde potecircncias estrangeiras [] Oacute vitoacuterias festas flores das lutas da Independecircncia Liberdade ndash essa palavra que o sonho humano alimenta que natildeo haacute ningueacutem que explique e ningueacutem que natildeo entendardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p 202) Jaacute nas ldquosugestotildees de leitura e consulta para o professorrdquo de outra encontra-se indicaccedilatildeo de uma obra de J J Chiavenato - Inconfidecircncia mineira as vaacuterias faces Satildeo Paulo Global 2000 - com este comentaacuterio ldquoo autor mostra o movimento que buscava a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Adotando uma abordagem que parte da realidade socioeconocircmica do periacuteodo este livro releva diferentes aspectos desse momento singular da histoacuteria brasileirardquo (NOGUEIRA Fausto

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do toacutepico que seja decorrente de debates acadecircmicos No entanto ainda eacute frequente que tais conteuacutedos se inclinem agrave pura formalidade dificilmente explicitando divergecircncias oriundas da academia ou resultando em uma tomada de posiccedilatildeo realmente criacutetica perante a histoacuteria69 Ao usuaacuterio do livro eacute apresentada uma suposta pluralidade de pensamento natildeo como ferramenta de obtenccedilatildeo dessa pluralidade mas como estilo de composiccedilatildeo e padronizaccedilatildeo do material didaacutetico70

Esse tipo de atitude formalista pode ser encontrada tambeacutem em propostas de atividades dirigidas ao aluno como esta

A interpretaccedilatildeo sobre a independecircncia do Brasil provocou e ainda provoca muitas divergecircncias Sob o ponto de vista econocircmico alguns pesquisadores defendem que a separaccedilatildeo ocorreu de fato em 1808 [] Outros com interpretaccedilotildees mais poliacuteticas indicam o 7 de setembro de 1822 embora nenhuma medida formal tenha sido tomada nessa data ndash foi um ato simboacutelico Depois da Guerra do Paraguai jornais republicanos argumentavam que [] D Pedro havia atendido aos apelos de independecircncia dos brasileiros mas os teria traiacutedo quando fechou a Assembleia Constituinte em 1823 Enalteciam entatildeo a Inconfidecircncia Mineira (1789) a Revoluccedilatildeo Pernambucana (1817) e a Confederaccedilatildeo do Equador (1824) movimentos com teor republicano conforme as reais aspiraccedilotildees dos brasileiros

Satildeo vaacuterias interpretaccedilotildees que variam de acordo com a posiccedilatildeo poliacutetica ou momento histoacuterico dos autores Alguns intelectuais consideram ateacute mesmo que o Brasil hoje tem uma independecircncia mais nominal do que real pois continuaria dependente dos paiacuteses mais ricos

Em sua opiniatildeo quando o Brasil se tornou um paiacutes independente71

Aqui novamente eacute apresentada uma divergecircncia de interpretaccedilatildeo e vaacuterias satildeo as possibilidades de resposta agrave pergunta quando o Brasil se tornou um paiacutes independente No entanto todas as posiccedilotildees apresentadas parecem equivaler-se pois tudo depende da ldquoposiccedilatildeo poliacuteticardquo ou ldquodo mo-mento histoacutericordquo da pessoa disposta a respondecirc-la Assim e por induccedilatildeo a Inconfidecircncia Mineira poderia ser uma resposta aceitaacutevel conforme visatildeo ainda presente em alguns livros72 e a despeito do contraacuterio que historia-dores vecircm afirmando nas uacuteltimas deacutecadas Do mesmo modo a atividade pareceria aceitar a ldquonatildeo independecircncia de fatordquo ideia muito presente na cultura de histoacuteria no Brasil73 tatildeo sedutora quanto inconsistente do ponto de vista acadecircmico Para o aluno tratar-se-ia de uma questatildeo de simples opccedilatildeo (poliacutetica) diante da qual a Histoacuteria se destemporaliza

Uma Histoacuteria processual mais do que episoacutedica ou personalista uma Histoacuteria permeada de explicaccedilotildees acadecircmicas ao mesmo tempo uma Histoacuteria com limitaccedilotildees em termos de divergecircncias relativizaccedilotildees e possibilidades em aberto condicionada a suportes materiais repletos de convenccedilotildees a tornarem-nos muito parecidos entre si Talvez seja no tra-tamento dispensado a imagens que os livros didaacuteticos melhor revelam tais convenccedilotildees reforccedilando as limitaccedilotildees de seu diaacutelogo com a Histoacuteria acadecirc-mica bem como acentuando suas caracteriacutesticas de mercadoria Todos os livros aqui considerados satildeo carregados de itens especiacuteficos a quebrarem a continuidade do texto e suas paacuteginas satildeo multicoloridas e povoadas por fi-guras como obras de pintores dos seacuteculos XIX e XX74 Quase nunca poreacutem tais imagens satildeo analisadas como fontes histoacutericas confinadas agrave funccedilatildeo de mera ilustraccedilatildeo frequentemente modificadas em cor e tamanho ateacute mesmo mutiladas ndash sem esclarecimento ndash em prol da diagramaccedilatildeo75 Em tais casos inevitavelmente cria-se uma ideia natildeo de uma histoacuteria sujeita a muacuteltiplas interpretaccedilotildees (contrapondo-se portanto a vaacuterias das atividades

e CAPELLARI Marcos Op Cit p71) Em uma terceira obra logo na abertura de um capiacutetulo intitulado ldquoA independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo lecirc-se que ldquoos dias 21 de abril e 7 de setembro feriados nacionais nos fazem lembrar de dois momentos do processo histoacuterico que levou a independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo (COTRIM Gilberto Op Cit p223) A associaccedilatildeo direta entre Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia era mais comumente feita em livros didaacuteticos de deacutecadas atraacutes Um de Ensino Fundamental caracterizava a Revolta de Beckman a Guerra dos Emboabas a Revolta de Felipe dos Santos a Guerra dos Mascates e as conjuraccedilotildees Mineira e Baiana como movimentos nos quais ldquoos revoltosos se opuseram agrave metroacutepole sonhando e lutando pela autonomia do paiacutesrdquo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Nas trilhas da histoacuteria Ensino Fundamental Belo Horizonte Dimensatildeo 1999 v4) Citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p108

73FIGUEIRA Divalte G Op Cit p191 Nos de

Ensino Fundamental AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 CARMO Socircnia S do COUTO Eliane F B A A consolidaccedilatildeo do capitalismo e o Brasil impeacuterio Satildeo Paulo Atual 1997 (Histoacuteria Passado Presente 3) p105 FERREIRA Joseacute Roberto Histoacuteria Ediccedilatildeo Reformulada Satildeo Paulo FTD 1997 (7ordf seacuterie) p65 ALVES Kaacutetia Correia Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p 128 Citados por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p78 84-85 96 e 111

74Debret Rugendas Moreaux Feacutelix Taunay

Constantino Fontes Polliegravere Parreiras Benedito Calixto Delerive Martins Viana Oscar Pereira da Silva Georgina de Albuquerque e Aldemir Martins entre outros

75Isso jaacute era frequente haacute uma deacutecada com livros

de Ensino Fundamental como por exemplo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p126 e COTRIM Geraldo Op Cit p 112 conforme anaacutelise de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p113 e 123 Haacute que se dizer que livros didaacuteticos natildeo satildeo meio exclusivo para esse esvaziamento do valor documental da iconografia havendo na proacutepria publicaccedilatildeo acadecircmica problema semelhante como demonstra CAVENAGHI Airton Joseacute O atlas do impeacuterio do Brazil e as representaccedilotildees presentes no livro Projeto Histoacuteria v 41 2010 p 383-403

76Constataccedilatildeo semelhante agrave de PURIFICACcedilAtildeO Ana

Teresa da Op Cit para os didaacuteticos de Ensino Fundamental

77NOGUEIRA Fausto e CAPELLARI Marcos Op

Cit p255

78Para um deles ldquoo pintor Pedro Ameacuterico imaginou

a cena ocorrida agraves margens do riacho do Ipirangardquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 para outro um ceacutelebre quadro mostraria uma ldquocena de uma

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sessatildeo das cortes de Lisboa reconstituiacuteda pelo pintor Oscar Pereira da Silvardquo Cfr CARMO Socircnia do COUTO Eliane F B A Op Cit p 73 um terceiro propunha ao aluno a seguinte atividade ldquoobserve cuidadosamente as gravuras de Debret que aparecem no texto Descreva cada uma delas e compare as cenas nelas retratadas com as cenas de nossas ruas de hoje Haacute diferenccedila Em que sentidordquo Cfr GARCIA Leocircnidas F Estudos de histoacuteria sociedades contemporacircneas 2 ed rev Goiacircnia Editora da UFG 1996 Manual do Professor p 111 Todas as informaccedilotildees foram retiradas de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p81 88 e 137

79Conforme bem mostrado por Elias Saliba Cfr

SALIBA Elias Experiecircncias e representaccedilotildees sociais reflexotildees sobre o uso e o consumo das imagens Anais do II Encontro Perspectivas do Ensino de Histoacuteria Satildeo Paulo FEUSP 1996 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p119

80Produzida pela Secretaria de Ensino agrave

Distacircncia do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo em parceria com a TV Escola e a Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco com a companhia teatral Matildeo Molenga Parte 1 disponiacutevel em youtubecomwatchv=Z60eHBJ1xjY 18082 visualizaccedilotildees e 15 comentaacuterios parte 2 disponiacutevel em youtubecomwatchv=2QLkP2NDhMg 30100 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios (parte desse episoacutedio tambeacutem disponiacutevel em youtubecomwatchv=bAPUjP7l-lI 18398 visualizaccedilotildees e 16 comentaacuterios acesso em 13022014

81Como Clemente Pereira Gonccedilalves Ledo Cipriano

Barata Paes de Andrade e frei Caneca O fato de se tratar de uma produccedilatildeo pernambucana contribui para tanto

82Semelhante observaccedilatildeo pode ser feita a respeito

dos doze curtos episoacutedios da seacuterie D Joatildeo no Brasil inspirada em uma narrativa em quadrinhos da chegada da Corte ao Brasil seacuterie de animaccedilatildeo produzida pelo Canal Futura baseada no livro de histoacuteria em quadrinhos D Joatildeo Carioca a corte portuguesa chega ao Brasil (1808 - 1821) escrito pela historiadora Lilia Schwarcz e pelo desenhista Spacca (Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007) Novamente tem-se um material convincente afinado em muitos sentidos com um conhecimento acadecircmico mas que ao recorrer agrave saacutetira tambeacutem evoca estereoacutetipos convencionais como por exemplo os mesmos acima mencionados em referecircncia a priacutencipe e princesa Poder-se-ia atribuir tal convencionalismo dentre outros fatores ao de que a primazia da linguagem visual aqui opera duplamente isto eacute com os quadrinhos e tambeacutem com o programa televisivo criado a partir deles amplificando assim os efeitos decorrentes da saturaccedilatildeo visual da sociedade que daacute origem e significado a esse material Para todos os efeitos a imposiccedilatildeo de tais convenccedilotildees eacute forte ateacute mesmo conforme jaacute visto em materiais menos visuais que este Episoacutedio 01 youtubecomwatchv= 9f5RB1zcD5Eamplist=PLyP1ks9vaqhj2y6MmckU DyuXtWmHgPLe5ampindex=1 331 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio episoacutedio 02 youtubecomwatchv= w-BLqvhYPGkamplist=PL5837763F26AB1B87

oferecidas pelos proacuteprios livros) mas de uma histoacuteria imoacutevel a ser captada de modo instantacircneo uma histoacuteria verdadeira Aleacutem do mais confundem-se os diferentes contextos motivaccedilotildees e condiccedilotildees de produccedilatildeo de tais imagens o que equivale agrave oferta de uma confusatildeo temporal que impossibi-lita a compreensatildeo dessa histoacuteria76

As uacutenicas exceccedilotildees satildeo os ceacutelebres quadros de Moreaux e de Pe-dro Ameacuterico Todos os livros didaacuteticos aqui considerados se esforccedilam por submetecirc-los a uma criacutetica muitas vezes comparativa considerando forma conteuacutedo e contexto mesmo assim eacute possiacutevel encontrar afirmaccedilotildees como a de que Ameacuterico teria tido ldquoo intuito de fazer a representaccedilatildeo desse famoso acontecimento da maneira mais fiel possiacutevelrdquo e que ldquomuitos dos elementos representados pelo pintor satildeo sabidamente falsosrdquo77 Provavel-mente satildeo resquiacutecios de um momento anterior no qual os livros didaacuteticos mostravam-se muito menos cuidadosos ateacute mesmo na utilizaccedilatildeo do quadro de Ameacuterico78 mas tambeacutem marcas atuais de uma sociedade de haacutebitos fortemente visuais cuja saturaccedilatildeo de imagens tende a resultar em posturas pouco criacuteticas em relaccedilatildeo ao que se vecirc bem como em indistinccedilatildeo tempo-ral das mesmas79 Haacute que se lembrar por fim e novamente que os textos desses livros satildeo cheios de descontinuidades como se cada pedaccedilo de cada paacutegina tivesse autonomia prescindindo de certo modo da leitura dos demais Guardaratildeo tais constataccedilotildees alguma relaccedilatildeo com as dificuldades apresentadas pelos entrevistados na sondagem de opiniatildeo de organizar visotildees da Histoacuteria da Independecircncia segundo marcos cronoloacutegicos bem como de distinguir diferenccedilas entre intervalos temporais Eacute bem possiacutevel sobretudo porque ela seraacute endossada pela observaccedilatildeo de outras fontes

5 - A Independecircncia na internet e na tevecircExiste farto e rico material audiovisual disponiacutevel na internet com referecircncias agrave Independecircncia do Brasil e que a exemplo dos livros didaacuteticos represen-tam a convergecircncia de esforccedilos profissionais muacuteltiplos (mais os programas de tevecirc do que os viacutedeos independentes) como pesquisadores roteiristas apresentadores repoacuterteres cenoacutegrafos teacutecnicos variados etc As fontes aqui delimitadas perfazem 107 viacutedeos acessiacuteveis no YouTube e que natildeo obstante sua ampliacutessima diversidade convergem em muitos significados

Observe-se o caso de viacutedeos educativos documentaacuterios e programas de televisatildeo com entrevistas e debates que em comum apresentam objetivos formativos e esforccedilos verdadeiros de incorporaccedilatildeo de conteuacutedos acadecircmicos traduzidos em linguagens didaacuteticas Um caso exemplar eacute a seacuterie 500 anos o Brasil - Impeacuterio na TV que conta uma histoacuteria do Brasil da chegada da Corte ao periacuteodo das regecircncias em formato de telejornal com trama romanceada e teatro de bonecos80 Aqui vecirc-se uma Histoacuteria processual com informa-ccedilotildees corretas e amparadas em datas deslocamentos frequentes dos eixos espaciais de observaccedilatildeo (regional internacional) com menccedilatildeo a persona-gens que extrapolam o tradicional ciacuterculo da Corte portuguesa81 e ecircnfase no caraacuteter violento e conflitivo da formaccedilatildeo do Brasil no seacuteculo XIX Mesmo um material histoacuterico-pedagoacutegico desse quilate evoca por exemplo a falta de atributos esteacuteticos de Carlota Joaquina ou a pusilanimidade de seu marido a revelarem mais uma vez o mercadologicamente eficiente componente bio-graacutefico-anedoacutetico no tratamento da Independecircncia advindo de sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria mais ampla82

Em outros casos o fato de programas de televisatildeo buscarem o auxiacutelio de especialistas na Independecircncia revela uma convenccedilatildeo formal como nos

22Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

16566 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios episoacutedio 03 youtubecomwatchv=QvWSE-sF-w4amplist =PL5837763F26AB1B87 18406 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios episoacutedio 04 youtubecomwatchv= 2N5wBvpgyXEamplist=PL5837763F26AB1B87 12808 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 05 youtubecomwatchv=VaHrSAFBf1Uamplist =PL5837763F26AB1B87 14615 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 06 youtubecomwatchv= 8RrCMbOZTsAamplist=PL5837763F26AB1B87 12649 visualizaccedilotildees 10 comentaacuterios episoacutedio 07 youtubecomwatchv=I4cgWo_GHaQ 601 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 08 youtubecomwatchv=rI71YNrLo7o 12299 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 09 youtubecomwatchv=huv2ngnqUd4 367 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios episoacutedio 10 youtubecomwatchv=F2MaLs_kj-w 10842 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios episoacutedio 11 youtubecomwatchv=8zK3D01dXc0 9388 visualizaccedilotildees 05 comentaacuterios episoacutedio 12 youtubecomwatchv=R76BHD--vB8amplist=PL5837763F26AB1B87 12108 visualizaccedilotildees 9 comentaacuterios acessos em 03042014

83NAPOLITANO Marcos A Histoacuteria depois do

papel In Carla Pinsky (org) Fontes Histoacutericas Satildeo Paulo Contexto 2005 p250-252 Napolitano afirma com base em Umberto Eco que a televisatildeo introduziu uma mudanccedila de ritmo de vida familiar e cotidiana bem como o que se pode chamar de hipertrofia sensorial em detrimento da assimilaccedilatildeo conceitual Destaca ainda que eacute preciso pensar a televisatildeo como uma nova experiecircncia social do tempo histoacuterico na medida em que ela faz coincidir o verdadeiro o imaginaacuterio e o real no ponto indivisiacutevel do presente

84Produzida pela rede de emissoras puacuteblicas

TV Brasil Sobre a Revolta dos Alfaiates parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo 767 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=dj04LJJM8bk 2592 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio Sobre a Batalha do Jenipapo parte 1 youtubecomwatchv=zlgsZcj-V3o 2426 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios acesso em 24032013 parte 2 youtubecomwatchv=rAS3dHAvWPQ 1283 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio Sobre Tiradentes youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 408 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013)

85Marco Morel e Luiacutes Henrique Dias Tavares

86Programa De laacute pra caacute Revolta dos Alfaiates

parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo

87Exceccedilatildeo satildeo as entrevistas realizadas por

Mocircnica Teixeira na UnivespTV que estabelecem comunicaccedilatildeo bastante profiacutecua entre a entrevistadora e os acadecircmicos entrevistados (youtubecomwatchv=syXf3WHQRPM 4450 visualizaccedilotildees 06 comentaacuterios youtubecomwatchv=pZk5pFlboqw 3303 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=5pUDP2KUYCY 4128 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios

livros didaacuteticos e a exemplo destes a intenccedilatildeo de acolher uma multipli-cidade de vozes raramente enseja verdadeira pluralidade de pensamento o que ademais eacute dificultado pela natureza curta sinteacutetica e acelerada dos materiais televisivos Nessas situaccedilotildees constata-se que o historiador fala uma coisa mas o entrevistador e o produtor continuam a ldquoescutarrdquo outra o que muitas vezes reforccedila a percepccedilatildeo de descontinuidade narrativa an-teriormente tambeacutem diagnosticada nos livros didaacuteticos e que na televisatildeo adquire contornos de regra83 Os episoacutedios da seacuterie De laacute para caacute educati-vos didaacuteticos aacutevidos por com conhecimentos acadecircmicos e produzidos por uma rede puacuteblica de televisatildeo sem fins lucrativos apresentam interessante exemplo84 No programa dedicado aos acontecimentos de 1798 na Bahia dois historiadores profissionais85 esclarecem que os revoltosos ldquobahien-sesrdquo almejavam a independecircncia apenas da capitania da Bahia o que tem enormes implicaccedilotildees a destituiacuterem tais acontecimentos de qualquer atribu-to supostamente preparatoacuterio da Independecircncia do Brasil (situaccedilatildeo muito semelhante conforme vimos agrave da Inconfidecircncia Mineira) natildeo obstante na abertura do programa seu apresentador declara

A luta pela independecircncia do Brasil foi escrita nas paacuteginas memoraacuteveis da nossa histoacuteria com o sangue de um punhado de brasileiros O mais celebrado foi Tiradentes Mas sete anos depois do martiacuterio de Tiradentes quatro brasileiros pretos pobres pelos mesmos ideais foram enforcados e sentenciados em Salvador86

Em outros momentos o apresentador apesar de ouvir de forma soliacutecita e atenta ao que o entrevistado tem a dizer acaba por negar com sua proacutepria fala parte do conteuacutedo receacutem-ouvido mas sem demonstrar ser essa atitude premeditada ou consciente Afinal eacute difiacutecil desvencilhar-se daquilo que jaacute se ldquosaberdquo daquilo que adveacutem de um ambiente que o tempo todo nos ldquoensinardquo Histoacuteria sem necessariamente disso nos darmos conta87

A incapacidade de assimilaccedilatildeo reciacuteproca de ideias acerca da histoacute-ria entre agentes sociais diversos pode revelar-se de muitos modos Um dos programas da seacuterie Caminhos da Reportagem intitulado Caminhos da Independecircncia o grito nas ruas produzido com as mesmas caracteriacutesticas do anterior aborda a Independecircncia focada em seus panfletos poliacuteticos a partir da pesquisa recente de trecircs historiadores profissionais88 No entan-to e a despeito natildeo soacute de dar ampla voz a eles mas tambeacutem de abordar conteuacutedos didaticamente inovadores a equipe de entrevista que foi agraves ruas natildeo estabeleceu qualquer mediaccedilatildeo entre histoacuterias acadecircmicas e natildeo acadecircmicas pressupondo que todas as pessoas ocupam uma mesma posiccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria Por isso perguntas incompreensiacuteveis89 resultam apenas em situaccedilotildees vexatoacuterias impeditivas da construccedilatildeo de conhecimento sobre o tema

A abordagem de pessoas nas ruas recurso frequentemente utiliza-do por programas televisivos revela dados importantes acerca de como os brasileiros veem a Independecircncia muitas vezes mais por aquilo que eacute perguntado do que por aquilo que eacute respondido90 O programa + Estilo de 07 de setembro de 2011 produzido pela TV Campo Grande com conteuacutedo de variedades destinado a telespectadores de meio de tarde foi agraves ruas (provavelmente de Campo Grande Mato Grosso do Sul) perguntar se as pessoas saberiam dizer o que se comemorava naquele dia Primeiro res-ponde uma jovem com um bebecirc no colo

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youtubecomwatchv=0ZVgCwkt1ms 1384 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1016 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1227 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=ANSHAFLau04 1175 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios) Acessos em 21042014

88Joseacute Murilo de Carvalho Luacutecia Pereira das Neves

e Marcello Basile

89A apresentadora ldquoVocecircs sabem o que significa

corcundardquo Um professor de coleacutegio ldquoDeve ser alguma coisa que estaacute surgindo aiacute no mundo um pouco mais ciberneacutetico porque eu nem na faculdade ouvi falar dos corcundasrdquo Marcos Tomazzeti produtor multimiacutedia ldquoNa minha cabeccedila vem algo de monarquia de rei algo meio poliacuteticordquo Simone Granda bancaacuteria ldquoDicionaacuterio de corcundice Natildeo seirdquo Marilu Guimaratildees dona de casa ldquoPuxa tem tanta coisa importante pra ter dicionaacuterio vai ter justo do corcundistardquo Caminhos da Independecircncia youtubecomwatchv=37XH5UEpjlI acesso em 24032013

90Em perspectiva oposta mas complementar agrave da

sondagem de opiniatildeo aqui utilizada

91E que portanto muito provavelmente ainda natildeo

tinha tido contato formal (escolar) com o tema

92O programa prossegue entatildeo com uma entrevista

com o professor Ian Rari que trata de uma Histoacuteria da Independecircncia processual natildeo centrada em uma uacutenica data ou fato criacutetica etc Mais um momento onde as vaacuterias vozes contempladas pelo programa natildeo dialogam entre si (youtubecomwatchv=xv1LOlwUfFQ 289 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio) Outro exemplo significativo eacute dado pelo programa Conexatildeo Jovem exibido em 06 de setembro de 2012 no qual dois entrevistados ndash Prof Bira professor de Histoacuteria e Marcos Eduardo socioacutelogo ndash utilizam com competecircncia o pouco tempo a eles destinado discorrendo de modo criacutetico sobre a Independecircncia e em linguagem adequada ao puacuteblico jovem ao qual o programa se destina (produccedilatildeo da TV Novo Tempo adventista parte 1 youtubecomwatchv=1IvYOYtju9sgt 74 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=Ofv7QWOJpHo 47 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013) Logo o programa traz uma abordagem feita na rua na qual a entrevistadora pergunta a uma jovem ldquoQuem falou lsquoindependecircncia ou mortersquo agraves margens do riacho do Ipirangardquo Diante da correta resposta a entrevistadora tenta induzir um erro ldquo15 de novembro ou 7 de setembrordquo Aliaacutes a expectativa do programa parece revelada pela entrevistadora logo na primeira pergunta feita a um dos convidados ldquoseraacute que os jovens se interessam pela histoacuteria de seu paiacutesrdquo E embora o material recolhido pelo proacuteprio programa permita resposta afirmativa manteacutem-se a postura negativa preacute-concebida

93Daiacute a relevacircncia de um viacutedeo com fotografias e

um aacuteudio (youtubecomwatchv=UdQ_aAAl3DE)

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoE isso em que ano que foi que aconteceurdquoResposta ldquo1822rdquo

Em seguida outro jovem que provavelmente jaacute tinha respondido a outra pergunta

Pergunta ldquoQuem foi o imperador vocecirc lembrardquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoAcertou Canta pra gente um trecho do hino da independecircnciardquoResposta ldquoAgora natildeo lembrordquo

Agora o programa aborda uma menina de cerca de dez anos clara-mente intimada91

Pergunta Por que eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoNatildeo seirdquoPergunta ldquoNatildeo lembra Vou dar uma dica um fato histoacuterico muito importante para o BrasilrdquoResposta (negativa com a cabeccedila)

Em quarto lugar outra jovem que procura se afastar da cacircmera

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta (ainda tentando se esquivar sorrindo) ldquoNatildeordquoPergunta ldquoNatildeo saberdquoResposta ldquoAh A Independecircncia Eu natildeo prestei atenccedilatildeordquoPergunta Que ano aconteceu a Independecircncia vocecirc lembrardquoResposta ldquoNatildeordquoPergunta ldquoE quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoTambeacutem natildeo lembrordquo

Por fim a entrevista com um senhor de meia-idade comeccedila jaacute com uma resposta

Resposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoQue ano aconteceu issordquoResposta ldquo1888rdquoPergunta ldquo1822 Quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoCerto E onde foi que aconteceu tudo issordquoResposta ldquoSatildeo PaulordquoPergunta ldquoOK [breve silecircncio] Canta um trechinho para noacutes do hino da IndependecircnciardquoResposta ldquoJaacute podeis da paacutetria matildeerdquo [sic -prossegue cantando corretamente]

Em seguida o programa corta para uma sala de aula onde a despeito dos ldquoacertosrdquo obtidos nas ruas a entrevistadora afirma

Diante da dificuldade que noacutes encontramos no centro da cidade para saber informaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil eu vim parar na sala de aula Vai ser aqui que a gente vai descobrir a histoacuteria do paiacutes92

A ideia a priori de que o brasileiro natildeo conhece e natildeo se interessa pela histoacuteria subsidia este e muitos outros programas Aqui o dado mais relevante parece estar precisamente nessa arraigada crenccedila no desinteres-

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da entatildeo prefeita de Ribeiratildeo Preto (Satildeo Paulo) Darcy Vera que afirma durante um desfile de 7 de Setembro dentre vaacuterios desvarios que ldquoTiradentes gritou lsquoIndependecircncia ou mortersquordquo Com 169919 acessos e 149 comentaacuterios (em geral criacuteticos bem humorados e depreciativos) ateacute 20082014 condensa a possibilidade de amplificaccedilatildeo do estigma do natildeo domiacutenio de referecircncias convencionais agrave Independecircncia mas sem fomentar nenhum conhecimento da mesma

94Novamente surge a questatildeo natildeo teratildeo as

renovaccedilotildees curriculares promovidas no ensino de Histoacuteria (no Brasil e alhures) das uacuteltimas deacutecadas exagerado nessa incompatibilidade Teratildeo elas sido capazes de mensurar seus efeitos deleteacuterios diante de sociedades jaacute bastante refrataacuterias a uma histoacuteria cronoloacutegica

95ldquoPouco importa que sua figura tenha sido

mitificada pela propaganda republicana O que importa eacute que ele foi um heroacutei Ele deu sua vida pela paacutetria e pela liberdaderdquo (Programa De laacute pra caacute youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032013) Essa exaltaccedilatildeo da figura de Tiradentes associada agrave Independecircncia conduz o discurso da propaganda eleitoral de um candidato agrave prefeitura de Ouro Preto em 2012 (youtubecomwatchv=eGefgLoRhec 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032014) Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo no dia 09 de setembro de 2013 apoacutes se autocaracterizar como realizador de uma ldquohistoacuteria de carne e ossordquo em contraposiccedilatildeo a produccedilotildees ldquocontaminadas pela anaacutelise marxistardquo que retirariam os personagens da Histoacuteria o jornalista Laurentino Gomes afirma ldquoNo 1822 faccedilo uma comparaccedilatildeo e digo que o uacutenico problema do Joseacute Bonifaacutecio foi nascer no Brasil pois se ele tivesse nascido nos Estados Unidos teria sido maior que o Thomas Jefferson Porque aparentemente ele era mais preparado mais luacutecido que o Thomas Jeffersonrdquo (parte 1 youtubecomwatchv=uGibbLxsZK0 4501 visualizaccedilotildees e 5 comentaacuterios parte 2 youtubecomwatchv=2LQcEcb5kLU 2302 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios acesso em 26032014 Logo voltaremos agrave obra e agraves ideias de L Gomes

96Um exemplo adveacutem do viacutedeo ldquoA verdadeira

independecircncia do Brasilrdquo em que um pastor evangeacutelico em meio a uma cerimocircnia religiosa ldquodesconstroacuteirdquo o quadro de Pedro Ameacuterico acusando-o de pouco verossiacutemil e aponta os desvios morais de D Pedro I de modo a inviabilizaacute-lo como figura histoacuterica digna de memoacuteria (youtubecomwatchv=RsKQr6bgzLA 178 visualizaccedilotildees e 2 comentaacuterios acesso em 24032014) A suposta irrelevacircncia dos personagens envolvidos no processo da independecircncia eacute notaacutevel na fala de um professor de Ensino Meacutedio (youtubecomwatchv=gvWVF9j2KEU 597 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) e de um apresentador de temas religiosos que relativizam a importacircncia do tema ao afirmarem a atual ldquodependecircncia econocircmicardquo do Brasil (youtubecomwatchv=EXyUBY7StF4 383 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Tambeacutem retornaremos a esse tema

sedesconhecimento do brasileiro pela histoacuteria bem como em um de seus efeitos mais contundentes a crenccedila de que eacute possiacutevel reverter tal situaccedilatildeo pela simples mobilizaccedilatildeo formal de datas nomes e eventos Contudo se a Independecircncia se converte em uma catalizadora de referecircncias cronoloacute-gicas ou nominais isso natildeo leva necessariamente a uma historicizaccedilatildeo do tema pelo contraacuterio a mobilizaccedilatildeo de tais referecircncias em termos como os acima mencionados (a data ou o nome por si soacutes) pode resultar no apro-fundamento da tendecircncia agrave confusatildeo temporal jaacute aqui apontada93

Nos meios intelectuais a discussatildeo em torno das formas tempo-rais de vivecircncia coletiva naquilo que se pode chamar ndash recorrendo-se a uma categoria uacutetil ndash de modernidade natildeo eacute nova tampouco estaacute em vias de esgotamento A dificuldade de organizaccedilatildeo do mundo social segundo referecircncias cronoloacutegicas natildeo seraacute em absoluto distintiva de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil embora o contraacuterio deva ser dito em relaccedilatildeo agraves formas assumidas por tais dificuldades (como as noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia) Percebe-se entatildeo o peso do estigma da dificuldade em manejar datas nomes e fatos suposta prova de um desin-teresseignoracircncia que poderia ser combatido com um retorno a velhas formas de se fazer Histoacuteria e nas quais tais elementos eram considera-dos com a essecircncia da compreensatildeo histoacuterica Natildeo parece que as coisas devam propriamente se passar segundo essa representaccedilatildeo embora um dos confrontos existentes na cultura de histoacuteria no Brasil seja sem duacutevida a polarizaccedilatildeo entre a valorizaccedilatildeo da Independecircncia (= de suas datas nomes eventos siacutembolos e supostos valores etc) e a desvalorizaccedilatildeo da mesma (=seu caraacuteter elitista e negociador a diminuiccedilatildeo da histoacuteria do Brasil em comparaccedilatildeo com a de outros paiacuteses a comicidade dessa histoacuteria etc) Eacute plausiacutevel conceber que esta segunda posiccedilatildeo encontre um aliado na con-cepccedilatildeo de incompatibilidade entre uma histoacuteria amparada por referecircncias cronoloacutegicas e ao mesmo tempo em processos estruturas e temas trans-versais do gosto inclusive de muitos acadecircmicos e educadores94

Os exemplos de materiais audiovisuais a traduzirem veicularem e fomentarem esse confronto entre valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo da Inde-pendecircncia satildeo muitos Aleacutem dos jaacute tratados ateacute aqui pode-se mencionar viacutedeos contendo propaganda de instituiccedilotildees puacuteblicas civis e militares de partidos poliacuteticos de grupos maccedilocircnicos de igrejas e de empresas variadas bem como produccedilotildees independentes Neles eacute possiacutevel encontrar desde a exaltaccedilatildeo das referecircncias mais convencionais agrave Independecircncia como a seus personagens (incluindo seu suposto maacutertir Tiradentes)95 ateacute a afirma-ccedilatildeo de sua total irrelevacircncia96 isso costuma ocorrer sem muitos matizes obedecendo a uma loacutegica dicotocircmica plasmada em linguagens simples com descontinuidades discursivas e imageacuteticas e num ritmo de exposiccedilatildeo acelerado Em suma tratam da Independecircncia segundo padrotildees parcial-mente compartilhados tambeacutem por outras fontes ateacute aqui analisadas

Todas essas fontes com suas noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia satildeo sintomaacuteticas de estados de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema bem como potenciais formadores de opiniatildeo dos mesmos Sua capacidade de criaccedilatildeo de conhecimento no entanto se mostra muito limi-tada Eacute bem verdade que esta eacute por vocaccedilatildeo uma tarefa confiada a saberes acadecircmicos ndash jaacute que no Brasil a quase totalidade da pesquisa em Histoacuteria estaacute entregue agraves universidades salvo a de interesse corporativo ndash de modo que natildeo seria de esperar inovaccedilatildeo em suportes tatildeo variados e socialmen-te diversificados quanto os ateacute aqui analisados Mas parece haver aiacute certo

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ciacuterculo vicioso a envolver tambeacutem parte da academia Basta observar que a ideia da ldquonatildeo Independecircncia de fatordquo tatildeo em voga entre tantos historiadores durante tanto tempo reverbera com forccedila na sociedade em geral97 e ainda goza de prestiacutegio ateacute mesmo entre alguns acadecircmicos que bebem-na da sociedade e apoacutes modificaacute-la parcialmente devolvem-na aos espaccedilos de di-vulgaccedilatildeo98 Essa versatildeo da Histoacuteria eacute capaz de transpor fronteiras temporais de atualizar-se em diferentes contextos e ateacute mesmo de superar abissais diferenccedilas poliacuteticas ela estaacute representada por exemplo e de modo quase idecircntico na propaganda poliacutetica de um partido trotskista e na pregaccedilatildeo nacionalista-direitista de um polecircmico professor de histoacuteria99

Por fim tome-se o caso de trecircs produccedilotildees da Rede Globo de Televi-satildeo voltadas ao puacuteblico em geral com consideraacuteveis aportes financeiros e complexa produccedilatildeo a seacuterie documental A Corte no Brasil para exibiccedilatildeo em tevecirc fechada100 e as seacuteries humoriacutesticas O Quinto dos Infernos101 e Eacute muita Histoacuteria Dia de Fuacuteria102 veiculadas amplamente em tevecirc aberta No pri-meiro caso siacutetios histoacutericos visitados pelas apresentadoras uma narrativa soacutebria e informativa de fatos e processos grande quantidade de entrevistas com historiadores ecircnfase em diferentes espaccedilos regionais e internacio-nais e tratamento do tema em muacuteltiplas dimensotildees (poliacutetica econocircmica cultural) No segundo caso uma narrativa romanceada teatral e cocircmica fortemente despolitizada e livremente baseada em trecircs livros de igual teor (um deles publicado haacute quase um seacuteculo)103 praticamente centrada no Rio de Janeiro (um pouco tambeacutem em Portugal muito menos alhures) e nos membros da famiacutelia real portuguesa cuja vida pessoal eacute estruturada em torno de seus haacutebitos excecircntricos (principalmente os sexuais) e vez ou outra de passageiros dramas pessoais104

Finalmente no terceiro caso uma encenaccedilatildeo tambeacutem cocircmica pro-tagonizada por um escritor-autor-ator-palhaccedilo com grande liberdade de criaccedilatildeo mas amparada em informaccedilotildees convenccedilotildees e mitos a oferecer uma versatildeo do Sete de Setembro segundo o estado psico-fisioloacutegico de D Pedro

Eis um exemplo de uma das modalidades assumidas pela disputa em torno de uma Independecircncia valorizada e outra depreciada Pareceria justificaacutevel opor a tal diagnoacutestico a constataccedilatildeo de se tratarem de obras televisivas de distinto teor o que desobriga a segunda e a terceira de qual-quer compromisso com a verdade No entanto interessam-nos mais seus significados e efeitos do que intenccedilotildees Note-se que a primeira documen-tal eacute de circulaccedilatildeo mais restrita que a segunda e a terceira voltadas para grande puacuteblico por isso seus efeitos nesse jogo de criaccedilatildeorecriaccedilatildeo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da Independecircncia satildeo natildeo apenas assimeacutetricos mas tambeacutem concorrentes105 Os esforccedilos de um pro-grama por posicionar o espectador diante de uma histoacuteria processual de encadeamentos temporais e de grupos e conflitos sociais satildeo naturalmente obstados pelos dos outros dois a oferecer uma histoacuteria repleta de anacro-nismos anedoacutetica e biograacutefica em perfeita sintonia com demandas mais amplas de uma sociedade ndash e de alguns de seus componentes mercadoloacutegi-cos jaacute aqui mencionados ndash na qual a vida privada eacute mais valorizada do que a puacuteblica106 Nesse confronto embora as trecircs convivam na mesma cultura de histoacuteria uma Independecircncia tende a prevalecer sobre a outra107

6 ndash A Independecircncia no cinemaEm relaccedilatildeo a livros didaacuteticos programas de televisatildeo e outros materiais audiovisuais as fontes cinematograacuteficas aqui consideradas naturalmente

97Exemplo encontra-se no viacutedeo ldquoAway Nilzer ndash

Independecircncia do Brasilrdquo com grande nuacutemero de visualizaccedilotildees (130677) e de comentaacuterios (1016) que minimiza e ridiculariza natildeo apenas o processo da independecircncia como quaisquer fatos histoacutericos brasileiros de maneira geral (youtubecomwatchv=Vd_kloNeQV0) O Brasil atual como viacutetima de uma exploraccedilatildeo econocircmica mais intensa do que nos tempos coloniais e portanto natildeo-independente aparece na fala de outro professor (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2806 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) e nos comentaacuterios de um boneco marionete de um programa infantil (youtubecomwatchv=9mh3Tu6c4_w 173 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032014)

98Exemplo desse processo de ldquodevoluccedilatildeordquo pode ser

comprovado no viacutedeo ldquoIndependecircncia ou morterdquo (youtubecomwatchv=QUvnz1no1m8 934 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Outros dois exemplos pertinentes satildeo a insistecircncia nas ideias de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil e que a Independecircncia foi uma luta entre brasileiros e portugueses

99Em entrevista a uma rede local de televisatildeo

ouvimos do professor de histoacuteria do Ensino Meacutedio Wander Pugliesi ldquoSe noacutes formos trabalhar com sinceridade o Brasil ainda natildeo eacute independente Na verdade somos muito mais explorados do que quando eacuteramos colocircnia de Portugalrdquo (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2815 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) A mesma relativizaccedilatildeo do processo de independecircncia aparece na fala do candidato agrave presidecircncia em 2010 pelo PSTU Zeacute Maria ldquohoje infelizmente natildeo podemos comemorar uma verdadeira independecircncia do paiacutes Eacute preciso dizer a verdade as multinacionais controlam a economia brasileira As decisotildees fundamentais satildeo tomadas por elas fora do paiacutesrdquo (youtubecomwatchv=ht9Yt0PlGnU 1803 visualizaccedilotildees um comentaacuterio) Acessos em 26032013

100Direccedilatildeo de Carlos Henrique Schroder 2008

Produccedilatildeo de 16 episoacutedios de cerca de 20 minutos cada para o canal da TV fechada GloboNews A seacuterie foi comercializada em DVD e pode ser vista tambeacutem no canal Globosat no Youtube (youtubecomwatchfeature= player_detailpageampv= OUX-zSyaMIc e viacutedeos relacionados Acesso em 27032014)

101Direccedilatildeo de Wolf Maya e Alexandre Avancini e

criaccedilatildeo de Carlos Lombardi 2002 Produccedilatildeo de 48 episoacutedios com cerca de 40 minutos cada para o canal da TV aberta Rede Globo de Televisatildeo A minisseacuterie tambeacutem foi comercializada em DVD e vem sendo (desde janeiro de 2014) reprisada no Canal Viva (rede fechada de televisatildeo filiada Globosat) uma reprise anterior ocorreu de agosto a novembro de 2011 sempre por volta das 23h

102Direccedilatildeo de Joatildeo Carrascosa e Pedro Bial 2007

Produccedilatildeo de 9 capiacutetulos de cerca de 15 minutos

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apresentam especificidades Tendem a diversificar (eventualmente ampliar) o rol de profissionais envolvidos em sua produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo bem como a tratar conteuacutedos em um tempo mais lento criando uma sensaccedilatildeo de homogeneidade de significados reforccedilada pela aderecircncia de tais conteuacutedos a uma trama central Tal homogeneidade por seu turno eacute relativizada por uma liberdade de criaccedilatildeo que dificilmente encontra paralelo em outros dos materiais aqui considerados ndash com a possiacutevel exceccedilatildeo da minisseacuterie O Quinto dos Infernos No entanto quando a comparaccedilatildeo eacute feita com os li-vros didaacuteticos os conteuacutedos relativos agrave Independecircncia no cinema tendem a ser menos numerosos mais superficiais e efecircmeros justamente por serem menos assumidamente informativos do que os dos livros embora isso possa encontrar alguma compensaccedilatildeo em uma linguagem visual de forte apelo emotivo Para todos os efeitos como aponta um estudioso da mateacuteria os filmes de temaacutetica histoacuterica carregam sempre certa ambiguidade ocupam uma espeacutecie de ldquoentrelugarrdquo com forccedila para criar ldquoverdadesrdquo socialmente aceitas108 Nos cinco filmes aqui considerados109 as ldquoverdadesrdquo sobre a Independecircncia tendem a replicar linhas de forccedila jaacute conhecidas mesclando temporalidades correspondentes tanto aos momentos em que foram pro-duzidos quanto aos momentos posteriores em que foram sendo exibidos110

Independecircncia ou Morte produccedilatildeo a serviccedilo das comemoraccedilotildees oficiais do sesquicentenaacuterio da Independecircncia levadas a cabo pelo go-verno ditatorial brasileiro em 1972 mostra uma narrativa de forte teor didaacutetico-pedagoacutegico sem grandes pretensotildees artiacutesticas expliacutecitas111 com diaacutelogos e situaccedilotildees muitas vezes retirados de obras sobre a Independecircncia e tratados de forma literal Sua finalidade eacute clara ldquoensinarrdquo aos especta-dores uma histoacuteria e uma memoacuteria coletivas homogecircneas aplainadas de pluralidades ou de desavenccedilas Uma histoacuteria supostamente indiscutiacutevel porque verdadeira posta a serviccedilo dos tambeacutem supostos interesses mais elevados da naccedilatildeo brasileira (por isso nela a vida privada dos persona-gens eacute toda submetida agrave sua funccedilatildeo poliacutetica inclusive no caso da relaccedilatildeo afetiva entre um D Pedro de boa aparecircncia querido do povo e mulherengo e uma ambiciosa romacircntica e sensiacutevel Domitila112) Uma espeacutecie de cartilha oficial da Independecircncia em imagens na qual se faz presente ateacute mesmo uma recomposiccedilatildeo cecircnica do quadro de Pedro Ameacuterico

Eacute interessante observar como Os Inconfidentes produzido no mesmo ano de 1972 mesmo sendo um filme amparado em abundantes liberdades e experimentos esteacuteticos cheio de ambiguidades propositais e contra-pondo-se ao oficialismo histoacuterico tatildeo em voga agrave eacutepoca por meio de uma metaacutefora na qual os contestadores agrave ditadura brasileira se convertem em sediciosos das Minas Gerais do seacuteculo XVIII natildeo se configura como mate-rial singular e discrepante de Independecircncia ou Morte em pelo menos trecircs sentidos primeiro porque em vaacuterios momentos associa a Inconfidecircncia Mi-neira com a Independecircncia do Brasil a exemplo do que Independecircncia ou Morte prega jaacute em seu primeiro texto didaacutetico113 Segundo porque tambeacutem oficializa eventos convencionalmente tidos por fundacionais da histoacuteria do Brasil (soacute que natildeo os de 1808-1822 mas os de 1788-1789) Terceiro reforccedila a prevalecircncia de indiviacuteduos sobre coletividades da imagem de um heroacutei central da trama e de uma oposiccedilatildeo de interesses maniqueiacutesta que certamente poderia se aplicar com mais rigor ao contexto em que foi feito o filme do que agravequele ao qual formalmente se refere Assim para todos os efeitos substratos de uma concepccedilatildeo de histoacuteria satildeo em ambos convergentes Em um ambiente social multifacetado em termos de no-

cada dentro do programa dominical Fantaacutestico da Rede Globo de Televisatildeo A seacuterie foi baseada no livro Brasil uma Histoacuteria de Eduardo Bueno jornalista que tambeacutem atua na seacuterie (youtubecomwatchv=3LzGKt9Pd0M acesso em 27032014)

103SETUacuteBAL Paulo As Maluquices do Imperador

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1927 CALADO Ivanir A Imperatriz no Fim do Mundo memoacuterias duacutebias de Ameacutelia de Leichtenberg Rio de Janeiro Rio Fundo Editora 1992 e TORERO Joseacute Roberto Galantes memoacuterias e admiraacuteveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes o Chalaccedila Satildeo Paulo Companhia das Letras 1994

104A trama e a narrativa do Quinto dos Infernos

recusam explicitamente a inserccedilatildeo de quaisquer componentes que natildeo os da ordem privada de seus convencionais personagens assim questotildees poliacuteticas satildeo sempre menores do que o apetite sexual de Carlota Joaquina as perversotildees de D Miguel ou a fogosidade de Domitila a economia soacute surge em pontuais pretextos cocircmicos enquanto a escravidatildeo eacute referida exclusivamente por meio de alegres e libidinosas criadas (negras) permanentemente dispostas a servirem aos desejos do heroacutei da histoacuteria D Pedro

105A anaacutelise poderia se completar com a minisseacuterie

A Marquesa de Santos dirigida por Ary Coslov e exibida pela extinta Rede Manchete de televisatildeo em 1984 agrave qual infelizmente natildeo se obteve acesso satisfatoacuterio

106Tal predileccedilatildeo pode ser entendida como mais

um fator caracteriacutestico de um momento em que a articulaccedilatildeo entre aquilo que Guy Debord chamaria de ldquosociedade do espetaacuteculordquo e Adorno e Horkheimer (dentre muitos outros) de ldquoinduacutestria culturalrdquo torna sintomaacutetico a saliecircncia do indiviacuteduo e o esvaziamento da esfera puacuteblica

107A comprovaccedilatildeo do encontro concorrente entre

dois caminhos vem do depoimento de alguns dos proacuteprios envolvidos com a produccedilatildeo do Quinto dos Infernos como o diretor Carlos Lombardi que a ele se refere como ldquoum painel dos personagens importantes do periacuteodordquo Para o produtor Wolf Maia seu objetivo foi ldquorecontar com humor uma velha histoacuteriardquo O ator Humberto Martins viu a seacuterie ldquocontar um pedaccedilo da nossa histoacuteria da histoacuteria do Brasil do nosso povo das nossas raiacutezes pateacutetica e engraccedilada tal como ela se mostra dentro desse produto poreacutem claro mesclada com uma boa dose de humorrdquo enquanto o protagonista Marcos Pasquim afirmou que ldquo[ao fazecirc-la] aprendi muita coisa que natildeo aprendi na escola eu vim aprender agora fazendo a pesquisa para fazer esse personagemrdquo Finalmente para a tambeacutem atriz Bruna Lombardi ldquoO lsquoQuintorsquo contou assim a histoacuteria que a Histoacuteria natildeo conta sabe como eacute as fraquezas da histoacuteriardquo Em ldquoDia de Fuacuteriardquo Pedro Bial e Eduardo Bueno reforccedilam seu discurso satiacuterico por meio de um verniz de verdade trazido pela citaccedilatildeo de documentos oficiais como o relato do Padre Belchior sobre o grito do Ipiranga Aleacutem disso seu discurso eacute elaborado sob o nome de tese logo bem se vecirc como seus propaladores (BialBueno) manipulam siacutembolos

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ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

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Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

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123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

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131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

31Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

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Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

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por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

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muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

36Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 12: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

16Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

A hipoacutetese da constituiccedilatildeo de um subgrupo ativo na cultura de histoacuteria por meio do tema da Independecircncia encontra respaldo nos resulta-dos do ranking do questionaacuterio para a importacircncia que ela teria tido para a Histoacuteria do Brasil 43 deram nota 10 e outros 31 notas entre 8 e 9 sendo que apenas 6 deram notas entre 0 e 4 ou natildeo souberam responder Ou seja mesmo quem natildeo se interessa pela Independecircncia ou pela Histoacute-ria do Brasil em geral tende a reconhecer o tema como sendo de grande importacircncia embora tal reconhecimento seja menor em se tratando de sua relaccedilatildeo com a Histoacuteria ldquoem geralrdquo (a essa pergunta 25 respondeu com nota 10 e outros 25 com notas 8 ou 9 em contraposiccedilatildeo a um elevado percentual de 22 que deu notas entre 0 e 4 ou natildeo soube responder) Ainda assim portanto a Independecircncia eacute fortemente valorizada por um percentual que extrapola os 17 que por ela se interessam os 16 que disseram dela serem conhecedores ou os 20 que afirmaram buscar informaccedilotildees a seu respeito Valorizada poreacutem em meio ao que parece ser uma dificuldade de se pensaacute-la para aleacutem de sua tradicional circunscriccedilatildeo nacional (o que encontra como logo veremos enorme correspondecircncia nas fontes secundaacuterias) para aleacutem dos limites a ela convencionalmente impos-tos por tradiccedilotildees historiograacuteficas ainda fortes e mesmo por uma cultura de histoacuteria que tendo atributos fortemente nacionais tende a nela enxergar um marco fundacional importante isto eacute um marco diferenciador entre a histoacuteria do Brasil e a de outros paiacuteses45

O que nesse sentido nos mostram as escolhas de palavras que ldquocom-binamrdquo e ldquonatildeo combinamrdquo com a Independecircncia46 Em primeiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista mais em perspectiva positivaenalte-cedora do que negativadepreciativa47 Em segundo lugar a possibilidade da Independecircncia ser considerada tanto como rupturaconflitiva quanto como continuidadepaciacutefica48 Em terceiro lugar a possibilidade da Independecircncia ser vista como algo menos popular do que elitista49 Em quarto e uacuteltimo lu-gar ateacute que ponto os entrevistados se mostraram conhecedores da histoacuteria 55 respostas indicaram termos informativos descabidos (Tiradentes combina D Pedro I D Joatildeo VI Joseacute Bonifaacutecio e Portugal natildeo) contra uma maioria de 190 menccedilotildees a tais termos de modo inverso Aqui os resultados podem indicar a prevalecircncia de um tipo de conhecimento de histoacuteria estruturado em personagens e trajetoacuterias individuais (como logo veremos as fontes secundaacute-rias tambeacutem referendaratildeo amplamente essa hipoacutetese)50

Na uacuteltima parte do questionaacuterio perguntou-se aos entrevistados acerca de datas de quatro eventos que podem ser considerados como marcos do processo de Independecircncia 68 responderam natildeo saber ou natildeo se lembrar da data da chegada da Corte portuguesa ao Brasil 13 deram respostas claramente erradas em muitas das quais (ldquomil e quinhentosrdquo ldquomil quinhentos e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo etc) natildeo obstan-te se vislumbra uma referecircncia adequada poreacutem tratada de modo equivo-cado e somente 9 souberam responder de modo preciso (ldquomil oitocentos e oitordquo) Diante da pergunta quanto agrave data da primeira constituiccedilatildeo do Brasil 85 disseram natildeo saber ou natildeo se lembrar 7 deram respostas claramente erradas (ldquomil e quatrocentosrdquo ldquomil quinhentos e oitentardquo) algumas das quais poreacutem se aproximando da evocaccedilatildeo de alguma consti-tuiccedilatildeo brasileira (ldquomil oitocentos e oitenta e oitordquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquomil novecentos e trintardquo ldquomil novecentos e oitenta e oitordquo) e apenas 13 souberam responder com firmeza isto eacute com a presenccedila de ldquomil oitocentos e vinte e quatrordquo na resposta Jaacute a pergunta sobre a data

(em alusatildeo ao Grito) e ldquoprogressordquo enriqueceram a fileira dos termos valorativos

51Essa percepccedilatildeo eacute reforccedilada por alguns dos

dados obtidos por Purificaccedilatildeo Em meio a representaccedilotildees da Independecircncia produzidas por crianccedilas entre 09 e 13 anos encontram-se frases como ldquoQuando D Pedro viu terra gritou Independecircncia ou Morterdquo e ldquoPouco depois de descobrirem o Brasil gritaram a independecircnciardquo PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p40-41 Cabe lembrar que tais crianccedilas natildeo haviam tido ainda contato formal (na escola) com o tema da Independecircncia ldquoapenasrdquo por meio de uma cultura de histoacuteria a envolverem-nas

52O que parece impor uma urgente reflexatildeo em

torno dos efeitos do violento desprestiacutegio das referecircncias factuais que o sistema escolar impocircs ao ensino de Histoacuteria no Brasil das uacuteltimas deacutecadas O quecirc ademais natildeo parece uma situaccedilatildeo exclusivamente brasileira de acordo com a sugestatildeo que nos foi dada por Nuno Gonccedilalo Monteiro a ver aqui paralelismo com o ensino de Histoacuteria em Portugal

53Outras duas possibilidades promissoras seriam

analisar respostas a questotildees de vestibulares relativas agrave Independecircncia e entrevistas com professores e coordenadores pedagoacutegicos que de alguma forma lidem com o tema no cotidiano escolar

54MORENO Jean Carlos Limites escolhas e

expectativas horizontes metodoloacutegicos para anaacutelise dos livros didaacuteticos de histoacuteria Antiacuteteses Londrina v5 n10 p729 juldez2012

55O que eacute atestado por exemplo pela recente

consolidaccedilatildeo da presenccedila nos livros didaacuteticos de toacutepicos relativos agrave Histoacuteria do continente africano

56Dos 49 autores de livros didaacuteticos aqui

considerados 36 satildeo identificados pelos termos ldquomestrerdquo ldquodoutorrdquo ou ldquoprofessor universitaacuteriordquo O que natildeo significa como eacute bem sabido que tais autores sejam integralmente responsaacuteveis pelo conteuacutedo de suas obras

57MORENO Jean Carlos Op Cit p724

58Segundo dados oficiais somente no ano de

2012 esse governo comprou cerca de 408 milhotildees de livros didaacuteticos para os anos do Ensino Meacutedio (Assessoria de Comunicaccedilatildeo Social do FNDE 24 de agosto de 2012)

59Sua produccedilatildeo no entanto eacute regionalmente

concentrada na seleccedilatildeo das coleccedilotildees de didaacuteticos feita pelo MEC em 2010 oito editoras de Satildeo Paulo responderam por 842 da produccedilatildeo aprovada enquanto trecircs de Curitiba ficaram com os 158 restantes

60DIAS Adriana M GRINBERG Keila e

PELLEGRINI Marco Novo Olhar Histoacuteria v2 Satildeo

17Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

da abdicaccedilatildeo de D Pedro I foi a campeatilde em respostas imprecisas 92 dis-seram natildeo saber ou natildeo se lembrar 16 deu respostas erradas e apenas 12 soube responder ldquomil oitocentos e trinta e umrdquo

E quanto agrave data da Independecircncia do Brasil Em comparaccedilatildeo com as perguntas anteriores esta obteve respostas de qualidade superior natildeo obstante um nuacutemero ainda alto de respostas ldquonatildeo souberdquo e ldquonatildeo lembrardquo 33 dos entrevistados Haacute que se lembrar inclusive que desde a segunda parte do questionaacuterio o entrevistado jaacute sabia tratar-se de algo focado na Independecircncia ou seja se nas demais perguntas pode-se dizer que ele foi pego totalmente surpresa nesta natildeo Por isso e se considerarmos ainda os 14 que deram respostas claramente erradas a esta pergunta (ldquomil e qui-nhentosrdquo ldquovinte e um de abril de mil e quinhentosrdquo ldquovinte e dois de abril de mil e quinhentosrdquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquovinte e um de abrilrdquo ldquovinte e dois de abrilrdquo ldquonove de julhordquo) chega-se a um total de 47 de pessoas incapazes de dizer quando ocorreu a Independecircncia do Brasil Por outra parte os que souberam responder (ldquosete de setembro de mil oito-centos e vinte e doisrdquo ou ldquomil oitocentos e vinte e doisrdquo) chegaram a 16 iacutendice muito proacuteximo das dimensotildees do hipoteacutetico grupo de interessados e razoaacuteveis conhecedores da Histoacuteria da Independecircncia referido alguns paraacutegrafos acima

Trata-se de um nuacutemero elevado ainda mais se reafirmarmos que a Independecircncia natildeo eacute jamais completamente ignorada em meio agrave cultura brasileira de histoacuteria De certo modo sim mas natildeo deve escapar agrave obser-vaccedilatildeo de ningueacutem que nessa pergunta especiacutefica a confusatildeo de datas se daacute dentro de referecircncias histoacutericas e cronoloacutegicas bastante demarcadas a Independecircncia o ldquodescobrimento do Brasilrdquo Tiradentes e a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica todos eles marcos fundacionais em uma memoacuteria histoacuteri-ca oficial logo fundamentais na constituiccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil51 Tais resultados indicam preliminarmente a precariedade da concepccedilatildeo de histoacuteria ndash da Independecircncia em particular - segundo formas convencionais de organizaccedilatildeo cronoloacutegica e isso a despeito dessa socieda-de ser permeada e carregada de referecircncias cronoloacutegicas que organizam a vida das pessoas em muitos de seus interstiacutecios (vida familiar vida profis-sional praacuteticas de lazer e de culto etc) Pouquiacutessimas respostas ndash esta-tisticamente despreziacuteveis -parecem esboccedilar a forja de alguma modalidade alternativa de organizaccedilatildeo temporal da histoacuteria (ldquoquase duzentos anosrdquo ldquomil oitocentos e alguma coisardquo ou ldquoD Pedro saiu para brigar com o irmatildeo e deixou D Pedro IIrdquo) diante do quecirc ganha forccedila a hipoacutetese de uma enorme e generalizada dificuldade apresentada por essa sociedade no manejo de recursos baacutesicos de historicizaccedilatildeo da histoacuteria como a cronologia52

Ateacute aqui as conclusotildees a que se pode chegar ainda satildeo excessiva-mente parciais extraiacutedas apenas da sondagem de opiniatildeo conveacutem no entanto sumarizaacute-las de modo a reforccedilaacute-las como hipoacuteteses capazes de nortear a anaacutelise vindoura Segundo o que nos mostram os entrevistados a Independecircncia eacute pouco frequentada por muitos mas assiduamente por um grupo razoaacutevel (seratildeo seus membros os uacutenicos capazes de pensaacute-la segundo marcos cronoloacutegicos) eacute amplamente considerada tema da maior importacircncia para a Histoacuteria do Brasil e de menor importacircncia para a His-toacuteria do Mundo ela eacute menos interessante do que outros temas (quais natildeo sabemos) assim como a Histoacuteria do Brasil eacute menos do que a Histoacuteria Geral mas tende a ser vista como algo respeitaacutevel eventualmente positivo para o Brasil o que parece evocar um imaginaacuterio oficial ainda muito vigente de

Paulo FTD 2010 ALVES Alexandre e OLIVEIRA Letiacutecia F de Conexotildees com a Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Moderna 2010 PEDRO Antocircnio e LIMA Lizacircnias de Souza Histoacuteria sempre presente v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VICENTINO Claacuteudio R e DORIGO Gianpaolo F Histoacuteria Geral e do Brasil v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FIGUEIRA Divalte G Histoacuteria em foco v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2011 NOGUEIRA Fausto G e CAPELLARI Marcos Ser protagonista Histoacuteria 2ordm ano do Ensino Meacutedio Satildeo Paulo Ediccedilotildees SM 2010 BURITTI Flaacutevio Caminhos do Homem v2 Curitiba Base Editorial 2010 CAMPOS Flaacutevio de CLARO Regina A escrita da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 COTRIM Gilberto Histoacuteria Global Brasil e Geral v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 AZEVEDO Gislane C e SERIACOPI Reinaldo Histoacuteria em movimento v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2010 MORENO Jean Carlos e GOMES Sandro V Histoacuteria cultura e sociedade v3 Curitiba Positivo 2010 FERREIRA Joatildeo Paulo e FERNANDES Luiz Estevam Nova Histoacuteria integrada v2 2a ed Curitiba Moacutedulo 2010 MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Histoacuteria Geral e Brasil v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam B Histoacuteria Das cavernas ao terceiro milecircnio v2 2a ed Satildeo Paulo Moderna SANTIAGO Pedro CERQUEIRA Ceacutelia e PONTES Maria Aparecida Por dentro da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 MOCELLIN Renato e CAMARGO Rosiane Histoacuteria em debate v2 Satildeo Paulo Editora do Brasil 2010 CATELLI Jr Roberto GANDINI Mariacutea Soledad M e ASPIS Renata L Histoacuteria texto e contexto v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FARIA Ricardo de M MIRANDA Mocircnica Liz e CAMPOS Helena Estudos de Histoacuteria v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010

61PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit

62Conforme observou o Guia de livros didaacuteticos

PNLD 2012 Histoacuteria 17 das coleccedilotildees aprovadas adotaram a perspectiva da Histoacuteria Integrada na qual se expotildee o conteuacutedo histoacuterico a partir da ldquosequecircncia cronoloacutegica de base europeiardquo havendo o predomiacutenio da ldquoHistoacuteria Geral eurocecircntricardquo linear Os assuntos sobre a Histoacuteria da Ameacuterica e do Brasil estatildeo intercalados nesta grande Histoacuteria Geral As outras duas coleccedilotildees optaram pelo formato temaacutetico organizando os assuntos ldquoem torno de muacuteltiplos espaccedilos e temporalidadesrdquo mas guiados por um eixo cronoloacutegico Guia de livros didaacuteticos PNLD 2012 Histoacuteria Op Cit p 18-19

63Uma afirmaccedilatildeo tiacutepica ldquoO nascimento do

Brasil como paiacutes independente encontra-se dentro do contexto de crise do Antigo Regime e do sistema colonial mercantilistardquo VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p89 Os paradigmas historiograacuteficos a que tal tipo de afirmaccedilatildeo remete satildeo evidentemente as obras de Caio Prado Juacutenior e Fernando Novais jaacute amplamente presentes tambeacutem nos livros de Ensino Fundamental PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit cap3

18Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

glorificaccedilatildeo da Independecircncia laudatoacuterio e a destacar seus personagens centrais No entanto tal tendecircncia encontra obstaacuteculo em outras contraacute-rias minoritaacuterias mas natildeo despreziacuteveis a verem a Independecircncia como algo pouco ou nada importante uma histoacuteria restrita espacialmente e socialmente e mais de continuidades do que de rupturas

Assim jaacute eacute possiacutevel afirmar que a Independecircncia enseja disputas a seu respeito em torno de suas representaccedilotildees e memoacuterias oficiais ou natildeo Muito provavelmente alguns dos motivos que explicam sua rejeiccedilatildeo por muitos explicam igualmente sua ativa e entusiasmada frequecircncia por um grupo menor Em uma terceira via ela jamais deixou de ser pensada e divulgada em perspectivas complexas fortemente criacuteticas e analiacuteticas Para todos os efeitos a Independecircncia contribui sem duacutevida para tipificar uma cultura de histoacuteria no Brasil plural variada e apenas parcialmente organizada em padrotildees cronoloacutegicos (temporais) na qual ocupa um papel central e da qual irradiam outros elementos valiosos para um melhor en-tendimento dessa mesma cultura

4 ndash A Independecircncia nas escolas A principal fonte de fomento e irradiaccedilatildeo de atitudes do brasileiro diante da Independecircncia eacute o sistema escolar com sua diversidade de agentes es-paccedilos procedimentos materiais e valores Aqui seraacute analisado apenas um componente prenhe de significados desse sistema o livro didaacutetico53

Segundo um estudioso da mateacuteria os autores de livros didaacuteticos de Histoacuteria em geral ndash grupo no qual ele mesmo estaacute incluiacutedo -ldquonatildeo tecircm por objetivo somente transpor a Histoacuteria acadecircmica eles identificam necessi-dades sociais estatildeo imersos na sociedade e portanto na proacutepria histoacuteria sobre a qual escrevemrdquo54 Tais livros satildeo assim documentos privilegiados de uma cultura de histoacuteria trazem conteuacutedos de acordo com padrotildees e paracircmetros de uma sociedade agrave qual servem sendo inclusive cada vez mais sensiacuteveis a impulsos de origem natildeo acadecircmica55 contam com a colaboraccedilatildeo ou autoria de historiadores profissionais56 que trabalham junto a editores assistentes revisores iconoacutegrafos diagramadores e designers graacuteficos57 satildeo consumidos preferencialmente por educadores e educandos mas chegam tambeacutem agraves famiacutelias destes e ao puacuteblico em geral tendem a permanecer por algum tempo disponiacuteveis em salas de aula residecircncias livrarias e bibliotecas e satildeo fortemente condicionados pelas exigecircncias de um grande mercado editorial cujas demandas capi-talistas natildeo satildeo menos evidentes do que as pedagoacutegicas O livro didaacutetico eacute o segundo suporte de leitura mais lido no Brasil sendo sua produccedilatildeo o mais lucrativo negoacutecio de uma induacutestria editorial brasileira que tem no governo federal seu maior cliente58 Essa produccedilatildeo dos livros didaacuteticos movimenta enormes cifras veicula paacuteginas e paacuteginas de conteuacutedos de Histoacuteria produzidos por e destinados a um amplo conjunto de agentes sociais e tecircm circulaccedilatildeo nacional59

A Independecircncia estaacute presente em todos os 21 livros destinados ao Ensino Meacutedio aqui considerados60 assim como estava em outros 12 de Ensino Fundamental contemplados por um estudo acadecircmico a respeito61 Nessa dupla frente abre-se uma possibilidade de anaacutelise valiosa jaacute que alguns livros circulam atualmente enquanto outros circularam agrave eacutepoca em que jovens adultos que hoje tecircm entre 22 e 26 anos eram crianccedilas entre 9 e 13 Unem-se assim duas temporalidades de tratamentos da Independecircn-cia que podem ser unificadas por uma cultura de histoacuteria

64Exemplo eacute a afirmaccedilatildeo de que ldquoem

reconhecimento agrave importacircncia da Batalha do Jenipapo como um episoacutedio fundamental no processo de independecircncia e de consolidaccedilatildeo do territoacuterio a data de 13 de marccedilo de 1823 foi estampada na bandeira do estado do Piauiacuterdquo DIAS Adriana GRINBERG Keila e PELLEGRINI Marco Op Cit p240

65Excelente demonstraccedilatildeo eacute dada por uma

proposta pedagoacutegica de um jogo didaacutetico elaborado pelo Laboratoacuterio de Ensino de Histoacuteria da Universidade Federal de Pelotas descrita em GASPAROTTO Alessandra ESPIacuteRITO SANTO Marco Viniacutecio do SILVA Eduarda Borges da Jogo didaacutetico vira-vira a metroacutepole vira colocircnia a colocircnia vira-metroacutepole Revista Latino-Americana de Histoacuteria v2 n6 agosto de 2013 (Ediccedilatildeo Especial) p648-661

66Os preferidos satildeo D Joatildeo Carlota Joaquina Joseacute

Bonifaacutecio e D Pedro

67Um exemplo apoacutes afirmar que ldquodurante anos a

historiografia oficial tentou idealizar o processo de independecircncia e seus autores explicado como um ato de heroiacutesmo contra a tirania e em defesa da liberdaderdquo uma das obras afirma em tom de contraposiccedilatildeo ldquoMas nas uacuteltimas deacutecadas novos estudos permitiram lanccedilar um novo olhar sobre esse periacuteodo Expressotildees dessa mudanccedila satildeo algumas produccedilotildees culturais recentes que tratam desse momento com uma visatildeo criacutetica e ateacute mesmo sarcaacutestica como por exemplo o romance O Chalaccedila (1999) de Joseacute Roberto Torerordquo Por fim propotildee como ldquoSugestatildeo de atividaderdquo supostamente para aguccedilar o senso criacutetico do aluno ldquocomparar o romance de Torero citado acima com a visatildeo oficial dos eventos fornecida pela ceacutelebre pintura Independecircncia ou morte (O Grito do Ipiranga) de Pedro Ameacuterico ou pelo filme Independecircncia ou morte (1972) de Carlos Coimbrardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p80-81) Aleacutem de ignorar os momentos objetivos e naturezas distintos das obras recomendadas tal atividade sugere a ultrapassagem de uma visatildeo ldquotradicionalrdquo da Independecircncia por outra ldquocriacuteticardquo ndash logo mais aceitaacutevel Assim o aluno eacute encorajado a conceber a histoacuteria por meio de sua livre-interpretaccedilatildeo mas sendo impelido a endossar a de um romance satiacuterico (logo voltaremos a ele)

68Em um livro para o Ensino Fundamental de

1996 lia-se que ldquopara a realizaccedilatildeo do nosso trabalho foi importante a participaccedilatildeo de Mariana Massarani artista que desenhou com alegria e bom humor os acontecimentos estudadosrdquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Do mundo indiacutegena ao periacuteodo regencial no Brasil Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1994 p1 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p79) Essa eacute uma tendecircncia antiga como nos mostra o poema de Murilo Mendes ldquoA pescariardquo (publicado em Histoacuteria do Brasil de 1932) evocativo da tatildeo ceacutelebre quanto historicamente irrelevante disenteria de D Pedro em 7 de setembro de 1822 e transcrito em outro didaacutetico ldquoFoi nas margens

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Natildeo haacute duacutevida que a maioria dos livros didaacuteticos de Histoacuteria voltados ao Ensino Meacutedio abre possibilidades de construccedilatildeo de um conhecimento acerca da Independecircncia multifacetado matizado criacutetico e criterioso e deles pode-se extrair muitos exemplos a revelarem diaacutelogos propositi-vos entre saberes acadecircmicos e didaacuteticos da Histoacuteria (afinal os proacuteprios autores e avaliadores dos livros estatildeo quase todos diretamente ligados ao meio acadecircmico) aliaacutes em comparaccedilatildeo com os de Ensino Fundamental de cerca de uma deacutecada atraacutes essas possibilidades soacute cresceram Poreacutem como natildeo eacute objetivo deste estudo analisar tais livros em si mesmos -somente deles extrair elementos que tipifiquem uma cultura de histoacuteria por meio da Independecircncia ndash mais relevantes parecem ser justamente alguns de seus pontos sensiacuteveis nos quais tais livros se fazem menos acadecircmicos e nos quais se traduzem de modo mais significativo componentes mais amplos da sociedade que lhes daacute sentido

Em todos esses livros a Independecircncia eacute invariavelmente vista como parte de um processo mais amplo no qual se incluem outros acontecimen-tos poliacuteticos americanos e europeus de finais do seacuteculo XVIII e comeccedilos do seacuteculo XIX (embora quase nunca sejam feitas conexotildees fundamentais entre eles deficiecircncia notaacutevel sobretudo no tocante agraves independecircncias da Ameacuterica espanhola vistas sempre como supostos contraexemplos da Independecircncia do Brasil62) O episoacutedico se faz presente na menccedilatildeo a vaacuterios temas menores ndash a vinda da Corte a abertura dos Portos o governo de D Joatildeo no Rio de Janeiro a Revoluccedilatildeo de Pernambuco a Revoluccedilatildeo do Porto etc ndash mas sempre em observacircncia a contextos histoacutericos espaciais e temporais mais amplos63 Destaque-se que 80 dos livros fazem referecircncia expliacutecita ao termo ldquoguerra(s) de independecircnciardquo64 o que enseja uma con-cepccedilatildeo tambeacutem multirregional do tema e vaacuterios o aprofundam O mesmo pode ser dito de perfis biograacuteficos presentes mas submetidos a uma loacutegica processual da Histoacuteria

Essa ecircnfase em processos em detrimento parcial de acontecimentos e personagens eacute importante indiacutecio de uma sintonia entre saberes aca-decircmicos e natildeo acadecircmicos65 Contudo deve-se relativizar o peso desse diaacutelogo jaacute no que tange ao tratamento dispensado agraves biografias aleacutem de pouco ou nada inovarem na escolha dos personagens destacados66 alguns livros didaacuteticos trazem fragmentos anedoacuteticos de tais trajetoacuterias hoje em dia pouco ou nada uacuteteis a historiadores profissionais (embora as comilan-ccedilas de D Joatildeo os amantes de D Carlota ou as noitadas de D Pedro natildeo os distingua de outros agentes histoacutericos de sua eacutepoca tampouco satildeo trata-dos como tiacutepicos67) Parece razoaacutevel argumentar que ao menos parcial-mente tal insistecircncia da parte do livro didaacutetico atende ao gosto do leitorconsumidor tornando tais suportes materiais mais agradaacuteveis e sedutores assim sendo constata-se justamente um limite no diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e saberes didaacuteticos expressos em tais livros bem como se anuncia uma tendecircncia de representaccedilatildeo humoriacutestica do passado em uma cultura de histoacuteria como a brasileira muito forte em outros suportes68 Eis um mercado ndash que no Brasil mescla dimensotildees editoriais e midiaacuteticas com outras educacionais e culturais mais amplas ndash impondo seus padrotildees de representaccedilatildeo do passado

Aleacutem de envolverem historiadores profissionais em sua produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo os livros didaacuteticos de Ensino Meacutedio parecem esforccedilar-se cada vez mais em trazer conteuacutedos extraiacutedos de obras acadecircmicas bem como apresentar ao leitor uma pluralidade de posiccedilotildees acerca de um determina-

do IpirangaEm meio a uma pescariaSentindo-se mal D PedroComera demais cuscuzDesaperta a braguilhaE grita roxo de raivaOu me livro desta coacutelicaOu morro logo de uma vezO priacutencipe se aliviouSai no caminho cantandoJaacute me sinto independenteSafa Vou de perto a morteVamos cair no fadinhoPra celebrar o sucessordquo MACEDO Joseacute Rivair Brasil ndash uma histoacuteria em construccedilatildeo Satildeo Paulo Brasil 1996 p166 Cit por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p101

69Tomemos por exemplo esta afirmaccedilatildeo ldquoDe acordo

com alguns historiadores as raiacutezes da independecircncia brasileira estatildeo na segunda metade do seacuteculo XVIII quando se multiplicaram atividades produtivas e comerciais na colocircnia sobretudo na regiatildeo Centro-Sulrdquo (MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Op Cit p113) Nela eacute possiacutevel reconhecer a presenccedila de influente e importante interpretaccedilatildeo acadecircmica acerca da Independecircncia do Brasil (DIAS Maria Odila A interiorizaccedilatildeo da metroacutepole (1808-1853) In MOTA Carlos Guilherme 1822 dimensotildees Satildeo Paulo Perspectiva 1972 p160-184) no entanto natildeo eacute apresentada qualquer contraposiccedilatildeo (se esta posiccedilatildeo eacute da parte de ldquoalguns historiadoresrdquo outra divergente deve ser da parte de outros) Mais adiante lecirc-se que ldquoo fato relevante foi que a transferecircncia da corte para o Brasil provocou uma inversatildeo histoacuterica de modo significativo e irreversiacutevel nas relaccedilotildees entre a metroacutepole portuguesa e a colocircnia brasileirardquo (Idem p114) Ora o que seria uma inversatildeo irreversiacutevel dessas relaccedilotildees Portugal teria se tornado para sempre colocircnia do Brasil

70Nos livros didaacuteticos de Ensino Fundamental

analisados por Purificaccedilatildeo jaacute eram abundantes as transcriccedilotildees de trechos de textos de historiadores profissionais sem que deles resultasse qualquer ensejo de pluralidade de pensamento ou de estiacutemulo agrave interpretaccedilatildeo

71VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA

Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p 103

72O capiacutetulo 14 de uma das obras intitulado

ldquoO processo de independecircncia da Ameacuterica portuguesardquo inicia-se com um excerto do Romanceiro da Inconfidecircncia de Ceciacutelia Meireles tambeacutem indutor a essa interpretaccedilatildeo ldquoAtraveacutes de grossas portas sentem-se luzes acesas e haacute indagaccedilotildees minuciosas dentro das casas fronteiras Que estatildeo fazendo tatildeo tarde Que escrevem conversam pensam Mostram livros proibidos Leem notiacutecias nas GazetasTeratildeo recebido cartasde potecircncias estrangeiras [] Oacute vitoacuterias festas flores das lutas da Independecircncia Liberdade ndash essa palavra que o sonho humano alimenta que natildeo haacute ningueacutem que explique e ningueacutem que natildeo entendardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p 202) Jaacute nas ldquosugestotildees de leitura e consulta para o professorrdquo de outra encontra-se indicaccedilatildeo de uma obra de J J Chiavenato - Inconfidecircncia mineira as vaacuterias faces Satildeo Paulo Global 2000 - com este comentaacuterio ldquoo autor mostra o movimento que buscava a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Adotando uma abordagem que parte da realidade socioeconocircmica do periacuteodo este livro releva diferentes aspectos desse momento singular da histoacuteria brasileirardquo (NOGUEIRA Fausto

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do toacutepico que seja decorrente de debates acadecircmicos No entanto ainda eacute frequente que tais conteuacutedos se inclinem agrave pura formalidade dificilmente explicitando divergecircncias oriundas da academia ou resultando em uma tomada de posiccedilatildeo realmente criacutetica perante a histoacuteria69 Ao usuaacuterio do livro eacute apresentada uma suposta pluralidade de pensamento natildeo como ferramenta de obtenccedilatildeo dessa pluralidade mas como estilo de composiccedilatildeo e padronizaccedilatildeo do material didaacutetico70

Esse tipo de atitude formalista pode ser encontrada tambeacutem em propostas de atividades dirigidas ao aluno como esta

A interpretaccedilatildeo sobre a independecircncia do Brasil provocou e ainda provoca muitas divergecircncias Sob o ponto de vista econocircmico alguns pesquisadores defendem que a separaccedilatildeo ocorreu de fato em 1808 [] Outros com interpretaccedilotildees mais poliacuteticas indicam o 7 de setembro de 1822 embora nenhuma medida formal tenha sido tomada nessa data ndash foi um ato simboacutelico Depois da Guerra do Paraguai jornais republicanos argumentavam que [] D Pedro havia atendido aos apelos de independecircncia dos brasileiros mas os teria traiacutedo quando fechou a Assembleia Constituinte em 1823 Enalteciam entatildeo a Inconfidecircncia Mineira (1789) a Revoluccedilatildeo Pernambucana (1817) e a Confederaccedilatildeo do Equador (1824) movimentos com teor republicano conforme as reais aspiraccedilotildees dos brasileiros

Satildeo vaacuterias interpretaccedilotildees que variam de acordo com a posiccedilatildeo poliacutetica ou momento histoacuterico dos autores Alguns intelectuais consideram ateacute mesmo que o Brasil hoje tem uma independecircncia mais nominal do que real pois continuaria dependente dos paiacuteses mais ricos

Em sua opiniatildeo quando o Brasil se tornou um paiacutes independente71

Aqui novamente eacute apresentada uma divergecircncia de interpretaccedilatildeo e vaacuterias satildeo as possibilidades de resposta agrave pergunta quando o Brasil se tornou um paiacutes independente No entanto todas as posiccedilotildees apresentadas parecem equivaler-se pois tudo depende da ldquoposiccedilatildeo poliacuteticardquo ou ldquodo mo-mento histoacutericordquo da pessoa disposta a respondecirc-la Assim e por induccedilatildeo a Inconfidecircncia Mineira poderia ser uma resposta aceitaacutevel conforme visatildeo ainda presente em alguns livros72 e a despeito do contraacuterio que historia-dores vecircm afirmando nas uacuteltimas deacutecadas Do mesmo modo a atividade pareceria aceitar a ldquonatildeo independecircncia de fatordquo ideia muito presente na cultura de histoacuteria no Brasil73 tatildeo sedutora quanto inconsistente do ponto de vista acadecircmico Para o aluno tratar-se-ia de uma questatildeo de simples opccedilatildeo (poliacutetica) diante da qual a Histoacuteria se destemporaliza

Uma Histoacuteria processual mais do que episoacutedica ou personalista uma Histoacuteria permeada de explicaccedilotildees acadecircmicas ao mesmo tempo uma Histoacuteria com limitaccedilotildees em termos de divergecircncias relativizaccedilotildees e possibilidades em aberto condicionada a suportes materiais repletos de convenccedilotildees a tornarem-nos muito parecidos entre si Talvez seja no tra-tamento dispensado a imagens que os livros didaacuteticos melhor revelam tais convenccedilotildees reforccedilando as limitaccedilotildees de seu diaacutelogo com a Histoacuteria acadecirc-mica bem como acentuando suas caracteriacutesticas de mercadoria Todos os livros aqui considerados satildeo carregados de itens especiacuteficos a quebrarem a continuidade do texto e suas paacuteginas satildeo multicoloridas e povoadas por fi-guras como obras de pintores dos seacuteculos XIX e XX74 Quase nunca poreacutem tais imagens satildeo analisadas como fontes histoacutericas confinadas agrave funccedilatildeo de mera ilustraccedilatildeo frequentemente modificadas em cor e tamanho ateacute mesmo mutiladas ndash sem esclarecimento ndash em prol da diagramaccedilatildeo75 Em tais casos inevitavelmente cria-se uma ideia natildeo de uma histoacuteria sujeita a muacuteltiplas interpretaccedilotildees (contrapondo-se portanto a vaacuterias das atividades

e CAPELLARI Marcos Op Cit p71) Em uma terceira obra logo na abertura de um capiacutetulo intitulado ldquoA independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo lecirc-se que ldquoos dias 21 de abril e 7 de setembro feriados nacionais nos fazem lembrar de dois momentos do processo histoacuterico que levou a independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo (COTRIM Gilberto Op Cit p223) A associaccedilatildeo direta entre Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia era mais comumente feita em livros didaacuteticos de deacutecadas atraacutes Um de Ensino Fundamental caracterizava a Revolta de Beckman a Guerra dos Emboabas a Revolta de Felipe dos Santos a Guerra dos Mascates e as conjuraccedilotildees Mineira e Baiana como movimentos nos quais ldquoos revoltosos se opuseram agrave metroacutepole sonhando e lutando pela autonomia do paiacutesrdquo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Nas trilhas da histoacuteria Ensino Fundamental Belo Horizonte Dimensatildeo 1999 v4) Citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p108

73FIGUEIRA Divalte G Op Cit p191 Nos de

Ensino Fundamental AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 CARMO Socircnia S do COUTO Eliane F B A A consolidaccedilatildeo do capitalismo e o Brasil impeacuterio Satildeo Paulo Atual 1997 (Histoacuteria Passado Presente 3) p105 FERREIRA Joseacute Roberto Histoacuteria Ediccedilatildeo Reformulada Satildeo Paulo FTD 1997 (7ordf seacuterie) p65 ALVES Kaacutetia Correia Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p 128 Citados por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p78 84-85 96 e 111

74Debret Rugendas Moreaux Feacutelix Taunay

Constantino Fontes Polliegravere Parreiras Benedito Calixto Delerive Martins Viana Oscar Pereira da Silva Georgina de Albuquerque e Aldemir Martins entre outros

75Isso jaacute era frequente haacute uma deacutecada com livros

de Ensino Fundamental como por exemplo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p126 e COTRIM Geraldo Op Cit p 112 conforme anaacutelise de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p113 e 123 Haacute que se dizer que livros didaacuteticos natildeo satildeo meio exclusivo para esse esvaziamento do valor documental da iconografia havendo na proacutepria publicaccedilatildeo acadecircmica problema semelhante como demonstra CAVENAGHI Airton Joseacute O atlas do impeacuterio do Brazil e as representaccedilotildees presentes no livro Projeto Histoacuteria v 41 2010 p 383-403

76Constataccedilatildeo semelhante agrave de PURIFICACcedilAtildeO Ana

Teresa da Op Cit para os didaacuteticos de Ensino Fundamental

77NOGUEIRA Fausto e CAPELLARI Marcos Op

Cit p255

78Para um deles ldquoo pintor Pedro Ameacuterico imaginou

a cena ocorrida agraves margens do riacho do Ipirangardquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 para outro um ceacutelebre quadro mostraria uma ldquocena de uma

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sessatildeo das cortes de Lisboa reconstituiacuteda pelo pintor Oscar Pereira da Silvardquo Cfr CARMO Socircnia do COUTO Eliane F B A Op Cit p 73 um terceiro propunha ao aluno a seguinte atividade ldquoobserve cuidadosamente as gravuras de Debret que aparecem no texto Descreva cada uma delas e compare as cenas nelas retratadas com as cenas de nossas ruas de hoje Haacute diferenccedila Em que sentidordquo Cfr GARCIA Leocircnidas F Estudos de histoacuteria sociedades contemporacircneas 2 ed rev Goiacircnia Editora da UFG 1996 Manual do Professor p 111 Todas as informaccedilotildees foram retiradas de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p81 88 e 137

79Conforme bem mostrado por Elias Saliba Cfr

SALIBA Elias Experiecircncias e representaccedilotildees sociais reflexotildees sobre o uso e o consumo das imagens Anais do II Encontro Perspectivas do Ensino de Histoacuteria Satildeo Paulo FEUSP 1996 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p119

80Produzida pela Secretaria de Ensino agrave

Distacircncia do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo em parceria com a TV Escola e a Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco com a companhia teatral Matildeo Molenga Parte 1 disponiacutevel em youtubecomwatchv=Z60eHBJ1xjY 18082 visualizaccedilotildees e 15 comentaacuterios parte 2 disponiacutevel em youtubecomwatchv=2QLkP2NDhMg 30100 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios (parte desse episoacutedio tambeacutem disponiacutevel em youtubecomwatchv=bAPUjP7l-lI 18398 visualizaccedilotildees e 16 comentaacuterios acesso em 13022014

81Como Clemente Pereira Gonccedilalves Ledo Cipriano

Barata Paes de Andrade e frei Caneca O fato de se tratar de uma produccedilatildeo pernambucana contribui para tanto

82Semelhante observaccedilatildeo pode ser feita a respeito

dos doze curtos episoacutedios da seacuterie D Joatildeo no Brasil inspirada em uma narrativa em quadrinhos da chegada da Corte ao Brasil seacuterie de animaccedilatildeo produzida pelo Canal Futura baseada no livro de histoacuteria em quadrinhos D Joatildeo Carioca a corte portuguesa chega ao Brasil (1808 - 1821) escrito pela historiadora Lilia Schwarcz e pelo desenhista Spacca (Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007) Novamente tem-se um material convincente afinado em muitos sentidos com um conhecimento acadecircmico mas que ao recorrer agrave saacutetira tambeacutem evoca estereoacutetipos convencionais como por exemplo os mesmos acima mencionados em referecircncia a priacutencipe e princesa Poder-se-ia atribuir tal convencionalismo dentre outros fatores ao de que a primazia da linguagem visual aqui opera duplamente isto eacute com os quadrinhos e tambeacutem com o programa televisivo criado a partir deles amplificando assim os efeitos decorrentes da saturaccedilatildeo visual da sociedade que daacute origem e significado a esse material Para todos os efeitos a imposiccedilatildeo de tais convenccedilotildees eacute forte ateacute mesmo conforme jaacute visto em materiais menos visuais que este Episoacutedio 01 youtubecomwatchv= 9f5RB1zcD5Eamplist=PLyP1ks9vaqhj2y6MmckU DyuXtWmHgPLe5ampindex=1 331 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio episoacutedio 02 youtubecomwatchv= w-BLqvhYPGkamplist=PL5837763F26AB1B87

oferecidas pelos proacuteprios livros) mas de uma histoacuteria imoacutevel a ser captada de modo instantacircneo uma histoacuteria verdadeira Aleacutem do mais confundem-se os diferentes contextos motivaccedilotildees e condiccedilotildees de produccedilatildeo de tais imagens o que equivale agrave oferta de uma confusatildeo temporal que impossibi-lita a compreensatildeo dessa histoacuteria76

As uacutenicas exceccedilotildees satildeo os ceacutelebres quadros de Moreaux e de Pe-dro Ameacuterico Todos os livros didaacuteticos aqui considerados se esforccedilam por submetecirc-los a uma criacutetica muitas vezes comparativa considerando forma conteuacutedo e contexto mesmo assim eacute possiacutevel encontrar afirmaccedilotildees como a de que Ameacuterico teria tido ldquoo intuito de fazer a representaccedilatildeo desse famoso acontecimento da maneira mais fiel possiacutevelrdquo e que ldquomuitos dos elementos representados pelo pintor satildeo sabidamente falsosrdquo77 Provavel-mente satildeo resquiacutecios de um momento anterior no qual os livros didaacuteticos mostravam-se muito menos cuidadosos ateacute mesmo na utilizaccedilatildeo do quadro de Ameacuterico78 mas tambeacutem marcas atuais de uma sociedade de haacutebitos fortemente visuais cuja saturaccedilatildeo de imagens tende a resultar em posturas pouco criacuteticas em relaccedilatildeo ao que se vecirc bem como em indistinccedilatildeo tempo-ral das mesmas79 Haacute que se lembrar por fim e novamente que os textos desses livros satildeo cheios de descontinuidades como se cada pedaccedilo de cada paacutegina tivesse autonomia prescindindo de certo modo da leitura dos demais Guardaratildeo tais constataccedilotildees alguma relaccedilatildeo com as dificuldades apresentadas pelos entrevistados na sondagem de opiniatildeo de organizar visotildees da Histoacuteria da Independecircncia segundo marcos cronoloacutegicos bem como de distinguir diferenccedilas entre intervalos temporais Eacute bem possiacutevel sobretudo porque ela seraacute endossada pela observaccedilatildeo de outras fontes

5 - A Independecircncia na internet e na tevecircExiste farto e rico material audiovisual disponiacutevel na internet com referecircncias agrave Independecircncia do Brasil e que a exemplo dos livros didaacuteticos represen-tam a convergecircncia de esforccedilos profissionais muacuteltiplos (mais os programas de tevecirc do que os viacutedeos independentes) como pesquisadores roteiristas apresentadores repoacuterteres cenoacutegrafos teacutecnicos variados etc As fontes aqui delimitadas perfazem 107 viacutedeos acessiacuteveis no YouTube e que natildeo obstante sua ampliacutessima diversidade convergem em muitos significados

Observe-se o caso de viacutedeos educativos documentaacuterios e programas de televisatildeo com entrevistas e debates que em comum apresentam objetivos formativos e esforccedilos verdadeiros de incorporaccedilatildeo de conteuacutedos acadecircmicos traduzidos em linguagens didaacuteticas Um caso exemplar eacute a seacuterie 500 anos o Brasil - Impeacuterio na TV que conta uma histoacuteria do Brasil da chegada da Corte ao periacuteodo das regecircncias em formato de telejornal com trama romanceada e teatro de bonecos80 Aqui vecirc-se uma Histoacuteria processual com informa-ccedilotildees corretas e amparadas em datas deslocamentos frequentes dos eixos espaciais de observaccedilatildeo (regional internacional) com menccedilatildeo a persona-gens que extrapolam o tradicional ciacuterculo da Corte portuguesa81 e ecircnfase no caraacuteter violento e conflitivo da formaccedilatildeo do Brasil no seacuteculo XIX Mesmo um material histoacuterico-pedagoacutegico desse quilate evoca por exemplo a falta de atributos esteacuteticos de Carlota Joaquina ou a pusilanimidade de seu marido a revelarem mais uma vez o mercadologicamente eficiente componente bio-graacutefico-anedoacutetico no tratamento da Independecircncia advindo de sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria mais ampla82

Em outros casos o fato de programas de televisatildeo buscarem o auxiacutelio de especialistas na Independecircncia revela uma convenccedilatildeo formal como nos

22Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

16566 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios episoacutedio 03 youtubecomwatchv=QvWSE-sF-w4amplist =PL5837763F26AB1B87 18406 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios episoacutedio 04 youtubecomwatchv= 2N5wBvpgyXEamplist=PL5837763F26AB1B87 12808 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 05 youtubecomwatchv=VaHrSAFBf1Uamplist =PL5837763F26AB1B87 14615 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 06 youtubecomwatchv= 8RrCMbOZTsAamplist=PL5837763F26AB1B87 12649 visualizaccedilotildees 10 comentaacuterios episoacutedio 07 youtubecomwatchv=I4cgWo_GHaQ 601 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 08 youtubecomwatchv=rI71YNrLo7o 12299 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 09 youtubecomwatchv=huv2ngnqUd4 367 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios episoacutedio 10 youtubecomwatchv=F2MaLs_kj-w 10842 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios episoacutedio 11 youtubecomwatchv=8zK3D01dXc0 9388 visualizaccedilotildees 05 comentaacuterios episoacutedio 12 youtubecomwatchv=R76BHD--vB8amplist=PL5837763F26AB1B87 12108 visualizaccedilotildees 9 comentaacuterios acessos em 03042014

83NAPOLITANO Marcos A Histoacuteria depois do

papel In Carla Pinsky (org) Fontes Histoacutericas Satildeo Paulo Contexto 2005 p250-252 Napolitano afirma com base em Umberto Eco que a televisatildeo introduziu uma mudanccedila de ritmo de vida familiar e cotidiana bem como o que se pode chamar de hipertrofia sensorial em detrimento da assimilaccedilatildeo conceitual Destaca ainda que eacute preciso pensar a televisatildeo como uma nova experiecircncia social do tempo histoacuterico na medida em que ela faz coincidir o verdadeiro o imaginaacuterio e o real no ponto indivisiacutevel do presente

84Produzida pela rede de emissoras puacuteblicas

TV Brasil Sobre a Revolta dos Alfaiates parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo 767 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=dj04LJJM8bk 2592 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio Sobre a Batalha do Jenipapo parte 1 youtubecomwatchv=zlgsZcj-V3o 2426 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios acesso em 24032013 parte 2 youtubecomwatchv=rAS3dHAvWPQ 1283 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio Sobre Tiradentes youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 408 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013)

85Marco Morel e Luiacutes Henrique Dias Tavares

86Programa De laacute pra caacute Revolta dos Alfaiates

parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo

87Exceccedilatildeo satildeo as entrevistas realizadas por

Mocircnica Teixeira na UnivespTV que estabelecem comunicaccedilatildeo bastante profiacutecua entre a entrevistadora e os acadecircmicos entrevistados (youtubecomwatchv=syXf3WHQRPM 4450 visualizaccedilotildees 06 comentaacuterios youtubecomwatchv=pZk5pFlboqw 3303 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=5pUDP2KUYCY 4128 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios

livros didaacuteticos e a exemplo destes a intenccedilatildeo de acolher uma multipli-cidade de vozes raramente enseja verdadeira pluralidade de pensamento o que ademais eacute dificultado pela natureza curta sinteacutetica e acelerada dos materiais televisivos Nessas situaccedilotildees constata-se que o historiador fala uma coisa mas o entrevistador e o produtor continuam a ldquoescutarrdquo outra o que muitas vezes reforccedila a percepccedilatildeo de descontinuidade narrativa an-teriormente tambeacutem diagnosticada nos livros didaacuteticos e que na televisatildeo adquire contornos de regra83 Os episoacutedios da seacuterie De laacute para caacute educati-vos didaacuteticos aacutevidos por com conhecimentos acadecircmicos e produzidos por uma rede puacuteblica de televisatildeo sem fins lucrativos apresentam interessante exemplo84 No programa dedicado aos acontecimentos de 1798 na Bahia dois historiadores profissionais85 esclarecem que os revoltosos ldquobahien-sesrdquo almejavam a independecircncia apenas da capitania da Bahia o que tem enormes implicaccedilotildees a destituiacuterem tais acontecimentos de qualquer atribu-to supostamente preparatoacuterio da Independecircncia do Brasil (situaccedilatildeo muito semelhante conforme vimos agrave da Inconfidecircncia Mineira) natildeo obstante na abertura do programa seu apresentador declara

A luta pela independecircncia do Brasil foi escrita nas paacuteginas memoraacuteveis da nossa histoacuteria com o sangue de um punhado de brasileiros O mais celebrado foi Tiradentes Mas sete anos depois do martiacuterio de Tiradentes quatro brasileiros pretos pobres pelos mesmos ideais foram enforcados e sentenciados em Salvador86

Em outros momentos o apresentador apesar de ouvir de forma soliacutecita e atenta ao que o entrevistado tem a dizer acaba por negar com sua proacutepria fala parte do conteuacutedo receacutem-ouvido mas sem demonstrar ser essa atitude premeditada ou consciente Afinal eacute difiacutecil desvencilhar-se daquilo que jaacute se ldquosaberdquo daquilo que adveacutem de um ambiente que o tempo todo nos ldquoensinardquo Histoacuteria sem necessariamente disso nos darmos conta87

A incapacidade de assimilaccedilatildeo reciacuteproca de ideias acerca da histoacute-ria entre agentes sociais diversos pode revelar-se de muitos modos Um dos programas da seacuterie Caminhos da Reportagem intitulado Caminhos da Independecircncia o grito nas ruas produzido com as mesmas caracteriacutesticas do anterior aborda a Independecircncia focada em seus panfletos poliacuteticos a partir da pesquisa recente de trecircs historiadores profissionais88 No entan-to e a despeito natildeo soacute de dar ampla voz a eles mas tambeacutem de abordar conteuacutedos didaticamente inovadores a equipe de entrevista que foi agraves ruas natildeo estabeleceu qualquer mediaccedilatildeo entre histoacuterias acadecircmicas e natildeo acadecircmicas pressupondo que todas as pessoas ocupam uma mesma posiccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria Por isso perguntas incompreensiacuteveis89 resultam apenas em situaccedilotildees vexatoacuterias impeditivas da construccedilatildeo de conhecimento sobre o tema

A abordagem de pessoas nas ruas recurso frequentemente utiliza-do por programas televisivos revela dados importantes acerca de como os brasileiros veem a Independecircncia muitas vezes mais por aquilo que eacute perguntado do que por aquilo que eacute respondido90 O programa + Estilo de 07 de setembro de 2011 produzido pela TV Campo Grande com conteuacutedo de variedades destinado a telespectadores de meio de tarde foi agraves ruas (provavelmente de Campo Grande Mato Grosso do Sul) perguntar se as pessoas saberiam dizer o que se comemorava naquele dia Primeiro res-ponde uma jovem com um bebecirc no colo

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youtubecomwatchv=0ZVgCwkt1ms 1384 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1016 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1227 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=ANSHAFLau04 1175 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios) Acessos em 21042014

88Joseacute Murilo de Carvalho Luacutecia Pereira das Neves

e Marcello Basile

89A apresentadora ldquoVocecircs sabem o que significa

corcundardquo Um professor de coleacutegio ldquoDeve ser alguma coisa que estaacute surgindo aiacute no mundo um pouco mais ciberneacutetico porque eu nem na faculdade ouvi falar dos corcundasrdquo Marcos Tomazzeti produtor multimiacutedia ldquoNa minha cabeccedila vem algo de monarquia de rei algo meio poliacuteticordquo Simone Granda bancaacuteria ldquoDicionaacuterio de corcundice Natildeo seirdquo Marilu Guimaratildees dona de casa ldquoPuxa tem tanta coisa importante pra ter dicionaacuterio vai ter justo do corcundistardquo Caminhos da Independecircncia youtubecomwatchv=37XH5UEpjlI acesso em 24032013

90Em perspectiva oposta mas complementar agrave da

sondagem de opiniatildeo aqui utilizada

91E que portanto muito provavelmente ainda natildeo

tinha tido contato formal (escolar) com o tema

92O programa prossegue entatildeo com uma entrevista

com o professor Ian Rari que trata de uma Histoacuteria da Independecircncia processual natildeo centrada em uma uacutenica data ou fato criacutetica etc Mais um momento onde as vaacuterias vozes contempladas pelo programa natildeo dialogam entre si (youtubecomwatchv=xv1LOlwUfFQ 289 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio) Outro exemplo significativo eacute dado pelo programa Conexatildeo Jovem exibido em 06 de setembro de 2012 no qual dois entrevistados ndash Prof Bira professor de Histoacuteria e Marcos Eduardo socioacutelogo ndash utilizam com competecircncia o pouco tempo a eles destinado discorrendo de modo criacutetico sobre a Independecircncia e em linguagem adequada ao puacuteblico jovem ao qual o programa se destina (produccedilatildeo da TV Novo Tempo adventista parte 1 youtubecomwatchv=1IvYOYtju9sgt 74 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=Ofv7QWOJpHo 47 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013) Logo o programa traz uma abordagem feita na rua na qual a entrevistadora pergunta a uma jovem ldquoQuem falou lsquoindependecircncia ou mortersquo agraves margens do riacho do Ipirangardquo Diante da correta resposta a entrevistadora tenta induzir um erro ldquo15 de novembro ou 7 de setembrordquo Aliaacutes a expectativa do programa parece revelada pela entrevistadora logo na primeira pergunta feita a um dos convidados ldquoseraacute que os jovens se interessam pela histoacuteria de seu paiacutesrdquo E embora o material recolhido pelo proacuteprio programa permita resposta afirmativa manteacutem-se a postura negativa preacute-concebida

93Daiacute a relevacircncia de um viacutedeo com fotografias e

um aacuteudio (youtubecomwatchv=UdQ_aAAl3DE)

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoE isso em que ano que foi que aconteceurdquoResposta ldquo1822rdquo

Em seguida outro jovem que provavelmente jaacute tinha respondido a outra pergunta

Pergunta ldquoQuem foi o imperador vocecirc lembrardquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoAcertou Canta pra gente um trecho do hino da independecircnciardquoResposta ldquoAgora natildeo lembrordquo

Agora o programa aborda uma menina de cerca de dez anos clara-mente intimada91

Pergunta Por que eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoNatildeo seirdquoPergunta ldquoNatildeo lembra Vou dar uma dica um fato histoacuterico muito importante para o BrasilrdquoResposta (negativa com a cabeccedila)

Em quarto lugar outra jovem que procura se afastar da cacircmera

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta (ainda tentando se esquivar sorrindo) ldquoNatildeordquoPergunta ldquoNatildeo saberdquoResposta ldquoAh A Independecircncia Eu natildeo prestei atenccedilatildeordquoPergunta Que ano aconteceu a Independecircncia vocecirc lembrardquoResposta ldquoNatildeordquoPergunta ldquoE quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoTambeacutem natildeo lembrordquo

Por fim a entrevista com um senhor de meia-idade comeccedila jaacute com uma resposta

Resposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoQue ano aconteceu issordquoResposta ldquo1888rdquoPergunta ldquo1822 Quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoCerto E onde foi que aconteceu tudo issordquoResposta ldquoSatildeo PaulordquoPergunta ldquoOK [breve silecircncio] Canta um trechinho para noacutes do hino da IndependecircnciardquoResposta ldquoJaacute podeis da paacutetria matildeerdquo [sic -prossegue cantando corretamente]

Em seguida o programa corta para uma sala de aula onde a despeito dos ldquoacertosrdquo obtidos nas ruas a entrevistadora afirma

Diante da dificuldade que noacutes encontramos no centro da cidade para saber informaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil eu vim parar na sala de aula Vai ser aqui que a gente vai descobrir a histoacuteria do paiacutes92

A ideia a priori de que o brasileiro natildeo conhece e natildeo se interessa pela histoacuteria subsidia este e muitos outros programas Aqui o dado mais relevante parece estar precisamente nessa arraigada crenccedila no desinteres-

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da entatildeo prefeita de Ribeiratildeo Preto (Satildeo Paulo) Darcy Vera que afirma durante um desfile de 7 de Setembro dentre vaacuterios desvarios que ldquoTiradentes gritou lsquoIndependecircncia ou mortersquordquo Com 169919 acessos e 149 comentaacuterios (em geral criacuteticos bem humorados e depreciativos) ateacute 20082014 condensa a possibilidade de amplificaccedilatildeo do estigma do natildeo domiacutenio de referecircncias convencionais agrave Independecircncia mas sem fomentar nenhum conhecimento da mesma

94Novamente surge a questatildeo natildeo teratildeo as

renovaccedilotildees curriculares promovidas no ensino de Histoacuteria (no Brasil e alhures) das uacuteltimas deacutecadas exagerado nessa incompatibilidade Teratildeo elas sido capazes de mensurar seus efeitos deleteacuterios diante de sociedades jaacute bastante refrataacuterias a uma histoacuteria cronoloacutegica

95ldquoPouco importa que sua figura tenha sido

mitificada pela propaganda republicana O que importa eacute que ele foi um heroacutei Ele deu sua vida pela paacutetria e pela liberdaderdquo (Programa De laacute pra caacute youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032013) Essa exaltaccedilatildeo da figura de Tiradentes associada agrave Independecircncia conduz o discurso da propaganda eleitoral de um candidato agrave prefeitura de Ouro Preto em 2012 (youtubecomwatchv=eGefgLoRhec 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032014) Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo no dia 09 de setembro de 2013 apoacutes se autocaracterizar como realizador de uma ldquohistoacuteria de carne e ossordquo em contraposiccedilatildeo a produccedilotildees ldquocontaminadas pela anaacutelise marxistardquo que retirariam os personagens da Histoacuteria o jornalista Laurentino Gomes afirma ldquoNo 1822 faccedilo uma comparaccedilatildeo e digo que o uacutenico problema do Joseacute Bonifaacutecio foi nascer no Brasil pois se ele tivesse nascido nos Estados Unidos teria sido maior que o Thomas Jefferson Porque aparentemente ele era mais preparado mais luacutecido que o Thomas Jeffersonrdquo (parte 1 youtubecomwatchv=uGibbLxsZK0 4501 visualizaccedilotildees e 5 comentaacuterios parte 2 youtubecomwatchv=2LQcEcb5kLU 2302 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios acesso em 26032014 Logo voltaremos agrave obra e agraves ideias de L Gomes

96Um exemplo adveacutem do viacutedeo ldquoA verdadeira

independecircncia do Brasilrdquo em que um pastor evangeacutelico em meio a uma cerimocircnia religiosa ldquodesconstroacuteirdquo o quadro de Pedro Ameacuterico acusando-o de pouco verossiacutemil e aponta os desvios morais de D Pedro I de modo a inviabilizaacute-lo como figura histoacuterica digna de memoacuteria (youtubecomwatchv=RsKQr6bgzLA 178 visualizaccedilotildees e 2 comentaacuterios acesso em 24032014) A suposta irrelevacircncia dos personagens envolvidos no processo da independecircncia eacute notaacutevel na fala de um professor de Ensino Meacutedio (youtubecomwatchv=gvWVF9j2KEU 597 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) e de um apresentador de temas religiosos que relativizam a importacircncia do tema ao afirmarem a atual ldquodependecircncia econocircmicardquo do Brasil (youtubecomwatchv=EXyUBY7StF4 383 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Tambeacutem retornaremos a esse tema

sedesconhecimento do brasileiro pela histoacuteria bem como em um de seus efeitos mais contundentes a crenccedila de que eacute possiacutevel reverter tal situaccedilatildeo pela simples mobilizaccedilatildeo formal de datas nomes e eventos Contudo se a Independecircncia se converte em uma catalizadora de referecircncias cronoloacute-gicas ou nominais isso natildeo leva necessariamente a uma historicizaccedilatildeo do tema pelo contraacuterio a mobilizaccedilatildeo de tais referecircncias em termos como os acima mencionados (a data ou o nome por si soacutes) pode resultar no apro-fundamento da tendecircncia agrave confusatildeo temporal jaacute aqui apontada93

Nos meios intelectuais a discussatildeo em torno das formas tempo-rais de vivecircncia coletiva naquilo que se pode chamar ndash recorrendo-se a uma categoria uacutetil ndash de modernidade natildeo eacute nova tampouco estaacute em vias de esgotamento A dificuldade de organizaccedilatildeo do mundo social segundo referecircncias cronoloacutegicas natildeo seraacute em absoluto distintiva de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil embora o contraacuterio deva ser dito em relaccedilatildeo agraves formas assumidas por tais dificuldades (como as noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia) Percebe-se entatildeo o peso do estigma da dificuldade em manejar datas nomes e fatos suposta prova de um desin-teresseignoracircncia que poderia ser combatido com um retorno a velhas formas de se fazer Histoacuteria e nas quais tais elementos eram considera-dos com a essecircncia da compreensatildeo histoacuterica Natildeo parece que as coisas devam propriamente se passar segundo essa representaccedilatildeo embora um dos confrontos existentes na cultura de histoacuteria no Brasil seja sem duacutevida a polarizaccedilatildeo entre a valorizaccedilatildeo da Independecircncia (= de suas datas nomes eventos siacutembolos e supostos valores etc) e a desvalorizaccedilatildeo da mesma (=seu caraacuteter elitista e negociador a diminuiccedilatildeo da histoacuteria do Brasil em comparaccedilatildeo com a de outros paiacuteses a comicidade dessa histoacuteria etc) Eacute plausiacutevel conceber que esta segunda posiccedilatildeo encontre um aliado na con-cepccedilatildeo de incompatibilidade entre uma histoacuteria amparada por referecircncias cronoloacutegicas e ao mesmo tempo em processos estruturas e temas trans-versais do gosto inclusive de muitos acadecircmicos e educadores94

Os exemplos de materiais audiovisuais a traduzirem veicularem e fomentarem esse confronto entre valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo da Inde-pendecircncia satildeo muitos Aleacutem dos jaacute tratados ateacute aqui pode-se mencionar viacutedeos contendo propaganda de instituiccedilotildees puacuteblicas civis e militares de partidos poliacuteticos de grupos maccedilocircnicos de igrejas e de empresas variadas bem como produccedilotildees independentes Neles eacute possiacutevel encontrar desde a exaltaccedilatildeo das referecircncias mais convencionais agrave Independecircncia como a seus personagens (incluindo seu suposto maacutertir Tiradentes)95 ateacute a afirma-ccedilatildeo de sua total irrelevacircncia96 isso costuma ocorrer sem muitos matizes obedecendo a uma loacutegica dicotocircmica plasmada em linguagens simples com descontinuidades discursivas e imageacuteticas e num ritmo de exposiccedilatildeo acelerado Em suma tratam da Independecircncia segundo padrotildees parcial-mente compartilhados tambeacutem por outras fontes ateacute aqui analisadas

Todas essas fontes com suas noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia satildeo sintomaacuteticas de estados de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema bem como potenciais formadores de opiniatildeo dos mesmos Sua capacidade de criaccedilatildeo de conhecimento no entanto se mostra muito limi-tada Eacute bem verdade que esta eacute por vocaccedilatildeo uma tarefa confiada a saberes acadecircmicos ndash jaacute que no Brasil a quase totalidade da pesquisa em Histoacuteria estaacute entregue agraves universidades salvo a de interesse corporativo ndash de modo que natildeo seria de esperar inovaccedilatildeo em suportes tatildeo variados e socialmen-te diversificados quanto os ateacute aqui analisados Mas parece haver aiacute certo

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ciacuterculo vicioso a envolver tambeacutem parte da academia Basta observar que a ideia da ldquonatildeo Independecircncia de fatordquo tatildeo em voga entre tantos historiadores durante tanto tempo reverbera com forccedila na sociedade em geral97 e ainda goza de prestiacutegio ateacute mesmo entre alguns acadecircmicos que bebem-na da sociedade e apoacutes modificaacute-la parcialmente devolvem-na aos espaccedilos de di-vulgaccedilatildeo98 Essa versatildeo da Histoacuteria eacute capaz de transpor fronteiras temporais de atualizar-se em diferentes contextos e ateacute mesmo de superar abissais diferenccedilas poliacuteticas ela estaacute representada por exemplo e de modo quase idecircntico na propaganda poliacutetica de um partido trotskista e na pregaccedilatildeo nacionalista-direitista de um polecircmico professor de histoacuteria99

Por fim tome-se o caso de trecircs produccedilotildees da Rede Globo de Televi-satildeo voltadas ao puacuteblico em geral com consideraacuteveis aportes financeiros e complexa produccedilatildeo a seacuterie documental A Corte no Brasil para exibiccedilatildeo em tevecirc fechada100 e as seacuteries humoriacutesticas O Quinto dos Infernos101 e Eacute muita Histoacuteria Dia de Fuacuteria102 veiculadas amplamente em tevecirc aberta No pri-meiro caso siacutetios histoacutericos visitados pelas apresentadoras uma narrativa soacutebria e informativa de fatos e processos grande quantidade de entrevistas com historiadores ecircnfase em diferentes espaccedilos regionais e internacio-nais e tratamento do tema em muacuteltiplas dimensotildees (poliacutetica econocircmica cultural) No segundo caso uma narrativa romanceada teatral e cocircmica fortemente despolitizada e livremente baseada em trecircs livros de igual teor (um deles publicado haacute quase um seacuteculo)103 praticamente centrada no Rio de Janeiro (um pouco tambeacutem em Portugal muito menos alhures) e nos membros da famiacutelia real portuguesa cuja vida pessoal eacute estruturada em torno de seus haacutebitos excecircntricos (principalmente os sexuais) e vez ou outra de passageiros dramas pessoais104

Finalmente no terceiro caso uma encenaccedilatildeo tambeacutem cocircmica pro-tagonizada por um escritor-autor-ator-palhaccedilo com grande liberdade de criaccedilatildeo mas amparada em informaccedilotildees convenccedilotildees e mitos a oferecer uma versatildeo do Sete de Setembro segundo o estado psico-fisioloacutegico de D Pedro

Eis um exemplo de uma das modalidades assumidas pela disputa em torno de uma Independecircncia valorizada e outra depreciada Pareceria justificaacutevel opor a tal diagnoacutestico a constataccedilatildeo de se tratarem de obras televisivas de distinto teor o que desobriga a segunda e a terceira de qual-quer compromisso com a verdade No entanto interessam-nos mais seus significados e efeitos do que intenccedilotildees Note-se que a primeira documen-tal eacute de circulaccedilatildeo mais restrita que a segunda e a terceira voltadas para grande puacuteblico por isso seus efeitos nesse jogo de criaccedilatildeorecriaccedilatildeo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da Independecircncia satildeo natildeo apenas assimeacutetricos mas tambeacutem concorrentes105 Os esforccedilos de um pro-grama por posicionar o espectador diante de uma histoacuteria processual de encadeamentos temporais e de grupos e conflitos sociais satildeo naturalmente obstados pelos dos outros dois a oferecer uma histoacuteria repleta de anacro-nismos anedoacutetica e biograacutefica em perfeita sintonia com demandas mais amplas de uma sociedade ndash e de alguns de seus componentes mercadoloacutegi-cos jaacute aqui mencionados ndash na qual a vida privada eacute mais valorizada do que a puacuteblica106 Nesse confronto embora as trecircs convivam na mesma cultura de histoacuteria uma Independecircncia tende a prevalecer sobre a outra107

6 ndash A Independecircncia no cinemaEm relaccedilatildeo a livros didaacuteticos programas de televisatildeo e outros materiais audiovisuais as fontes cinematograacuteficas aqui consideradas naturalmente

97Exemplo encontra-se no viacutedeo ldquoAway Nilzer ndash

Independecircncia do Brasilrdquo com grande nuacutemero de visualizaccedilotildees (130677) e de comentaacuterios (1016) que minimiza e ridiculariza natildeo apenas o processo da independecircncia como quaisquer fatos histoacutericos brasileiros de maneira geral (youtubecomwatchv=Vd_kloNeQV0) O Brasil atual como viacutetima de uma exploraccedilatildeo econocircmica mais intensa do que nos tempos coloniais e portanto natildeo-independente aparece na fala de outro professor (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2806 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) e nos comentaacuterios de um boneco marionete de um programa infantil (youtubecomwatchv=9mh3Tu6c4_w 173 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032014)

98Exemplo desse processo de ldquodevoluccedilatildeordquo pode ser

comprovado no viacutedeo ldquoIndependecircncia ou morterdquo (youtubecomwatchv=QUvnz1no1m8 934 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Outros dois exemplos pertinentes satildeo a insistecircncia nas ideias de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil e que a Independecircncia foi uma luta entre brasileiros e portugueses

99Em entrevista a uma rede local de televisatildeo

ouvimos do professor de histoacuteria do Ensino Meacutedio Wander Pugliesi ldquoSe noacutes formos trabalhar com sinceridade o Brasil ainda natildeo eacute independente Na verdade somos muito mais explorados do que quando eacuteramos colocircnia de Portugalrdquo (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2815 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) A mesma relativizaccedilatildeo do processo de independecircncia aparece na fala do candidato agrave presidecircncia em 2010 pelo PSTU Zeacute Maria ldquohoje infelizmente natildeo podemos comemorar uma verdadeira independecircncia do paiacutes Eacute preciso dizer a verdade as multinacionais controlam a economia brasileira As decisotildees fundamentais satildeo tomadas por elas fora do paiacutesrdquo (youtubecomwatchv=ht9Yt0PlGnU 1803 visualizaccedilotildees um comentaacuterio) Acessos em 26032013

100Direccedilatildeo de Carlos Henrique Schroder 2008

Produccedilatildeo de 16 episoacutedios de cerca de 20 minutos cada para o canal da TV fechada GloboNews A seacuterie foi comercializada em DVD e pode ser vista tambeacutem no canal Globosat no Youtube (youtubecomwatchfeature= player_detailpageampv= OUX-zSyaMIc e viacutedeos relacionados Acesso em 27032014)

101Direccedilatildeo de Wolf Maya e Alexandre Avancini e

criaccedilatildeo de Carlos Lombardi 2002 Produccedilatildeo de 48 episoacutedios com cerca de 40 minutos cada para o canal da TV aberta Rede Globo de Televisatildeo A minisseacuterie tambeacutem foi comercializada em DVD e vem sendo (desde janeiro de 2014) reprisada no Canal Viva (rede fechada de televisatildeo filiada Globosat) uma reprise anterior ocorreu de agosto a novembro de 2011 sempre por volta das 23h

102Direccedilatildeo de Joatildeo Carrascosa e Pedro Bial 2007

Produccedilatildeo de 9 capiacutetulos de cerca de 15 minutos

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apresentam especificidades Tendem a diversificar (eventualmente ampliar) o rol de profissionais envolvidos em sua produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo bem como a tratar conteuacutedos em um tempo mais lento criando uma sensaccedilatildeo de homogeneidade de significados reforccedilada pela aderecircncia de tais conteuacutedos a uma trama central Tal homogeneidade por seu turno eacute relativizada por uma liberdade de criaccedilatildeo que dificilmente encontra paralelo em outros dos materiais aqui considerados ndash com a possiacutevel exceccedilatildeo da minisseacuterie O Quinto dos Infernos No entanto quando a comparaccedilatildeo eacute feita com os li-vros didaacuteticos os conteuacutedos relativos agrave Independecircncia no cinema tendem a ser menos numerosos mais superficiais e efecircmeros justamente por serem menos assumidamente informativos do que os dos livros embora isso possa encontrar alguma compensaccedilatildeo em uma linguagem visual de forte apelo emotivo Para todos os efeitos como aponta um estudioso da mateacuteria os filmes de temaacutetica histoacuterica carregam sempre certa ambiguidade ocupam uma espeacutecie de ldquoentrelugarrdquo com forccedila para criar ldquoverdadesrdquo socialmente aceitas108 Nos cinco filmes aqui considerados109 as ldquoverdadesrdquo sobre a Independecircncia tendem a replicar linhas de forccedila jaacute conhecidas mesclando temporalidades correspondentes tanto aos momentos em que foram pro-duzidos quanto aos momentos posteriores em que foram sendo exibidos110

Independecircncia ou Morte produccedilatildeo a serviccedilo das comemoraccedilotildees oficiais do sesquicentenaacuterio da Independecircncia levadas a cabo pelo go-verno ditatorial brasileiro em 1972 mostra uma narrativa de forte teor didaacutetico-pedagoacutegico sem grandes pretensotildees artiacutesticas expliacutecitas111 com diaacutelogos e situaccedilotildees muitas vezes retirados de obras sobre a Independecircncia e tratados de forma literal Sua finalidade eacute clara ldquoensinarrdquo aos especta-dores uma histoacuteria e uma memoacuteria coletivas homogecircneas aplainadas de pluralidades ou de desavenccedilas Uma histoacuteria supostamente indiscutiacutevel porque verdadeira posta a serviccedilo dos tambeacutem supostos interesses mais elevados da naccedilatildeo brasileira (por isso nela a vida privada dos persona-gens eacute toda submetida agrave sua funccedilatildeo poliacutetica inclusive no caso da relaccedilatildeo afetiva entre um D Pedro de boa aparecircncia querido do povo e mulherengo e uma ambiciosa romacircntica e sensiacutevel Domitila112) Uma espeacutecie de cartilha oficial da Independecircncia em imagens na qual se faz presente ateacute mesmo uma recomposiccedilatildeo cecircnica do quadro de Pedro Ameacuterico

Eacute interessante observar como Os Inconfidentes produzido no mesmo ano de 1972 mesmo sendo um filme amparado em abundantes liberdades e experimentos esteacuteticos cheio de ambiguidades propositais e contra-pondo-se ao oficialismo histoacuterico tatildeo em voga agrave eacutepoca por meio de uma metaacutefora na qual os contestadores agrave ditadura brasileira se convertem em sediciosos das Minas Gerais do seacuteculo XVIII natildeo se configura como mate-rial singular e discrepante de Independecircncia ou Morte em pelo menos trecircs sentidos primeiro porque em vaacuterios momentos associa a Inconfidecircncia Mi-neira com a Independecircncia do Brasil a exemplo do que Independecircncia ou Morte prega jaacute em seu primeiro texto didaacutetico113 Segundo porque tambeacutem oficializa eventos convencionalmente tidos por fundacionais da histoacuteria do Brasil (soacute que natildeo os de 1808-1822 mas os de 1788-1789) Terceiro reforccedila a prevalecircncia de indiviacuteduos sobre coletividades da imagem de um heroacutei central da trama e de uma oposiccedilatildeo de interesses maniqueiacutesta que certamente poderia se aplicar com mais rigor ao contexto em que foi feito o filme do que agravequele ao qual formalmente se refere Assim para todos os efeitos substratos de uma concepccedilatildeo de histoacuteria satildeo em ambos convergentes Em um ambiente social multifacetado em termos de no-

cada dentro do programa dominical Fantaacutestico da Rede Globo de Televisatildeo A seacuterie foi baseada no livro Brasil uma Histoacuteria de Eduardo Bueno jornalista que tambeacutem atua na seacuterie (youtubecomwatchv=3LzGKt9Pd0M acesso em 27032014)

103SETUacuteBAL Paulo As Maluquices do Imperador

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1927 CALADO Ivanir A Imperatriz no Fim do Mundo memoacuterias duacutebias de Ameacutelia de Leichtenberg Rio de Janeiro Rio Fundo Editora 1992 e TORERO Joseacute Roberto Galantes memoacuterias e admiraacuteveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes o Chalaccedila Satildeo Paulo Companhia das Letras 1994

104A trama e a narrativa do Quinto dos Infernos

recusam explicitamente a inserccedilatildeo de quaisquer componentes que natildeo os da ordem privada de seus convencionais personagens assim questotildees poliacuteticas satildeo sempre menores do que o apetite sexual de Carlota Joaquina as perversotildees de D Miguel ou a fogosidade de Domitila a economia soacute surge em pontuais pretextos cocircmicos enquanto a escravidatildeo eacute referida exclusivamente por meio de alegres e libidinosas criadas (negras) permanentemente dispostas a servirem aos desejos do heroacutei da histoacuteria D Pedro

105A anaacutelise poderia se completar com a minisseacuterie

A Marquesa de Santos dirigida por Ary Coslov e exibida pela extinta Rede Manchete de televisatildeo em 1984 agrave qual infelizmente natildeo se obteve acesso satisfatoacuterio

106Tal predileccedilatildeo pode ser entendida como mais

um fator caracteriacutestico de um momento em que a articulaccedilatildeo entre aquilo que Guy Debord chamaria de ldquosociedade do espetaacuteculordquo e Adorno e Horkheimer (dentre muitos outros) de ldquoinduacutestria culturalrdquo torna sintomaacutetico a saliecircncia do indiviacuteduo e o esvaziamento da esfera puacuteblica

107A comprovaccedilatildeo do encontro concorrente entre

dois caminhos vem do depoimento de alguns dos proacuteprios envolvidos com a produccedilatildeo do Quinto dos Infernos como o diretor Carlos Lombardi que a ele se refere como ldquoum painel dos personagens importantes do periacuteodordquo Para o produtor Wolf Maia seu objetivo foi ldquorecontar com humor uma velha histoacuteriardquo O ator Humberto Martins viu a seacuterie ldquocontar um pedaccedilo da nossa histoacuteria da histoacuteria do Brasil do nosso povo das nossas raiacutezes pateacutetica e engraccedilada tal como ela se mostra dentro desse produto poreacutem claro mesclada com uma boa dose de humorrdquo enquanto o protagonista Marcos Pasquim afirmou que ldquo[ao fazecirc-la] aprendi muita coisa que natildeo aprendi na escola eu vim aprender agora fazendo a pesquisa para fazer esse personagemrdquo Finalmente para a tambeacutem atriz Bruna Lombardi ldquoO lsquoQuintorsquo contou assim a histoacuteria que a Histoacuteria natildeo conta sabe como eacute as fraquezas da histoacuteriardquo Em ldquoDia de Fuacuteriardquo Pedro Bial e Eduardo Bueno reforccedilam seu discurso satiacuterico por meio de um verniz de verdade trazido pela citaccedilatildeo de documentos oficiais como o relato do Padre Belchior sobre o grito do Ipiranga Aleacutem disso seu discurso eacute elaborado sob o nome de tese logo bem se vecirc como seus propaladores (BialBueno) manipulam siacutembolos

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ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

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Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

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123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

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131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

31Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

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Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

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por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

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muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

36Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 13: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

17Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

da abdicaccedilatildeo de D Pedro I foi a campeatilde em respostas imprecisas 92 dis-seram natildeo saber ou natildeo se lembrar 16 deu respostas erradas e apenas 12 soube responder ldquomil oitocentos e trinta e umrdquo

E quanto agrave data da Independecircncia do Brasil Em comparaccedilatildeo com as perguntas anteriores esta obteve respostas de qualidade superior natildeo obstante um nuacutemero ainda alto de respostas ldquonatildeo souberdquo e ldquonatildeo lembrardquo 33 dos entrevistados Haacute que se lembrar inclusive que desde a segunda parte do questionaacuterio o entrevistado jaacute sabia tratar-se de algo focado na Independecircncia ou seja se nas demais perguntas pode-se dizer que ele foi pego totalmente surpresa nesta natildeo Por isso e se considerarmos ainda os 14 que deram respostas claramente erradas a esta pergunta (ldquomil e qui-nhentosrdquo ldquovinte e um de abril de mil e quinhentosrdquo ldquovinte e dois de abril de mil e quinhentosrdquo ldquomil oitocentos e oitenta e noverdquo ldquovinte e um de abrilrdquo ldquovinte e dois de abrilrdquo ldquonove de julhordquo) chega-se a um total de 47 de pessoas incapazes de dizer quando ocorreu a Independecircncia do Brasil Por outra parte os que souberam responder (ldquosete de setembro de mil oito-centos e vinte e doisrdquo ou ldquomil oitocentos e vinte e doisrdquo) chegaram a 16 iacutendice muito proacuteximo das dimensotildees do hipoteacutetico grupo de interessados e razoaacuteveis conhecedores da Histoacuteria da Independecircncia referido alguns paraacutegrafos acima

Trata-se de um nuacutemero elevado ainda mais se reafirmarmos que a Independecircncia natildeo eacute jamais completamente ignorada em meio agrave cultura brasileira de histoacuteria De certo modo sim mas natildeo deve escapar agrave obser-vaccedilatildeo de ningueacutem que nessa pergunta especiacutefica a confusatildeo de datas se daacute dentro de referecircncias histoacutericas e cronoloacutegicas bastante demarcadas a Independecircncia o ldquodescobrimento do Brasilrdquo Tiradentes e a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica todos eles marcos fundacionais em uma memoacuteria histoacuteri-ca oficial logo fundamentais na constituiccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria no Brasil51 Tais resultados indicam preliminarmente a precariedade da concepccedilatildeo de histoacuteria ndash da Independecircncia em particular - segundo formas convencionais de organizaccedilatildeo cronoloacutegica e isso a despeito dessa socieda-de ser permeada e carregada de referecircncias cronoloacutegicas que organizam a vida das pessoas em muitos de seus interstiacutecios (vida familiar vida profis-sional praacuteticas de lazer e de culto etc) Pouquiacutessimas respostas ndash esta-tisticamente despreziacuteveis -parecem esboccedilar a forja de alguma modalidade alternativa de organizaccedilatildeo temporal da histoacuteria (ldquoquase duzentos anosrdquo ldquomil oitocentos e alguma coisardquo ou ldquoD Pedro saiu para brigar com o irmatildeo e deixou D Pedro IIrdquo) diante do quecirc ganha forccedila a hipoacutetese de uma enorme e generalizada dificuldade apresentada por essa sociedade no manejo de recursos baacutesicos de historicizaccedilatildeo da histoacuteria como a cronologia52

Ateacute aqui as conclusotildees a que se pode chegar ainda satildeo excessiva-mente parciais extraiacutedas apenas da sondagem de opiniatildeo conveacutem no entanto sumarizaacute-las de modo a reforccedilaacute-las como hipoacuteteses capazes de nortear a anaacutelise vindoura Segundo o que nos mostram os entrevistados a Independecircncia eacute pouco frequentada por muitos mas assiduamente por um grupo razoaacutevel (seratildeo seus membros os uacutenicos capazes de pensaacute-la segundo marcos cronoloacutegicos) eacute amplamente considerada tema da maior importacircncia para a Histoacuteria do Brasil e de menor importacircncia para a His-toacuteria do Mundo ela eacute menos interessante do que outros temas (quais natildeo sabemos) assim como a Histoacuteria do Brasil eacute menos do que a Histoacuteria Geral mas tende a ser vista como algo respeitaacutevel eventualmente positivo para o Brasil o que parece evocar um imaginaacuterio oficial ainda muito vigente de

Paulo FTD 2010 ALVES Alexandre e OLIVEIRA Letiacutecia F de Conexotildees com a Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Moderna 2010 PEDRO Antocircnio e LIMA Lizacircnias de Souza Histoacuteria sempre presente v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VICENTINO Claacuteudio R e DORIGO Gianpaolo F Histoacuteria Geral e do Brasil v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FIGUEIRA Divalte G Histoacuteria em foco v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2011 NOGUEIRA Fausto G e CAPELLARI Marcos Ser protagonista Histoacuteria 2ordm ano do Ensino Meacutedio Satildeo Paulo Ediccedilotildees SM 2010 BURITTI Flaacutevio Caminhos do Homem v2 Curitiba Base Editorial 2010 CAMPOS Flaacutevio de CLARO Regina A escrita da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 COTRIM Gilberto Histoacuteria Global Brasil e Geral v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 AZEVEDO Gislane C e SERIACOPI Reinaldo Histoacuteria em movimento v2 Satildeo Paulo Aacutetica 2010 MORENO Jean Carlos e GOMES Sandro V Histoacuteria cultura e sociedade v3 Curitiba Positivo 2010 FERREIRA Joatildeo Paulo e FERNANDES Luiz Estevam Nova Histoacuteria integrada v2 2a ed Curitiba Moacutedulo 2010 MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Histoacuteria Geral e Brasil v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010 BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam B Histoacuteria Das cavernas ao terceiro milecircnio v2 2a ed Satildeo Paulo Moderna SANTIAGO Pedro CERQUEIRA Ceacutelia e PONTES Maria Aparecida Por dentro da Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Escala Educacional 2010 MOCELLIN Renato e CAMARGO Rosiane Histoacuteria em debate v2 Satildeo Paulo Editora do Brasil 2010 CATELLI Jr Roberto GANDINI Mariacutea Soledad M e ASPIS Renata L Histoacuteria texto e contexto v2 Satildeo Paulo Scipione 2011 FARIA Ricardo de M MIRANDA Mocircnica Liz e CAMPOS Helena Estudos de Histoacuteria v2 Satildeo Paulo FTD 2010 VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Histoacuteria v2 Satildeo Paulo Saraiva 2010

61PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit

62Conforme observou o Guia de livros didaacuteticos

PNLD 2012 Histoacuteria 17 das coleccedilotildees aprovadas adotaram a perspectiva da Histoacuteria Integrada na qual se expotildee o conteuacutedo histoacuterico a partir da ldquosequecircncia cronoloacutegica de base europeiardquo havendo o predomiacutenio da ldquoHistoacuteria Geral eurocecircntricardquo linear Os assuntos sobre a Histoacuteria da Ameacuterica e do Brasil estatildeo intercalados nesta grande Histoacuteria Geral As outras duas coleccedilotildees optaram pelo formato temaacutetico organizando os assuntos ldquoem torno de muacuteltiplos espaccedilos e temporalidadesrdquo mas guiados por um eixo cronoloacutegico Guia de livros didaacuteticos PNLD 2012 Histoacuteria Op Cit p 18-19

63Uma afirmaccedilatildeo tiacutepica ldquoO nascimento do

Brasil como paiacutes independente encontra-se dentro do contexto de crise do Antigo Regime e do sistema colonial mercantilistardquo VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p89 Os paradigmas historiograacuteficos a que tal tipo de afirmaccedilatildeo remete satildeo evidentemente as obras de Caio Prado Juacutenior e Fernando Novais jaacute amplamente presentes tambeacutem nos livros de Ensino Fundamental PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit cap3

18Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

glorificaccedilatildeo da Independecircncia laudatoacuterio e a destacar seus personagens centrais No entanto tal tendecircncia encontra obstaacuteculo em outras contraacute-rias minoritaacuterias mas natildeo despreziacuteveis a verem a Independecircncia como algo pouco ou nada importante uma histoacuteria restrita espacialmente e socialmente e mais de continuidades do que de rupturas

Assim jaacute eacute possiacutevel afirmar que a Independecircncia enseja disputas a seu respeito em torno de suas representaccedilotildees e memoacuterias oficiais ou natildeo Muito provavelmente alguns dos motivos que explicam sua rejeiccedilatildeo por muitos explicam igualmente sua ativa e entusiasmada frequecircncia por um grupo menor Em uma terceira via ela jamais deixou de ser pensada e divulgada em perspectivas complexas fortemente criacuteticas e analiacuteticas Para todos os efeitos a Independecircncia contribui sem duacutevida para tipificar uma cultura de histoacuteria no Brasil plural variada e apenas parcialmente organizada em padrotildees cronoloacutegicos (temporais) na qual ocupa um papel central e da qual irradiam outros elementos valiosos para um melhor en-tendimento dessa mesma cultura

4 ndash A Independecircncia nas escolas A principal fonte de fomento e irradiaccedilatildeo de atitudes do brasileiro diante da Independecircncia eacute o sistema escolar com sua diversidade de agentes es-paccedilos procedimentos materiais e valores Aqui seraacute analisado apenas um componente prenhe de significados desse sistema o livro didaacutetico53

Segundo um estudioso da mateacuteria os autores de livros didaacuteticos de Histoacuteria em geral ndash grupo no qual ele mesmo estaacute incluiacutedo -ldquonatildeo tecircm por objetivo somente transpor a Histoacuteria acadecircmica eles identificam necessi-dades sociais estatildeo imersos na sociedade e portanto na proacutepria histoacuteria sobre a qual escrevemrdquo54 Tais livros satildeo assim documentos privilegiados de uma cultura de histoacuteria trazem conteuacutedos de acordo com padrotildees e paracircmetros de uma sociedade agrave qual servem sendo inclusive cada vez mais sensiacuteveis a impulsos de origem natildeo acadecircmica55 contam com a colaboraccedilatildeo ou autoria de historiadores profissionais56 que trabalham junto a editores assistentes revisores iconoacutegrafos diagramadores e designers graacuteficos57 satildeo consumidos preferencialmente por educadores e educandos mas chegam tambeacutem agraves famiacutelias destes e ao puacuteblico em geral tendem a permanecer por algum tempo disponiacuteveis em salas de aula residecircncias livrarias e bibliotecas e satildeo fortemente condicionados pelas exigecircncias de um grande mercado editorial cujas demandas capi-talistas natildeo satildeo menos evidentes do que as pedagoacutegicas O livro didaacutetico eacute o segundo suporte de leitura mais lido no Brasil sendo sua produccedilatildeo o mais lucrativo negoacutecio de uma induacutestria editorial brasileira que tem no governo federal seu maior cliente58 Essa produccedilatildeo dos livros didaacuteticos movimenta enormes cifras veicula paacuteginas e paacuteginas de conteuacutedos de Histoacuteria produzidos por e destinados a um amplo conjunto de agentes sociais e tecircm circulaccedilatildeo nacional59

A Independecircncia estaacute presente em todos os 21 livros destinados ao Ensino Meacutedio aqui considerados60 assim como estava em outros 12 de Ensino Fundamental contemplados por um estudo acadecircmico a respeito61 Nessa dupla frente abre-se uma possibilidade de anaacutelise valiosa jaacute que alguns livros circulam atualmente enquanto outros circularam agrave eacutepoca em que jovens adultos que hoje tecircm entre 22 e 26 anos eram crianccedilas entre 9 e 13 Unem-se assim duas temporalidades de tratamentos da Independecircn-cia que podem ser unificadas por uma cultura de histoacuteria

64Exemplo eacute a afirmaccedilatildeo de que ldquoem

reconhecimento agrave importacircncia da Batalha do Jenipapo como um episoacutedio fundamental no processo de independecircncia e de consolidaccedilatildeo do territoacuterio a data de 13 de marccedilo de 1823 foi estampada na bandeira do estado do Piauiacuterdquo DIAS Adriana GRINBERG Keila e PELLEGRINI Marco Op Cit p240

65Excelente demonstraccedilatildeo eacute dada por uma

proposta pedagoacutegica de um jogo didaacutetico elaborado pelo Laboratoacuterio de Ensino de Histoacuteria da Universidade Federal de Pelotas descrita em GASPAROTTO Alessandra ESPIacuteRITO SANTO Marco Viniacutecio do SILVA Eduarda Borges da Jogo didaacutetico vira-vira a metroacutepole vira colocircnia a colocircnia vira-metroacutepole Revista Latino-Americana de Histoacuteria v2 n6 agosto de 2013 (Ediccedilatildeo Especial) p648-661

66Os preferidos satildeo D Joatildeo Carlota Joaquina Joseacute

Bonifaacutecio e D Pedro

67Um exemplo apoacutes afirmar que ldquodurante anos a

historiografia oficial tentou idealizar o processo de independecircncia e seus autores explicado como um ato de heroiacutesmo contra a tirania e em defesa da liberdaderdquo uma das obras afirma em tom de contraposiccedilatildeo ldquoMas nas uacuteltimas deacutecadas novos estudos permitiram lanccedilar um novo olhar sobre esse periacuteodo Expressotildees dessa mudanccedila satildeo algumas produccedilotildees culturais recentes que tratam desse momento com uma visatildeo criacutetica e ateacute mesmo sarcaacutestica como por exemplo o romance O Chalaccedila (1999) de Joseacute Roberto Torerordquo Por fim propotildee como ldquoSugestatildeo de atividaderdquo supostamente para aguccedilar o senso criacutetico do aluno ldquocomparar o romance de Torero citado acima com a visatildeo oficial dos eventos fornecida pela ceacutelebre pintura Independecircncia ou morte (O Grito do Ipiranga) de Pedro Ameacuterico ou pelo filme Independecircncia ou morte (1972) de Carlos Coimbrardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p80-81) Aleacutem de ignorar os momentos objetivos e naturezas distintos das obras recomendadas tal atividade sugere a ultrapassagem de uma visatildeo ldquotradicionalrdquo da Independecircncia por outra ldquocriacuteticardquo ndash logo mais aceitaacutevel Assim o aluno eacute encorajado a conceber a histoacuteria por meio de sua livre-interpretaccedilatildeo mas sendo impelido a endossar a de um romance satiacuterico (logo voltaremos a ele)

68Em um livro para o Ensino Fundamental de

1996 lia-se que ldquopara a realizaccedilatildeo do nosso trabalho foi importante a participaccedilatildeo de Mariana Massarani artista que desenhou com alegria e bom humor os acontecimentos estudadosrdquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Do mundo indiacutegena ao periacuteodo regencial no Brasil Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1994 p1 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p79) Essa eacute uma tendecircncia antiga como nos mostra o poema de Murilo Mendes ldquoA pescariardquo (publicado em Histoacuteria do Brasil de 1932) evocativo da tatildeo ceacutelebre quanto historicamente irrelevante disenteria de D Pedro em 7 de setembro de 1822 e transcrito em outro didaacutetico ldquoFoi nas margens

19Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Natildeo haacute duacutevida que a maioria dos livros didaacuteticos de Histoacuteria voltados ao Ensino Meacutedio abre possibilidades de construccedilatildeo de um conhecimento acerca da Independecircncia multifacetado matizado criacutetico e criterioso e deles pode-se extrair muitos exemplos a revelarem diaacutelogos propositi-vos entre saberes acadecircmicos e didaacuteticos da Histoacuteria (afinal os proacuteprios autores e avaliadores dos livros estatildeo quase todos diretamente ligados ao meio acadecircmico) aliaacutes em comparaccedilatildeo com os de Ensino Fundamental de cerca de uma deacutecada atraacutes essas possibilidades soacute cresceram Poreacutem como natildeo eacute objetivo deste estudo analisar tais livros em si mesmos -somente deles extrair elementos que tipifiquem uma cultura de histoacuteria por meio da Independecircncia ndash mais relevantes parecem ser justamente alguns de seus pontos sensiacuteveis nos quais tais livros se fazem menos acadecircmicos e nos quais se traduzem de modo mais significativo componentes mais amplos da sociedade que lhes daacute sentido

Em todos esses livros a Independecircncia eacute invariavelmente vista como parte de um processo mais amplo no qual se incluem outros acontecimen-tos poliacuteticos americanos e europeus de finais do seacuteculo XVIII e comeccedilos do seacuteculo XIX (embora quase nunca sejam feitas conexotildees fundamentais entre eles deficiecircncia notaacutevel sobretudo no tocante agraves independecircncias da Ameacuterica espanhola vistas sempre como supostos contraexemplos da Independecircncia do Brasil62) O episoacutedico se faz presente na menccedilatildeo a vaacuterios temas menores ndash a vinda da Corte a abertura dos Portos o governo de D Joatildeo no Rio de Janeiro a Revoluccedilatildeo de Pernambuco a Revoluccedilatildeo do Porto etc ndash mas sempre em observacircncia a contextos histoacutericos espaciais e temporais mais amplos63 Destaque-se que 80 dos livros fazem referecircncia expliacutecita ao termo ldquoguerra(s) de independecircnciardquo64 o que enseja uma con-cepccedilatildeo tambeacutem multirregional do tema e vaacuterios o aprofundam O mesmo pode ser dito de perfis biograacuteficos presentes mas submetidos a uma loacutegica processual da Histoacuteria

Essa ecircnfase em processos em detrimento parcial de acontecimentos e personagens eacute importante indiacutecio de uma sintonia entre saberes aca-decircmicos e natildeo acadecircmicos65 Contudo deve-se relativizar o peso desse diaacutelogo jaacute no que tange ao tratamento dispensado agraves biografias aleacutem de pouco ou nada inovarem na escolha dos personagens destacados66 alguns livros didaacuteticos trazem fragmentos anedoacuteticos de tais trajetoacuterias hoje em dia pouco ou nada uacuteteis a historiadores profissionais (embora as comilan-ccedilas de D Joatildeo os amantes de D Carlota ou as noitadas de D Pedro natildeo os distingua de outros agentes histoacutericos de sua eacutepoca tampouco satildeo trata-dos como tiacutepicos67) Parece razoaacutevel argumentar que ao menos parcial-mente tal insistecircncia da parte do livro didaacutetico atende ao gosto do leitorconsumidor tornando tais suportes materiais mais agradaacuteveis e sedutores assim sendo constata-se justamente um limite no diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e saberes didaacuteticos expressos em tais livros bem como se anuncia uma tendecircncia de representaccedilatildeo humoriacutestica do passado em uma cultura de histoacuteria como a brasileira muito forte em outros suportes68 Eis um mercado ndash que no Brasil mescla dimensotildees editoriais e midiaacuteticas com outras educacionais e culturais mais amplas ndash impondo seus padrotildees de representaccedilatildeo do passado

Aleacutem de envolverem historiadores profissionais em sua produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo os livros didaacuteticos de Ensino Meacutedio parecem esforccedilar-se cada vez mais em trazer conteuacutedos extraiacutedos de obras acadecircmicas bem como apresentar ao leitor uma pluralidade de posiccedilotildees acerca de um determina-

do IpirangaEm meio a uma pescariaSentindo-se mal D PedroComera demais cuscuzDesaperta a braguilhaE grita roxo de raivaOu me livro desta coacutelicaOu morro logo de uma vezO priacutencipe se aliviouSai no caminho cantandoJaacute me sinto independenteSafa Vou de perto a morteVamos cair no fadinhoPra celebrar o sucessordquo MACEDO Joseacute Rivair Brasil ndash uma histoacuteria em construccedilatildeo Satildeo Paulo Brasil 1996 p166 Cit por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p101

69Tomemos por exemplo esta afirmaccedilatildeo ldquoDe acordo

com alguns historiadores as raiacutezes da independecircncia brasileira estatildeo na segunda metade do seacuteculo XVIII quando se multiplicaram atividades produtivas e comerciais na colocircnia sobretudo na regiatildeo Centro-Sulrdquo (MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Op Cit p113) Nela eacute possiacutevel reconhecer a presenccedila de influente e importante interpretaccedilatildeo acadecircmica acerca da Independecircncia do Brasil (DIAS Maria Odila A interiorizaccedilatildeo da metroacutepole (1808-1853) In MOTA Carlos Guilherme 1822 dimensotildees Satildeo Paulo Perspectiva 1972 p160-184) no entanto natildeo eacute apresentada qualquer contraposiccedilatildeo (se esta posiccedilatildeo eacute da parte de ldquoalguns historiadoresrdquo outra divergente deve ser da parte de outros) Mais adiante lecirc-se que ldquoo fato relevante foi que a transferecircncia da corte para o Brasil provocou uma inversatildeo histoacuterica de modo significativo e irreversiacutevel nas relaccedilotildees entre a metroacutepole portuguesa e a colocircnia brasileirardquo (Idem p114) Ora o que seria uma inversatildeo irreversiacutevel dessas relaccedilotildees Portugal teria se tornado para sempre colocircnia do Brasil

70Nos livros didaacuteticos de Ensino Fundamental

analisados por Purificaccedilatildeo jaacute eram abundantes as transcriccedilotildees de trechos de textos de historiadores profissionais sem que deles resultasse qualquer ensejo de pluralidade de pensamento ou de estiacutemulo agrave interpretaccedilatildeo

71VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA

Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p 103

72O capiacutetulo 14 de uma das obras intitulado

ldquoO processo de independecircncia da Ameacuterica portuguesardquo inicia-se com um excerto do Romanceiro da Inconfidecircncia de Ceciacutelia Meireles tambeacutem indutor a essa interpretaccedilatildeo ldquoAtraveacutes de grossas portas sentem-se luzes acesas e haacute indagaccedilotildees minuciosas dentro das casas fronteiras Que estatildeo fazendo tatildeo tarde Que escrevem conversam pensam Mostram livros proibidos Leem notiacutecias nas GazetasTeratildeo recebido cartasde potecircncias estrangeiras [] Oacute vitoacuterias festas flores das lutas da Independecircncia Liberdade ndash essa palavra que o sonho humano alimenta que natildeo haacute ningueacutem que explique e ningueacutem que natildeo entendardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p 202) Jaacute nas ldquosugestotildees de leitura e consulta para o professorrdquo de outra encontra-se indicaccedilatildeo de uma obra de J J Chiavenato - Inconfidecircncia mineira as vaacuterias faces Satildeo Paulo Global 2000 - com este comentaacuterio ldquoo autor mostra o movimento que buscava a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Adotando uma abordagem que parte da realidade socioeconocircmica do periacuteodo este livro releva diferentes aspectos desse momento singular da histoacuteria brasileirardquo (NOGUEIRA Fausto

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do toacutepico que seja decorrente de debates acadecircmicos No entanto ainda eacute frequente que tais conteuacutedos se inclinem agrave pura formalidade dificilmente explicitando divergecircncias oriundas da academia ou resultando em uma tomada de posiccedilatildeo realmente criacutetica perante a histoacuteria69 Ao usuaacuterio do livro eacute apresentada uma suposta pluralidade de pensamento natildeo como ferramenta de obtenccedilatildeo dessa pluralidade mas como estilo de composiccedilatildeo e padronizaccedilatildeo do material didaacutetico70

Esse tipo de atitude formalista pode ser encontrada tambeacutem em propostas de atividades dirigidas ao aluno como esta

A interpretaccedilatildeo sobre a independecircncia do Brasil provocou e ainda provoca muitas divergecircncias Sob o ponto de vista econocircmico alguns pesquisadores defendem que a separaccedilatildeo ocorreu de fato em 1808 [] Outros com interpretaccedilotildees mais poliacuteticas indicam o 7 de setembro de 1822 embora nenhuma medida formal tenha sido tomada nessa data ndash foi um ato simboacutelico Depois da Guerra do Paraguai jornais republicanos argumentavam que [] D Pedro havia atendido aos apelos de independecircncia dos brasileiros mas os teria traiacutedo quando fechou a Assembleia Constituinte em 1823 Enalteciam entatildeo a Inconfidecircncia Mineira (1789) a Revoluccedilatildeo Pernambucana (1817) e a Confederaccedilatildeo do Equador (1824) movimentos com teor republicano conforme as reais aspiraccedilotildees dos brasileiros

Satildeo vaacuterias interpretaccedilotildees que variam de acordo com a posiccedilatildeo poliacutetica ou momento histoacuterico dos autores Alguns intelectuais consideram ateacute mesmo que o Brasil hoje tem uma independecircncia mais nominal do que real pois continuaria dependente dos paiacuteses mais ricos

Em sua opiniatildeo quando o Brasil se tornou um paiacutes independente71

Aqui novamente eacute apresentada uma divergecircncia de interpretaccedilatildeo e vaacuterias satildeo as possibilidades de resposta agrave pergunta quando o Brasil se tornou um paiacutes independente No entanto todas as posiccedilotildees apresentadas parecem equivaler-se pois tudo depende da ldquoposiccedilatildeo poliacuteticardquo ou ldquodo mo-mento histoacutericordquo da pessoa disposta a respondecirc-la Assim e por induccedilatildeo a Inconfidecircncia Mineira poderia ser uma resposta aceitaacutevel conforme visatildeo ainda presente em alguns livros72 e a despeito do contraacuterio que historia-dores vecircm afirmando nas uacuteltimas deacutecadas Do mesmo modo a atividade pareceria aceitar a ldquonatildeo independecircncia de fatordquo ideia muito presente na cultura de histoacuteria no Brasil73 tatildeo sedutora quanto inconsistente do ponto de vista acadecircmico Para o aluno tratar-se-ia de uma questatildeo de simples opccedilatildeo (poliacutetica) diante da qual a Histoacuteria se destemporaliza

Uma Histoacuteria processual mais do que episoacutedica ou personalista uma Histoacuteria permeada de explicaccedilotildees acadecircmicas ao mesmo tempo uma Histoacuteria com limitaccedilotildees em termos de divergecircncias relativizaccedilotildees e possibilidades em aberto condicionada a suportes materiais repletos de convenccedilotildees a tornarem-nos muito parecidos entre si Talvez seja no tra-tamento dispensado a imagens que os livros didaacuteticos melhor revelam tais convenccedilotildees reforccedilando as limitaccedilotildees de seu diaacutelogo com a Histoacuteria acadecirc-mica bem como acentuando suas caracteriacutesticas de mercadoria Todos os livros aqui considerados satildeo carregados de itens especiacuteficos a quebrarem a continuidade do texto e suas paacuteginas satildeo multicoloridas e povoadas por fi-guras como obras de pintores dos seacuteculos XIX e XX74 Quase nunca poreacutem tais imagens satildeo analisadas como fontes histoacutericas confinadas agrave funccedilatildeo de mera ilustraccedilatildeo frequentemente modificadas em cor e tamanho ateacute mesmo mutiladas ndash sem esclarecimento ndash em prol da diagramaccedilatildeo75 Em tais casos inevitavelmente cria-se uma ideia natildeo de uma histoacuteria sujeita a muacuteltiplas interpretaccedilotildees (contrapondo-se portanto a vaacuterias das atividades

e CAPELLARI Marcos Op Cit p71) Em uma terceira obra logo na abertura de um capiacutetulo intitulado ldquoA independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo lecirc-se que ldquoos dias 21 de abril e 7 de setembro feriados nacionais nos fazem lembrar de dois momentos do processo histoacuterico que levou a independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo (COTRIM Gilberto Op Cit p223) A associaccedilatildeo direta entre Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia era mais comumente feita em livros didaacuteticos de deacutecadas atraacutes Um de Ensino Fundamental caracterizava a Revolta de Beckman a Guerra dos Emboabas a Revolta de Felipe dos Santos a Guerra dos Mascates e as conjuraccedilotildees Mineira e Baiana como movimentos nos quais ldquoos revoltosos se opuseram agrave metroacutepole sonhando e lutando pela autonomia do paiacutesrdquo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Nas trilhas da histoacuteria Ensino Fundamental Belo Horizonte Dimensatildeo 1999 v4) Citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p108

73FIGUEIRA Divalte G Op Cit p191 Nos de

Ensino Fundamental AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 CARMO Socircnia S do COUTO Eliane F B A A consolidaccedilatildeo do capitalismo e o Brasil impeacuterio Satildeo Paulo Atual 1997 (Histoacuteria Passado Presente 3) p105 FERREIRA Joseacute Roberto Histoacuteria Ediccedilatildeo Reformulada Satildeo Paulo FTD 1997 (7ordf seacuterie) p65 ALVES Kaacutetia Correia Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p 128 Citados por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p78 84-85 96 e 111

74Debret Rugendas Moreaux Feacutelix Taunay

Constantino Fontes Polliegravere Parreiras Benedito Calixto Delerive Martins Viana Oscar Pereira da Silva Georgina de Albuquerque e Aldemir Martins entre outros

75Isso jaacute era frequente haacute uma deacutecada com livros

de Ensino Fundamental como por exemplo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p126 e COTRIM Geraldo Op Cit p 112 conforme anaacutelise de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p113 e 123 Haacute que se dizer que livros didaacuteticos natildeo satildeo meio exclusivo para esse esvaziamento do valor documental da iconografia havendo na proacutepria publicaccedilatildeo acadecircmica problema semelhante como demonstra CAVENAGHI Airton Joseacute O atlas do impeacuterio do Brazil e as representaccedilotildees presentes no livro Projeto Histoacuteria v 41 2010 p 383-403

76Constataccedilatildeo semelhante agrave de PURIFICACcedilAtildeO Ana

Teresa da Op Cit para os didaacuteticos de Ensino Fundamental

77NOGUEIRA Fausto e CAPELLARI Marcos Op

Cit p255

78Para um deles ldquoo pintor Pedro Ameacuterico imaginou

a cena ocorrida agraves margens do riacho do Ipirangardquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 para outro um ceacutelebre quadro mostraria uma ldquocena de uma

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sessatildeo das cortes de Lisboa reconstituiacuteda pelo pintor Oscar Pereira da Silvardquo Cfr CARMO Socircnia do COUTO Eliane F B A Op Cit p 73 um terceiro propunha ao aluno a seguinte atividade ldquoobserve cuidadosamente as gravuras de Debret que aparecem no texto Descreva cada uma delas e compare as cenas nelas retratadas com as cenas de nossas ruas de hoje Haacute diferenccedila Em que sentidordquo Cfr GARCIA Leocircnidas F Estudos de histoacuteria sociedades contemporacircneas 2 ed rev Goiacircnia Editora da UFG 1996 Manual do Professor p 111 Todas as informaccedilotildees foram retiradas de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p81 88 e 137

79Conforme bem mostrado por Elias Saliba Cfr

SALIBA Elias Experiecircncias e representaccedilotildees sociais reflexotildees sobre o uso e o consumo das imagens Anais do II Encontro Perspectivas do Ensino de Histoacuteria Satildeo Paulo FEUSP 1996 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p119

80Produzida pela Secretaria de Ensino agrave

Distacircncia do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo em parceria com a TV Escola e a Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco com a companhia teatral Matildeo Molenga Parte 1 disponiacutevel em youtubecomwatchv=Z60eHBJ1xjY 18082 visualizaccedilotildees e 15 comentaacuterios parte 2 disponiacutevel em youtubecomwatchv=2QLkP2NDhMg 30100 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios (parte desse episoacutedio tambeacutem disponiacutevel em youtubecomwatchv=bAPUjP7l-lI 18398 visualizaccedilotildees e 16 comentaacuterios acesso em 13022014

81Como Clemente Pereira Gonccedilalves Ledo Cipriano

Barata Paes de Andrade e frei Caneca O fato de se tratar de uma produccedilatildeo pernambucana contribui para tanto

82Semelhante observaccedilatildeo pode ser feita a respeito

dos doze curtos episoacutedios da seacuterie D Joatildeo no Brasil inspirada em uma narrativa em quadrinhos da chegada da Corte ao Brasil seacuterie de animaccedilatildeo produzida pelo Canal Futura baseada no livro de histoacuteria em quadrinhos D Joatildeo Carioca a corte portuguesa chega ao Brasil (1808 - 1821) escrito pela historiadora Lilia Schwarcz e pelo desenhista Spacca (Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007) Novamente tem-se um material convincente afinado em muitos sentidos com um conhecimento acadecircmico mas que ao recorrer agrave saacutetira tambeacutem evoca estereoacutetipos convencionais como por exemplo os mesmos acima mencionados em referecircncia a priacutencipe e princesa Poder-se-ia atribuir tal convencionalismo dentre outros fatores ao de que a primazia da linguagem visual aqui opera duplamente isto eacute com os quadrinhos e tambeacutem com o programa televisivo criado a partir deles amplificando assim os efeitos decorrentes da saturaccedilatildeo visual da sociedade que daacute origem e significado a esse material Para todos os efeitos a imposiccedilatildeo de tais convenccedilotildees eacute forte ateacute mesmo conforme jaacute visto em materiais menos visuais que este Episoacutedio 01 youtubecomwatchv= 9f5RB1zcD5Eamplist=PLyP1ks9vaqhj2y6MmckU DyuXtWmHgPLe5ampindex=1 331 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio episoacutedio 02 youtubecomwatchv= w-BLqvhYPGkamplist=PL5837763F26AB1B87

oferecidas pelos proacuteprios livros) mas de uma histoacuteria imoacutevel a ser captada de modo instantacircneo uma histoacuteria verdadeira Aleacutem do mais confundem-se os diferentes contextos motivaccedilotildees e condiccedilotildees de produccedilatildeo de tais imagens o que equivale agrave oferta de uma confusatildeo temporal que impossibi-lita a compreensatildeo dessa histoacuteria76

As uacutenicas exceccedilotildees satildeo os ceacutelebres quadros de Moreaux e de Pe-dro Ameacuterico Todos os livros didaacuteticos aqui considerados se esforccedilam por submetecirc-los a uma criacutetica muitas vezes comparativa considerando forma conteuacutedo e contexto mesmo assim eacute possiacutevel encontrar afirmaccedilotildees como a de que Ameacuterico teria tido ldquoo intuito de fazer a representaccedilatildeo desse famoso acontecimento da maneira mais fiel possiacutevelrdquo e que ldquomuitos dos elementos representados pelo pintor satildeo sabidamente falsosrdquo77 Provavel-mente satildeo resquiacutecios de um momento anterior no qual os livros didaacuteticos mostravam-se muito menos cuidadosos ateacute mesmo na utilizaccedilatildeo do quadro de Ameacuterico78 mas tambeacutem marcas atuais de uma sociedade de haacutebitos fortemente visuais cuja saturaccedilatildeo de imagens tende a resultar em posturas pouco criacuteticas em relaccedilatildeo ao que se vecirc bem como em indistinccedilatildeo tempo-ral das mesmas79 Haacute que se lembrar por fim e novamente que os textos desses livros satildeo cheios de descontinuidades como se cada pedaccedilo de cada paacutegina tivesse autonomia prescindindo de certo modo da leitura dos demais Guardaratildeo tais constataccedilotildees alguma relaccedilatildeo com as dificuldades apresentadas pelos entrevistados na sondagem de opiniatildeo de organizar visotildees da Histoacuteria da Independecircncia segundo marcos cronoloacutegicos bem como de distinguir diferenccedilas entre intervalos temporais Eacute bem possiacutevel sobretudo porque ela seraacute endossada pela observaccedilatildeo de outras fontes

5 - A Independecircncia na internet e na tevecircExiste farto e rico material audiovisual disponiacutevel na internet com referecircncias agrave Independecircncia do Brasil e que a exemplo dos livros didaacuteticos represen-tam a convergecircncia de esforccedilos profissionais muacuteltiplos (mais os programas de tevecirc do que os viacutedeos independentes) como pesquisadores roteiristas apresentadores repoacuterteres cenoacutegrafos teacutecnicos variados etc As fontes aqui delimitadas perfazem 107 viacutedeos acessiacuteveis no YouTube e que natildeo obstante sua ampliacutessima diversidade convergem em muitos significados

Observe-se o caso de viacutedeos educativos documentaacuterios e programas de televisatildeo com entrevistas e debates que em comum apresentam objetivos formativos e esforccedilos verdadeiros de incorporaccedilatildeo de conteuacutedos acadecircmicos traduzidos em linguagens didaacuteticas Um caso exemplar eacute a seacuterie 500 anos o Brasil - Impeacuterio na TV que conta uma histoacuteria do Brasil da chegada da Corte ao periacuteodo das regecircncias em formato de telejornal com trama romanceada e teatro de bonecos80 Aqui vecirc-se uma Histoacuteria processual com informa-ccedilotildees corretas e amparadas em datas deslocamentos frequentes dos eixos espaciais de observaccedilatildeo (regional internacional) com menccedilatildeo a persona-gens que extrapolam o tradicional ciacuterculo da Corte portuguesa81 e ecircnfase no caraacuteter violento e conflitivo da formaccedilatildeo do Brasil no seacuteculo XIX Mesmo um material histoacuterico-pedagoacutegico desse quilate evoca por exemplo a falta de atributos esteacuteticos de Carlota Joaquina ou a pusilanimidade de seu marido a revelarem mais uma vez o mercadologicamente eficiente componente bio-graacutefico-anedoacutetico no tratamento da Independecircncia advindo de sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria mais ampla82

Em outros casos o fato de programas de televisatildeo buscarem o auxiacutelio de especialistas na Independecircncia revela uma convenccedilatildeo formal como nos

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16566 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios episoacutedio 03 youtubecomwatchv=QvWSE-sF-w4amplist =PL5837763F26AB1B87 18406 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios episoacutedio 04 youtubecomwatchv= 2N5wBvpgyXEamplist=PL5837763F26AB1B87 12808 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 05 youtubecomwatchv=VaHrSAFBf1Uamplist =PL5837763F26AB1B87 14615 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 06 youtubecomwatchv= 8RrCMbOZTsAamplist=PL5837763F26AB1B87 12649 visualizaccedilotildees 10 comentaacuterios episoacutedio 07 youtubecomwatchv=I4cgWo_GHaQ 601 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 08 youtubecomwatchv=rI71YNrLo7o 12299 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 09 youtubecomwatchv=huv2ngnqUd4 367 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios episoacutedio 10 youtubecomwatchv=F2MaLs_kj-w 10842 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios episoacutedio 11 youtubecomwatchv=8zK3D01dXc0 9388 visualizaccedilotildees 05 comentaacuterios episoacutedio 12 youtubecomwatchv=R76BHD--vB8amplist=PL5837763F26AB1B87 12108 visualizaccedilotildees 9 comentaacuterios acessos em 03042014

83NAPOLITANO Marcos A Histoacuteria depois do

papel In Carla Pinsky (org) Fontes Histoacutericas Satildeo Paulo Contexto 2005 p250-252 Napolitano afirma com base em Umberto Eco que a televisatildeo introduziu uma mudanccedila de ritmo de vida familiar e cotidiana bem como o que se pode chamar de hipertrofia sensorial em detrimento da assimilaccedilatildeo conceitual Destaca ainda que eacute preciso pensar a televisatildeo como uma nova experiecircncia social do tempo histoacuterico na medida em que ela faz coincidir o verdadeiro o imaginaacuterio e o real no ponto indivisiacutevel do presente

84Produzida pela rede de emissoras puacuteblicas

TV Brasil Sobre a Revolta dos Alfaiates parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo 767 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=dj04LJJM8bk 2592 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio Sobre a Batalha do Jenipapo parte 1 youtubecomwatchv=zlgsZcj-V3o 2426 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios acesso em 24032013 parte 2 youtubecomwatchv=rAS3dHAvWPQ 1283 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio Sobre Tiradentes youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 408 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013)

85Marco Morel e Luiacutes Henrique Dias Tavares

86Programa De laacute pra caacute Revolta dos Alfaiates

parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo

87Exceccedilatildeo satildeo as entrevistas realizadas por

Mocircnica Teixeira na UnivespTV que estabelecem comunicaccedilatildeo bastante profiacutecua entre a entrevistadora e os acadecircmicos entrevistados (youtubecomwatchv=syXf3WHQRPM 4450 visualizaccedilotildees 06 comentaacuterios youtubecomwatchv=pZk5pFlboqw 3303 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=5pUDP2KUYCY 4128 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios

livros didaacuteticos e a exemplo destes a intenccedilatildeo de acolher uma multipli-cidade de vozes raramente enseja verdadeira pluralidade de pensamento o que ademais eacute dificultado pela natureza curta sinteacutetica e acelerada dos materiais televisivos Nessas situaccedilotildees constata-se que o historiador fala uma coisa mas o entrevistador e o produtor continuam a ldquoescutarrdquo outra o que muitas vezes reforccedila a percepccedilatildeo de descontinuidade narrativa an-teriormente tambeacutem diagnosticada nos livros didaacuteticos e que na televisatildeo adquire contornos de regra83 Os episoacutedios da seacuterie De laacute para caacute educati-vos didaacuteticos aacutevidos por com conhecimentos acadecircmicos e produzidos por uma rede puacuteblica de televisatildeo sem fins lucrativos apresentam interessante exemplo84 No programa dedicado aos acontecimentos de 1798 na Bahia dois historiadores profissionais85 esclarecem que os revoltosos ldquobahien-sesrdquo almejavam a independecircncia apenas da capitania da Bahia o que tem enormes implicaccedilotildees a destituiacuterem tais acontecimentos de qualquer atribu-to supostamente preparatoacuterio da Independecircncia do Brasil (situaccedilatildeo muito semelhante conforme vimos agrave da Inconfidecircncia Mineira) natildeo obstante na abertura do programa seu apresentador declara

A luta pela independecircncia do Brasil foi escrita nas paacuteginas memoraacuteveis da nossa histoacuteria com o sangue de um punhado de brasileiros O mais celebrado foi Tiradentes Mas sete anos depois do martiacuterio de Tiradentes quatro brasileiros pretos pobres pelos mesmos ideais foram enforcados e sentenciados em Salvador86

Em outros momentos o apresentador apesar de ouvir de forma soliacutecita e atenta ao que o entrevistado tem a dizer acaba por negar com sua proacutepria fala parte do conteuacutedo receacutem-ouvido mas sem demonstrar ser essa atitude premeditada ou consciente Afinal eacute difiacutecil desvencilhar-se daquilo que jaacute se ldquosaberdquo daquilo que adveacutem de um ambiente que o tempo todo nos ldquoensinardquo Histoacuteria sem necessariamente disso nos darmos conta87

A incapacidade de assimilaccedilatildeo reciacuteproca de ideias acerca da histoacute-ria entre agentes sociais diversos pode revelar-se de muitos modos Um dos programas da seacuterie Caminhos da Reportagem intitulado Caminhos da Independecircncia o grito nas ruas produzido com as mesmas caracteriacutesticas do anterior aborda a Independecircncia focada em seus panfletos poliacuteticos a partir da pesquisa recente de trecircs historiadores profissionais88 No entan-to e a despeito natildeo soacute de dar ampla voz a eles mas tambeacutem de abordar conteuacutedos didaticamente inovadores a equipe de entrevista que foi agraves ruas natildeo estabeleceu qualquer mediaccedilatildeo entre histoacuterias acadecircmicas e natildeo acadecircmicas pressupondo que todas as pessoas ocupam uma mesma posiccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria Por isso perguntas incompreensiacuteveis89 resultam apenas em situaccedilotildees vexatoacuterias impeditivas da construccedilatildeo de conhecimento sobre o tema

A abordagem de pessoas nas ruas recurso frequentemente utiliza-do por programas televisivos revela dados importantes acerca de como os brasileiros veem a Independecircncia muitas vezes mais por aquilo que eacute perguntado do que por aquilo que eacute respondido90 O programa + Estilo de 07 de setembro de 2011 produzido pela TV Campo Grande com conteuacutedo de variedades destinado a telespectadores de meio de tarde foi agraves ruas (provavelmente de Campo Grande Mato Grosso do Sul) perguntar se as pessoas saberiam dizer o que se comemorava naquele dia Primeiro res-ponde uma jovem com um bebecirc no colo

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youtubecomwatchv=0ZVgCwkt1ms 1384 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1016 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1227 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=ANSHAFLau04 1175 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios) Acessos em 21042014

88Joseacute Murilo de Carvalho Luacutecia Pereira das Neves

e Marcello Basile

89A apresentadora ldquoVocecircs sabem o que significa

corcundardquo Um professor de coleacutegio ldquoDeve ser alguma coisa que estaacute surgindo aiacute no mundo um pouco mais ciberneacutetico porque eu nem na faculdade ouvi falar dos corcundasrdquo Marcos Tomazzeti produtor multimiacutedia ldquoNa minha cabeccedila vem algo de monarquia de rei algo meio poliacuteticordquo Simone Granda bancaacuteria ldquoDicionaacuterio de corcundice Natildeo seirdquo Marilu Guimaratildees dona de casa ldquoPuxa tem tanta coisa importante pra ter dicionaacuterio vai ter justo do corcundistardquo Caminhos da Independecircncia youtubecomwatchv=37XH5UEpjlI acesso em 24032013

90Em perspectiva oposta mas complementar agrave da

sondagem de opiniatildeo aqui utilizada

91E que portanto muito provavelmente ainda natildeo

tinha tido contato formal (escolar) com o tema

92O programa prossegue entatildeo com uma entrevista

com o professor Ian Rari que trata de uma Histoacuteria da Independecircncia processual natildeo centrada em uma uacutenica data ou fato criacutetica etc Mais um momento onde as vaacuterias vozes contempladas pelo programa natildeo dialogam entre si (youtubecomwatchv=xv1LOlwUfFQ 289 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio) Outro exemplo significativo eacute dado pelo programa Conexatildeo Jovem exibido em 06 de setembro de 2012 no qual dois entrevistados ndash Prof Bira professor de Histoacuteria e Marcos Eduardo socioacutelogo ndash utilizam com competecircncia o pouco tempo a eles destinado discorrendo de modo criacutetico sobre a Independecircncia e em linguagem adequada ao puacuteblico jovem ao qual o programa se destina (produccedilatildeo da TV Novo Tempo adventista parte 1 youtubecomwatchv=1IvYOYtju9sgt 74 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=Ofv7QWOJpHo 47 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013) Logo o programa traz uma abordagem feita na rua na qual a entrevistadora pergunta a uma jovem ldquoQuem falou lsquoindependecircncia ou mortersquo agraves margens do riacho do Ipirangardquo Diante da correta resposta a entrevistadora tenta induzir um erro ldquo15 de novembro ou 7 de setembrordquo Aliaacutes a expectativa do programa parece revelada pela entrevistadora logo na primeira pergunta feita a um dos convidados ldquoseraacute que os jovens se interessam pela histoacuteria de seu paiacutesrdquo E embora o material recolhido pelo proacuteprio programa permita resposta afirmativa manteacutem-se a postura negativa preacute-concebida

93Daiacute a relevacircncia de um viacutedeo com fotografias e

um aacuteudio (youtubecomwatchv=UdQ_aAAl3DE)

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoE isso em que ano que foi que aconteceurdquoResposta ldquo1822rdquo

Em seguida outro jovem que provavelmente jaacute tinha respondido a outra pergunta

Pergunta ldquoQuem foi o imperador vocecirc lembrardquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoAcertou Canta pra gente um trecho do hino da independecircnciardquoResposta ldquoAgora natildeo lembrordquo

Agora o programa aborda uma menina de cerca de dez anos clara-mente intimada91

Pergunta Por que eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoNatildeo seirdquoPergunta ldquoNatildeo lembra Vou dar uma dica um fato histoacuterico muito importante para o BrasilrdquoResposta (negativa com a cabeccedila)

Em quarto lugar outra jovem que procura se afastar da cacircmera

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta (ainda tentando se esquivar sorrindo) ldquoNatildeordquoPergunta ldquoNatildeo saberdquoResposta ldquoAh A Independecircncia Eu natildeo prestei atenccedilatildeordquoPergunta Que ano aconteceu a Independecircncia vocecirc lembrardquoResposta ldquoNatildeordquoPergunta ldquoE quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoTambeacutem natildeo lembrordquo

Por fim a entrevista com um senhor de meia-idade comeccedila jaacute com uma resposta

Resposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoQue ano aconteceu issordquoResposta ldquo1888rdquoPergunta ldquo1822 Quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoCerto E onde foi que aconteceu tudo issordquoResposta ldquoSatildeo PaulordquoPergunta ldquoOK [breve silecircncio] Canta um trechinho para noacutes do hino da IndependecircnciardquoResposta ldquoJaacute podeis da paacutetria matildeerdquo [sic -prossegue cantando corretamente]

Em seguida o programa corta para uma sala de aula onde a despeito dos ldquoacertosrdquo obtidos nas ruas a entrevistadora afirma

Diante da dificuldade que noacutes encontramos no centro da cidade para saber informaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil eu vim parar na sala de aula Vai ser aqui que a gente vai descobrir a histoacuteria do paiacutes92

A ideia a priori de que o brasileiro natildeo conhece e natildeo se interessa pela histoacuteria subsidia este e muitos outros programas Aqui o dado mais relevante parece estar precisamente nessa arraigada crenccedila no desinteres-

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da entatildeo prefeita de Ribeiratildeo Preto (Satildeo Paulo) Darcy Vera que afirma durante um desfile de 7 de Setembro dentre vaacuterios desvarios que ldquoTiradentes gritou lsquoIndependecircncia ou mortersquordquo Com 169919 acessos e 149 comentaacuterios (em geral criacuteticos bem humorados e depreciativos) ateacute 20082014 condensa a possibilidade de amplificaccedilatildeo do estigma do natildeo domiacutenio de referecircncias convencionais agrave Independecircncia mas sem fomentar nenhum conhecimento da mesma

94Novamente surge a questatildeo natildeo teratildeo as

renovaccedilotildees curriculares promovidas no ensino de Histoacuteria (no Brasil e alhures) das uacuteltimas deacutecadas exagerado nessa incompatibilidade Teratildeo elas sido capazes de mensurar seus efeitos deleteacuterios diante de sociedades jaacute bastante refrataacuterias a uma histoacuteria cronoloacutegica

95ldquoPouco importa que sua figura tenha sido

mitificada pela propaganda republicana O que importa eacute que ele foi um heroacutei Ele deu sua vida pela paacutetria e pela liberdaderdquo (Programa De laacute pra caacute youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032013) Essa exaltaccedilatildeo da figura de Tiradentes associada agrave Independecircncia conduz o discurso da propaganda eleitoral de um candidato agrave prefeitura de Ouro Preto em 2012 (youtubecomwatchv=eGefgLoRhec 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032014) Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo no dia 09 de setembro de 2013 apoacutes se autocaracterizar como realizador de uma ldquohistoacuteria de carne e ossordquo em contraposiccedilatildeo a produccedilotildees ldquocontaminadas pela anaacutelise marxistardquo que retirariam os personagens da Histoacuteria o jornalista Laurentino Gomes afirma ldquoNo 1822 faccedilo uma comparaccedilatildeo e digo que o uacutenico problema do Joseacute Bonifaacutecio foi nascer no Brasil pois se ele tivesse nascido nos Estados Unidos teria sido maior que o Thomas Jefferson Porque aparentemente ele era mais preparado mais luacutecido que o Thomas Jeffersonrdquo (parte 1 youtubecomwatchv=uGibbLxsZK0 4501 visualizaccedilotildees e 5 comentaacuterios parte 2 youtubecomwatchv=2LQcEcb5kLU 2302 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios acesso em 26032014 Logo voltaremos agrave obra e agraves ideias de L Gomes

96Um exemplo adveacutem do viacutedeo ldquoA verdadeira

independecircncia do Brasilrdquo em que um pastor evangeacutelico em meio a uma cerimocircnia religiosa ldquodesconstroacuteirdquo o quadro de Pedro Ameacuterico acusando-o de pouco verossiacutemil e aponta os desvios morais de D Pedro I de modo a inviabilizaacute-lo como figura histoacuterica digna de memoacuteria (youtubecomwatchv=RsKQr6bgzLA 178 visualizaccedilotildees e 2 comentaacuterios acesso em 24032014) A suposta irrelevacircncia dos personagens envolvidos no processo da independecircncia eacute notaacutevel na fala de um professor de Ensino Meacutedio (youtubecomwatchv=gvWVF9j2KEU 597 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) e de um apresentador de temas religiosos que relativizam a importacircncia do tema ao afirmarem a atual ldquodependecircncia econocircmicardquo do Brasil (youtubecomwatchv=EXyUBY7StF4 383 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Tambeacutem retornaremos a esse tema

sedesconhecimento do brasileiro pela histoacuteria bem como em um de seus efeitos mais contundentes a crenccedila de que eacute possiacutevel reverter tal situaccedilatildeo pela simples mobilizaccedilatildeo formal de datas nomes e eventos Contudo se a Independecircncia se converte em uma catalizadora de referecircncias cronoloacute-gicas ou nominais isso natildeo leva necessariamente a uma historicizaccedilatildeo do tema pelo contraacuterio a mobilizaccedilatildeo de tais referecircncias em termos como os acima mencionados (a data ou o nome por si soacutes) pode resultar no apro-fundamento da tendecircncia agrave confusatildeo temporal jaacute aqui apontada93

Nos meios intelectuais a discussatildeo em torno das formas tempo-rais de vivecircncia coletiva naquilo que se pode chamar ndash recorrendo-se a uma categoria uacutetil ndash de modernidade natildeo eacute nova tampouco estaacute em vias de esgotamento A dificuldade de organizaccedilatildeo do mundo social segundo referecircncias cronoloacutegicas natildeo seraacute em absoluto distintiva de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil embora o contraacuterio deva ser dito em relaccedilatildeo agraves formas assumidas por tais dificuldades (como as noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia) Percebe-se entatildeo o peso do estigma da dificuldade em manejar datas nomes e fatos suposta prova de um desin-teresseignoracircncia que poderia ser combatido com um retorno a velhas formas de se fazer Histoacuteria e nas quais tais elementos eram considera-dos com a essecircncia da compreensatildeo histoacuterica Natildeo parece que as coisas devam propriamente se passar segundo essa representaccedilatildeo embora um dos confrontos existentes na cultura de histoacuteria no Brasil seja sem duacutevida a polarizaccedilatildeo entre a valorizaccedilatildeo da Independecircncia (= de suas datas nomes eventos siacutembolos e supostos valores etc) e a desvalorizaccedilatildeo da mesma (=seu caraacuteter elitista e negociador a diminuiccedilatildeo da histoacuteria do Brasil em comparaccedilatildeo com a de outros paiacuteses a comicidade dessa histoacuteria etc) Eacute plausiacutevel conceber que esta segunda posiccedilatildeo encontre um aliado na con-cepccedilatildeo de incompatibilidade entre uma histoacuteria amparada por referecircncias cronoloacutegicas e ao mesmo tempo em processos estruturas e temas trans-versais do gosto inclusive de muitos acadecircmicos e educadores94

Os exemplos de materiais audiovisuais a traduzirem veicularem e fomentarem esse confronto entre valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo da Inde-pendecircncia satildeo muitos Aleacutem dos jaacute tratados ateacute aqui pode-se mencionar viacutedeos contendo propaganda de instituiccedilotildees puacuteblicas civis e militares de partidos poliacuteticos de grupos maccedilocircnicos de igrejas e de empresas variadas bem como produccedilotildees independentes Neles eacute possiacutevel encontrar desde a exaltaccedilatildeo das referecircncias mais convencionais agrave Independecircncia como a seus personagens (incluindo seu suposto maacutertir Tiradentes)95 ateacute a afirma-ccedilatildeo de sua total irrelevacircncia96 isso costuma ocorrer sem muitos matizes obedecendo a uma loacutegica dicotocircmica plasmada em linguagens simples com descontinuidades discursivas e imageacuteticas e num ritmo de exposiccedilatildeo acelerado Em suma tratam da Independecircncia segundo padrotildees parcial-mente compartilhados tambeacutem por outras fontes ateacute aqui analisadas

Todas essas fontes com suas noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia satildeo sintomaacuteticas de estados de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema bem como potenciais formadores de opiniatildeo dos mesmos Sua capacidade de criaccedilatildeo de conhecimento no entanto se mostra muito limi-tada Eacute bem verdade que esta eacute por vocaccedilatildeo uma tarefa confiada a saberes acadecircmicos ndash jaacute que no Brasil a quase totalidade da pesquisa em Histoacuteria estaacute entregue agraves universidades salvo a de interesse corporativo ndash de modo que natildeo seria de esperar inovaccedilatildeo em suportes tatildeo variados e socialmen-te diversificados quanto os ateacute aqui analisados Mas parece haver aiacute certo

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ciacuterculo vicioso a envolver tambeacutem parte da academia Basta observar que a ideia da ldquonatildeo Independecircncia de fatordquo tatildeo em voga entre tantos historiadores durante tanto tempo reverbera com forccedila na sociedade em geral97 e ainda goza de prestiacutegio ateacute mesmo entre alguns acadecircmicos que bebem-na da sociedade e apoacutes modificaacute-la parcialmente devolvem-na aos espaccedilos de di-vulgaccedilatildeo98 Essa versatildeo da Histoacuteria eacute capaz de transpor fronteiras temporais de atualizar-se em diferentes contextos e ateacute mesmo de superar abissais diferenccedilas poliacuteticas ela estaacute representada por exemplo e de modo quase idecircntico na propaganda poliacutetica de um partido trotskista e na pregaccedilatildeo nacionalista-direitista de um polecircmico professor de histoacuteria99

Por fim tome-se o caso de trecircs produccedilotildees da Rede Globo de Televi-satildeo voltadas ao puacuteblico em geral com consideraacuteveis aportes financeiros e complexa produccedilatildeo a seacuterie documental A Corte no Brasil para exibiccedilatildeo em tevecirc fechada100 e as seacuteries humoriacutesticas O Quinto dos Infernos101 e Eacute muita Histoacuteria Dia de Fuacuteria102 veiculadas amplamente em tevecirc aberta No pri-meiro caso siacutetios histoacutericos visitados pelas apresentadoras uma narrativa soacutebria e informativa de fatos e processos grande quantidade de entrevistas com historiadores ecircnfase em diferentes espaccedilos regionais e internacio-nais e tratamento do tema em muacuteltiplas dimensotildees (poliacutetica econocircmica cultural) No segundo caso uma narrativa romanceada teatral e cocircmica fortemente despolitizada e livremente baseada em trecircs livros de igual teor (um deles publicado haacute quase um seacuteculo)103 praticamente centrada no Rio de Janeiro (um pouco tambeacutem em Portugal muito menos alhures) e nos membros da famiacutelia real portuguesa cuja vida pessoal eacute estruturada em torno de seus haacutebitos excecircntricos (principalmente os sexuais) e vez ou outra de passageiros dramas pessoais104

Finalmente no terceiro caso uma encenaccedilatildeo tambeacutem cocircmica pro-tagonizada por um escritor-autor-ator-palhaccedilo com grande liberdade de criaccedilatildeo mas amparada em informaccedilotildees convenccedilotildees e mitos a oferecer uma versatildeo do Sete de Setembro segundo o estado psico-fisioloacutegico de D Pedro

Eis um exemplo de uma das modalidades assumidas pela disputa em torno de uma Independecircncia valorizada e outra depreciada Pareceria justificaacutevel opor a tal diagnoacutestico a constataccedilatildeo de se tratarem de obras televisivas de distinto teor o que desobriga a segunda e a terceira de qual-quer compromisso com a verdade No entanto interessam-nos mais seus significados e efeitos do que intenccedilotildees Note-se que a primeira documen-tal eacute de circulaccedilatildeo mais restrita que a segunda e a terceira voltadas para grande puacuteblico por isso seus efeitos nesse jogo de criaccedilatildeorecriaccedilatildeo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da Independecircncia satildeo natildeo apenas assimeacutetricos mas tambeacutem concorrentes105 Os esforccedilos de um pro-grama por posicionar o espectador diante de uma histoacuteria processual de encadeamentos temporais e de grupos e conflitos sociais satildeo naturalmente obstados pelos dos outros dois a oferecer uma histoacuteria repleta de anacro-nismos anedoacutetica e biograacutefica em perfeita sintonia com demandas mais amplas de uma sociedade ndash e de alguns de seus componentes mercadoloacutegi-cos jaacute aqui mencionados ndash na qual a vida privada eacute mais valorizada do que a puacuteblica106 Nesse confronto embora as trecircs convivam na mesma cultura de histoacuteria uma Independecircncia tende a prevalecer sobre a outra107

6 ndash A Independecircncia no cinemaEm relaccedilatildeo a livros didaacuteticos programas de televisatildeo e outros materiais audiovisuais as fontes cinematograacuteficas aqui consideradas naturalmente

97Exemplo encontra-se no viacutedeo ldquoAway Nilzer ndash

Independecircncia do Brasilrdquo com grande nuacutemero de visualizaccedilotildees (130677) e de comentaacuterios (1016) que minimiza e ridiculariza natildeo apenas o processo da independecircncia como quaisquer fatos histoacutericos brasileiros de maneira geral (youtubecomwatchv=Vd_kloNeQV0) O Brasil atual como viacutetima de uma exploraccedilatildeo econocircmica mais intensa do que nos tempos coloniais e portanto natildeo-independente aparece na fala de outro professor (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2806 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) e nos comentaacuterios de um boneco marionete de um programa infantil (youtubecomwatchv=9mh3Tu6c4_w 173 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032014)

98Exemplo desse processo de ldquodevoluccedilatildeordquo pode ser

comprovado no viacutedeo ldquoIndependecircncia ou morterdquo (youtubecomwatchv=QUvnz1no1m8 934 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Outros dois exemplos pertinentes satildeo a insistecircncia nas ideias de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil e que a Independecircncia foi uma luta entre brasileiros e portugueses

99Em entrevista a uma rede local de televisatildeo

ouvimos do professor de histoacuteria do Ensino Meacutedio Wander Pugliesi ldquoSe noacutes formos trabalhar com sinceridade o Brasil ainda natildeo eacute independente Na verdade somos muito mais explorados do que quando eacuteramos colocircnia de Portugalrdquo (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2815 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) A mesma relativizaccedilatildeo do processo de independecircncia aparece na fala do candidato agrave presidecircncia em 2010 pelo PSTU Zeacute Maria ldquohoje infelizmente natildeo podemos comemorar uma verdadeira independecircncia do paiacutes Eacute preciso dizer a verdade as multinacionais controlam a economia brasileira As decisotildees fundamentais satildeo tomadas por elas fora do paiacutesrdquo (youtubecomwatchv=ht9Yt0PlGnU 1803 visualizaccedilotildees um comentaacuterio) Acessos em 26032013

100Direccedilatildeo de Carlos Henrique Schroder 2008

Produccedilatildeo de 16 episoacutedios de cerca de 20 minutos cada para o canal da TV fechada GloboNews A seacuterie foi comercializada em DVD e pode ser vista tambeacutem no canal Globosat no Youtube (youtubecomwatchfeature= player_detailpageampv= OUX-zSyaMIc e viacutedeos relacionados Acesso em 27032014)

101Direccedilatildeo de Wolf Maya e Alexandre Avancini e

criaccedilatildeo de Carlos Lombardi 2002 Produccedilatildeo de 48 episoacutedios com cerca de 40 minutos cada para o canal da TV aberta Rede Globo de Televisatildeo A minisseacuterie tambeacutem foi comercializada em DVD e vem sendo (desde janeiro de 2014) reprisada no Canal Viva (rede fechada de televisatildeo filiada Globosat) uma reprise anterior ocorreu de agosto a novembro de 2011 sempre por volta das 23h

102Direccedilatildeo de Joatildeo Carrascosa e Pedro Bial 2007

Produccedilatildeo de 9 capiacutetulos de cerca de 15 minutos

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apresentam especificidades Tendem a diversificar (eventualmente ampliar) o rol de profissionais envolvidos em sua produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo bem como a tratar conteuacutedos em um tempo mais lento criando uma sensaccedilatildeo de homogeneidade de significados reforccedilada pela aderecircncia de tais conteuacutedos a uma trama central Tal homogeneidade por seu turno eacute relativizada por uma liberdade de criaccedilatildeo que dificilmente encontra paralelo em outros dos materiais aqui considerados ndash com a possiacutevel exceccedilatildeo da minisseacuterie O Quinto dos Infernos No entanto quando a comparaccedilatildeo eacute feita com os li-vros didaacuteticos os conteuacutedos relativos agrave Independecircncia no cinema tendem a ser menos numerosos mais superficiais e efecircmeros justamente por serem menos assumidamente informativos do que os dos livros embora isso possa encontrar alguma compensaccedilatildeo em uma linguagem visual de forte apelo emotivo Para todos os efeitos como aponta um estudioso da mateacuteria os filmes de temaacutetica histoacuterica carregam sempre certa ambiguidade ocupam uma espeacutecie de ldquoentrelugarrdquo com forccedila para criar ldquoverdadesrdquo socialmente aceitas108 Nos cinco filmes aqui considerados109 as ldquoverdadesrdquo sobre a Independecircncia tendem a replicar linhas de forccedila jaacute conhecidas mesclando temporalidades correspondentes tanto aos momentos em que foram pro-duzidos quanto aos momentos posteriores em que foram sendo exibidos110

Independecircncia ou Morte produccedilatildeo a serviccedilo das comemoraccedilotildees oficiais do sesquicentenaacuterio da Independecircncia levadas a cabo pelo go-verno ditatorial brasileiro em 1972 mostra uma narrativa de forte teor didaacutetico-pedagoacutegico sem grandes pretensotildees artiacutesticas expliacutecitas111 com diaacutelogos e situaccedilotildees muitas vezes retirados de obras sobre a Independecircncia e tratados de forma literal Sua finalidade eacute clara ldquoensinarrdquo aos especta-dores uma histoacuteria e uma memoacuteria coletivas homogecircneas aplainadas de pluralidades ou de desavenccedilas Uma histoacuteria supostamente indiscutiacutevel porque verdadeira posta a serviccedilo dos tambeacutem supostos interesses mais elevados da naccedilatildeo brasileira (por isso nela a vida privada dos persona-gens eacute toda submetida agrave sua funccedilatildeo poliacutetica inclusive no caso da relaccedilatildeo afetiva entre um D Pedro de boa aparecircncia querido do povo e mulherengo e uma ambiciosa romacircntica e sensiacutevel Domitila112) Uma espeacutecie de cartilha oficial da Independecircncia em imagens na qual se faz presente ateacute mesmo uma recomposiccedilatildeo cecircnica do quadro de Pedro Ameacuterico

Eacute interessante observar como Os Inconfidentes produzido no mesmo ano de 1972 mesmo sendo um filme amparado em abundantes liberdades e experimentos esteacuteticos cheio de ambiguidades propositais e contra-pondo-se ao oficialismo histoacuterico tatildeo em voga agrave eacutepoca por meio de uma metaacutefora na qual os contestadores agrave ditadura brasileira se convertem em sediciosos das Minas Gerais do seacuteculo XVIII natildeo se configura como mate-rial singular e discrepante de Independecircncia ou Morte em pelo menos trecircs sentidos primeiro porque em vaacuterios momentos associa a Inconfidecircncia Mi-neira com a Independecircncia do Brasil a exemplo do que Independecircncia ou Morte prega jaacute em seu primeiro texto didaacutetico113 Segundo porque tambeacutem oficializa eventos convencionalmente tidos por fundacionais da histoacuteria do Brasil (soacute que natildeo os de 1808-1822 mas os de 1788-1789) Terceiro reforccedila a prevalecircncia de indiviacuteduos sobre coletividades da imagem de um heroacutei central da trama e de uma oposiccedilatildeo de interesses maniqueiacutesta que certamente poderia se aplicar com mais rigor ao contexto em que foi feito o filme do que agravequele ao qual formalmente se refere Assim para todos os efeitos substratos de uma concepccedilatildeo de histoacuteria satildeo em ambos convergentes Em um ambiente social multifacetado em termos de no-

cada dentro do programa dominical Fantaacutestico da Rede Globo de Televisatildeo A seacuterie foi baseada no livro Brasil uma Histoacuteria de Eduardo Bueno jornalista que tambeacutem atua na seacuterie (youtubecomwatchv=3LzGKt9Pd0M acesso em 27032014)

103SETUacuteBAL Paulo As Maluquices do Imperador

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1927 CALADO Ivanir A Imperatriz no Fim do Mundo memoacuterias duacutebias de Ameacutelia de Leichtenberg Rio de Janeiro Rio Fundo Editora 1992 e TORERO Joseacute Roberto Galantes memoacuterias e admiraacuteveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes o Chalaccedila Satildeo Paulo Companhia das Letras 1994

104A trama e a narrativa do Quinto dos Infernos

recusam explicitamente a inserccedilatildeo de quaisquer componentes que natildeo os da ordem privada de seus convencionais personagens assim questotildees poliacuteticas satildeo sempre menores do que o apetite sexual de Carlota Joaquina as perversotildees de D Miguel ou a fogosidade de Domitila a economia soacute surge em pontuais pretextos cocircmicos enquanto a escravidatildeo eacute referida exclusivamente por meio de alegres e libidinosas criadas (negras) permanentemente dispostas a servirem aos desejos do heroacutei da histoacuteria D Pedro

105A anaacutelise poderia se completar com a minisseacuterie

A Marquesa de Santos dirigida por Ary Coslov e exibida pela extinta Rede Manchete de televisatildeo em 1984 agrave qual infelizmente natildeo se obteve acesso satisfatoacuterio

106Tal predileccedilatildeo pode ser entendida como mais

um fator caracteriacutestico de um momento em que a articulaccedilatildeo entre aquilo que Guy Debord chamaria de ldquosociedade do espetaacuteculordquo e Adorno e Horkheimer (dentre muitos outros) de ldquoinduacutestria culturalrdquo torna sintomaacutetico a saliecircncia do indiviacuteduo e o esvaziamento da esfera puacuteblica

107A comprovaccedilatildeo do encontro concorrente entre

dois caminhos vem do depoimento de alguns dos proacuteprios envolvidos com a produccedilatildeo do Quinto dos Infernos como o diretor Carlos Lombardi que a ele se refere como ldquoum painel dos personagens importantes do periacuteodordquo Para o produtor Wolf Maia seu objetivo foi ldquorecontar com humor uma velha histoacuteriardquo O ator Humberto Martins viu a seacuterie ldquocontar um pedaccedilo da nossa histoacuteria da histoacuteria do Brasil do nosso povo das nossas raiacutezes pateacutetica e engraccedilada tal como ela se mostra dentro desse produto poreacutem claro mesclada com uma boa dose de humorrdquo enquanto o protagonista Marcos Pasquim afirmou que ldquo[ao fazecirc-la] aprendi muita coisa que natildeo aprendi na escola eu vim aprender agora fazendo a pesquisa para fazer esse personagemrdquo Finalmente para a tambeacutem atriz Bruna Lombardi ldquoO lsquoQuintorsquo contou assim a histoacuteria que a Histoacuteria natildeo conta sabe como eacute as fraquezas da histoacuteriardquo Em ldquoDia de Fuacuteriardquo Pedro Bial e Eduardo Bueno reforccedilam seu discurso satiacuterico por meio de um verniz de verdade trazido pela citaccedilatildeo de documentos oficiais como o relato do Padre Belchior sobre o grito do Ipiranga Aleacutem disso seu discurso eacute elaborado sob o nome de tese logo bem se vecirc como seus propaladores (BialBueno) manipulam siacutembolos

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ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

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Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

29Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

30Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

31Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

32Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

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por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

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muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

36Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 14: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

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glorificaccedilatildeo da Independecircncia laudatoacuterio e a destacar seus personagens centrais No entanto tal tendecircncia encontra obstaacuteculo em outras contraacute-rias minoritaacuterias mas natildeo despreziacuteveis a verem a Independecircncia como algo pouco ou nada importante uma histoacuteria restrita espacialmente e socialmente e mais de continuidades do que de rupturas

Assim jaacute eacute possiacutevel afirmar que a Independecircncia enseja disputas a seu respeito em torno de suas representaccedilotildees e memoacuterias oficiais ou natildeo Muito provavelmente alguns dos motivos que explicam sua rejeiccedilatildeo por muitos explicam igualmente sua ativa e entusiasmada frequecircncia por um grupo menor Em uma terceira via ela jamais deixou de ser pensada e divulgada em perspectivas complexas fortemente criacuteticas e analiacuteticas Para todos os efeitos a Independecircncia contribui sem duacutevida para tipificar uma cultura de histoacuteria no Brasil plural variada e apenas parcialmente organizada em padrotildees cronoloacutegicos (temporais) na qual ocupa um papel central e da qual irradiam outros elementos valiosos para um melhor en-tendimento dessa mesma cultura

4 ndash A Independecircncia nas escolas A principal fonte de fomento e irradiaccedilatildeo de atitudes do brasileiro diante da Independecircncia eacute o sistema escolar com sua diversidade de agentes es-paccedilos procedimentos materiais e valores Aqui seraacute analisado apenas um componente prenhe de significados desse sistema o livro didaacutetico53

Segundo um estudioso da mateacuteria os autores de livros didaacuteticos de Histoacuteria em geral ndash grupo no qual ele mesmo estaacute incluiacutedo -ldquonatildeo tecircm por objetivo somente transpor a Histoacuteria acadecircmica eles identificam necessi-dades sociais estatildeo imersos na sociedade e portanto na proacutepria histoacuteria sobre a qual escrevemrdquo54 Tais livros satildeo assim documentos privilegiados de uma cultura de histoacuteria trazem conteuacutedos de acordo com padrotildees e paracircmetros de uma sociedade agrave qual servem sendo inclusive cada vez mais sensiacuteveis a impulsos de origem natildeo acadecircmica55 contam com a colaboraccedilatildeo ou autoria de historiadores profissionais56 que trabalham junto a editores assistentes revisores iconoacutegrafos diagramadores e designers graacuteficos57 satildeo consumidos preferencialmente por educadores e educandos mas chegam tambeacutem agraves famiacutelias destes e ao puacuteblico em geral tendem a permanecer por algum tempo disponiacuteveis em salas de aula residecircncias livrarias e bibliotecas e satildeo fortemente condicionados pelas exigecircncias de um grande mercado editorial cujas demandas capi-talistas natildeo satildeo menos evidentes do que as pedagoacutegicas O livro didaacutetico eacute o segundo suporte de leitura mais lido no Brasil sendo sua produccedilatildeo o mais lucrativo negoacutecio de uma induacutestria editorial brasileira que tem no governo federal seu maior cliente58 Essa produccedilatildeo dos livros didaacuteticos movimenta enormes cifras veicula paacuteginas e paacuteginas de conteuacutedos de Histoacuteria produzidos por e destinados a um amplo conjunto de agentes sociais e tecircm circulaccedilatildeo nacional59

A Independecircncia estaacute presente em todos os 21 livros destinados ao Ensino Meacutedio aqui considerados60 assim como estava em outros 12 de Ensino Fundamental contemplados por um estudo acadecircmico a respeito61 Nessa dupla frente abre-se uma possibilidade de anaacutelise valiosa jaacute que alguns livros circulam atualmente enquanto outros circularam agrave eacutepoca em que jovens adultos que hoje tecircm entre 22 e 26 anos eram crianccedilas entre 9 e 13 Unem-se assim duas temporalidades de tratamentos da Independecircn-cia que podem ser unificadas por uma cultura de histoacuteria

64Exemplo eacute a afirmaccedilatildeo de que ldquoem

reconhecimento agrave importacircncia da Batalha do Jenipapo como um episoacutedio fundamental no processo de independecircncia e de consolidaccedilatildeo do territoacuterio a data de 13 de marccedilo de 1823 foi estampada na bandeira do estado do Piauiacuterdquo DIAS Adriana GRINBERG Keila e PELLEGRINI Marco Op Cit p240

65Excelente demonstraccedilatildeo eacute dada por uma

proposta pedagoacutegica de um jogo didaacutetico elaborado pelo Laboratoacuterio de Ensino de Histoacuteria da Universidade Federal de Pelotas descrita em GASPAROTTO Alessandra ESPIacuteRITO SANTO Marco Viniacutecio do SILVA Eduarda Borges da Jogo didaacutetico vira-vira a metroacutepole vira colocircnia a colocircnia vira-metroacutepole Revista Latino-Americana de Histoacuteria v2 n6 agosto de 2013 (Ediccedilatildeo Especial) p648-661

66Os preferidos satildeo D Joatildeo Carlota Joaquina Joseacute

Bonifaacutecio e D Pedro

67Um exemplo apoacutes afirmar que ldquodurante anos a

historiografia oficial tentou idealizar o processo de independecircncia e seus autores explicado como um ato de heroiacutesmo contra a tirania e em defesa da liberdaderdquo uma das obras afirma em tom de contraposiccedilatildeo ldquoMas nas uacuteltimas deacutecadas novos estudos permitiram lanccedilar um novo olhar sobre esse periacuteodo Expressotildees dessa mudanccedila satildeo algumas produccedilotildees culturais recentes que tratam desse momento com uma visatildeo criacutetica e ateacute mesmo sarcaacutestica como por exemplo o romance O Chalaccedila (1999) de Joseacute Roberto Torerordquo Por fim propotildee como ldquoSugestatildeo de atividaderdquo supostamente para aguccedilar o senso criacutetico do aluno ldquocomparar o romance de Torero citado acima com a visatildeo oficial dos eventos fornecida pela ceacutelebre pintura Independecircncia ou morte (O Grito do Ipiranga) de Pedro Ameacuterico ou pelo filme Independecircncia ou morte (1972) de Carlos Coimbrardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p80-81) Aleacutem de ignorar os momentos objetivos e naturezas distintos das obras recomendadas tal atividade sugere a ultrapassagem de uma visatildeo ldquotradicionalrdquo da Independecircncia por outra ldquocriacuteticardquo ndash logo mais aceitaacutevel Assim o aluno eacute encorajado a conceber a histoacuteria por meio de sua livre-interpretaccedilatildeo mas sendo impelido a endossar a de um romance satiacuterico (logo voltaremos a ele)

68Em um livro para o Ensino Fundamental de

1996 lia-se que ldquopara a realizaccedilatildeo do nosso trabalho foi importante a participaccedilatildeo de Mariana Massarani artista que desenhou com alegria e bom humor os acontecimentos estudadosrdquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Do mundo indiacutegena ao periacuteodo regencial no Brasil Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1994 p1 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p79) Essa eacute uma tendecircncia antiga como nos mostra o poema de Murilo Mendes ldquoA pescariardquo (publicado em Histoacuteria do Brasil de 1932) evocativo da tatildeo ceacutelebre quanto historicamente irrelevante disenteria de D Pedro em 7 de setembro de 1822 e transcrito em outro didaacutetico ldquoFoi nas margens

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Natildeo haacute duacutevida que a maioria dos livros didaacuteticos de Histoacuteria voltados ao Ensino Meacutedio abre possibilidades de construccedilatildeo de um conhecimento acerca da Independecircncia multifacetado matizado criacutetico e criterioso e deles pode-se extrair muitos exemplos a revelarem diaacutelogos propositi-vos entre saberes acadecircmicos e didaacuteticos da Histoacuteria (afinal os proacuteprios autores e avaliadores dos livros estatildeo quase todos diretamente ligados ao meio acadecircmico) aliaacutes em comparaccedilatildeo com os de Ensino Fundamental de cerca de uma deacutecada atraacutes essas possibilidades soacute cresceram Poreacutem como natildeo eacute objetivo deste estudo analisar tais livros em si mesmos -somente deles extrair elementos que tipifiquem uma cultura de histoacuteria por meio da Independecircncia ndash mais relevantes parecem ser justamente alguns de seus pontos sensiacuteveis nos quais tais livros se fazem menos acadecircmicos e nos quais se traduzem de modo mais significativo componentes mais amplos da sociedade que lhes daacute sentido

Em todos esses livros a Independecircncia eacute invariavelmente vista como parte de um processo mais amplo no qual se incluem outros acontecimen-tos poliacuteticos americanos e europeus de finais do seacuteculo XVIII e comeccedilos do seacuteculo XIX (embora quase nunca sejam feitas conexotildees fundamentais entre eles deficiecircncia notaacutevel sobretudo no tocante agraves independecircncias da Ameacuterica espanhola vistas sempre como supostos contraexemplos da Independecircncia do Brasil62) O episoacutedico se faz presente na menccedilatildeo a vaacuterios temas menores ndash a vinda da Corte a abertura dos Portos o governo de D Joatildeo no Rio de Janeiro a Revoluccedilatildeo de Pernambuco a Revoluccedilatildeo do Porto etc ndash mas sempre em observacircncia a contextos histoacutericos espaciais e temporais mais amplos63 Destaque-se que 80 dos livros fazem referecircncia expliacutecita ao termo ldquoguerra(s) de independecircnciardquo64 o que enseja uma con-cepccedilatildeo tambeacutem multirregional do tema e vaacuterios o aprofundam O mesmo pode ser dito de perfis biograacuteficos presentes mas submetidos a uma loacutegica processual da Histoacuteria

Essa ecircnfase em processos em detrimento parcial de acontecimentos e personagens eacute importante indiacutecio de uma sintonia entre saberes aca-decircmicos e natildeo acadecircmicos65 Contudo deve-se relativizar o peso desse diaacutelogo jaacute no que tange ao tratamento dispensado agraves biografias aleacutem de pouco ou nada inovarem na escolha dos personagens destacados66 alguns livros didaacuteticos trazem fragmentos anedoacuteticos de tais trajetoacuterias hoje em dia pouco ou nada uacuteteis a historiadores profissionais (embora as comilan-ccedilas de D Joatildeo os amantes de D Carlota ou as noitadas de D Pedro natildeo os distingua de outros agentes histoacutericos de sua eacutepoca tampouco satildeo trata-dos como tiacutepicos67) Parece razoaacutevel argumentar que ao menos parcial-mente tal insistecircncia da parte do livro didaacutetico atende ao gosto do leitorconsumidor tornando tais suportes materiais mais agradaacuteveis e sedutores assim sendo constata-se justamente um limite no diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e saberes didaacuteticos expressos em tais livros bem como se anuncia uma tendecircncia de representaccedilatildeo humoriacutestica do passado em uma cultura de histoacuteria como a brasileira muito forte em outros suportes68 Eis um mercado ndash que no Brasil mescla dimensotildees editoriais e midiaacuteticas com outras educacionais e culturais mais amplas ndash impondo seus padrotildees de representaccedilatildeo do passado

Aleacutem de envolverem historiadores profissionais em sua produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo os livros didaacuteticos de Ensino Meacutedio parecem esforccedilar-se cada vez mais em trazer conteuacutedos extraiacutedos de obras acadecircmicas bem como apresentar ao leitor uma pluralidade de posiccedilotildees acerca de um determina-

do IpirangaEm meio a uma pescariaSentindo-se mal D PedroComera demais cuscuzDesaperta a braguilhaE grita roxo de raivaOu me livro desta coacutelicaOu morro logo de uma vezO priacutencipe se aliviouSai no caminho cantandoJaacute me sinto independenteSafa Vou de perto a morteVamos cair no fadinhoPra celebrar o sucessordquo MACEDO Joseacute Rivair Brasil ndash uma histoacuteria em construccedilatildeo Satildeo Paulo Brasil 1996 p166 Cit por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p101

69Tomemos por exemplo esta afirmaccedilatildeo ldquoDe acordo

com alguns historiadores as raiacutezes da independecircncia brasileira estatildeo na segunda metade do seacuteculo XVIII quando se multiplicaram atividades produtivas e comerciais na colocircnia sobretudo na regiatildeo Centro-Sulrdquo (MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Op Cit p113) Nela eacute possiacutevel reconhecer a presenccedila de influente e importante interpretaccedilatildeo acadecircmica acerca da Independecircncia do Brasil (DIAS Maria Odila A interiorizaccedilatildeo da metroacutepole (1808-1853) In MOTA Carlos Guilherme 1822 dimensotildees Satildeo Paulo Perspectiva 1972 p160-184) no entanto natildeo eacute apresentada qualquer contraposiccedilatildeo (se esta posiccedilatildeo eacute da parte de ldquoalguns historiadoresrdquo outra divergente deve ser da parte de outros) Mais adiante lecirc-se que ldquoo fato relevante foi que a transferecircncia da corte para o Brasil provocou uma inversatildeo histoacuterica de modo significativo e irreversiacutevel nas relaccedilotildees entre a metroacutepole portuguesa e a colocircnia brasileirardquo (Idem p114) Ora o que seria uma inversatildeo irreversiacutevel dessas relaccedilotildees Portugal teria se tornado para sempre colocircnia do Brasil

70Nos livros didaacuteticos de Ensino Fundamental

analisados por Purificaccedilatildeo jaacute eram abundantes as transcriccedilotildees de trechos de textos de historiadores profissionais sem que deles resultasse qualquer ensejo de pluralidade de pensamento ou de estiacutemulo agrave interpretaccedilatildeo

71VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA

Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p 103

72O capiacutetulo 14 de uma das obras intitulado

ldquoO processo de independecircncia da Ameacuterica portuguesardquo inicia-se com um excerto do Romanceiro da Inconfidecircncia de Ceciacutelia Meireles tambeacutem indutor a essa interpretaccedilatildeo ldquoAtraveacutes de grossas portas sentem-se luzes acesas e haacute indagaccedilotildees minuciosas dentro das casas fronteiras Que estatildeo fazendo tatildeo tarde Que escrevem conversam pensam Mostram livros proibidos Leem notiacutecias nas GazetasTeratildeo recebido cartasde potecircncias estrangeiras [] Oacute vitoacuterias festas flores das lutas da Independecircncia Liberdade ndash essa palavra que o sonho humano alimenta que natildeo haacute ningueacutem que explique e ningueacutem que natildeo entendardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p 202) Jaacute nas ldquosugestotildees de leitura e consulta para o professorrdquo de outra encontra-se indicaccedilatildeo de uma obra de J J Chiavenato - Inconfidecircncia mineira as vaacuterias faces Satildeo Paulo Global 2000 - com este comentaacuterio ldquoo autor mostra o movimento que buscava a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Adotando uma abordagem que parte da realidade socioeconocircmica do periacuteodo este livro releva diferentes aspectos desse momento singular da histoacuteria brasileirardquo (NOGUEIRA Fausto

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do toacutepico que seja decorrente de debates acadecircmicos No entanto ainda eacute frequente que tais conteuacutedos se inclinem agrave pura formalidade dificilmente explicitando divergecircncias oriundas da academia ou resultando em uma tomada de posiccedilatildeo realmente criacutetica perante a histoacuteria69 Ao usuaacuterio do livro eacute apresentada uma suposta pluralidade de pensamento natildeo como ferramenta de obtenccedilatildeo dessa pluralidade mas como estilo de composiccedilatildeo e padronizaccedilatildeo do material didaacutetico70

Esse tipo de atitude formalista pode ser encontrada tambeacutem em propostas de atividades dirigidas ao aluno como esta

A interpretaccedilatildeo sobre a independecircncia do Brasil provocou e ainda provoca muitas divergecircncias Sob o ponto de vista econocircmico alguns pesquisadores defendem que a separaccedilatildeo ocorreu de fato em 1808 [] Outros com interpretaccedilotildees mais poliacuteticas indicam o 7 de setembro de 1822 embora nenhuma medida formal tenha sido tomada nessa data ndash foi um ato simboacutelico Depois da Guerra do Paraguai jornais republicanos argumentavam que [] D Pedro havia atendido aos apelos de independecircncia dos brasileiros mas os teria traiacutedo quando fechou a Assembleia Constituinte em 1823 Enalteciam entatildeo a Inconfidecircncia Mineira (1789) a Revoluccedilatildeo Pernambucana (1817) e a Confederaccedilatildeo do Equador (1824) movimentos com teor republicano conforme as reais aspiraccedilotildees dos brasileiros

Satildeo vaacuterias interpretaccedilotildees que variam de acordo com a posiccedilatildeo poliacutetica ou momento histoacuterico dos autores Alguns intelectuais consideram ateacute mesmo que o Brasil hoje tem uma independecircncia mais nominal do que real pois continuaria dependente dos paiacuteses mais ricos

Em sua opiniatildeo quando o Brasil se tornou um paiacutes independente71

Aqui novamente eacute apresentada uma divergecircncia de interpretaccedilatildeo e vaacuterias satildeo as possibilidades de resposta agrave pergunta quando o Brasil se tornou um paiacutes independente No entanto todas as posiccedilotildees apresentadas parecem equivaler-se pois tudo depende da ldquoposiccedilatildeo poliacuteticardquo ou ldquodo mo-mento histoacutericordquo da pessoa disposta a respondecirc-la Assim e por induccedilatildeo a Inconfidecircncia Mineira poderia ser uma resposta aceitaacutevel conforme visatildeo ainda presente em alguns livros72 e a despeito do contraacuterio que historia-dores vecircm afirmando nas uacuteltimas deacutecadas Do mesmo modo a atividade pareceria aceitar a ldquonatildeo independecircncia de fatordquo ideia muito presente na cultura de histoacuteria no Brasil73 tatildeo sedutora quanto inconsistente do ponto de vista acadecircmico Para o aluno tratar-se-ia de uma questatildeo de simples opccedilatildeo (poliacutetica) diante da qual a Histoacuteria se destemporaliza

Uma Histoacuteria processual mais do que episoacutedica ou personalista uma Histoacuteria permeada de explicaccedilotildees acadecircmicas ao mesmo tempo uma Histoacuteria com limitaccedilotildees em termos de divergecircncias relativizaccedilotildees e possibilidades em aberto condicionada a suportes materiais repletos de convenccedilotildees a tornarem-nos muito parecidos entre si Talvez seja no tra-tamento dispensado a imagens que os livros didaacuteticos melhor revelam tais convenccedilotildees reforccedilando as limitaccedilotildees de seu diaacutelogo com a Histoacuteria acadecirc-mica bem como acentuando suas caracteriacutesticas de mercadoria Todos os livros aqui considerados satildeo carregados de itens especiacuteficos a quebrarem a continuidade do texto e suas paacuteginas satildeo multicoloridas e povoadas por fi-guras como obras de pintores dos seacuteculos XIX e XX74 Quase nunca poreacutem tais imagens satildeo analisadas como fontes histoacutericas confinadas agrave funccedilatildeo de mera ilustraccedilatildeo frequentemente modificadas em cor e tamanho ateacute mesmo mutiladas ndash sem esclarecimento ndash em prol da diagramaccedilatildeo75 Em tais casos inevitavelmente cria-se uma ideia natildeo de uma histoacuteria sujeita a muacuteltiplas interpretaccedilotildees (contrapondo-se portanto a vaacuterias das atividades

e CAPELLARI Marcos Op Cit p71) Em uma terceira obra logo na abertura de um capiacutetulo intitulado ldquoA independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo lecirc-se que ldquoos dias 21 de abril e 7 de setembro feriados nacionais nos fazem lembrar de dois momentos do processo histoacuterico que levou a independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo (COTRIM Gilberto Op Cit p223) A associaccedilatildeo direta entre Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia era mais comumente feita em livros didaacuteticos de deacutecadas atraacutes Um de Ensino Fundamental caracterizava a Revolta de Beckman a Guerra dos Emboabas a Revolta de Felipe dos Santos a Guerra dos Mascates e as conjuraccedilotildees Mineira e Baiana como movimentos nos quais ldquoos revoltosos se opuseram agrave metroacutepole sonhando e lutando pela autonomia do paiacutesrdquo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Nas trilhas da histoacuteria Ensino Fundamental Belo Horizonte Dimensatildeo 1999 v4) Citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p108

73FIGUEIRA Divalte G Op Cit p191 Nos de

Ensino Fundamental AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 CARMO Socircnia S do COUTO Eliane F B A A consolidaccedilatildeo do capitalismo e o Brasil impeacuterio Satildeo Paulo Atual 1997 (Histoacuteria Passado Presente 3) p105 FERREIRA Joseacute Roberto Histoacuteria Ediccedilatildeo Reformulada Satildeo Paulo FTD 1997 (7ordf seacuterie) p65 ALVES Kaacutetia Correia Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p 128 Citados por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p78 84-85 96 e 111

74Debret Rugendas Moreaux Feacutelix Taunay

Constantino Fontes Polliegravere Parreiras Benedito Calixto Delerive Martins Viana Oscar Pereira da Silva Georgina de Albuquerque e Aldemir Martins entre outros

75Isso jaacute era frequente haacute uma deacutecada com livros

de Ensino Fundamental como por exemplo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p126 e COTRIM Geraldo Op Cit p 112 conforme anaacutelise de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p113 e 123 Haacute que se dizer que livros didaacuteticos natildeo satildeo meio exclusivo para esse esvaziamento do valor documental da iconografia havendo na proacutepria publicaccedilatildeo acadecircmica problema semelhante como demonstra CAVENAGHI Airton Joseacute O atlas do impeacuterio do Brazil e as representaccedilotildees presentes no livro Projeto Histoacuteria v 41 2010 p 383-403

76Constataccedilatildeo semelhante agrave de PURIFICACcedilAtildeO Ana

Teresa da Op Cit para os didaacuteticos de Ensino Fundamental

77NOGUEIRA Fausto e CAPELLARI Marcos Op

Cit p255

78Para um deles ldquoo pintor Pedro Ameacuterico imaginou

a cena ocorrida agraves margens do riacho do Ipirangardquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 para outro um ceacutelebre quadro mostraria uma ldquocena de uma

21Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

sessatildeo das cortes de Lisboa reconstituiacuteda pelo pintor Oscar Pereira da Silvardquo Cfr CARMO Socircnia do COUTO Eliane F B A Op Cit p 73 um terceiro propunha ao aluno a seguinte atividade ldquoobserve cuidadosamente as gravuras de Debret que aparecem no texto Descreva cada uma delas e compare as cenas nelas retratadas com as cenas de nossas ruas de hoje Haacute diferenccedila Em que sentidordquo Cfr GARCIA Leocircnidas F Estudos de histoacuteria sociedades contemporacircneas 2 ed rev Goiacircnia Editora da UFG 1996 Manual do Professor p 111 Todas as informaccedilotildees foram retiradas de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p81 88 e 137

79Conforme bem mostrado por Elias Saliba Cfr

SALIBA Elias Experiecircncias e representaccedilotildees sociais reflexotildees sobre o uso e o consumo das imagens Anais do II Encontro Perspectivas do Ensino de Histoacuteria Satildeo Paulo FEUSP 1996 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p119

80Produzida pela Secretaria de Ensino agrave

Distacircncia do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo em parceria com a TV Escola e a Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco com a companhia teatral Matildeo Molenga Parte 1 disponiacutevel em youtubecomwatchv=Z60eHBJ1xjY 18082 visualizaccedilotildees e 15 comentaacuterios parte 2 disponiacutevel em youtubecomwatchv=2QLkP2NDhMg 30100 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios (parte desse episoacutedio tambeacutem disponiacutevel em youtubecomwatchv=bAPUjP7l-lI 18398 visualizaccedilotildees e 16 comentaacuterios acesso em 13022014

81Como Clemente Pereira Gonccedilalves Ledo Cipriano

Barata Paes de Andrade e frei Caneca O fato de se tratar de uma produccedilatildeo pernambucana contribui para tanto

82Semelhante observaccedilatildeo pode ser feita a respeito

dos doze curtos episoacutedios da seacuterie D Joatildeo no Brasil inspirada em uma narrativa em quadrinhos da chegada da Corte ao Brasil seacuterie de animaccedilatildeo produzida pelo Canal Futura baseada no livro de histoacuteria em quadrinhos D Joatildeo Carioca a corte portuguesa chega ao Brasil (1808 - 1821) escrito pela historiadora Lilia Schwarcz e pelo desenhista Spacca (Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007) Novamente tem-se um material convincente afinado em muitos sentidos com um conhecimento acadecircmico mas que ao recorrer agrave saacutetira tambeacutem evoca estereoacutetipos convencionais como por exemplo os mesmos acima mencionados em referecircncia a priacutencipe e princesa Poder-se-ia atribuir tal convencionalismo dentre outros fatores ao de que a primazia da linguagem visual aqui opera duplamente isto eacute com os quadrinhos e tambeacutem com o programa televisivo criado a partir deles amplificando assim os efeitos decorrentes da saturaccedilatildeo visual da sociedade que daacute origem e significado a esse material Para todos os efeitos a imposiccedilatildeo de tais convenccedilotildees eacute forte ateacute mesmo conforme jaacute visto em materiais menos visuais que este Episoacutedio 01 youtubecomwatchv= 9f5RB1zcD5Eamplist=PLyP1ks9vaqhj2y6MmckU DyuXtWmHgPLe5ampindex=1 331 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio episoacutedio 02 youtubecomwatchv= w-BLqvhYPGkamplist=PL5837763F26AB1B87

oferecidas pelos proacuteprios livros) mas de uma histoacuteria imoacutevel a ser captada de modo instantacircneo uma histoacuteria verdadeira Aleacutem do mais confundem-se os diferentes contextos motivaccedilotildees e condiccedilotildees de produccedilatildeo de tais imagens o que equivale agrave oferta de uma confusatildeo temporal que impossibi-lita a compreensatildeo dessa histoacuteria76

As uacutenicas exceccedilotildees satildeo os ceacutelebres quadros de Moreaux e de Pe-dro Ameacuterico Todos os livros didaacuteticos aqui considerados se esforccedilam por submetecirc-los a uma criacutetica muitas vezes comparativa considerando forma conteuacutedo e contexto mesmo assim eacute possiacutevel encontrar afirmaccedilotildees como a de que Ameacuterico teria tido ldquoo intuito de fazer a representaccedilatildeo desse famoso acontecimento da maneira mais fiel possiacutevelrdquo e que ldquomuitos dos elementos representados pelo pintor satildeo sabidamente falsosrdquo77 Provavel-mente satildeo resquiacutecios de um momento anterior no qual os livros didaacuteticos mostravam-se muito menos cuidadosos ateacute mesmo na utilizaccedilatildeo do quadro de Ameacuterico78 mas tambeacutem marcas atuais de uma sociedade de haacutebitos fortemente visuais cuja saturaccedilatildeo de imagens tende a resultar em posturas pouco criacuteticas em relaccedilatildeo ao que se vecirc bem como em indistinccedilatildeo tempo-ral das mesmas79 Haacute que se lembrar por fim e novamente que os textos desses livros satildeo cheios de descontinuidades como se cada pedaccedilo de cada paacutegina tivesse autonomia prescindindo de certo modo da leitura dos demais Guardaratildeo tais constataccedilotildees alguma relaccedilatildeo com as dificuldades apresentadas pelos entrevistados na sondagem de opiniatildeo de organizar visotildees da Histoacuteria da Independecircncia segundo marcos cronoloacutegicos bem como de distinguir diferenccedilas entre intervalos temporais Eacute bem possiacutevel sobretudo porque ela seraacute endossada pela observaccedilatildeo de outras fontes

5 - A Independecircncia na internet e na tevecircExiste farto e rico material audiovisual disponiacutevel na internet com referecircncias agrave Independecircncia do Brasil e que a exemplo dos livros didaacuteticos represen-tam a convergecircncia de esforccedilos profissionais muacuteltiplos (mais os programas de tevecirc do que os viacutedeos independentes) como pesquisadores roteiristas apresentadores repoacuterteres cenoacutegrafos teacutecnicos variados etc As fontes aqui delimitadas perfazem 107 viacutedeos acessiacuteveis no YouTube e que natildeo obstante sua ampliacutessima diversidade convergem em muitos significados

Observe-se o caso de viacutedeos educativos documentaacuterios e programas de televisatildeo com entrevistas e debates que em comum apresentam objetivos formativos e esforccedilos verdadeiros de incorporaccedilatildeo de conteuacutedos acadecircmicos traduzidos em linguagens didaacuteticas Um caso exemplar eacute a seacuterie 500 anos o Brasil - Impeacuterio na TV que conta uma histoacuteria do Brasil da chegada da Corte ao periacuteodo das regecircncias em formato de telejornal com trama romanceada e teatro de bonecos80 Aqui vecirc-se uma Histoacuteria processual com informa-ccedilotildees corretas e amparadas em datas deslocamentos frequentes dos eixos espaciais de observaccedilatildeo (regional internacional) com menccedilatildeo a persona-gens que extrapolam o tradicional ciacuterculo da Corte portuguesa81 e ecircnfase no caraacuteter violento e conflitivo da formaccedilatildeo do Brasil no seacuteculo XIX Mesmo um material histoacuterico-pedagoacutegico desse quilate evoca por exemplo a falta de atributos esteacuteticos de Carlota Joaquina ou a pusilanimidade de seu marido a revelarem mais uma vez o mercadologicamente eficiente componente bio-graacutefico-anedoacutetico no tratamento da Independecircncia advindo de sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria mais ampla82

Em outros casos o fato de programas de televisatildeo buscarem o auxiacutelio de especialistas na Independecircncia revela uma convenccedilatildeo formal como nos

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16566 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios episoacutedio 03 youtubecomwatchv=QvWSE-sF-w4amplist =PL5837763F26AB1B87 18406 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios episoacutedio 04 youtubecomwatchv= 2N5wBvpgyXEamplist=PL5837763F26AB1B87 12808 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 05 youtubecomwatchv=VaHrSAFBf1Uamplist =PL5837763F26AB1B87 14615 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 06 youtubecomwatchv= 8RrCMbOZTsAamplist=PL5837763F26AB1B87 12649 visualizaccedilotildees 10 comentaacuterios episoacutedio 07 youtubecomwatchv=I4cgWo_GHaQ 601 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 08 youtubecomwatchv=rI71YNrLo7o 12299 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 09 youtubecomwatchv=huv2ngnqUd4 367 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios episoacutedio 10 youtubecomwatchv=F2MaLs_kj-w 10842 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios episoacutedio 11 youtubecomwatchv=8zK3D01dXc0 9388 visualizaccedilotildees 05 comentaacuterios episoacutedio 12 youtubecomwatchv=R76BHD--vB8amplist=PL5837763F26AB1B87 12108 visualizaccedilotildees 9 comentaacuterios acessos em 03042014

83NAPOLITANO Marcos A Histoacuteria depois do

papel In Carla Pinsky (org) Fontes Histoacutericas Satildeo Paulo Contexto 2005 p250-252 Napolitano afirma com base em Umberto Eco que a televisatildeo introduziu uma mudanccedila de ritmo de vida familiar e cotidiana bem como o que se pode chamar de hipertrofia sensorial em detrimento da assimilaccedilatildeo conceitual Destaca ainda que eacute preciso pensar a televisatildeo como uma nova experiecircncia social do tempo histoacuterico na medida em que ela faz coincidir o verdadeiro o imaginaacuterio e o real no ponto indivisiacutevel do presente

84Produzida pela rede de emissoras puacuteblicas

TV Brasil Sobre a Revolta dos Alfaiates parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo 767 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=dj04LJJM8bk 2592 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio Sobre a Batalha do Jenipapo parte 1 youtubecomwatchv=zlgsZcj-V3o 2426 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios acesso em 24032013 parte 2 youtubecomwatchv=rAS3dHAvWPQ 1283 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio Sobre Tiradentes youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 408 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013)

85Marco Morel e Luiacutes Henrique Dias Tavares

86Programa De laacute pra caacute Revolta dos Alfaiates

parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo

87Exceccedilatildeo satildeo as entrevistas realizadas por

Mocircnica Teixeira na UnivespTV que estabelecem comunicaccedilatildeo bastante profiacutecua entre a entrevistadora e os acadecircmicos entrevistados (youtubecomwatchv=syXf3WHQRPM 4450 visualizaccedilotildees 06 comentaacuterios youtubecomwatchv=pZk5pFlboqw 3303 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=5pUDP2KUYCY 4128 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios

livros didaacuteticos e a exemplo destes a intenccedilatildeo de acolher uma multipli-cidade de vozes raramente enseja verdadeira pluralidade de pensamento o que ademais eacute dificultado pela natureza curta sinteacutetica e acelerada dos materiais televisivos Nessas situaccedilotildees constata-se que o historiador fala uma coisa mas o entrevistador e o produtor continuam a ldquoescutarrdquo outra o que muitas vezes reforccedila a percepccedilatildeo de descontinuidade narrativa an-teriormente tambeacutem diagnosticada nos livros didaacuteticos e que na televisatildeo adquire contornos de regra83 Os episoacutedios da seacuterie De laacute para caacute educati-vos didaacuteticos aacutevidos por com conhecimentos acadecircmicos e produzidos por uma rede puacuteblica de televisatildeo sem fins lucrativos apresentam interessante exemplo84 No programa dedicado aos acontecimentos de 1798 na Bahia dois historiadores profissionais85 esclarecem que os revoltosos ldquobahien-sesrdquo almejavam a independecircncia apenas da capitania da Bahia o que tem enormes implicaccedilotildees a destituiacuterem tais acontecimentos de qualquer atribu-to supostamente preparatoacuterio da Independecircncia do Brasil (situaccedilatildeo muito semelhante conforme vimos agrave da Inconfidecircncia Mineira) natildeo obstante na abertura do programa seu apresentador declara

A luta pela independecircncia do Brasil foi escrita nas paacuteginas memoraacuteveis da nossa histoacuteria com o sangue de um punhado de brasileiros O mais celebrado foi Tiradentes Mas sete anos depois do martiacuterio de Tiradentes quatro brasileiros pretos pobres pelos mesmos ideais foram enforcados e sentenciados em Salvador86

Em outros momentos o apresentador apesar de ouvir de forma soliacutecita e atenta ao que o entrevistado tem a dizer acaba por negar com sua proacutepria fala parte do conteuacutedo receacutem-ouvido mas sem demonstrar ser essa atitude premeditada ou consciente Afinal eacute difiacutecil desvencilhar-se daquilo que jaacute se ldquosaberdquo daquilo que adveacutem de um ambiente que o tempo todo nos ldquoensinardquo Histoacuteria sem necessariamente disso nos darmos conta87

A incapacidade de assimilaccedilatildeo reciacuteproca de ideias acerca da histoacute-ria entre agentes sociais diversos pode revelar-se de muitos modos Um dos programas da seacuterie Caminhos da Reportagem intitulado Caminhos da Independecircncia o grito nas ruas produzido com as mesmas caracteriacutesticas do anterior aborda a Independecircncia focada em seus panfletos poliacuteticos a partir da pesquisa recente de trecircs historiadores profissionais88 No entan-to e a despeito natildeo soacute de dar ampla voz a eles mas tambeacutem de abordar conteuacutedos didaticamente inovadores a equipe de entrevista que foi agraves ruas natildeo estabeleceu qualquer mediaccedilatildeo entre histoacuterias acadecircmicas e natildeo acadecircmicas pressupondo que todas as pessoas ocupam uma mesma posiccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria Por isso perguntas incompreensiacuteveis89 resultam apenas em situaccedilotildees vexatoacuterias impeditivas da construccedilatildeo de conhecimento sobre o tema

A abordagem de pessoas nas ruas recurso frequentemente utiliza-do por programas televisivos revela dados importantes acerca de como os brasileiros veem a Independecircncia muitas vezes mais por aquilo que eacute perguntado do que por aquilo que eacute respondido90 O programa + Estilo de 07 de setembro de 2011 produzido pela TV Campo Grande com conteuacutedo de variedades destinado a telespectadores de meio de tarde foi agraves ruas (provavelmente de Campo Grande Mato Grosso do Sul) perguntar se as pessoas saberiam dizer o que se comemorava naquele dia Primeiro res-ponde uma jovem com um bebecirc no colo

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youtubecomwatchv=0ZVgCwkt1ms 1384 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1016 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1227 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=ANSHAFLau04 1175 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios) Acessos em 21042014

88Joseacute Murilo de Carvalho Luacutecia Pereira das Neves

e Marcello Basile

89A apresentadora ldquoVocecircs sabem o que significa

corcundardquo Um professor de coleacutegio ldquoDeve ser alguma coisa que estaacute surgindo aiacute no mundo um pouco mais ciberneacutetico porque eu nem na faculdade ouvi falar dos corcundasrdquo Marcos Tomazzeti produtor multimiacutedia ldquoNa minha cabeccedila vem algo de monarquia de rei algo meio poliacuteticordquo Simone Granda bancaacuteria ldquoDicionaacuterio de corcundice Natildeo seirdquo Marilu Guimaratildees dona de casa ldquoPuxa tem tanta coisa importante pra ter dicionaacuterio vai ter justo do corcundistardquo Caminhos da Independecircncia youtubecomwatchv=37XH5UEpjlI acesso em 24032013

90Em perspectiva oposta mas complementar agrave da

sondagem de opiniatildeo aqui utilizada

91E que portanto muito provavelmente ainda natildeo

tinha tido contato formal (escolar) com o tema

92O programa prossegue entatildeo com uma entrevista

com o professor Ian Rari que trata de uma Histoacuteria da Independecircncia processual natildeo centrada em uma uacutenica data ou fato criacutetica etc Mais um momento onde as vaacuterias vozes contempladas pelo programa natildeo dialogam entre si (youtubecomwatchv=xv1LOlwUfFQ 289 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio) Outro exemplo significativo eacute dado pelo programa Conexatildeo Jovem exibido em 06 de setembro de 2012 no qual dois entrevistados ndash Prof Bira professor de Histoacuteria e Marcos Eduardo socioacutelogo ndash utilizam com competecircncia o pouco tempo a eles destinado discorrendo de modo criacutetico sobre a Independecircncia e em linguagem adequada ao puacuteblico jovem ao qual o programa se destina (produccedilatildeo da TV Novo Tempo adventista parte 1 youtubecomwatchv=1IvYOYtju9sgt 74 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=Ofv7QWOJpHo 47 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013) Logo o programa traz uma abordagem feita na rua na qual a entrevistadora pergunta a uma jovem ldquoQuem falou lsquoindependecircncia ou mortersquo agraves margens do riacho do Ipirangardquo Diante da correta resposta a entrevistadora tenta induzir um erro ldquo15 de novembro ou 7 de setembrordquo Aliaacutes a expectativa do programa parece revelada pela entrevistadora logo na primeira pergunta feita a um dos convidados ldquoseraacute que os jovens se interessam pela histoacuteria de seu paiacutesrdquo E embora o material recolhido pelo proacuteprio programa permita resposta afirmativa manteacutem-se a postura negativa preacute-concebida

93Daiacute a relevacircncia de um viacutedeo com fotografias e

um aacuteudio (youtubecomwatchv=UdQ_aAAl3DE)

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoE isso em que ano que foi que aconteceurdquoResposta ldquo1822rdquo

Em seguida outro jovem que provavelmente jaacute tinha respondido a outra pergunta

Pergunta ldquoQuem foi o imperador vocecirc lembrardquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoAcertou Canta pra gente um trecho do hino da independecircnciardquoResposta ldquoAgora natildeo lembrordquo

Agora o programa aborda uma menina de cerca de dez anos clara-mente intimada91

Pergunta Por que eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoNatildeo seirdquoPergunta ldquoNatildeo lembra Vou dar uma dica um fato histoacuterico muito importante para o BrasilrdquoResposta (negativa com a cabeccedila)

Em quarto lugar outra jovem que procura se afastar da cacircmera

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta (ainda tentando se esquivar sorrindo) ldquoNatildeordquoPergunta ldquoNatildeo saberdquoResposta ldquoAh A Independecircncia Eu natildeo prestei atenccedilatildeordquoPergunta Que ano aconteceu a Independecircncia vocecirc lembrardquoResposta ldquoNatildeordquoPergunta ldquoE quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoTambeacutem natildeo lembrordquo

Por fim a entrevista com um senhor de meia-idade comeccedila jaacute com uma resposta

Resposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoQue ano aconteceu issordquoResposta ldquo1888rdquoPergunta ldquo1822 Quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoCerto E onde foi que aconteceu tudo issordquoResposta ldquoSatildeo PaulordquoPergunta ldquoOK [breve silecircncio] Canta um trechinho para noacutes do hino da IndependecircnciardquoResposta ldquoJaacute podeis da paacutetria matildeerdquo [sic -prossegue cantando corretamente]

Em seguida o programa corta para uma sala de aula onde a despeito dos ldquoacertosrdquo obtidos nas ruas a entrevistadora afirma

Diante da dificuldade que noacutes encontramos no centro da cidade para saber informaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil eu vim parar na sala de aula Vai ser aqui que a gente vai descobrir a histoacuteria do paiacutes92

A ideia a priori de que o brasileiro natildeo conhece e natildeo se interessa pela histoacuteria subsidia este e muitos outros programas Aqui o dado mais relevante parece estar precisamente nessa arraigada crenccedila no desinteres-

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da entatildeo prefeita de Ribeiratildeo Preto (Satildeo Paulo) Darcy Vera que afirma durante um desfile de 7 de Setembro dentre vaacuterios desvarios que ldquoTiradentes gritou lsquoIndependecircncia ou mortersquordquo Com 169919 acessos e 149 comentaacuterios (em geral criacuteticos bem humorados e depreciativos) ateacute 20082014 condensa a possibilidade de amplificaccedilatildeo do estigma do natildeo domiacutenio de referecircncias convencionais agrave Independecircncia mas sem fomentar nenhum conhecimento da mesma

94Novamente surge a questatildeo natildeo teratildeo as

renovaccedilotildees curriculares promovidas no ensino de Histoacuteria (no Brasil e alhures) das uacuteltimas deacutecadas exagerado nessa incompatibilidade Teratildeo elas sido capazes de mensurar seus efeitos deleteacuterios diante de sociedades jaacute bastante refrataacuterias a uma histoacuteria cronoloacutegica

95ldquoPouco importa que sua figura tenha sido

mitificada pela propaganda republicana O que importa eacute que ele foi um heroacutei Ele deu sua vida pela paacutetria e pela liberdaderdquo (Programa De laacute pra caacute youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032013) Essa exaltaccedilatildeo da figura de Tiradentes associada agrave Independecircncia conduz o discurso da propaganda eleitoral de um candidato agrave prefeitura de Ouro Preto em 2012 (youtubecomwatchv=eGefgLoRhec 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032014) Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo no dia 09 de setembro de 2013 apoacutes se autocaracterizar como realizador de uma ldquohistoacuteria de carne e ossordquo em contraposiccedilatildeo a produccedilotildees ldquocontaminadas pela anaacutelise marxistardquo que retirariam os personagens da Histoacuteria o jornalista Laurentino Gomes afirma ldquoNo 1822 faccedilo uma comparaccedilatildeo e digo que o uacutenico problema do Joseacute Bonifaacutecio foi nascer no Brasil pois se ele tivesse nascido nos Estados Unidos teria sido maior que o Thomas Jefferson Porque aparentemente ele era mais preparado mais luacutecido que o Thomas Jeffersonrdquo (parte 1 youtubecomwatchv=uGibbLxsZK0 4501 visualizaccedilotildees e 5 comentaacuterios parte 2 youtubecomwatchv=2LQcEcb5kLU 2302 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios acesso em 26032014 Logo voltaremos agrave obra e agraves ideias de L Gomes

96Um exemplo adveacutem do viacutedeo ldquoA verdadeira

independecircncia do Brasilrdquo em que um pastor evangeacutelico em meio a uma cerimocircnia religiosa ldquodesconstroacuteirdquo o quadro de Pedro Ameacuterico acusando-o de pouco verossiacutemil e aponta os desvios morais de D Pedro I de modo a inviabilizaacute-lo como figura histoacuterica digna de memoacuteria (youtubecomwatchv=RsKQr6bgzLA 178 visualizaccedilotildees e 2 comentaacuterios acesso em 24032014) A suposta irrelevacircncia dos personagens envolvidos no processo da independecircncia eacute notaacutevel na fala de um professor de Ensino Meacutedio (youtubecomwatchv=gvWVF9j2KEU 597 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) e de um apresentador de temas religiosos que relativizam a importacircncia do tema ao afirmarem a atual ldquodependecircncia econocircmicardquo do Brasil (youtubecomwatchv=EXyUBY7StF4 383 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Tambeacutem retornaremos a esse tema

sedesconhecimento do brasileiro pela histoacuteria bem como em um de seus efeitos mais contundentes a crenccedila de que eacute possiacutevel reverter tal situaccedilatildeo pela simples mobilizaccedilatildeo formal de datas nomes e eventos Contudo se a Independecircncia se converte em uma catalizadora de referecircncias cronoloacute-gicas ou nominais isso natildeo leva necessariamente a uma historicizaccedilatildeo do tema pelo contraacuterio a mobilizaccedilatildeo de tais referecircncias em termos como os acima mencionados (a data ou o nome por si soacutes) pode resultar no apro-fundamento da tendecircncia agrave confusatildeo temporal jaacute aqui apontada93

Nos meios intelectuais a discussatildeo em torno das formas tempo-rais de vivecircncia coletiva naquilo que se pode chamar ndash recorrendo-se a uma categoria uacutetil ndash de modernidade natildeo eacute nova tampouco estaacute em vias de esgotamento A dificuldade de organizaccedilatildeo do mundo social segundo referecircncias cronoloacutegicas natildeo seraacute em absoluto distintiva de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil embora o contraacuterio deva ser dito em relaccedilatildeo agraves formas assumidas por tais dificuldades (como as noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia) Percebe-se entatildeo o peso do estigma da dificuldade em manejar datas nomes e fatos suposta prova de um desin-teresseignoracircncia que poderia ser combatido com um retorno a velhas formas de se fazer Histoacuteria e nas quais tais elementos eram considera-dos com a essecircncia da compreensatildeo histoacuterica Natildeo parece que as coisas devam propriamente se passar segundo essa representaccedilatildeo embora um dos confrontos existentes na cultura de histoacuteria no Brasil seja sem duacutevida a polarizaccedilatildeo entre a valorizaccedilatildeo da Independecircncia (= de suas datas nomes eventos siacutembolos e supostos valores etc) e a desvalorizaccedilatildeo da mesma (=seu caraacuteter elitista e negociador a diminuiccedilatildeo da histoacuteria do Brasil em comparaccedilatildeo com a de outros paiacuteses a comicidade dessa histoacuteria etc) Eacute plausiacutevel conceber que esta segunda posiccedilatildeo encontre um aliado na con-cepccedilatildeo de incompatibilidade entre uma histoacuteria amparada por referecircncias cronoloacutegicas e ao mesmo tempo em processos estruturas e temas trans-versais do gosto inclusive de muitos acadecircmicos e educadores94

Os exemplos de materiais audiovisuais a traduzirem veicularem e fomentarem esse confronto entre valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo da Inde-pendecircncia satildeo muitos Aleacutem dos jaacute tratados ateacute aqui pode-se mencionar viacutedeos contendo propaganda de instituiccedilotildees puacuteblicas civis e militares de partidos poliacuteticos de grupos maccedilocircnicos de igrejas e de empresas variadas bem como produccedilotildees independentes Neles eacute possiacutevel encontrar desde a exaltaccedilatildeo das referecircncias mais convencionais agrave Independecircncia como a seus personagens (incluindo seu suposto maacutertir Tiradentes)95 ateacute a afirma-ccedilatildeo de sua total irrelevacircncia96 isso costuma ocorrer sem muitos matizes obedecendo a uma loacutegica dicotocircmica plasmada em linguagens simples com descontinuidades discursivas e imageacuteticas e num ritmo de exposiccedilatildeo acelerado Em suma tratam da Independecircncia segundo padrotildees parcial-mente compartilhados tambeacutem por outras fontes ateacute aqui analisadas

Todas essas fontes com suas noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia satildeo sintomaacuteticas de estados de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema bem como potenciais formadores de opiniatildeo dos mesmos Sua capacidade de criaccedilatildeo de conhecimento no entanto se mostra muito limi-tada Eacute bem verdade que esta eacute por vocaccedilatildeo uma tarefa confiada a saberes acadecircmicos ndash jaacute que no Brasil a quase totalidade da pesquisa em Histoacuteria estaacute entregue agraves universidades salvo a de interesse corporativo ndash de modo que natildeo seria de esperar inovaccedilatildeo em suportes tatildeo variados e socialmen-te diversificados quanto os ateacute aqui analisados Mas parece haver aiacute certo

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ciacuterculo vicioso a envolver tambeacutem parte da academia Basta observar que a ideia da ldquonatildeo Independecircncia de fatordquo tatildeo em voga entre tantos historiadores durante tanto tempo reverbera com forccedila na sociedade em geral97 e ainda goza de prestiacutegio ateacute mesmo entre alguns acadecircmicos que bebem-na da sociedade e apoacutes modificaacute-la parcialmente devolvem-na aos espaccedilos de di-vulgaccedilatildeo98 Essa versatildeo da Histoacuteria eacute capaz de transpor fronteiras temporais de atualizar-se em diferentes contextos e ateacute mesmo de superar abissais diferenccedilas poliacuteticas ela estaacute representada por exemplo e de modo quase idecircntico na propaganda poliacutetica de um partido trotskista e na pregaccedilatildeo nacionalista-direitista de um polecircmico professor de histoacuteria99

Por fim tome-se o caso de trecircs produccedilotildees da Rede Globo de Televi-satildeo voltadas ao puacuteblico em geral com consideraacuteveis aportes financeiros e complexa produccedilatildeo a seacuterie documental A Corte no Brasil para exibiccedilatildeo em tevecirc fechada100 e as seacuteries humoriacutesticas O Quinto dos Infernos101 e Eacute muita Histoacuteria Dia de Fuacuteria102 veiculadas amplamente em tevecirc aberta No pri-meiro caso siacutetios histoacutericos visitados pelas apresentadoras uma narrativa soacutebria e informativa de fatos e processos grande quantidade de entrevistas com historiadores ecircnfase em diferentes espaccedilos regionais e internacio-nais e tratamento do tema em muacuteltiplas dimensotildees (poliacutetica econocircmica cultural) No segundo caso uma narrativa romanceada teatral e cocircmica fortemente despolitizada e livremente baseada em trecircs livros de igual teor (um deles publicado haacute quase um seacuteculo)103 praticamente centrada no Rio de Janeiro (um pouco tambeacutem em Portugal muito menos alhures) e nos membros da famiacutelia real portuguesa cuja vida pessoal eacute estruturada em torno de seus haacutebitos excecircntricos (principalmente os sexuais) e vez ou outra de passageiros dramas pessoais104

Finalmente no terceiro caso uma encenaccedilatildeo tambeacutem cocircmica pro-tagonizada por um escritor-autor-ator-palhaccedilo com grande liberdade de criaccedilatildeo mas amparada em informaccedilotildees convenccedilotildees e mitos a oferecer uma versatildeo do Sete de Setembro segundo o estado psico-fisioloacutegico de D Pedro

Eis um exemplo de uma das modalidades assumidas pela disputa em torno de uma Independecircncia valorizada e outra depreciada Pareceria justificaacutevel opor a tal diagnoacutestico a constataccedilatildeo de se tratarem de obras televisivas de distinto teor o que desobriga a segunda e a terceira de qual-quer compromisso com a verdade No entanto interessam-nos mais seus significados e efeitos do que intenccedilotildees Note-se que a primeira documen-tal eacute de circulaccedilatildeo mais restrita que a segunda e a terceira voltadas para grande puacuteblico por isso seus efeitos nesse jogo de criaccedilatildeorecriaccedilatildeo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da Independecircncia satildeo natildeo apenas assimeacutetricos mas tambeacutem concorrentes105 Os esforccedilos de um pro-grama por posicionar o espectador diante de uma histoacuteria processual de encadeamentos temporais e de grupos e conflitos sociais satildeo naturalmente obstados pelos dos outros dois a oferecer uma histoacuteria repleta de anacro-nismos anedoacutetica e biograacutefica em perfeita sintonia com demandas mais amplas de uma sociedade ndash e de alguns de seus componentes mercadoloacutegi-cos jaacute aqui mencionados ndash na qual a vida privada eacute mais valorizada do que a puacuteblica106 Nesse confronto embora as trecircs convivam na mesma cultura de histoacuteria uma Independecircncia tende a prevalecer sobre a outra107

6 ndash A Independecircncia no cinemaEm relaccedilatildeo a livros didaacuteticos programas de televisatildeo e outros materiais audiovisuais as fontes cinematograacuteficas aqui consideradas naturalmente

97Exemplo encontra-se no viacutedeo ldquoAway Nilzer ndash

Independecircncia do Brasilrdquo com grande nuacutemero de visualizaccedilotildees (130677) e de comentaacuterios (1016) que minimiza e ridiculariza natildeo apenas o processo da independecircncia como quaisquer fatos histoacutericos brasileiros de maneira geral (youtubecomwatchv=Vd_kloNeQV0) O Brasil atual como viacutetima de uma exploraccedilatildeo econocircmica mais intensa do que nos tempos coloniais e portanto natildeo-independente aparece na fala de outro professor (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2806 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) e nos comentaacuterios de um boneco marionete de um programa infantil (youtubecomwatchv=9mh3Tu6c4_w 173 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032014)

98Exemplo desse processo de ldquodevoluccedilatildeordquo pode ser

comprovado no viacutedeo ldquoIndependecircncia ou morterdquo (youtubecomwatchv=QUvnz1no1m8 934 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Outros dois exemplos pertinentes satildeo a insistecircncia nas ideias de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil e que a Independecircncia foi uma luta entre brasileiros e portugueses

99Em entrevista a uma rede local de televisatildeo

ouvimos do professor de histoacuteria do Ensino Meacutedio Wander Pugliesi ldquoSe noacutes formos trabalhar com sinceridade o Brasil ainda natildeo eacute independente Na verdade somos muito mais explorados do que quando eacuteramos colocircnia de Portugalrdquo (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2815 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) A mesma relativizaccedilatildeo do processo de independecircncia aparece na fala do candidato agrave presidecircncia em 2010 pelo PSTU Zeacute Maria ldquohoje infelizmente natildeo podemos comemorar uma verdadeira independecircncia do paiacutes Eacute preciso dizer a verdade as multinacionais controlam a economia brasileira As decisotildees fundamentais satildeo tomadas por elas fora do paiacutesrdquo (youtubecomwatchv=ht9Yt0PlGnU 1803 visualizaccedilotildees um comentaacuterio) Acessos em 26032013

100Direccedilatildeo de Carlos Henrique Schroder 2008

Produccedilatildeo de 16 episoacutedios de cerca de 20 minutos cada para o canal da TV fechada GloboNews A seacuterie foi comercializada em DVD e pode ser vista tambeacutem no canal Globosat no Youtube (youtubecomwatchfeature= player_detailpageampv= OUX-zSyaMIc e viacutedeos relacionados Acesso em 27032014)

101Direccedilatildeo de Wolf Maya e Alexandre Avancini e

criaccedilatildeo de Carlos Lombardi 2002 Produccedilatildeo de 48 episoacutedios com cerca de 40 minutos cada para o canal da TV aberta Rede Globo de Televisatildeo A minisseacuterie tambeacutem foi comercializada em DVD e vem sendo (desde janeiro de 2014) reprisada no Canal Viva (rede fechada de televisatildeo filiada Globosat) uma reprise anterior ocorreu de agosto a novembro de 2011 sempre por volta das 23h

102Direccedilatildeo de Joatildeo Carrascosa e Pedro Bial 2007

Produccedilatildeo de 9 capiacutetulos de cerca de 15 minutos

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apresentam especificidades Tendem a diversificar (eventualmente ampliar) o rol de profissionais envolvidos em sua produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo bem como a tratar conteuacutedos em um tempo mais lento criando uma sensaccedilatildeo de homogeneidade de significados reforccedilada pela aderecircncia de tais conteuacutedos a uma trama central Tal homogeneidade por seu turno eacute relativizada por uma liberdade de criaccedilatildeo que dificilmente encontra paralelo em outros dos materiais aqui considerados ndash com a possiacutevel exceccedilatildeo da minisseacuterie O Quinto dos Infernos No entanto quando a comparaccedilatildeo eacute feita com os li-vros didaacuteticos os conteuacutedos relativos agrave Independecircncia no cinema tendem a ser menos numerosos mais superficiais e efecircmeros justamente por serem menos assumidamente informativos do que os dos livros embora isso possa encontrar alguma compensaccedilatildeo em uma linguagem visual de forte apelo emotivo Para todos os efeitos como aponta um estudioso da mateacuteria os filmes de temaacutetica histoacuterica carregam sempre certa ambiguidade ocupam uma espeacutecie de ldquoentrelugarrdquo com forccedila para criar ldquoverdadesrdquo socialmente aceitas108 Nos cinco filmes aqui considerados109 as ldquoverdadesrdquo sobre a Independecircncia tendem a replicar linhas de forccedila jaacute conhecidas mesclando temporalidades correspondentes tanto aos momentos em que foram pro-duzidos quanto aos momentos posteriores em que foram sendo exibidos110

Independecircncia ou Morte produccedilatildeo a serviccedilo das comemoraccedilotildees oficiais do sesquicentenaacuterio da Independecircncia levadas a cabo pelo go-verno ditatorial brasileiro em 1972 mostra uma narrativa de forte teor didaacutetico-pedagoacutegico sem grandes pretensotildees artiacutesticas expliacutecitas111 com diaacutelogos e situaccedilotildees muitas vezes retirados de obras sobre a Independecircncia e tratados de forma literal Sua finalidade eacute clara ldquoensinarrdquo aos especta-dores uma histoacuteria e uma memoacuteria coletivas homogecircneas aplainadas de pluralidades ou de desavenccedilas Uma histoacuteria supostamente indiscutiacutevel porque verdadeira posta a serviccedilo dos tambeacutem supostos interesses mais elevados da naccedilatildeo brasileira (por isso nela a vida privada dos persona-gens eacute toda submetida agrave sua funccedilatildeo poliacutetica inclusive no caso da relaccedilatildeo afetiva entre um D Pedro de boa aparecircncia querido do povo e mulherengo e uma ambiciosa romacircntica e sensiacutevel Domitila112) Uma espeacutecie de cartilha oficial da Independecircncia em imagens na qual se faz presente ateacute mesmo uma recomposiccedilatildeo cecircnica do quadro de Pedro Ameacuterico

Eacute interessante observar como Os Inconfidentes produzido no mesmo ano de 1972 mesmo sendo um filme amparado em abundantes liberdades e experimentos esteacuteticos cheio de ambiguidades propositais e contra-pondo-se ao oficialismo histoacuterico tatildeo em voga agrave eacutepoca por meio de uma metaacutefora na qual os contestadores agrave ditadura brasileira se convertem em sediciosos das Minas Gerais do seacuteculo XVIII natildeo se configura como mate-rial singular e discrepante de Independecircncia ou Morte em pelo menos trecircs sentidos primeiro porque em vaacuterios momentos associa a Inconfidecircncia Mi-neira com a Independecircncia do Brasil a exemplo do que Independecircncia ou Morte prega jaacute em seu primeiro texto didaacutetico113 Segundo porque tambeacutem oficializa eventos convencionalmente tidos por fundacionais da histoacuteria do Brasil (soacute que natildeo os de 1808-1822 mas os de 1788-1789) Terceiro reforccedila a prevalecircncia de indiviacuteduos sobre coletividades da imagem de um heroacutei central da trama e de uma oposiccedilatildeo de interesses maniqueiacutesta que certamente poderia se aplicar com mais rigor ao contexto em que foi feito o filme do que agravequele ao qual formalmente se refere Assim para todos os efeitos substratos de uma concepccedilatildeo de histoacuteria satildeo em ambos convergentes Em um ambiente social multifacetado em termos de no-

cada dentro do programa dominical Fantaacutestico da Rede Globo de Televisatildeo A seacuterie foi baseada no livro Brasil uma Histoacuteria de Eduardo Bueno jornalista que tambeacutem atua na seacuterie (youtubecomwatchv=3LzGKt9Pd0M acesso em 27032014)

103SETUacuteBAL Paulo As Maluquices do Imperador

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1927 CALADO Ivanir A Imperatriz no Fim do Mundo memoacuterias duacutebias de Ameacutelia de Leichtenberg Rio de Janeiro Rio Fundo Editora 1992 e TORERO Joseacute Roberto Galantes memoacuterias e admiraacuteveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes o Chalaccedila Satildeo Paulo Companhia das Letras 1994

104A trama e a narrativa do Quinto dos Infernos

recusam explicitamente a inserccedilatildeo de quaisquer componentes que natildeo os da ordem privada de seus convencionais personagens assim questotildees poliacuteticas satildeo sempre menores do que o apetite sexual de Carlota Joaquina as perversotildees de D Miguel ou a fogosidade de Domitila a economia soacute surge em pontuais pretextos cocircmicos enquanto a escravidatildeo eacute referida exclusivamente por meio de alegres e libidinosas criadas (negras) permanentemente dispostas a servirem aos desejos do heroacutei da histoacuteria D Pedro

105A anaacutelise poderia se completar com a minisseacuterie

A Marquesa de Santos dirigida por Ary Coslov e exibida pela extinta Rede Manchete de televisatildeo em 1984 agrave qual infelizmente natildeo se obteve acesso satisfatoacuterio

106Tal predileccedilatildeo pode ser entendida como mais

um fator caracteriacutestico de um momento em que a articulaccedilatildeo entre aquilo que Guy Debord chamaria de ldquosociedade do espetaacuteculordquo e Adorno e Horkheimer (dentre muitos outros) de ldquoinduacutestria culturalrdquo torna sintomaacutetico a saliecircncia do indiviacuteduo e o esvaziamento da esfera puacuteblica

107A comprovaccedilatildeo do encontro concorrente entre

dois caminhos vem do depoimento de alguns dos proacuteprios envolvidos com a produccedilatildeo do Quinto dos Infernos como o diretor Carlos Lombardi que a ele se refere como ldquoum painel dos personagens importantes do periacuteodordquo Para o produtor Wolf Maia seu objetivo foi ldquorecontar com humor uma velha histoacuteriardquo O ator Humberto Martins viu a seacuterie ldquocontar um pedaccedilo da nossa histoacuteria da histoacuteria do Brasil do nosso povo das nossas raiacutezes pateacutetica e engraccedilada tal como ela se mostra dentro desse produto poreacutem claro mesclada com uma boa dose de humorrdquo enquanto o protagonista Marcos Pasquim afirmou que ldquo[ao fazecirc-la] aprendi muita coisa que natildeo aprendi na escola eu vim aprender agora fazendo a pesquisa para fazer esse personagemrdquo Finalmente para a tambeacutem atriz Bruna Lombardi ldquoO lsquoQuintorsquo contou assim a histoacuteria que a Histoacuteria natildeo conta sabe como eacute as fraquezas da histoacuteriardquo Em ldquoDia de Fuacuteriardquo Pedro Bial e Eduardo Bueno reforccedilam seu discurso satiacuterico por meio de um verniz de verdade trazido pela citaccedilatildeo de documentos oficiais como o relato do Padre Belchior sobre o grito do Ipiranga Aleacutem disso seu discurso eacute elaborado sob o nome de tese logo bem se vecirc como seus propaladores (BialBueno) manipulam siacutembolos

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ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

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Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

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123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

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131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

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138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

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Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

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por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

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muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

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Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 15: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

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Natildeo haacute duacutevida que a maioria dos livros didaacuteticos de Histoacuteria voltados ao Ensino Meacutedio abre possibilidades de construccedilatildeo de um conhecimento acerca da Independecircncia multifacetado matizado criacutetico e criterioso e deles pode-se extrair muitos exemplos a revelarem diaacutelogos propositi-vos entre saberes acadecircmicos e didaacuteticos da Histoacuteria (afinal os proacuteprios autores e avaliadores dos livros estatildeo quase todos diretamente ligados ao meio acadecircmico) aliaacutes em comparaccedilatildeo com os de Ensino Fundamental de cerca de uma deacutecada atraacutes essas possibilidades soacute cresceram Poreacutem como natildeo eacute objetivo deste estudo analisar tais livros em si mesmos -somente deles extrair elementos que tipifiquem uma cultura de histoacuteria por meio da Independecircncia ndash mais relevantes parecem ser justamente alguns de seus pontos sensiacuteveis nos quais tais livros se fazem menos acadecircmicos e nos quais se traduzem de modo mais significativo componentes mais amplos da sociedade que lhes daacute sentido

Em todos esses livros a Independecircncia eacute invariavelmente vista como parte de um processo mais amplo no qual se incluem outros acontecimen-tos poliacuteticos americanos e europeus de finais do seacuteculo XVIII e comeccedilos do seacuteculo XIX (embora quase nunca sejam feitas conexotildees fundamentais entre eles deficiecircncia notaacutevel sobretudo no tocante agraves independecircncias da Ameacuterica espanhola vistas sempre como supostos contraexemplos da Independecircncia do Brasil62) O episoacutedico se faz presente na menccedilatildeo a vaacuterios temas menores ndash a vinda da Corte a abertura dos Portos o governo de D Joatildeo no Rio de Janeiro a Revoluccedilatildeo de Pernambuco a Revoluccedilatildeo do Porto etc ndash mas sempre em observacircncia a contextos histoacutericos espaciais e temporais mais amplos63 Destaque-se que 80 dos livros fazem referecircncia expliacutecita ao termo ldquoguerra(s) de independecircnciardquo64 o que enseja uma con-cepccedilatildeo tambeacutem multirregional do tema e vaacuterios o aprofundam O mesmo pode ser dito de perfis biograacuteficos presentes mas submetidos a uma loacutegica processual da Histoacuteria

Essa ecircnfase em processos em detrimento parcial de acontecimentos e personagens eacute importante indiacutecio de uma sintonia entre saberes aca-decircmicos e natildeo acadecircmicos65 Contudo deve-se relativizar o peso desse diaacutelogo jaacute no que tange ao tratamento dispensado agraves biografias aleacutem de pouco ou nada inovarem na escolha dos personagens destacados66 alguns livros didaacuteticos trazem fragmentos anedoacuteticos de tais trajetoacuterias hoje em dia pouco ou nada uacuteteis a historiadores profissionais (embora as comilan-ccedilas de D Joatildeo os amantes de D Carlota ou as noitadas de D Pedro natildeo os distingua de outros agentes histoacutericos de sua eacutepoca tampouco satildeo trata-dos como tiacutepicos67) Parece razoaacutevel argumentar que ao menos parcial-mente tal insistecircncia da parte do livro didaacutetico atende ao gosto do leitorconsumidor tornando tais suportes materiais mais agradaacuteveis e sedutores assim sendo constata-se justamente um limite no diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e saberes didaacuteticos expressos em tais livros bem como se anuncia uma tendecircncia de representaccedilatildeo humoriacutestica do passado em uma cultura de histoacuteria como a brasileira muito forte em outros suportes68 Eis um mercado ndash que no Brasil mescla dimensotildees editoriais e midiaacuteticas com outras educacionais e culturais mais amplas ndash impondo seus padrotildees de representaccedilatildeo do passado

Aleacutem de envolverem historiadores profissionais em sua produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo os livros didaacuteticos de Ensino Meacutedio parecem esforccedilar-se cada vez mais em trazer conteuacutedos extraiacutedos de obras acadecircmicas bem como apresentar ao leitor uma pluralidade de posiccedilotildees acerca de um determina-

do IpirangaEm meio a uma pescariaSentindo-se mal D PedroComera demais cuscuzDesaperta a braguilhaE grita roxo de raivaOu me livro desta coacutelicaOu morro logo de uma vezO priacutencipe se aliviouSai no caminho cantandoJaacute me sinto independenteSafa Vou de perto a morteVamos cair no fadinhoPra celebrar o sucessordquo MACEDO Joseacute Rivair Brasil ndash uma histoacuteria em construccedilatildeo Satildeo Paulo Brasil 1996 p166 Cit por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p101

69Tomemos por exemplo esta afirmaccedilatildeo ldquoDe acordo

com alguns historiadores as raiacutezes da independecircncia brasileira estatildeo na segunda metade do seacuteculo XVIII quando se multiplicaram atividades produtivas e comerciais na colocircnia sobretudo na regiatildeo Centro-Sulrdquo (MORAES Joseacute Geraldo Vieira de Op Cit p113) Nela eacute possiacutevel reconhecer a presenccedila de influente e importante interpretaccedilatildeo acadecircmica acerca da Independecircncia do Brasil (DIAS Maria Odila A interiorizaccedilatildeo da metroacutepole (1808-1853) In MOTA Carlos Guilherme 1822 dimensotildees Satildeo Paulo Perspectiva 1972 p160-184) no entanto natildeo eacute apresentada qualquer contraposiccedilatildeo (se esta posiccedilatildeo eacute da parte de ldquoalguns historiadoresrdquo outra divergente deve ser da parte de outros) Mais adiante lecirc-se que ldquoo fato relevante foi que a transferecircncia da corte para o Brasil provocou uma inversatildeo histoacuterica de modo significativo e irreversiacutevel nas relaccedilotildees entre a metroacutepole portuguesa e a colocircnia brasileirardquo (Idem p114) Ora o que seria uma inversatildeo irreversiacutevel dessas relaccedilotildees Portugal teria se tornado para sempre colocircnia do Brasil

70Nos livros didaacuteticos de Ensino Fundamental

analisados por Purificaccedilatildeo jaacute eram abundantes as transcriccedilotildees de trechos de textos de historiadores profissionais sem que deles resultasse qualquer ensejo de pluralidade de pensamento ou de estiacutemulo agrave interpretaccedilatildeo

71VAINFAS Ronaldo FARIA Sheila de Castro FERREIRA

Jorge Luiacutes SANTOS Georgina dos Op Cit p 103

72O capiacutetulo 14 de uma das obras intitulado

ldquoO processo de independecircncia da Ameacuterica portuguesardquo inicia-se com um excerto do Romanceiro da Inconfidecircncia de Ceciacutelia Meireles tambeacutem indutor a essa interpretaccedilatildeo ldquoAtraveacutes de grossas portas sentem-se luzes acesas e haacute indagaccedilotildees minuciosas dentro das casas fronteiras Que estatildeo fazendo tatildeo tarde Que escrevem conversam pensam Mostram livros proibidos Leem notiacutecias nas GazetasTeratildeo recebido cartasde potecircncias estrangeiras [] Oacute vitoacuterias festas flores das lutas da Independecircncia Liberdade ndash essa palavra que o sonho humano alimenta que natildeo haacute ningueacutem que explique e ningueacutem que natildeo entendardquo (BRAICK Patriacutecia e MOTA Myriam Op Cit p 202) Jaacute nas ldquosugestotildees de leitura e consulta para o professorrdquo de outra encontra-se indicaccedilatildeo de uma obra de J J Chiavenato - Inconfidecircncia mineira as vaacuterias faces Satildeo Paulo Global 2000 - com este comentaacuterio ldquoo autor mostra o movimento que buscava a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Adotando uma abordagem que parte da realidade socioeconocircmica do periacuteodo este livro releva diferentes aspectos desse momento singular da histoacuteria brasileirardquo (NOGUEIRA Fausto

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do toacutepico que seja decorrente de debates acadecircmicos No entanto ainda eacute frequente que tais conteuacutedos se inclinem agrave pura formalidade dificilmente explicitando divergecircncias oriundas da academia ou resultando em uma tomada de posiccedilatildeo realmente criacutetica perante a histoacuteria69 Ao usuaacuterio do livro eacute apresentada uma suposta pluralidade de pensamento natildeo como ferramenta de obtenccedilatildeo dessa pluralidade mas como estilo de composiccedilatildeo e padronizaccedilatildeo do material didaacutetico70

Esse tipo de atitude formalista pode ser encontrada tambeacutem em propostas de atividades dirigidas ao aluno como esta

A interpretaccedilatildeo sobre a independecircncia do Brasil provocou e ainda provoca muitas divergecircncias Sob o ponto de vista econocircmico alguns pesquisadores defendem que a separaccedilatildeo ocorreu de fato em 1808 [] Outros com interpretaccedilotildees mais poliacuteticas indicam o 7 de setembro de 1822 embora nenhuma medida formal tenha sido tomada nessa data ndash foi um ato simboacutelico Depois da Guerra do Paraguai jornais republicanos argumentavam que [] D Pedro havia atendido aos apelos de independecircncia dos brasileiros mas os teria traiacutedo quando fechou a Assembleia Constituinte em 1823 Enalteciam entatildeo a Inconfidecircncia Mineira (1789) a Revoluccedilatildeo Pernambucana (1817) e a Confederaccedilatildeo do Equador (1824) movimentos com teor republicano conforme as reais aspiraccedilotildees dos brasileiros

Satildeo vaacuterias interpretaccedilotildees que variam de acordo com a posiccedilatildeo poliacutetica ou momento histoacuterico dos autores Alguns intelectuais consideram ateacute mesmo que o Brasil hoje tem uma independecircncia mais nominal do que real pois continuaria dependente dos paiacuteses mais ricos

Em sua opiniatildeo quando o Brasil se tornou um paiacutes independente71

Aqui novamente eacute apresentada uma divergecircncia de interpretaccedilatildeo e vaacuterias satildeo as possibilidades de resposta agrave pergunta quando o Brasil se tornou um paiacutes independente No entanto todas as posiccedilotildees apresentadas parecem equivaler-se pois tudo depende da ldquoposiccedilatildeo poliacuteticardquo ou ldquodo mo-mento histoacutericordquo da pessoa disposta a respondecirc-la Assim e por induccedilatildeo a Inconfidecircncia Mineira poderia ser uma resposta aceitaacutevel conforme visatildeo ainda presente em alguns livros72 e a despeito do contraacuterio que historia-dores vecircm afirmando nas uacuteltimas deacutecadas Do mesmo modo a atividade pareceria aceitar a ldquonatildeo independecircncia de fatordquo ideia muito presente na cultura de histoacuteria no Brasil73 tatildeo sedutora quanto inconsistente do ponto de vista acadecircmico Para o aluno tratar-se-ia de uma questatildeo de simples opccedilatildeo (poliacutetica) diante da qual a Histoacuteria se destemporaliza

Uma Histoacuteria processual mais do que episoacutedica ou personalista uma Histoacuteria permeada de explicaccedilotildees acadecircmicas ao mesmo tempo uma Histoacuteria com limitaccedilotildees em termos de divergecircncias relativizaccedilotildees e possibilidades em aberto condicionada a suportes materiais repletos de convenccedilotildees a tornarem-nos muito parecidos entre si Talvez seja no tra-tamento dispensado a imagens que os livros didaacuteticos melhor revelam tais convenccedilotildees reforccedilando as limitaccedilotildees de seu diaacutelogo com a Histoacuteria acadecirc-mica bem como acentuando suas caracteriacutesticas de mercadoria Todos os livros aqui considerados satildeo carregados de itens especiacuteficos a quebrarem a continuidade do texto e suas paacuteginas satildeo multicoloridas e povoadas por fi-guras como obras de pintores dos seacuteculos XIX e XX74 Quase nunca poreacutem tais imagens satildeo analisadas como fontes histoacutericas confinadas agrave funccedilatildeo de mera ilustraccedilatildeo frequentemente modificadas em cor e tamanho ateacute mesmo mutiladas ndash sem esclarecimento ndash em prol da diagramaccedilatildeo75 Em tais casos inevitavelmente cria-se uma ideia natildeo de uma histoacuteria sujeita a muacuteltiplas interpretaccedilotildees (contrapondo-se portanto a vaacuterias das atividades

e CAPELLARI Marcos Op Cit p71) Em uma terceira obra logo na abertura de um capiacutetulo intitulado ldquoA independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo lecirc-se que ldquoos dias 21 de abril e 7 de setembro feriados nacionais nos fazem lembrar de dois momentos do processo histoacuterico que levou a independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo (COTRIM Gilberto Op Cit p223) A associaccedilatildeo direta entre Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia era mais comumente feita em livros didaacuteticos de deacutecadas atraacutes Um de Ensino Fundamental caracterizava a Revolta de Beckman a Guerra dos Emboabas a Revolta de Felipe dos Santos a Guerra dos Mascates e as conjuraccedilotildees Mineira e Baiana como movimentos nos quais ldquoos revoltosos se opuseram agrave metroacutepole sonhando e lutando pela autonomia do paiacutesrdquo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Nas trilhas da histoacuteria Ensino Fundamental Belo Horizonte Dimensatildeo 1999 v4) Citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p108

73FIGUEIRA Divalte G Op Cit p191 Nos de

Ensino Fundamental AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 CARMO Socircnia S do COUTO Eliane F B A A consolidaccedilatildeo do capitalismo e o Brasil impeacuterio Satildeo Paulo Atual 1997 (Histoacuteria Passado Presente 3) p105 FERREIRA Joseacute Roberto Histoacuteria Ediccedilatildeo Reformulada Satildeo Paulo FTD 1997 (7ordf seacuterie) p65 ALVES Kaacutetia Correia Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p 128 Citados por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p78 84-85 96 e 111

74Debret Rugendas Moreaux Feacutelix Taunay

Constantino Fontes Polliegravere Parreiras Benedito Calixto Delerive Martins Viana Oscar Pereira da Silva Georgina de Albuquerque e Aldemir Martins entre outros

75Isso jaacute era frequente haacute uma deacutecada com livros

de Ensino Fundamental como por exemplo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p126 e COTRIM Geraldo Op Cit p 112 conforme anaacutelise de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p113 e 123 Haacute que se dizer que livros didaacuteticos natildeo satildeo meio exclusivo para esse esvaziamento do valor documental da iconografia havendo na proacutepria publicaccedilatildeo acadecircmica problema semelhante como demonstra CAVENAGHI Airton Joseacute O atlas do impeacuterio do Brazil e as representaccedilotildees presentes no livro Projeto Histoacuteria v 41 2010 p 383-403

76Constataccedilatildeo semelhante agrave de PURIFICACcedilAtildeO Ana

Teresa da Op Cit para os didaacuteticos de Ensino Fundamental

77NOGUEIRA Fausto e CAPELLARI Marcos Op

Cit p255

78Para um deles ldquoo pintor Pedro Ameacuterico imaginou

a cena ocorrida agraves margens do riacho do Ipirangardquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 para outro um ceacutelebre quadro mostraria uma ldquocena de uma

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sessatildeo das cortes de Lisboa reconstituiacuteda pelo pintor Oscar Pereira da Silvardquo Cfr CARMO Socircnia do COUTO Eliane F B A Op Cit p 73 um terceiro propunha ao aluno a seguinte atividade ldquoobserve cuidadosamente as gravuras de Debret que aparecem no texto Descreva cada uma delas e compare as cenas nelas retratadas com as cenas de nossas ruas de hoje Haacute diferenccedila Em que sentidordquo Cfr GARCIA Leocircnidas F Estudos de histoacuteria sociedades contemporacircneas 2 ed rev Goiacircnia Editora da UFG 1996 Manual do Professor p 111 Todas as informaccedilotildees foram retiradas de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p81 88 e 137

79Conforme bem mostrado por Elias Saliba Cfr

SALIBA Elias Experiecircncias e representaccedilotildees sociais reflexotildees sobre o uso e o consumo das imagens Anais do II Encontro Perspectivas do Ensino de Histoacuteria Satildeo Paulo FEUSP 1996 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p119

80Produzida pela Secretaria de Ensino agrave

Distacircncia do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo em parceria com a TV Escola e a Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco com a companhia teatral Matildeo Molenga Parte 1 disponiacutevel em youtubecomwatchv=Z60eHBJ1xjY 18082 visualizaccedilotildees e 15 comentaacuterios parte 2 disponiacutevel em youtubecomwatchv=2QLkP2NDhMg 30100 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios (parte desse episoacutedio tambeacutem disponiacutevel em youtubecomwatchv=bAPUjP7l-lI 18398 visualizaccedilotildees e 16 comentaacuterios acesso em 13022014

81Como Clemente Pereira Gonccedilalves Ledo Cipriano

Barata Paes de Andrade e frei Caneca O fato de se tratar de uma produccedilatildeo pernambucana contribui para tanto

82Semelhante observaccedilatildeo pode ser feita a respeito

dos doze curtos episoacutedios da seacuterie D Joatildeo no Brasil inspirada em uma narrativa em quadrinhos da chegada da Corte ao Brasil seacuterie de animaccedilatildeo produzida pelo Canal Futura baseada no livro de histoacuteria em quadrinhos D Joatildeo Carioca a corte portuguesa chega ao Brasil (1808 - 1821) escrito pela historiadora Lilia Schwarcz e pelo desenhista Spacca (Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007) Novamente tem-se um material convincente afinado em muitos sentidos com um conhecimento acadecircmico mas que ao recorrer agrave saacutetira tambeacutem evoca estereoacutetipos convencionais como por exemplo os mesmos acima mencionados em referecircncia a priacutencipe e princesa Poder-se-ia atribuir tal convencionalismo dentre outros fatores ao de que a primazia da linguagem visual aqui opera duplamente isto eacute com os quadrinhos e tambeacutem com o programa televisivo criado a partir deles amplificando assim os efeitos decorrentes da saturaccedilatildeo visual da sociedade que daacute origem e significado a esse material Para todos os efeitos a imposiccedilatildeo de tais convenccedilotildees eacute forte ateacute mesmo conforme jaacute visto em materiais menos visuais que este Episoacutedio 01 youtubecomwatchv= 9f5RB1zcD5Eamplist=PLyP1ks9vaqhj2y6MmckU DyuXtWmHgPLe5ampindex=1 331 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio episoacutedio 02 youtubecomwatchv= w-BLqvhYPGkamplist=PL5837763F26AB1B87

oferecidas pelos proacuteprios livros) mas de uma histoacuteria imoacutevel a ser captada de modo instantacircneo uma histoacuteria verdadeira Aleacutem do mais confundem-se os diferentes contextos motivaccedilotildees e condiccedilotildees de produccedilatildeo de tais imagens o que equivale agrave oferta de uma confusatildeo temporal que impossibi-lita a compreensatildeo dessa histoacuteria76

As uacutenicas exceccedilotildees satildeo os ceacutelebres quadros de Moreaux e de Pe-dro Ameacuterico Todos os livros didaacuteticos aqui considerados se esforccedilam por submetecirc-los a uma criacutetica muitas vezes comparativa considerando forma conteuacutedo e contexto mesmo assim eacute possiacutevel encontrar afirmaccedilotildees como a de que Ameacuterico teria tido ldquoo intuito de fazer a representaccedilatildeo desse famoso acontecimento da maneira mais fiel possiacutevelrdquo e que ldquomuitos dos elementos representados pelo pintor satildeo sabidamente falsosrdquo77 Provavel-mente satildeo resquiacutecios de um momento anterior no qual os livros didaacuteticos mostravam-se muito menos cuidadosos ateacute mesmo na utilizaccedilatildeo do quadro de Ameacuterico78 mas tambeacutem marcas atuais de uma sociedade de haacutebitos fortemente visuais cuja saturaccedilatildeo de imagens tende a resultar em posturas pouco criacuteticas em relaccedilatildeo ao que se vecirc bem como em indistinccedilatildeo tempo-ral das mesmas79 Haacute que se lembrar por fim e novamente que os textos desses livros satildeo cheios de descontinuidades como se cada pedaccedilo de cada paacutegina tivesse autonomia prescindindo de certo modo da leitura dos demais Guardaratildeo tais constataccedilotildees alguma relaccedilatildeo com as dificuldades apresentadas pelos entrevistados na sondagem de opiniatildeo de organizar visotildees da Histoacuteria da Independecircncia segundo marcos cronoloacutegicos bem como de distinguir diferenccedilas entre intervalos temporais Eacute bem possiacutevel sobretudo porque ela seraacute endossada pela observaccedilatildeo de outras fontes

5 - A Independecircncia na internet e na tevecircExiste farto e rico material audiovisual disponiacutevel na internet com referecircncias agrave Independecircncia do Brasil e que a exemplo dos livros didaacuteticos represen-tam a convergecircncia de esforccedilos profissionais muacuteltiplos (mais os programas de tevecirc do que os viacutedeos independentes) como pesquisadores roteiristas apresentadores repoacuterteres cenoacutegrafos teacutecnicos variados etc As fontes aqui delimitadas perfazem 107 viacutedeos acessiacuteveis no YouTube e que natildeo obstante sua ampliacutessima diversidade convergem em muitos significados

Observe-se o caso de viacutedeos educativos documentaacuterios e programas de televisatildeo com entrevistas e debates que em comum apresentam objetivos formativos e esforccedilos verdadeiros de incorporaccedilatildeo de conteuacutedos acadecircmicos traduzidos em linguagens didaacuteticas Um caso exemplar eacute a seacuterie 500 anos o Brasil - Impeacuterio na TV que conta uma histoacuteria do Brasil da chegada da Corte ao periacuteodo das regecircncias em formato de telejornal com trama romanceada e teatro de bonecos80 Aqui vecirc-se uma Histoacuteria processual com informa-ccedilotildees corretas e amparadas em datas deslocamentos frequentes dos eixos espaciais de observaccedilatildeo (regional internacional) com menccedilatildeo a persona-gens que extrapolam o tradicional ciacuterculo da Corte portuguesa81 e ecircnfase no caraacuteter violento e conflitivo da formaccedilatildeo do Brasil no seacuteculo XIX Mesmo um material histoacuterico-pedagoacutegico desse quilate evoca por exemplo a falta de atributos esteacuteticos de Carlota Joaquina ou a pusilanimidade de seu marido a revelarem mais uma vez o mercadologicamente eficiente componente bio-graacutefico-anedoacutetico no tratamento da Independecircncia advindo de sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria mais ampla82

Em outros casos o fato de programas de televisatildeo buscarem o auxiacutelio de especialistas na Independecircncia revela uma convenccedilatildeo formal como nos

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16566 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios episoacutedio 03 youtubecomwatchv=QvWSE-sF-w4amplist =PL5837763F26AB1B87 18406 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios episoacutedio 04 youtubecomwatchv= 2N5wBvpgyXEamplist=PL5837763F26AB1B87 12808 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 05 youtubecomwatchv=VaHrSAFBf1Uamplist =PL5837763F26AB1B87 14615 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 06 youtubecomwatchv= 8RrCMbOZTsAamplist=PL5837763F26AB1B87 12649 visualizaccedilotildees 10 comentaacuterios episoacutedio 07 youtubecomwatchv=I4cgWo_GHaQ 601 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 08 youtubecomwatchv=rI71YNrLo7o 12299 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 09 youtubecomwatchv=huv2ngnqUd4 367 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios episoacutedio 10 youtubecomwatchv=F2MaLs_kj-w 10842 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios episoacutedio 11 youtubecomwatchv=8zK3D01dXc0 9388 visualizaccedilotildees 05 comentaacuterios episoacutedio 12 youtubecomwatchv=R76BHD--vB8amplist=PL5837763F26AB1B87 12108 visualizaccedilotildees 9 comentaacuterios acessos em 03042014

83NAPOLITANO Marcos A Histoacuteria depois do

papel In Carla Pinsky (org) Fontes Histoacutericas Satildeo Paulo Contexto 2005 p250-252 Napolitano afirma com base em Umberto Eco que a televisatildeo introduziu uma mudanccedila de ritmo de vida familiar e cotidiana bem como o que se pode chamar de hipertrofia sensorial em detrimento da assimilaccedilatildeo conceitual Destaca ainda que eacute preciso pensar a televisatildeo como uma nova experiecircncia social do tempo histoacuterico na medida em que ela faz coincidir o verdadeiro o imaginaacuterio e o real no ponto indivisiacutevel do presente

84Produzida pela rede de emissoras puacuteblicas

TV Brasil Sobre a Revolta dos Alfaiates parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo 767 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=dj04LJJM8bk 2592 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio Sobre a Batalha do Jenipapo parte 1 youtubecomwatchv=zlgsZcj-V3o 2426 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios acesso em 24032013 parte 2 youtubecomwatchv=rAS3dHAvWPQ 1283 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio Sobre Tiradentes youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 408 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013)

85Marco Morel e Luiacutes Henrique Dias Tavares

86Programa De laacute pra caacute Revolta dos Alfaiates

parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo

87Exceccedilatildeo satildeo as entrevistas realizadas por

Mocircnica Teixeira na UnivespTV que estabelecem comunicaccedilatildeo bastante profiacutecua entre a entrevistadora e os acadecircmicos entrevistados (youtubecomwatchv=syXf3WHQRPM 4450 visualizaccedilotildees 06 comentaacuterios youtubecomwatchv=pZk5pFlboqw 3303 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=5pUDP2KUYCY 4128 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios

livros didaacuteticos e a exemplo destes a intenccedilatildeo de acolher uma multipli-cidade de vozes raramente enseja verdadeira pluralidade de pensamento o que ademais eacute dificultado pela natureza curta sinteacutetica e acelerada dos materiais televisivos Nessas situaccedilotildees constata-se que o historiador fala uma coisa mas o entrevistador e o produtor continuam a ldquoescutarrdquo outra o que muitas vezes reforccedila a percepccedilatildeo de descontinuidade narrativa an-teriormente tambeacutem diagnosticada nos livros didaacuteticos e que na televisatildeo adquire contornos de regra83 Os episoacutedios da seacuterie De laacute para caacute educati-vos didaacuteticos aacutevidos por com conhecimentos acadecircmicos e produzidos por uma rede puacuteblica de televisatildeo sem fins lucrativos apresentam interessante exemplo84 No programa dedicado aos acontecimentos de 1798 na Bahia dois historiadores profissionais85 esclarecem que os revoltosos ldquobahien-sesrdquo almejavam a independecircncia apenas da capitania da Bahia o que tem enormes implicaccedilotildees a destituiacuterem tais acontecimentos de qualquer atribu-to supostamente preparatoacuterio da Independecircncia do Brasil (situaccedilatildeo muito semelhante conforme vimos agrave da Inconfidecircncia Mineira) natildeo obstante na abertura do programa seu apresentador declara

A luta pela independecircncia do Brasil foi escrita nas paacuteginas memoraacuteveis da nossa histoacuteria com o sangue de um punhado de brasileiros O mais celebrado foi Tiradentes Mas sete anos depois do martiacuterio de Tiradentes quatro brasileiros pretos pobres pelos mesmos ideais foram enforcados e sentenciados em Salvador86

Em outros momentos o apresentador apesar de ouvir de forma soliacutecita e atenta ao que o entrevistado tem a dizer acaba por negar com sua proacutepria fala parte do conteuacutedo receacutem-ouvido mas sem demonstrar ser essa atitude premeditada ou consciente Afinal eacute difiacutecil desvencilhar-se daquilo que jaacute se ldquosaberdquo daquilo que adveacutem de um ambiente que o tempo todo nos ldquoensinardquo Histoacuteria sem necessariamente disso nos darmos conta87

A incapacidade de assimilaccedilatildeo reciacuteproca de ideias acerca da histoacute-ria entre agentes sociais diversos pode revelar-se de muitos modos Um dos programas da seacuterie Caminhos da Reportagem intitulado Caminhos da Independecircncia o grito nas ruas produzido com as mesmas caracteriacutesticas do anterior aborda a Independecircncia focada em seus panfletos poliacuteticos a partir da pesquisa recente de trecircs historiadores profissionais88 No entan-to e a despeito natildeo soacute de dar ampla voz a eles mas tambeacutem de abordar conteuacutedos didaticamente inovadores a equipe de entrevista que foi agraves ruas natildeo estabeleceu qualquer mediaccedilatildeo entre histoacuterias acadecircmicas e natildeo acadecircmicas pressupondo que todas as pessoas ocupam uma mesma posiccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria Por isso perguntas incompreensiacuteveis89 resultam apenas em situaccedilotildees vexatoacuterias impeditivas da construccedilatildeo de conhecimento sobre o tema

A abordagem de pessoas nas ruas recurso frequentemente utiliza-do por programas televisivos revela dados importantes acerca de como os brasileiros veem a Independecircncia muitas vezes mais por aquilo que eacute perguntado do que por aquilo que eacute respondido90 O programa + Estilo de 07 de setembro de 2011 produzido pela TV Campo Grande com conteuacutedo de variedades destinado a telespectadores de meio de tarde foi agraves ruas (provavelmente de Campo Grande Mato Grosso do Sul) perguntar se as pessoas saberiam dizer o que se comemorava naquele dia Primeiro res-ponde uma jovem com um bebecirc no colo

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youtubecomwatchv=0ZVgCwkt1ms 1384 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1016 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1227 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=ANSHAFLau04 1175 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios) Acessos em 21042014

88Joseacute Murilo de Carvalho Luacutecia Pereira das Neves

e Marcello Basile

89A apresentadora ldquoVocecircs sabem o que significa

corcundardquo Um professor de coleacutegio ldquoDeve ser alguma coisa que estaacute surgindo aiacute no mundo um pouco mais ciberneacutetico porque eu nem na faculdade ouvi falar dos corcundasrdquo Marcos Tomazzeti produtor multimiacutedia ldquoNa minha cabeccedila vem algo de monarquia de rei algo meio poliacuteticordquo Simone Granda bancaacuteria ldquoDicionaacuterio de corcundice Natildeo seirdquo Marilu Guimaratildees dona de casa ldquoPuxa tem tanta coisa importante pra ter dicionaacuterio vai ter justo do corcundistardquo Caminhos da Independecircncia youtubecomwatchv=37XH5UEpjlI acesso em 24032013

90Em perspectiva oposta mas complementar agrave da

sondagem de opiniatildeo aqui utilizada

91E que portanto muito provavelmente ainda natildeo

tinha tido contato formal (escolar) com o tema

92O programa prossegue entatildeo com uma entrevista

com o professor Ian Rari que trata de uma Histoacuteria da Independecircncia processual natildeo centrada em uma uacutenica data ou fato criacutetica etc Mais um momento onde as vaacuterias vozes contempladas pelo programa natildeo dialogam entre si (youtubecomwatchv=xv1LOlwUfFQ 289 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio) Outro exemplo significativo eacute dado pelo programa Conexatildeo Jovem exibido em 06 de setembro de 2012 no qual dois entrevistados ndash Prof Bira professor de Histoacuteria e Marcos Eduardo socioacutelogo ndash utilizam com competecircncia o pouco tempo a eles destinado discorrendo de modo criacutetico sobre a Independecircncia e em linguagem adequada ao puacuteblico jovem ao qual o programa se destina (produccedilatildeo da TV Novo Tempo adventista parte 1 youtubecomwatchv=1IvYOYtju9sgt 74 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=Ofv7QWOJpHo 47 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013) Logo o programa traz uma abordagem feita na rua na qual a entrevistadora pergunta a uma jovem ldquoQuem falou lsquoindependecircncia ou mortersquo agraves margens do riacho do Ipirangardquo Diante da correta resposta a entrevistadora tenta induzir um erro ldquo15 de novembro ou 7 de setembrordquo Aliaacutes a expectativa do programa parece revelada pela entrevistadora logo na primeira pergunta feita a um dos convidados ldquoseraacute que os jovens se interessam pela histoacuteria de seu paiacutesrdquo E embora o material recolhido pelo proacuteprio programa permita resposta afirmativa manteacutem-se a postura negativa preacute-concebida

93Daiacute a relevacircncia de um viacutedeo com fotografias e

um aacuteudio (youtubecomwatchv=UdQ_aAAl3DE)

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoE isso em que ano que foi que aconteceurdquoResposta ldquo1822rdquo

Em seguida outro jovem que provavelmente jaacute tinha respondido a outra pergunta

Pergunta ldquoQuem foi o imperador vocecirc lembrardquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoAcertou Canta pra gente um trecho do hino da independecircnciardquoResposta ldquoAgora natildeo lembrordquo

Agora o programa aborda uma menina de cerca de dez anos clara-mente intimada91

Pergunta Por que eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoNatildeo seirdquoPergunta ldquoNatildeo lembra Vou dar uma dica um fato histoacuterico muito importante para o BrasilrdquoResposta (negativa com a cabeccedila)

Em quarto lugar outra jovem que procura se afastar da cacircmera

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta (ainda tentando se esquivar sorrindo) ldquoNatildeordquoPergunta ldquoNatildeo saberdquoResposta ldquoAh A Independecircncia Eu natildeo prestei atenccedilatildeordquoPergunta Que ano aconteceu a Independecircncia vocecirc lembrardquoResposta ldquoNatildeordquoPergunta ldquoE quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoTambeacutem natildeo lembrordquo

Por fim a entrevista com um senhor de meia-idade comeccedila jaacute com uma resposta

Resposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoQue ano aconteceu issordquoResposta ldquo1888rdquoPergunta ldquo1822 Quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoCerto E onde foi que aconteceu tudo issordquoResposta ldquoSatildeo PaulordquoPergunta ldquoOK [breve silecircncio] Canta um trechinho para noacutes do hino da IndependecircnciardquoResposta ldquoJaacute podeis da paacutetria matildeerdquo [sic -prossegue cantando corretamente]

Em seguida o programa corta para uma sala de aula onde a despeito dos ldquoacertosrdquo obtidos nas ruas a entrevistadora afirma

Diante da dificuldade que noacutes encontramos no centro da cidade para saber informaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil eu vim parar na sala de aula Vai ser aqui que a gente vai descobrir a histoacuteria do paiacutes92

A ideia a priori de que o brasileiro natildeo conhece e natildeo se interessa pela histoacuteria subsidia este e muitos outros programas Aqui o dado mais relevante parece estar precisamente nessa arraigada crenccedila no desinteres-

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da entatildeo prefeita de Ribeiratildeo Preto (Satildeo Paulo) Darcy Vera que afirma durante um desfile de 7 de Setembro dentre vaacuterios desvarios que ldquoTiradentes gritou lsquoIndependecircncia ou mortersquordquo Com 169919 acessos e 149 comentaacuterios (em geral criacuteticos bem humorados e depreciativos) ateacute 20082014 condensa a possibilidade de amplificaccedilatildeo do estigma do natildeo domiacutenio de referecircncias convencionais agrave Independecircncia mas sem fomentar nenhum conhecimento da mesma

94Novamente surge a questatildeo natildeo teratildeo as

renovaccedilotildees curriculares promovidas no ensino de Histoacuteria (no Brasil e alhures) das uacuteltimas deacutecadas exagerado nessa incompatibilidade Teratildeo elas sido capazes de mensurar seus efeitos deleteacuterios diante de sociedades jaacute bastante refrataacuterias a uma histoacuteria cronoloacutegica

95ldquoPouco importa que sua figura tenha sido

mitificada pela propaganda republicana O que importa eacute que ele foi um heroacutei Ele deu sua vida pela paacutetria e pela liberdaderdquo (Programa De laacute pra caacute youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032013) Essa exaltaccedilatildeo da figura de Tiradentes associada agrave Independecircncia conduz o discurso da propaganda eleitoral de um candidato agrave prefeitura de Ouro Preto em 2012 (youtubecomwatchv=eGefgLoRhec 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032014) Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo no dia 09 de setembro de 2013 apoacutes se autocaracterizar como realizador de uma ldquohistoacuteria de carne e ossordquo em contraposiccedilatildeo a produccedilotildees ldquocontaminadas pela anaacutelise marxistardquo que retirariam os personagens da Histoacuteria o jornalista Laurentino Gomes afirma ldquoNo 1822 faccedilo uma comparaccedilatildeo e digo que o uacutenico problema do Joseacute Bonifaacutecio foi nascer no Brasil pois se ele tivesse nascido nos Estados Unidos teria sido maior que o Thomas Jefferson Porque aparentemente ele era mais preparado mais luacutecido que o Thomas Jeffersonrdquo (parte 1 youtubecomwatchv=uGibbLxsZK0 4501 visualizaccedilotildees e 5 comentaacuterios parte 2 youtubecomwatchv=2LQcEcb5kLU 2302 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios acesso em 26032014 Logo voltaremos agrave obra e agraves ideias de L Gomes

96Um exemplo adveacutem do viacutedeo ldquoA verdadeira

independecircncia do Brasilrdquo em que um pastor evangeacutelico em meio a uma cerimocircnia religiosa ldquodesconstroacuteirdquo o quadro de Pedro Ameacuterico acusando-o de pouco verossiacutemil e aponta os desvios morais de D Pedro I de modo a inviabilizaacute-lo como figura histoacuterica digna de memoacuteria (youtubecomwatchv=RsKQr6bgzLA 178 visualizaccedilotildees e 2 comentaacuterios acesso em 24032014) A suposta irrelevacircncia dos personagens envolvidos no processo da independecircncia eacute notaacutevel na fala de um professor de Ensino Meacutedio (youtubecomwatchv=gvWVF9j2KEU 597 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) e de um apresentador de temas religiosos que relativizam a importacircncia do tema ao afirmarem a atual ldquodependecircncia econocircmicardquo do Brasil (youtubecomwatchv=EXyUBY7StF4 383 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Tambeacutem retornaremos a esse tema

sedesconhecimento do brasileiro pela histoacuteria bem como em um de seus efeitos mais contundentes a crenccedila de que eacute possiacutevel reverter tal situaccedilatildeo pela simples mobilizaccedilatildeo formal de datas nomes e eventos Contudo se a Independecircncia se converte em uma catalizadora de referecircncias cronoloacute-gicas ou nominais isso natildeo leva necessariamente a uma historicizaccedilatildeo do tema pelo contraacuterio a mobilizaccedilatildeo de tais referecircncias em termos como os acima mencionados (a data ou o nome por si soacutes) pode resultar no apro-fundamento da tendecircncia agrave confusatildeo temporal jaacute aqui apontada93

Nos meios intelectuais a discussatildeo em torno das formas tempo-rais de vivecircncia coletiva naquilo que se pode chamar ndash recorrendo-se a uma categoria uacutetil ndash de modernidade natildeo eacute nova tampouco estaacute em vias de esgotamento A dificuldade de organizaccedilatildeo do mundo social segundo referecircncias cronoloacutegicas natildeo seraacute em absoluto distintiva de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil embora o contraacuterio deva ser dito em relaccedilatildeo agraves formas assumidas por tais dificuldades (como as noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia) Percebe-se entatildeo o peso do estigma da dificuldade em manejar datas nomes e fatos suposta prova de um desin-teresseignoracircncia que poderia ser combatido com um retorno a velhas formas de se fazer Histoacuteria e nas quais tais elementos eram considera-dos com a essecircncia da compreensatildeo histoacuterica Natildeo parece que as coisas devam propriamente se passar segundo essa representaccedilatildeo embora um dos confrontos existentes na cultura de histoacuteria no Brasil seja sem duacutevida a polarizaccedilatildeo entre a valorizaccedilatildeo da Independecircncia (= de suas datas nomes eventos siacutembolos e supostos valores etc) e a desvalorizaccedilatildeo da mesma (=seu caraacuteter elitista e negociador a diminuiccedilatildeo da histoacuteria do Brasil em comparaccedilatildeo com a de outros paiacuteses a comicidade dessa histoacuteria etc) Eacute plausiacutevel conceber que esta segunda posiccedilatildeo encontre um aliado na con-cepccedilatildeo de incompatibilidade entre uma histoacuteria amparada por referecircncias cronoloacutegicas e ao mesmo tempo em processos estruturas e temas trans-versais do gosto inclusive de muitos acadecircmicos e educadores94

Os exemplos de materiais audiovisuais a traduzirem veicularem e fomentarem esse confronto entre valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo da Inde-pendecircncia satildeo muitos Aleacutem dos jaacute tratados ateacute aqui pode-se mencionar viacutedeos contendo propaganda de instituiccedilotildees puacuteblicas civis e militares de partidos poliacuteticos de grupos maccedilocircnicos de igrejas e de empresas variadas bem como produccedilotildees independentes Neles eacute possiacutevel encontrar desde a exaltaccedilatildeo das referecircncias mais convencionais agrave Independecircncia como a seus personagens (incluindo seu suposto maacutertir Tiradentes)95 ateacute a afirma-ccedilatildeo de sua total irrelevacircncia96 isso costuma ocorrer sem muitos matizes obedecendo a uma loacutegica dicotocircmica plasmada em linguagens simples com descontinuidades discursivas e imageacuteticas e num ritmo de exposiccedilatildeo acelerado Em suma tratam da Independecircncia segundo padrotildees parcial-mente compartilhados tambeacutem por outras fontes ateacute aqui analisadas

Todas essas fontes com suas noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia satildeo sintomaacuteticas de estados de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema bem como potenciais formadores de opiniatildeo dos mesmos Sua capacidade de criaccedilatildeo de conhecimento no entanto se mostra muito limi-tada Eacute bem verdade que esta eacute por vocaccedilatildeo uma tarefa confiada a saberes acadecircmicos ndash jaacute que no Brasil a quase totalidade da pesquisa em Histoacuteria estaacute entregue agraves universidades salvo a de interesse corporativo ndash de modo que natildeo seria de esperar inovaccedilatildeo em suportes tatildeo variados e socialmen-te diversificados quanto os ateacute aqui analisados Mas parece haver aiacute certo

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ciacuterculo vicioso a envolver tambeacutem parte da academia Basta observar que a ideia da ldquonatildeo Independecircncia de fatordquo tatildeo em voga entre tantos historiadores durante tanto tempo reverbera com forccedila na sociedade em geral97 e ainda goza de prestiacutegio ateacute mesmo entre alguns acadecircmicos que bebem-na da sociedade e apoacutes modificaacute-la parcialmente devolvem-na aos espaccedilos de di-vulgaccedilatildeo98 Essa versatildeo da Histoacuteria eacute capaz de transpor fronteiras temporais de atualizar-se em diferentes contextos e ateacute mesmo de superar abissais diferenccedilas poliacuteticas ela estaacute representada por exemplo e de modo quase idecircntico na propaganda poliacutetica de um partido trotskista e na pregaccedilatildeo nacionalista-direitista de um polecircmico professor de histoacuteria99

Por fim tome-se o caso de trecircs produccedilotildees da Rede Globo de Televi-satildeo voltadas ao puacuteblico em geral com consideraacuteveis aportes financeiros e complexa produccedilatildeo a seacuterie documental A Corte no Brasil para exibiccedilatildeo em tevecirc fechada100 e as seacuteries humoriacutesticas O Quinto dos Infernos101 e Eacute muita Histoacuteria Dia de Fuacuteria102 veiculadas amplamente em tevecirc aberta No pri-meiro caso siacutetios histoacutericos visitados pelas apresentadoras uma narrativa soacutebria e informativa de fatos e processos grande quantidade de entrevistas com historiadores ecircnfase em diferentes espaccedilos regionais e internacio-nais e tratamento do tema em muacuteltiplas dimensotildees (poliacutetica econocircmica cultural) No segundo caso uma narrativa romanceada teatral e cocircmica fortemente despolitizada e livremente baseada em trecircs livros de igual teor (um deles publicado haacute quase um seacuteculo)103 praticamente centrada no Rio de Janeiro (um pouco tambeacutem em Portugal muito menos alhures) e nos membros da famiacutelia real portuguesa cuja vida pessoal eacute estruturada em torno de seus haacutebitos excecircntricos (principalmente os sexuais) e vez ou outra de passageiros dramas pessoais104

Finalmente no terceiro caso uma encenaccedilatildeo tambeacutem cocircmica pro-tagonizada por um escritor-autor-ator-palhaccedilo com grande liberdade de criaccedilatildeo mas amparada em informaccedilotildees convenccedilotildees e mitos a oferecer uma versatildeo do Sete de Setembro segundo o estado psico-fisioloacutegico de D Pedro

Eis um exemplo de uma das modalidades assumidas pela disputa em torno de uma Independecircncia valorizada e outra depreciada Pareceria justificaacutevel opor a tal diagnoacutestico a constataccedilatildeo de se tratarem de obras televisivas de distinto teor o que desobriga a segunda e a terceira de qual-quer compromisso com a verdade No entanto interessam-nos mais seus significados e efeitos do que intenccedilotildees Note-se que a primeira documen-tal eacute de circulaccedilatildeo mais restrita que a segunda e a terceira voltadas para grande puacuteblico por isso seus efeitos nesse jogo de criaccedilatildeorecriaccedilatildeo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da Independecircncia satildeo natildeo apenas assimeacutetricos mas tambeacutem concorrentes105 Os esforccedilos de um pro-grama por posicionar o espectador diante de uma histoacuteria processual de encadeamentos temporais e de grupos e conflitos sociais satildeo naturalmente obstados pelos dos outros dois a oferecer uma histoacuteria repleta de anacro-nismos anedoacutetica e biograacutefica em perfeita sintonia com demandas mais amplas de uma sociedade ndash e de alguns de seus componentes mercadoloacutegi-cos jaacute aqui mencionados ndash na qual a vida privada eacute mais valorizada do que a puacuteblica106 Nesse confronto embora as trecircs convivam na mesma cultura de histoacuteria uma Independecircncia tende a prevalecer sobre a outra107

6 ndash A Independecircncia no cinemaEm relaccedilatildeo a livros didaacuteticos programas de televisatildeo e outros materiais audiovisuais as fontes cinematograacuteficas aqui consideradas naturalmente

97Exemplo encontra-se no viacutedeo ldquoAway Nilzer ndash

Independecircncia do Brasilrdquo com grande nuacutemero de visualizaccedilotildees (130677) e de comentaacuterios (1016) que minimiza e ridiculariza natildeo apenas o processo da independecircncia como quaisquer fatos histoacutericos brasileiros de maneira geral (youtubecomwatchv=Vd_kloNeQV0) O Brasil atual como viacutetima de uma exploraccedilatildeo econocircmica mais intensa do que nos tempos coloniais e portanto natildeo-independente aparece na fala de outro professor (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2806 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) e nos comentaacuterios de um boneco marionete de um programa infantil (youtubecomwatchv=9mh3Tu6c4_w 173 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032014)

98Exemplo desse processo de ldquodevoluccedilatildeordquo pode ser

comprovado no viacutedeo ldquoIndependecircncia ou morterdquo (youtubecomwatchv=QUvnz1no1m8 934 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Outros dois exemplos pertinentes satildeo a insistecircncia nas ideias de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil e que a Independecircncia foi uma luta entre brasileiros e portugueses

99Em entrevista a uma rede local de televisatildeo

ouvimos do professor de histoacuteria do Ensino Meacutedio Wander Pugliesi ldquoSe noacutes formos trabalhar com sinceridade o Brasil ainda natildeo eacute independente Na verdade somos muito mais explorados do que quando eacuteramos colocircnia de Portugalrdquo (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2815 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) A mesma relativizaccedilatildeo do processo de independecircncia aparece na fala do candidato agrave presidecircncia em 2010 pelo PSTU Zeacute Maria ldquohoje infelizmente natildeo podemos comemorar uma verdadeira independecircncia do paiacutes Eacute preciso dizer a verdade as multinacionais controlam a economia brasileira As decisotildees fundamentais satildeo tomadas por elas fora do paiacutesrdquo (youtubecomwatchv=ht9Yt0PlGnU 1803 visualizaccedilotildees um comentaacuterio) Acessos em 26032013

100Direccedilatildeo de Carlos Henrique Schroder 2008

Produccedilatildeo de 16 episoacutedios de cerca de 20 minutos cada para o canal da TV fechada GloboNews A seacuterie foi comercializada em DVD e pode ser vista tambeacutem no canal Globosat no Youtube (youtubecomwatchfeature= player_detailpageampv= OUX-zSyaMIc e viacutedeos relacionados Acesso em 27032014)

101Direccedilatildeo de Wolf Maya e Alexandre Avancini e

criaccedilatildeo de Carlos Lombardi 2002 Produccedilatildeo de 48 episoacutedios com cerca de 40 minutos cada para o canal da TV aberta Rede Globo de Televisatildeo A minisseacuterie tambeacutem foi comercializada em DVD e vem sendo (desde janeiro de 2014) reprisada no Canal Viva (rede fechada de televisatildeo filiada Globosat) uma reprise anterior ocorreu de agosto a novembro de 2011 sempre por volta das 23h

102Direccedilatildeo de Joatildeo Carrascosa e Pedro Bial 2007

Produccedilatildeo de 9 capiacutetulos de cerca de 15 minutos

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apresentam especificidades Tendem a diversificar (eventualmente ampliar) o rol de profissionais envolvidos em sua produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo bem como a tratar conteuacutedos em um tempo mais lento criando uma sensaccedilatildeo de homogeneidade de significados reforccedilada pela aderecircncia de tais conteuacutedos a uma trama central Tal homogeneidade por seu turno eacute relativizada por uma liberdade de criaccedilatildeo que dificilmente encontra paralelo em outros dos materiais aqui considerados ndash com a possiacutevel exceccedilatildeo da minisseacuterie O Quinto dos Infernos No entanto quando a comparaccedilatildeo eacute feita com os li-vros didaacuteticos os conteuacutedos relativos agrave Independecircncia no cinema tendem a ser menos numerosos mais superficiais e efecircmeros justamente por serem menos assumidamente informativos do que os dos livros embora isso possa encontrar alguma compensaccedilatildeo em uma linguagem visual de forte apelo emotivo Para todos os efeitos como aponta um estudioso da mateacuteria os filmes de temaacutetica histoacuterica carregam sempre certa ambiguidade ocupam uma espeacutecie de ldquoentrelugarrdquo com forccedila para criar ldquoverdadesrdquo socialmente aceitas108 Nos cinco filmes aqui considerados109 as ldquoverdadesrdquo sobre a Independecircncia tendem a replicar linhas de forccedila jaacute conhecidas mesclando temporalidades correspondentes tanto aos momentos em que foram pro-duzidos quanto aos momentos posteriores em que foram sendo exibidos110

Independecircncia ou Morte produccedilatildeo a serviccedilo das comemoraccedilotildees oficiais do sesquicentenaacuterio da Independecircncia levadas a cabo pelo go-verno ditatorial brasileiro em 1972 mostra uma narrativa de forte teor didaacutetico-pedagoacutegico sem grandes pretensotildees artiacutesticas expliacutecitas111 com diaacutelogos e situaccedilotildees muitas vezes retirados de obras sobre a Independecircncia e tratados de forma literal Sua finalidade eacute clara ldquoensinarrdquo aos especta-dores uma histoacuteria e uma memoacuteria coletivas homogecircneas aplainadas de pluralidades ou de desavenccedilas Uma histoacuteria supostamente indiscutiacutevel porque verdadeira posta a serviccedilo dos tambeacutem supostos interesses mais elevados da naccedilatildeo brasileira (por isso nela a vida privada dos persona-gens eacute toda submetida agrave sua funccedilatildeo poliacutetica inclusive no caso da relaccedilatildeo afetiva entre um D Pedro de boa aparecircncia querido do povo e mulherengo e uma ambiciosa romacircntica e sensiacutevel Domitila112) Uma espeacutecie de cartilha oficial da Independecircncia em imagens na qual se faz presente ateacute mesmo uma recomposiccedilatildeo cecircnica do quadro de Pedro Ameacuterico

Eacute interessante observar como Os Inconfidentes produzido no mesmo ano de 1972 mesmo sendo um filme amparado em abundantes liberdades e experimentos esteacuteticos cheio de ambiguidades propositais e contra-pondo-se ao oficialismo histoacuterico tatildeo em voga agrave eacutepoca por meio de uma metaacutefora na qual os contestadores agrave ditadura brasileira se convertem em sediciosos das Minas Gerais do seacuteculo XVIII natildeo se configura como mate-rial singular e discrepante de Independecircncia ou Morte em pelo menos trecircs sentidos primeiro porque em vaacuterios momentos associa a Inconfidecircncia Mi-neira com a Independecircncia do Brasil a exemplo do que Independecircncia ou Morte prega jaacute em seu primeiro texto didaacutetico113 Segundo porque tambeacutem oficializa eventos convencionalmente tidos por fundacionais da histoacuteria do Brasil (soacute que natildeo os de 1808-1822 mas os de 1788-1789) Terceiro reforccedila a prevalecircncia de indiviacuteduos sobre coletividades da imagem de um heroacutei central da trama e de uma oposiccedilatildeo de interesses maniqueiacutesta que certamente poderia se aplicar com mais rigor ao contexto em que foi feito o filme do que agravequele ao qual formalmente se refere Assim para todos os efeitos substratos de uma concepccedilatildeo de histoacuteria satildeo em ambos convergentes Em um ambiente social multifacetado em termos de no-

cada dentro do programa dominical Fantaacutestico da Rede Globo de Televisatildeo A seacuterie foi baseada no livro Brasil uma Histoacuteria de Eduardo Bueno jornalista que tambeacutem atua na seacuterie (youtubecomwatchv=3LzGKt9Pd0M acesso em 27032014)

103SETUacuteBAL Paulo As Maluquices do Imperador

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1927 CALADO Ivanir A Imperatriz no Fim do Mundo memoacuterias duacutebias de Ameacutelia de Leichtenberg Rio de Janeiro Rio Fundo Editora 1992 e TORERO Joseacute Roberto Galantes memoacuterias e admiraacuteveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes o Chalaccedila Satildeo Paulo Companhia das Letras 1994

104A trama e a narrativa do Quinto dos Infernos

recusam explicitamente a inserccedilatildeo de quaisquer componentes que natildeo os da ordem privada de seus convencionais personagens assim questotildees poliacuteticas satildeo sempre menores do que o apetite sexual de Carlota Joaquina as perversotildees de D Miguel ou a fogosidade de Domitila a economia soacute surge em pontuais pretextos cocircmicos enquanto a escravidatildeo eacute referida exclusivamente por meio de alegres e libidinosas criadas (negras) permanentemente dispostas a servirem aos desejos do heroacutei da histoacuteria D Pedro

105A anaacutelise poderia se completar com a minisseacuterie

A Marquesa de Santos dirigida por Ary Coslov e exibida pela extinta Rede Manchete de televisatildeo em 1984 agrave qual infelizmente natildeo se obteve acesso satisfatoacuterio

106Tal predileccedilatildeo pode ser entendida como mais

um fator caracteriacutestico de um momento em que a articulaccedilatildeo entre aquilo que Guy Debord chamaria de ldquosociedade do espetaacuteculordquo e Adorno e Horkheimer (dentre muitos outros) de ldquoinduacutestria culturalrdquo torna sintomaacutetico a saliecircncia do indiviacuteduo e o esvaziamento da esfera puacuteblica

107A comprovaccedilatildeo do encontro concorrente entre

dois caminhos vem do depoimento de alguns dos proacuteprios envolvidos com a produccedilatildeo do Quinto dos Infernos como o diretor Carlos Lombardi que a ele se refere como ldquoum painel dos personagens importantes do periacuteodordquo Para o produtor Wolf Maia seu objetivo foi ldquorecontar com humor uma velha histoacuteriardquo O ator Humberto Martins viu a seacuterie ldquocontar um pedaccedilo da nossa histoacuteria da histoacuteria do Brasil do nosso povo das nossas raiacutezes pateacutetica e engraccedilada tal como ela se mostra dentro desse produto poreacutem claro mesclada com uma boa dose de humorrdquo enquanto o protagonista Marcos Pasquim afirmou que ldquo[ao fazecirc-la] aprendi muita coisa que natildeo aprendi na escola eu vim aprender agora fazendo a pesquisa para fazer esse personagemrdquo Finalmente para a tambeacutem atriz Bruna Lombardi ldquoO lsquoQuintorsquo contou assim a histoacuteria que a Histoacuteria natildeo conta sabe como eacute as fraquezas da histoacuteriardquo Em ldquoDia de Fuacuteriardquo Pedro Bial e Eduardo Bueno reforccedilam seu discurso satiacuterico por meio de um verniz de verdade trazido pela citaccedilatildeo de documentos oficiais como o relato do Padre Belchior sobre o grito do Ipiranga Aleacutem disso seu discurso eacute elaborado sob o nome de tese logo bem se vecirc como seus propaladores (BialBueno) manipulam siacutembolos

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ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

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Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

29Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

30Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

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138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

32Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

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por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

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muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

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Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 16: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

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do toacutepico que seja decorrente de debates acadecircmicos No entanto ainda eacute frequente que tais conteuacutedos se inclinem agrave pura formalidade dificilmente explicitando divergecircncias oriundas da academia ou resultando em uma tomada de posiccedilatildeo realmente criacutetica perante a histoacuteria69 Ao usuaacuterio do livro eacute apresentada uma suposta pluralidade de pensamento natildeo como ferramenta de obtenccedilatildeo dessa pluralidade mas como estilo de composiccedilatildeo e padronizaccedilatildeo do material didaacutetico70

Esse tipo de atitude formalista pode ser encontrada tambeacutem em propostas de atividades dirigidas ao aluno como esta

A interpretaccedilatildeo sobre a independecircncia do Brasil provocou e ainda provoca muitas divergecircncias Sob o ponto de vista econocircmico alguns pesquisadores defendem que a separaccedilatildeo ocorreu de fato em 1808 [] Outros com interpretaccedilotildees mais poliacuteticas indicam o 7 de setembro de 1822 embora nenhuma medida formal tenha sido tomada nessa data ndash foi um ato simboacutelico Depois da Guerra do Paraguai jornais republicanos argumentavam que [] D Pedro havia atendido aos apelos de independecircncia dos brasileiros mas os teria traiacutedo quando fechou a Assembleia Constituinte em 1823 Enalteciam entatildeo a Inconfidecircncia Mineira (1789) a Revoluccedilatildeo Pernambucana (1817) e a Confederaccedilatildeo do Equador (1824) movimentos com teor republicano conforme as reais aspiraccedilotildees dos brasileiros

Satildeo vaacuterias interpretaccedilotildees que variam de acordo com a posiccedilatildeo poliacutetica ou momento histoacuterico dos autores Alguns intelectuais consideram ateacute mesmo que o Brasil hoje tem uma independecircncia mais nominal do que real pois continuaria dependente dos paiacuteses mais ricos

Em sua opiniatildeo quando o Brasil se tornou um paiacutes independente71

Aqui novamente eacute apresentada uma divergecircncia de interpretaccedilatildeo e vaacuterias satildeo as possibilidades de resposta agrave pergunta quando o Brasil se tornou um paiacutes independente No entanto todas as posiccedilotildees apresentadas parecem equivaler-se pois tudo depende da ldquoposiccedilatildeo poliacuteticardquo ou ldquodo mo-mento histoacutericordquo da pessoa disposta a respondecirc-la Assim e por induccedilatildeo a Inconfidecircncia Mineira poderia ser uma resposta aceitaacutevel conforme visatildeo ainda presente em alguns livros72 e a despeito do contraacuterio que historia-dores vecircm afirmando nas uacuteltimas deacutecadas Do mesmo modo a atividade pareceria aceitar a ldquonatildeo independecircncia de fatordquo ideia muito presente na cultura de histoacuteria no Brasil73 tatildeo sedutora quanto inconsistente do ponto de vista acadecircmico Para o aluno tratar-se-ia de uma questatildeo de simples opccedilatildeo (poliacutetica) diante da qual a Histoacuteria se destemporaliza

Uma Histoacuteria processual mais do que episoacutedica ou personalista uma Histoacuteria permeada de explicaccedilotildees acadecircmicas ao mesmo tempo uma Histoacuteria com limitaccedilotildees em termos de divergecircncias relativizaccedilotildees e possibilidades em aberto condicionada a suportes materiais repletos de convenccedilotildees a tornarem-nos muito parecidos entre si Talvez seja no tra-tamento dispensado a imagens que os livros didaacuteticos melhor revelam tais convenccedilotildees reforccedilando as limitaccedilotildees de seu diaacutelogo com a Histoacuteria acadecirc-mica bem como acentuando suas caracteriacutesticas de mercadoria Todos os livros aqui considerados satildeo carregados de itens especiacuteficos a quebrarem a continuidade do texto e suas paacuteginas satildeo multicoloridas e povoadas por fi-guras como obras de pintores dos seacuteculos XIX e XX74 Quase nunca poreacutem tais imagens satildeo analisadas como fontes histoacutericas confinadas agrave funccedilatildeo de mera ilustraccedilatildeo frequentemente modificadas em cor e tamanho ateacute mesmo mutiladas ndash sem esclarecimento ndash em prol da diagramaccedilatildeo75 Em tais casos inevitavelmente cria-se uma ideia natildeo de uma histoacuteria sujeita a muacuteltiplas interpretaccedilotildees (contrapondo-se portanto a vaacuterias das atividades

e CAPELLARI Marcos Op Cit p71) Em uma terceira obra logo na abertura de um capiacutetulo intitulado ldquoA independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo lecirc-se que ldquoos dias 21 de abril e 7 de setembro feriados nacionais nos fazem lembrar de dois momentos do processo histoacuterico que levou a independecircncia poliacutetica do Brasilrdquo (COTRIM Gilberto Op Cit p223) A associaccedilatildeo direta entre Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia era mais comumente feita em livros didaacuteticos de deacutecadas atraacutes Um de Ensino Fundamental caracterizava a Revolta de Beckman a Guerra dos Emboabas a Revolta de Felipe dos Santos a Guerra dos Mascates e as conjuraccedilotildees Mineira e Baiana como movimentos nos quais ldquoos revoltosos se opuseram agrave metroacutepole sonhando e lutando pela autonomia do paiacutesrdquo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Nas trilhas da histoacuteria Ensino Fundamental Belo Horizonte Dimensatildeo 1999 v4) Citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p108

73FIGUEIRA Divalte G Op Cit p191 Nos de

Ensino Fundamental AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 CARMO Socircnia S do COUTO Eliane F B A A consolidaccedilatildeo do capitalismo e o Brasil impeacuterio Satildeo Paulo Atual 1997 (Histoacuteria Passado Presente 3) p105 FERREIRA Joseacute Roberto Histoacuteria Ediccedilatildeo Reformulada Satildeo Paulo FTD 1997 (7ordf seacuterie) p65 ALVES Kaacutetia Correia Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p 128 Citados por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p78 84-85 96 e 111

74Debret Rugendas Moreaux Feacutelix Taunay

Constantino Fontes Polliegravere Parreiras Benedito Calixto Delerive Martins Viana Oscar Pereira da Silva Georgina de Albuquerque e Aldemir Martins entre outros

75Isso jaacute era frequente haacute uma deacutecada com livros

de Ensino Fundamental como por exemplo ALVES Kaacutetia Correcirca Peixoto e GOMIDE Regina Ceacutelia de Moura Belisaacuterio Op Cit p126 e COTRIM Geraldo Op Cit p 112 conforme anaacutelise de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p113 e 123 Haacute que se dizer que livros didaacuteticos natildeo satildeo meio exclusivo para esse esvaziamento do valor documental da iconografia havendo na proacutepria publicaccedilatildeo acadecircmica problema semelhante como demonstra CAVENAGHI Airton Joseacute O atlas do impeacuterio do Brazil e as representaccedilotildees presentes no livro Projeto Histoacuteria v 41 2010 p 383-403

76Constataccedilatildeo semelhante agrave de PURIFICACcedilAtildeO Ana

Teresa da Op Cit para os didaacuteticos de Ensino Fundamental

77NOGUEIRA Fausto e CAPELLARI Marcos Op

Cit p255

78Para um deles ldquoo pintor Pedro Ameacuterico imaginou

a cena ocorrida agraves margens do riacho do Ipirangardquo (AQUINO Rubim de LOPES Oscar P Campo PIRES Maria Emiacutelia B Op Cit p100 para outro um ceacutelebre quadro mostraria uma ldquocena de uma

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sessatildeo das cortes de Lisboa reconstituiacuteda pelo pintor Oscar Pereira da Silvardquo Cfr CARMO Socircnia do COUTO Eliane F B A Op Cit p 73 um terceiro propunha ao aluno a seguinte atividade ldquoobserve cuidadosamente as gravuras de Debret que aparecem no texto Descreva cada uma delas e compare as cenas nelas retratadas com as cenas de nossas ruas de hoje Haacute diferenccedila Em que sentidordquo Cfr GARCIA Leocircnidas F Estudos de histoacuteria sociedades contemporacircneas 2 ed rev Goiacircnia Editora da UFG 1996 Manual do Professor p 111 Todas as informaccedilotildees foram retiradas de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p81 88 e 137

79Conforme bem mostrado por Elias Saliba Cfr

SALIBA Elias Experiecircncias e representaccedilotildees sociais reflexotildees sobre o uso e o consumo das imagens Anais do II Encontro Perspectivas do Ensino de Histoacuteria Satildeo Paulo FEUSP 1996 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p119

80Produzida pela Secretaria de Ensino agrave

Distacircncia do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo em parceria com a TV Escola e a Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco com a companhia teatral Matildeo Molenga Parte 1 disponiacutevel em youtubecomwatchv=Z60eHBJ1xjY 18082 visualizaccedilotildees e 15 comentaacuterios parte 2 disponiacutevel em youtubecomwatchv=2QLkP2NDhMg 30100 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios (parte desse episoacutedio tambeacutem disponiacutevel em youtubecomwatchv=bAPUjP7l-lI 18398 visualizaccedilotildees e 16 comentaacuterios acesso em 13022014

81Como Clemente Pereira Gonccedilalves Ledo Cipriano

Barata Paes de Andrade e frei Caneca O fato de se tratar de uma produccedilatildeo pernambucana contribui para tanto

82Semelhante observaccedilatildeo pode ser feita a respeito

dos doze curtos episoacutedios da seacuterie D Joatildeo no Brasil inspirada em uma narrativa em quadrinhos da chegada da Corte ao Brasil seacuterie de animaccedilatildeo produzida pelo Canal Futura baseada no livro de histoacuteria em quadrinhos D Joatildeo Carioca a corte portuguesa chega ao Brasil (1808 - 1821) escrito pela historiadora Lilia Schwarcz e pelo desenhista Spacca (Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007) Novamente tem-se um material convincente afinado em muitos sentidos com um conhecimento acadecircmico mas que ao recorrer agrave saacutetira tambeacutem evoca estereoacutetipos convencionais como por exemplo os mesmos acima mencionados em referecircncia a priacutencipe e princesa Poder-se-ia atribuir tal convencionalismo dentre outros fatores ao de que a primazia da linguagem visual aqui opera duplamente isto eacute com os quadrinhos e tambeacutem com o programa televisivo criado a partir deles amplificando assim os efeitos decorrentes da saturaccedilatildeo visual da sociedade que daacute origem e significado a esse material Para todos os efeitos a imposiccedilatildeo de tais convenccedilotildees eacute forte ateacute mesmo conforme jaacute visto em materiais menos visuais que este Episoacutedio 01 youtubecomwatchv= 9f5RB1zcD5Eamplist=PLyP1ks9vaqhj2y6MmckU DyuXtWmHgPLe5ampindex=1 331 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio episoacutedio 02 youtubecomwatchv= w-BLqvhYPGkamplist=PL5837763F26AB1B87

oferecidas pelos proacuteprios livros) mas de uma histoacuteria imoacutevel a ser captada de modo instantacircneo uma histoacuteria verdadeira Aleacutem do mais confundem-se os diferentes contextos motivaccedilotildees e condiccedilotildees de produccedilatildeo de tais imagens o que equivale agrave oferta de uma confusatildeo temporal que impossibi-lita a compreensatildeo dessa histoacuteria76

As uacutenicas exceccedilotildees satildeo os ceacutelebres quadros de Moreaux e de Pe-dro Ameacuterico Todos os livros didaacuteticos aqui considerados se esforccedilam por submetecirc-los a uma criacutetica muitas vezes comparativa considerando forma conteuacutedo e contexto mesmo assim eacute possiacutevel encontrar afirmaccedilotildees como a de que Ameacuterico teria tido ldquoo intuito de fazer a representaccedilatildeo desse famoso acontecimento da maneira mais fiel possiacutevelrdquo e que ldquomuitos dos elementos representados pelo pintor satildeo sabidamente falsosrdquo77 Provavel-mente satildeo resquiacutecios de um momento anterior no qual os livros didaacuteticos mostravam-se muito menos cuidadosos ateacute mesmo na utilizaccedilatildeo do quadro de Ameacuterico78 mas tambeacutem marcas atuais de uma sociedade de haacutebitos fortemente visuais cuja saturaccedilatildeo de imagens tende a resultar em posturas pouco criacuteticas em relaccedilatildeo ao que se vecirc bem como em indistinccedilatildeo tempo-ral das mesmas79 Haacute que se lembrar por fim e novamente que os textos desses livros satildeo cheios de descontinuidades como se cada pedaccedilo de cada paacutegina tivesse autonomia prescindindo de certo modo da leitura dos demais Guardaratildeo tais constataccedilotildees alguma relaccedilatildeo com as dificuldades apresentadas pelos entrevistados na sondagem de opiniatildeo de organizar visotildees da Histoacuteria da Independecircncia segundo marcos cronoloacutegicos bem como de distinguir diferenccedilas entre intervalos temporais Eacute bem possiacutevel sobretudo porque ela seraacute endossada pela observaccedilatildeo de outras fontes

5 - A Independecircncia na internet e na tevecircExiste farto e rico material audiovisual disponiacutevel na internet com referecircncias agrave Independecircncia do Brasil e que a exemplo dos livros didaacuteticos represen-tam a convergecircncia de esforccedilos profissionais muacuteltiplos (mais os programas de tevecirc do que os viacutedeos independentes) como pesquisadores roteiristas apresentadores repoacuterteres cenoacutegrafos teacutecnicos variados etc As fontes aqui delimitadas perfazem 107 viacutedeos acessiacuteveis no YouTube e que natildeo obstante sua ampliacutessima diversidade convergem em muitos significados

Observe-se o caso de viacutedeos educativos documentaacuterios e programas de televisatildeo com entrevistas e debates que em comum apresentam objetivos formativos e esforccedilos verdadeiros de incorporaccedilatildeo de conteuacutedos acadecircmicos traduzidos em linguagens didaacuteticas Um caso exemplar eacute a seacuterie 500 anos o Brasil - Impeacuterio na TV que conta uma histoacuteria do Brasil da chegada da Corte ao periacuteodo das regecircncias em formato de telejornal com trama romanceada e teatro de bonecos80 Aqui vecirc-se uma Histoacuteria processual com informa-ccedilotildees corretas e amparadas em datas deslocamentos frequentes dos eixos espaciais de observaccedilatildeo (regional internacional) com menccedilatildeo a persona-gens que extrapolam o tradicional ciacuterculo da Corte portuguesa81 e ecircnfase no caraacuteter violento e conflitivo da formaccedilatildeo do Brasil no seacuteculo XIX Mesmo um material histoacuterico-pedagoacutegico desse quilate evoca por exemplo a falta de atributos esteacuteticos de Carlota Joaquina ou a pusilanimidade de seu marido a revelarem mais uma vez o mercadologicamente eficiente componente bio-graacutefico-anedoacutetico no tratamento da Independecircncia advindo de sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria mais ampla82

Em outros casos o fato de programas de televisatildeo buscarem o auxiacutelio de especialistas na Independecircncia revela uma convenccedilatildeo formal como nos

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16566 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios episoacutedio 03 youtubecomwatchv=QvWSE-sF-w4amplist =PL5837763F26AB1B87 18406 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios episoacutedio 04 youtubecomwatchv= 2N5wBvpgyXEamplist=PL5837763F26AB1B87 12808 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 05 youtubecomwatchv=VaHrSAFBf1Uamplist =PL5837763F26AB1B87 14615 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 06 youtubecomwatchv= 8RrCMbOZTsAamplist=PL5837763F26AB1B87 12649 visualizaccedilotildees 10 comentaacuterios episoacutedio 07 youtubecomwatchv=I4cgWo_GHaQ 601 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 08 youtubecomwatchv=rI71YNrLo7o 12299 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 09 youtubecomwatchv=huv2ngnqUd4 367 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios episoacutedio 10 youtubecomwatchv=F2MaLs_kj-w 10842 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios episoacutedio 11 youtubecomwatchv=8zK3D01dXc0 9388 visualizaccedilotildees 05 comentaacuterios episoacutedio 12 youtubecomwatchv=R76BHD--vB8amplist=PL5837763F26AB1B87 12108 visualizaccedilotildees 9 comentaacuterios acessos em 03042014

83NAPOLITANO Marcos A Histoacuteria depois do

papel In Carla Pinsky (org) Fontes Histoacutericas Satildeo Paulo Contexto 2005 p250-252 Napolitano afirma com base em Umberto Eco que a televisatildeo introduziu uma mudanccedila de ritmo de vida familiar e cotidiana bem como o que se pode chamar de hipertrofia sensorial em detrimento da assimilaccedilatildeo conceitual Destaca ainda que eacute preciso pensar a televisatildeo como uma nova experiecircncia social do tempo histoacuterico na medida em que ela faz coincidir o verdadeiro o imaginaacuterio e o real no ponto indivisiacutevel do presente

84Produzida pela rede de emissoras puacuteblicas

TV Brasil Sobre a Revolta dos Alfaiates parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo 767 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=dj04LJJM8bk 2592 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio Sobre a Batalha do Jenipapo parte 1 youtubecomwatchv=zlgsZcj-V3o 2426 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios acesso em 24032013 parte 2 youtubecomwatchv=rAS3dHAvWPQ 1283 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio Sobre Tiradentes youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 408 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013)

85Marco Morel e Luiacutes Henrique Dias Tavares

86Programa De laacute pra caacute Revolta dos Alfaiates

parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo

87Exceccedilatildeo satildeo as entrevistas realizadas por

Mocircnica Teixeira na UnivespTV que estabelecem comunicaccedilatildeo bastante profiacutecua entre a entrevistadora e os acadecircmicos entrevistados (youtubecomwatchv=syXf3WHQRPM 4450 visualizaccedilotildees 06 comentaacuterios youtubecomwatchv=pZk5pFlboqw 3303 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=5pUDP2KUYCY 4128 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios

livros didaacuteticos e a exemplo destes a intenccedilatildeo de acolher uma multipli-cidade de vozes raramente enseja verdadeira pluralidade de pensamento o que ademais eacute dificultado pela natureza curta sinteacutetica e acelerada dos materiais televisivos Nessas situaccedilotildees constata-se que o historiador fala uma coisa mas o entrevistador e o produtor continuam a ldquoescutarrdquo outra o que muitas vezes reforccedila a percepccedilatildeo de descontinuidade narrativa an-teriormente tambeacutem diagnosticada nos livros didaacuteticos e que na televisatildeo adquire contornos de regra83 Os episoacutedios da seacuterie De laacute para caacute educati-vos didaacuteticos aacutevidos por com conhecimentos acadecircmicos e produzidos por uma rede puacuteblica de televisatildeo sem fins lucrativos apresentam interessante exemplo84 No programa dedicado aos acontecimentos de 1798 na Bahia dois historiadores profissionais85 esclarecem que os revoltosos ldquobahien-sesrdquo almejavam a independecircncia apenas da capitania da Bahia o que tem enormes implicaccedilotildees a destituiacuterem tais acontecimentos de qualquer atribu-to supostamente preparatoacuterio da Independecircncia do Brasil (situaccedilatildeo muito semelhante conforme vimos agrave da Inconfidecircncia Mineira) natildeo obstante na abertura do programa seu apresentador declara

A luta pela independecircncia do Brasil foi escrita nas paacuteginas memoraacuteveis da nossa histoacuteria com o sangue de um punhado de brasileiros O mais celebrado foi Tiradentes Mas sete anos depois do martiacuterio de Tiradentes quatro brasileiros pretos pobres pelos mesmos ideais foram enforcados e sentenciados em Salvador86

Em outros momentos o apresentador apesar de ouvir de forma soliacutecita e atenta ao que o entrevistado tem a dizer acaba por negar com sua proacutepria fala parte do conteuacutedo receacutem-ouvido mas sem demonstrar ser essa atitude premeditada ou consciente Afinal eacute difiacutecil desvencilhar-se daquilo que jaacute se ldquosaberdquo daquilo que adveacutem de um ambiente que o tempo todo nos ldquoensinardquo Histoacuteria sem necessariamente disso nos darmos conta87

A incapacidade de assimilaccedilatildeo reciacuteproca de ideias acerca da histoacute-ria entre agentes sociais diversos pode revelar-se de muitos modos Um dos programas da seacuterie Caminhos da Reportagem intitulado Caminhos da Independecircncia o grito nas ruas produzido com as mesmas caracteriacutesticas do anterior aborda a Independecircncia focada em seus panfletos poliacuteticos a partir da pesquisa recente de trecircs historiadores profissionais88 No entan-to e a despeito natildeo soacute de dar ampla voz a eles mas tambeacutem de abordar conteuacutedos didaticamente inovadores a equipe de entrevista que foi agraves ruas natildeo estabeleceu qualquer mediaccedilatildeo entre histoacuterias acadecircmicas e natildeo acadecircmicas pressupondo que todas as pessoas ocupam uma mesma posiccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria Por isso perguntas incompreensiacuteveis89 resultam apenas em situaccedilotildees vexatoacuterias impeditivas da construccedilatildeo de conhecimento sobre o tema

A abordagem de pessoas nas ruas recurso frequentemente utiliza-do por programas televisivos revela dados importantes acerca de como os brasileiros veem a Independecircncia muitas vezes mais por aquilo que eacute perguntado do que por aquilo que eacute respondido90 O programa + Estilo de 07 de setembro de 2011 produzido pela TV Campo Grande com conteuacutedo de variedades destinado a telespectadores de meio de tarde foi agraves ruas (provavelmente de Campo Grande Mato Grosso do Sul) perguntar se as pessoas saberiam dizer o que se comemorava naquele dia Primeiro res-ponde uma jovem com um bebecirc no colo

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youtubecomwatchv=0ZVgCwkt1ms 1384 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1016 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1227 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=ANSHAFLau04 1175 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios) Acessos em 21042014

88Joseacute Murilo de Carvalho Luacutecia Pereira das Neves

e Marcello Basile

89A apresentadora ldquoVocecircs sabem o que significa

corcundardquo Um professor de coleacutegio ldquoDeve ser alguma coisa que estaacute surgindo aiacute no mundo um pouco mais ciberneacutetico porque eu nem na faculdade ouvi falar dos corcundasrdquo Marcos Tomazzeti produtor multimiacutedia ldquoNa minha cabeccedila vem algo de monarquia de rei algo meio poliacuteticordquo Simone Granda bancaacuteria ldquoDicionaacuterio de corcundice Natildeo seirdquo Marilu Guimaratildees dona de casa ldquoPuxa tem tanta coisa importante pra ter dicionaacuterio vai ter justo do corcundistardquo Caminhos da Independecircncia youtubecomwatchv=37XH5UEpjlI acesso em 24032013

90Em perspectiva oposta mas complementar agrave da

sondagem de opiniatildeo aqui utilizada

91E que portanto muito provavelmente ainda natildeo

tinha tido contato formal (escolar) com o tema

92O programa prossegue entatildeo com uma entrevista

com o professor Ian Rari que trata de uma Histoacuteria da Independecircncia processual natildeo centrada em uma uacutenica data ou fato criacutetica etc Mais um momento onde as vaacuterias vozes contempladas pelo programa natildeo dialogam entre si (youtubecomwatchv=xv1LOlwUfFQ 289 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio) Outro exemplo significativo eacute dado pelo programa Conexatildeo Jovem exibido em 06 de setembro de 2012 no qual dois entrevistados ndash Prof Bira professor de Histoacuteria e Marcos Eduardo socioacutelogo ndash utilizam com competecircncia o pouco tempo a eles destinado discorrendo de modo criacutetico sobre a Independecircncia e em linguagem adequada ao puacuteblico jovem ao qual o programa se destina (produccedilatildeo da TV Novo Tempo adventista parte 1 youtubecomwatchv=1IvYOYtju9sgt 74 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=Ofv7QWOJpHo 47 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013) Logo o programa traz uma abordagem feita na rua na qual a entrevistadora pergunta a uma jovem ldquoQuem falou lsquoindependecircncia ou mortersquo agraves margens do riacho do Ipirangardquo Diante da correta resposta a entrevistadora tenta induzir um erro ldquo15 de novembro ou 7 de setembrordquo Aliaacutes a expectativa do programa parece revelada pela entrevistadora logo na primeira pergunta feita a um dos convidados ldquoseraacute que os jovens se interessam pela histoacuteria de seu paiacutesrdquo E embora o material recolhido pelo proacuteprio programa permita resposta afirmativa manteacutem-se a postura negativa preacute-concebida

93Daiacute a relevacircncia de um viacutedeo com fotografias e

um aacuteudio (youtubecomwatchv=UdQ_aAAl3DE)

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoE isso em que ano que foi que aconteceurdquoResposta ldquo1822rdquo

Em seguida outro jovem que provavelmente jaacute tinha respondido a outra pergunta

Pergunta ldquoQuem foi o imperador vocecirc lembrardquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoAcertou Canta pra gente um trecho do hino da independecircnciardquoResposta ldquoAgora natildeo lembrordquo

Agora o programa aborda uma menina de cerca de dez anos clara-mente intimada91

Pergunta Por que eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoNatildeo seirdquoPergunta ldquoNatildeo lembra Vou dar uma dica um fato histoacuterico muito importante para o BrasilrdquoResposta (negativa com a cabeccedila)

Em quarto lugar outra jovem que procura se afastar da cacircmera

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta (ainda tentando se esquivar sorrindo) ldquoNatildeordquoPergunta ldquoNatildeo saberdquoResposta ldquoAh A Independecircncia Eu natildeo prestei atenccedilatildeordquoPergunta Que ano aconteceu a Independecircncia vocecirc lembrardquoResposta ldquoNatildeordquoPergunta ldquoE quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoTambeacutem natildeo lembrordquo

Por fim a entrevista com um senhor de meia-idade comeccedila jaacute com uma resposta

Resposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoQue ano aconteceu issordquoResposta ldquo1888rdquoPergunta ldquo1822 Quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoCerto E onde foi que aconteceu tudo issordquoResposta ldquoSatildeo PaulordquoPergunta ldquoOK [breve silecircncio] Canta um trechinho para noacutes do hino da IndependecircnciardquoResposta ldquoJaacute podeis da paacutetria matildeerdquo [sic -prossegue cantando corretamente]

Em seguida o programa corta para uma sala de aula onde a despeito dos ldquoacertosrdquo obtidos nas ruas a entrevistadora afirma

Diante da dificuldade que noacutes encontramos no centro da cidade para saber informaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil eu vim parar na sala de aula Vai ser aqui que a gente vai descobrir a histoacuteria do paiacutes92

A ideia a priori de que o brasileiro natildeo conhece e natildeo se interessa pela histoacuteria subsidia este e muitos outros programas Aqui o dado mais relevante parece estar precisamente nessa arraigada crenccedila no desinteres-

24Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

da entatildeo prefeita de Ribeiratildeo Preto (Satildeo Paulo) Darcy Vera que afirma durante um desfile de 7 de Setembro dentre vaacuterios desvarios que ldquoTiradentes gritou lsquoIndependecircncia ou mortersquordquo Com 169919 acessos e 149 comentaacuterios (em geral criacuteticos bem humorados e depreciativos) ateacute 20082014 condensa a possibilidade de amplificaccedilatildeo do estigma do natildeo domiacutenio de referecircncias convencionais agrave Independecircncia mas sem fomentar nenhum conhecimento da mesma

94Novamente surge a questatildeo natildeo teratildeo as

renovaccedilotildees curriculares promovidas no ensino de Histoacuteria (no Brasil e alhures) das uacuteltimas deacutecadas exagerado nessa incompatibilidade Teratildeo elas sido capazes de mensurar seus efeitos deleteacuterios diante de sociedades jaacute bastante refrataacuterias a uma histoacuteria cronoloacutegica

95ldquoPouco importa que sua figura tenha sido

mitificada pela propaganda republicana O que importa eacute que ele foi um heroacutei Ele deu sua vida pela paacutetria e pela liberdaderdquo (Programa De laacute pra caacute youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032013) Essa exaltaccedilatildeo da figura de Tiradentes associada agrave Independecircncia conduz o discurso da propaganda eleitoral de um candidato agrave prefeitura de Ouro Preto em 2012 (youtubecomwatchv=eGefgLoRhec 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032014) Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo no dia 09 de setembro de 2013 apoacutes se autocaracterizar como realizador de uma ldquohistoacuteria de carne e ossordquo em contraposiccedilatildeo a produccedilotildees ldquocontaminadas pela anaacutelise marxistardquo que retirariam os personagens da Histoacuteria o jornalista Laurentino Gomes afirma ldquoNo 1822 faccedilo uma comparaccedilatildeo e digo que o uacutenico problema do Joseacute Bonifaacutecio foi nascer no Brasil pois se ele tivesse nascido nos Estados Unidos teria sido maior que o Thomas Jefferson Porque aparentemente ele era mais preparado mais luacutecido que o Thomas Jeffersonrdquo (parte 1 youtubecomwatchv=uGibbLxsZK0 4501 visualizaccedilotildees e 5 comentaacuterios parte 2 youtubecomwatchv=2LQcEcb5kLU 2302 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios acesso em 26032014 Logo voltaremos agrave obra e agraves ideias de L Gomes

96Um exemplo adveacutem do viacutedeo ldquoA verdadeira

independecircncia do Brasilrdquo em que um pastor evangeacutelico em meio a uma cerimocircnia religiosa ldquodesconstroacuteirdquo o quadro de Pedro Ameacuterico acusando-o de pouco verossiacutemil e aponta os desvios morais de D Pedro I de modo a inviabilizaacute-lo como figura histoacuterica digna de memoacuteria (youtubecomwatchv=RsKQr6bgzLA 178 visualizaccedilotildees e 2 comentaacuterios acesso em 24032014) A suposta irrelevacircncia dos personagens envolvidos no processo da independecircncia eacute notaacutevel na fala de um professor de Ensino Meacutedio (youtubecomwatchv=gvWVF9j2KEU 597 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) e de um apresentador de temas religiosos que relativizam a importacircncia do tema ao afirmarem a atual ldquodependecircncia econocircmicardquo do Brasil (youtubecomwatchv=EXyUBY7StF4 383 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Tambeacutem retornaremos a esse tema

sedesconhecimento do brasileiro pela histoacuteria bem como em um de seus efeitos mais contundentes a crenccedila de que eacute possiacutevel reverter tal situaccedilatildeo pela simples mobilizaccedilatildeo formal de datas nomes e eventos Contudo se a Independecircncia se converte em uma catalizadora de referecircncias cronoloacute-gicas ou nominais isso natildeo leva necessariamente a uma historicizaccedilatildeo do tema pelo contraacuterio a mobilizaccedilatildeo de tais referecircncias em termos como os acima mencionados (a data ou o nome por si soacutes) pode resultar no apro-fundamento da tendecircncia agrave confusatildeo temporal jaacute aqui apontada93

Nos meios intelectuais a discussatildeo em torno das formas tempo-rais de vivecircncia coletiva naquilo que se pode chamar ndash recorrendo-se a uma categoria uacutetil ndash de modernidade natildeo eacute nova tampouco estaacute em vias de esgotamento A dificuldade de organizaccedilatildeo do mundo social segundo referecircncias cronoloacutegicas natildeo seraacute em absoluto distintiva de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil embora o contraacuterio deva ser dito em relaccedilatildeo agraves formas assumidas por tais dificuldades (como as noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia) Percebe-se entatildeo o peso do estigma da dificuldade em manejar datas nomes e fatos suposta prova de um desin-teresseignoracircncia que poderia ser combatido com um retorno a velhas formas de se fazer Histoacuteria e nas quais tais elementos eram considera-dos com a essecircncia da compreensatildeo histoacuterica Natildeo parece que as coisas devam propriamente se passar segundo essa representaccedilatildeo embora um dos confrontos existentes na cultura de histoacuteria no Brasil seja sem duacutevida a polarizaccedilatildeo entre a valorizaccedilatildeo da Independecircncia (= de suas datas nomes eventos siacutembolos e supostos valores etc) e a desvalorizaccedilatildeo da mesma (=seu caraacuteter elitista e negociador a diminuiccedilatildeo da histoacuteria do Brasil em comparaccedilatildeo com a de outros paiacuteses a comicidade dessa histoacuteria etc) Eacute plausiacutevel conceber que esta segunda posiccedilatildeo encontre um aliado na con-cepccedilatildeo de incompatibilidade entre uma histoacuteria amparada por referecircncias cronoloacutegicas e ao mesmo tempo em processos estruturas e temas trans-versais do gosto inclusive de muitos acadecircmicos e educadores94

Os exemplos de materiais audiovisuais a traduzirem veicularem e fomentarem esse confronto entre valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo da Inde-pendecircncia satildeo muitos Aleacutem dos jaacute tratados ateacute aqui pode-se mencionar viacutedeos contendo propaganda de instituiccedilotildees puacuteblicas civis e militares de partidos poliacuteticos de grupos maccedilocircnicos de igrejas e de empresas variadas bem como produccedilotildees independentes Neles eacute possiacutevel encontrar desde a exaltaccedilatildeo das referecircncias mais convencionais agrave Independecircncia como a seus personagens (incluindo seu suposto maacutertir Tiradentes)95 ateacute a afirma-ccedilatildeo de sua total irrelevacircncia96 isso costuma ocorrer sem muitos matizes obedecendo a uma loacutegica dicotocircmica plasmada em linguagens simples com descontinuidades discursivas e imageacuteticas e num ritmo de exposiccedilatildeo acelerado Em suma tratam da Independecircncia segundo padrotildees parcial-mente compartilhados tambeacutem por outras fontes ateacute aqui analisadas

Todas essas fontes com suas noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia satildeo sintomaacuteticas de estados de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema bem como potenciais formadores de opiniatildeo dos mesmos Sua capacidade de criaccedilatildeo de conhecimento no entanto se mostra muito limi-tada Eacute bem verdade que esta eacute por vocaccedilatildeo uma tarefa confiada a saberes acadecircmicos ndash jaacute que no Brasil a quase totalidade da pesquisa em Histoacuteria estaacute entregue agraves universidades salvo a de interesse corporativo ndash de modo que natildeo seria de esperar inovaccedilatildeo em suportes tatildeo variados e socialmen-te diversificados quanto os ateacute aqui analisados Mas parece haver aiacute certo

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ciacuterculo vicioso a envolver tambeacutem parte da academia Basta observar que a ideia da ldquonatildeo Independecircncia de fatordquo tatildeo em voga entre tantos historiadores durante tanto tempo reverbera com forccedila na sociedade em geral97 e ainda goza de prestiacutegio ateacute mesmo entre alguns acadecircmicos que bebem-na da sociedade e apoacutes modificaacute-la parcialmente devolvem-na aos espaccedilos de di-vulgaccedilatildeo98 Essa versatildeo da Histoacuteria eacute capaz de transpor fronteiras temporais de atualizar-se em diferentes contextos e ateacute mesmo de superar abissais diferenccedilas poliacuteticas ela estaacute representada por exemplo e de modo quase idecircntico na propaganda poliacutetica de um partido trotskista e na pregaccedilatildeo nacionalista-direitista de um polecircmico professor de histoacuteria99

Por fim tome-se o caso de trecircs produccedilotildees da Rede Globo de Televi-satildeo voltadas ao puacuteblico em geral com consideraacuteveis aportes financeiros e complexa produccedilatildeo a seacuterie documental A Corte no Brasil para exibiccedilatildeo em tevecirc fechada100 e as seacuteries humoriacutesticas O Quinto dos Infernos101 e Eacute muita Histoacuteria Dia de Fuacuteria102 veiculadas amplamente em tevecirc aberta No pri-meiro caso siacutetios histoacutericos visitados pelas apresentadoras uma narrativa soacutebria e informativa de fatos e processos grande quantidade de entrevistas com historiadores ecircnfase em diferentes espaccedilos regionais e internacio-nais e tratamento do tema em muacuteltiplas dimensotildees (poliacutetica econocircmica cultural) No segundo caso uma narrativa romanceada teatral e cocircmica fortemente despolitizada e livremente baseada em trecircs livros de igual teor (um deles publicado haacute quase um seacuteculo)103 praticamente centrada no Rio de Janeiro (um pouco tambeacutem em Portugal muito menos alhures) e nos membros da famiacutelia real portuguesa cuja vida pessoal eacute estruturada em torno de seus haacutebitos excecircntricos (principalmente os sexuais) e vez ou outra de passageiros dramas pessoais104

Finalmente no terceiro caso uma encenaccedilatildeo tambeacutem cocircmica pro-tagonizada por um escritor-autor-ator-palhaccedilo com grande liberdade de criaccedilatildeo mas amparada em informaccedilotildees convenccedilotildees e mitos a oferecer uma versatildeo do Sete de Setembro segundo o estado psico-fisioloacutegico de D Pedro

Eis um exemplo de uma das modalidades assumidas pela disputa em torno de uma Independecircncia valorizada e outra depreciada Pareceria justificaacutevel opor a tal diagnoacutestico a constataccedilatildeo de se tratarem de obras televisivas de distinto teor o que desobriga a segunda e a terceira de qual-quer compromisso com a verdade No entanto interessam-nos mais seus significados e efeitos do que intenccedilotildees Note-se que a primeira documen-tal eacute de circulaccedilatildeo mais restrita que a segunda e a terceira voltadas para grande puacuteblico por isso seus efeitos nesse jogo de criaccedilatildeorecriaccedilatildeo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da Independecircncia satildeo natildeo apenas assimeacutetricos mas tambeacutem concorrentes105 Os esforccedilos de um pro-grama por posicionar o espectador diante de uma histoacuteria processual de encadeamentos temporais e de grupos e conflitos sociais satildeo naturalmente obstados pelos dos outros dois a oferecer uma histoacuteria repleta de anacro-nismos anedoacutetica e biograacutefica em perfeita sintonia com demandas mais amplas de uma sociedade ndash e de alguns de seus componentes mercadoloacutegi-cos jaacute aqui mencionados ndash na qual a vida privada eacute mais valorizada do que a puacuteblica106 Nesse confronto embora as trecircs convivam na mesma cultura de histoacuteria uma Independecircncia tende a prevalecer sobre a outra107

6 ndash A Independecircncia no cinemaEm relaccedilatildeo a livros didaacuteticos programas de televisatildeo e outros materiais audiovisuais as fontes cinematograacuteficas aqui consideradas naturalmente

97Exemplo encontra-se no viacutedeo ldquoAway Nilzer ndash

Independecircncia do Brasilrdquo com grande nuacutemero de visualizaccedilotildees (130677) e de comentaacuterios (1016) que minimiza e ridiculariza natildeo apenas o processo da independecircncia como quaisquer fatos histoacutericos brasileiros de maneira geral (youtubecomwatchv=Vd_kloNeQV0) O Brasil atual como viacutetima de uma exploraccedilatildeo econocircmica mais intensa do que nos tempos coloniais e portanto natildeo-independente aparece na fala de outro professor (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2806 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) e nos comentaacuterios de um boneco marionete de um programa infantil (youtubecomwatchv=9mh3Tu6c4_w 173 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032014)

98Exemplo desse processo de ldquodevoluccedilatildeordquo pode ser

comprovado no viacutedeo ldquoIndependecircncia ou morterdquo (youtubecomwatchv=QUvnz1no1m8 934 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Outros dois exemplos pertinentes satildeo a insistecircncia nas ideias de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil e que a Independecircncia foi uma luta entre brasileiros e portugueses

99Em entrevista a uma rede local de televisatildeo

ouvimos do professor de histoacuteria do Ensino Meacutedio Wander Pugliesi ldquoSe noacutes formos trabalhar com sinceridade o Brasil ainda natildeo eacute independente Na verdade somos muito mais explorados do que quando eacuteramos colocircnia de Portugalrdquo (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2815 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) A mesma relativizaccedilatildeo do processo de independecircncia aparece na fala do candidato agrave presidecircncia em 2010 pelo PSTU Zeacute Maria ldquohoje infelizmente natildeo podemos comemorar uma verdadeira independecircncia do paiacutes Eacute preciso dizer a verdade as multinacionais controlam a economia brasileira As decisotildees fundamentais satildeo tomadas por elas fora do paiacutesrdquo (youtubecomwatchv=ht9Yt0PlGnU 1803 visualizaccedilotildees um comentaacuterio) Acessos em 26032013

100Direccedilatildeo de Carlos Henrique Schroder 2008

Produccedilatildeo de 16 episoacutedios de cerca de 20 minutos cada para o canal da TV fechada GloboNews A seacuterie foi comercializada em DVD e pode ser vista tambeacutem no canal Globosat no Youtube (youtubecomwatchfeature= player_detailpageampv= OUX-zSyaMIc e viacutedeos relacionados Acesso em 27032014)

101Direccedilatildeo de Wolf Maya e Alexandre Avancini e

criaccedilatildeo de Carlos Lombardi 2002 Produccedilatildeo de 48 episoacutedios com cerca de 40 minutos cada para o canal da TV aberta Rede Globo de Televisatildeo A minisseacuterie tambeacutem foi comercializada em DVD e vem sendo (desde janeiro de 2014) reprisada no Canal Viva (rede fechada de televisatildeo filiada Globosat) uma reprise anterior ocorreu de agosto a novembro de 2011 sempre por volta das 23h

102Direccedilatildeo de Joatildeo Carrascosa e Pedro Bial 2007

Produccedilatildeo de 9 capiacutetulos de cerca de 15 minutos

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apresentam especificidades Tendem a diversificar (eventualmente ampliar) o rol de profissionais envolvidos em sua produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo bem como a tratar conteuacutedos em um tempo mais lento criando uma sensaccedilatildeo de homogeneidade de significados reforccedilada pela aderecircncia de tais conteuacutedos a uma trama central Tal homogeneidade por seu turno eacute relativizada por uma liberdade de criaccedilatildeo que dificilmente encontra paralelo em outros dos materiais aqui considerados ndash com a possiacutevel exceccedilatildeo da minisseacuterie O Quinto dos Infernos No entanto quando a comparaccedilatildeo eacute feita com os li-vros didaacuteticos os conteuacutedos relativos agrave Independecircncia no cinema tendem a ser menos numerosos mais superficiais e efecircmeros justamente por serem menos assumidamente informativos do que os dos livros embora isso possa encontrar alguma compensaccedilatildeo em uma linguagem visual de forte apelo emotivo Para todos os efeitos como aponta um estudioso da mateacuteria os filmes de temaacutetica histoacuterica carregam sempre certa ambiguidade ocupam uma espeacutecie de ldquoentrelugarrdquo com forccedila para criar ldquoverdadesrdquo socialmente aceitas108 Nos cinco filmes aqui considerados109 as ldquoverdadesrdquo sobre a Independecircncia tendem a replicar linhas de forccedila jaacute conhecidas mesclando temporalidades correspondentes tanto aos momentos em que foram pro-duzidos quanto aos momentos posteriores em que foram sendo exibidos110

Independecircncia ou Morte produccedilatildeo a serviccedilo das comemoraccedilotildees oficiais do sesquicentenaacuterio da Independecircncia levadas a cabo pelo go-verno ditatorial brasileiro em 1972 mostra uma narrativa de forte teor didaacutetico-pedagoacutegico sem grandes pretensotildees artiacutesticas expliacutecitas111 com diaacutelogos e situaccedilotildees muitas vezes retirados de obras sobre a Independecircncia e tratados de forma literal Sua finalidade eacute clara ldquoensinarrdquo aos especta-dores uma histoacuteria e uma memoacuteria coletivas homogecircneas aplainadas de pluralidades ou de desavenccedilas Uma histoacuteria supostamente indiscutiacutevel porque verdadeira posta a serviccedilo dos tambeacutem supostos interesses mais elevados da naccedilatildeo brasileira (por isso nela a vida privada dos persona-gens eacute toda submetida agrave sua funccedilatildeo poliacutetica inclusive no caso da relaccedilatildeo afetiva entre um D Pedro de boa aparecircncia querido do povo e mulherengo e uma ambiciosa romacircntica e sensiacutevel Domitila112) Uma espeacutecie de cartilha oficial da Independecircncia em imagens na qual se faz presente ateacute mesmo uma recomposiccedilatildeo cecircnica do quadro de Pedro Ameacuterico

Eacute interessante observar como Os Inconfidentes produzido no mesmo ano de 1972 mesmo sendo um filme amparado em abundantes liberdades e experimentos esteacuteticos cheio de ambiguidades propositais e contra-pondo-se ao oficialismo histoacuterico tatildeo em voga agrave eacutepoca por meio de uma metaacutefora na qual os contestadores agrave ditadura brasileira se convertem em sediciosos das Minas Gerais do seacuteculo XVIII natildeo se configura como mate-rial singular e discrepante de Independecircncia ou Morte em pelo menos trecircs sentidos primeiro porque em vaacuterios momentos associa a Inconfidecircncia Mi-neira com a Independecircncia do Brasil a exemplo do que Independecircncia ou Morte prega jaacute em seu primeiro texto didaacutetico113 Segundo porque tambeacutem oficializa eventos convencionalmente tidos por fundacionais da histoacuteria do Brasil (soacute que natildeo os de 1808-1822 mas os de 1788-1789) Terceiro reforccedila a prevalecircncia de indiviacuteduos sobre coletividades da imagem de um heroacutei central da trama e de uma oposiccedilatildeo de interesses maniqueiacutesta que certamente poderia se aplicar com mais rigor ao contexto em que foi feito o filme do que agravequele ao qual formalmente se refere Assim para todos os efeitos substratos de uma concepccedilatildeo de histoacuteria satildeo em ambos convergentes Em um ambiente social multifacetado em termos de no-

cada dentro do programa dominical Fantaacutestico da Rede Globo de Televisatildeo A seacuterie foi baseada no livro Brasil uma Histoacuteria de Eduardo Bueno jornalista que tambeacutem atua na seacuterie (youtubecomwatchv=3LzGKt9Pd0M acesso em 27032014)

103SETUacuteBAL Paulo As Maluquices do Imperador

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1927 CALADO Ivanir A Imperatriz no Fim do Mundo memoacuterias duacutebias de Ameacutelia de Leichtenberg Rio de Janeiro Rio Fundo Editora 1992 e TORERO Joseacute Roberto Galantes memoacuterias e admiraacuteveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes o Chalaccedila Satildeo Paulo Companhia das Letras 1994

104A trama e a narrativa do Quinto dos Infernos

recusam explicitamente a inserccedilatildeo de quaisquer componentes que natildeo os da ordem privada de seus convencionais personagens assim questotildees poliacuteticas satildeo sempre menores do que o apetite sexual de Carlota Joaquina as perversotildees de D Miguel ou a fogosidade de Domitila a economia soacute surge em pontuais pretextos cocircmicos enquanto a escravidatildeo eacute referida exclusivamente por meio de alegres e libidinosas criadas (negras) permanentemente dispostas a servirem aos desejos do heroacutei da histoacuteria D Pedro

105A anaacutelise poderia se completar com a minisseacuterie

A Marquesa de Santos dirigida por Ary Coslov e exibida pela extinta Rede Manchete de televisatildeo em 1984 agrave qual infelizmente natildeo se obteve acesso satisfatoacuterio

106Tal predileccedilatildeo pode ser entendida como mais

um fator caracteriacutestico de um momento em que a articulaccedilatildeo entre aquilo que Guy Debord chamaria de ldquosociedade do espetaacuteculordquo e Adorno e Horkheimer (dentre muitos outros) de ldquoinduacutestria culturalrdquo torna sintomaacutetico a saliecircncia do indiviacuteduo e o esvaziamento da esfera puacuteblica

107A comprovaccedilatildeo do encontro concorrente entre

dois caminhos vem do depoimento de alguns dos proacuteprios envolvidos com a produccedilatildeo do Quinto dos Infernos como o diretor Carlos Lombardi que a ele se refere como ldquoum painel dos personagens importantes do periacuteodordquo Para o produtor Wolf Maia seu objetivo foi ldquorecontar com humor uma velha histoacuteriardquo O ator Humberto Martins viu a seacuterie ldquocontar um pedaccedilo da nossa histoacuteria da histoacuteria do Brasil do nosso povo das nossas raiacutezes pateacutetica e engraccedilada tal como ela se mostra dentro desse produto poreacutem claro mesclada com uma boa dose de humorrdquo enquanto o protagonista Marcos Pasquim afirmou que ldquo[ao fazecirc-la] aprendi muita coisa que natildeo aprendi na escola eu vim aprender agora fazendo a pesquisa para fazer esse personagemrdquo Finalmente para a tambeacutem atriz Bruna Lombardi ldquoO lsquoQuintorsquo contou assim a histoacuteria que a Histoacuteria natildeo conta sabe como eacute as fraquezas da histoacuteriardquo Em ldquoDia de Fuacuteriardquo Pedro Bial e Eduardo Bueno reforccedilam seu discurso satiacuterico por meio de um verniz de verdade trazido pela citaccedilatildeo de documentos oficiais como o relato do Padre Belchior sobre o grito do Ipiranga Aleacutem disso seu discurso eacute elaborado sob o nome de tese logo bem se vecirc como seus propaladores (BialBueno) manipulam siacutembolos

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ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

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Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

29Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

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131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

31Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

32Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

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por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

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muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

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Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 17: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

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sessatildeo das cortes de Lisboa reconstituiacuteda pelo pintor Oscar Pereira da Silvardquo Cfr CARMO Socircnia do COUTO Eliane F B A Op Cit p 73 um terceiro propunha ao aluno a seguinte atividade ldquoobserve cuidadosamente as gravuras de Debret que aparecem no texto Descreva cada uma delas e compare as cenas nelas retratadas com as cenas de nossas ruas de hoje Haacute diferenccedila Em que sentidordquo Cfr GARCIA Leocircnidas F Estudos de histoacuteria sociedades contemporacircneas 2 ed rev Goiacircnia Editora da UFG 1996 Manual do Professor p 111 Todas as informaccedilotildees foram retiradas de PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p81 88 e 137

79Conforme bem mostrado por Elias Saliba Cfr

SALIBA Elias Experiecircncias e representaccedilotildees sociais reflexotildees sobre o uso e o consumo das imagens Anais do II Encontro Perspectivas do Ensino de Histoacuteria Satildeo Paulo FEUSP 1996 citado por PURIFICACcedilAtildeO Ana Teresa da Op Cit p119

80Produzida pela Secretaria de Ensino agrave

Distacircncia do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo em parceria com a TV Escola e a Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco com a companhia teatral Matildeo Molenga Parte 1 disponiacutevel em youtubecomwatchv=Z60eHBJ1xjY 18082 visualizaccedilotildees e 15 comentaacuterios parte 2 disponiacutevel em youtubecomwatchv=2QLkP2NDhMg 30100 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios (parte desse episoacutedio tambeacutem disponiacutevel em youtubecomwatchv=bAPUjP7l-lI 18398 visualizaccedilotildees e 16 comentaacuterios acesso em 13022014

81Como Clemente Pereira Gonccedilalves Ledo Cipriano

Barata Paes de Andrade e frei Caneca O fato de se tratar de uma produccedilatildeo pernambucana contribui para tanto

82Semelhante observaccedilatildeo pode ser feita a respeito

dos doze curtos episoacutedios da seacuterie D Joatildeo no Brasil inspirada em uma narrativa em quadrinhos da chegada da Corte ao Brasil seacuterie de animaccedilatildeo produzida pelo Canal Futura baseada no livro de histoacuteria em quadrinhos D Joatildeo Carioca a corte portuguesa chega ao Brasil (1808 - 1821) escrito pela historiadora Lilia Schwarcz e pelo desenhista Spacca (Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007) Novamente tem-se um material convincente afinado em muitos sentidos com um conhecimento acadecircmico mas que ao recorrer agrave saacutetira tambeacutem evoca estereoacutetipos convencionais como por exemplo os mesmos acima mencionados em referecircncia a priacutencipe e princesa Poder-se-ia atribuir tal convencionalismo dentre outros fatores ao de que a primazia da linguagem visual aqui opera duplamente isto eacute com os quadrinhos e tambeacutem com o programa televisivo criado a partir deles amplificando assim os efeitos decorrentes da saturaccedilatildeo visual da sociedade que daacute origem e significado a esse material Para todos os efeitos a imposiccedilatildeo de tais convenccedilotildees eacute forte ateacute mesmo conforme jaacute visto em materiais menos visuais que este Episoacutedio 01 youtubecomwatchv= 9f5RB1zcD5Eamplist=PLyP1ks9vaqhj2y6MmckU DyuXtWmHgPLe5ampindex=1 331 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio episoacutedio 02 youtubecomwatchv= w-BLqvhYPGkamplist=PL5837763F26AB1B87

oferecidas pelos proacuteprios livros) mas de uma histoacuteria imoacutevel a ser captada de modo instantacircneo uma histoacuteria verdadeira Aleacutem do mais confundem-se os diferentes contextos motivaccedilotildees e condiccedilotildees de produccedilatildeo de tais imagens o que equivale agrave oferta de uma confusatildeo temporal que impossibi-lita a compreensatildeo dessa histoacuteria76

As uacutenicas exceccedilotildees satildeo os ceacutelebres quadros de Moreaux e de Pe-dro Ameacuterico Todos os livros didaacuteticos aqui considerados se esforccedilam por submetecirc-los a uma criacutetica muitas vezes comparativa considerando forma conteuacutedo e contexto mesmo assim eacute possiacutevel encontrar afirmaccedilotildees como a de que Ameacuterico teria tido ldquoo intuito de fazer a representaccedilatildeo desse famoso acontecimento da maneira mais fiel possiacutevelrdquo e que ldquomuitos dos elementos representados pelo pintor satildeo sabidamente falsosrdquo77 Provavel-mente satildeo resquiacutecios de um momento anterior no qual os livros didaacuteticos mostravam-se muito menos cuidadosos ateacute mesmo na utilizaccedilatildeo do quadro de Ameacuterico78 mas tambeacutem marcas atuais de uma sociedade de haacutebitos fortemente visuais cuja saturaccedilatildeo de imagens tende a resultar em posturas pouco criacuteticas em relaccedilatildeo ao que se vecirc bem como em indistinccedilatildeo tempo-ral das mesmas79 Haacute que se lembrar por fim e novamente que os textos desses livros satildeo cheios de descontinuidades como se cada pedaccedilo de cada paacutegina tivesse autonomia prescindindo de certo modo da leitura dos demais Guardaratildeo tais constataccedilotildees alguma relaccedilatildeo com as dificuldades apresentadas pelos entrevistados na sondagem de opiniatildeo de organizar visotildees da Histoacuteria da Independecircncia segundo marcos cronoloacutegicos bem como de distinguir diferenccedilas entre intervalos temporais Eacute bem possiacutevel sobretudo porque ela seraacute endossada pela observaccedilatildeo de outras fontes

5 - A Independecircncia na internet e na tevecircExiste farto e rico material audiovisual disponiacutevel na internet com referecircncias agrave Independecircncia do Brasil e que a exemplo dos livros didaacuteticos represen-tam a convergecircncia de esforccedilos profissionais muacuteltiplos (mais os programas de tevecirc do que os viacutedeos independentes) como pesquisadores roteiristas apresentadores repoacuterteres cenoacutegrafos teacutecnicos variados etc As fontes aqui delimitadas perfazem 107 viacutedeos acessiacuteveis no YouTube e que natildeo obstante sua ampliacutessima diversidade convergem em muitos significados

Observe-se o caso de viacutedeos educativos documentaacuterios e programas de televisatildeo com entrevistas e debates que em comum apresentam objetivos formativos e esforccedilos verdadeiros de incorporaccedilatildeo de conteuacutedos acadecircmicos traduzidos em linguagens didaacuteticas Um caso exemplar eacute a seacuterie 500 anos o Brasil - Impeacuterio na TV que conta uma histoacuteria do Brasil da chegada da Corte ao periacuteodo das regecircncias em formato de telejornal com trama romanceada e teatro de bonecos80 Aqui vecirc-se uma Histoacuteria processual com informa-ccedilotildees corretas e amparadas em datas deslocamentos frequentes dos eixos espaciais de observaccedilatildeo (regional internacional) com menccedilatildeo a persona-gens que extrapolam o tradicional ciacuterculo da Corte portuguesa81 e ecircnfase no caraacuteter violento e conflitivo da formaccedilatildeo do Brasil no seacuteculo XIX Mesmo um material histoacuterico-pedagoacutegico desse quilate evoca por exemplo a falta de atributos esteacuteticos de Carlota Joaquina ou a pusilanimidade de seu marido a revelarem mais uma vez o mercadologicamente eficiente componente bio-graacutefico-anedoacutetico no tratamento da Independecircncia advindo de sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria mais ampla82

Em outros casos o fato de programas de televisatildeo buscarem o auxiacutelio de especialistas na Independecircncia revela uma convenccedilatildeo formal como nos

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16566 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios episoacutedio 03 youtubecomwatchv=QvWSE-sF-w4amplist =PL5837763F26AB1B87 18406 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios episoacutedio 04 youtubecomwatchv= 2N5wBvpgyXEamplist=PL5837763F26AB1B87 12808 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 05 youtubecomwatchv=VaHrSAFBf1Uamplist =PL5837763F26AB1B87 14615 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 06 youtubecomwatchv= 8RrCMbOZTsAamplist=PL5837763F26AB1B87 12649 visualizaccedilotildees 10 comentaacuterios episoacutedio 07 youtubecomwatchv=I4cgWo_GHaQ 601 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 08 youtubecomwatchv=rI71YNrLo7o 12299 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 09 youtubecomwatchv=huv2ngnqUd4 367 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios episoacutedio 10 youtubecomwatchv=F2MaLs_kj-w 10842 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios episoacutedio 11 youtubecomwatchv=8zK3D01dXc0 9388 visualizaccedilotildees 05 comentaacuterios episoacutedio 12 youtubecomwatchv=R76BHD--vB8amplist=PL5837763F26AB1B87 12108 visualizaccedilotildees 9 comentaacuterios acessos em 03042014

83NAPOLITANO Marcos A Histoacuteria depois do

papel In Carla Pinsky (org) Fontes Histoacutericas Satildeo Paulo Contexto 2005 p250-252 Napolitano afirma com base em Umberto Eco que a televisatildeo introduziu uma mudanccedila de ritmo de vida familiar e cotidiana bem como o que se pode chamar de hipertrofia sensorial em detrimento da assimilaccedilatildeo conceitual Destaca ainda que eacute preciso pensar a televisatildeo como uma nova experiecircncia social do tempo histoacuterico na medida em que ela faz coincidir o verdadeiro o imaginaacuterio e o real no ponto indivisiacutevel do presente

84Produzida pela rede de emissoras puacuteblicas

TV Brasil Sobre a Revolta dos Alfaiates parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo 767 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=dj04LJJM8bk 2592 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio Sobre a Batalha do Jenipapo parte 1 youtubecomwatchv=zlgsZcj-V3o 2426 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios acesso em 24032013 parte 2 youtubecomwatchv=rAS3dHAvWPQ 1283 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio Sobre Tiradentes youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 408 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013)

85Marco Morel e Luiacutes Henrique Dias Tavares

86Programa De laacute pra caacute Revolta dos Alfaiates

parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo

87Exceccedilatildeo satildeo as entrevistas realizadas por

Mocircnica Teixeira na UnivespTV que estabelecem comunicaccedilatildeo bastante profiacutecua entre a entrevistadora e os acadecircmicos entrevistados (youtubecomwatchv=syXf3WHQRPM 4450 visualizaccedilotildees 06 comentaacuterios youtubecomwatchv=pZk5pFlboqw 3303 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=5pUDP2KUYCY 4128 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios

livros didaacuteticos e a exemplo destes a intenccedilatildeo de acolher uma multipli-cidade de vozes raramente enseja verdadeira pluralidade de pensamento o que ademais eacute dificultado pela natureza curta sinteacutetica e acelerada dos materiais televisivos Nessas situaccedilotildees constata-se que o historiador fala uma coisa mas o entrevistador e o produtor continuam a ldquoescutarrdquo outra o que muitas vezes reforccedila a percepccedilatildeo de descontinuidade narrativa an-teriormente tambeacutem diagnosticada nos livros didaacuteticos e que na televisatildeo adquire contornos de regra83 Os episoacutedios da seacuterie De laacute para caacute educati-vos didaacuteticos aacutevidos por com conhecimentos acadecircmicos e produzidos por uma rede puacuteblica de televisatildeo sem fins lucrativos apresentam interessante exemplo84 No programa dedicado aos acontecimentos de 1798 na Bahia dois historiadores profissionais85 esclarecem que os revoltosos ldquobahien-sesrdquo almejavam a independecircncia apenas da capitania da Bahia o que tem enormes implicaccedilotildees a destituiacuterem tais acontecimentos de qualquer atribu-to supostamente preparatoacuterio da Independecircncia do Brasil (situaccedilatildeo muito semelhante conforme vimos agrave da Inconfidecircncia Mineira) natildeo obstante na abertura do programa seu apresentador declara

A luta pela independecircncia do Brasil foi escrita nas paacuteginas memoraacuteveis da nossa histoacuteria com o sangue de um punhado de brasileiros O mais celebrado foi Tiradentes Mas sete anos depois do martiacuterio de Tiradentes quatro brasileiros pretos pobres pelos mesmos ideais foram enforcados e sentenciados em Salvador86

Em outros momentos o apresentador apesar de ouvir de forma soliacutecita e atenta ao que o entrevistado tem a dizer acaba por negar com sua proacutepria fala parte do conteuacutedo receacutem-ouvido mas sem demonstrar ser essa atitude premeditada ou consciente Afinal eacute difiacutecil desvencilhar-se daquilo que jaacute se ldquosaberdquo daquilo que adveacutem de um ambiente que o tempo todo nos ldquoensinardquo Histoacuteria sem necessariamente disso nos darmos conta87

A incapacidade de assimilaccedilatildeo reciacuteproca de ideias acerca da histoacute-ria entre agentes sociais diversos pode revelar-se de muitos modos Um dos programas da seacuterie Caminhos da Reportagem intitulado Caminhos da Independecircncia o grito nas ruas produzido com as mesmas caracteriacutesticas do anterior aborda a Independecircncia focada em seus panfletos poliacuteticos a partir da pesquisa recente de trecircs historiadores profissionais88 No entan-to e a despeito natildeo soacute de dar ampla voz a eles mas tambeacutem de abordar conteuacutedos didaticamente inovadores a equipe de entrevista que foi agraves ruas natildeo estabeleceu qualquer mediaccedilatildeo entre histoacuterias acadecircmicas e natildeo acadecircmicas pressupondo que todas as pessoas ocupam uma mesma posiccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria Por isso perguntas incompreensiacuteveis89 resultam apenas em situaccedilotildees vexatoacuterias impeditivas da construccedilatildeo de conhecimento sobre o tema

A abordagem de pessoas nas ruas recurso frequentemente utiliza-do por programas televisivos revela dados importantes acerca de como os brasileiros veem a Independecircncia muitas vezes mais por aquilo que eacute perguntado do que por aquilo que eacute respondido90 O programa + Estilo de 07 de setembro de 2011 produzido pela TV Campo Grande com conteuacutedo de variedades destinado a telespectadores de meio de tarde foi agraves ruas (provavelmente de Campo Grande Mato Grosso do Sul) perguntar se as pessoas saberiam dizer o que se comemorava naquele dia Primeiro res-ponde uma jovem com um bebecirc no colo

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youtubecomwatchv=0ZVgCwkt1ms 1384 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1016 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1227 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=ANSHAFLau04 1175 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios) Acessos em 21042014

88Joseacute Murilo de Carvalho Luacutecia Pereira das Neves

e Marcello Basile

89A apresentadora ldquoVocecircs sabem o que significa

corcundardquo Um professor de coleacutegio ldquoDeve ser alguma coisa que estaacute surgindo aiacute no mundo um pouco mais ciberneacutetico porque eu nem na faculdade ouvi falar dos corcundasrdquo Marcos Tomazzeti produtor multimiacutedia ldquoNa minha cabeccedila vem algo de monarquia de rei algo meio poliacuteticordquo Simone Granda bancaacuteria ldquoDicionaacuterio de corcundice Natildeo seirdquo Marilu Guimaratildees dona de casa ldquoPuxa tem tanta coisa importante pra ter dicionaacuterio vai ter justo do corcundistardquo Caminhos da Independecircncia youtubecomwatchv=37XH5UEpjlI acesso em 24032013

90Em perspectiva oposta mas complementar agrave da

sondagem de opiniatildeo aqui utilizada

91E que portanto muito provavelmente ainda natildeo

tinha tido contato formal (escolar) com o tema

92O programa prossegue entatildeo com uma entrevista

com o professor Ian Rari que trata de uma Histoacuteria da Independecircncia processual natildeo centrada em uma uacutenica data ou fato criacutetica etc Mais um momento onde as vaacuterias vozes contempladas pelo programa natildeo dialogam entre si (youtubecomwatchv=xv1LOlwUfFQ 289 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio) Outro exemplo significativo eacute dado pelo programa Conexatildeo Jovem exibido em 06 de setembro de 2012 no qual dois entrevistados ndash Prof Bira professor de Histoacuteria e Marcos Eduardo socioacutelogo ndash utilizam com competecircncia o pouco tempo a eles destinado discorrendo de modo criacutetico sobre a Independecircncia e em linguagem adequada ao puacuteblico jovem ao qual o programa se destina (produccedilatildeo da TV Novo Tempo adventista parte 1 youtubecomwatchv=1IvYOYtju9sgt 74 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=Ofv7QWOJpHo 47 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013) Logo o programa traz uma abordagem feita na rua na qual a entrevistadora pergunta a uma jovem ldquoQuem falou lsquoindependecircncia ou mortersquo agraves margens do riacho do Ipirangardquo Diante da correta resposta a entrevistadora tenta induzir um erro ldquo15 de novembro ou 7 de setembrordquo Aliaacutes a expectativa do programa parece revelada pela entrevistadora logo na primeira pergunta feita a um dos convidados ldquoseraacute que os jovens se interessam pela histoacuteria de seu paiacutesrdquo E embora o material recolhido pelo proacuteprio programa permita resposta afirmativa manteacutem-se a postura negativa preacute-concebida

93Daiacute a relevacircncia de um viacutedeo com fotografias e

um aacuteudio (youtubecomwatchv=UdQ_aAAl3DE)

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoE isso em que ano que foi que aconteceurdquoResposta ldquo1822rdquo

Em seguida outro jovem que provavelmente jaacute tinha respondido a outra pergunta

Pergunta ldquoQuem foi o imperador vocecirc lembrardquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoAcertou Canta pra gente um trecho do hino da independecircnciardquoResposta ldquoAgora natildeo lembrordquo

Agora o programa aborda uma menina de cerca de dez anos clara-mente intimada91

Pergunta Por que eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoNatildeo seirdquoPergunta ldquoNatildeo lembra Vou dar uma dica um fato histoacuterico muito importante para o BrasilrdquoResposta (negativa com a cabeccedila)

Em quarto lugar outra jovem que procura se afastar da cacircmera

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta (ainda tentando se esquivar sorrindo) ldquoNatildeordquoPergunta ldquoNatildeo saberdquoResposta ldquoAh A Independecircncia Eu natildeo prestei atenccedilatildeordquoPergunta Que ano aconteceu a Independecircncia vocecirc lembrardquoResposta ldquoNatildeordquoPergunta ldquoE quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoTambeacutem natildeo lembrordquo

Por fim a entrevista com um senhor de meia-idade comeccedila jaacute com uma resposta

Resposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoQue ano aconteceu issordquoResposta ldquo1888rdquoPergunta ldquo1822 Quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoCerto E onde foi que aconteceu tudo issordquoResposta ldquoSatildeo PaulordquoPergunta ldquoOK [breve silecircncio] Canta um trechinho para noacutes do hino da IndependecircnciardquoResposta ldquoJaacute podeis da paacutetria matildeerdquo [sic -prossegue cantando corretamente]

Em seguida o programa corta para uma sala de aula onde a despeito dos ldquoacertosrdquo obtidos nas ruas a entrevistadora afirma

Diante da dificuldade que noacutes encontramos no centro da cidade para saber informaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil eu vim parar na sala de aula Vai ser aqui que a gente vai descobrir a histoacuteria do paiacutes92

A ideia a priori de que o brasileiro natildeo conhece e natildeo se interessa pela histoacuteria subsidia este e muitos outros programas Aqui o dado mais relevante parece estar precisamente nessa arraigada crenccedila no desinteres-

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da entatildeo prefeita de Ribeiratildeo Preto (Satildeo Paulo) Darcy Vera que afirma durante um desfile de 7 de Setembro dentre vaacuterios desvarios que ldquoTiradentes gritou lsquoIndependecircncia ou mortersquordquo Com 169919 acessos e 149 comentaacuterios (em geral criacuteticos bem humorados e depreciativos) ateacute 20082014 condensa a possibilidade de amplificaccedilatildeo do estigma do natildeo domiacutenio de referecircncias convencionais agrave Independecircncia mas sem fomentar nenhum conhecimento da mesma

94Novamente surge a questatildeo natildeo teratildeo as

renovaccedilotildees curriculares promovidas no ensino de Histoacuteria (no Brasil e alhures) das uacuteltimas deacutecadas exagerado nessa incompatibilidade Teratildeo elas sido capazes de mensurar seus efeitos deleteacuterios diante de sociedades jaacute bastante refrataacuterias a uma histoacuteria cronoloacutegica

95ldquoPouco importa que sua figura tenha sido

mitificada pela propaganda republicana O que importa eacute que ele foi um heroacutei Ele deu sua vida pela paacutetria e pela liberdaderdquo (Programa De laacute pra caacute youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032013) Essa exaltaccedilatildeo da figura de Tiradentes associada agrave Independecircncia conduz o discurso da propaganda eleitoral de um candidato agrave prefeitura de Ouro Preto em 2012 (youtubecomwatchv=eGefgLoRhec 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032014) Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo no dia 09 de setembro de 2013 apoacutes se autocaracterizar como realizador de uma ldquohistoacuteria de carne e ossordquo em contraposiccedilatildeo a produccedilotildees ldquocontaminadas pela anaacutelise marxistardquo que retirariam os personagens da Histoacuteria o jornalista Laurentino Gomes afirma ldquoNo 1822 faccedilo uma comparaccedilatildeo e digo que o uacutenico problema do Joseacute Bonifaacutecio foi nascer no Brasil pois se ele tivesse nascido nos Estados Unidos teria sido maior que o Thomas Jefferson Porque aparentemente ele era mais preparado mais luacutecido que o Thomas Jeffersonrdquo (parte 1 youtubecomwatchv=uGibbLxsZK0 4501 visualizaccedilotildees e 5 comentaacuterios parte 2 youtubecomwatchv=2LQcEcb5kLU 2302 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios acesso em 26032014 Logo voltaremos agrave obra e agraves ideias de L Gomes

96Um exemplo adveacutem do viacutedeo ldquoA verdadeira

independecircncia do Brasilrdquo em que um pastor evangeacutelico em meio a uma cerimocircnia religiosa ldquodesconstroacuteirdquo o quadro de Pedro Ameacuterico acusando-o de pouco verossiacutemil e aponta os desvios morais de D Pedro I de modo a inviabilizaacute-lo como figura histoacuterica digna de memoacuteria (youtubecomwatchv=RsKQr6bgzLA 178 visualizaccedilotildees e 2 comentaacuterios acesso em 24032014) A suposta irrelevacircncia dos personagens envolvidos no processo da independecircncia eacute notaacutevel na fala de um professor de Ensino Meacutedio (youtubecomwatchv=gvWVF9j2KEU 597 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) e de um apresentador de temas religiosos que relativizam a importacircncia do tema ao afirmarem a atual ldquodependecircncia econocircmicardquo do Brasil (youtubecomwatchv=EXyUBY7StF4 383 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Tambeacutem retornaremos a esse tema

sedesconhecimento do brasileiro pela histoacuteria bem como em um de seus efeitos mais contundentes a crenccedila de que eacute possiacutevel reverter tal situaccedilatildeo pela simples mobilizaccedilatildeo formal de datas nomes e eventos Contudo se a Independecircncia se converte em uma catalizadora de referecircncias cronoloacute-gicas ou nominais isso natildeo leva necessariamente a uma historicizaccedilatildeo do tema pelo contraacuterio a mobilizaccedilatildeo de tais referecircncias em termos como os acima mencionados (a data ou o nome por si soacutes) pode resultar no apro-fundamento da tendecircncia agrave confusatildeo temporal jaacute aqui apontada93

Nos meios intelectuais a discussatildeo em torno das formas tempo-rais de vivecircncia coletiva naquilo que se pode chamar ndash recorrendo-se a uma categoria uacutetil ndash de modernidade natildeo eacute nova tampouco estaacute em vias de esgotamento A dificuldade de organizaccedilatildeo do mundo social segundo referecircncias cronoloacutegicas natildeo seraacute em absoluto distintiva de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil embora o contraacuterio deva ser dito em relaccedilatildeo agraves formas assumidas por tais dificuldades (como as noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia) Percebe-se entatildeo o peso do estigma da dificuldade em manejar datas nomes e fatos suposta prova de um desin-teresseignoracircncia que poderia ser combatido com um retorno a velhas formas de se fazer Histoacuteria e nas quais tais elementos eram considera-dos com a essecircncia da compreensatildeo histoacuterica Natildeo parece que as coisas devam propriamente se passar segundo essa representaccedilatildeo embora um dos confrontos existentes na cultura de histoacuteria no Brasil seja sem duacutevida a polarizaccedilatildeo entre a valorizaccedilatildeo da Independecircncia (= de suas datas nomes eventos siacutembolos e supostos valores etc) e a desvalorizaccedilatildeo da mesma (=seu caraacuteter elitista e negociador a diminuiccedilatildeo da histoacuteria do Brasil em comparaccedilatildeo com a de outros paiacuteses a comicidade dessa histoacuteria etc) Eacute plausiacutevel conceber que esta segunda posiccedilatildeo encontre um aliado na con-cepccedilatildeo de incompatibilidade entre uma histoacuteria amparada por referecircncias cronoloacutegicas e ao mesmo tempo em processos estruturas e temas trans-versais do gosto inclusive de muitos acadecircmicos e educadores94

Os exemplos de materiais audiovisuais a traduzirem veicularem e fomentarem esse confronto entre valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo da Inde-pendecircncia satildeo muitos Aleacutem dos jaacute tratados ateacute aqui pode-se mencionar viacutedeos contendo propaganda de instituiccedilotildees puacuteblicas civis e militares de partidos poliacuteticos de grupos maccedilocircnicos de igrejas e de empresas variadas bem como produccedilotildees independentes Neles eacute possiacutevel encontrar desde a exaltaccedilatildeo das referecircncias mais convencionais agrave Independecircncia como a seus personagens (incluindo seu suposto maacutertir Tiradentes)95 ateacute a afirma-ccedilatildeo de sua total irrelevacircncia96 isso costuma ocorrer sem muitos matizes obedecendo a uma loacutegica dicotocircmica plasmada em linguagens simples com descontinuidades discursivas e imageacuteticas e num ritmo de exposiccedilatildeo acelerado Em suma tratam da Independecircncia segundo padrotildees parcial-mente compartilhados tambeacutem por outras fontes ateacute aqui analisadas

Todas essas fontes com suas noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia satildeo sintomaacuteticas de estados de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema bem como potenciais formadores de opiniatildeo dos mesmos Sua capacidade de criaccedilatildeo de conhecimento no entanto se mostra muito limi-tada Eacute bem verdade que esta eacute por vocaccedilatildeo uma tarefa confiada a saberes acadecircmicos ndash jaacute que no Brasil a quase totalidade da pesquisa em Histoacuteria estaacute entregue agraves universidades salvo a de interesse corporativo ndash de modo que natildeo seria de esperar inovaccedilatildeo em suportes tatildeo variados e socialmen-te diversificados quanto os ateacute aqui analisados Mas parece haver aiacute certo

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ciacuterculo vicioso a envolver tambeacutem parte da academia Basta observar que a ideia da ldquonatildeo Independecircncia de fatordquo tatildeo em voga entre tantos historiadores durante tanto tempo reverbera com forccedila na sociedade em geral97 e ainda goza de prestiacutegio ateacute mesmo entre alguns acadecircmicos que bebem-na da sociedade e apoacutes modificaacute-la parcialmente devolvem-na aos espaccedilos de di-vulgaccedilatildeo98 Essa versatildeo da Histoacuteria eacute capaz de transpor fronteiras temporais de atualizar-se em diferentes contextos e ateacute mesmo de superar abissais diferenccedilas poliacuteticas ela estaacute representada por exemplo e de modo quase idecircntico na propaganda poliacutetica de um partido trotskista e na pregaccedilatildeo nacionalista-direitista de um polecircmico professor de histoacuteria99

Por fim tome-se o caso de trecircs produccedilotildees da Rede Globo de Televi-satildeo voltadas ao puacuteblico em geral com consideraacuteveis aportes financeiros e complexa produccedilatildeo a seacuterie documental A Corte no Brasil para exibiccedilatildeo em tevecirc fechada100 e as seacuteries humoriacutesticas O Quinto dos Infernos101 e Eacute muita Histoacuteria Dia de Fuacuteria102 veiculadas amplamente em tevecirc aberta No pri-meiro caso siacutetios histoacutericos visitados pelas apresentadoras uma narrativa soacutebria e informativa de fatos e processos grande quantidade de entrevistas com historiadores ecircnfase em diferentes espaccedilos regionais e internacio-nais e tratamento do tema em muacuteltiplas dimensotildees (poliacutetica econocircmica cultural) No segundo caso uma narrativa romanceada teatral e cocircmica fortemente despolitizada e livremente baseada em trecircs livros de igual teor (um deles publicado haacute quase um seacuteculo)103 praticamente centrada no Rio de Janeiro (um pouco tambeacutem em Portugal muito menos alhures) e nos membros da famiacutelia real portuguesa cuja vida pessoal eacute estruturada em torno de seus haacutebitos excecircntricos (principalmente os sexuais) e vez ou outra de passageiros dramas pessoais104

Finalmente no terceiro caso uma encenaccedilatildeo tambeacutem cocircmica pro-tagonizada por um escritor-autor-ator-palhaccedilo com grande liberdade de criaccedilatildeo mas amparada em informaccedilotildees convenccedilotildees e mitos a oferecer uma versatildeo do Sete de Setembro segundo o estado psico-fisioloacutegico de D Pedro

Eis um exemplo de uma das modalidades assumidas pela disputa em torno de uma Independecircncia valorizada e outra depreciada Pareceria justificaacutevel opor a tal diagnoacutestico a constataccedilatildeo de se tratarem de obras televisivas de distinto teor o que desobriga a segunda e a terceira de qual-quer compromisso com a verdade No entanto interessam-nos mais seus significados e efeitos do que intenccedilotildees Note-se que a primeira documen-tal eacute de circulaccedilatildeo mais restrita que a segunda e a terceira voltadas para grande puacuteblico por isso seus efeitos nesse jogo de criaccedilatildeorecriaccedilatildeo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da Independecircncia satildeo natildeo apenas assimeacutetricos mas tambeacutem concorrentes105 Os esforccedilos de um pro-grama por posicionar o espectador diante de uma histoacuteria processual de encadeamentos temporais e de grupos e conflitos sociais satildeo naturalmente obstados pelos dos outros dois a oferecer uma histoacuteria repleta de anacro-nismos anedoacutetica e biograacutefica em perfeita sintonia com demandas mais amplas de uma sociedade ndash e de alguns de seus componentes mercadoloacutegi-cos jaacute aqui mencionados ndash na qual a vida privada eacute mais valorizada do que a puacuteblica106 Nesse confronto embora as trecircs convivam na mesma cultura de histoacuteria uma Independecircncia tende a prevalecer sobre a outra107

6 ndash A Independecircncia no cinemaEm relaccedilatildeo a livros didaacuteticos programas de televisatildeo e outros materiais audiovisuais as fontes cinematograacuteficas aqui consideradas naturalmente

97Exemplo encontra-se no viacutedeo ldquoAway Nilzer ndash

Independecircncia do Brasilrdquo com grande nuacutemero de visualizaccedilotildees (130677) e de comentaacuterios (1016) que minimiza e ridiculariza natildeo apenas o processo da independecircncia como quaisquer fatos histoacutericos brasileiros de maneira geral (youtubecomwatchv=Vd_kloNeQV0) O Brasil atual como viacutetima de uma exploraccedilatildeo econocircmica mais intensa do que nos tempos coloniais e portanto natildeo-independente aparece na fala de outro professor (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2806 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) e nos comentaacuterios de um boneco marionete de um programa infantil (youtubecomwatchv=9mh3Tu6c4_w 173 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032014)

98Exemplo desse processo de ldquodevoluccedilatildeordquo pode ser

comprovado no viacutedeo ldquoIndependecircncia ou morterdquo (youtubecomwatchv=QUvnz1no1m8 934 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Outros dois exemplos pertinentes satildeo a insistecircncia nas ideias de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil e que a Independecircncia foi uma luta entre brasileiros e portugueses

99Em entrevista a uma rede local de televisatildeo

ouvimos do professor de histoacuteria do Ensino Meacutedio Wander Pugliesi ldquoSe noacutes formos trabalhar com sinceridade o Brasil ainda natildeo eacute independente Na verdade somos muito mais explorados do que quando eacuteramos colocircnia de Portugalrdquo (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2815 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) A mesma relativizaccedilatildeo do processo de independecircncia aparece na fala do candidato agrave presidecircncia em 2010 pelo PSTU Zeacute Maria ldquohoje infelizmente natildeo podemos comemorar uma verdadeira independecircncia do paiacutes Eacute preciso dizer a verdade as multinacionais controlam a economia brasileira As decisotildees fundamentais satildeo tomadas por elas fora do paiacutesrdquo (youtubecomwatchv=ht9Yt0PlGnU 1803 visualizaccedilotildees um comentaacuterio) Acessos em 26032013

100Direccedilatildeo de Carlos Henrique Schroder 2008

Produccedilatildeo de 16 episoacutedios de cerca de 20 minutos cada para o canal da TV fechada GloboNews A seacuterie foi comercializada em DVD e pode ser vista tambeacutem no canal Globosat no Youtube (youtubecomwatchfeature= player_detailpageampv= OUX-zSyaMIc e viacutedeos relacionados Acesso em 27032014)

101Direccedilatildeo de Wolf Maya e Alexandre Avancini e

criaccedilatildeo de Carlos Lombardi 2002 Produccedilatildeo de 48 episoacutedios com cerca de 40 minutos cada para o canal da TV aberta Rede Globo de Televisatildeo A minisseacuterie tambeacutem foi comercializada em DVD e vem sendo (desde janeiro de 2014) reprisada no Canal Viva (rede fechada de televisatildeo filiada Globosat) uma reprise anterior ocorreu de agosto a novembro de 2011 sempre por volta das 23h

102Direccedilatildeo de Joatildeo Carrascosa e Pedro Bial 2007

Produccedilatildeo de 9 capiacutetulos de cerca de 15 minutos

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apresentam especificidades Tendem a diversificar (eventualmente ampliar) o rol de profissionais envolvidos em sua produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo bem como a tratar conteuacutedos em um tempo mais lento criando uma sensaccedilatildeo de homogeneidade de significados reforccedilada pela aderecircncia de tais conteuacutedos a uma trama central Tal homogeneidade por seu turno eacute relativizada por uma liberdade de criaccedilatildeo que dificilmente encontra paralelo em outros dos materiais aqui considerados ndash com a possiacutevel exceccedilatildeo da minisseacuterie O Quinto dos Infernos No entanto quando a comparaccedilatildeo eacute feita com os li-vros didaacuteticos os conteuacutedos relativos agrave Independecircncia no cinema tendem a ser menos numerosos mais superficiais e efecircmeros justamente por serem menos assumidamente informativos do que os dos livros embora isso possa encontrar alguma compensaccedilatildeo em uma linguagem visual de forte apelo emotivo Para todos os efeitos como aponta um estudioso da mateacuteria os filmes de temaacutetica histoacuterica carregam sempre certa ambiguidade ocupam uma espeacutecie de ldquoentrelugarrdquo com forccedila para criar ldquoverdadesrdquo socialmente aceitas108 Nos cinco filmes aqui considerados109 as ldquoverdadesrdquo sobre a Independecircncia tendem a replicar linhas de forccedila jaacute conhecidas mesclando temporalidades correspondentes tanto aos momentos em que foram pro-duzidos quanto aos momentos posteriores em que foram sendo exibidos110

Independecircncia ou Morte produccedilatildeo a serviccedilo das comemoraccedilotildees oficiais do sesquicentenaacuterio da Independecircncia levadas a cabo pelo go-verno ditatorial brasileiro em 1972 mostra uma narrativa de forte teor didaacutetico-pedagoacutegico sem grandes pretensotildees artiacutesticas expliacutecitas111 com diaacutelogos e situaccedilotildees muitas vezes retirados de obras sobre a Independecircncia e tratados de forma literal Sua finalidade eacute clara ldquoensinarrdquo aos especta-dores uma histoacuteria e uma memoacuteria coletivas homogecircneas aplainadas de pluralidades ou de desavenccedilas Uma histoacuteria supostamente indiscutiacutevel porque verdadeira posta a serviccedilo dos tambeacutem supostos interesses mais elevados da naccedilatildeo brasileira (por isso nela a vida privada dos persona-gens eacute toda submetida agrave sua funccedilatildeo poliacutetica inclusive no caso da relaccedilatildeo afetiva entre um D Pedro de boa aparecircncia querido do povo e mulherengo e uma ambiciosa romacircntica e sensiacutevel Domitila112) Uma espeacutecie de cartilha oficial da Independecircncia em imagens na qual se faz presente ateacute mesmo uma recomposiccedilatildeo cecircnica do quadro de Pedro Ameacuterico

Eacute interessante observar como Os Inconfidentes produzido no mesmo ano de 1972 mesmo sendo um filme amparado em abundantes liberdades e experimentos esteacuteticos cheio de ambiguidades propositais e contra-pondo-se ao oficialismo histoacuterico tatildeo em voga agrave eacutepoca por meio de uma metaacutefora na qual os contestadores agrave ditadura brasileira se convertem em sediciosos das Minas Gerais do seacuteculo XVIII natildeo se configura como mate-rial singular e discrepante de Independecircncia ou Morte em pelo menos trecircs sentidos primeiro porque em vaacuterios momentos associa a Inconfidecircncia Mi-neira com a Independecircncia do Brasil a exemplo do que Independecircncia ou Morte prega jaacute em seu primeiro texto didaacutetico113 Segundo porque tambeacutem oficializa eventos convencionalmente tidos por fundacionais da histoacuteria do Brasil (soacute que natildeo os de 1808-1822 mas os de 1788-1789) Terceiro reforccedila a prevalecircncia de indiviacuteduos sobre coletividades da imagem de um heroacutei central da trama e de uma oposiccedilatildeo de interesses maniqueiacutesta que certamente poderia se aplicar com mais rigor ao contexto em que foi feito o filme do que agravequele ao qual formalmente se refere Assim para todos os efeitos substratos de uma concepccedilatildeo de histoacuteria satildeo em ambos convergentes Em um ambiente social multifacetado em termos de no-

cada dentro do programa dominical Fantaacutestico da Rede Globo de Televisatildeo A seacuterie foi baseada no livro Brasil uma Histoacuteria de Eduardo Bueno jornalista que tambeacutem atua na seacuterie (youtubecomwatchv=3LzGKt9Pd0M acesso em 27032014)

103SETUacuteBAL Paulo As Maluquices do Imperador

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1927 CALADO Ivanir A Imperatriz no Fim do Mundo memoacuterias duacutebias de Ameacutelia de Leichtenberg Rio de Janeiro Rio Fundo Editora 1992 e TORERO Joseacute Roberto Galantes memoacuterias e admiraacuteveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes o Chalaccedila Satildeo Paulo Companhia das Letras 1994

104A trama e a narrativa do Quinto dos Infernos

recusam explicitamente a inserccedilatildeo de quaisquer componentes que natildeo os da ordem privada de seus convencionais personagens assim questotildees poliacuteticas satildeo sempre menores do que o apetite sexual de Carlota Joaquina as perversotildees de D Miguel ou a fogosidade de Domitila a economia soacute surge em pontuais pretextos cocircmicos enquanto a escravidatildeo eacute referida exclusivamente por meio de alegres e libidinosas criadas (negras) permanentemente dispostas a servirem aos desejos do heroacutei da histoacuteria D Pedro

105A anaacutelise poderia se completar com a minisseacuterie

A Marquesa de Santos dirigida por Ary Coslov e exibida pela extinta Rede Manchete de televisatildeo em 1984 agrave qual infelizmente natildeo se obteve acesso satisfatoacuterio

106Tal predileccedilatildeo pode ser entendida como mais

um fator caracteriacutestico de um momento em que a articulaccedilatildeo entre aquilo que Guy Debord chamaria de ldquosociedade do espetaacuteculordquo e Adorno e Horkheimer (dentre muitos outros) de ldquoinduacutestria culturalrdquo torna sintomaacutetico a saliecircncia do indiviacuteduo e o esvaziamento da esfera puacuteblica

107A comprovaccedilatildeo do encontro concorrente entre

dois caminhos vem do depoimento de alguns dos proacuteprios envolvidos com a produccedilatildeo do Quinto dos Infernos como o diretor Carlos Lombardi que a ele se refere como ldquoum painel dos personagens importantes do periacuteodordquo Para o produtor Wolf Maia seu objetivo foi ldquorecontar com humor uma velha histoacuteriardquo O ator Humberto Martins viu a seacuterie ldquocontar um pedaccedilo da nossa histoacuteria da histoacuteria do Brasil do nosso povo das nossas raiacutezes pateacutetica e engraccedilada tal como ela se mostra dentro desse produto poreacutem claro mesclada com uma boa dose de humorrdquo enquanto o protagonista Marcos Pasquim afirmou que ldquo[ao fazecirc-la] aprendi muita coisa que natildeo aprendi na escola eu vim aprender agora fazendo a pesquisa para fazer esse personagemrdquo Finalmente para a tambeacutem atriz Bruna Lombardi ldquoO lsquoQuintorsquo contou assim a histoacuteria que a Histoacuteria natildeo conta sabe como eacute as fraquezas da histoacuteriardquo Em ldquoDia de Fuacuteriardquo Pedro Bial e Eduardo Bueno reforccedilam seu discurso satiacuterico por meio de um verniz de verdade trazido pela citaccedilatildeo de documentos oficiais como o relato do Padre Belchior sobre o grito do Ipiranga Aleacutem disso seu discurso eacute elaborado sob o nome de tese logo bem se vecirc como seus propaladores (BialBueno) manipulam siacutembolos

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ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

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Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

29Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

30Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

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138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

32Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

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por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

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muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

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Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 18: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

22Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

16566 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios episoacutedio 03 youtubecomwatchv=QvWSE-sF-w4amplist =PL5837763F26AB1B87 18406 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios episoacutedio 04 youtubecomwatchv= 2N5wBvpgyXEamplist=PL5837763F26AB1B87 12808 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 05 youtubecomwatchv=VaHrSAFBf1Uamplist =PL5837763F26AB1B87 14615 visualizaccedilotildees 5 comentaacuterios episoacutedio 06 youtubecomwatchv= 8RrCMbOZTsAamplist=PL5837763F26AB1B87 12649 visualizaccedilotildees 10 comentaacuterios episoacutedio 07 youtubecomwatchv=I4cgWo_GHaQ 601 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 08 youtubecomwatchv=rI71YNrLo7o 12299 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio episoacutedio 09 youtubecomwatchv=huv2ngnqUd4 367 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios episoacutedio 10 youtubecomwatchv=F2MaLs_kj-w 10842 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios episoacutedio 11 youtubecomwatchv=8zK3D01dXc0 9388 visualizaccedilotildees 05 comentaacuterios episoacutedio 12 youtubecomwatchv=R76BHD--vB8amplist=PL5837763F26AB1B87 12108 visualizaccedilotildees 9 comentaacuterios acessos em 03042014

83NAPOLITANO Marcos A Histoacuteria depois do

papel In Carla Pinsky (org) Fontes Histoacutericas Satildeo Paulo Contexto 2005 p250-252 Napolitano afirma com base em Umberto Eco que a televisatildeo introduziu uma mudanccedila de ritmo de vida familiar e cotidiana bem como o que se pode chamar de hipertrofia sensorial em detrimento da assimilaccedilatildeo conceitual Destaca ainda que eacute preciso pensar a televisatildeo como uma nova experiecircncia social do tempo histoacuterico na medida em que ela faz coincidir o verdadeiro o imaginaacuterio e o real no ponto indivisiacutevel do presente

84Produzida pela rede de emissoras puacuteblicas

TV Brasil Sobre a Revolta dos Alfaiates parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo 767 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=dj04LJJM8bk 2592 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio Sobre a Batalha do Jenipapo parte 1 youtubecomwatchv=zlgsZcj-V3o 2426 visualizaccedilotildees 02 comentaacuterios acesso em 24032013 parte 2 youtubecomwatchv=rAS3dHAvWPQ 1283 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterio Sobre Tiradentes youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 408 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013)

85Marco Morel e Luiacutes Henrique Dias Tavares

86Programa De laacute pra caacute Revolta dos Alfaiates

parte 1 youtubecomwatchv=vhiykcX3IKo

87Exceccedilatildeo satildeo as entrevistas realizadas por

Mocircnica Teixeira na UnivespTV que estabelecem comunicaccedilatildeo bastante profiacutecua entre a entrevistadora e os acadecircmicos entrevistados (youtubecomwatchv=syXf3WHQRPM 4450 visualizaccedilotildees 06 comentaacuterios youtubecomwatchv=pZk5pFlboqw 3303 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=5pUDP2KUYCY 4128 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios

livros didaacuteticos e a exemplo destes a intenccedilatildeo de acolher uma multipli-cidade de vozes raramente enseja verdadeira pluralidade de pensamento o que ademais eacute dificultado pela natureza curta sinteacutetica e acelerada dos materiais televisivos Nessas situaccedilotildees constata-se que o historiador fala uma coisa mas o entrevistador e o produtor continuam a ldquoescutarrdquo outra o que muitas vezes reforccedila a percepccedilatildeo de descontinuidade narrativa an-teriormente tambeacutem diagnosticada nos livros didaacuteticos e que na televisatildeo adquire contornos de regra83 Os episoacutedios da seacuterie De laacute para caacute educati-vos didaacuteticos aacutevidos por com conhecimentos acadecircmicos e produzidos por uma rede puacuteblica de televisatildeo sem fins lucrativos apresentam interessante exemplo84 No programa dedicado aos acontecimentos de 1798 na Bahia dois historiadores profissionais85 esclarecem que os revoltosos ldquobahien-sesrdquo almejavam a independecircncia apenas da capitania da Bahia o que tem enormes implicaccedilotildees a destituiacuterem tais acontecimentos de qualquer atribu-to supostamente preparatoacuterio da Independecircncia do Brasil (situaccedilatildeo muito semelhante conforme vimos agrave da Inconfidecircncia Mineira) natildeo obstante na abertura do programa seu apresentador declara

A luta pela independecircncia do Brasil foi escrita nas paacuteginas memoraacuteveis da nossa histoacuteria com o sangue de um punhado de brasileiros O mais celebrado foi Tiradentes Mas sete anos depois do martiacuterio de Tiradentes quatro brasileiros pretos pobres pelos mesmos ideais foram enforcados e sentenciados em Salvador86

Em outros momentos o apresentador apesar de ouvir de forma soliacutecita e atenta ao que o entrevistado tem a dizer acaba por negar com sua proacutepria fala parte do conteuacutedo receacutem-ouvido mas sem demonstrar ser essa atitude premeditada ou consciente Afinal eacute difiacutecil desvencilhar-se daquilo que jaacute se ldquosaberdquo daquilo que adveacutem de um ambiente que o tempo todo nos ldquoensinardquo Histoacuteria sem necessariamente disso nos darmos conta87

A incapacidade de assimilaccedilatildeo reciacuteproca de ideias acerca da histoacute-ria entre agentes sociais diversos pode revelar-se de muitos modos Um dos programas da seacuterie Caminhos da Reportagem intitulado Caminhos da Independecircncia o grito nas ruas produzido com as mesmas caracteriacutesticas do anterior aborda a Independecircncia focada em seus panfletos poliacuteticos a partir da pesquisa recente de trecircs historiadores profissionais88 No entan-to e a despeito natildeo soacute de dar ampla voz a eles mas tambeacutem de abordar conteuacutedos didaticamente inovadores a equipe de entrevista que foi agraves ruas natildeo estabeleceu qualquer mediaccedilatildeo entre histoacuterias acadecircmicas e natildeo acadecircmicas pressupondo que todas as pessoas ocupam uma mesma posiccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria Por isso perguntas incompreensiacuteveis89 resultam apenas em situaccedilotildees vexatoacuterias impeditivas da construccedilatildeo de conhecimento sobre o tema

A abordagem de pessoas nas ruas recurso frequentemente utiliza-do por programas televisivos revela dados importantes acerca de como os brasileiros veem a Independecircncia muitas vezes mais por aquilo que eacute perguntado do que por aquilo que eacute respondido90 O programa + Estilo de 07 de setembro de 2011 produzido pela TV Campo Grande com conteuacutedo de variedades destinado a telespectadores de meio de tarde foi agraves ruas (provavelmente de Campo Grande Mato Grosso do Sul) perguntar se as pessoas saberiam dizer o que se comemorava naquele dia Primeiro res-ponde uma jovem com um bebecirc no colo

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youtubecomwatchv=0ZVgCwkt1ms 1384 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1016 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1227 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=ANSHAFLau04 1175 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios) Acessos em 21042014

88Joseacute Murilo de Carvalho Luacutecia Pereira das Neves

e Marcello Basile

89A apresentadora ldquoVocecircs sabem o que significa

corcundardquo Um professor de coleacutegio ldquoDeve ser alguma coisa que estaacute surgindo aiacute no mundo um pouco mais ciberneacutetico porque eu nem na faculdade ouvi falar dos corcundasrdquo Marcos Tomazzeti produtor multimiacutedia ldquoNa minha cabeccedila vem algo de monarquia de rei algo meio poliacuteticordquo Simone Granda bancaacuteria ldquoDicionaacuterio de corcundice Natildeo seirdquo Marilu Guimaratildees dona de casa ldquoPuxa tem tanta coisa importante pra ter dicionaacuterio vai ter justo do corcundistardquo Caminhos da Independecircncia youtubecomwatchv=37XH5UEpjlI acesso em 24032013

90Em perspectiva oposta mas complementar agrave da

sondagem de opiniatildeo aqui utilizada

91E que portanto muito provavelmente ainda natildeo

tinha tido contato formal (escolar) com o tema

92O programa prossegue entatildeo com uma entrevista

com o professor Ian Rari que trata de uma Histoacuteria da Independecircncia processual natildeo centrada em uma uacutenica data ou fato criacutetica etc Mais um momento onde as vaacuterias vozes contempladas pelo programa natildeo dialogam entre si (youtubecomwatchv=xv1LOlwUfFQ 289 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio) Outro exemplo significativo eacute dado pelo programa Conexatildeo Jovem exibido em 06 de setembro de 2012 no qual dois entrevistados ndash Prof Bira professor de Histoacuteria e Marcos Eduardo socioacutelogo ndash utilizam com competecircncia o pouco tempo a eles destinado discorrendo de modo criacutetico sobre a Independecircncia e em linguagem adequada ao puacuteblico jovem ao qual o programa se destina (produccedilatildeo da TV Novo Tempo adventista parte 1 youtubecomwatchv=1IvYOYtju9sgt 74 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=Ofv7QWOJpHo 47 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013) Logo o programa traz uma abordagem feita na rua na qual a entrevistadora pergunta a uma jovem ldquoQuem falou lsquoindependecircncia ou mortersquo agraves margens do riacho do Ipirangardquo Diante da correta resposta a entrevistadora tenta induzir um erro ldquo15 de novembro ou 7 de setembrordquo Aliaacutes a expectativa do programa parece revelada pela entrevistadora logo na primeira pergunta feita a um dos convidados ldquoseraacute que os jovens se interessam pela histoacuteria de seu paiacutesrdquo E embora o material recolhido pelo proacuteprio programa permita resposta afirmativa manteacutem-se a postura negativa preacute-concebida

93Daiacute a relevacircncia de um viacutedeo com fotografias e

um aacuteudio (youtubecomwatchv=UdQ_aAAl3DE)

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoE isso em que ano que foi que aconteceurdquoResposta ldquo1822rdquo

Em seguida outro jovem que provavelmente jaacute tinha respondido a outra pergunta

Pergunta ldquoQuem foi o imperador vocecirc lembrardquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoAcertou Canta pra gente um trecho do hino da independecircnciardquoResposta ldquoAgora natildeo lembrordquo

Agora o programa aborda uma menina de cerca de dez anos clara-mente intimada91

Pergunta Por que eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoNatildeo seirdquoPergunta ldquoNatildeo lembra Vou dar uma dica um fato histoacuterico muito importante para o BrasilrdquoResposta (negativa com a cabeccedila)

Em quarto lugar outra jovem que procura se afastar da cacircmera

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta (ainda tentando se esquivar sorrindo) ldquoNatildeordquoPergunta ldquoNatildeo saberdquoResposta ldquoAh A Independecircncia Eu natildeo prestei atenccedilatildeordquoPergunta Que ano aconteceu a Independecircncia vocecirc lembrardquoResposta ldquoNatildeordquoPergunta ldquoE quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoTambeacutem natildeo lembrordquo

Por fim a entrevista com um senhor de meia-idade comeccedila jaacute com uma resposta

Resposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoQue ano aconteceu issordquoResposta ldquo1888rdquoPergunta ldquo1822 Quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoCerto E onde foi que aconteceu tudo issordquoResposta ldquoSatildeo PaulordquoPergunta ldquoOK [breve silecircncio] Canta um trechinho para noacutes do hino da IndependecircnciardquoResposta ldquoJaacute podeis da paacutetria matildeerdquo [sic -prossegue cantando corretamente]

Em seguida o programa corta para uma sala de aula onde a despeito dos ldquoacertosrdquo obtidos nas ruas a entrevistadora afirma

Diante da dificuldade que noacutes encontramos no centro da cidade para saber informaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil eu vim parar na sala de aula Vai ser aqui que a gente vai descobrir a histoacuteria do paiacutes92

A ideia a priori de que o brasileiro natildeo conhece e natildeo se interessa pela histoacuteria subsidia este e muitos outros programas Aqui o dado mais relevante parece estar precisamente nessa arraigada crenccedila no desinteres-

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da entatildeo prefeita de Ribeiratildeo Preto (Satildeo Paulo) Darcy Vera que afirma durante um desfile de 7 de Setembro dentre vaacuterios desvarios que ldquoTiradentes gritou lsquoIndependecircncia ou mortersquordquo Com 169919 acessos e 149 comentaacuterios (em geral criacuteticos bem humorados e depreciativos) ateacute 20082014 condensa a possibilidade de amplificaccedilatildeo do estigma do natildeo domiacutenio de referecircncias convencionais agrave Independecircncia mas sem fomentar nenhum conhecimento da mesma

94Novamente surge a questatildeo natildeo teratildeo as

renovaccedilotildees curriculares promovidas no ensino de Histoacuteria (no Brasil e alhures) das uacuteltimas deacutecadas exagerado nessa incompatibilidade Teratildeo elas sido capazes de mensurar seus efeitos deleteacuterios diante de sociedades jaacute bastante refrataacuterias a uma histoacuteria cronoloacutegica

95ldquoPouco importa que sua figura tenha sido

mitificada pela propaganda republicana O que importa eacute que ele foi um heroacutei Ele deu sua vida pela paacutetria e pela liberdaderdquo (Programa De laacute pra caacute youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032013) Essa exaltaccedilatildeo da figura de Tiradentes associada agrave Independecircncia conduz o discurso da propaganda eleitoral de um candidato agrave prefeitura de Ouro Preto em 2012 (youtubecomwatchv=eGefgLoRhec 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032014) Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo no dia 09 de setembro de 2013 apoacutes se autocaracterizar como realizador de uma ldquohistoacuteria de carne e ossordquo em contraposiccedilatildeo a produccedilotildees ldquocontaminadas pela anaacutelise marxistardquo que retirariam os personagens da Histoacuteria o jornalista Laurentino Gomes afirma ldquoNo 1822 faccedilo uma comparaccedilatildeo e digo que o uacutenico problema do Joseacute Bonifaacutecio foi nascer no Brasil pois se ele tivesse nascido nos Estados Unidos teria sido maior que o Thomas Jefferson Porque aparentemente ele era mais preparado mais luacutecido que o Thomas Jeffersonrdquo (parte 1 youtubecomwatchv=uGibbLxsZK0 4501 visualizaccedilotildees e 5 comentaacuterios parte 2 youtubecomwatchv=2LQcEcb5kLU 2302 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios acesso em 26032014 Logo voltaremos agrave obra e agraves ideias de L Gomes

96Um exemplo adveacutem do viacutedeo ldquoA verdadeira

independecircncia do Brasilrdquo em que um pastor evangeacutelico em meio a uma cerimocircnia religiosa ldquodesconstroacuteirdquo o quadro de Pedro Ameacuterico acusando-o de pouco verossiacutemil e aponta os desvios morais de D Pedro I de modo a inviabilizaacute-lo como figura histoacuterica digna de memoacuteria (youtubecomwatchv=RsKQr6bgzLA 178 visualizaccedilotildees e 2 comentaacuterios acesso em 24032014) A suposta irrelevacircncia dos personagens envolvidos no processo da independecircncia eacute notaacutevel na fala de um professor de Ensino Meacutedio (youtubecomwatchv=gvWVF9j2KEU 597 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) e de um apresentador de temas religiosos que relativizam a importacircncia do tema ao afirmarem a atual ldquodependecircncia econocircmicardquo do Brasil (youtubecomwatchv=EXyUBY7StF4 383 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Tambeacutem retornaremos a esse tema

sedesconhecimento do brasileiro pela histoacuteria bem como em um de seus efeitos mais contundentes a crenccedila de que eacute possiacutevel reverter tal situaccedilatildeo pela simples mobilizaccedilatildeo formal de datas nomes e eventos Contudo se a Independecircncia se converte em uma catalizadora de referecircncias cronoloacute-gicas ou nominais isso natildeo leva necessariamente a uma historicizaccedilatildeo do tema pelo contraacuterio a mobilizaccedilatildeo de tais referecircncias em termos como os acima mencionados (a data ou o nome por si soacutes) pode resultar no apro-fundamento da tendecircncia agrave confusatildeo temporal jaacute aqui apontada93

Nos meios intelectuais a discussatildeo em torno das formas tempo-rais de vivecircncia coletiva naquilo que se pode chamar ndash recorrendo-se a uma categoria uacutetil ndash de modernidade natildeo eacute nova tampouco estaacute em vias de esgotamento A dificuldade de organizaccedilatildeo do mundo social segundo referecircncias cronoloacutegicas natildeo seraacute em absoluto distintiva de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil embora o contraacuterio deva ser dito em relaccedilatildeo agraves formas assumidas por tais dificuldades (como as noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia) Percebe-se entatildeo o peso do estigma da dificuldade em manejar datas nomes e fatos suposta prova de um desin-teresseignoracircncia que poderia ser combatido com um retorno a velhas formas de se fazer Histoacuteria e nas quais tais elementos eram considera-dos com a essecircncia da compreensatildeo histoacuterica Natildeo parece que as coisas devam propriamente se passar segundo essa representaccedilatildeo embora um dos confrontos existentes na cultura de histoacuteria no Brasil seja sem duacutevida a polarizaccedilatildeo entre a valorizaccedilatildeo da Independecircncia (= de suas datas nomes eventos siacutembolos e supostos valores etc) e a desvalorizaccedilatildeo da mesma (=seu caraacuteter elitista e negociador a diminuiccedilatildeo da histoacuteria do Brasil em comparaccedilatildeo com a de outros paiacuteses a comicidade dessa histoacuteria etc) Eacute plausiacutevel conceber que esta segunda posiccedilatildeo encontre um aliado na con-cepccedilatildeo de incompatibilidade entre uma histoacuteria amparada por referecircncias cronoloacutegicas e ao mesmo tempo em processos estruturas e temas trans-versais do gosto inclusive de muitos acadecircmicos e educadores94

Os exemplos de materiais audiovisuais a traduzirem veicularem e fomentarem esse confronto entre valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo da Inde-pendecircncia satildeo muitos Aleacutem dos jaacute tratados ateacute aqui pode-se mencionar viacutedeos contendo propaganda de instituiccedilotildees puacuteblicas civis e militares de partidos poliacuteticos de grupos maccedilocircnicos de igrejas e de empresas variadas bem como produccedilotildees independentes Neles eacute possiacutevel encontrar desde a exaltaccedilatildeo das referecircncias mais convencionais agrave Independecircncia como a seus personagens (incluindo seu suposto maacutertir Tiradentes)95 ateacute a afirma-ccedilatildeo de sua total irrelevacircncia96 isso costuma ocorrer sem muitos matizes obedecendo a uma loacutegica dicotocircmica plasmada em linguagens simples com descontinuidades discursivas e imageacuteticas e num ritmo de exposiccedilatildeo acelerado Em suma tratam da Independecircncia segundo padrotildees parcial-mente compartilhados tambeacutem por outras fontes ateacute aqui analisadas

Todas essas fontes com suas noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia satildeo sintomaacuteticas de estados de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema bem como potenciais formadores de opiniatildeo dos mesmos Sua capacidade de criaccedilatildeo de conhecimento no entanto se mostra muito limi-tada Eacute bem verdade que esta eacute por vocaccedilatildeo uma tarefa confiada a saberes acadecircmicos ndash jaacute que no Brasil a quase totalidade da pesquisa em Histoacuteria estaacute entregue agraves universidades salvo a de interesse corporativo ndash de modo que natildeo seria de esperar inovaccedilatildeo em suportes tatildeo variados e socialmen-te diversificados quanto os ateacute aqui analisados Mas parece haver aiacute certo

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ciacuterculo vicioso a envolver tambeacutem parte da academia Basta observar que a ideia da ldquonatildeo Independecircncia de fatordquo tatildeo em voga entre tantos historiadores durante tanto tempo reverbera com forccedila na sociedade em geral97 e ainda goza de prestiacutegio ateacute mesmo entre alguns acadecircmicos que bebem-na da sociedade e apoacutes modificaacute-la parcialmente devolvem-na aos espaccedilos de di-vulgaccedilatildeo98 Essa versatildeo da Histoacuteria eacute capaz de transpor fronteiras temporais de atualizar-se em diferentes contextos e ateacute mesmo de superar abissais diferenccedilas poliacuteticas ela estaacute representada por exemplo e de modo quase idecircntico na propaganda poliacutetica de um partido trotskista e na pregaccedilatildeo nacionalista-direitista de um polecircmico professor de histoacuteria99

Por fim tome-se o caso de trecircs produccedilotildees da Rede Globo de Televi-satildeo voltadas ao puacuteblico em geral com consideraacuteveis aportes financeiros e complexa produccedilatildeo a seacuterie documental A Corte no Brasil para exibiccedilatildeo em tevecirc fechada100 e as seacuteries humoriacutesticas O Quinto dos Infernos101 e Eacute muita Histoacuteria Dia de Fuacuteria102 veiculadas amplamente em tevecirc aberta No pri-meiro caso siacutetios histoacutericos visitados pelas apresentadoras uma narrativa soacutebria e informativa de fatos e processos grande quantidade de entrevistas com historiadores ecircnfase em diferentes espaccedilos regionais e internacio-nais e tratamento do tema em muacuteltiplas dimensotildees (poliacutetica econocircmica cultural) No segundo caso uma narrativa romanceada teatral e cocircmica fortemente despolitizada e livremente baseada em trecircs livros de igual teor (um deles publicado haacute quase um seacuteculo)103 praticamente centrada no Rio de Janeiro (um pouco tambeacutem em Portugal muito menos alhures) e nos membros da famiacutelia real portuguesa cuja vida pessoal eacute estruturada em torno de seus haacutebitos excecircntricos (principalmente os sexuais) e vez ou outra de passageiros dramas pessoais104

Finalmente no terceiro caso uma encenaccedilatildeo tambeacutem cocircmica pro-tagonizada por um escritor-autor-ator-palhaccedilo com grande liberdade de criaccedilatildeo mas amparada em informaccedilotildees convenccedilotildees e mitos a oferecer uma versatildeo do Sete de Setembro segundo o estado psico-fisioloacutegico de D Pedro

Eis um exemplo de uma das modalidades assumidas pela disputa em torno de uma Independecircncia valorizada e outra depreciada Pareceria justificaacutevel opor a tal diagnoacutestico a constataccedilatildeo de se tratarem de obras televisivas de distinto teor o que desobriga a segunda e a terceira de qual-quer compromisso com a verdade No entanto interessam-nos mais seus significados e efeitos do que intenccedilotildees Note-se que a primeira documen-tal eacute de circulaccedilatildeo mais restrita que a segunda e a terceira voltadas para grande puacuteblico por isso seus efeitos nesse jogo de criaccedilatildeorecriaccedilatildeo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da Independecircncia satildeo natildeo apenas assimeacutetricos mas tambeacutem concorrentes105 Os esforccedilos de um pro-grama por posicionar o espectador diante de uma histoacuteria processual de encadeamentos temporais e de grupos e conflitos sociais satildeo naturalmente obstados pelos dos outros dois a oferecer uma histoacuteria repleta de anacro-nismos anedoacutetica e biograacutefica em perfeita sintonia com demandas mais amplas de uma sociedade ndash e de alguns de seus componentes mercadoloacutegi-cos jaacute aqui mencionados ndash na qual a vida privada eacute mais valorizada do que a puacuteblica106 Nesse confronto embora as trecircs convivam na mesma cultura de histoacuteria uma Independecircncia tende a prevalecer sobre a outra107

6 ndash A Independecircncia no cinemaEm relaccedilatildeo a livros didaacuteticos programas de televisatildeo e outros materiais audiovisuais as fontes cinematograacuteficas aqui consideradas naturalmente

97Exemplo encontra-se no viacutedeo ldquoAway Nilzer ndash

Independecircncia do Brasilrdquo com grande nuacutemero de visualizaccedilotildees (130677) e de comentaacuterios (1016) que minimiza e ridiculariza natildeo apenas o processo da independecircncia como quaisquer fatos histoacutericos brasileiros de maneira geral (youtubecomwatchv=Vd_kloNeQV0) O Brasil atual como viacutetima de uma exploraccedilatildeo econocircmica mais intensa do que nos tempos coloniais e portanto natildeo-independente aparece na fala de outro professor (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2806 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) e nos comentaacuterios de um boneco marionete de um programa infantil (youtubecomwatchv=9mh3Tu6c4_w 173 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032014)

98Exemplo desse processo de ldquodevoluccedilatildeordquo pode ser

comprovado no viacutedeo ldquoIndependecircncia ou morterdquo (youtubecomwatchv=QUvnz1no1m8 934 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Outros dois exemplos pertinentes satildeo a insistecircncia nas ideias de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil e que a Independecircncia foi uma luta entre brasileiros e portugueses

99Em entrevista a uma rede local de televisatildeo

ouvimos do professor de histoacuteria do Ensino Meacutedio Wander Pugliesi ldquoSe noacutes formos trabalhar com sinceridade o Brasil ainda natildeo eacute independente Na verdade somos muito mais explorados do que quando eacuteramos colocircnia de Portugalrdquo (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2815 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) A mesma relativizaccedilatildeo do processo de independecircncia aparece na fala do candidato agrave presidecircncia em 2010 pelo PSTU Zeacute Maria ldquohoje infelizmente natildeo podemos comemorar uma verdadeira independecircncia do paiacutes Eacute preciso dizer a verdade as multinacionais controlam a economia brasileira As decisotildees fundamentais satildeo tomadas por elas fora do paiacutesrdquo (youtubecomwatchv=ht9Yt0PlGnU 1803 visualizaccedilotildees um comentaacuterio) Acessos em 26032013

100Direccedilatildeo de Carlos Henrique Schroder 2008

Produccedilatildeo de 16 episoacutedios de cerca de 20 minutos cada para o canal da TV fechada GloboNews A seacuterie foi comercializada em DVD e pode ser vista tambeacutem no canal Globosat no Youtube (youtubecomwatchfeature= player_detailpageampv= OUX-zSyaMIc e viacutedeos relacionados Acesso em 27032014)

101Direccedilatildeo de Wolf Maya e Alexandre Avancini e

criaccedilatildeo de Carlos Lombardi 2002 Produccedilatildeo de 48 episoacutedios com cerca de 40 minutos cada para o canal da TV aberta Rede Globo de Televisatildeo A minisseacuterie tambeacutem foi comercializada em DVD e vem sendo (desde janeiro de 2014) reprisada no Canal Viva (rede fechada de televisatildeo filiada Globosat) uma reprise anterior ocorreu de agosto a novembro de 2011 sempre por volta das 23h

102Direccedilatildeo de Joatildeo Carrascosa e Pedro Bial 2007

Produccedilatildeo de 9 capiacutetulos de cerca de 15 minutos

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apresentam especificidades Tendem a diversificar (eventualmente ampliar) o rol de profissionais envolvidos em sua produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo bem como a tratar conteuacutedos em um tempo mais lento criando uma sensaccedilatildeo de homogeneidade de significados reforccedilada pela aderecircncia de tais conteuacutedos a uma trama central Tal homogeneidade por seu turno eacute relativizada por uma liberdade de criaccedilatildeo que dificilmente encontra paralelo em outros dos materiais aqui considerados ndash com a possiacutevel exceccedilatildeo da minisseacuterie O Quinto dos Infernos No entanto quando a comparaccedilatildeo eacute feita com os li-vros didaacuteticos os conteuacutedos relativos agrave Independecircncia no cinema tendem a ser menos numerosos mais superficiais e efecircmeros justamente por serem menos assumidamente informativos do que os dos livros embora isso possa encontrar alguma compensaccedilatildeo em uma linguagem visual de forte apelo emotivo Para todos os efeitos como aponta um estudioso da mateacuteria os filmes de temaacutetica histoacuterica carregam sempre certa ambiguidade ocupam uma espeacutecie de ldquoentrelugarrdquo com forccedila para criar ldquoverdadesrdquo socialmente aceitas108 Nos cinco filmes aqui considerados109 as ldquoverdadesrdquo sobre a Independecircncia tendem a replicar linhas de forccedila jaacute conhecidas mesclando temporalidades correspondentes tanto aos momentos em que foram pro-duzidos quanto aos momentos posteriores em que foram sendo exibidos110

Independecircncia ou Morte produccedilatildeo a serviccedilo das comemoraccedilotildees oficiais do sesquicentenaacuterio da Independecircncia levadas a cabo pelo go-verno ditatorial brasileiro em 1972 mostra uma narrativa de forte teor didaacutetico-pedagoacutegico sem grandes pretensotildees artiacutesticas expliacutecitas111 com diaacutelogos e situaccedilotildees muitas vezes retirados de obras sobre a Independecircncia e tratados de forma literal Sua finalidade eacute clara ldquoensinarrdquo aos especta-dores uma histoacuteria e uma memoacuteria coletivas homogecircneas aplainadas de pluralidades ou de desavenccedilas Uma histoacuteria supostamente indiscutiacutevel porque verdadeira posta a serviccedilo dos tambeacutem supostos interesses mais elevados da naccedilatildeo brasileira (por isso nela a vida privada dos persona-gens eacute toda submetida agrave sua funccedilatildeo poliacutetica inclusive no caso da relaccedilatildeo afetiva entre um D Pedro de boa aparecircncia querido do povo e mulherengo e uma ambiciosa romacircntica e sensiacutevel Domitila112) Uma espeacutecie de cartilha oficial da Independecircncia em imagens na qual se faz presente ateacute mesmo uma recomposiccedilatildeo cecircnica do quadro de Pedro Ameacuterico

Eacute interessante observar como Os Inconfidentes produzido no mesmo ano de 1972 mesmo sendo um filme amparado em abundantes liberdades e experimentos esteacuteticos cheio de ambiguidades propositais e contra-pondo-se ao oficialismo histoacuterico tatildeo em voga agrave eacutepoca por meio de uma metaacutefora na qual os contestadores agrave ditadura brasileira se convertem em sediciosos das Minas Gerais do seacuteculo XVIII natildeo se configura como mate-rial singular e discrepante de Independecircncia ou Morte em pelo menos trecircs sentidos primeiro porque em vaacuterios momentos associa a Inconfidecircncia Mi-neira com a Independecircncia do Brasil a exemplo do que Independecircncia ou Morte prega jaacute em seu primeiro texto didaacutetico113 Segundo porque tambeacutem oficializa eventos convencionalmente tidos por fundacionais da histoacuteria do Brasil (soacute que natildeo os de 1808-1822 mas os de 1788-1789) Terceiro reforccedila a prevalecircncia de indiviacuteduos sobre coletividades da imagem de um heroacutei central da trama e de uma oposiccedilatildeo de interesses maniqueiacutesta que certamente poderia se aplicar com mais rigor ao contexto em que foi feito o filme do que agravequele ao qual formalmente se refere Assim para todos os efeitos substratos de uma concepccedilatildeo de histoacuteria satildeo em ambos convergentes Em um ambiente social multifacetado em termos de no-

cada dentro do programa dominical Fantaacutestico da Rede Globo de Televisatildeo A seacuterie foi baseada no livro Brasil uma Histoacuteria de Eduardo Bueno jornalista que tambeacutem atua na seacuterie (youtubecomwatchv=3LzGKt9Pd0M acesso em 27032014)

103SETUacuteBAL Paulo As Maluquices do Imperador

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1927 CALADO Ivanir A Imperatriz no Fim do Mundo memoacuterias duacutebias de Ameacutelia de Leichtenberg Rio de Janeiro Rio Fundo Editora 1992 e TORERO Joseacute Roberto Galantes memoacuterias e admiraacuteveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes o Chalaccedila Satildeo Paulo Companhia das Letras 1994

104A trama e a narrativa do Quinto dos Infernos

recusam explicitamente a inserccedilatildeo de quaisquer componentes que natildeo os da ordem privada de seus convencionais personagens assim questotildees poliacuteticas satildeo sempre menores do que o apetite sexual de Carlota Joaquina as perversotildees de D Miguel ou a fogosidade de Domitila a economia soacute surge em pontuais pretextos cocircmicos enquanto a escravidatildeo eacute referida exclusivamente por meio de alegres e libidinosas criadas (negras) permanentemente dispostas a servirem aos desejos do heroacutei da histoacuteria D Pedro

105A anaacutelise poderia se completar com a minisseacuterie

A Marquesa de Santos dirigida por Ary Coslov e exibida pela extinta Rede Manchete de televisatildeo em 1984 agrave qual infelizmente natildeo se obteve acesso satisfatoacuterio

106Tal predileccedilatildeo pode ser entendida como mais

um fator caracteriacutestico de um momento em que a articulaccedilatildeo entre aquilo que Guy Debord chamaria de ldquosociedade do espetaacuteculordquo e Adorno e Horkheimer (dentre muitos outros) de ldquoinduacutestria culturalrdquo torna sintomaacutetico a saliecircncia do indiviacuteduo e o esvaziamento da esfera puacuteblica

107A comprovaccedilatildeo do encontro concorrente entre

dois caminhos vem do depoimento de alguns dos proacuteprios envolvidos com a produccedilatildeo do Quinto dos Infernos como o diretor Carlos Lombardi que a ele se refere como ldquoum painel dos personagens importantes do periacuteodordquo Para o produtor Wolf Maia seu objetivo foi ldquorecontar com humor uma velha histoacuteriardquo O ator Humberto Martins viu a seacuterie ldquocontar um pedaccedilo da nossa histoacuteria da histoacuteria do Brasil do nosso povo das nossas raiacutezes pateacutetica e engraccedilada tal como ela se mostra dentro desse produto poreacutem claro mesclada com uma boa dose de humorrdquo enquanto o protagonista Marcos Pasquim afirmou que ldquo[ao fazecirc-la] aprendi muita coisa que natildeo aprendi na escola eu vim aprender agora fazendo a pesquisa para fazer esse personagemrdquo Finalmente para a tambeacutem atriz Bruna Lombardi ldquoO lsquoQuintorsquo contou assim a histoacuteria que a Histoacuteria natildeo conta sabe como eacute as fraquezas da histoacuteriardquo Em ldquoDia de Fuacuteriardquo Pedro Bial e Eduardo Bueno reforccedilam seu discurso satiacuterico por meio de um verniz de verdade trazido pela citaccedilatildeo de documentos oficiais como o relato do Padre Belchior sobre o grito do Ipiranga Aleacutem disso seu discurso eacute elaborado sob o nome de tese logo bem se vecirc como seus propaladores (BialBueno) manipulam siacutembolos

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ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

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Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

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123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

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131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

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138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

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Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

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por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

34Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

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Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 19: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

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youtubecomwatchv=0ZVgCwkt1ms 1384 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1016 visualizaccedilotildees 01 comentaacuterioyoutubecomwatchv=Va1Ern6GTsc 1227 visualizaccedilotildees 03 comentaacuterios youtubecomwatchv=ANSHAFLau04 1175 visualizaccedilotildees 04 comentaacuterios) Acessos em 21042014

88Joseacute Murilo de Carvalho Luacutecia Pereira das Neves

e Marcello Basile

89A apresentadora ldquoVocecircs sabem o que significa

corcundardquo Um professor de coleacutegio ldquoDeve ser alguma coisa que estaacute surgindo aiacute no mundo um pouco mais ciberneacutetico porque eu nem na faculdade ouvi falar dos corcundasrdquo Marcos Tomazzeti produtor multimiacutedia ldquoNa minha cabeccedila vem algo de monarquia de rei algo meio poliacuteticordquo Simone Granda bancaacuteria ldquoDicionaacuterio de corcundice Natildeo seirdquo Marilu Guimaratildees dona de casa ldquoPuxa tem tanta coisa importante pra ter dicionaacuterio vai ter justo do corcundistardquo Caminhos da Independecircncia youtubecomwatchv=37XH5UEpjlI acesso em 24032013

90Em perspectiva oposta mas complementar agrave da

sondagem de opiniatildeo aqui utilizada

91E que portanto muito provavelmente ainda natildeo

tinha tido contato formal (escolar) com o tema

92O programa prossegue entatildeo com uma entrevista

com o professor Ian Rari que trata de uma Histoacuteria da Independecircncia processual natildeo centrada em uma uacutenica data ou fato criacutetica etc Mais um momento onde as vaacuterias vozes contempladas pelo programa natildeo dialogam entre si (youtubecomwatchv=xv1LOlwUfFQ 289 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio) Outro exemplo significativo eacute dado pelo programa Conexatildeo Jovem exibido em 06 de setembro de 2012 no qual dois entrevistados ndash Prof Bira professor de Histoacuteria e Marcos Eduardo socioacutelogo ndash utilizam com competecircncia o pouco tempo a eles destinado discorrendo de modo criacutetico sobre a Independecircncia e em linguagem adequada ao puacuteblico jovem ao qual o programa se destina (produccedilatildeo da TV Novo Tempo adventista parte 1 youtubecomwatchv=1IvYOYtju9sgt 74 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio parte 2 youtubecomwatchv=Ofv7QWOJpHo 47 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032013) Logo o programa traz uma abordagem feita na rua na qual a entrevistadora pergunta a uma jovem ldquoQuem falou lsquoindependecircncia ou mortersquo agraves margens do riacho do Ipirangardquo Diante da correta resposta a entrevistadora tenta induzir um erro ldquo15 de novembro ou 7 de setembrordquo Aliaacutes a expectativa do programa parece revelada pela entrevistadora logo na primeira pergunta feita a um dos convidados ldquoseraacute que os jovens se interessam pela histoacuteria de seu paiacutesrdquo E embora o material recolhido pelo proacuteprio programa permita resposta afirmativa manteacutem-se a postura negativa preacute-concebida

93Daiacute a relevacircncia de um viacutedeo com fotografias e

um aacuteudio (youtubecomwatchv=UdQ_aAAl3DE)

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoE isso em que ano que foi que aconteceurdquoResposta ldquo1822rdquo

Em seguida outro jovem que provavelmente jaacute tinha respondido a outra pergunta

Pergunta ldquoQuem foi o imperador vocecirc lembrardquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoAcertou Canta pra gente um trecho do hino da independecircnciardquoResposta ldquoAgora natildeo lembrordquo

Agora o programa aborda uma menina de cerca de dez anos clara-mente intimada91

Pergunta Por que eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta ldquoNatildeo seirdquoPergunta ldquoNatildeo lembra Vou dar uma dica um fato histoacuterico muito importante para o BrasilrdquoResposta (negativa com a cabeccedila)

Em quarto lugar outra jovem que procura se afastar da cacircmera

Pergunta ldquoVocecirc sabe porque eacute feriado dia sete de setembrordquoResposta (ainda tentando se esquivar sorrindo) ldquoNatildeordquoPergunta ldquoNatildeo saberdquoResposta ldquoAh A Independecircncia Eu natildeo prestei atenccedilatildeordquoPergunta Que ano aconteceu a Independecircncia vocecirc lembrardquoResposta ldquoNatildeordquoPergunta ldquoE quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoTambeacutem natildeo lembrordquo

Por fim a entrevista com um senhor de meia-idade comeccedila jaacute com uma resposta

Resposta ldquoIndependecircncia do BrasilrdquoPergunta ldquoQue ano aconteceu issordquoResposta ldquo1888rdquoPergunta ldquo1822 Quem foi o imperadorrdquoResposta ldquoD Pedro IrdquoPergunta ldquoCerto E onde foi que aconteceu tudo issordquoResposta ldquoSatildeo PaulordquoPergunta ldquoOK [breve silecircncio] Canta um trechinho para noacutes do hino da IndependecircnciardquoResposta ldquoJaacute podeis da paacutetria matildeerdquo [sic -prossegue cantando corretamente]

Em seguida o programa corta para uma sala de aula onde a despeito dos ldquoacertosrdquo obtidos nas ruas a entrevistadora afirma

Diante da dificuldade que noacutes encontramos no centro da cidade para saber informaccedilotildees sobre a Independecircncia do Brasil eu vim parar na sala de aula Vai ser aqui que a gente vai descobrir a histoacuteria do paiacutes92

A ideia a priori de que o brasileiro natildeo conhece e natildeo se interessa pela histoacuteria subsidia este e muitos outros programas Aqui o dado mais relevante parece estar precisamente nessa arraigada crenccedila no desinteres-

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da entatildeo prefeita de Ribeiratildeo Preto (Satildeo Paulo) Darcy Vera que afirma durante um desfile de 7 de Setembro dentre vaacuterios desvarios que ldquoTiradentes gritou lsquoIndependecircncia ou mortersquordquo Com 169919 acessos e 149 comentaacuterios (em geral criacuteticos bem humorados e depreciativos) ateacute 20082014 condensa a possibilidade de amplificaccedilatildeo do estigma do natildeo domiacutenio de referecircncias convencionais agrave Independecircncia mas sem fomentar nenhum conhecimento da mesma

94Novamente surge a questatildeo natildeo teratildeo as

renovaccedilotildees curriculares promovidas no ensino de Histoacuteria (no Brasil e alhures) das uacuteltimas deacutecadas exagerado nessa incompatibilidade Teratildeo elas sido capazes de mensurar seus efeitos deleteacuterios diante de sociedades jaacute bastante refrataacuterias a uma histoacuteria cronoloacutegica

95ldquoPouco importa que sua figura tenha sido

mitificada pela propaganda republicana O que importa eacute que ele foi um heroacutei Ele deu sua vida pela paacutetria e pela liberdaderdquo (Programa De laacute pra caacute youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032013) Essa exaltaccedilatildeo da figura de Tiradentes associada agrave Independecircncia conduz o discurso da propaganda eleitoral de um candidato agrave prefeitura de Ouro Preto em 2012 (youtubecomwatchv=eGefgLoRhec 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032014) Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo no dia 09 de setembro de 2013 apoacutes se autocaracterizar como realizador de uma ldquohistoacuteria de carne e ossordquo em contraposiccedilatildeo a produccedilotildees ldquocontaminadas pela anaacutelise marxistardquo que retirariam os personagens da Histoacuteria o jornalista Laurentino Gomes afirma ldquoNo 1822 faccedilo uma comparaccedilatildeo e digo que o uacutenico problema do Joseacute Bonifaacutecio foi nascer no Brasil pois se ele tivesse nascido nos Estados Unidos teria sido maior que o Thomas Jefferson Porque aparentemente ele era mais preparado mais luacutecido que o Thomas Jeffersonrdquo (parte 1 youtubecomwatchv=uGibbLxsZK0 4501 visualizaccedilotildees e 5 comentaacuterios parte 2 youtubecomwatchv=2LQcEcb5kLU 2302 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios acesso em 26032014 Logo voltaremos agrave obra e agraves ideias de L Gomes

96Um exemplo adveacutem do viacutedeo ldquoA verdadeira

independecircncia do Brasilrdquo em que um pastor evangeacutelico em meio a uma cerimocircnia religiosa ldquodesconstroacuteirdquo o quadro de Pedro Ameacuterico acusando-o de pouco verossiacutemil e aponta os desvios morais de D Pedro I de modo a inviabilizaacute-lo como figura histoacuterica digna de memoacuteria (youtubecomwatchv=RsKQr6bgzLA 178 visualizaccedilotildees e 2 comentaacuterios acesso em 24032014) A suposta irrelevacircncia dos personagens envolvidos no processo da independecircncia eacute notaacutevel na fala de um professor de Ensino Meacutedio (youtubecomwatchv=gvWVF9j2KEU 597 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) e de um apresentador de temas religiosos que relativizam a importacircncia do tema ao afirmarem a atual ldquodependecircncia econocircmicardquo do Brasil (youtubecomwatchv=EXyUBY7StF4 383 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Tambeacutem retornaremos a esse tema

sedesconhecimento do brasileiro pela histoacuteria bem como em um de seus efeitos mais contundentes a crenccedila de que eacute possiacutevel reverter tal situaccedilatildeo pela simples mobilizaccedilatildeo formal de datas nomes e eventos Contudo se a Independecircncia se converte em uma catalizadora de referecircncias cronoloacute-gicas ou nominais isso natildeo leva necessariamente a uma historicizaccedilatildeo do tema pelo contraacuterio a mobilizaccedilatildeo de tais referecircncias em termos como os acima mencionados (a data ou o nome por si soacutes) pode resultar no apro-fundamento da tendecircncia agrave confusatildeo temporal jaacute aqui apontada93

Nos meios intelectuais a discussatildeo em torno das formas tempo-rais de vivecircncia coletiva naquilo que se pode chamar ndash recorrendo-se a uma categoria uacutetil ndash de modernidade natildeo eacute nova tampouco estaacute em vias de esgotamento A dificuldade de organizaccedilatildeo do mundo social segundo referecircncias cronoloacutegicas natildeo seraacute em absoluto distintiva de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil embora o contraacuterio deva ser dito em relaccedilatildeo agraves formas assumidas por tais dificuldades (como as noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia) Percebe-se entatildeo o peso do estigma da dificuldade em manejar datas nomes e fatos suposta prova de um desin-teresseignoracircncia que poderia ser combatido com um retorno a velhas formas de se fazer Histoacuteria e nas quais tais elementos eram considera-dos com a essecircncia da compreensatildeo histoacuterica Natildeo parece que as coisas devam propriamente se passar segundo essa representaccedilatildeo embora um dos confrontos existentes na cultura de histoacuteria no Brasil seja sem duacutevida a polarizaccedilatildeo entre a valorizaccedilatildeo da Independecircncia (= de suas datas nomes eventos siacutembolos e supostos valores etc) e a desvalorizaccedilatildeo da mesma (=seu caraacuteter elitista e negociador a diminuiccedilatildeo da histoacuteria do Brasil em comparaccedilatildeo com a de outros paiacuteses a comicidade dessa histoacuteria etc) Eacute plausiacutevel conceber que esta segunda posiccedilatildeo encontre um aliado na con-cepccedilatildeo de incompatibilidade entre uma histoacuteria amparada por referecircncias cronoloacutegicas e ao mesmo tempo em processos estruturas e temas trans-versais do gosto inclusive de muitos acadecircmicos e educadores94

Os exemplos de materiais audiovisuais a traduzirem veicularem e fomentarem esse confronto entre valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo da Inde-pendecircncia satildeo muitos Aleacutem dos jaacute tratados ateacute aqui pode-se mencionar viacutedeos contendo propaganda de instituiccedilotildees puacuteblicas civis e militares de partidos poliacuteticos de grupos maccedilocircnicos de igrejas e de empresas variadas bem como produccedilotildees independentes Neles eacute possiacutevel encontrar desde a exaltaccedilatildeo das referecircncias mais convencionais agrave Independecircncia como a seus personagens (incluindo seu suposto maacutertir Tiradentes)95 ateacute a afirma-ccedilatildeo de sua total irrelevacircncia96 isso costuma ocorrer sem muitos matizes obedecendo a uma loacutegica dicotocircmica plasmada em linguagens simples com descontinuidades discursivas e imageacuteticas e num ritmo de exposiccedilatildeo acelerado Em suma tratam da Independecircncia segundo padrotildees parcial-mente compartilhados tambeacutem por outras fontes ateacute aqui analisadas

Todas essas fontes com suas noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia satildeo sintomaacuteticas de estados de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema bem como potenciais formadores de opiniatildeo dos mesmos Sua capacidade de criaccedilatildeo de conhecimento no entanto se mostra muito limi-tada Eacute bem verdade que esta eacute por vocaccedilatildeo uma tarefa confiada a saberes acadecircmicos ndash jaacute que no Brasil a quase totalidade da pesquisa em Histoacuteria estaacute entregue agraves universidades salvo a de interesse corporativo ndash de modo que natildeo seria de esperar inovaccedilatildeo em suportes tatildeo variados e socialmen-te diversificados quanto os ateacute aqui analisados Mas parece haver aiacute certo

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ciacuterculo vicioso a envolver tambeacutem parte da academia Basta observar que a ideia da ldquonatildeo Independecircncia de fatordquo tatildeo em voga entre tantos historiadores durante tanto tempo reverbera com forccedila na sociedade em geral97 e ainda goza de prestiacutegio ateacute mesmo entre alguns acadecircmicos que bebem-na da sociedade e apoacutes modificaacute-la parcialmente devolvem-na aos espaccedilos de di-vulgaccedilatildeo98 Essa versatildeo da Histoacuteria eacute capaz de transpor fronteiras temporais de atualizar-se em diferentes contextos e ateacute mesmo de superar abissais diferenccedilas poliacuteticas ela estaacute representada por exemplo e de modo quase idecircntico na propaganda poliacutetica de um partido trotskista e na pregaccedilatildeo nacionalista-direitista de um polecircmico professor de histoacuteria99

Por fim tome-se o caso de trecircs produccedilotildees da Rede Globo de Televi-satildeo voltadas ao puacuteblico em geral com consideraacuteveis aportes financeiros e complexa produccedilatildeo a seacuterie documental A Corte no Brasil para exibiccedilatildeo em tevecirc fechada100 e as seacuteries humoriacutesticas O Quinto dos Infernos101 e Eacute muita Histoacuteria Dia de Fuacuteria102 veiculadas amplamente em tevecirc aberta No pri-meiro caso siacutetios histoacutericos visitados pelas apresentadoras uma narrativa soacutebria e informativa de fatos e processos grande quantidade de entrevistas com historiadores ecircnfase em diferentes espaccedilos regionais e internacio-nais e tratamento do tema em muacuteltiplas dimensotildees (poliacutetica econocircmica cultural) No segundo caso uma narrativa romanceada teatral e cocircmica fortemente despolitizada e livremente baseada em trecircs livros de igual teor (um deles publicado haacute quase um seacuteculo)103 praticamente centrada no Rio de Janeiro (um pouco tambeacutem em Portugal muito menos alhures) e nos membros da famiacutelia real portuguesa cuja vida pessoal eacute estruturada em torno de seus haacutebitos excecircntricos (principalmente os sexuais) e vez ou outra de passageiros dramas pessoais104

Finalmente no terceiro caso uma encenaccedilatildeo tambeacutem cocircmica pro-tagonizada por um escritor-autor-ator-palhaccedilo com grande liberdade de criaccedilatildeo mas amparada em informaccedilotildees convenccedilotildees e mitos a oferecer uma versatildeo do Sete de Setembro segundo o estado psico-fisioloacutegico de D Pedro

Eis um exemplo de uma das modalidades assumidas pela disputa em torno de uma Independecircncia valorizada e outra depreciada Pareceria justificaacutevel opor a tal diagnoacutestico a constataccedilatildeo de se tratarem de obras televisivas de distinto teor o que desobriga a segunda e a terceira de qual-quer compromisso com a verdade No entanto interessam-nos mais seus significados e efeitos do que intenccedilotildees Note-se que a primeira documen-tal eacute de circulaccedilatildeo mais restrita que a segunda e a terceira voltadas para grande puacuteblico por isso seus efeitos nesse jogo de criaccedilatildeorecriaccedilatildeo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da Independecircncia satildeo natildeo apenas assimeacutetricos mas tambeacutem concorrentes105 Os esforccedilos de um pro-grama por posicionar o espectador diante de uma histoacuteria processual de encadeamentos temporais e de grupos e conflitos sociais satildeo naturalmente obstados pelos dos outros dois a oferecer uma histoacuteria repleta de anacro-nismos anedoacutetica e biograacutefica em perfeita sintonia com demandas mais amplas de uma sociedade ndash e de alguns de seus componentes mercadoloacutegi-cos jaacute aqui mencionados ndash na qual a vida privada eacute mais valorizada do que a puacuteblica106 Nesse confronto embora as trecircs convivam na mesma cultura de histoacuteria uma Independecircncia tende a prevalecer sobre a outra107

6 ndash A Independecircncia no cinemaEm relaccedilatildeo a livros didaacuteticos programas de televisatildeo e outros materiais audiovisuais as fontes cinematograacuteficas aqui consideradas naturalmente

97Exemplo encontra-se no viacutedeo ldquoAway Nilzer ndash

Independecircncia do Brasilrdquo com grande nuacutemero de visualizaccedilotildees (130677) e de comentaacuterios (1016) que minimiza e ridiculariza natildeo apenas o processo da independecircncia como quaisquer fatos histoacutericos brasileiros de maneira geral (youtubecomwatchv=Vd_kloNeQV0) O Brasil atual como viacutetima de uma exploraccedilatildeo econocircmica mais intensa do que nos tempos coloniais e portanto natildeo-independente aparece na fala de outro professor (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2806 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) e nos comentaacuterios de um boneco marionete de um programa infantil (youtubecomwatchv=9mh3Tu6c4_w 173 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032014)

98Exemplo desse processo de ldquodevoluccedilatildeordquo pode ser

comprovado no viacutedeo ldquoIndependecircncia ou morterdquo (youtubecomwatchv=QUvnz1no1m8 934 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Outros dois exemplos pertinentes satildeo a insistecircncia nas ideias de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil e que a Independecircncia foi uma luta entre brasileiros e portugueses

99Em entrevista a uma rede local de televisatildeo

ouvimos do professor de histoacuteria do Ensino Meacutedio Wander Pugliesi ldquoSe noacutes formos trabalhar com sinceridade o Brasil ainda natildeo eacute independente Na verdade somos muito mais explorados do que quando eacuteramos colocircnia de Portugalrdquo (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2815 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) A mesma relativizaccedilatildeo do processo de independecircncia aparece na fala do candidato agrave presidecircncia em 2010 pelo PSTU Zeacute Maria ldquohoje infelizmente natildeo podemos comemorar uma verdadeira independecircncia do paiacutes Eacute preciso dizer a verdade as multinacionais controlam a economia brasileira As decisotildees fundamentais satildeo tomadas por elas fora do paiacutesrdquo (youtubecomwatchv=ht9Yt0PlGnU 1803 visualizaccedilotildees um comentaacuterio) Acessos em 26032013

100Direccedilatildeo de Carlos Henrique Schroder 2008

Produccedilatildeo de 16 episoacutedios de cerca de 20 minutos cada para o canal da TV fechada GloboNews A seacuterie foi comercializada em DVD e pode ser vista tambeacutem no canal Globosat no Youtube (youtubecomwatchfeature= player_detailpageampv= OUX-zSyaMIc e viacutedeos relacionados Acesso em 27032014)

101Direccedilatildeo de Wolf Maya e Alexandre Avancini e

criaccedilatildeo de Carlos Lombardi 2002 Produccedilatildeo de 48 episoacutedios com cerca de 40 minutos cada para o canal da TV aberta Rede Globo de Televisatildeo A minisseacuterie tambeacutem foi comercializada em DVD e vem sendo (desde janeiro de 2014) reprisada no Canal Viva (rede fechada de televisatildeo filiada Globosat) uma reprise anterior ocorreu de agosto a novembro de 2011 sempre por volta das 23h

102Direccedilatildeo de Joatildeo Carrascosa e Pedro Bial 2007

Produccedilatildeo de 9 capiacutetulos de cerca de 15 minutos

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apresentam especificidades Tendem a diversificar (eventualmente ampliar) o rol de profissionais envolvidos em sua produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo bem como a tratar conteuacutedos em um tempo mais lento criando uma sensaccedilatildeo de homogeneidade de significados reforccedilada pela aderecircncia de tais conteuacutedos a uma trama central Tal homogeneidade por seu turno eacute relativizada por uma liberdade de criaccedilatildeo que dificilmente encontra paralelo em outros dos materiais aqui considerados ndash com a possiacutevel exceccedilatildeo da minisseacuterie O Quinto dos Infernos No entanto quando a comparaccedilatildeo eacute feita com os li-vros didaacuteticos os conteuacutedos relativos agrave Independecircncia no cinema tendem a ser menos numerosos mais superficiais e efecircmeros justamente por serem menos assumidamente informativos do que os dos livros embora isso possa encontrar alguma compensaccedilatildeo em uma linguagem visual de forte apelo emotivo Para todos os efeitos como aponta um estudioso da mateacuteria os filmes de temaacutetica histoacuterica carregam sempre certa ambiguidade ocupam uma espeacutecie de ldquoentrelugarrdquo com forccedila para criar ldquoverdadesrdquo socialmente aceitas108 Nos cinco filmes aqui considerados109 as ldquoverdadesrdquo sobre a Independecircncia tendem a replicar linhas de forccedila jaacute conhecidas mesclando temporalidades correspondentes tanto aos momentos em que foram pro-duzidos quanto aos momentos posteriores em que foram sendo exibidos110

Independecircncia ou Morte produccedilatildeo a serviccedilo das comemoraccedilotildees oficiais do sesquicentenaacuterio da Independecircncia levadas a cabo pelo go-verno ditatorial brasileiro em 1972 mostra uma narrativa de forte teor didaacutetico-pedagoacutegico sem grandes pretensotildees artiacutesticas expliacutecitas111 com diaacutelogos e situaccedilotildees muitas vezes retirados de obras sobre a Independecircncia e tratados de forma literal Sua finalidade eacute clara ldquoensinarrdquo aos especta-dores uma histoacuteria e uma memoacuteria coletivas homogecircneas aplainadas de pluralidades ou de desavenccedilas Uma histoacuteria supostamente indiscutiacutevel porque verdadeira posta a serviccedilo dos tambeacutem supostos interesses mais elevados da naccedilatildeo brasileira (por isso nela a vida privada dos persona-gens eacute toda submetida agrave sua funccedilatildeo poliacutetica inclusive no caso da relaccedilatildeo afetiva entre um D Pedro de boa aparecircncia querido do povo e mulherengo e uma ambiciosa romacircntica e sensiacutevel Domitila112) Uma espeacutecie de cartilha oficial da Independecircncia em imagens na qual se faz presente ateacute mesmo uma recomposiccedilatildeo cecircnica do quadro de Pedro Ameacuterico

Eacute interessante observar como Os Inconfidentes produzido no mesmo ano de 1972 mesmo sendo um filme amparado em abundantes liberdades e experimentos esteacuteticos cheio de ambiguidades propositais e contra-pondo-se ao oficialismo histoacuterico tatildeo em voga agrave eacutepoca por meio de uma metaacutefora na qual os contestadores agrave ditadura brasileira se convertem em sediciosos das Minas Gerais do seacuteculo XVIII natildeo se configura como mate-rial singular e discrepante de Independecircncia ou Morte em pelo menos trecircs sentidos primeiro porque em vaacuterios momentos associa a Inconfidecircncia Mi-neira com a Independecircncia do Brasil a exemplo do que Independecircncia ou Morte prega jaacute em seu primeiro texto didaacutetico113 Segundo porque tambeacutem oficializa eventos convencionalmente tidos por fundacionais da histoacuteria do Brasil (soacute que natildeo os de 1808-1822 mas os de 1788-1789) Terceiro reforccedila a prevalecircncia de indiviacuteduos sobre coletividades da imagem de um heroacutei central da trama e de uma oposiccedilatildeo de interesses maniqueiacutesta que certamente poderia se aplicar com mais rigor ao contexto em que foi feito o filme do que agravequele ao qual formalmente se refere Assim para todos os efeitos substratos de uma concepccedilatildeo de histoacuteria satildeo em ambos convergentes Em um ambiente social multifacetado em termos de no-

cada dentro do programa dominical Fantaacutestico da Rede Globo de Televisatildeo A seacuterie foi baseada no livro Brasil uma Histoacuteria de Eduardo Bueno jornalista que tambeacutem atua na seacuterie (youtubecomwatchv=3LzGKt9Pd0M acesso em 27032014)

103SETUacuteBAL Paulo As Maluquices do Imperador

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1927 CALADO Ivanir A Imperatriz no Fim do Mundo memoacuterias duacutebias de Ameacutelia de Leichtenberg Rio de Janeiro Rio Fundo Editora 1992 e TORERO Joseacute Roberto Galantes memoacuterias e admiraacuteveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes o Chalaccedila Satildeo Paulo Companhia das Letras 1994

104A trama e a narrativa do Quinto dos Infernos

recusam explicitamente a inserccedilatildeo de quaisquer componentes que natildeo os da ordem privada de seus convencionais personagens assim questotildees poliacuteticas satildeo sempre menores do que o apetite sexual de Carlota Joaquina as perversotildees de D Miguel ou a fogosidade de Domitila a economia soacute surge em pontuais pretextos cocircmicos enquanto a escravidatildeo eacute referida exclusivamente por meio de alegres e libidinosas criadas (negras) permanentemente dispostas a servirem aos desejos do heroacutei da histoacuteria D Pedro

105A anaacutelise poderia se completar com a minisseacuterie

A Marquesa de Santos dirigida por Ary Coslov e exibida pela extinta Rede Manchete de televisatildeo em 1984 agrave qual infelizmente natildeo se obteve acesso satisfatoacuterio

106Tal predileccedilatildeo pode ser entendida como mais

um fator caracteriacutestico de um momento em que a articulaccedilatildeo entre aquilo que Guy Debord chamaria de ldquosociedade do espetaacuteculordquo e Adorno e Horkheimer (dentre muitos outros) de ldquoinduacutestria culturalrdquo torna sintomaacutetico a saliecircncia do indiviacuteduo e o esvaziamento da esfera puacuteblica

107A comprovaccedilatildeo do encontro concorrente entre

dois caminhos vem do depoimento de alguns dos proacuteprios envolvidos com a produccedilatildeo do Quinto dos Infernos como o diretor Carlos Lombardi que a ele se refere como ldquoum painel dos personagens importantes do periacuteodordquo Para o produtor Wolf Maia seu objetivo foi ldquorecontar com humor uma velha histoacuteriardquo O ator Humberto Martins viu a seacuterie ldquocontar um pedaccedilo da nossa histoacuteria da histoacuteria do Brasil do nosso povo das nossas raiacutezes pateacutetica e engraccedilada tal como ela se mostra dentro desse produto poreacutem claro mesclada com uma boa dose de humorrdquo enquanto o protagonista Marcos Pasquim afirmou que ldquo[ao fazecirc-la] aprendi muita coisa que natildeo aprendi na escola eu vim aprender agora fazendo a pesquisa para fazer esse personagemrdquo Finalmente para a tambeacutem atriz Bruna Lombardi ldquoO lsquoQuintorsquo contou assim a histoacuteria que a Histoacuteria natildeo conta sabe como eacute as fraquezas da histoacuteriardquo Em ldquoDia de Fuacuteriardquo Pedro Bial e Eduardo Bueno reforccedilam seu discurso satiacuterico por meio de um verniz de verdade trazido pela citaccedilatildeo de documentos oficiais como o relato do Padre Belchior sobre o grito do Ipiranga Aleacutem disso seu discurso eacute elaborado sob o nome de tese logo bem se vecirc como seus propaladores (BialBueno) manipulam siacutembolos

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ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

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Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

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123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

30Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

31Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

32Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

33Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

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muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

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Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 20: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

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da entatildeo prefeita de Ribeiratildeo Preto (Satildeo Paulo) Darcy Vera que afirma durante um desfile de 7 de Setembro dentre vaacuterios desvarios que ldquoTiradentes gritou lsquoIndependecircncia ou mortersquordquo Com 169919 acessos e 149 comentaacuterios (em geral criacuteticos bem humorados e depreciativos) ateacute 20082014 condensa a possibilidade de amplificaccedilatildeo do estigma do natildeo domiacutenio de referecircncias convencionais agrave Independecircncia mas sem fomentar nenhum conhecimento da mesma

94Novamente surge a questatildeo natildeo teratildeo as

renovaccedilotildees curriculares promovidas no ensino de Histoacuteria (no Brasil e alhures) das uacuteltimas deacutecadas exagerado nessa incompatibilidade Teratildeo elas sido capazes de mensurar seus efeitos deleteacuterios diante de sociedades jaacute bastante refrataacuterias a uma histoacuteria cronoloacutegica

95ldquoPouco importa que sua figura tenha sido

mitificada pela propaganda republicana O que importa eacute que ele foi um heroacutei Ele deu sua vida pela paacutetria e pela liberdaderdquo (Programa De laacute pra caacute youtubecomwatchv=z5QkhMDrTTI 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032013) Essa exaltaccedilatildeo da figura de Tiradentes associada agrave Independecircncia conduz o discurso da propaganda eleitoral de um candidato agrave prefeitura de Ouro Preto em 2012 (youtubecomwatchv=eGefgLoRhec 360 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio acesso em 26032014) Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo no dia 09 de setembro de 2013 apoacutes se autocaracterizar como realizador de uma ldquohistoacuteria de carne e ossordquo em contraposiccedilatildeo a produccedilotildees ldquocontaminadas pela anaacutelise marxistardquo que retirariam os personagens da Histoacuteria o jornalista Laurentino Gomes afirma ldquoNo 1822 faccedilo uma comparaccedilatildeo e digo que o uacutenico problema do Joseacute Bonifaacutecio foi nascer no Brasil pois se ele tivesse nascido nos Estados Unidos teria sido maior que o Thomas Jefferson Porque aparentemente ele era mais preparado mais luacutecido que o Thomas Jeffersonrdquo (parte 1 youtubecomwatchv=uGibbLxsZK0 4501 visualizaccedilotildees e 5 comentaacuterios parte 2 youtubecomwatchv=2LQcEcb5kLU 2302 visualizaccedilotildees 6 comentaacuterios acesso em 26032014 Logo voltaremos agrave obra e agraves ideias de L Gomes

96Um exemplo adveacutem do viacutedeo ldquoA verdadeira

independecircncia do Brasilrdquo em que um pastor evangeacutelico em meio a uma cerimocircnia religiosa ldquodesconstroacuteirdquo o quadro de Pedro Ameacuterico acusando-o de pouco verossiacutemil e aponta os desvios morais de D Pedro I de modo a inviabilizaacute-lo como figura histoacuterica digna de memoacuteria (youtubecomwatchv=RsKQr6bgzLA 178 visualizaccedilotildees e 2 comentaacuterios acesso em 24032014) A suposta irrelevacircncia dos personagens envolvidos no processo da independecircncia eacute notaacutevel na fala de um professor de Ensino Meacutedio (youtubecomwatchv=gvWVF9j2KEU 597 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) e de um apresentador de temas religiosos que relativizam a importacircncia do tema ao afirmarem a atual ldquodependecircncia econocircmicardquo do Brasil (youtubecomwatchv=EXyUBY7StF4 383 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Tambeacutem retornaremos a esse tema

sedesconhecimento do brasileiro pela histoacuteria bem como em um de seus efeitos mais contundentes a crenccedila de que eacute possiacutevel reverter tal situaccedilatildeo pela simples mobilizaccedilatildeo formal de datas nomes e eventos Contudo se a Independecircncia se converte em uma catalizadora de referecircncias cronoloacute-gicas ou nominais isso natildeo leva necessariamente a uma historicizaccedilatildeo do tema pelo contraacuterio a mobilizaccedilatildeo de tais referecircncias em termos como os acima mencionados (a data ou o nome por si soacutes) pode resultar no apro-fundamento da tendecircncia agrave confusatildeo temporal jaacute aqui apontada93

Nos meios intelectuais a discussatildeo em torno das formas tempo-rais de vivecircncia coletiva naquilo que se pode chamar ndash recorrendo-se a uma categoria uacutetil ndash de modernidade natildeo eacute nova tampouco estaacute em vias de esgotamento A dificuldade de organizaccedilatildeo do mundo social segundo referecircncias cronoloacutegicas natildeo seraacute em absoluto distintiva de uma cultu-ra de histoacuteria no Brasil embora o contraacuterio deva ser dito em relaccedilatildeo agraves formas assumidas por tais dificuldades (como as noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia) Percebe-se entatildeo o peso do estigma da dificuldade em manejar datas nomes e fatos suposta prova de um desin-teresseignoracircncia que poderia ser combatido com um retorno a velhas formas de se fazer Histoacuteria e nas quais tais elementos eram considera-dos com a essecircncia da compreensatildeo histoacuterica Natildeo parece que as coisas devam propriamente se passar segundo essa representaccedilatildeo embora um dos confrontos existentes na cultura de histoacuteria no Brasil seja sem duacutevida a polarizaccedilatildeo entre a valorizaccedilatildeo da Independecircncia (= de suas datas nomes eventos siacutembolos e supostos valores etc) e a desvalorizaccedilatildeo da mesma (=seu caraacuteter elitista e negociador a diminuiccedilatildeo da histoacuteria do Brasil em comparaccedilatildeo com a de outros paiacuteses a comicidade dessa histoacuteria etc) Eacute plausiacutevel conceber que esta segunda posiccedilatildeo encontre um aliado na con-cepccedilatildeo de incompatibilidade entre uma histoacuteria amparada por referecircncias cronoloacutegicas e ao mesmo tempo em processos estruturas e temas trans-versais do gosto inclusive de muitos acadecircmicos e educadores94

Os exemplos de materiais audiovisuais a traduzirem veicularem e fomentarem esse confronto entre valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo da Inde-pendecircncia satildeo muitos Aleacutem dos jaacute tratados ateacute aqui pode-se mencionar viacutedeos contendo propaganda de instituiccedilotildees puacuteblicas civis e militares de partidos poliacuteticos de grupos maccedilocircnicos de igrejas e de empresas variadas bem como produccedilotildees independentes Neles eacute possiacutevel encontrar desde a exaltaccedilatildeo das referecircncias mais convencionais agrave Independecircncia como a seus personagens (incluindo seu suposto maacutertir Tiradentes)95 ateacute a afirma-ccedilatildeo de sua total irrelevacircncia96 isso costuma ocorrer sem muitos matizes obedecendo a uma loacutegica dicotocircmica plasmada em linguagens simples com descontinuidades discursivas e imageacuteticas e num ritmo de exposiccedilatildeo acelerado Em suma tratam da Independecircncia segundo padrotildees parcial-mente compartilhados tambeacutem por outras fontes ateacute aqui analisadas

Todas essas fontes com suas noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees da Independecircncia satildeo sintomaacuteticas de estados de espiacuterito dos brasileiros em torno do tema bem como potenciais formadores de opiniatildeo dos mesmos Sua capacidade de criaccedilatildeo de conhecimento no entanto se mostra muito limi-tada Eacute bem verdade que esta eacute por vocaccedilatildeo uma tarefa confiada a saberes acadecircmicos ndash jaacute que no Brasil a quase totalidade da pesquisa em Histoacuteria estaacute entregue agraves universidades salvo a de interesse corporativo ndash de modo que natildeo seria de esperar inovaccedilatildeo em suportes tatildeo variados e socialmen-te diversificados quanto os ateacute aqui analisados Mas parece haver aiacute certo

25Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

ciacuterculo vicioso a envolver tambeacutem parte da academia Basta observar que a ideia da ldquonatildeo Independecircncia de fatordquo tatildeo em voga entre tantos historiadores durante tanto tempo reverbera com forccedila na sociedade em geral97 e ainda goza de prestiacutegio ateacute mesmo entre alguns acadecircmicos que bebem-na da sociedade e apoacutes modificaacute-la parcialmente devolvem-na aos espaccedilos de di-vulgaccedilatildeo98 Essa versatildeo da Histoacuteria eacute capaz de transpor fronteiras temporais de atualizar-se em diferentes contextos e ateacute mesmo de superar abissais diferenccedilas poliacuteticas ela estaacute representada por exemplo e de modo quase idecircntico na propaganda poliacutetica de um partido trotskista e na pregaccedilatildeo nacionalista-direitista de um polecircmico professor de histoacuteria99

Por fim tome-se o caso de trecircs produccedilotildees da Rede Globo de Televi-satildeo voltadas ao puacuteblico em geral com consideraacuteveis aportes financeiros e complexa produccedilatildeo a seacuterie documental A Corte no Brasil para exibiccedilatildeo em tevecirc fechada100 e as seacuteries humoriacutesticas O Quinto dos Infernos101 e Eacute muita Histoacuteria Dia de Fuacuteria102 veiculadas amplamente em tevecirc aberta No pri-meiro caso siacutetios histoacutericos visitados pelas apresentadoras uma narrativa soacutebria e informativa de fatos e processos grande quantidade de entrevistas com historiadores ecircnfase em diferentes espaccedilos regionais e internacio-nais e tratamento do tema em muacuteltiplas dimensotildees (poliacutetica econocircmica cultural) No segundo caso uma narrativa romanceada teatral e cocircmica fortemente despolitizada e livremente baseada em trecircs livros de igual teor (um deles publicado haacute quase um seacuteculo)103 praticamente centrada no Rio de Janeiro (um pouco tambeacutem em Portugal muito menos alhures) e nos membros da famiacutelia real portuguesa cuja vida pessoal eacute estruturada em torno de seus haacutebitos excecircntricos (principalmente os sexuais) e vez ou outra de passageiros dramas pessoais104

Finalmente no terceiro caso uma encenaccedilatildeo tambeacutem cocircmica pro-tagonizada por um escritor-autor-ator-palhaccedilo com grande liberdade de criaccedilatildeo mas amparada em informaccedilotildees convenccedilotildees e mitos a oferecer uma versatildeo do Sete de Setembro segundo o estado psico-fisioloacutegico de D Pedro

Eis um exemplo de uma das modalidades assumidas pela disputa em torno de uma Independecircncia valorizada e outra depreciada Pareceria justificaacutevel opor a tal diagnoacutestico a constataccedilatildeo de se tratarem de obras televisivas de distinto teor o que desobriga a segunda e a terceira de qual-quer compromisso com a verdade No entanto interessam-nos mais seus significados e efeitos do que intenccedilotildees Note-se que a primeira documen-tal eacute de circulaccedilatildeo mais restrita que a segunda e a terceira voltadas para grande puacuteblico por isso seus efeitos nesse jogo de criaccedilatildeorecriaccedilatildeo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da Independecircncia satildeo natildeo apenas assimeacutetricos mas tambeacutem concorrentes105 Os esforccedilos de um pro-grama por posicionar o espectador diante de uma histoacuteria processual de encadeamentos temporais e de grupos e conflitos sociais satildeo naturalmente obstados pelos dos outros dois a oferecer uma histoacuteria repleta de anacro-nismos anedoacutetica e biograacutefica em perfeita sintonia com demandas mais amplas de uma sociedade ndash e de alguns de seus componentes mercadoloacutegi-cos jaacute aqui mencionados ndash na qual a vida privada eacute mais valorizada do que a puacuteblica106 Nesse confronto embora as trecircs convivam na mesma cultura de histoacuteria uma Independecircncia tende a prevalecer sobre a outra107

6 ndash A Independecircncia no cinemaEm relaccedilatildeo a livros didaacuteticos programas de televisatildeo e outros materiais audiovisuais as fontes cinematograacuteficas aqui consideradas naturalmente

97Exemplo encontra-se no viacutedeo ldquoAway Nilzer ndash

Independecircncia do Brasilrdquo com grande nuacutemero de visualizaccedilotildees (130677) e de comentaacuterios (1016) que minimiza e ridiculariza natildeo apenas o processo da independecircncia como quaisquer fatos histoacutericos brasileiros de maneira geral (youtubecomwatchv=Vd_kloNeQV0) O Brasil atual como viacutetima de uma exploraccedilatildeo econocircmica mais intensa do que nos tempos coloniais e portanto natildeo-independente aparece na fala de outro professor (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2806 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) e nos comentaacuterios de um boneco marionete de um programa infantil (youtubecomwatchv=9mh3Tu6c4_w 173 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032014)

98Exemplo desse processo de ldquodevoluccedilatildeordquo pode ser

comprovado no viacutedeo ldquoIndependecircncia ou morterdquo (youtubecomwatchv=QUvnz1no1m8 934 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Outros dois exemplos pertinentes satildeo a insistecircncia nas ideias de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil e que a Independecircncia foi uma luta entre brasileiros e portugueses

99Em entrevista a uma rede local de televisatildeo

ouvimos do professor de histoacuteria do Ensino Meacutedio Wander Pugliesi ldquoSe noacutes formos trabalhar com sinceridade o Brasil ainda natildeo eacute independente Na verdade somos muito mais explorados do que quando eacuteramos colocircnia de Portugalrdquo (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2815 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) A mesma relativizaccedilatildeo do processo de independecircncia aparece na fala do candidato agrave presidecircncia em 2010 pelo PSTU Zeacute Maria ldquohoje infelizmente natildeo podemos comemorar uma verdadeira independecircncia do paiacutes Eacute preciso dizer a verdade as multinacionais controlam a economia brasileira As decisotildees fundamentais satildeo tomadas por elas fora do paiacutesrdquo (youtubecomwatchv=ht9Yt0PlGnU 1803 visualizaccedilotildees um comentaacuterio) Acessos em 26032013

100Direccedilatildeo de Carlos Henrique Schroder 2008

Produccedilatildeo de 16 episoacutedios de cerca de 20 minutos cada para o canal da TV fechada GloboNews A seacuterie foi comercializada em DVD e pode ser vista tambeacutem no canal Globosat no Youtube (youtubecomwatchfeature= player_detailpageampv= OUX-zSyaMIc e viacutedeos relacionados Acesso em 27032014)

101Direccedilatildeo de Wolf Maya e Alexandre Avancini e

criaccedilatildeo de Carlos Lombardi 2002 Produccedilatildeo de 48 episoacutedios com cerca de 40 minutos cada para o canal da TV aberta Rede Globo de Televisatildeo A minisseacuterie tambeacutem foi comercializada em DVD e vem sendo (desde janeiro de 2014) reprisada no Canal Viva (rede fechada de televisatildeo filiada Globosat) uma reprise anterior ocorreu de agosto a novembro de 2011 sempre por volta das 23h

102Direccedilatildeo de Joatildeo Carrascosa e Pedro Bial 2007

Produccedilatildeo de 9 capiacutetulos de cerca de 15 minutos

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apresentam especificidades Tendem a diversificar (eventualmente ampliar) o rol de profissionais envolvidos em sua produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo bem como a tratar conteuacutedos em um tempo mais lento criando uma sensaccedilatildeo de homogeneidade de significados reforccedilada pela aderecircncia de tais conteuacutedos a uma trama central Tal homogeneidade por seu turno eacute relativizada por uma liberdade de criaccedilatildeo que dificilmente encontra paralelo em outros dos materiais aqui considerados ndash com a possiacutevel exceccedilatildeo da minisseacuterie O Quinto dos Infernos No entanto quando a comparaccedilatildeo eacute feita com os li-vros didaacuteticos os conteuacutedos relativos agrave Independecircncia no cinema tendem a ser menos numerosos mais superficiais e efecircmeros justamente por serem menos assumidamente informativos do que os dos livros embora isso possa encontrar alguma compensaccedilatildeo em uma linguagem visual de forte apelo emotivo Para todos os efeitos como aponta um estudioso da mateacuteria os filmes de temaacutetica histoacuterica carregam sempre certa ambiguidade ocupam uma espeacutecie de ldquoentrelugarrdquo com forccedila para criar ldquoverdadesrdquo socialmente aceitas108 Nos cinco filmes aqui considerados109 as ldquoverdadesrdquo sobre a Independecircncia tendem a replicar linhas de forccedila jaacute conhecidas mesclando temporalidades correspondentes tanto aos momentos em que foram pro-duzidos quanto aos momentos posteriores em que foram sendo exibidos110

Independecircncia ou Morte produccedilatildeo a serviccedilo das comemoraccedilotildees oficiais do sesquicentenaacuterio da Independecircncia levadas a cabo pelo go-verno ditatorial brasileiro em 1972 mostra uma narrativa de forte teor didaacutetico-pedagoacutegico sem grandes pretensotildees artiacutesticas expliacutecitas111 com diaacutelogos e situaccedilotildees muitas vezes retirados de obras sobre a Independecircncia e tratados de forma literal Sua finalidade eacute clara ldquoensinarrdquo aos especta-dores uma histoacuteria e uma memoacuteria coletivas homogecircneas aplainadas de pluralidades ou de desavenccedilas Uma histoacuteria supostamente indiscutiacutevel porque verdadeira posta a serviccedilo dos tambeacutem supostos interesses mais elevados da naccedilatildeo brasileira (por isso nela a vida privada dos persona-gens eacute toda submetida agrave sua funccedilatildeo poliacutetica inclusive no caso da relaccedilatildeo afetiva entre um D Pedro de boa aparecircncia querido do povo e mulherengo e uma ambiciosa romacircntica e sensiacutevel Domitila112) Uma espeacutecie de cartilha oficial da Independecircncia em imagens na qual se faz presente ateacute mesmo uma recomposiccedilatildeo cecircnica do quadro de Pedro Ameacuterico

Eacute interessante observar como Os Inconfidentes produzido no mesmo ano de 1972 mesmo sendo um filme amparado em abundantes liberdades e experimentos esteacuteticos cheio de ambiguidades propositais e contra-pondo-se ao oficialismo histoacuterico tatildeo em voga agrave eacutepoca por meio de uma metaacutefora na qual os contestadores agrave ditadura brasileira se convertem em sediciosos das Minas Gerais do seacuteculo XVIII natildeo se configura como mate-rial singular e discrepante de Independecircncia ou Morte em pelo menos trecircs sentidos primeiro porque em vaacuterios momentos associa a Inconfidecircncia Mi-neira com a Independecircncia do Brasil a exemplo do que Independecircncia ou Morte prega jaacute em seu primeiro texto didaacutetico113 Segundo porque tambeacutem oficializa eventos convencionalmente tidos por fundacionais da histoacuteria do Brasil (soacute que natildeo os de 1808-1822 mas os de 1788-1789) Terceiro reforccedila a prevalecircncia de indiviacuteduos sobre coletividades da imagem de um heroacutei central da trama e de uma oposiccedilatildeo de interesses maniqueiacutesta que certamente poderia se aplicar com mais rigor ao contexto em que foi feito o filme do que agravequele ao qual formalmente se refere Assim para todos os efeitos substratos de uma concepccedilatildeo de histoacuteria satildeo em ambos convergentes Em um ambiente social multifacetado em termos de no-

cada dentro do programa dominical Fantaacutestico da Rede Globo de Televisatildeo A seacuterie foi baseada no livro Brasil uma Histoacuteria de Eduardo Bueno jornalista que tambeacutem atua na seacuterie (youtubecomwatchv=3LzGKt9Pd0M acesso em 27032014)

103SETUacuteBAL Paulo As Maluquices do Imperador

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1927 CALADO Ivanir A Imperatriz no Fim do Mundo memoacuterias duacutebias de Ameacutelia de Leichtenberg Rio de Janeiro Rio Fundo Editora 1992 e TORERO Joseacute Roberto Galantes memoacuterias e admiraacuteveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes o Chalaccedila Satildeo Paulo Companhia das Letras 1994

104A trama e a narrativa do Quinto dos Infernos

recusam explicitamente a inserccedilatildeo de quaisquer componentes que natildeo os da ordem privada de seus convencionais personagens assim questotildees poliacuteticas satildeo sempre menores do que o apetite sexual de Carlota Joaquina as perversotildees de D Miguel ou a fogosidade de Domitila a economia soacute surge em pontuais pretextos cocircmicos enquanto a escravidatildeo eacute referida exclusivamente por meio de alegres e libidinosas criadas (negras) permanentemente dispostas a servirem aos desejos do heroacutei da histoacuteria D Pedro

105A anaacutelise poderia se completar com a minisseacuterie

A Marquesa de Santos dirigida por Ary Coslov e exibida pela extinta Rede Manchete de televisatildeo em 1984 agrave qual infelizmente natildeo se obteve acesso satisfatoacuterio

106Tal predileccedilatildeo pode ser entendida como mais

um fator caracteriacutestico de um momento em que a articulaccedilatildeo entre aquilo que Guy Debord chamaria de ldquosociedade do espetaacuteculordquo e Adorno e Horkheimer (dentre muitos outros) de ldquoinduacutestria culturalrdquo torna sintomaacutetico a saliecircncia do indiviacuteduo e o esvaziamento da esfera puacuteblica

107A comprovaccedilatildeo do encontro concorrente entre

dois caminhos vem do depoimento de alguns dos proacuteprios envolvidos com a produccedilatildeo do Quinto dos Infernos como o diretor Carlos Lombardi que a ele se refere como ldquoum painel dos personagens importantes do periacuteodordquo Para o produtor Wolf Maia seu objetivo foi ldquorecontar com humor uma velha histoacuteriardquo O ator Humberto Martins viu a seacuterie ldquocontar um pedaccedilo da nossa histoacuteria da histoacuteria do Brasil do nosso povo das nossas raiacutezes pateacutetica e engraccedilada tal como ela se mostra dentro desse produto poreacutem claro mesclada com uma boa dose de humorrdquo enquanto o protagonista Marcos Pasquim afirmou que ldquo[ao fazecirc-la] aprendi muita coisa que natildeo aprendi na escola eu vim aprender agora fazendo a pesquisa para fazer esse personagemrdquo Finalmente para a tambeacutem atriz Bruna Lombardi ldquoO lsquoQuintorsquo contou assim a histoacuteria que a Histoacuteria natildeo conta sabe como eacute as fraquezas da histoacuteriardquo Em ldquoDia de Fuacuteriardquo Pedro Bial e Eduardo Bueno reforccedilam seu discurso satiacuterico por meio de um verniz de verdade trazido pela citaccedilatildeo de documentos oficiais como o relato do Padre Belchior sobre o grito do Ipiranga Aleacutem disso seu discurso eacute elaborado sob o nome de tese logo bem se vecirc como seus propaladores (BialBueno) manipulam siacutembolos

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ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

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Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

29Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

30Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

31Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

32Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

33Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

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muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

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Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 21: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

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ciacuterculo vicioso a envolver tambeacutem parte da academia Basta observar que a ideia da ldquonatildeo Independecircncia de fatordquo tatildeo em voga entre tantos historiadores durante tanto tempo reverbera com forccedila na sociedade em geral97 e ainda goza de prestiacutegio ateacute mesmo entre alguns acadecircmicos que bebem-na da sociedade e apoacutes modificaacute-la parcialmente devolvem-na aos espaccedilos de di-vulgaccedilatildeo98 Essa versatildeo da Histoacuteria eacute capaz de transpor fronteiras temporais de atualizar-se em diferentes contextos e ateacute mesmo de superar abissais diferenccedilas poliacuteticas ela estaacute representada por exemplo e de modo quase idecircntico na propaganda poliacutetica de um partido trotskista e na pregaccedilatildeo nacionalista-direitista de um polecircmico professor de histoacuteria99

Por fim tome-se o caso de trecircs produccedilotildees da Rede Globo de Televi-satildeo voltadas ao puacuteblico em geral com consideraacuteveis aportes financeiros e complexa produccedilatildeo a seacuterie documental A Corte no Brasil para exibiccedilatildeo em tevecirc fechada100 e as seacuteries humoriacutesticas O Quinto dos Infernos101 e Eacute muita Histoacuteria Dia de Fuacuteria102 veiculadas amplamente em tevecirc aberta No pri-meiro caso siacutetios histoacutericos visitados pelas apresentadoras uma narrativa soacutebria e informativa de fatos e processos grande quantidade de entrevistas com historiadores ecircnfase em diferentes espaccedilos regionais e internacio-nais e tratamento do tema em muacuteltiplas dimensotildees (poliacutetica econocircmica cultural) No segundo caso uma narrativa romanceada teatral e cocircmica fortemente despolitizada e livremente baseada em trecircs livros de igual teor (um deles publicado haacute quase um seacuteculo)103 praticamente centrada no Rio de Janeiro (um pouco tambeacutem em Portugal muito menos alhures) e nos membros da famiacutelia real portuguesa cuja vida pessoal eacute estruturada em torno de seus haacutebitos excecircntricos (principalmente os sexuais) e vez ou outra de passageiros dramas pessoais104

Finalmente no terceiro caso uma encenaccedilatildeo tambeacutem cocircmica pro-tagonizada por um escritor-autor-ator-palhaccedilo com grande liberdade de criaccedilatildeo mas amparada em informaccedilotildees convenccedilotildees e mitos a oferecer uma versatildeo do Sete de Setembro segundo o estado psico-fisioloacutegico de D Pedro

Eis um exemplo de uma das modalidades assumidas pela disputa em torno de uma Independecircncia valorizada e outra depreciada Pareceria justificaacutevel opor a tal diagnoacutestico a constataccedilatildeo de se tratarem de obras televisivas de distinto teor o que desobriga a segunda e a terceira de qual-quer compromisso com a verdade No entanto interessam-nos mais seus significados e efeitos do que intenccedilotildees Note-se que a primeira documen-tal eacute de circulaccedilatildeo mais restrita que a segunda e a terceira voltadas para grande puacuteblico por isso seus efeitos nesse jogo de criaccedilatildeorecriaccedilatildeo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da Independecircncia satildeo natildeo apenas assimeacutetricos mas tambeacutem concorrentes105 Os esforccedilos de um pro-grama por posicionar o espectador diante de uma histoacuteria processual de encadeamentos temporais e de grupos e conflitos sociais satildeo naturalmente obstados pelos dos outros dois a oferecer uma histoacuteria repleta de anacro-nismos anedoacutetica e biograacutefica em perfeita sintonia com demandas mais amplas de uma sociedade ndash e de alguns de seus componentes mercadoloacutegi-cos jaacute aqui mencionados ndash na qual a vida privada eacute mais valorizada do que a puacuteblica106 Nesse confronto embora as trecircs convivam na mesma cultura de histoacuteria uma Independecircncia tende a prevalecer sobre a outra107

6 ndash A Independecircncia no cinemaEm relaccedilatildeo a livros didaacuteticos programas de televisatildeo e outros materiais audiovisuais as fontes cinematograacuteficas aqui consideradas naturalmente

97Exemplo encontra-se no viacutedeo ldquoAway Nilzer ndash

Independecircncia do Brasilrdquo com grande nuacutemero de visualizaccedilotildees (130677) e de comentaacuterios (1016) que minimiza e ridiculariza natildeo apenas o processo da independecircncia como quaisquer fatos histoacutericos brasileiros de maneira geral (youtubecomwatchv=Vd_kloNeQV0) O Brasil atual como viacutetima de uma exploraccedilatildeo econocircmica mais intensa do que nos tempos coloniais e portanto natildeo-independente aparece na fala de outro professor (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2806 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) e nos comentaacuterios de um boneco marionete de um programa infantil (youtubecomwatchv=9mh3Tu6c4_w 173 visualizaccedilotildees nenhum comentaacuterio (acessos em 24032014)

98Exemplo desse processo de ldquodevoluccedilatildeordquo pode ser

comprovado no viacutedeo ldquoIndependecircncia ou morterdquo (youtubecomwatchv=QUvnz1no1m8 934 visualizaccedilotildees e nenhum comentaacuterio acesso em 24032014) Outros dois exemplos pertinentes satildeo a insistecircncia nas ideias de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil e que a Independecircncia foi uma luta entre brasileiros e portugueses

99Em entrevista a uma rede local de televisatildeo

ouvimos do professor de histoacuteria do Ensino Meacutedio Wander Pugliesi ldquoSe noacutes formos trabalhar com sinceridade o Brasil ainda natildeo eacute independente Na verdade somos muito mais explorados do que quando eacuteramos colocircnia de Portugalrdquo (youtubecomwatchv=cFHySuce9Twampplaynext=1amplist= PL60A27756B33DE105ampfeature=results_main 2815 visualizaccedilotildees 8 comentaacuterios) A mesma relativizaccedilatildeo do processo de independecircncia aparece na fala do candidato agrave presidecircncia em 2010 pelo PSTU Zeacute Maria ldquohoje infelizmente natildeo podemos comemorar uma verdadeira independecircncia do paiacutes Eacute preciso dizer a verdade as multinacionais controlam a economia brasileira As decisotildees fundamentais satildeo tomadas por elas fora do paiacutesrdquo (youtubecomwatchv=ht9Yt0PlGnU 1803 visualizaccedilotildees um comentaacuterio) Acessos em 26032013

100Direccedilatildeo de Carlos Henrique Schroder 2008

Produccedilatildeo de 16 episoacutedios de cerca de 20 minutos cada para o canal da TV fechada GloboNews A seacuterie foi comercializada em DVD e pode ser vista tambeacutem no canal Globosat no Youtube (youtubecomwatchfeature= player_detailpageampv= OUX-zSyaMIc e viacutedeos relacionados Acesso em 27032014)

101Direccedilatildeo de Wolf Maya e Alexandre Avancini e

criaccedilatildeo de Carlos Lombardi 2002 Produccedilatildeo de 48 episoacutedios com cerca de 40 minutos cada para o canal da TV aberta Rede Globo de Televisatildeo A minisseacuterie tambeacutem foi comercializada em DVD e vem sendo (desde janeiro de 2014) reprisada no Canal Viva (rede fechada de televisatildeo filiada Globosat) uma reprise anterior ocorreu de agosto a novembro de 2011 sempre por volta das 23h

102Direccedilatildeo de Joatildeo Carrascosa e Pedro Bial 2007

Produccedilatildeo de 9 capiacutetulos de cerca de 15 minutos

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apresentam especificidades Tendem a diversificar (eventualmente ampliar) o rol de profissionais envolvidos em sua produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo bem como a tratar conteuacutedos em um tempo mais lento criando uma sensaccedilatildeo de homogeneidade de significados reforccedilada pela aderecircncia de tais conteuacutedos a uma trama central Tal homogeneidade por seu turno eacute relativizada por uma liberdade de criaccedilatildeo que dificilmente encontra paralelo em outros dos materiais aqui considerados ndash com a possiacutevel exceccedilatildeo da minisseacuterie O Quinto dos Infernos No entanto quando a comparaccedilatildeo eacute feita com os li-vros didaacuteticos os conteuacutedos relativos agrave Independecircncia no cinema tendem a ser menos numerosos mais superficiais e efecircmeros justamente por serem menos assumidamente informativos do que os dos livros embora isso possa encontrar alguma compensaccedilatildeo em uma linguagem visual de forte apelo emotivo Para todos os efeitos como aponta um estudioso da mateacuteria os filmes de temaacutetica histoacuterica carregam sempre certa ambiguidade ocupam uma espeacutecie de ldquoentrelugarrdquo com forccedila para criar ldquoverdadesrdquo socialmente aceitas108 Nos cinco filmes aqui considerados109 as ldquoverdadesrdquo sobre a Independecircncia tendem a replicar linhas de forccedila jaacute conhecidas mesclando temporalidades correspondentes tanto aos momentos em que foram pro-duzidos quanto aos momentos posteriores em que foram sendo exibidos110

Independecircncia ou Morte produccedilatildeo a serviccedilo das comemoraccedilotildees oficiais do sesquicentenaacuterio da Independecircncia levadas a cabo pelo go-verno ditatorial brasileiro em 1972 mostra uma narrativa de forte teor didaacutetico-pedagoacutegico sem grandes pretensotildees artiacutesticas expliacutecitas111 com diaacutelogos e situaccedilotildees muitas vezes retirados de obras sobre a Independecircncia e tratados de forma literal Sua finalidade eacute clara ldquoensinarrdquo aos especta-dores uma histoacuteria e uma memoacuteria coletivas homogecircneas aplainadas de pluralidades ou de desavenccedilas Uma histoacuteria supostamente indiscutiacutevel porque verdadeira posta a serviccedilo dos tambeacutem supostos interesses mais elevados da naccedilatildeo brasileira (por isso nela a vida privada dos persona-gens eacute toda submetida agrave sua funccedilatildeo poliacutetica inclusive no caso da relaccedilatildeo afetiva entre um D Pedro de boa aparecircncia querido do povo e mulherengo e uma ambiciosa romacircntica e sensiacutevel Domitila112) Uma espeacutecie de cartilha oficial da Independecircncia em imagens na qual se faz presente ateacute mesmo uma recomposiccedilatildeo cecircnica do quadro de Pedro Ameacuterico

Eacute interessante observar como Os Inconfidentes produzido no mesmo ano de 1972 mesmo sendo um filme amparado em abundantes liberdades e experimentos esteacuteticos cheio de ambiguidades propositais e contra-pondo-se ao oficialismo histoacuterico tatildeo em voga agrave eacutepoca por meio de uma metaacutefora na qual os contestadores agrave ditadura brasileira se convertem em sediciosos das Minas Gerais do seacuteculo XVIII natildeo se configura como mate-rial singular e discrepante de Independecircncia ou Morte em pelo menos trecircs sentidos primeiro porque em vaacuterios momentos associa a Inconfidecircncia Mi-neira com a Independecircncia do Brasil a exemplo do que Independecircncia ou Morte prega jaacute em seu primeiro texto didaacutetico113 Segundo porque tambeacutem oficializa eventos convencionalmente tidos por fundacionais da histoacuteria do Brasil (soacute que natildeo os de 1808-1822 mas os de 1788-1789) Terceiro reforccedila a prevalecircncia de indiviacuteduos sobre coletividades da imagem de um heroacutei central da trama e de uma oposiccedilatildeo de interesses maniqueiacutesta que certamente poderia se aplicar com mais rigor ao contexto em que foi feito o filme do que agravequele ao qual formalmente se refere Assim para todos os efeitos substratos de uma concepccedilatildeo de histoacuteria satildeo em ambos convergentes Em um ambiente social multifacetado em termos de no-

cada dentro do programa dominical Fantaacutestico da Rede Globo de Televisatildeo A seacuterie foi baseada no livro Brasil uma Histoacuteria de Eduardo Bueno jornalista que tambeacutem atua na seacuterie (youtubecomwatchv=3LzGKt9Pd0M acesso em 27032014)

103SETUacuteBAL Paulo As Maluquices do Imperador

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1927 CALADO Ivanir A Imperatriz no Fim do Mundo memoacuterias duacutebias de Ameacutelia de Leichtenberg Rio de Janeiro Rio Fundo Editora 1992 e TORERO Joseacute Roberto Galantes memoacuterias e admiraacuteveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes o Chalaccedila Satildeo Paulo Companhia das Letras 1994

104A trama e a narrativa do Quinto dos Infernos

recusam explicitamente a inserccedilatildeo de quaisquer componentes que natildeo os da ordem privada de seus convencionais personagens assim questotildees poliacuteticas satildeo sempre menores do que o apetite sexual de Carlota Joaquina as perversotildees de D Miguel ou a fogosidade de Domitila a economia soacute surge em pontuais pretextos cocircmicos enquanto a escravidatildeo eacute referida exclusivamente por meio de alegres e libidinosas criadas (negras) permanentemente dispostas a servirem aos desejos do heroacutei da histoacuteria D Pedro

105A anaacutelise poderia se completar com a minisseacuterie

A Marquesa de Santos dirigida por Ary Coslov e exibida pela extinta Rede Manchete de televisatildeo em 1984 agrave qual infelizmente natildeo se obteve acesso satisfatoacuterio

106Tal predileccedilatildeo pode ser entendida como mais

um fator caracteriacutestico de um momento em que a articulaccedilatildeo entre aquilo que Guy Debord chamaria de ldquosociedade do espetaacuteculordquo e Adorno e Horkheimer (dentre muitos outros) de ldquoinduacutestria culturalrdquo torna sintomaacutetico a saliecircncia do indiviacuteduo e o esvaziamento da esfera puacuteblica

107A comprovaccedilatildeo do encontro concorrente entre

dois caminhos vem do depoimento de alguns dos proacuteprios envolvidos com a produccedilatildeo do Quinto dos Infernos como o diretor Carlos Lombardi que a ele se refere como ldquoum painel dos personagens importantes do periacuteodordquo Para o produtor Wolf Maia seu objetivo foi ldquorecontar com humor uma velha histoacuteriardquo O ator Humberto Martins viu a seacuterie ldquocontar um pedaccedilo da nossa histoacuteria da histoacuteria do Brasil do nosso povo das nossas raiacutezes pateacutetica e engraccedilada tal como ela se mostra dentro desse produto poreacutem claro mesclada com uma boa dose de humorrdquo enquanto o protagonista Marcos Pasquim afirmou que ldquo[ao fazecirc-la] aprendi muita coisa que natildeo aprendi na escola eu vim aprender agora fazendo a pesquisa para fazer esse personagemrdquo Finalmente para a tambeacutem atriz Bruna Lombardi ldquoO lsquoQuintorsquo contou assim a histoacuteria que a Histoacuteria natildeo conta sabe como eacute as fraquezas da histoacuteriardquo Em ldquoDia de Fuacuteriardquo Pedro Bial e Eduardo Bueno reforccedilam seu discurso satiacuterico por meio de um verniz de verdade trazido pela citaccedilatildeo de documentos oficiais como o relato do Padre Belchior sobre o grito do Ipiranga Aleacutem disso seu discurso eacute elaborado sob o nome de tese logo bem se vecirc como seus propaladores (BialBueno) manipulam siacutembolos

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ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

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Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

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123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

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131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

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138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

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Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

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por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

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muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

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Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 22: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

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apresentam especificidades Tendem a diversificar (eventualmente ampliar) o rol de profissionais envolvidos em sua produccedilatildeo e veiculaccedilatildeo bem como a tratar conteuacutedos em um tempo mais lento criando uma sensaccedilatildeo de homogeneidade de significados reforccedilada pela aderecircncia de tais conteuacutedos a uma trama central Tal homogeneidade por seu turno eacute relativizada por uma liberdade de criaccedilatildeo que dificilmente encontra paralelo em outros dos materiais aqui considerados ndash com a possiacutevel exceccedilatildeo da minisseacuterie O Quinto dos Infernos No entanto quando a comparaccedilatildeo eacute feita com os li-vros didaacuteticos os conteuacutedos relativos agrave Independecircncia no cinema tendem a ser menos numerosos mais superficiais e efecircmeros justamente por serem menos assumidamente informativos do que os dos livros embora isso possa encontrar alguma compensaccedilatildeo em uma linguagem visual de forte apelo emotivo Para todos os efeitos como aponta um estudioso da mateacuteria os filmes de temaacutetica histoacuterica carregam sempre certa ambiguidade ocupam uma espeacutecie de ldquoentrelugarrdquo com forccedila para criar ldquoverdadesrdquo socialmente aceitas108 Nos cinco filmes aqui considerados109 as ldquoverdadesrdquo sobre a Independecircncia tendem a replicar linhas de forccedila jaacute conhecidas mesclando temporalidades correspondentes tanto aos momentos em que foram pro-duzidos quanto aos momentos posteriores em que foram sendo exibidos110

Independecircncia ou Morte produccedilatildeo a serviccedilo das comemoraccedilotildees oficiais do sesquicentenaacuterio da Independecircncia levadas a cabo pelo go-verno ditatorial brasileiro em 1972 mostra uma narrativa de forte teor didaacutetico-pedagoacutegico sem grandes pretensotildees artiacutesticas expliacutecitas111 com diaacutelogos e situaccedilotildees muitas vezes retirados de obras sobre a Independecircncia e tratados de forma literal Sua finalidade eacute clara ldquoensinarrdquo aos especta-dores uma histoacuteria e uma memoacuteria coletivas homogecircneas aplainadas de pluralidades ou de desavenccedilas Uma histoacuteria supostamente indiscutiacutevel porque verdadeira posta a serviccedilo dos tambeacutem supostos interesses mais elevados da naccedilatildeo brasileira (por isso nela a vida privada dos persona-gens eacute toda submetida agrave sua funccedilatildeo poliacutetica inclusive no caso da relaccedilatildeo afetiva entre um D Pedro de boa aparecircncia querido do povo e mulherengo e uma ambiciosa romacircntica e sensiacutevel Domitila112) Uma espeacutecie de cartilha oficial da Independecircncia em imagens na qual se faz presente ateacute mesmo uma recomposiccedilatildeo cecircnica do quadro de Pedro Ameacuterico

Eacute interessante observar como Os Inconfidentes produzido no mesmo ano de 1972 mesmo sendo um filme amparado em abundantes liberdades e experimentos esteacuteticos cheio de ambiguidades propositais e contra-pondo-se ao oficialismo histoacuterico tatildeo em voga agrave eacutepoca por meio de uma metaacutefora na qual os contestadores agrave ditadura brasileira se convertem em sediciosos das Minas Gerais do seacuteculo XVIII natildeo se configura como mate-rial singular e discrepante de Independecircncia ou Morte em pelo menos trecircs sentidos primeiro porque em vaacuterios momentos associa a Inconfidecircncia Mi-neira com a Independecircncia do Brasil a exemplo do que Independecircncia ou Morte prega jaacute em seu primeiro texto didaacutetico113 Segundo porque tambeacutem oficializa eventos convencionalmente tidos por fundacionais da histoacuteria do Brasil (soacute que natildeo os de 1808-1822 mas os de 1788-1789) Terceiro reforccedila a prevalecircncia de indiviacuteduos sobre coletividades da imagem de um heroacutei central da trama e de uma oposiccedilatildeo de interesses maniqueiacutesta que certamente poderia se aplicar com mais rigor ao contexto em que foi feito o filme do que agravequele ao qual formalmente se refere Assim para todos os efeitos substratos de uma concepccedilatildeo de histoacuteria satildeo em ambos convergentes Em um ambiente social multifacetado em termos de no-

cada dentro do programa dominical Fantaacutestico da Rede Globo de Televisatildeo A seacuterie foi baseada no livro Brasil uma Histoacuteria de Eduardo Bueno jornalista que tambeacutem atua na seacuterie (youtubecomwatchv=3LzGKt9Pd0M acesso em 27032014)

103SETUacuteBAL Paulo As Maluquices do Imperador

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1927 CALADO Ivanir A Imperatriz no Fim do Mundo memoacuterias duacutebias de Ameacutelia de Leichtenberg Rio de Janeiro Rio Fundo Editora 1992 e TORERO Joseacute Roberto Galantes memoacuterias e admiraacuteveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes o Chalaccedila Satildeo Paulo Companhia das Letras 1994

104A trama e a narrativa do Quinto dos Infernos

recusam explicitamente a inserccedilatildeo de quaisquer componentes que natildeo os da ordem privada de seus convencionais personagens assim questotildees poliacuteticas satildeo sempre menores do que o apetite sexual de Carlota Joaquina as perversotildees de D Miguel ou a fogosidade de Domitila a economia soacute surge em pontuais pretextos cocircmicos enquanto a escravidatildeo eacute referida exclusivamente por meio de alegres e libidinosas criadas (negras) permanentemente dispostas a servirem aos desejos do heroacutei da histoacuteria D Pedro

105A anaacutelise poderia se completar com a minisseacuterie

A Marquesa de Santos dirigida por Ary Coslov e exibida pela extinta Rede Manchete de televisatildeo em 1984 agrave qual infelizmente natildeo se obteve acesso satisfatoacuterio

106Tal predileccedilatildeo pode ser entendida como mais

um fator caracteriacutestico de um momento em que a articulaccedilatildeo entre aquilo que Guy Debord chamaria de ldquosociedade do espetaacuteculordquo e Adorno e Horkheimer (dentre muitos outros) de ldquoinduacutestria culturalrdquo torna sintomaacutetico a saliecircncia do indiviacuteduo e o esvaziamento da esfera puacuteblica

107A comprovaccedilatildeo do encontro concorrente entre

dois caminhos vem do depoimento de alguns dos proacuteprios envolvidos com a produccedilatildeo do Quinto dos Infernos como o diretor Carlos Lombardi que a ele se refere como ldquoum painel dos personagens importantes do periacuteodordquo Para o produtor Wolf Maia seu objetivo foi ldquorecontar com humor uma velha histoacuteriardquo O ator Humberto Martins viu a seacuterie ldquocontar um pedaccedilo da nossa histoacuteria da histoacuteria do Brasil do nosso povo das nossas raiacutezes pateacutetica e engraccedilada tal como ela se mostra dentro desse produto poreacutem claro mesclada com uma boa dose de humorrdquo enquanto o protagonista Marcos Pasquim afirmou que ldquo[ao fazecirc-la] aprendi muita coisa que natildeo aprendi na escola eu vim aprender agora fazendo a pesquisa para fazer esse personagemrdquo Finalmente para a tambeacutem atriz Bruna Lombardi ldquoO lsquoQuintorsquo contou assim a histoacuteria que a Histoacuteria natildeo conta sabe como eacute as fraquezas da histoacuteriardquo Em ldquoDia de Fuacuteriardquo Pedro Bial e Eduardo Bueno reforccedilam seu discurso satiacuterico por meio de um verniz de verdade trazido pela citaccedilatildeo de documentos oficiais como o relato do Padre Belchior sobre o grito do Ipiranga Aleacutem disso seu discurso eacute elaborado sob o nome de tese logo bem se vecirc como seus propaladores (BialBueno) manipulam siacutembolos

27Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

28Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

29Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

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131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

31Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

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Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

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por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

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muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

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Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 23: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

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ccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees em torno da histoacuteria Independecircncia ou Morte e Os Inconfidentes revelam-se em parte aliados corresponsaacuteveis pela manutenccedilatildeo de alguns traccedilos que ainda satildeo caracteriacutesticos da inserccedilatildeo da Independecircncia em uma cultura de histoacuteria quarenta anos depois

Bem se vecirc que a criacutetica agrave mensagem de um filme histoacuterico por outro filme histoacuterico natildeo significa necessariamente a veiculaccedilatildeo de uma Histoacuteria criacutetica Carlota Joaquina eacute mais um exemplo disso na medida em que sua versatildeo irreverente da Histoacuteria do Brasil de comeccedilos do seacuteculo XIX pode dar uma primeira impressatildeo de implodir com aquela oferecida pelo oficioso Independecircncia ou Morte aqui poder-se-ia falar mesmo em certo pioneirismo em termos de representaccedilotildees cinematograacuteficas sobre a eacutepo-ca No entanto a saacutetira e o deboche se fazem acompanhar de tamanha mobilizaccedilatildeo de componentes convencionais e mitoloacutegicos114 anteriormente elaborados e fartamente disponiacuteveis em muitos suportes que a aparecircncia de criacutetica logo se desvanece cedendo lugar a mais um conjunto de repre-sentaccedilotildees indicativas do confronto entre uma Independecircncia valorizada e outra depreciada uma tatildeo velha quanto a outra As ldquoverdadesrdquo aqui produ-zidas emergem de pelo menos dois elementos do filme uma trama narrada por um professor que a ldquoensinardquo como histoacuteria a uma aluna crianccedila (que logo se coloca no lugar da personagem principal) ambos aparentemente britacircnicos e a afirmaccedilatildeo do narrador de que ldquoHistoacuteria eacute assim quanto mais vocecirc lecirc menos vocecirc conhecerdquo115 ambos submetidos aos padrotildees de uma cultura de histoacuteria jaacute bem estabelecida e pouco modificada por um filme que teve circulaccedilatildeo puacuteblica bastante consideraacutevel

A observaccedilatildeo desses filmes parece induzir agrave constataccedilatildeo de que dentre os suportes materiais ateacute aqui analisados o cinema (aliaacutes consumido regular-mente por 58 dos entrevistados na sondagem de opiniatildeo acima referida) sendo o mais criativo de todos eacute tambeacutem o mais pobre em termos de capaci-dade de oferta de conhecimentos inovadores sobre a Independecircncia do Brasil Embora deva se considerar que o escopo da pesquisa incluiu apenas cinco filmes116 essa constataccedilatildeo ganha forccedila diante de um aspecto mercadoloacutegico da produccedilatildeo cinematograacutefica no Brasil ndash cujas caracteriacutesticas especiacuteficas natildeo poderatildeo ser aqui devidamente apreciadas ndash que imprime suas marcas sobre uma produccedilatildeo artiacutestica que precisa necessariamente segundo sua loacutegica ser vendida Igualmente deve-se ter em conta que a produccedilatildeo cinematograacutefica dialoga diretamente com as outras analisadas117 tambeacutem em geral pouco ino-vadoras com elas estabelecendo um ciclo de determinaccedilotildees reciacuteprocas

7 ndash A Independecircncia nas livrarias e nas bancas de jornalA Independecircncia do Brasil conhece ainda muitos e variados tratamentos em livros de divulgaccedilatildeo histoacuterica em obras de ficccedilatildeo e poesia em textos de complemento didaacutetico e em outros que ao tentarem mesclar um pouco de tudo isso satildeo de difiacutecil classificaccedilatildeo Para esta pesquisa observou-se o criteacuterio de elaboraccedilatildeo e produccedilatildeo de acordo com os objetivos de consumo por parte de um puacuteblico amplo natildeo restrito a estudantes e profissionais da Histoacuteria com sua linguagem correspondente simples e com sua inserccedilatildeo em um mercado educacional e cultural que enseja estrateacutegias de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo proacuteprias Em meio a tudo isso eacute possiacutevel encontrar enormes discrepacircncias de conteuacutedo com suas correspondentes ndash e nada fortuitas ndash discrepacircncias tambeacutem em termos de distribuiccedilatildeo e aceitaccedilatildeo social bem como de peso de suas ldquoverdadesrdquo no posicionamento da Inde-pendecircncia em uma cultura de histoacuteria no Brasil

de autoridade que natildeo estatildeo confinados agrave saacutetira (embora a dupla na uacuteltima cena do episoacutedio afirme que cada um conta uma histoacuteria)

108NAPOLITANO Marcos Op Cit p236 e 237

109Independecircncia ou Morte (1972) direccedilatildeo de

Carlos Coimbra Os Inconfidentes (1972) direccedilatildeo de Joaquim Pedro de Andrade Tiradentes o maacutertir da independecircncia (1977) direccedilatildeo de Geraldo Vietri Carlota Joaquina princesa do Brasil (1995) direccedilatildeo de Carla Camurati e Tiradentes (1999) direccedilatildeo de Oswaldo Caldeira Infelizmente o tardio acesso ao curta-metragem O corneteiro Lopes (direccedilatildeo de Laacutezaro Faria 2009) natildeo permitiu sua incorporaccedilatildeo nessa anaacutelise

110Continuam a secirc-lo disponiacuteveis em locadoras

em pacotes de filmes de TV a cabo e em siacutetios da internet como o YouTube

111Exceccedilatildeo agrave sua primeira cena que representa

a dramaticidade da Abdicaccedilatildeo de iniacutecio vecirc-se as botas de um Imperador caminhante solene e pensativo cuja tomada de decisatildeo logo conduz o espectador a uma narrativa retrospectiva a durar todo o restante do filme

112Note-se quatildeo pouco originais satildeo os

personagens de O Quinto dos Infernos a despeito da impressatildeo contraacuteria que seu estilo cocircmico pode criar (na mesma direccedilatildeo poder-se-ia evocar a histeacuterica Carlota Joaquina que odeia o Brasil ou o seacuterio Joseacute Bonifaacutecio ao qual D Pedro pouco daacute ouvidos) Jaacute uma discrepacircncia absoluta se daacute em relaccedilatildeo a Leopoldina mulher bonita forte e politicamente consciente no filme feiosa ingecircnua e descartaacutevel na minisseacuterie

113No qual se lecirc ldquoD Pedro I tinha entatildeo nove

anos O seu testemunho de tatildeo tumultuados acontecimentos somado agrave carecircncia de educaccedilatildeo palaciana por certo marcaram o seu temperamento de homem de reaccedilotildees imprevisiacuteveis Daiacute a aceleraccedilatildeo do processo da independecircncia do Brasil que teve suas raiacutezes na Inconfidecircncia Mineirardquo Aleacutem dessa clara associaccedilatildeo entre a Inconfidecircncia Mineira e a Independecircncia durante o filme Os Inconfidentes satildeo dados elementos sutis que corroboram com a mesma posiccedilatildeo inclusive a fim de associar os inconfidentes ldquolibertadores do Brasilrdquo agrave resistecircncia de esquerda tambeacutem imbuiacuteda da intenccedilatildeo de libertar o Brasil da ditadura militar Cinco anos depois Tiradentes o maacutertir da independecircncia traria essa associaccedilatildeo expliacutecita no tiacutetulo em favor da construccedilatildeo de um heroacutei nacional perfeito por meio de um enredo melodramaacutetico

114A Carlota ninfomaniacuteaca feia ardilosa e maacute a

duacutevida sobre Pedro ndash um amante irasciacutevel ndash ser filho do medroso e comedor de frangos Joatildeo etc Haacute que se lembrar que Carlota Joaquina eacute anterior ao Quinto dos infernos sendo entatildeo o vetor de oferta e acuacutemulo de clichecircs daquele para este e natildeo o contraacuterio Sobre o filme a oacutetima contribuiccedilatildeo de Patriacutecia Cardoso CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p35-44

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Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

29Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

30Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

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138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

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Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

33Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

34Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

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Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 24: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

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Observemos de iniacutecio cinco obras significativas118 O Chalaccedila (1994) de Joseacute Roberto Torero 1808 (2007) e 1822 (2010) de Laurentino Gomes Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil (2011119) de Leandro Nar-loch e A carne e o sangue de Mary Del Priore (2012) Para aleacutem de aspec-tos estiliacutesticos e mercadoloacutegicos tais obras convergem em muitos outros Convergem em primeiro lugar por conferirem uma prioridade absoluta a personagens em seus enredos e concepccedilotildees de histoacuteria um protagonista-narrador que em tom de confissatildeo conduz os leitores por segredos supos-tamente natildeo-desvendados do passado (Chalaccedila)120 uma famiacutelia real po-voada dos mesmos personagens excecircntricos e caricatos de sempre (1808 e 1822121) supostos heroacuteis e anti-heroacuteis trocando de papeacuteis constantemente (Guia) finalmente toacuterridos amantes aristocratas cuja intimidade amorosa e sexual continua a ser visitada (A carne e o sangue) Em todos esses casos a leitura induz agrave convicccedilatildeo de que se a Histoacuteria natildeo se faz apenas por personagens tatildeo convencionais como esses a deles deve ser a mais interes-sante jaacute que outras alternativas quase nunca satildeo oferecidas

A ecircnfase em personagens eacute antiga como nos mostram as obras de Paulo Setuacutebal de notaacutevel prestiacutegio dentre divulgadores atuais de Histoacuteria122 A ldquoorelhardquo da recente reediccedilatildeo de um deles natildeo poderia ser mais reveladora de uma concepccedilatildeo de uma Histoacuteria ldquoverdadeirardquo a se revelar pelo bizarro pelo pessoal e pelo divertido de uma Histoacuteria contada como entretenimento e da atualidade do tradicional sob a roupagem de inovaccedilatildeo mercadoloacutegica

Este livro comeccedila com a estrepitosa chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 Dom Joatildeo VI [sic] agrave frente fugindo de Napoleatildeo com dona Maria a Louca a bordo A histoacuteria de como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a histoacuteria de Portugal e do Brasil foi popularizada por Laurentino Gomes em seu extraordinaacuterio lsquo1808rsquo [O livro de Setuacutebal] Comeccedila no mesmo ano de 1808 A bordo de um dos navios que chegavam de Portugal estava um menino esperto de 10 anos Dom Pedro sucessor de Dom Joatildeo VI [] Este menino haveria de crescer no Rio de Janeiro meio largado e satildeo suas estripulias que Paulo Setuacutebal [] relembra com sua linguagem pitoresca e saborosa[] O rei glutatildeo comedor de frangos a feiura de Dona Carlota Joaquina a corrupccedilatildeo dos barotildees e duques a desenvoltura de um certo Chalaccedila conselheiro do jovem Dom Pedro as intrigas palacianas os amores de Dom Pedro por atrizes e cantoras seus gastos perdulaacuterios tudo isso Setuacutebal nos revela como se roteirizasse um filme [] Pouco estudada nas escolas brasileiras a trajetoacuteria de Dom Pedro I que viria a se tornar Dom Pedro IV de Portugal geralmente para em 1826 quando ele abdica do governo deixa no paiacutes seu filho de apenas 5 anos ndash o Pedro que se tornaria o sereno Dom Pedro II ndash e retorna a Portugal [ ]123

Eacute importante observar como mesmo nos momentos em que tais livros procuram se distanciar de uma histoacuteria de ecircnfase biograacutefica suas justificativas mostram-se tatildeo tiacutebias quanto seus esforccedilos para proceder de outro modo 1808 por exemplo abre com uma citaccedilatildeo de um programa de divulgaccedilatildeo histoacuterica da BBC de Londres (ldquoAs pessoas fazem a Histoacuteria mas raramente se datildeo conta do que estatildeo fazendordquo124) e em suas primei-ras paacuteginas o autor jaacute critica ldquoa forma caricata com que o rei e a sua corte costumam ser tratados nos livros no cinema no teatro e na televisatildeordquo sendo que em uma suposta contramatildeo o propoacutesito do livro seria outro125 Mas o que se lecirc nos subtiacutetulos estampados nas capas seja de 1808 (ldquoComo uma rainha louca um priacutencipe medrosordquo) ou e 1822 (ldquoComo um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D

115O sentido de tal afirmaccedilatildeo parece

propositadamente ambiacuteguo indica uma concepccedilatildeo de que a Histoacuteria estaacute em permanente construccedilatildeo e eacute aberta ou de que a Histoacuteria vem sendo contada de modo equivocado e que ela agora seraacute devidamente relevada Ambas as coisas

116Tiradentes de 1999 natildeo traz referecircncias agrave

Independecircncia

117Vimos anteriormente como livros didaacuteticos se

voltam a filmes como Independecircncia ou Morte Os Inconfidentes e Carlota Joaquina Tambeacutem programas televisivos variados conteacutem cenas de tais filmes que por seu turno amparam-se em pesquisas histoacutericas que fatalmente os leva em direccedilatildeo a tais suportes nos quais as elaboraccedilotildees acadecircmicas nunca estiveram ausentes

118Poder-se-ia aumentar tal relaccedilatildeo pelo menos

com a inclusatildeo do livro de Ruy Castro aqui natildeo contemplado mas analisado preliminarmente por Jorge F Silveira CASTRO Ruy Era no tempo do rei um romance da chegada da Corte Rio de Janeiro Objetiva 2007 SILVEIRA Jorge Fernandes da Retratos da Famiacutelia Imperial no Brasil In OLIVEIRA Paulo da Mota (Org) Op Cit p17-24 Provavelmente a primeira obra literaacuteria significativa a ter a transferecircncia da Corte para o Brasil como pano de fundo foi a de Manuel Antonio de Almeida Memoacuterias de um sargento de miliacutecias editada em folhetins entre 1852 e 1853

119Optamos por trabalhar com a segunda e

ampliada ediccedilatildeo por trazer novos textos e novos personagens em relaccedilatildeo agrave versatildeo anterior publicada em 2009 Os conteuacutedos mais diretamente ligados agrave Independecircncia por exemplo e dessa maneira fundamentais para este trabalho se encontram nesta segunda ediccedilatildeo NARLOCH Leandro Guia politicamente incorreto da Histoacuteria do Brasil 2a ed Rio de Janeiro Leya 2011

120O secretaacuterio pessoal de D Pedro viraria

personagem de uma histoacuteria em quadrinhos poucos anos depois DINIZ Andreacute e EDER Antonio Chalaccedila o amigo do imperador Satildeo Paulo Conrad 2005

121A maacutexima extensatildeo permitida a esse ciacuterculo eacute

em direccedilatildeo a outros personagens da Corte como Francisco Rufino Lobato que segundo Laurentino Gomes pode ter sido ao mesmo tempo amante da esposa de D Joatildeo amante gay deste e pai bioloacutegico de D Pedro GOMES Laurentino 1822 como um homem saacutebio uma princesa triste e um escocecircs louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil ndash um paiacutes que tinha tudo para dar errado Rio de Janeiro Nova Fronteira 2010 p121

122SETUacuteBAL Paulo Op Cit ________ A marquesa

de Santos Satildeo Paulo Companhia Graacutefico-Editora Monteiro Lobato 1925 Acrescentar em perspectiva muito diferente Otaacutevio Tarquiacutenio de Souza e antes dele vaacuterias biografias de Pedro I e de outros personagens da Corte

29Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

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131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

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138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

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Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

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por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

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muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

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Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 25: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

29Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

123ldquoOrelhardquo de SETUacuteBAL Paulo Op Cit

124Trata-se de pastiche da ceacutelebre assertiva de Karl

Marx cuja menccedilatildeo expliacutecita por parte do autor de 1808 ou pressuporia uma informaccedilatildeo que ele natildeo possui ou implicaria um componente inadequado dada a estrateacutegia de marketing que sustentou a produccedilatildeo e circulaccedilatildeo dessa obra Em casos semelhantes eacute recomendaacutevel que a obra apareccedila a seus leitores como a mais isenta e objetiva possiacutevel ou de orientaccedilatildeo condizente com aquele que se espera seja o puacuteblico preferencialmente consumidor dela

125ldquoResgatar a histoacuteria da corte portuguesa

no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas agrave dimensatildeo mais correta possiacutevel dos papeacuteis que desempenharamrdquo GOMES Laurentino 1808 como uma rainha louca um priacutencipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleatildeo e mudaram a Histoacuteria de Portugal e do Brasil Satildeo Paulo Planeta 2007 p21 O que esta pesquisa tem ateacute aqui mostrado natildeo encoraja tal noccedilatildeo de esquecimento sequer a de um relativo

126Note-se a concepccedilatildeo de que o Brasil eacute obra de

um indiviacuteduo ajudado por outros indiviacuteduos O argumento central de 1822 eacute o de que o Brasil ldquodeu certordquo isto eacute ldquoconseguiu manter a integridade do seu territoacuterio e se firmar como naccedilatildeo independenterdquo por uma mescla de ldquosorte acaso improvisaccedilatildeo e tambeacutem de sabedoria de algumas lideranccedilasrdquo GOMES Laurentino 1822 Op Cit p18

127Gomes considera a Wikipeacutedia exemplo de

fontes de pesquisa ldquode extrema utilidaderdquo e ldquonatildeo convencionais ainda natildeo reconhecidas pela historiografia oficialrdquo no entanto acredita que ldquoao contraacuterio dos livros e das fontes impressas tradicionais essas fontes precisam ser consultadas com cautelardquo Idem p25 Nessa ideia que as fontes ldquotradicionaisrdquo dispensariam cautela reside uma caracteriacutestica desse livro cujo autor parece crer em praticamente tudo o que lecirc principalmente o que os historiadores chamariam de fontes primaacuterias no que se alinha com Priore que em A carne e o sangue tambeacutem evita qualquer tipo de criacutetica de fontes

128Eacute notaacutevel como os dois capiacutetulos de 1808

dedicados aos perfis individuais respectivamente de D Joatildeo e D Carlota natildeo obstante realizarem um inventaacuterio de imagens depreciativas e caricatas construiacutedas a respeito de ambos natildeo satildeo capazes de superaacute-las terminando simplesmente por reafirmaacute-las GOMES Laurentino 1822 Op Cit cap13 e 14

129Com o que reiteramos o diagnoacutestico de

CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p42

130NARLOCH Leandro Op Cit p25 e p178-179

Um leitor atento poderia se perguntar por que nem todo presidente vaidoso cruel louco e equivocado conduziu seu paiacutes a uma guerra

Pedro a criar o Brasilrdquo126) ou ainda em passagens como ldquoa Wikipeacutedia tem quase tudo a respeito dos personagens e acontecimentos relatados neste livrordquo127) e muitas outras128 logo se encarrega de desvanecer qualquer ilusatildeo de uma histoacuteria processual de movimentos coletivos a darem sen-tido agrave accedilatildeo natildeo apenas dos personagens e grupos de sempre mas tambeacutem de outros que natildeo obstante serem cada vez mais esquadrinhados por historiadores estatildeo ausentes destes livros129 O autor do Guia politicamen-te incorreto por seu turno a despeito de constantemente evocar ldquouma nova historiografia [que] ganha forccedila no Brasilrdquo na qual teria se baseado para desmontar supostos mitos eacute capaz de tentar convencer o leitor por exemplo de que a Guerra do Paraguai ldquoaconteceu sobretudo porque havia naquele paiacutes um presidente vaidoso cruel louco e equivocadordquo130 bem como que a ldquoHistoacuteria do Brasilrdquo a que o tiacutetulo da obra alude pode gravitar em torno de personagens cujas maacutes condutas morais sua obra se empenha em apontar131 Mesmo Del Priore historiadora profissional reconheci-da por seus anteriores estudos acerca de uma histoacuteria do cotidiano e de indiviacuteduos ldquocomunsrdquo e cuja obra em questatildeo eacute mais preocupada com uma histoacuteria para aleacutem de indiviacuteduos do que as acima mencionadas afirma que ldquonenhuma mulher se negava a D Pedro natildeo soacute por ser priacutencipe mas por ser fogosordquo ou que seu pai ldquonunca sorriardquo132 Naturalmente mesmo o mais adesista dos leitores capaz de acreditar em tais afirmaccedilotildees ficaraacute sem resposta agrave pergunta se Domitila ldquousaria os pelos puacutebicos em cachos ou se depilaria como faziam as cortesatildes francesasrdquo133

No caso de O Chalaccedila a recorrecircncia agrave biografia de apelo histoacuterico estaacute no proacuteprio cerne de composiccedilatildeo da obra que por ser mais livre do ponto de vista formal e menos historicamente compromissada do que as demais poderia partir de inuacutemeros pretextos oferecidos pela histoacuteria do Brasil natildeo obstante seu autor recorreu a alguns dos mais evidentes e convencionais Natildeo surpreende assim constatar que um ano antes do filme Carlota Joaquina o livro que seria umas inspiraccedilotildees para O Quinto dos Infernos leve adiante essa espeacutecie de fixaccedilatildeo coletiva pela suposta disenteria de D Pedro agraves margens do Ipiranga134 ou que ridicularize seu liberalismo poliacutetico (que aliaacutes tantos natildeo especialistas custam a enten-der) jaacute que quem mandou fechar a Assembleia e ldquosozinhordquo promulgou uma Constituiccedilatildeo soacute poderia ser um tirano um anti-heroacutei135

Essa ecircnfase no biograacutefico-anedoacutetico demonstra uma curiosidade pela vida pessoal de personagens convencionais que emana dos autores e enreda seus leitores todos a compartilharem uma espeacutecie de voyeurismo puacuteblico jaacute caracterizado aqui como componente de um mercado cultural e de uma sociedade que lhe datildeo significado Para todos os efeitos contudo eacute notaacutevel como a heroicidade e a exaltaccedilatildeo encomiaacutestica estatildeo fora de moda (sem claro desaparecerem por completo de outros suportes mate-riais como jaacute visto) Talentos virtudes ou outros aspectos positivos apenas quando forem improvaacuteveis moralizadores ou ndash de preferecircncia ndash amorosos e sexuais136 Natildeo eacute necessaacuterio muito esforccedilo para entender a eficaacutecia de tais perfis em uma sociedade que neles busca algo ao mesmo tempo em que eacute impelida ao seu consumo

Esse primeiro aspecto de tratamento da Independecircncia resulta tambeacutem aqui em interdiccedilotildees ao diaacutelogo entre saberes acadecircmicos e natildeo acadecircmicos A exemplo do que jaacute se observou em outras fontes tambeacutem nesses livros o conhecimento produzido pela academia embora constante-mente evocado natildeo eacute capaz de modificar versotildees arraigadas da Indepen-

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131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

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138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

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Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

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por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

34Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

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Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 26: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

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131No que se releva o mesmo tipo de componente

mercadoloacutegico que atende ao interesse do leitor pela vida privada das pessoas quaisquer que elas sejam em detrimento de visotildees complexas e matizadas de processos histoacutericos O mercado contudo natildeo eacute isento objetivo ou despolitizado Daiacute o componente ideoloacutegico da afirmaccedilatildeo de Narloch a despeito de sua aparecircncia contraacuteria de que ldquomeu livro natildeo eacute um estudo acadecircmico Ele eacute tatildeo parcial quanto os estudos que eu critico Eacute um contrapontordquo (Entrevista a Monica Waldvogel viacutedeo n11) Ora se todos os pontos de vista se equivalem nenhuma criacutetica eacute possiacutevel inclusive ao proacuteprio Guia que por seu turno distribui fartamente suas criacuteticas a quem (note-se bem a quem e a natildeo a quecirc) seu autor bem entende

132PRIORE Mary Del A carne e o sangue A

Imperatriz D Leopoldina D Pedro I e Domitila a Marquesa de Santos Satildeo Paulo Editora Rocco 2012 p18 e 20 A exemplo de Priore (pp17 43 152 205 208 228 e 234) e de tantos outros antes deles Narloch tambeacutem estaacute interessado nas virtudes e vicissitudes do oacutergatildeo sexual de D Pedro a ponto de a ele dedicar uma destacada paacutegina de seu livro NARLOCH Leandro Op Cit p280

133PRIORE Mary Del A carne e o sangue Op Cit

p152

134TORERO Joseacute Roberto Op Cit p108

135Idem p126-127 Essa versatildeo relativamente livre

do tema (dizemos relativamente pois jaacute se vecirc que quase nenhuma das versotildees aqui mencionadas eacute inteiramente original) encontraria eco anos depois na obra de um historiador profissional VILLA Marco Antonio A histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras 200 anos de luta contra o arbiacutetrio Satildeo Paulo Leya 2011 Este autor a exemplo de Torero pretendeu depreciar a Constituiccedilatildeo de 1824 por ser ela supostamente uma ldquocolagemrdquo de outras constituiccedilotildees da eacutepoca o que de um ponto de vista minimamente seacuterio da questatildeo natildeo encontra nenhum fundamento (a resenha criacutetica de W Steinmetz O constitucionalismo brasileiro narrativa da histoacuteria do conflito entre liberdade e autoritarismo Direitos Fundamentais amp Justiccedila v 6 p 279-283 2012 parece encerrar a questatildeo) Teria Villa acreditado literalmente em livros como O Chalaccedila ou sua postura apenas revela mais uma vez que nem profissionais da Histoacuteria estatildeo isentos de influecircncias (por mais amadoras que sejam) advindas de formulaccedilotildees natildeo profissionais

136Eacute possiacutevel entatildeo que certas ecircnfases de uma das

obras de Gomes (como a que atribui a D Pedro uma ldquoespantosa capacidade reprodutivardquo por sendo um homem de vinte e poucos anos ter tido ldquotrecircs filhos em menos de um anordquo ldquotodos com mulheres diferentesrdquo causem agrave maioria de seus leitores menos constrangimento do que o fazem a uma minoria deles GOMES Laurentino 1822 Op Cit p122

137TORERO Joseacute Roberto Op Cit p111

decircncia O texto de orelha de O Chalaccedila ldquopsicografadordquo por D Pedro assim como a apresentaccedilatildeo do livro no qual se lecirc uma paroacutedia de discussotildees acadecircmicas em torno da veracidade de seu conteuacutedo indicam menos as pretensotildees agrave oferta de uma Histoacuteria amparada em obras de especialistas do que a recorrecircncia a conteuacutedos historiograacuteficos bastante tradicionais como a ideia de que uma ldquonaccedilatildeo brasileirardquo foi preparando a Independecircncia ou a de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil aqui tais conteuacute-dos mostram que o livro se ampara em saberes acadecircmicos poreacutem natildeo submetidos agrave criacutetica o que torna a afirmaccedilatildeo de que ldquoeacute essa histoacuteria que se conta ateacute hoje no Brasil e eu dou feacute que eacute verdadeirardquo137 mais do que sim-ples frase de efeito Tambeacutem 1808 e 1822 corroboram amplamente a ideia da Independecircncia como uma luta nacional maniqueiacutesta entre brasileiros e portugueses (na qual as Cortes seriam novamente recolonizadoras138) mas buscam legitimaccedilatildeo expliacutecita em uma produccedilatildeo acadecircmica que segundo seu autor referenda suas posiccedilotildees 1808 comeccedila com uma homenagem a uma historiadora profissional que o teria inspirado139 1822 traz uma orelha com endossos acadecircmicos ao livro140 e ambos com frequecircncia mencionam historiadores no corpo do texto como por exemplo a ldquoautora do melhor livro jaacute escrito sobre a biblioteca [real portuguesa]rdquo141 No entanto aqui se vecirc algo muito semelhante ao que ocorre com livros didaacuteticos onde ver-sotildees acadecircmicas e natildeo acadecircmicas da Histoacuteria satildeo aliadas apenas formais incapazes de falar a mesma liacutengua resultando em muitas e severas incon-gruecircncias de exposiccedilatildeo142 Aliaacutes embora 1822 traga muitas notas de final de capiacutetulo quase 20 delas (81 de 450) referem-se a apenas dois auto-res ndash Tobias Monteiro e Otaacutevio Tarquiacutenio de Sousa ndash cujas obras jaacute tinham completado pelo menos meio seacuteculo em 2010 o que deveria tornaacute-las merecedoras de especial revisatildeo143

Embora A carne e o sangue proponha uma foacutermula de difiacutecil defi-niccedilatildeo mesclando biografia romance e histoacuteria a resultar no que o autor de sua orelha considera ldquoa abordagem mais original do periacuteodo que vai da elevaccedilatildeo do Brasil a Reino Unido [sic] agraves veacutesperas da Abdicaccedilatildeordquo eacute sabido tratar-se de algo nada novo144 No quesito de diaacutelogo com a academia o mais original dentre esses livros eacute o Guia embora como jaacute apontado fale de ldquouma nova historiografiardquo da qual supostamente seu autor eacute porta-voz seleciona com cuidado obras que possam corroborar suas proacuteprias versotildees da histoacuteria natildeo oferecendo ao leitor desavenccedilas equivalentes Como a pluralidade se daacute somente em uma guerra declarada contra a versatildeo ldquocor-retardquo (a do autor) e a versatildeo ldquoerradardquo (a de historiadores ldquonacionalistasrdquo ou ldquocomunistasrdquo) o pensamento discordante serve basicamente ao escracho o que ademais coaduna perfeitamente com as demandas de alguns nichos de mercado no Brasil145 Natildeo surpreende pois que seu tratamento da Independecircncia insista no estereoacutetipo da natildeo-Independecircncia parcialmente referendado tambeacutem por Gomes mas tatildeo criticado pela historiografia nas uacuteltimas deacutecadas146 Diferentemente deste poreacutem cujo apelo mercadoloacutegico de suas obras natildeo impede uma sincera tentativa de diaacutelogo com a acade-mia a reivindicaccedilatildeo de Narloch passa longe de tais intentos147

Eacute faacutecil constatar que o tratamento histoacuterico dessas obras tal qual aqui assinalado natildeo difere substancialmente dos encontrados em outras fontes integrando-se de modo bastante adequado a um ciclo de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia a tipificar sua inserccedilatildeo em uma cultura de histoacuteria no Brasil Constata-se tambeacutem aqui grande oferta de conteuacutedos a promoverem a subversatildeo de fundamentos

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138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

32Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

33Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

34Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

36Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 27: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

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138Nesse ponto poucos anos depois as versotildees de

histoacuteria de Torero e Gomes ganhariam o reforccedilo da de Narloch (NARLOCH Leandro Op Cit p284)

139Maria Odila Dias jaacute mencionada anteriormente

140ldquoUma narrativa sensiacutevel e abrangente da

histoacuteria brasileirardquo segundo Elias Thomeacute Saliba e ldquouma perspectiva ampla do periacuteodo sem deboche ou caricaturardquo de acordo com Jean Marcel Carvalho Franccedila GOMES Laurentino 1822 Op Cit ldquoorelhardquo

141Trata-se de Lilia Moritz Schwarcz Em 1808 o

leitor natildeo teraacute a informaccedilatildeo de quantos ou quais outros livros jaacute foram escritos sobre o assunto

142Um exemplo dentre muitos embora destaque ldquoa

contribuiccedilatildeo decisiva de historiadores como Mary Karasch Leila Mezan Algranti Manolo Garcia Florentino e Joatildeo Luiacutes Ribeiro Fragosordquo citando-os em vaacuterios momentos ao longo do livro Gomes refere-se a ldquouma etapa na histoacuteria europeia conhecida como Velho Regime [sic] em que reis dominaram seus paiacuteses com matildeo de ferro e poder absolutordquo a ldquobrasileiros habituados ateacute entatildeo a ser tratados como simples colocircnia extrativista de Portugalrdquo chama a ldquocolocircniardquo de ldquoterritoacuterios dominados pelos portuguesesrdquo e afirma que em 1808 ldquoo Brasil libertava-se de trecircs seacuteculos de monopoacutelio portuguecircs e se integrava ao sistema internacional de produccedilatildeo e comeacutercio como uma naccedilatildeo autocircnomardquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p24 32 40 102 193 respectivamente) Tais afirmaccedilotildees satildeo em muitos sentidos negadas por alguns dos mesmos historiadores mencionados

1431808 traz 690 citaccedilotildees ao fim dos capiacutetulos

sendo 20 (142 vezes) de autores como Pedro Calmon (18 vezes) Tobias Monteiro (38 vezes) Manuel de Oliveira Lima (45 vezes) Alexandre Joseacute de Melo Moraes (12 vezes) Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18 vezes) e Francisco Adolfo de Varnhagen (11 vezes) Embora Gomes pretenda fazer uso de interpretaccedilotildees mais atualizadas sobre o tema essa quantificaccedilatildeo indica caracteriacutestica marcante de 1808 a reediccedilatildeo de versotildees fortemente convencionais da histoacuteria

144Palavras de Alberto Mussa (A carne e o sangue

cit ldquoorelhardquo) Na deacutecada de 1940 Seacutergio Buarque de Holanda jaacute atacava a pretensatildeo de hibridismo de biografias histoacutericas romanceadas nas quais ldquoas qualidades proacuteprias do romance e da biografia eram abolidas em proveito de uma unidade superficial e suspeitardquo e procurava explicar seu consumo ampliado pela mediocridade de uma eacutepoca marcada pela ldquoansiedade de encontrar refuacutegio e libertaccedilatildeo em outras existecircncias mais excitantesrdquo (citado por GONCcedilALVES Maacutercia de Almeida Em terreno movediccedilo biografia e histoacuteria na obra de Octaacutevio Tarquiacutenio de Sousa Rio de Janeiro EDUERJ 2009 p149-150)

145Uma versatildeo argentina da teoria do ldquocomplocirc

historiograacuteficordquo encontra-se em obra bastante semelhante agraves ateacute aqui analisadas PIGNA Felipe

temporais da histoacuteria Nesse quesito 1808 e 1822 satildeo igualmente fartos de erros factuais e anacronismos148 ademais estimulados pela divisatildeo do texto em capiacutetulos curtos e autocircnomos ndash isto eacute que se iniciam e terminam sem nenhuma conexatildeo entre eles ndash que permitem uma leitura fracionada das obras149 por imagens meramente ilustrativas150 e pela inclusatildeo de quadros cronoloacutegicos com informaccedilotildees erradas151 As confusotildees tempo-rais seguem tambeacutem por passagens textuais como as que se referem agrave Inglaterra e Holanda como lugares onde no seacuteculo XIX supostamente ldquoa realeza ia gradativamente perdendo espaccedilo para os grupos representados no Parlamentordquo152 quando em realidade isso ocorrera no seacuteculo XVII ao comeccedilo do seacuteculo XIX como ldquotempo de pesadelos e sobressaltos para reis e rainhasrdquo sendo que ldquodois deles enlouqueceramrdquo153 embora esses dois jaacute tivessem ldquoenlouquecidordquo no seacuteculo XVIII154 ou como ldquoo periacuteodo em que reis e rainhas eram perseguidos destituiacutedos aprisionados exilados deporta-dos ou mesmo executados em praccedila puacuteblicardquo155 embora o uacuteltimo monarca executado o tenha sido em 1793 ou ainda as afirmaccedilotildees de que ldquoa decisatildeo [de transferir a Corte] jaacute havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis ministros e conselheiros ao longo de quase trecircs seacuteculosrdquo156 de que Portugal fora ldquosoberano dos mares dois seacuteculos antesrdquo157 ou final-mente a de que ldquoviajar [D Joatildeo] como hoacutespede do comandante britacircnico poderia soar politicamente incorretordquo158 Para Del Priore mesmo assim 1808 ldquodesvenda os acontecimentos com graccedila e levezardquo sendo ldquouma siacuten-tese histoacuterica que brilha pela limpidez das explicaccedilotildees [] uma boa ideia sustentada por uma metodologia sem falhasrdquo159

A ideia de ldquopoliticamente incorretordquo aliaacutes eacute de saiacuteda uma das mais contundentes contribuiccedilotildees do Guia para essa subversatildeo dos fundamen-tos temporais da histoacuteria reforccedilada em suas paacuteginas por exemplo com a mitificaccedilatildeo do Brasil e do Chile como paraiacutesos de estabilidade poliacutetica em uma Ameacuterica Latina oitocentista convulsionada por ldquoguerras civis ditaduras e assassinatos em massardquo que brotariam do Meacutexico a uma ldquoArgentinardquo160 tatildeo inventada pelo autor como um fictiacutecio ldquovice reinado [sic] da Grande Colocircmbiardquo161 Tambeacutem pela prioridade agrave pseudopolecircmica a ensejar compa-raccedilotildees anacrocircnicas162 ou ainda uma interpretaccedilatildeo da Independecircncia como ldquoum jogo de cartas marcadasrdquo (porque segundo o livro ldquoningueacutem queria se separar de Portugalrdquo163) tatildeo maniqueiacutesta quanto a de um Impeacuterio do Brasil como uma espeacutecie de personagem que natildeo obstante supostas ldquovirtudes que satildeo frequentemente esquecidasrdquo necessitaria de uma defesa contra ldquoacusa-ccedilotildees injustasrdquo de que seria alvo164 Assim natildeo eacute de surpreender se ao leitor do Guia escapar ateacute mesmo uma simples informaccedilatildeo como a do Brasil ter sido o uacuteltimo ou o penuacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a abolir a escravidatildeo165

Ecircnfase anedoacutetica em personagens convencionais diaacutelogos inter-ditos ou puramente formais com conhecimentos especializados assim como erros e anacronismos a promoverem uma destemporalizaccedilatildeo da Histoacuteria natildeo satildeo caracteriacutesticas absolutas de todos os esforccedilos por tratar da Independecircncia para leitores interessados no passado e nos dizeres de Gomes natildeo ldquohabituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadecircmica que [segundo ele] permeia toda a bibliografia sobre 1808 e seus desdobramentosrdquo166 Haacute pelo menos duas frentes que oferecem alternativas a esse panorama contribuindo para tornar ainda mais complexa a cultura de histoacuteria no Brasil livros a que se costuma chamar de paradidaacuteticos e magazines de Histoacuteria Ambos recorrem a linguagens discursivas e visuais faacuteceis contam com a colaboraccedilatildeo ou satildeo escritos por historiadores profis-

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Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

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por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

34Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

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Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 28: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

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Los mitos de la historia argentina Buenos Aires 2004 A ese respeito RODRIacuteGUEZ Martha Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia Ensayistas historiadores y gran puacuteblico 2001-2006 In DEVOTO Fernando (dir) Op Cit p117-137

146Narloch ldquoenquanto revolucionaacuterios e

libertadores de boa parte do mundo travaram batalhas heroicas e conseguiam se livrar das garras das elites e dos paiacuteses colonialistas por aqui natildeo aconteceu nada nada ficamos sempre no quaserdquo NARLOCH Leandro Op Cit p 271-272 ndash aqui o autor opta por ao inveacutes de tentar desmontar tal versatildeo ndash e seguir o mesmo procedimento de quase todo o resto do livro ndash concluir que foi bom que as coisas tenham supostamente sido desse modo saiacuteda pragmaacutetica face o desconhecimento que o autor tem da historiografia) Gomes ldquoo que se viu em 1822 foi portanto uma ruptura sob controle ameaccedilada pelas divergecircncias internas e pelo oceano de pobreza e marginalizaccedilatildeo criado por trecircs seacuteculos de escravidatildeo e exploraccedilatildeo colonial Ao contraacuterio dos Estados Unidos onde a independecircncia teve como motor a repuacuteblica e a luta pelos direitos civis e pela participaccedilatildeo popular no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritaacuterias da populaccedilatildeordquo (GOMES Laurentino 1808 Op Cit p334 - aqui o leitor fica confuso em relaccedilatildeo ao que se quis dizer jaacute que a escravidatildeo negra foi mantida em boa parte dos Estados Unidos ateacute 1865)

147Enquanto Gomes tenta dialogar Narloch quer

apenas selecionar A tocircnica poliacutetica do Guia novamente se revela sua prioridade natildeo eacute aquilo de que o livro trata mas algo a que eacute possiacutevel se chegar a partir disso

148Parte dos quais resulta de verdadeira obsessatildeo

por uma linguagem ldquosimplesrdquo O mesmo ocorre no contexto argentino com PIGNA Felipe Op Cit e LANATA Jorge Argentinos desde Pedro de Mendoza hasta la Argentina del Centenario Buenos Aires Ediciones B 2002 (cf a anaacutelise de RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit)

149Idecircntica estrateacutegia discursivo-mercadoloacutegica

eacute utilizada na Argentina por Jorge Lanata Cf RODRIacuteGUEZ Martha Op Cit

150Como vimos fragmentaccedilatildeo narrativa e imagens

decorativas satildeo recursos mercadoloacutegicos bastante utilizados tambeacutem em livros didaacuteticos e programas de televisatildeo

151Como o das p 86-87 onde se lecirc que ldquoo mapa

do Brasil mostra as fronteiras e divisas da eacutepocardquo natildeo obstante apresentar delimitaccedilotildees entatildeo inexistentes como as atuais dos estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute e Rio Grande do Sul Exemplos das tabelas em 1816 ldquoA Argentina declara sua independecircncia da Espanhardquo dois anos antes (em 1814) ldquoO Meacutexico torna-se independente da Espanhardquo (GOMES Laurentino 1822 Op Cit p8)

152GOMES Laurentino 1808 Op Cit p32-33

sionais e circulam para aleacutem da academia mas tecircm peso mercadoloacutegico muito inferior aos demais materiais ateacute aqui analisados bem como na proacutepria cultura de histoacuteria O que natildeo significa poreacutem que os tratamentos dados agrave Independecircncia por livros paradidaacuteticos e magazines sejam imunes a caracteriacutesticas que marcantes nessa cultura eles apenas tendem a evitar Afinal tais materiais como todos os demais tambeacutem integram um ciclo de interaccedilotildees diretas e de compartilhamento de padrotildees

Dois exemplos que muito reproduzem essas caracteriacutesticas Viagem pela histoacuteria do Brasil (1987) de Jorge Caldeira167 e Brasil Uma Histoacuteria (2010) de Eduardo Bueno168 Ambos apresentam textos segmentados farto manancial de imagens puramente ilustrativas e tatildeo tradicionais e convencionais como a que imputa agrave Inconfidecircncia Mineira o caraacuteter de movimento preparatoacuterio agrave Independecircncia do Brasil169 O livro de Bueno conta ademais com um prefaacutecio de Mary Del Priore a endossar as ecircnfases biograacuteficas caricatas e anedoacuteticas da obra170 suas palavras satildeo mais uma vez sintomaacuteticas de estrateacutegias de legitimaccedilatildeo de obras que buscam apoio no conhecimento acadecircmico ao passo que tentam sobre eles afirmar uma superioridade fundada em sua capacidade para atingir ndash por estrateacutegias mercadoloacutegicas bem definidas ndash a sociedade em geral

Independente das abordagens teoacutericas consagradas pelas academias destacado da pesquisa histoacuterica que se faz nas universidades o autor identifica-se ao espiacuterito de abertura e descoberta que domina nossa eacutepoca Exemplo de coerecircncia intelectual ele lecirc o Brasil numa chave jornaliacutestica onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisotildees coletivas assim como a permanecircncia das decisotildees individuais sobre o curso da histoacuteria Menos preocupado em interpretar a significaccedilatildeo das estruturas ele extrai habilmente liccedilotildees de fatos histoacutericos Em sua pena a virtuosidade do vulgarizador o charme do contador e a elegacircncia do estilista combinam-se para oferecer ao leitor uma narrativa pouco convencional e repleta de biografias pitorescas aleacutem de observaccedilotildees nada canocircnicas171

Jaacute outras obras de divulgaccedilatildeo apresentam casos muito diferentes A comeccedilar por outra da mesma Del Priore que em parceria com outro historiador profissional172 agora se apresenta como muito mais afeita a estruturas coletividades e conhecimentos acadecircmicos do que haacute pouco se mostrou173 coloca-se assim em sintonia com vaacuterios livros paradidaacuteti-cos especiacuteficos sobre a Independecircncia escritos tambeacutem por historiadores profissionais e nos quais eacute dada ecircnfase a uma histoacuteria processual a uma diversidade de agentes sociais e de espaccedilos poliacutetico-geograacuteficos a diaacutelogos verdadeiros com a academia e a uma temporalizaccedilatildeo da histoacuteria praticada de modo bastante natural174 Satildeo vozes minoritaacuterias e de menor impacto social mas natildeo satildeo despreziacuteveis Esse confronto entre forccedilas coexistentes e desiguais ocorre tambeacutem dentre obras voltadas mais especificamente ao puacuteblico infanto-juvenil175

Tambeacutem em meio aos magazines a Independecircncia conhece tra-tamentos variados e potencialmente conflitivos No geral as cinco pu-blicaccedilotildees aqui analisadas (Aventuras na Histoacuteria Histoacuteria Viva Leituras da Histoacuteria Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacional) apresentam grande flexibilidade em termos da natureza de seus textos a incluiacuterem reportagens notiacutecias artigos de opiniatildeo anaacutelises entrevistas propostas de atividades e pequenas notas envolvendo desde especialis-tas acadecircmicos ateacute leitores leigos Todos empregam linguagens faacuteceis sendo que com frequecircncia os textos satildeo revisados e ou mesmo reescritos

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por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

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muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

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detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

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Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 29: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

33Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

por editores diagramados em formatos atraentes e em meio a imagens que poucas vezes satildeo analisadas em geral servindo de mera ilustraccedilatildeo No entanto nesse conjunto percebe-se uma clivagem os conteuacutedos de Histoacuteria Viva Nossa Histoacuteria e Revista de Histoacuteria da Biblioteca Nacio-nal tendem a ser mais aacutevidos e eficientes no diaacutelogo com a academia do que os presentes em Aventuras na Histoacuteria e Leituras da Histoacuteria Outra caracteriacutestica comum a todos amplamente presente tambeacutem em outras fontes como vimos eacute sua inclinaccedilatildeo a um teor revisionista a oferecer em primeiro lugar uma ou vaacuterias versotildees supostamente tradicionais e prontas do tema logo uma supostamente nova visatildeo a desmontaacute-la Tal promessa evidentemente natildeo garante sua realizaccedilatildeo176

Mesmo assim eacute possiacutevel considerar os magazines o suporte material mais inovador e dissonante no tocante a noccedilotildees concepccedilotildees e represen-taccedilotildees acerca da Independecircncia atuantes em uma cultura de histoacuteria no Brasil Por um lado provavelmente isso se decirc pelo fato de serem eles cons-tante e intensamente visitados por acadecircmicos empenhados ou no miacutenimo interessados na divulgaccedilatildeo natildeo acadecircmica de seus saberes sobre a histoacute-ria por outro por traduzirem mais intensamente do que outras fontes os interesses de uma sociedade em torno da histoacuteria mas com peso mercado-loacutegico menor do que por exemplo livros didaacuteticos programas televisivos ou livros concebidos desde o seu nascedouro para serem best-sellers Qual seu grau de autonomia em relaccedilatildeo a um universo de referecircncias por eles compartilhadas Qual o peso de sua atuaccedilatildeo na cultura de histoacuteria Qual o seu potencial de modificar essa cultura e quais os limites a eles impostos Por fim caso tal diagnoacutestico seja mesmo pertinente tecircm os magazines condiccedilotildees ou interesse de fazer jus ao que poderia ser a eles imputado como uma espeacutecie de vocaccedilatildeo sendo eles mesmos bastante variados ou em muitos sentidos ateacute mesmo antagocircnicos

8 ndash Convergecircncias e conclusotildeesApoacutes tudo o que foi observado deve-se afinal retomar a pergunta inicial desta pesquisa como os brasileiros vecircm a Independecircncia do Brasil E no esteio de uma resposta possiacutevel plasmada pela observaccedilatildeo de uma cultura de histoacuteria retomar a reflexatildeo acerca de como a Independecircncia eacute vista no Brasil por seus historiadores

A depreender das fontes aqui analisadas com suas limitaccedilotildees mas tambeacutem com sua abrangecircncia e variedade pode-se dizer que no Bra-sil atualmente a Independecircncia eacute tema bastante presente e atuante na sociedade e ainda que essa sociedade nem sempre manifeste interesse por ele ou por histoacuteria em geral ela se mostra motivada e capaz de desenvolver noccedilotildees de histoacuteria que por seu turno e com regularidade ensejam concep-ccedilotildees e representaccedilotildees variadas coexistentes e conflitivas Dada a variedade e o impacto social dessas fontes ndash principalmente os livros didaacuteticos e os materiais audiovisuais ndash eacute possiacutevel agora afirmar de modo conclusivo que a Independecircncia ldquopairardquo por sobre uma sociedade que natildeo necessariamente se posiciona a seu respeito de modo consciente claro e coerente que mui-tas vezes mesmo deprecia e ridiculariza seu passado coletivo mas que natildeo deve ser considerada completamente indiferente agrave Histoacuteria como muitas vezes costuma-se dizer

Parece evidente que os detratores da Independecircncia satildeo mais nume-rosos e por vezes mais virulentos do que seus defensores que natildeo obstan-te estatildeo longe de serem irrelevantes Em meio a essa parcial dicotomia

153Ibidem p37-38

154Aliaacutes D Maria I foi considerada impedida e o

governo passou a D Joatildeo em 1792 e natildeo em 1799 como afirma o livro

155GOMES Laurentino 1808 Op Cit p39

156Ibidem p48 Teria sido intenccedilatildeo do autor falar

de quase dois seacuteculos ao inveacutes de trecircs Mesmo assim teria sido tal decisatildeo tomada desde o seacuteculo XVII

157Ibidem p55 ldquoSoberanordquo em comeccedilos do seacuteculo

XVII quando seu impeacuterio estava incorporado agrave monarquia espanhola Teria sido intenccedilatildeo do autor falar em trecircs seacuteculos antes Mesmo assim algueacutem poderia sustentar seriamente tal ideia

158Ibidem p89 Outros exemplos a afirmaccedilatildeo

de que em 1807 ldquoo imperador francecircs era o senhor absoluto da Europardquo natildeo obstante natildeo ter conquistado Portugal Gratilde-Bretanha e Ruacutessia sendo que mais adiante em 1801 estaria toda ldquoEuropa ocupada por Napoleatildeo Bonaparterdquo (p34 e 47) a presunccedilatildeo de estiacutemulos agraves guerras napoleocircnicas na capacidade transformadora de uma Revoluccedilatildeo Industrial (p43) mas que antes das guerras mal tinha comeccedilado na Inglaterra (menos ainda alhures) a concepccedilatildeo de um Portugal que ldquono comeccedilo do seacuteculo XIX [] tinha uma total dependecircncia em relaccedilatildeo Brasilrdquo (p46) sendo que ldquoo ouro o fumo e a cana de accediluacutecar produzidos na colocircnia constituiacuteam o eixo de suas relaccedilotildees comerciaisrdquo embora se saiba que Portugal natildeo era totalmente dependente do Brasil menos ainda de um ouro cuja produccedilatildeo haacute muito jaacute entrara em decadecircncia a afirmaccedilatildeo de que ldquoa dependecircncia [de Portugal em relaccedilatildeo ao Brasil] tinha crescido gradativamente desde que Vasco da Gama havia aberto o caminho para as Iacutendias e Pedro Aacutelvares Cabral aportado com sua esquadra na Bahiardquo (p46) como se Portugal sempre tivesse dependido do Brasil desde entatildeo ou finalmente as afirmaccedilotildees de que o reformismo portuguecircs acabou em 1777 com a queda de Pombal (p61) e de que o Correio Braziliense virou ldquoo primeiro jornal brasileiro criado pelo jornalista gauacutecho Hipoacutelito Joseacute da Costardquo (p71)

159PRIORE Mary Del O ano que definiu o Brasil

Veja 12092007 Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 42-43

160Gomes a enxerga jaacute no seacuteculo XVIII GOMES

Laurentino 1808 Op Cit p47

161NARLOCH Leandro Op Cit p272

162ldquoDesse ponto de vista a monarquia teve para

o seacuteculo XIX o mesmo papel da ditadura militar no seacuteculo XX evitar que baixarias ideoloacutegicas instaurassem o caos entre os cidadatildeosrdquo Idem p274 Anacronismo comparaacutevel agraves afirmaccedilotildees do mesmo autor de que as populaccedilotildees indiacutegenas

34Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

35Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

36Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 30: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

34Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

muitos denominadores comuns aproximam o que natildeo parece ser jamais uma disputa de cunho partidaacuterio pois ela eacute incapaz de engendrar accedilotildees pragmaacuteticas e sectaacuterias seja ldquocontrardquo ou ldquoa favorrdquo da Independecircncia Em primeiro lugar porque ambas as posiccedilotildees satildeo capazes de convergirem por exemplo em termos de valorizaccedilatildeo de datas e personagens de um reco-nhecimento da validade de saberes acadecircmicos (independentemente de dialogarem com eles ou de nutrirem posiccedilotildees criacuteticas a seu respeito) de embaralharem referecircncias temporais e de se renderem com facilidade agraves demandas de um mercado educacional e cultural natildeo soacute de bens materiais mas tambeacutem de capitais simboacutelicos no qual a vulgarizaccedilatildeo de vidas pri-vadas alheias o presuntivo combate a ldquohistoacuterias oficiaisrdquo reais ou imagi-naacuterias ou a ostentaccedilatildeo de posiccedilotildees sobre a histoacuteria podem perfeitamente interagir e se assemelhar Para todos os efeitos poreacutem o mais importante eacute que tanto o ataque quanto a defesa da Independecircncia demonstram atitudes em relaccedilatildeo agrave histoacuteria permeadas por um nuacutemero certamente mais numeroso de agentes que mesclam vaacuterios componentes de uma e de outra posiccedilatildeo e que fazem com que a cultura de histoacuteria que a todos envolve seja multifacetada menos dicotocircmica e mais complexa do que a noccedilatildeo excessivamente ambiacutegua de ldquointeresse do brasileiro pela histoacuteriardquo permiti-ria entender

A Independecircncia eacute um dos componentes dessa cultura certamente um componente central e dos mais facilmente identificaacuteveis como capazes de revelar atitudes perante a histoacuteria que conforme estabelecido jaacute no iniacute-cio dessa pesquisa natildeo devem negligenciar o que numa primeira aborda-gem poderia parecer ausecircncia de consciecircncia ou de interesse pelo pas-sado Mas natildeo eacute o uacutenico componente sequer um dos uacutenicos importantes Mantendo-se a coerecircncia da abordagem conferida ateacute aqui ao fenocircmeno em uma cultura de histoacuteria o mais e o menos importante satildeo paradoxal-mente igualmente importantes Pois as atitudes de uma sociedade perante a histoacuteria dentre as quais suas recusas e interdiccedilotildees jamais se resumiratildeo a um recorte temaacutetico especiacutefico que pode ateacute funcionar razoavelmente para os historiadores acadecircmicos mas que natildeo faria sentido a representantes reprodutores e criadores natildeo acadecircmicos de conhecimento histoacuterico

A anaacutelise aqui realizada e que muito ganharia com a extensatildeo sociogeograacutefica de seu espaccedilo de observaccedilatildeo principalmente da sondagem de opiniatildeo parece deixar fora de duacutevida que a maioria das fontes porta-doras de noccedilotildees concepccedilotildees e representaccedilotildees acerca da Independecircncia no acircmbito natildeo acadecircmico satildeo basicamente recriadoras de conteuacutedos fortemente convencionais pouco ou nada inovadores em relaccedilatildeo ao que se poderia encontrar em outros contextos sociais brasileiros anteriores que pudessem igualmente ser submetidos a uma investigaccedilatildeo como a que foi aqui realizada Atualmente observa-se uma enorme massa de elementos reiterativos parcialmente reconfigurados em funccedilatildeo de demandas sociais e mercadoloacutegicas tiacutepicas do nosso tempo e na qual o destoante eacute sem duacutevida exceccedilatildeo Conclui-se entatildeo que tais suportes traduzem atitudes da sociedade brasileira perante a Independecircncia e a histoacuteria simultaneamen-te reproduzem tais atitudes e reforccedilam um ciclo tanto mais eficiente em funccedilatildeo de um conjunto de caracteriacutesticas dessa sociedade em termos de perfis culturais educacionais e econocircmicos que aqui puderam ser referidos apenas genericamente

Seguramente em qualquer cultura de histoacuteria eventos coletivamen-te traumaacuteticos natildeo poderiam ser submetidos a uma loacutegica de desmonte e

da Ameacuterica como segundo ele detestariam viver na mata cheia de mosquitos teriam passado a derrubaacute-la com gosto quando os primeiros portugueses quiseram pau-brasil ou a de que aos mesmos nativos os leitores do Guia deveriam agradecer pelo haacutebito contemporacircneo de fumar ldquoervas deliciosasrdquo Idem p 28 e segs

163Ibidem p 281

164Ibidem p 275

165Afirma que ldquoo Brasil foi o penuacuteltimo paiacutes da

Ameacuterica a abolir a escravidatildeordquo mas logo em seguida que ldquopouco depois de Cuba foi o uacuteltimo paiacutes da Ameacuterica a libertar os escravosrdquo Ibidem p 285

166Ibidem p 22 Se toda a bibliografia a que ele se

refere fosse assim natildeo poderiacuteamos prosseguir na anaacutelise de nossas fontes

167CALDEIRA Jorge Viagem pela histoacuteria do

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 Acompanhado de um CD-Rom Quando de seu lanccedilamento contou com amplo suporte midiaacutetico a conferir-lhe um destaque via de regra positivo pouco depois no programa Roda Viva da TV Cultura de Satildeo Paulo seu autor recebeu duras criacuteticas dos historiadores profissionais John Manuel Monteiro e Joseacute Jobson Arruda

168BUENO Eduardo Brasil uma histoacuteria Satildeo

Paulo Leya 2010 (mesma editora do Guia politicamente incorreto e do livro de M A Villa acima mencionado Histoacuteria das constituiccedilotildees brasileiras) A obra eacute uma reediccedilatildeo atualizada de Brasil uma Histoacuteria a incriacutevel saga de um paiacutes (Satildeo Paulo Aacutetica 2003)

169Segundo Caldeira ldquonas Minas Gerais apesar das

proibiccedilotildees havia algum tempo circulavam os livros que Portugal tentava proibir Muitos membros da elite local procuravam interpretar o momento segundo as novas ideias de liberdade E em vez de protestar contra Portugal passaram a pensar na independecircncia do Brasilrdquo assim ldquoa semente estava lanccedilada a ruptura com Portugal tornou-se a ideia central de muitos brasileirosrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p112 e segs) Bueno por seu turno afirma ldquoembora a historiografia oficial considere a Conjuraccedilatildeo uma luta pela liberdade no Brasil para o historiador norte-americano Kenneth Maxwell autor de a devassa da devassa o melhor livro sobre o tema lsquoa conspiraccedilatildeo dos mineiros era basicamente um movimento de oligarcas no interesse da oligarquia sendo o nome do povo invocado apenas como justificativarsquordquo (BUENO Eduardo Op Cit p141) Embora logo atraacutes tenha dito que ldquoJoseacute de Maia e Barbalho entrou em contato com Thomas Jefferson entatildeo embaixador dos EUA na Franccedila sondando-o sobre um possiacutevel apoio agrave independecircncia do Brasilrdquo (Idem p 141 e 138) Caldeira vecirc ainda as Cortes de Lisboa e a Independecircncia segundo os claacutessicos vieses respectivamente de ldquorecolonizadorasrdquo e de conflito entre ldquobrasileirosrdquo e ldquoportuguesesrdquo (CALDEIRA Jorge Op Cit p142)

35Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

36Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 31: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

35Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

detraccedilatildeo como no Brasil ocorre em parte com a Independecircncia Aleacutem disso a ordem de prioridades das atitudes sociais perante a histoacuteria muda constan-temente alterando essa cultura abrindo inclusive a possibilidade de inversatildeo de disputas em torno de temas ou mesmo de transformaccedilatildeo de estatuto de um tema que por exemplo pode deixar de ser traumaacutetico e assim se sub-meter agrave saacutetira ou que de pouco relevante pode ser elevado agrave condiccedilatildeo de componente identitaacuterio dessa sociedade Poreacutem estes satildeo processos raros e lentos na medida em que as proacuteprias sociedades do mundo atual que podem se submeter a investigaccedilotildees em torno de suas culturas de histoacuteria possuem mecanismos de autorreproduccedilatildeo e de auto-perpetuaccedilatildeo enraizados

Por tudo isso e restringindo novamente o escopo dessas conclusotildees aos historiadores da Independecircncia parece natildeo convir que se considerem alheios a essa cultura de histoacuteria ao seu funcionamento e agraves implicaccedilotildees da mesma para seu proacuteprio trabalho Embora ajam de modos autocircnomos vinculados a escolhas pessoais fundadas em diagnoacutesticos necessidades e idiossincrasias acadecircmicas tambeacutem os historiadores carregam consigo o peso de formaccedilotildees escolares e sociais mais amplas (de acordo com uma cultura de histoacuteria que os envolveu desde cedo) pensam segundo tradiccedilotildees que natildeo se restringem ao mundo acadecircmico e atuam em uma sociedade cujas demandas e determinaccedilotildees mercadoloacutegicas se fazem presentes de modo cada vez mais intenso tambeacutem nas universidades nos centros de investigaccedilatildeo e nas agecircncias de fomento agrave pesquisa177 Tudo isso poderaacute ajudar a explicar porque profissionais da Histoacuteria tardam tanto a reve-rem determinadas posiccedilotildees acerca de seus temas de estudo porque satildeo capazes de reproduzir tatildeo facilmente ldquoverdadesrdquo anteriormente estabele-cidas e porque satildeo cada vez mais treinados desde os estaacutegios iniciais de sua formaccedilatildeo a rejeitarem o exerciacutecio da criacutetica aberta e honesta bem como o diaacutelogo transversal e o trabalho coletivo Natildeo parece incriacutevel por exemplo que apoacutes tudo o que a historiografia acadecircmica produziu acerca da Independecircncia do Brasil tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueiacutesta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses ou como um processo de simples reacomodaccedilatildeo de interesses elitistas em prol da manutenccedilatildeo da ordem ou finalmente como uma miriacuteade de vontades individuais a moverem a histoacuteria Estas natildeo satildeo ldquoverdadesrdquo apenas dos natildeo especialistas em Histoacuteria tambeacutem muitos profissionais da mateacuteria ainda parecem dispostos a sustentaacute-las

O diagnoacutestico de tal situaccedilatildeo natildeo significa entretanto a defesa de que a Histoacuteria da Independecircncia seja reescrita em medida mais inten-sa do que naturalmente jaacute o eacute todo e qualquer tema toda e qualquer histoacuteria Na escrita da Histoacuteria assim como em qualquer outro ramo das ciecircncias humanas o mais novo natildeo eacute necessariamente o mais esclarece-dor haacute uma dimensatildeo parcialmente cumulativa do conhecimento histoacuteri-co mas tambeacutem haacute a possibilidade do estabelecimento de certos consen-sos duradouros a persistirem natildeo por simples ineacutercia mas por reiteraccedilatildeo dinacircmica e criacutetica de paradigmas devidamente revistos O que natildeo pode ser ignorado contudo eacute a necessidade de uma cuidadosa apreciaccedilatildeo por parte do especialista de uma mateacuteria do fato de que determinados pressupostos da mesma podem ter sido estabelecidos anteriormente e que seu trabalho esteja condicionado por uma cultura de histoacuteria cujo diagnoacutestico preteacuterito implica natildeo apenas uma valorizaccedilatildeo de conheci-mentos veiculados por sua sociedade mas tambeacutem formas de atuaccedilatildeo qualificada nessa mesma sociedade

170Como os efeitos da disenteria de D Pedro que

pouco depois o mesmo Bueno reexaminaria em sua seacuterie televisiva Eacute muita histoacuteria jaacute aqui analisada Curioso como Bueno evoca constantemente uma ldquohistoacuteria tradicionalrdquo da qual natildeo apenas natildeo se vecirc como representante mas como dela combatente (estilo argumentativo que como vimos pouco depois seria reeditado agora por Narloch e seu Guia) De acordo com as precisas palavras de Joseacute Cacircndido de Oliveira Martins a partir de uma ideia de E Wesseling ldquoo alvo principal do discurso irocircnico eacute a histoacuteria canocircnica o repositoacuterio de fatos estabelecidos e as interpretaccedilotildees daqueles fatos mas tambeacutem os textos do passado da memoacuteria cultural maltratados por um uso contraacuterio ao tradicionalrdquo Cf MARTINS J C de Oliveira Portugal e Brasil de D Joatildeo VI na meta-ficccedilatildeo historiograacutefica de autores portugueses contemporacircneos In OLIVEIRA P M (Org) Op Cit p104

171PRIORE Mary Del Prefaacutecio In BUENO Eduardo

Op Cit p5

172PRIORE Mary Del VENAcircNCIO Renato Pinto

Uma breve histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Planeta do Brasil 2010 Este livro eacute uma ediccedilatildeo revisada e atualizada de O livro de ouro da Histoacuteria do Brasil dos mesmos autores publicado no Rio de Janeiro pela Ediouro em 2001 O texto sofreu pequenos ajustes de uma ediccedilatildeo agrave outra

173Agora desautorizando (dentre outros) Bueno

afirmam os autores a respeito de D Joatildeo ldquoCom justiccedila nada se encontrava de burlesco neste personagemrdquo (Uma breve histoacuteria op cit p159-160) Tal postura algo esquizofrecircnica tem antecedentes ilustres em outras historiografias Na deacutecada de 1950 Oliveira Martins por exemplo caracterizaria criticamente o ldquopovo portuguecircsrdquo como ldquocaso talvez uacutenico na Europardquo por natildeo possuir ldquoalma socialrdquo e supostamente se comprazer ldquoem escarnecer de si proacuteprio com os nomes mais ridiacuteculos e o desdeacutem mais burlescordquo e isso natildeo obstante o proacuteprio autor ter tratado de D Joatildeo como uma ldquosombra espessa de uma seacuterie de reis doidos ou ineptamente mausrdquo ldquovelho pesado sujo gorduroso feio e obesordquo (MARTINS Oliveira Histoacuteria de Portugal Lisboa Guimaratildees 1951 t2 p325 e 286-287 respectivamente Cit por CARDOSO Patriacutecia da Silva Op Cit p 39

174Dentre outros ALGRANTI Leila Mezan D

Joatildeo VI e os bastidores da independecircncia Satildeo Paulo Aacutetica 1986 MATTOS Ilmar Rohloff de ALBUQUERQUE Luis Affonso S de Independecircncia ou morte a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil Satildeo Paulo Atual 1991 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena A independecircncia e a construccedilatildeo do Impeacuterio 1750-1824 2a ed Satildeo Paulo Atual 1995 BERBEL Maacutercia A independecircncia do Brasil (1808-1828) Satildeo Paulo Saraiva 1999 LYRA Maria de Lourdes Vianna O impeacuterio em construccedilatildeo Primeiro Reinado e Regecircncias Satildeo Paulo Atual 2000 SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo O nascimento poliacutetico do Brasil Rio de Janeiro DPampA 2003 OLIVEIRA Ceciacutelia Helena 7 de setembro de 1822 a independecircncia do Brasil Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 2005

36Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014

Page 32: A Independência e uma cultura de história no Brasil1 · analítica (é possível mesmo que seu exame mais detido indicasse possibi-lidades de diálogo ou até de convergências

36Almanack Guarulhos n08 p5-36 2ordm semestre de 2014 foacuterum

Eacute frequente a acusaccedilatildeo dirigida aos historiadores de manterem-se presos a linguagens hermeacuteticas a conhecimentos hiper-especializados e a diaacutelogos corporativos muito limitados Dentre aqueles historiadores que se incomodam com vaacuterios aspectos da realidade mostrada por esta investi-gaccedilatildeo costumam-se entatildeo responsabilizar a si mesmos enquanto grupo profissional pela proliferaccedilatildeo de maus suportes de divulgaccedilatildeo histoacuterica jaacute que eles proacuteprios pouco se apresentariam como capazes de fazer algo melhor do que outros agentes sociais que natildeo soacute representam mas prin-cipalmente recriam (de modo tiacutemido) conteuacutedos de Histoacuteria Essa autocriacute-tica eacute necessaacuteria e salutar178 No entanto haacute que se considerar trecircs coisas Primeiro um grande nuacutemero de historiadores acadecircmicos haacute muito e de muitas maneiras jaacute trabalha nessa direccedilatildeo Segundo tal trabalho impotildee uma capacidade de atuaccedilatildeo em sistemas natildeo soacute educacionais mas tam-beacutem editoriais e midiaacuteticos fortemente capitalistas viciados e cheios de nuances o que por vezes implica o manejo de ferramentas tatildeo especiacuteficas e complicadas para os historiadores quanto o satildeo algumas das ferramentas destes para o restante da sociedade Terceiro dialogar com a sociedade na condiccedilatildeo de especialistas tambeacutem impotildee aos historiadores problemas a se ter em conta Inclusive porque se no caso da Histoacuteria da Independecircncia vimos que o trabalho de natildeo acadecircmicos natildeo tem se mostrado dos mais inspiradores a chancela do especialista natildeo eacute garantia de uma divulgaccedilatildeo consistente Como e para que divulgar conhecimento histoacuterico em uma sociedade que jaacute possui numerosas formas de pensar e de representar a his-toacuteria Haacute muitas respostas possiacuteveis a essa pergunta Quase todas pode-riam perfeitamente substituir a ideia de divulgaccedilatildeo pelas de diagnoacutestico e diaacutelogo Diagnoacutestico de uma cultura de histoacuteria base para um diaacutelogo com a proacutepria sociedade

SLEMIAN Andreacutea PIMENTA Joatildeo Paulo A Corte e o Mundo uma histoacuteria do ano em que a famiacutelia real chegou Satildeo Paulo Alameda 2008

175De um lado livros como BAGNO Marcos O

processo de independecircncia do Brasil adaptado do livro ldquoDiaacuterio de uma viagem ao Brasilrdquo de Maria Graham Satildeo Paulo Aacutetica 2003 (consultoria histoacuterica Tania Regina de Lucca) PEREIRA Andreacute A independecircncia do Brasil documentos e atividades Ao Livro Teacutecnico 1999 (Ilustraccedilotildees Tibuacutercio) e o mais afinado com a academia LUSTOSA Isabel A histoacuteria do Brasil explicada aos meus filhos Agir 2007 De outro as adaptaccedilotildees de GOMES Laurentino ORTIZ Denise 1808 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Planeta 2008 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger) e GOMES Laurentino 1822 - ediccedilatildeo juvenil Satildeo Paulo Nova Fronteira 2011 (ilustraccedilotildees Rita B Brugger)

176Foram analisados 185 artigos De 226 menccedilotildees a

20 temas relativos agrave Independecircncia identificados 74 dizem respeito a oito temas correspondentes a personagens convencionais como D Pedro D Joatildeo Carlota Bonifaacutecio Leopoldina Domitila Ameacutelia e Tiradentes Em termos de chamadas e conteuacutedos por exemplo a Aventuras na Histoacuteria n 37 traz na capa a chamada ldquoA nova face de D Pedro I Tudo o que a escola natildeo contou sobre o heroacutei da independecircncia que se tornou siacutembolo de liberdade na Europa do seacuteculo XIXrdquo (guiadoestudanteabrilcombraventuras-historiaindependencia-ou-nada-434846shtml acesso em 02042014) Outros artigos pretendem revisar ateacute mesmo de interpretaccedilotildees recorrentes na academia (revistadehistoriacombrsecaolivrosa-independencia-brasileira-novas-dimensoes acesso em 02042014) Jaacute a Nossa Histoacuteria n11 explicita esse interesse das revistas em identificar e criticar imaginaacuterios acerca da Independecircncia

177O que natildeo significa que historiadores e demais

cientistas sociais sejam constante e plenamente avaliados Como bem se sabe tais profissionais satildeo avaliados apenas em alguns quesitos de sua atuaccedilatildeo jamais em todos

178Interessantes propostas a respeito encontram-

se em MEGLIO Gabriel Di Wolf el lobo Observaciones y propuestas sobre la relacioacuten entre produccioacuten acadeacutemica y divulgacioacuten histoacuterica Nuevo Topo Revista de historia y pensamiento criacutetico n 8 2011 p107-120 Infelizmente natildeo pudemos dialogar com as propostas de outro autor publicadas quando nosso proacuteprio artigo estava praticamente concluiacutedo MALERBA Jurandir Acadecircmicos na berlinda ou como cada um escreve a Histoacuteria uma reflexatildeo sobre o embate entre historiadores acadecircmicos e natildeo acadecircmicos no Brasil agrave luz dos debates sobre lsquoPublic Historyrsquo Histoacuteria da historiografia n 15 ago2014 p27-50

Recebido para publicaccedilatildeo em agosto de 2014Aprovado em setembro de 2014