a ilha do conhecimento - marcelo gleiser

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A Ilha Do Conhecimento - Marcelo Gleiser

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  • 1 edio

    2014

  • G468i

    14-14921

    CIP-BRASIL. CATALOGAO NA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    Gleiser, Marcelo, 1959-A ilha do conhecimento [recurso eletrnico]: os limites da cincia e a busca por sentido / Marcelo Gleiser. - 1. ed. - Rio de

    Janeiro: Record, 2014.recurso digital

    Formato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide WebInclui bibliografiasumrio, prlogo, notas, agradecimentosISBN 9788501063045 (recurso eletrnico)

    1. Ensaio brasileiro. 2. Livros eletrnicos. I. Ttulo.

    CDD: 869.94CDU: 821.134.3(81)-4

    Copyright Marcelo Gleiser, 2014

    Todos os direitos reservados. Proibida a reproduo, armazenamento ou transmisso de partes deste livro atravs de quaisquer meios,sem prvia autorizao por escrito.Proibida a venda desta edio em Portugal e resto da Europa.

    Texto revisado segundo o novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa.

    Direitos exclusivos desta edio reservados pelaEDITORA RECORD LTDA.Rua Argentina 171 20921-380 Rio de Janeiro, RJ Tel.: 2585-2000

    Produzido no Brasil

    ISBN 9788501063045

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    Atendimento direto ao leitor:[email protected] ou (21) 2585-2002.

  • Para Andrew, Eric, Tali, Lucian e Gabriel:As luzes que iluminam minha busca.

  • Sumrio

    Prlogo A Ilha do Conhecimento

    PARTE I A Origem do Mundo e a Natureza dos Cus

    1 TEMOS QUE ACREDITAR

    (Onde exploramos o papel da crena e da extrapolao na religio e na criatividade cientfica)

    2 ALM DO ESPAO E DO TEMPO

    (Onde exploramos como as diferentes religies confrontam a questo da origem de todas ascoisas)

    3 SER OU DEVIR? ESTA A QUESTO

    (Onde encontramos os primeiros filsofos da Grcia Antiga e exploramos algumas de suas ideiassobre a natureza da realidade)

    4 LIES DO SONHO DE PLATO

    (Onde exploramos as consideraes de Plato e Aristteles sobre as questes da Primeira Causae dos limites do conhecimento)

    5 INSTRUMENTOS TRANSFORMAM VISES DE MUNDO

    (Onde descrevemos a obra de trs cavalheiros excepcionais que, com acesso a novosinstrumentos de explorao e dotados de incrvel criatividade, transformaram nossa viso demundo)

    6 DESPEDAANDO A REDOMA CELESTE

    (Onde exploramos o gnio de Isaac Newton e sua fsica, emblema do intelecto humano)

  • 7 A CINCIA COMO A GRANDE NARRATIVA DA NATUREZA

    (Onde argumentamos que a cincia uma construo humana cujo imenso poder vem de suaabrangncia e flexibilidade)

    8 A PLASTICIDADE DO ESPAO

    (Onde exploramos as teorias da relatividade especial e geral de Einstein e suas implicaes paraa nossa compreenso do espao e do tempo)

    9 O UNIVERSO INQUIETO

    (Onde exploramos a expanso do Universo e o aparecimento de uma singularidade na origem dotempo)

    10 O AGORA NO EXISTE

    (Onde argumentamos que a noo do agora uma fabricao do aparato cognitivo humano)

    11 CEGUEIRA CSMICA

    (Onde exploramos o conceito de horizonte csmico e como ele limita o que podemos conhecerdo Universo)

    12 DIVIDINDO INFINITOS

    (Onde iniciamos nossa explorao do infinito e sua aplicao cosmologia)

    13 ROLANDO LADEIRA ABAIXO

    (Onde explicamos a energia do vcuo falso, sua relao com o bson de Higgs, e como podealimentar a acelerao da expanso csmica)

    14 CONTANDO UNIVERSOS

    (Onde introduzimos o conceito de multiverso e exploramos suas implicaes fsicas emetafsicas)

    15 INTERLDIO: UM PASSEIO PELO VALE DAS CORDAS

    (Onde discutimos a teoria de supercordas, suas previses e implicaes antrpicas)

  • 16 SER QUE O MULTIVERSO PODE SER DETECTADO?

    (Onde exploramos se o multiverso uma teoria fsica ou mera fantasia)

    PARTE II Da Pedra Filosofal ao tomo: A Natureza Elusiva da Realidade

    17 TUDO FLUTUA NO NADA

    (Onde exploramos as ideias gregas sobre o atomismo)

    18 ADMIRVEL FORA E EFICCIA DA ARTE E DA NATUREZA

    (Onde visitamos o mundo da alquimia, vista como uma explorao metodolgica e espiritual dospoderes ocultos da matria)

    19 A NATUREZA ELUSIVA DO CALOR

    (Onde exploramos o flogisto e o calrico, substncias bizarras propostas para explicar a naturezado calor, e como as mesmas foram descartadas)

    20 A MISTERIOSA LUZ

    (Onde exploramos como as misteriosas propriedades da luz inspiraram as duas revolues dafsica no incio do sculo XX)

    21 APRENDENDO A ACEITAR

    (Onde iniciamos nossa explorao da fsica quntica e como ela impe limites a quanto podemossaber sobre o mundo)

    22 AS INTRPIDAS AVENTURAS DE WERNER, O ANTROPLOGO

    (Onde usamos uma alegoria para explorar o papel do observador na fsica quntica e como o atode medir interfere no que medido)

    23 O QUE ONDULA NO MUNDO QUNTICO?

    (Onde exploramos a bizarra interpretao da fsica quntica proposta por Max Born e como estacomplica nossa noo de realidade)

    24 PODEMOS SABER O QUE REAL?

  • (Onde exploramos as implicaes da fsica quntica para a nossa compreenso da realidade)

    25 QUEM TEM MEDO DOS FANTASMAS QUNTICOS?

    (Onde revisitamos por que a fsica quntica incomodava tanto a Einstein e o que nos diz sobre omundo)

    26 POR QUEM OS SINOS DOBRAM?

    (Onde discutimos o teorema de John Bell e como sua implementao experimental confirmou quea realidade mais estranha do que a fico)

    27 A MENTE E O MUNDO QUNTICO

    (Onde examinamos se a mente humana tem algum papel no mundo quntico)

    28 DE VOLTA AO COMEO

    (Onde tentamos interpretar o enigma quntico)

    PARTE III A Mente e a Busca por Sentido

    29 SOBRE AS LEIS DOS HOMENS E AS LEIS DA NATUREZA

    (Onde discutimos se a matemtica uma descoberta ou uma inveno e por que isso importa)

    30 INCOMPLETUDE

    (Onde exploramos brevemente as incrveis ideias de Kurt Gdel e Alan Turing)

    31 SONHOS SINISTROS DE MQUINAS TRANSUMANAS OU O MUNDO COMOINFORMAO

    (Onde examinamos se o mundo informao, a natureza da conscincia, e se o que chamamos derealidade no passa de uma simulao)

    32 VENERAO E SIGNIFICADO

    (Onde refletimos sobre o desejo de saber e a condio humana)

  • AgradecimentosNotasBibliografia

  • PrlogoA Ilha do Conhecimento

    O que vejo na Natureza uma estrutura magnfica que podemos compreender apenas imperfeitamente e que nosinspira grande humildade.

    ALBERT EINSTEIN

    O que observamos no a Natureza, mas a Natureza exposta ao nosso mtodo de questionamento.

    WERNER HEISENBERG

    Quanto podemos conhecer do mundo? Ser que podemos conhecer tudo? Ou ser que existem limitesfundamentais para o que a cincia pode explicar? Se esses limites existem, at que ponto podemoscompreender a natureza da realidade? Estas perguntas, e suas consequncias surpreendentes, so ofoco deste livro, uma explorao de como compreendemos o Universo e a ns mesmos.

    O que vemos do mundo uma nfima frao do que existe. Muito do que existe invisvel aosolhos, mesmo quando aumentamos nossa percepo sensorial com telescpios, microscpios e outrosinstrumentos de explorao. Tal como nossos sentidos, todo instrumento tem um alcance limitado.Como muito da Natureza permanece oculto, nossa viso de mundo baseada apenas na frao darealidade que podemos medir e analisar. A cincia, nossa narrativa descrevendo aquilo que vemos eque conjecturamos existir no mundo natural, , portanto, necessariamente limitada, contando-nosapenas parte da histria. Quanto outra parte, a que nos inacessvel, pouco podemos afirmar.Porm, dados os sucessos do passado, temos confiana de que, passado tempo suficiente, parte doque hoje mistrio ser incorporado na narrativa cientfica desconhecimento se tornarconhecimento. No entanto, como argumentarei aqui, outras partes do mundo natural permaneceroocultas, inevitavelmente desconhecveis, mesmo quando consideramos que algo que hojedesconhecvel possa no s-lo no futuro. (Usarei a palavra incognoscvel para designar algo queest alm da nossa capacidade ou habilidade de compreenso, algo inescrutvel, algo que no s desconhecido mas tambm incompreensvel. Outra palavra que usarei com o mesmo sentido desconhecvel. Note que sempre que me refiro ao conhecimento tenho em mente o conhecimentocientfico. Portanto, por incognoscvel refiro-me ao que est alm do alcance da cincia e de seus

  • mtodos.) Buscamos conhecimento, sempre mais conhecimento, mas precisamos aceitar que estamos,e permaneceremos, cercados por mistrios.

    Essa viso nada tem de anticientfica ou derrotista. Tambm no se trata de uma proposta para quesucumbamos ao obscurantismo religioso. Pelo contrrio, o impulso criativo, o desejo que temos desempre querer saber mais, vem justamente do flerte com o mistrio, da compulso que temos de iralm das fronteiras do conhecido. O no saber a musa do saber.

    O mapa do que chamamos de realidade um mosaico de ideias em constante mutao. Em A ilhado conhecimento, seguiremos esse mosaico atravs da histria do pensamento ocidental, retraandoas transformaes de nossa viso de mundo desde o passado remoto at o presente, em trs partesdistintas porm complementares. Em cada uma delas, busco iluminar vrios pontos de vistafilosficos e cientficos, sempre com a inteno primeira de examinar como mudanas conceituaisinformam nossa busca pelo conhecimento e por uma melhor compreenso da condio humana.

    A Parte I dedicada ao cosmos, sua origem e natureza fsica, e aos vrios modos como nossanarrativa csmica, sempre em transformao, nos ajuda a compreender a natureza do tempo, doespao, da energia e nosso lugar no Universo. Na Parte II, exploramos a natureza da matria e acomposio material do mundo, desde as aspiraes alqumicas do passado at as ideias maismodernas sobre as bizarras propriedades do mundo quntico. Em particular, investigaremos comoessas ideias influenciam nossa compreenso da essncia da realidade e do nosso papel, enquantoobservadores, em defini-la. Na Parte III, exploramos o mundo da mente, dos computadores e damatemtica, analisando em particular como estes informam nossa discusso sobre os limites doconhecimento e da natureza da realidade. Como veremos, ao alinhar a cincia com a falibilidade e ainquietude humana, os limites do conhecimento e da viso cientfica de mundo contribuem de formaessencial para a riqueza de nossa busca por sentido e para uma compreenso mais profunda daquesto humana e dos dilemas da existncia.

    * * *

    Enquanto escrevo estas linhas, uma coreografia ainda misteriosa aciona milhes de neurnios emmeu crebro. Pensamentos emergem e so expressos como palavras e frases, que uma coordenaoextremamente detalhada entre meus olhos e os msculos de minhas mos e braos me faz digitar emmeu laptop. Algo est no controle, uma entidade que chamamos de mente. No momento, estouvoando a uma altitude de 10 mil metros, retornando de um documentrio que gravei em Los Angeles.O tema era o universo conhecido, explorando as incrveis descobertas e feitos da cincia moderna,em particular da astronomia e da cosmologia. Olhando pela janela, vejo nuvens brancas flutuando e ofirmamento azulado acima. Ao mesmo tempo, escuto o ronco dos jatos e sinto o batuque de meu (mal-

  • educado) vizinho de assento, ouvindo seu iPod e pouco ligando para os que esto ao seu lado.Nossa percepo do mundo, conforme nos ensinam as cincias neurocognitivas, sintetizada em

    partes diferentes de nossos crebros. O que chamamos de realidade resulta da integrao deincontveis estmulos coletados pelos nossos cinco sentidos, trazidos do mundo exterior para nossascabeas pelo sistema nervoso. A cognio que no momento defino como a conscincia que temosde estar aqui agora fabricada por um vasto nmero de substncias qumicas fluindo porincontveis conexes sinpticas interligando nossos neurnios. Eu sou, e voc , uma cadeia dereaes eletroqumicas sustentada por uma extensa rede de clulas biolgicas. Porm, sabemos quesomos muito mais do que apenas bioqumica e eletricidade em ao. Eu sou eu e voc voc; esomos diferentes, mesmo se feitos da mesma matria. A cincia moderna removeu o velho dualismocartesiano entre matria e alma em favor de um materialismo estrito: o teatro da existncia se d nocrebro uma vasta rede de neurnios que, tal qual as luzes em uma rvore de Natal, permanece ematividade incessante.

    Entendemos pouco de como essa coreografia neuronal nos engendra com um senso nico de ser.Vivemos nosso dia a dia convencidos de que somos distintos e separados do que existe nossa voltae usamos esta convico para criar uma viso objetiva da realidade. Sei que no sou voc e que nosou a cadeira onde me sento. Posso me distanciar de voc e da cadeira, mas no posso me distanciarde meu corpo. (A menos que esteja vivendo alguma espcie de transe, algo que deixo de lado porora.) Sabemos, tambm, que nossa percepo da realidade severamente incompleta. Muito do queocorre nossa volta passa despercebido pelos nossos sentidos. Produto de milhes de anos deevoluo, o crebro cego e surdo para informaes que no aumentariam as chances desobrevivncia de nossos antepassados. Por exemplo, trilhes de neutrinos provenientes do coraodo Sol atravessam nossos corpos a cada segundo; ondas eletromagnticas de todos os tipos micro-ondas, ondas de rdio, infravermelho, ultravioleta transportam informao que nossos olhos noveem; sons alm do alcance de nossa audio passam despercebidos; partculas de poeira e bactriasso invisveis. Como a Raposa disse ao Pequeno Prncipe na fbula de Saint-Exupry, O essencial invisvel aos olhos.

    No h dvida de que instrumentos de medio ampliam nossa viso, seja ela do muito pequenoou do muito distante, nos permitindo ver bactrias, radiao eletromagntica, partculassubatmicas e estrelas explodindo a bilhes de anos-luz de distncia. Aparelhos de alta tecnologiapermitem que mdicos visualizem tumores dentro de nossos pulmes e crebros, e que gelogoslocalizem jazidas subterrneas de petrleo e minrios. No entanto, qualquer tecnologia de medioou de deteco tem alcance e preciso limitados. Uma balana mede nosso peso com preciso dadapela metade de sua menor graduao: se a escala espaada por 500 gramas, s podemos aferirnosso peso com preciso de 250 gramas. No existe uma medida exata: toda medida deve serexpressa dentro da preciso do instrumento usado e o faz com barras de erro, estimando suapossvel variao. (Nesse exemplo da balana, uma medida de peso de 70 quilos deve ser expressa

  • como 70 0,25 kg.) Medidas de alta preciso so simplesmente mensuradas com pequenas barras deerro ou com alto grau de confiana. No existem medidas perfeitas, sem erro.

    Considere, agora, um exemplo menos prosaico do que balanas: os aceleradores de partculas.So mquinas desenhadas para estudar a composio da matria, procurando pelos menores tijolosque constituem tudo o que existe no mundo.1 Aceleradores de partculas convertem a energia demovimento (energia cintica) de partculas viajando a velocidades prximas da velocidade da luz emnovos pedaos de matria. Essa converso descrita pela famosa frmula de Einstein, E = mc2, queexpressa a equivalncia entre energia e matria. (Incluindo, tambm, o aumento da massa com avelocidade.) Para efetuar tal converso, os aceleradores atuam de forma violenta, promovendocolises entre partculas de matria. Afinal, como saber o que existe dentro de um prton se nopodemos cort-lo com uma faca, como fazemos com uma laranja? A soluo colidir prtons avelocidades altssimas e estudar os estilhaos que voam para todos os lados aps a coliso. Alis,podemos usar a mesma tcnica para estudar a composio das laranjas: basta jogar uma contra outraa altas velocidades para ver o suco, caroos e bagao escapando do interior. Quanto maior avelocidade (ou energia) das laranjas, mais aprendemos com o experimento: por exemplo, apenas ascolises a altas velocidades revelam a existncia de caroos. Mais dramaticamente, algumascolises a velocidades bem altas podem at quebrar os caroos, expondo seu interior. Eis um pontoessencial: quanto maior a energia da coliso, mais aprendemos sobre a composio da matria.2

    Durante os ltimos cinquenta anos, aceleradores passaram por enormes transformaestecnolgicas, que resultaram em um aumento substancial da energia das colises. Por exemplo, aspartculas radioativas que Ernest Rutherford usou em 1911 para estudar a estrutura do ncleoatmico tinham energia cerca de um milho de vezes menor do que a que hoje obtida no GrandeColisor de Hdrons (do ingls Large Hadron Collider, ou LHC), o gigantesco acelerador departculas localizado em Genebra, na Sua, e operado pelo CERN, o laboratrio europeu de fsicade partculas. S em sonhos Rutherford poderia ter imaginado que um dia fsicos sondariam anatureza da matria to profundamente, encontrando partculas elementares com massas cem vezesmaiores do que a do prton.3 Um exemplo recente o do famoso bson de Higgs, encontrado noCERN em julho de 2012. (Por coincidncia, escrevo estas linhas no mesmo dia em que os fsicosPeter Higgs e Franois Englert receberam o Prmio Nobel por terem previsto a existncia do bsonde Higgs.) Se fundos forem adequados para a construo de futuros aceleradores uma incgnita nomomento, dado o alto preo dessas mquinas , a expectativa de que novas tecnologias permitiroo estudo de processos a energias ainda mais altas, produzindo resultados inusitados e, talvez, atrevolucionrios.

    No entanto, e este um ponto essencial, a tecnologia que abre janelas para mundos ocultostambm limita o quanto podemos aprender sobre a realidade fsica: instrumentos determinam oquanto podemos medir e, portanto, o quanto cientistas podem aprender sobre o Universo e sobre nsmesmos. Sendo invenes humanas, instrumentos dependem de nossa criatividade e dos recursos

  • disponveis, como tecnologias, fontes de energia etc. A tendncia que a preciso aumente sempre e,com isso, ocasionalmente descubramos o inesperado. Como exemplo, cito a surpresa de Rutherfordquando seus experimentos revelaram que no s o ncleo atmico ocupa uma frao nfima dovolume do tomo como tambm possui quase que toda sua massa. O mundo dos tomos e daspartculas subatmicas de Rutherford e seus colegas no incio do sculo XX era muito distinto do dehoje. Podemos estar certos de que, em cem anos, a fsica subatmica tambm vai ser bem diferentedo que atualmente. Restringindo, por ora, meu argumento a experimentos cientficos, podemosestudar apenas fenmenos que ocorrem a energias acessveis. Sendo assim, pouco podemos afirmarcom certeza acerca das propriedades da matria a energias milhares de vezes mais altas do que asdos estudos atuais. Teorias podem especular sobre o que ocorre a essas energias altssimas e atoferecer argumentos convincentes usando princpios estticos baseados no que ou no eleganteou simples. Porm, a essncia das cincias empricas que a ltima palavra sempre da Natureza:ela pouco se importa com nossos sonhos de perfeio ou beleza esttica, algo que exploreidetalhadamente em meu livro Criao imperfeita. Sendo assim, se nosso acesso Natureza limitado pelos nossos instrumentos e, mais sutilmente, pelos nossos mtodos de investigao,conclumos que nosso conhecimento do mundo natural necessariamente limitado.

    Fora essa limitao tecnolgica, nos ltimos duzentos anos avanos na fsica, na matemtica e,mais recentemente, nas cincias da computao nos ensinaram que a prpria Natureza tem umcomportamento esquivo do qual no podemos escapar. Como veremos em detalhes, nossoaprendizado do mundo limitado no s pelo alcance de nossos instrumentos de explorao, mastambm, e de forma essencial, porque a prpria Natureza ao menos como ns a percebemos opera dentro de certos limites. O filsofo grego Herclito j havia percebido isso quando escreveu,25 sculos atrs, que A Natureza ama esconder-se. Os sucessos e fracassos de inmeros cientistasmostram que no podemos vencer esse jogo de esconde-esconde. Adaptando uma imagem do escritore pensador ingls Samuel Johnson, considerado por muitos o nome de maior distino da literaturainglesa, que expressava sua frustrao em definir o sentido de certos verbos em ingls, como setentssemos pintar o reflexo de uma floresta na superfcie de um lago em meio a uma tempestade.

    Consequentemente, e a despeito de nossa eficincia sempre crescente, uma grande frao domundo natural permanece oculta ou, mais precisamente, no detectada. Essa miopia, porm, no deveser vista como uma barreira intransponvel mas como uma provocao, um desafio nossaimaginao: limites so oportunidades de crescimento e no obstculos intransponveis. Comoescreveu o genial pensador francs Bernard le Bovier de Fontenelle, em 1686, Queremos ver almdo que podemos enxergar.4 O telescpio que Galileu apontou para os cus em 1609 mal podiadiscernir os anis de Saturno, que hoje podem ser vistos com telescpios de fundo de quintal. O quesabemos do mundo vem daquilo que podemos detectar e medir. Vemos muito mais do que Galileu,mas no vemos tudo. Sofremos de uma miopia incurvel. E essa restrio no se limita aobservaes: teorias e modelos especulativos que extrapolam em direo a cantos inexplorados da

  • realidade fsica devem basear-se no conhecimento atual. Quando cientistas no tm dados para guiara intuio, impem critrios de compatibilidade: qualquer teoria que tem como objetivo extrapolaro conhecido deve reproduzir, no limite correto, o conhecimento atual. A teoria da relatividade geralde Einstein, por exemplo, que descreve a gravidade como resultado da curvatura do espao-tempodevido presena de matria (e energia lembre-se de E = mc2), se reduz velha teoria de Newtonda gravitao universal quando a gravidade fraca: para lanar foguetes a Jpiter no precisamos dateoria de Einstein; mas buracos negros no fazem sentido sem ela.

    Se uma grande parte do mundo permanece invisvel ou inacessvel, devemos refletir sobre osignificado da palavra realidade com muito cuidado. Precisamos considerar se existe algo comouma realidade ltima o substrato mais fundamental de tudo o que existe e se, em casoafirmativo, temos como capturar a sua essncia. Note que no chamo esta realidade ltima de Deusporque, ao menos na maioria das religies, a natureza divina inescrutvel. Tampouco objeto deestudo cientfico. Note, tambm, que no equaciono a realidade ltima com uma das vrias noesfilosficas orientais de uma realidade transcendente, como o estado de nirvana, o conceito deBrahman da filosofia hindu Vedanta ou o conceito de Tao. Por ora, considero apenas a natureza maisconcreta da realidade fsica, que podemos, ao menos em princpio, examinar atravs dos mtodos dacincia. Sendo assim, precisamos nos perguntar se a compreenso da natureza mais fundamental darealidade apenas questo de ampliarmos os limites da cincia ou se precisamos abandonar essasuposio e aceitar que o conhecimento cientfico tem limites.

    Eis outro modo de refletir sobre isso: se algum percebe o mundo apenas atravs de seus sentidos(como a maioria das pessoas), enquanto outra pessoa amplia sua percepo atravs do uso deinstrumentos diversos, quem tem um senso mais verdadeiro da realidade? Enquanto um vbactrias microscpicas, galxias distantes e partculas subatmicas, para o outro estas entidades noexistem. Obviamente, se ambos baseiam seu conceito de realidade no que percebem, concluiro quesuas vises de mundo so profundamente diferentes. Quem est certo?

    Mesmo que seja claro que a pessoa usando instrumentos tenha uma viso mais completa eprofunda da realidade, a pergunta no faz muito sentido. De fato, ter uma viso mais abrangente domundo e, com isso, construir uma narrativa mais completa da realidade percebida e de nossolugar nela a motivao central para ampliarmos as fronteiras do conhecimento. o que tanto osgregos da Antiguidade fizeram e o que os cientistas do presente tentam fazer, mesmo que suas visesde mundo sejam to distintas. O pensador francs de Fontenelle sabia bem disso quando escreveuque Toda a filosofia baseia-se em apenas duas coisas: curiosidade e miopia.5 Muito do quefazemos nas diversas reas do conhecimento no passa de tentativas distintas e complementares dealiviar nossa miopia perene.

    O que chamamos de real depende do quo profundamente podemos investigar a realidade.Mesmo se algo como uma realidade ltima existir, podemos conhecer apenas alguns de seusaspectos. Vamos supor que, em um futuro distante, uma teoria genial, com o suporte de experimentos

  • revolucionrios, consiga fazer inferncias sobre aspectos dessa realidade ltima. (Como vamosusar o termo realidade ltima no decorrer deste livro, daqui por diante retiro as aspas.) O poucoque poderemos vislumbrar da realidade ltima no nos permitir compreend-la por inteiro. comose estivssemos caminhando no alto de uma montanha, envoltos por espessa neblina, tentandodistinguir os detalhes da paisagem no vale abaixo. No mximo, podemos dizer que a teoria propostafaz sentido parcialmente. A metodologia que usamos para estudar a Natureza, baseada eminstrumentos com alcance limitado, no nos permite provar ou refutar hipteses sobre a natureza darealidade ltima. Frisando esse argumento, nossa concepo do real evolve com os instrumentos queusamos para estudar a Natureza. Gradualmente, coisas que eram desconhecidas tornam-seconhecidas. Por isso, o que chamamos de realidade est sempre mudando. O cosmos de Pedrolvares Cabral, com a Terra esttica no centro de um espao finito, era radicalmente diferente docosmos de Isaac Newton, onde o Sol era o centro do sistema solar e o espao, infinito. Por outrolado, Newton ficaria pasmo com o Universo de hoje, onde centenas de bilhes de galxias afastam-seumas das outras carregadas pela expanso do espao. At Einstein ficou pasmo com isso.

    A verso da realidade que chamamos de verdadeira em um determinado perodo da histria nocontinuar a s-lo em outra. Claro, as leis de Newton continuaro a funcionar perfeitamente dentro deseu limite de aplicabilidade e a gua continuar a ser composta por hidrognio e oxignio, ao menossegundo a descrio atual do mundo dos tomos. Mas essas so explicaes que criamos paradescrever nossas observaes do mundo natural, que servem muito bem ao seu propsito quandoaplicadas corretamente. No entanto, dado que nossos instrumentos avanam sempre, a realidade deamanh necessariamente incluir entidades que no imaginamos existir hoje, sejam elas objetosastrofsicos, partculas elementares ou bactrias. Essencialmente, enquanto a tecnologia progredir e no h razo para supor que, salvo algum cataclismo, isso deixar de ocorrer , no podemosantever o fim dessa busca: a crena de que existe uma verdade final uma fantasia, um fantasmacriado pela nossa imaginao.

    Considere, portanto, que a totalidade de nosso conhecimento acumulado constitua uma ilha, que euchamo de Ilha do Conhecimento. Por conhecimento refiro-me principalmente ao conhecimentocientfico e tecnolgico, embora a Ilha tambm possa incluir as criaes artsticas e culturais dahumanidade no decorrer da histria. A Ilha do Conhecimento cercada por um vasto oceano, oinexplorado Oceano do Desconhecido, onde, inevitavelmente, ocultam-se inmeros mistrios. Maistarde, examinaremos se esse oceano estende-se at o infinito ou no. Por ora, basta imaginarmos quea Ilha do Conhecimento cresce a cada vez que descobrimos algo mais sobre o mundo e sobre ns.Muitas vezes, esse crescimento faz um percurso incerto, refletido na regio costeira da Ilha, cujageografia dramtica representa a fronteira entre o conhecido e o desconhecido. O crescimento podeat retroceder, quando ideias que achvamos corretas tm de ser abandonadas luz de novasdescobertas.

    O crescimento da Ilha tem uma consequncia to surpreendente quanto essencial. Seria razovel

  • supor que, quanto mais sabemos sobre o mundo, mais perto estaramos de um destino final, quealguns chamam de Teoria de Tudo e outros de realidade ltima. No entanto, inspirados pela nossaimagem, vemos que, quando a Ilha do Conhecimento cresce, nossa ignorncia tambm cresce,delimitada pelo permetro da Ilha, a fronteira entre o conhecido e o desconhecido: aprender maissobre o mundo no nos aproxima de um destino final cuja existncia no passa de uma suposioalimentada por esperanas infundadas , mas, sim, leva a novas perguntas e mistrios. Quanto maissabemos, melhor entendemos a vastido de nossa ignorncia e mais perguntas somos capazes defazer, perguntas que, previamente, nem poderiam ter sido sonhadas.6

    Alguns de meus colegas do mundo da cincia criticam essa viso do conhecimento, considerando-a negativa. Fui at acusado de derrotista, o que terrivelmente equivocado, dado que proponhoexatamente o oposto, uma celebrao dos grandes feitos da humanidade, resultados da nossa buscainsacivel pelo conhecimento. Se nunca chegaremos a uma resposta final, para que continuartentando?, perguntam alguns. E como voc sabe que est certo?, insistem outros. Este livro umaresposta a essas (e outras) perguntas. Mas, s para comear, quando exploramos a natureza doconhecimento humano, ou seja, quando investigamos como tentamos compreender o mundo e entendernosso lugar nele, vemos logo que nossa abordagem tem um alcance necessariamente limitado. Essarevelao deveria abrir portas e no fech-las, visto que ilustra o carter aberto da busca peloconhecimento que, em sua essncia, um flerte insacivel com o desconhecido. O que pode ser maisinspirador do que saber que sempre teremos algo de novo para aprender sobre o mundo natural, que,independente do quanto sabemos, sempre existir lugar para o inesperado? Segundo esse ponto devista, derrotista a noo de que nossa busca tem um ponto de chegada e que, eventualmente,chegaremos l. Seria a morte do esprito humano, alimentado como pela dvida. Parafraseando odramaturgo Tom Stoppard em sua pea Arcadia, o querer saber que nos torna relevantes.

    Novas descobertas iluminam cantos aqui e ali, mas no alcanam a escurido das regies maisdistantes. O modo como cada pessoa escolhe se relacionar com essa escurido define ao menosde forma geral como cada um v a vida e seus mistrios: ou a razo aos poucos conquistar odesconhecido, iluminando tudo, ou no. Se isso no acontecer, algo alm da razo necessrio paraauxiliar nossa ignorncia algo que, com frequncia, envolve a crena em explicaessobrenaturais. Se essas fossem as nicas alternativas, ficaramos apenas com a infeliz polarizaoentre o cientismo e o sobrenaturalismo, que tanto define nossa era. (Por cientismo entendo acrena de que a cincia o nico modo de explicao possvel; por sobrenaturalismo entendo acrena de que explicaes para alguns dos mistrios que nos cercam necessitam de entidadessobrenaturais, isto , que existem alm do natural.) Em contrapartida a essa dicotomia, proponho umterceiro caminho, baseado no casamento entre a busca por explicaes cientficas do mundo natural ea busca pelo sentido, sem a falsa crena de que a Natureza compreensvel em sua totalidade ou empromessas infundadas de verdades eternas.

    Enquanto a cincia avanar, aprenderemos mais sobre o mundo natural. Por outro lado, teremos

  • tambm mais a aprender. Novos instrumentos de explorao potencialmente levam a novas perguntas,que, com frequncia, nem poderamos ter imaginado antes disso. Para mencionar dois exemplosfamosos, considere a astronomia antes do telescpio (1609) e a biologia antes do microscpio(1674): ningum poderia ter antevisto as revolues que esses dois instrumentos e seusdescendentes provocariam.

    Essa existncia incerta a alma da cincia, que precisa falhar para avanar. Teorias precisam serquebradas, suas limitaes precisam ser expostas. Ao acessar a Natureza em maior profundidade,instrumentos de explorao abrem novas janelas para o mundo, expondo a fragilidade das teoriasvigentes, permitindo que novas ideias venham tona. No entanto, no devemos concluir que esseprocesso de descoberta tenha um fim. Conforme veremos, o conhecimento cientfico tem limitaesessenciais; algumas questes esto alm de nosso alcance. Isso significa que certos aspectos daNatureza permanecero inacessveis aos nossos mtodos. Mais at do que inacessveis incognoscveis.

    importante deixar claro que expor os limites da cincia no implica, de forma alguma, apoiar oobscurantismo. Pelo contrrio, esboo aqui uma autocrtica da cincia que, a meu ver, se fazextremamente necessria em uma poca em que a arrogncia e a especulao cientfica sopropagadas sem qualquer controle. Ao descrever os limites das explicaes cientficas, minhainteno proteger a cincia de ataques sua integridade intelectual. Busco, tambm, mostrar como aignorncia, e no o conhecimento, a mola propulsora da criatividade cientfica. Conforme escreveuo neurocientista americano Stuart Firestein em seu recente livro Ignorncia: como ela impulsiona acincia, pedidos de bolsa de pesquisa so, antes de mais nada, relatrios sobre nossa ignornciaatual nesse ou naquele determinado assunto. Declarar que a verdade foi encontrada um fardopesado demais para cientistas carregarem. Aprendemos com o que podemos medir. A enormidade doque foge aos nossos instrumentos, o mistrio que nos cerca, deveria inspirar um profundo senso dehumildade. O que importa o que no sabemos.

    Nossa percepo da realidade baseia-se na separao artificial entre sujeito e objeto. Talvezvoc saiba onde voc termina e o mundo l fora comea; ou, ao menos, acha que sabe. Porm,como veremos, a questo bem mais complexa do que parece. Cada pessoa tem uma perspectivanica do mundo. Por outro lado, a cincia o mtodo mais concreto que temos para criar umalinguagem universal, capaz de transcender diferenas individuais. Vamos, ento, explorar a Ilha doConhecimento e desbravar suas terras at depararmos com o mar. L chegando, poderemosvislumbrar o desconhecido e, com esforo e coragem, o que est ainda mais alm.

  • PARTE I

    A Origem do Mundo e a Natureza dos Cus

  • No incio, Deus criou a Terra e em Sua solido csmica olhou para ela.E Deus disse Farei do barro criaturas vivas, para que o barro possa ver o que fiz.

    E Deus criou toda criatura que agora se move, e uma foi o homem. Dentre elas, apenas o barro como homempodia falar.

    O barro como homem sentou-se, olhou em torno e falou. Qual o propsito disso tudo?,perguntou educadamente a Deus, que se aproximava.E tudo precisa ter um propsito?, perguntou Deus.

    Certamente, disse o homem.Ento deixo que voc pense em um para tudo isso, disse Deus.

    E, com isso, Ele se foi.

    KURT VONNEGUT, Cama de gato (Cats Cradle)

    So perguntas sem respostas que definem os limites das possibilidades humanas, que descrevem as fronteiras daexistncia humana.

    MILAN KUNDERA, A insustentvel leveza do ser

    O homem sempre foi o seu problema mais angustiante.

    REINHOLD NIEBUHR, A natureza e o destino do homem

  • 1 Temos que acreditar(Onde exploramos o papel da crena e da extrapolao na religio e na criatividade cientfica)

    Ser que podemos entender o mundo sem algum tipo de crena? Esta uma pergunta central nadicotomia entre a cincia e a f. De fato, o modo como um indivduo escolhe responder a eladetermina, em grande parte, como se relaciona com o mundo e a vida em geral. Contrastando asexplicaes mticas e cientficas da realidade, podemos dizer que mitos religiosos buscam explicar odesconhecido com o desconhecvel, enquanto a cincia busca explicar o desconhecido com oconhecvel. Muito da tenso entre a cincia e a f vem da suposio de que existem duas realidadesmutuamente incompatveis, uma dentro deste mundo (e, portanto, conhecvel atravs da aplicaodiligente do mtodo cientfico) e outra fora dele (e, portanto, desconhecvel, relacionadatradicionalmente crena religiosa).1

    Nos mitos, o incognoscvel refletido na natureza dos deuses, cuja existncia transcende asfronteiras do espao e do tempo. Nas palavras do historiador da religio Mircea Eliade,

    Para o australiano bem como para o chins, o hindu e o campons europeu, os mitos so a verdade porque so sagrados, porquetratam de entidades e eventos sagrados. Consequentemente, ao recitar ou ouvir um mito, o crente estabelece contato com osagrado e com a realidade e, com isso, transcende a condio profana, a situao histrica.2

    Mitos religiosos permitem que os que neles creem transcendam sua situao histrica, aperplexidade que sentimos ao compreendermos que somos criaturas delimitadas pelo tempo, cada umcom uma histria que tem um comeo e um fim. Em um nvel mais pragmtico, explicaes mticas defenmenos naturais so tentativas pr-cientficas de dar sentido quilo que existe alm do controlehumano, dando respostas a perguntas que parecem irrespondveis. Por que o Sol cruza os cus todosos dias? Para os gregos, porque Apolo transporta diariamente o astro em sua carruagem de fogo. Paraos navajo do sudoeste norte-americano, era Jhonaa que carregava o Sol nas costas. Para osegpcios, a tarefa era de R, que transportava o Sol em seu barco. A motivao por trs dessasexplicaes no to diferente daquela da cincia, j que ambas tentam de alguma forma revelar osmecanismos por trs dos fenmenos naturais: afinal, tanto deuses quanto foras fsicas fazem coisasacontecer, mesmo que de formas radicalmente distintas.

    Tanto o cientista quanto o crente acreditam em causas no compreendidas, ou seja, em coisas que

  • ocorrem por razes desconhecidas, mesmo que a natureza da causa seja completamente diferentepara cada um. Nas cincias, o papel dessa crena fica bem claro quando tentamos extrapolar umateoria ou modelo de seus limites testados. Por exemplo, quando afirmamos que a gravidade age domesmo modo em todo o Universo (no temos evidncia de que isso correto pois no exploramostodo o Universo) ou que a teoria da evoluo por seleo natural aplicvel a todas as formas devida, inclusive s extraterrestres (tambm no temos evidncia de que isso correto pois noencontramos ainda vida extraterrestre), essas extrapolaes so cruciais para avanar oconhecimento, permitindo que cientistas possam explorar territrios desconhecidos. Dado o vastopoder das teorias cientficas em explicar o mundo natural, essa atitude dos cientistas perfeitamenterazovel. Podemos at dizer, mesmo que um pouco impropriamente, que esse tipo de crenacientfica empiricamente validada.3 A grande vantagem da cincia que essas extrapolaes sotestveis e podem ser refutadas caso estejam erradas.

    Eis um exemplo. Em 1686, Isaac Newton publicou sua magnfica obra Princpios matemticos dafilosofia natural, ou Principia, onde apresenta sua teoria da gravitao universal. No entanto, em umsenso mais restrito, a teoria deveria ser chamada de teoria da gravitao no sistema solar, dadoque, no sculo XVII, no havia testes ou observaes alm dos seus confins espaciais. Mesmo assim,Newton chamou o Livro III de O sistema do mundo, supondo que sua descrio da atraogravitacional como uma fora proporcional quantidade de massa em dois corpos que decai com oquadrado da distncia entre eles seria aplicvel ao mundo inteiro, isto , ao cosmos. Nas suasprprias palavras:

    Portanto, se experimentos e observaes astronmicas estabelecem que todos os corpos sobre ou prximos Terra so atradosgravitacionalmente por ela em proporo quantidade de matria em cada corpo, e se a Lua atrada pela Terra em proporo sua matria, e se nossos oceanos, por sua vez, gravitam em direo Lua, e se todos os planetas atraem-se mutuamente, e seexiste uma atrao gravitacional semelhante dos cometas em direo ao Sol, temos que concluir desta terceira regra que todos oscorpos atraem-se gravitacionalmente.4

    Astutamente, Newton evitou especular sobre a causa da gravidade, ou seja, sobre a origem dessaatrao entre corpos com massa: No avano hipteses, afirmou. Para ns, suficiente que agravidade de fato exista, e que aja de acordo com as leis que explicamos, dando conta de forma clarados movimentos dos corpos celestes e do nosso mar, escreveu no Sumrio Geral do Principia.Newton no sabia por que massas atraem-se mutuamente, mas sabia como. O Principia um livroque se preocupa com os comos e no com os porqus.

    Mais tarde, em carta de 10 de dezembro de 1692 ao telogo Richard Bentley, da Universidade deCambridge, Newton estendeu a ao da fora da gravidade para especular que o universo fosseinfinito, um ponto de transio essencial na histria do pensamento cosmolgico. Bentley perguntou aNewton se a atrao gravitacional entre os corpos celestes no faria com que toda a matria do

  • cosmos terminasse em uma grande bola no centro. Newton concordou que esse poderia ser o caso seo cosmos fosse finito. No entanto, escreveu, se a matria fosse distribuda pelo espao infinito, nose acumularia em apenas uma massa central, mas em infinitas massas isoladas, concentradas aqui eali, e separadas por enormes distncias na vastido infinita do cosmos. Portanto, a crena deNewton na natureza universal da gravidade levou-o a especular sobre a extenso espacial do cosmoscomo um todo.

    Pouco mais de dois sculos aps a publicao do Principia, Einstein fez algo semelhante. Na suateoria da relatividade geral, que formulou em verso final em 1915, foi alm de Newton, atribuindo agravidade curvatura do espao em torno de um corpo massivo (e do tempo, mas vamos deixar issode lado por ora): quanto maior a massa, mais o espao curva-se sua volta, como a superfcie deuma cama elstica que se curva um pouco mais ou um pouco menos de acordo com quem est sobreela. Com isso, Einstein eliminou a misteriosa ao a distncia que Newton usou para explicar aatrao gravitacional entre corpos distantes. (Como o Sol e a Terra, ou a Terra e a Lua, atraem-semutuamente sem se tocar? Que efeito esse capaz de se propagar pelo espao como um fantasma?)Em um espao curvo, as trajetrias dos objetos no so mais linhas retas. Para ver isso, basta jogaruma bolinha de gude sobre uma cama elstica (ou colcho) deformada por algum peso: quanto maisprxima da regio curva a bolinha passar, mais sua trajetria se desviar de uma linha reta.

    Einstein nunca ofereceu uma explicao sobre por que massas tm esse efeito sobre a curvatura doespao. Imagino que, como Newton, teria respondido No avano hipteses. Para ele, bastava quesua teoria funcionasse, explicando coisas que a teoria de Newton no podia, conforme foidemonstrado em vrios testes observacionais.

    Em 1917, menos de dois anos aps ter publicado a teoria da relatividade geral, Einstein escreveuum artigo revolucionrio, intitulado Consideraes cosmolgicas sobre a teoria da relatividadegeral. Nele, tal como Newton, extrapolou a validade de sua teoria, que na poca era testada apenasnos confins do sistema solar, para o Universo como um todo. Seu objetivo era obter a formageomtrica do cosmos. Inspirado por ideias oriundas de Plato e seus seguidores, Einstein sups queo Universo tivesse a forma mais perfeita que existe, a de uma esfera. Por convenincia, sups,tambm, que o Universo fosse esttico, o que era razovel na poca, dado que no existiam aindaindicaes claras de que o Universo mudasse no tempo. Ao resolver suas equaes, obteve ouniverso que queria, esttico e com a forma de uma esfera. Porm, a soluo veio com uma surpresa:tal como no caso da gravidade de Newton, em um universo esfrico e, portanto, finito, a matriaconvergiria para um ponto central. Para resolver esse dilema, Einstein no optou por um universoespacialmente infinito, como fizera Newton. Como soluo, props a existncia de uma constanteuniversal, que adicionou s equaes descrevendo a curvatura do espao. Einstein notou que se ovalor numrico dessa constante fosse suficientemente pequeno ela seria compatvel com aspropriedades do sistema solar, isto , no criaria efeitos que contradiriam as observaes da poca.Essa constante, que no justificada pelo conhecimento atual da gravitao, segundo Einstein, hoje

  • chamada de constante cosmolgica. Surpreendentemente, pode ter um papel essencial nadinmica csmica, se bem que bastante diferente daquele inicialmente proposto por Einstein, ondegarantia a estabilidade de seu universo esfrico e esttico. (A constante age contrariamente atraogravitacional, de modo a contrabalanar a tendncia ao colapso.) Confirmando a f em sua teoria,Einstein no s extrapolou suas equaes do sistema solar para o Universo inteiro, como, tambm,imps a existncia de uma nova entidade hipottica cuja funo era equilibrar o cosmos.

    Para avanar alm do conhecido, tanto Newton quanto Einstein assumiram riscos intelectuais,baseando-se em suposies inspiradas na sua intuio e preconceitos. Mesmo sabendo que suasteorias tinham limitaes e eram necessariamente incompletas, sua coragem ilustra o poder da crenano processo criativo de dois dos maiores cientistas de todos os tempos. Toda pessoa engajada noavano do conhecimento faz o mesmo.

  • 2 Alm do espao e do tempo(Onde exploramos como as diferentes religies confrontam a questo da origem de todas as coisas)

    Vamos voltar ao passado, antes do despertar das grandes civilizaes ao longo dos rios Tigre eEufrates, onde hoje o Iraque. Grupos de humanos, os caadores-coletores, lutavam contrapredadores e as foras da Natureza para sobreviver. Ao divinizar a Natureza, buscavam ter uma certadose de controle sobre o que era, em essncia, incontrolvel. Enchentes, secas, terremotos, erupesvulcnicas e maremotos fenmenos que certas companhias de seguro at hoje chamam de atosdivinos eram atribudos a deuses cuja ira precisava ser aplacada de alguma forma. Eranecessria uma linguagem, um dialeto comum entre o homem e as divindades, que aliviasse a enormediferena de poder entre a humanidade e as foras da Natureza. Na prtica, essa linguagem setraduziu em ritos e narrativas mticas, que estabeleciam uma relao entre o conhecido e oincognoscvel. Como as vrias ameaas sobrevivncia vinham do interior da Terra, da superfcie edos cus, os deuses tinham que estar em todos os lugares. A religio nasceu da necessidade de umcontrato social que regulasse o comportamento das pessoas e da reverncia pela fora inconcebvelda Natureza. muito provvel que qualquer ser pensante suponha que existam outros seres compoderes superiores aos seus, sejam eles deuses ou aliengenas. A alternativa, aceitar que desastresnaturais ocorrem ao acaso, sem uma premeditao divina, era aterrorizante demais para serconsiderada, j que exacerbava a incapacidade e a solido humanas ao confrontar o desconhecido.Para ter alguma chance de controlar o seu destino, o homem precisava acreditar.

    O medo no era a nica fora que levava crena no divino, embora possivelmente fosse aprincipal. Porm, importante ressaltar que nem tudo era tragdia. Coisas boas tambm ocorriam:uma boa safra, uma caada produtiva, o clima calmo, oceanos ricos em peixes e frutos do mar. ANatureza no era s ameaa; era generosa tambm, e muito. Nesse papel dual de doadora e tomadora,podia tanto manter as pessoas vivas quanto mat-las. Os fenmenos naturais refletiam (e refletem)essa polarizao, sendo tanto regulares e seguros (como o ciclo do dia e da noite, as estaes do ano,as fases da Lua, as mars) quanto irregulares e aterrorizantes (como os eclipses solares, os cometas,as avalanches e os incndios florestais). Portanto, no de todo surpreendente que a regularidade costumeiramente associada ao bem e a irregularidade, ao mal: com isso, os fenmenos naturaisganharam uma dimenso moral que, atravs da divinizao da Natureza, refletia diretamente as aesde deuses intangveis.

    Em todas as partes, culturas diferentes erigiram monumentos para celebrar e reproduzir a

  • regularidade dos cus. Na Inglaterra, os crculos de monlitos em Stonehenge demarcam oalinhamento da Pedra do Calcanhar com a posio do Sol no dia mais longo do ano, o solstcio devero. O monumento, usado como lugar funerrio e sacro, estabelecia uma relao entre o retornoperidico do Sol e o ciclo da vida e da morte dos homens. Ainda que os mecanismos por trs dosmovimentos cclicos dos cus fossem desconhecidos e no havia um desejo de compreend-los,ao menos como existe hoje , eram, mesmo assim, seguidos e registrados com dedicao ereverncia. A tradio astronmica dos babilnios, por exemplo, data de mais de 3 mil anos,refletida no seu mito de criao Enuma Elish (Quando Acima). Ao longo dos anos, astrnomos daBabilnia construram tabelas detalhando os movimentos dos planetas e da Lua atravs dos cus,anotando todas as regularidades observadas. Um exemplo a Tbua de Ammisaduqa, que registra aposio do planeta Vnus ao nascer e ao se pr durante 21 anos.

    A repetio acalma e conforta. Se a Natureza dana em um certo ritmo, talvez o mesmo se apliquea ns. Um tempo cclico traz a promessa de um renascimento, estabelecendo uma conexo profundaentre o homem e o cosmos: nossa existncia inseparvel da do mundo. No por acaso que o mito doeterno retorno ressurja em tantas culturas. Por que no crer que a morte no seja o final, mas o inciode uma nova existncia? Que a vida se repete em ciclos?

    Vejo a dor de meus filhos quando tentam entender a passagem do tempo e o fim da vida. Lucian,que tinha seis anos quando escrevi estas linhas, pensa obsessivamente sobre a morte desde os quatro.A morte parece absurda quando o tempo eterno. O que acontece depois que a gente morre? umapergunta que a maioria dos pais escuta. Lucian est convencido de que retornamos. S no sabe seretornamos a mesma pessoa ou outra. Sua preferncia, claro, que retornemos os mesmos, com osmesmos pais e irmos, essencialmente revivendo a vida ou, melhor ainda, revivendo-a por toda aeternidade. Caso contrrio, como lidar com a perda de uma pessoa amada? Com o corao partido,digo-lhe que o que ocorre conosco o mesmo que ocorre com a formiga que ele esmaga casualmentesob seus ps. Lucian no se convence. Como que voc sabe, papai? No tenho certeza, filho.Algumas pessoas acham que voltamos, outras que vamos para o Paraso, onde encontramos todos quej morreram. O problema que os que se foram no mandam notcias, no nos contam para ondeforam e para onde vamos. A conversa costuma terminar com um abrao bem apertado e muitasrepeties de eu te amo. Poucas coisas so to difceis quanto contar a um filho que no iremosviver para sempre e que, se as coisas seguirem o curso normal, ele ter que lidar com a nossa morte.

    * * *

    O advento do judasmo levou a um modo radicalmente diferente de se pensar sobre a natureza dotempo: em vez de ciclos de criao e destruio, de uma repetio da vida e da morte, o tempo

  • tornou-se linear, com apenas um comeo e um fim. A histria profana, conforme a atribuio deMircea Eliade, o que ocorre entre o nascimento e a morte, ou seja, a narrativa de nossas vidas.Com o tempo linear aumenta a angstia da existncia, j que, com apenas uma vida, temos uma nicachance de ser felizes. Para os cristos e muulmanos, a noo do Paraso se apresenta como sada,mesmo que para tal o tempo tenha que ter um aspecto dual, linear em vida e inexistente no Paraso.

    Linear ou cclico, o tempo uma medida de transformao. Se o seguirmos em direo ao futuro,chegaremos ao fim das narrativas; se o seguirmos ao passado, chegaremos ao incio delas. Em muitasdas narrativas mticas, os deuses existem fora do tempo, nunca envelhecendo ou adoecendo,enquanto os humanos existem dentro do tempo, sujeitos aos caprichos de sua passagem. Como vidaleva vida, na sucesso das geraes decorre uma histria que necessariamente comea com aprimeira vida, com a primeira entidade viva, seja ela bactria, homem ou animal. E aqui surge umaquesto essencial: como a primeira criatura surgiu, se nada vivo existia para d-la luz? O mesmotipo de raciocnio pode ser extrapolado para o mundo, entendido aqui como o cosmos por inteiro:como o mundo surgiu? A resposta mtica, na maioria dos casos, em essncia a mesma, salvovariaes locais: primeiro os deuses criaram o mundo para, ento, criar a vida. Apenas uma entidadeque existe fora do tempo pode originar o que existe dentro dele. Embora alguns mitos de criao,como os dos nativos maori da Nova Zelndia, indiquem que o cosmos possa ter surgido sem ainterferncia dos deuses, na maioria dos mitos o prprio tempo torna-se uma criao, que se originajuntamente com o mundo, conforme Santo Agostinho props nas Confisses (Livro XI, cap. 13):

    Visto que s o Criador de todos os tempos, se o tempo existira antes de criares o cu e a terra, por que dizem que deixas-Te detrabalhar ento? Nenhum tempo poderia passar antes que o houveste criado. De fato, se antes do cu e da terra o tempo noexistira, por que demandam o que fazias ento? Pois no havia o ento quando o tempo no existia.

    A origem do mundo e a origem do tempo so indissociveis da natureza dos cus, uma conexoque permanece verdadeira hoje, quando modelos cosmolgicos procuram descrever a origem doUniverso e astrofsicos estudam a origem das estrelas e das galxias. Conforme explorei em meulivro A dana do universo, no deveramos nos surpreender ao encontrarmos tanto o tempo linearquanto o tempo cclico nos modelos da cosmologia moderna. Talvez mais surpreendente seja oreaparecimento de uma caracterstica essencial dos mitos de criao do passado, a profunda relaoentre o homem e o cosmos, que, sugiro, est retornando ao pensamento astronmico atual, aps umlongo hiato ps-copernicano, quando nossa existncia era de interesse secundrio perante oesplendor material do Universo. Quando Coprnico e, mais efusivamente no incio do sculo XVII,Galileu Galilei e Johannes Kepler removeram a Terra do epicentro da Criao, o homem perdeu seustatus de criatura especial para tornar-se apenas um habitante dentre incontveis outros mundos, cadaqual com suas criaturas. Quatrocentos anos mais tarde, a busca por vida extraterrestre vem revelando

  • a raridade de planetas como o nosso e, mais criticamente, a importncia da vida humana.Consequentemente, o homem volta a ganhar relevncia csmica: importamos porque somos raros,agregados moleculares com a incrvel habilidade de refletir sobre a nossa existncia. Os muitospassos bioqumicos e genticos da no vida vida, seguidos de tantos outros que levaram da vidaunicelular vida multicelular complexa, so extremamente difceis de serem duplicados em outrosmundos. Ademais, os pormenores dependem crucialmente dos detalhes da histria do nosso planeta:se algum evento deixa de ocorrer por exemplo, a extino dos dinossauros isso muda a histriada vida. No significa que podemos concluir que no existam outras formas de vida inteligente emalgum canto do cosmos. O que podemos concluir com confiana que, caso aliengenas inteligentesexistam, so raros e esto muito longe de ns. (Ou, caso sejam comuns, certamente sabem esconder-se muito bem.) A verdade que, na prtica, estamos ss e devemos aprender a viver com nossasolido csmica e a explorar suas consequncias de forma construtiva.

    O desejo de conhecer nossas origens e lugar no cosmos uma das caractersticas que maisdefinem a nossa humanidade. Ao responder a esses anseios, mitos de criao do passado no so todiferentes da motivao que hoje leva cientistas a ponderar a criao quntica do Universo a partirdo nada ou apreciar se nosso Universo parte de um multiverso contendo um nmero incontvel deoutros universos. Obviamente, os detalhes das perguntas e de suas eventuais respostas socompletamente diferentes. Mas a motivao entender quem somos e compreender o sentido denossa existncia , em essncia, a mesma. Para os autores dos mitos de criao, a origem de todasas coisas apenas compreensvel atravs do sagrado, j que apenas o que existe fora do tempo podedar origem ao que existe no tempo, seja o cosmos ou suas criaturas. Para os que no acreditam querespostas a essas perguntas pertenam dimenso do sagrado, o desafio analisar de forma honestanossas explicaes racionais do mundo e tentar estabelecer at onde podem esclarecer a natureza darealidade e, mais ambiciosamente, at que ponto podem responder a questes sobre a origem detodas as coisas. Essa a nossa misso.

  • 3 Ser ou devir? Esta a questo(Onde encontramos os primeiros filsofos da Grcia Antiga e exploramos algumas de suas ideias sobre anatureza da realidade)

    Em torno do sculo VI a.C., uma profunda mudana de perspectiva ocorreu na Grcia Antiga. Emboraideias revolucionrias sobre a dimenso social e espiritual do homem tenham aparecido durante amesma poca na China, com Confcio e Lao Ts, e na ndia, com Sidarta Gautama, o Buda, naGrcia que nos deparamos com o nascimento da filosofia ocidental, um novo mtodo de investigaoatravs do questionamento e da argumentao, desenhado para explorar a natureza fundamental doconhecimento e da existncia. Ao contrrio dos mitos de criao e da f religiosa em geral, onde oconhecimento baseia-se essencialmente na natureza intangvel da revelao, os primeiros filsofosgregos, conhecidos coletivamente como pr-socrticos (pois a maioria viveu antes de Scrates),buscaram compreender a natureza da realidade atravs da lgica e da conjectura. Essa transio,onde a reflexo racional o veculo central na investigao de questes sobre a existncia, redefiniua relao do homem com o desconhecido, substituindo uma confiana passiva no sobrenatural poruma busca ativa pelo conhecimento e pela liberdade pessoal.

    Para o primeiro grupo de filsofos pr-socrticos, conhecidos como inicos, a preocupaocentral era a composio material do mundo. Do que as coisas so feitas?, perguntaram. Dado queessa continua sendo a questo essencial da fsica de partculas atual, vemos que o poder de umagrande pergunta sua capacidade de gerar respostas que, com o avano de nossos mtodos deexplorao, continuam gerando conhecimento. Embora cada membro da escola inica tenha sugeridouma resposta diferente, todos tinham uma caracterstica em comum, acreditando que Tudo Um, ouseja, que a essncia material da realidade consistia em apenas uma nica substncia ou entidade.Essa unificao da realidade deve ser contrastada com as mitologias pantestas que a precederam,onde deuses de vrios tipos eram responsveis por aspectos diferentes da Natureza. Para os inicos,tudo o que existe manifestao de uma nica essncia material capaz de passar por vrios tipos detransformao. Tales, que Aristteles considerou o primeiro filsofo, supostamente declarou que oprincpio de todas as coisas a gua. Pois [Tales] diz que tudo vem da gua e para a gua todas ascoisas revertem.5 Esse texto, encontrado no fragmento escrito pelo mdico bizantino Acio deAmida, tpico dos vrios pensamentos atribudos a Tales. Infelizmente, nenhuma de suas obrassobreviveu e temos que nos basear em fontes indiretas para conhecer suas ideias. Investigando aliteratura disponvel, vemos que, de fato, Tales props que a gua fosse a fonte de tudo,

  • reconhecendo seu papel central nos seres vivos. Para ele, a gua simbolizava as transformaesincessantes que vemos na Natureza. Ao explicar a fora motriz por trs dessas transformaes, Talesinvocou uma espcie de fora-alma: Alguns dizem que a alma se mistura na totalidade; issoprovavelmente explica por que Tales pensava que todas as coisas esto cheias de deuses,6 escreveuAristteles em Sobre a alma. Porm, os deuses de Tales no so os mesmos deuses antropomrficosdas mitologias passadas, mas foras misteriosas que propulsionam as transformaes que vemos narealidade fsica. Tales, bem como seus sucessores da escola inica, defendiam uma filosofia dodevir, de transformaes constantes emergindo da mesma matria-prima: tudo vem dela e tudoretorna a ela.

    importante notar que, mesmo se os primeiros filsofos do Ocidente viviam em uma cultura ondea religio prevalente acreditava que os vrios fenmenos naturais se deviam ao de deuses, aindaassim buscaram por uma explicao nica da realidade, um princpio absoluto da existncia.Explicitamente, buscavam por uma teoria unificada da Natureza, a primeira Teoria de Tudo. Bemmais tarde, j no sculo XX, o historiador de ideias Isaiah Berlin chamou a crena na unidade detudo, que sobrevive at nossos dias, mesmo com roupas diferentes, de falcia inica, declarando-acompletamente sem sentido: Uma frase que comea dizendo que Tudo consiste em... ou Tudo ...ou Nada ..., a menos que baseada em fatos empricos [...] desprovida de contedo, visto que umaproposio que no pode ser significativamente contrastada ou medida no nos oferece qualquerinformao.7 Em outras palavras, declaraes autoritrias que pretendem dar explicaes nicas pluralidade do que existe no fazem sentido: so artigos de f e no da razo. Voltaremos a exploraresse assunto quando investigarmos a busca por explicaes finais em cincia. Por ora, seguimos opensamento protocientfico de Tales e de seu sucessor, Anaximandro de Mileto, considerado oprimeiro filsofo cientfico por sua conceptualizao da Natureza em termos mecanicistas.

    Ao contrrio de Tales, Anaximandro tomou um caminho mais abstrato, propondo um meioprimordial que chamou de O Ilimitado (apeiron), a fonte de todas as coisas: Dele, todas as coisassurgem e a ele todas as coisas retornam. por isso que incontveis mundos so gerados eeventualmente perecem, retornando sempre sua origem, escreveu Acio, resumindo as ideiascosmognicas de Anaximandro.8 O Ilimitado o princpio material primordial, indestrutvel,existindo na infinidade do tempo e do espao.

    Anaximandro via o mundo como uma cadeia de eventos propiciados por causas naturais.9 Deacordo com vrias fontes, em seu tratado Sobre a natureza o primeiro texto conhecido sobrefilosofia natural, infelizmente perdido , Anaximandro ofereceu explicaes para uma enormevariedade de fenmenos: desde os raios (que, afirmou, vm do movimento do ar em nuvens) at aorigem dos seres humanos (que, sups, vm de formas de vida oriundas dos oceanos que, depois,migraram para a superfcie). Nas palavras do historiador de filosofia Daniel W. Graham,Independente do que aprendeu com Tales, Anaximandro foi um verdadeiro revolucionrio que, aoorganizar suas ideias como uma teoria cosmognica (i.e., sobre origens) e escrevendo-a em papiro,

  • criou uma plataforma para pensarmos sobre a Natureza como um domnio autnomo, com entidadesmateriais e leis de interao. Pelo que sabemos, foi o fundador da filosofia cientfica.10

    Em vez de Apolo levar o Sol atravs dos cus em sua carruagem, Anaximandro props um modelomecnico no qual a Terra era cercada por uma srie de rodas girando sua volta. Cada uma delastinha fogo em seu interior. O Sol, por exemplo, seria um orifcio em uma roda por onde o fogoescapava. O mesmo com a Lua e as estrelas. Ainda que, para ns, o modelo de Anaximandro possaparecer extremamente simplista, sua importncia histrica enorme, j que o primeiro modelo emque os movimentos celestes foram explicados por relaes de causa e efeito e no por intervenodivina.

    Anaximandro no se deteve aqui, propondo um mecanismo igualmente criativo para a origem docosmos. Segundo Plutarco em seu Diversos, [Anaximandro] diz que a parte do Ilimitado que gera ofrio e o quente separou-se na origem do mundo, criando uma esfera de chamas que circundou o arcomo a casca de uma rvore em torno do seu tronco. Esta esfera destacou-se do resto e separou-seem crculos individuais para formar o Sol, a Lua, e as estrelas.11 O cosmos de Anaximandro era umgrande mecanismo, seguindo regras fixas de causa e efeito.

    As ideias de Anaximandro, assim como aquelas de todos os filsofos gregos, baseavam-seessencialmente na intuio e no poder de argumentao: no havia interesse em verific-lasexperimentalmente. No entanto, constituem um marco na histria do pensamento, pela sua coragemintelectual e imaginao. Mesmo que os gregos no tenham sido os primeiros a se perguntar sobre aorigem do cosmos e a natureza da realidade, seu mtodo dialtico criou um novo modo de se pensarsobre o mundo onde cada indivduo deveria exercer o direito de ponderar essas questes, em buscade maior liberdade pessoal.12 Como escreveu Lucrcio em sua obra revolucionria, Da natureza dascoisas (50 a.C.), um poema narrativo baseado na filosofia atomista de Leucipo e Demcrito e umadas defesas mais lcidas jamais escritas do atesmo,

    Nem mesmo o brilho do Sol, a radiao que sustenta o dia, pode dispersar o terror que reside na mente das pessoas. Apenas acompreenso das vrias manifestaes naturais e de seus mecanismos internos tem o poder de derrotar esse medo. Ao discutiresse tema, nosso ponto de partida ser baseado no seguinte princpio: nada pode ser criado pelo poder divino a partir do nada. Aspessoas vivem aterrorizadas porque no compreendem as causas por trs das coisas que acontecem na terra e no cu, atribuindo-as cegamente aos caprichos de algum deus. Quando finalmente entendemos que nada pode surgir do nada, teremos uma visomais clara de como formas materiais podem ser criadas, ou de como fenmenos podem ser ocasionados sem a ajuda de umdeus.13

    A separao explcita que Lucrcio propunha entre uma compreenso racional do mundo e acrena em atos divinos no era comum na poca. At mesmo para muitos dos pr-socrticos, ecertamente mais tarde com Plato e Aristteles, vemos uma relao entre os dois: o universo fsicocoexistia com divindades. Isso bem claro na escola pitagrica, a casta de msticos racionais para

  • quem a essncia da Natureza era um enigma codificado em nmeros inteiros e suas fraes, como1/2, 1/3, 2/3, 4/5 etc. Radicados no sul da Itlia e, portanto, geograficamente longe de Tales, deAnaximandro e de outros inicos da costa oeste da Turquia, para os pitagricos a sabedoria vinha doestudo da matemtica e da geometria, as ferramentas usadas pela divindade criadora para construir ocosmos.

    De acordo com os escritos de Filolau de Crotona, um famoso discpulo de Pitgoras que viveupor volta de 450 a.C., o centro do universo no era a Terra mas o fogo central, a Cidadela de Zeus.A justificativa de Filolau para tirar a Terra do centro da Criao quase 2 mil anos antes deCoprnico era tanto prtica quanto teolgica: apenas Deus podia ocupar o centro de tudo; fora isso,parecia claro que o movimento do Sol nos cus era bem distinto daquele dos planetas. Comoescreveu Aristteles em sua obra Sobre os cus, A maioria das pessoas afirma que a Terra ocupa ocentro do universo [...] mas os filsofos italianos conhecidos como pitagricos acreditam em umoutro arranjo. Para eles, no centro est o fogo, e a Terra apenas uma das estrelas, cujos dias enoites so consequncia de seu movimento circular em torno do centro iluminado.14 muitoprovvel que as ideias de Filolau tenham influenciado outros pensadores que sugeriram remover aTerra do centro do cosmos, como Aristarco de Samo, em torno de 280 a.C., e o mais conhecidodeles, Nicolau Coprnico, no sculo XVI. Conforme escreveu Coprnico em sua obra Sobre arevoluo das esferas celestes, publicada em 1543,

    de fato, eu encontrei primeiro na obra de Ccero que Hicetas havia proposto que a Terra se movesse. Mais tarde, li em Plutarcoque outros eram da mesma opinio. Copio suas palavras aqui, para que sejam acessveis a todos: Alguns pensam que a Terrapermanece em repouso; mas o pitagrico Filolau acreditava que, como o Sol e a Lua, gira em torno do fogo central em um crculooblquo. Inspirado por esses pensadores, comecei tambm a considerar a mobilidade da Terra.15

    As razes da chamada revoluo copernicana so bem mais profundas do que a maioria daspessoas imagina.

    Encontramos o famoso teorema de Pitgoras no Ensino Mdio, aquele que relaciona os trs ladosde um tringulo retngulo: A soma dos quadrados dos catetos igual ao... Mesmo que o sbiolegendrio receba crdito por essa descoberta, provvel que o crdito seja mais por autoridade doque por autoria. De qualquer forma, Pitgoras aparentemente descobriu o que podemos considerar aprimeira lei matemtica da Natureza, a relao entre os sons em uma escala musical e o comprimentodas cordas que os produzem, como em um violo. Pitgoras percebeu que os sons consideradosharmnicos aos ouvidos correspondem a razes simples entre os comprimentos das cordas que osproduzem. Essas razes contm apenas os nmeros 1, 2, 3 e 4, que constituem o que os pitagricoschamavam de tetractys, os quatro nmeros sacros, a fonte e raiz da sempre-fluida Natureza, comomais tarde escreveu Sexto Emprico, ao descrever a ideia central dos pitagricos.

    Por exemplo, se o comprimento de uma corda L, soando-a apenas na metade de seu comprimento

  • (L/2), temos um som que uma oitava acima do original; soando-a a dois teros do comprimento(2L/3), temos uma quinta; a trs quartos (3L/4), uma quarta. Como o que nos soa harmnico reflete dealguma forma o funcionamento da mente, Pitgoras e seus seguidores construram uma ponte entre omundo externo (onde o som gerado) e sua percepo atravs dos sentidos. O fato de esta ponte tersido construda atravs da matemtica estabeleceu os fundamentos da profunda transformao queestava por vir: para compreender o mundo, precisamos descrev-lo matematicamente. Ademais,como o que harmnico belo, a beleza do mundo expressa atravs da matemtica. Surge, aqui,uma nova esttica, que equaciona leis matemticas com a beleza, e a beleza com a verdade.

    Os pitagricos tambm contriburam decisivamente para a viso cosmolgica da poca, indo almdo deslocamento da Terra do centro do cosmos, como props Filolau com seu fogo central.Extrapolando a ideia de harmonia em msica para as esferas celestes, os pitagricos acreditavamque as distncias entre os planetas obedeciam mesma proporo numrica das escalas musicais. Aogirar pelo firmamento, os planetas criavam msica, a harmonia das esferas, uma melodia dointelecto, inaudvel aos ouvidos humanos. (A exceo parecia ser apenas o prprio Pitgoras.) Aarquitetura csmica, desde o prazer sensorial da msica at a beleza esttica do arranjo celeste, eraexpresso de propores estritamente harmnicas: a estrutura da Criao era, em essncia,matemtica. Nada podia enobrecer mais o esprito humano do que a dedicao ao seu estudo.

    * * *

    Antes de embarcarmos no estudo das ideias de Plato e de Aristteles com relao natureza darealidade, convm rever onde estamos. De um lado, temos os inicos, propondo que o cerne daNatureza a transformao e que tudo o que existe manifestao de uma nica essncia material.De outro, temos os pitagricos, propondo que a matemtica a chave de todos os mistrios do mundonatural, o portal para a essncia da realidade. Existiam, porm, outras propostas. Tambm na Itlia,Parmnides e seus seguidores, conhecidos como eleticos (pois estavam na cidade de Eleia, no sulda Itlia), pensavam de forma exatamente oposta aos inicos: para eles, o essencial era justamenteaquilo que no pode se transformar, aquilo que . Consideravam que toda transformao umailuso, uma distoro da realidade causada pela nossa percepo imperfeita do mundo. No debateentre as diversas escolas pr-socrticas, encontramos as primeiras consideraes filosficas sobre anatureza da realidade, ao menos no mundo ocidental. Onde encontrar a essncia das coisas? Nastransformaes que observamos com nossos sentidos ou em algum domnio abstrato, que s pode seracessado atravs da razo?

    Para investigarmos o vasto conjunto de transformaes e mudanas materiais que ocorrem naNatureza de uma pedra que cai ao cho at uma galxia distante , temos antes que detect-las.

  • Mas se o que captamos com nossos cinco sentidos no passa de reconstrues imperfeitas do queexiste, como podemos ter certeza de que o que apreendemos corresponde, de fato, realidade? aquela miopia outra vez... Por outro lado, se seguirmos Parmnides, como podemos compreenderessa coisa que no muda? Afinal, algo que no muda acaba tornando-se imperceptvel, feito umrudo ao fundo que deixamos de ouvir. Pior: se essa realidade imutvel existe apenas em algumdomnio abstrato, onde s a razo penetra, como podemos ter certeza do que estamos procurando? Osinicos acusavam os eleticos de se basearem em especulaes abstratas e infundadas, enquanto oseleticos consideravam os inicos inocentes e iludidos, pois se fiavam nos sentidos, que no podemser considerados indicadores da verdade. Complementando o quadro, os pitagricos ignoravam tantoos inicos quanto os eleticos, usando seu misticismo matemtico para descrever a harmonia e abeleza racional do mundo.

    A riqueza do pensamento pr-socrtico absolutamente fascinante. Os primeiros filsofos doOcidente ampliaram as fronteiras do conhecimento em todas as direes, criando uma pluralidade deideias e posturas que constituem, at hoje, o arcabouo do pensamento racional, especialmente noque tange ao tema central deste livro: como compreender a realidade em que vivemos? A Ilha doConhecimento crescia rapidamente, expondo uma regio cada vez mais ampla e convidativa doOceano do Desconhecido sua volta.

  • 4 Lies do sonho de Plato(Onde exploramos as consideraes de Plato e Aristteles sobre as questes da Primeira Causa e doslimites do conhecimento)

    Plato, que viveu entre 428 e 348 a.C., foi influenciado tanto por Parmnides quanto por Pitgoras.Tal como Parmnides, no confiava nos cinco sentidos como guias capazes de nos levar ao cerne darealidade; tal como Pitgoras, acreditava na geometria e na matemtica como fontes do pensamentopuro, onde residia a verdade sobre o mundo. O pensamento abstrato de Plato refletia seu desejo detranscender a realidade mais imediata, que lhe parecia catica e decadente. Esses eram tempospoliticamente instveis, quando Atenas foi derrotada por Esparta na Guerra do Peloponeso em 404a.C. Em sua filosofia, Plato buscava por verdades imutveis, as nicas que acreditava levar estabilidade e sabedoria.

    Poucas expresses do pensamento de Plato so to ilustrativas quanto a Alegoria da Caverna,que aparece no Livro VII do dilogo A Repblica. Sendo uma das primeiras meditaes dedicadaexplicitamente natureza da realidade, a Alegoria de enorme interesse para ns.

    Imagine um grupo de pessoas dentro de uma caverna, acorrentadas na mesma posio desde quenasceram, foradas a olhar para a parede sua frente. Vamos chamar esse grupo de Acorrentados.Os Acorrentados no tinham conhecimento do mundo externo ou mesmo do que existia ao seu lado:sua realidade resumia-se ao que podiam ver projetado na parede. No sabiam, portanto, do fogo queardia atrs deles, ou da mureta entre eles e o fogo, ou do caminho ao longo da mureta. Pessoasatravessavam o caminho, carregando esttuas e outros objetos em frente ao fogo. Os Acorrentadosviam as sombras dos objetos projetadas na parede sua frente, que tomavam como sendo reais.Devido sua inabilidade de olhar para trs e ver o que se passava, no podiam apreender a verdade.Sua realidade era uma grande iluso.

    Plato argumenta que, mesmo se um dos Acorrentados fosse libertado e pudesse ver o fogo e asesttuas s suas costas, a dor e a cegueira temporria causadas pela luz seriam to severas queretornaria ao seu lugar de costume. Dada a escolha, o Acorrentado optaria por acreditar que assombras que via projetadas na parede da caverna eram mais reais do que a nova Verdade, que ocegava to intensamente. A Alegoria traz consigo uma moral (mais de uma, na verdade): oconhecimento tem um preo que nem todos querem pagar. Aprender requer coragem e tolerncia, jque pode levar a uma profunda e dolorosa mudana de perspectiva. bem mais fcil nos apegarmosaos nossos valores, a uma viso acomodada e confortvel da realidade, do que mudar o certo pelo

  • incerto. Plato continua, argumentando que, se o Acorrentado fosse carregado para fora da caverna eexposto diretamente luz do Sol, aproximando-se, assim, ainda mais da Verdade, ficaria to cegopela luz do conhecimento que imploraria para retornar s sombras confortveis da parede dacaverna. Para Plato, o confronto com a Verdade um ato heroico.

    Plato comparou a ascenso do Acorrentado em direo luz do Sol ascenso da alma emdireo regio do intelecto puro, isto , a uma transcendncia do indivduo em direo sabedoria mais profunda, baseada apenas no poder da razo. Plato sugeriu que a verdade proveniente de uma entidade abstrata que chamou de Forma do Bem essencial extremamentedifcil de ser apreendida, dado que estamos acorrentados nossa percepo sensorial, que nosproporciona apenas uma viso limitada da realidade. Porm, quando estamos prontos para v-la (aomenos o que podemos vislumbrar dela), nossa curiosidade insacivel:

    No mundo do conhecimento, a Forma do Bem essencial constitui a fronteira dos nossos questionamentos, mal podendo serpercebida. Mas, quando o , somos forados a concluir que, em todos os casos, a fonte do que existe de mais brilhante e belo no mundo visvel gerando a luz, enquanto no mundo do intelecto difundindo a verdade e a razo. Aqueles que agem com sabedoria,seja em pblico ou na vida privada, inspiram-se na Forma do Bem.16

    Em seu dilogo A Repblica, Plato props uma frmula para a criao de uma sociedade justa,sugerindo, tambm, quem deveria govern-la. Seu candidato ideal seria o filsofo-rei, algum capazde vislumbrar o domnio abstrato das Formas Puras, alimentando sua sabedoria com a luz que lbrilha por toda a eternidade.

    As Formas de Plato, seu papel na filosofia e sua influncia na filosofia de outros geram muitodebate e confuso. Felizmente, no precisamos nos deter nisso. Basta imaginarmos as Formas comoideais de perfeio, a essncia abstrata do que existe no mundo. Por exemplo, a Forma da Cadeiracontm todas as possveis cadeiras, o que tm de mais essencial. (Toda cadeira tem um certo nmerode pernas e uma superfcie onde as pessoas se sentam.) Uma cadeira particular apenas uma merasombra de sua Forma, uma representao imperfeita e limitada de uma ideia que abrange todas ascadeiras.

    As Formas so a essncia universal do que potencialmente pode existir, mesmo que sejamconceitos e no uma coisa concreta. Dentro de nossas limitaes, vislumbramos apenas um esboodo que realmente so quando criamos algo na nossa realidade do dia a dia. (Por exemplo,construindo uma cadeira.) O mesmo ocorre com a ideia de um crculo (ou qualquer outra figurageomtrica) e sua representao no papel. Apenas a ideia do crculo perfeita; qualquerrepresentao concreta de um crculo na nossa realidade (em um papel, com um arame...) necessariamente imperfeita.

    No seu dilogo Timeu, Plato estende essas noes ao cosmos. O Universo criao de umaentidade divina chamada Demiurgo, que usa as Formas como arcabouos de sua obra: o cosmos

  • esfrico e todos os movimentos celestes so circulares e tm velocidades uniformes, pois so osmais apropriados para a mente e a inteligncia. Plato estava propondo uma esttica csmica, emque a forma geomtrica mais perfeita e simtrica era a nica adequada para os movimentos dasluminrias celestes. A mente dita a trajetria que a matria deve seguir: o mundo vem de ideias e amatria deve obedecer a elas. Essa uma viso csmica teleolgica, uma cosmoteleologia, em queo Universo tem um propsito prprio ou reflete o propsito de seu Criador. Tal viso choca-sefrontalmente com a noo atomista do acaso, em que nada ocorre devido a um plano predeterminado;tudo vem de tomos viajando pelo Vazio. Citando Lucrcio uma vez mais:

    Vemos, ainda, que o mundo foi forjado pela Natureza devido ao colidir e agregar das sementes das coisas, que se moviam porconta prpria e isso aps viajarem aleatoriamente, sem um propsito, em vo. At que, finalmente, essas sementes juntaram-se,forjando o comeo de coisas grandiosas a terra, o mar, o cu e a raa das criaturas vivas.17

    A maioria das discusses filosficas sobre a natureza do Universo aps Plato incluindo asatuais envolvendo a possibilidade de um multiverso que contm uma multido de universos ou apossibilidade de que nossa existncia serve a um propsito csmico maior reflete esta antigadicotomia j to clara 23 sculos atrs.

    O maior desafio para uma explicao teleolgica, especialmente quando aplicada ao Universocomo um todo, que no temos como determinar se est correta ou no. Como medir uma intenocsmica? O mtodo cientfico baseia-se no que chamamos de validao emprica, em quequalquer hiptese cientfica precisa ser testvel atravs de experimentos, de modo que cientistaspossam determinar se falsa. Enquanto a hiptese passa nos testes a que sujeita, devemosconsider-la vlida. Por outro lado, mais cedo ou mais tarde, toda hiptese acaba por falhar.18Portanto, se algum afirma que o Universo tem um propsito, precisamos primeiro identificar quepropsito este (Criar estrelas? Criar vida?) para ento verificar se, de fato, ele funcionaativamente. Um exemplo popular nesse contexto concerne vida consciente: O Universo tem comopropsito criar vida inteligente. Vemos que um Universo-Criador no to diferente de um Deus-Criador, sendo apenas uma transposio de uma teleologia sobrenatural (a Criao como obradivina) para uma teleologia supranatural (a Criao alm das leis naturais). Essa transposio, emque o Universo passa a ser o Criador, tpica de nossa era, quando os inmeros triunfos da cinciarendem explicaes de fenmenos naturais baseadas na revelao pela f cada vez mais implausveise desnecessrias. Em um mundo de videofones, de aparelhos de GPS e de viagens interplanetrias,um Universo-Criador tem mais credibilidade cientfica do que um Deus-Criador. Um Universo queintencionalmente cria entidades conscientes reflete, de forma moderna, a antiga necessidade de nosermos apenas criaturas especiais o que, certamente, somos , mas criaes especiais, como nosensinamentos bblicos, nos quais o homem criado imagem de Deus.

  • A menos que os Criadores enviem uma mensagem explcita explicando suas intenes (como,alis, Deus fez vrias vezes no Antigo Testamento), fica difcil determinar se existe propsito naNatureza. Esse tipo de teleologia naturalista representa o que chamo de um incognoscvel categrico:se existe um propsito csmico, mas no temos cincia dele ou meios concretos para identific-lo,nada podemos fazer para provar que existe. Temos, no caso, duas opes: ou no acreditamos porfalta de evidncia, ou, como Plato fez com seu Demiurgo, acreditamos mesmo sem provas.

    Quando Aristteles, o discpulo mais famoso de Plato, entrou em cena, suas intenes eramdiametralmente opostas s de seu mestre. Aristteles, sendo mais pragmtico, tentou erguer umaestrutura racional com argumentos interdependentes capazes de explicar como o mundo funciona emtodos os nveis. As ideias de Aristteles sero adotadas entusiasticamente pela Igreja, em particularo seu verticalismo csmico, onde a Terra ocupava o centro da Criao. Aristteles sugeriu que oarranjo vertical das quatro substncias bsicas terra, gua, ar e fogo, nesta ordem explicava omovimento natural dos objetos: bastava um objeto estar fora de seu meio que tenderia naturalmente aretornar a ele. Por exemplo, uma pedra suspensa no ar cairia (retornando, assim, terra), enquantouma bolha de ar submersa em um lago subiria (retornando, assim, ao ar). J o fogo tende naturalmentea subir acima de tudo.

    Aristteles considerava as Formas e o Demiurgo de seu mestre como meras abstraes, sugerindoque o movimento inerente das coisas encontrava-se nelas mesmas, nas suas naturezas. Suateleologia, portanto, era embutida nos objetos, sendo dependente da sua composio material,inspirada pelos seres vivos e seu mpeto interno de movimento. Apesar de seu pragmatismo,Aristteles tambm incluiu um princpio divino em seu cosmos. Mesmo que seu Universo no tivesseum Criador e fosse eterno, ele invocou divindades cuja funo era cuidar dos movimentos celestes,os que movem-sem-serem-movidos. Essas divindades imateriais eram imunes a causas fsicas,capazes de iniciar movimentos atravs de uma aspirao ou desejo igualmente misteriosos. Comoo cosmos de Aristteles refletia uma hierarquia vertical, com a Terra no centro cercada pelas esferasresponsveis por carregar as luminrias celestes em suas rbitas, a mesma hierarquia era refletidanos que movem-sem-serem-movidos, com o Primeiro Movedor na periferia csmica. Sua funoera impor os movimentos csmicos de fora para dentro, uma espcie de Relojoeiro-Mor, oresponsvel por iniciar a cadeia causal que animava o Universo por inteiro.19

    Aristteles precisava do seu conjunto de movedores-imveis e do Primeiro Movedor pararesolver dois desafios que surgem quando tentamos explicar a fsica do movimento: o que causa omovimento dos objetos e o que os mantm em movimento. De que outra forma podia explicar tanto omovimento inicial quanto sua persistncia por toda a eternidade? O que lhe faltava, hoje sabemos,era a noo de inrcia, a tendncia natural de um corpo de permanecer em seu estado de movimento,a menos que seja forado a alterar esse estado por um agente externo ou interno. Por exemplo, umpatinador no gelo, com pouca frico, continuar a deslizar em linha reta a menos que freie; umapessoa sentada s se move se botar os msculos para funcionar. Parece bvio, mas seriam

  • necessrios ainda muitos sculos at que o conceito de inrcia surgisse.Sendo eterno, o cosmos de Aristteles era mais simples do que um cosmos que tenha surgido em

    um determinado momento do passado, como na narrativa bblica ou, mais concretamente, no modelodo Big Bang da cosmologia moderna. Como mencionamos, um Universo com uma origem temporalprecisa de uma explicao causal que a justifique. Em primeiro lugar, por que o Universo existe? E oque causou sua existncia? Religies diversas tendem a explicar esse enigma supondo uma divindadecriadora que existe fora dos limites impostos pelas leis da Natureza. Mesmo que muitos cientistasargumentem que a fsica moderna em particular a mecnica quntica possa explicar a origemcsmica, o fato que explicar a origem do Universo apenas atravs da cincia um enorme desafioconceitual. Promulgar publicamente que a cincia hoje pode faz-lo no s incorreto eirresponsvel como demonstra uma ignorncia alarmante do que a cincia pode ou no fazer ou sobrecomo ela funciona. Toda ilha cercada por um horizonte. A Ilha do Conhecimento no umaexceo.

    Voltando a Aristteles, vemos que seu objetivo era tirar a filosofia da caverna de Plato,dissolvendo a distino entre o mundo das Formas abstratas e o mundo da percepo sensorial.Mudanas na Terra e na sua vizinhana so consequncia de transformaes ocorrendo entre asquatro substncias bsicas. Ao ascendermos aos cus, entramos em um outro domnio, o das esferascelestes, responsveis por carregar a Lua, o Sol e os cinco planetas em suas rbitas em torno daTerra. (Mercrio, Vnus, Marte, Jpiter e Saturno eram os nicos planetas conhecidos at adescoberta de Urano, em 1781.) Objetos celestes eram completamente distintos daqueles encontradosna Terra, sendo compostos de uma quinta essncia, o ter, perfeito e imutvel. Apesar da profundadiferena com o esquema platnico, o cosmos de Aristteles tambm mantinha uma estrutura dualista,no caso entre o domnio sublunar da matria ordinria e o domnio celeste dos mundos etreos.Tambm encontramos uma teleologia divina, agora incorporada nos movedores-imveis, entidadesimateriais porm capazes de agir sobre o cosmos. Com sua separao entre o mundo terrestre e oceleste, o cosmos de Aristteles ser o arcabouo da teologia medieval crist.

    Nos sculos seguintes, vrios modelos baseados no geocentrismo de Aristteles foram propostospara explicar as irregularidades dos movimentos celestes. Pois como os sumrios j sabiam, osplanetas no tm rbitas simples: basta seguir o movimento de Marte nos cus por uns meses paraver que, ocasionalmente, o planeta vai para trs, aparentemente incerto sobre qual direo tomar. Talmovimento, conhecido como movimento retrgrado, era uma verdadeira dor de cabea para osgregos, especialmente quando visto sob o ponto de vista geocntrico. De acordo com Simplcio daCilcia, o filsofo e comentador de Aristteles que viveu durante o sculo VI, Plato props aos seusdiscpulos que explicassem os movimentos retrgrados das vrias luminrias celestes usando apenascrculos e velocidades uniformes, um desafio que ficou curiosamente conhecido como salvar osfenmenos. (Em geral, cientistas no tentam salvar os fenmenos, mas sim suas teorias quandofalham na descrio de fenmenos.) E este o maravilhoso problema dos astrnomos: usando certas

  • hipteses, provar que todas as coisas nos cus tm movimento circular e que o movimento nouniforme de cada uma delas [...] apenas aparente e no real.20

    Vemos aqui como um preconceito terico, quando suficientemente enraizado, pode tanto bloquearquanto inspirar a criatividade, que tenta engendrar cenrios viveis respeitando os vnculosexistentes. Se, por um lado, o sonho de Plato de um cosmos regido apenas por movimentos celestescirculares e uniformes tenha desorientado a astronomia por quase 2 mil anos; por outro, inspirou ainveno de modelos altamente sofisticados que procuravam explicar as irregularidades orbitaissegundo essas condies. Dentre esses modelos, o de maior importncia foi aquele de Ptolomeuusando epiciclos, proposto em torno do ano 150 e que sobreviveu, com modificaes propostas porastrnomos islmicos durante a Idade Mdia, at meados do sculo XVI.

    Resumidamente, um epiciclo um crculo preso a um crculo maior. Imagine que a Terra ocupe ocentro do crculo maior. Imagine, tambm, um epiciclo preso a esse crculo maior e a Lua presa aeste epiciclo. Quando o crculo maior gira, o epiciclo gira com ele, como uma cadeira em uma rodagigante. Mas essa cadeira especial e pode tambm dar uma volta completa em torno de si mesma.(Ou seja, o epiciclo tambm gira.) A combinao desses dois movimentos giratrios, do crculomaior e do epiciclo, gera uma curva encaracolada, que pode simular movimentos retrgrados.Ptolomeu props que cada planeta tivesse o seu prprio crculo maior e o seu epiciclo, cada qualcom o tamanho adequado para imitar, da melhor forma possvel, os movimentos retrgradosobservados pelos astrnomos.

    Infelizmente, esse esquema no funcionou: as previses das posies futuras dos planetas nocasavam com as observaes. Ptolomeu viu-se forado a adicionar uma pequena modificao aomodelo citado para que fosse capaz de prever com preciso suficiente a posio futura dasluminrias celestes. No seu novo modelo, os epiciclos giravam em torno de um ponto imaginrio,localizado ao longo do dimetro do crculo maior, um pouco alm do centro. Esse ponto, chamadoequante, era o novo centro das rbitas celestes. Cada planeta tinha o seu equante, que Ptolomeuajustou para que seu modelo funcionasse. Com isso, obteve enorme pr