a graça de cristo e os misticos de fora

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A graça de Cristo e os ―místicos de fora‖ Pré-mística natural e mística sobrenatural (Angélico de Roma, 1933) Rev. Pe. Réginald GARRIGOU-LAGRANGE, O. P. Pré-mística natural e mística sobrenatural. I. – POSIÇÃO DO PROBLEMA Os erros extremos a evitar Duas tendências relativas aos “místicos de fora” e importância do problema Dificuldades do problema II. – ELEMENTOS DE SOLUÇÃO O conhecimento natural e o amor natural de Deus A inspiração superior e suas diferentes formas O que concluir na ordem da possibilidade e na da existência Fala-se muito, atualmente, de certos ―místicos de fora‖ que, sem pertencer visivelmente à verdadeira Igreja de Cristo, teriam tido a vida da graça e da caridade no grau superior que caracteriza a vida mística. Desse ponto de vista foram escritos os estudos de Louis Massignon [1] e Asin Palacios [2] sobre o Islame. Esses trabalhos, que apresentam sobretudo documentos, pedem ser examinados com cuidado, e cremos que seus autores não aceitariam as conclusões gerais que alguns acreditaram poder tirar a partir deles. O Sr. Émile Dermenghem, em obra recente [3], vai muito mais longe do que eles. Ele chegava mesmo a escrever, em 1930, sobre diversos místicos muçulmanos estudados nestes últimos anos: ―Todos esses sufis, pensadores, poetas ou santos exprimiram a grande experiência mística: morrer para o mundo para viver em Deus, com fórmulas tocantes e análogas às dos Padres, Doutores e místicos cristãos, e frequentemente também dos vedantinos hindus. O que confirmaria a tese de R. Guénon sobre a universalidade da tradição: ‗quod ubique, quod semper, quod ab omnibus‘, segundo a fórmula católica. Eles não cessam de repetir, com os escolásticos, que as criaturas não têm outro ser além daquele que elas recebem de Deus e, com São Paulo, que é nele que nós temos a vida, o movimento e o ser.‖ [4] A esse respeito, o Padre Eliseu da Natividade fazia, aqui mesmo [5], esta justa observação: ―Não sabemos o que o Sr. Dermenghem pretende entender por grande experiência mística; em todo o caso, jamais a Igreja tomará como critério único da verdade essa universalidade da tradição.‖ * * *

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Garrigou-Lagrange - Teologia - Mística

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Page 1: A Graça de Cristo e Os Misticos de fora

A graça de Cristo e os ―místicos de fora‖

Pré-mística natural

e mística sobrenatural

(Angélico de Roma, 1933)

Rev. Pe. Réginald GARRIGOU-LAGRANGE, O. P.

Pré-mística natural e mística sobrenatural.

I. – POSIÇÃO DO PROBLEMA

Os erros extremos a evitar

Duas tendências relativas aos “místicos de fora” e importância do problema

Dificuldades do problema

II. – ELEMENTOS DE SOLUÇÃO

O conhecimento natural e o amor natural de Deus

A inspiração superior e suas diferentes formas

O que concluir na ordem da possibilidade e na da existência

Fala-se muito, atualmente, de certos ―místicos de fora‖ que, sem pertencer visivelmente à

verdadeira Igreja de Cristo, teriam tido a vida da graça e da caridade no grau superior que caracteriza

a vida mística.

Desse ponto de vista foram escritos os estudos de Louis Massignon [1] e Asin Palacios [2] sobre o

Islame. Esses trabalhos, que apresentam sobretudo documentos, pedem ser examinados com

cuidado, e cremos que seus autores não aceitariam as conclusões gerais que alguns acreditaram poder

tirar a partir deles.

O Sr. Émile Dermenghem, em obra recente [3], vai muito mais longe do que eles. Ele chegava

mesmo a escrever, em 1930, sobre diversos místicos muçulmanos estudados nestes últimos anos:

―Todos esses sufis, pensadores, poetas ou santos exprimiram a grande experiência mística: morrer

para o mundo para viver em Deus, com fórmulas tocantes e análogas às dos Padres, Doutores e

místicos cristãos, e frequentemente também dos vedantinos hindus. O que confirmaria a tese de R.

Guénon sobre a universalidade da tradição: ‗quod ubique, quod semper, quod ab omnibus‘, segundo a

fórmula católica. Eles não cessam de repetir, com os escolásticos, que as criaturas não têm outro ser

além daquele que elas recebem de Deus e, com São Paulo, que é nele que nós temos a vida, o

movimento e o ser.‖ [4]

A esse respeito, o Padre Eliseu da Natividade fazia, aqui mesmo [5], esta justa observação: ―Não

sabemos o que o Sr. Dermenghem pretende entender por grande experiência mística; em todo o caso,

jamais a Igreja tomará como critério único da verdade essa universalidade da tradição.‖

* * *

Page 2: A Graça de Cristo e Os Misticos de fora

Por outro lado, racionalistas e sobreviventes do modernismo se esforçam por reduzir até mesmo a

experiência mística descrita por São João da Cruz à mística natural que se encontra, em níveis

diversos, em todas as religiões e a qual, do ponto de vista deles, é superior a todo Credo. Destarte, a

revelação dos mistérios da salvação, tal como é proposta pela Igreja, a Pessoa mesma de Nosso

Senhor, Seu exemplo, os sacramentos instituídos por Ele, nada trazem de essencial ao católico, mas

somente uma maior segurança, estando o essencial além e acima: numa experiência mística que se

encontraria nas almas mais interiores de todas as religiões, e que não seria outra coisa que o

desabrochar natural do sentimento religioso.

Essa questão, aos olhos do teólogo, é uma das formas mais delicadas do problema já bastante

difícil da salvação dos infiéis, e ela se apresenta cada vez mais, hoje em dia. [6]

Por pouco que se desvie do verdadeiro caminho, pende-se para erros diametralmente opostos, que

é bom recordar no início de toda investigação. Na primeira parte deste estudo, veremos como o

problema se põe, sua importância e suas dificuldades; na segunda parte, tentaremos enunciar os

princípios que possam permitir resolvê-lo.

I. – POSIÇÃO DO PROBLEMA

Os erros extremos a evitar

Todo mundo conhece as duas posições, radicalmente contrárias uma à outra, que a Igreja

condenou como erros graves. Uma delas é mais que heresia: não escolhe, no depósito da Revelação, o

que ela quer conservar; nega toda revelação sobrenatural.

Por um lado, com efeito, o naturalismo, tal como se encontra por exemplo em Espinosa e

sucessores, nega absolutamente a ordem sobrenatural, tanto o milagre como a vida da graça; ele não

vê, por conseguinte, nas diferentes religiões nada além da evolução natural do sentimento religioso. O

modernismo chegava também a essa conclusão, renovando e ampliando o erro pelagiano [7]. Desse

ponto de vista, o catolicismo é, no máximo, a forma mais elevada da evolução do sentimento religioso,

e a mística de que fala São João da Cruz é uma forma interessante de mística natural, a qual se

exprime alhures em linguagem panteísta, como no Oriente com os budistas ou entre os ocidentais

com os teósofos que se inspiram em Jacob Boehme ou na segunda filosofia de Schelling.

O extremo oposto ao naturalismo nada mais é que o pseudo-sobrenaturalismo que aparece, sob

formas variadas, nos predestinacianos, em Wiclef, nos protestantes e nos jansenistas; sustentaram

todos eles que, por decorrência do pecado original, a natureza humana está tão corrompida que todos

os atos dos infiéis são pecados, e as virtudes aparentes deles são vícios esplêndidos, que procedem do

amor próprio e do orgulho.

Contra estes últimos erros, segundo a doutrina católica a predestinação não é necessária para

realizar ações até mesmo excelentes, nem a graça santificante nem sequer a fé infusa são necessárias

para fazer uma obra moralmente boa (ad faciendum actum ethice bonum), como pagar suas dívidas,

dar alguns bons princípios a seus filhos. O homem caído pode inclusive, sem a graça, ter um certo

amor ineficaz por Deus autor da natureza, amor feito de admiração e veleidade, que podem inspirar

em uma alma naturalmente poética páginas repletas de lirismo sobre as perfeições divinas. Os pagãos

podem também, sem a graça, realizar atos moralmente bons; eles também são visitados pela graça

atual, com os auxílios da qual podem fazer certos atos salutares, que os disponham a receber a graça

Page 3: A Graça de Cristo e Os Misticos de fora

habitual, princípio radical dos atos não somente salutares, mas meritórios. ―Facienti quod in se est

(cum auxilio gratiae actualis) Deus non denegat gratiam (habitualem).‖ [8] {N. do T. – Tradução

livre: ―A quem quer que faça o que está em seu alcance (com a ajuda da graça atual), Deus não nega a

graça (habitual).‖}

Pio IX diz, efetivamente, que aqueles que ignoram invencivelmente ou sem culpa própria a

verdadeira religião, mas que fazem o que está em seu poder para observar a lei natural, podem por

uma iluminação e uma graça de Deus chegar aos atos sobrenaturais de fé e caridade necessários à

salvação; podem, noutros termos, receber a vida da graça, germe da glória, e ser salvos. [9] Esses

homens ―de boa vontade‖, no sentido teológico da expressão, pertencem assim, como dizem assaz

geralmente os teólogos, à alma da Igreja. [10]

Vê-se como a doutrina católica se eleva, assim, acima dos erros diametralmente opostos do

naturalismo, que nega a ordem da graça, e do pseudo-sobrenaturalismo estreito, que nega que Deus

queira oferecer a todos os adultos graça suficiente para o cumprimento dos preceitos necessários à

salvação.

Mas permanece, todavia, um grande mistério: o da predestinação, e é uma grandíssima graça

pertencer visivelmente à Igreja, beneficiar-se de seu ensinamento infalível, do santo sacrifício da

missa e dos sacramentos. Daí a necessidade das missões.

* * *

Duas tendências relativas aos “místicos de fora” e importância do problema

Ao passo que existiram, e existem ainda, erros diametralmente opostos acerca da salvação dos

infiéis, pode-se distinguir, nos limites da ortodoxia, duas tendências bem diversas quanto àqueles que

foram chamados de os místicos de fora.

Inclinam-se alguns em pensar que a graça santificante, a fé e a caridade infusas podendo existir

em almas que não pertencem visivelmente à Igreja, se possa também encontrar nelas, com maior

frequência do que se disse até aqui, a vida mística, principalmente caso reconheçamos que ela é o

desabrochar normal da vida da graça.

Essa tendência leva a admitir muito facilmente que certos místicos ―de fora‖ sejam místicos

―autênticos‖ e mesmo, por vezes, a falar de mística muçulmana, hindu, judaica, etc., como se se

tratasse, malgrado os erros que nelas se mesclam, de verdadeira mística. É-se conduzido assim a

especificar que este ou aquele desses místicos de fora teve graças sobrenaturais autênticas, e mesmo

graças elevadas, que fariam pensar, senão na união transformante – na VIIª Morada de Santa Teresa

–, ao menos nas que a precedem. Decerto que há analogias impressionantes, notadas pelo Sr. L.

Massignon e pelo Sr. Miguel Asin Palacios [11].

Mas, sob estas analogias, as questões de natureza e origem permanecem muito obscuras, e, em

matéria tão delicada, o exagero, contrário a toda prudência científica, tornar-se-ia depressa tão

perigoso quanto fácil. Nestas fronteiras entre a natureza e a graça, tocamos nos problemas mais

árduos da teologia, e aqueles que os estudaram a vida toda hesitariam talvez com frequência em

formular opinião. Sobre questões relativas aos limites entre dois domínios, o juízo só pode ser uma

resultante do conhecimento aprofundado dos dois domínios considerados em si mesmos.

* * *

Page 4: A Graça de Cristo e Os Misticos de fora

Assim, diversos espíritos formulam reservas, que ajudam a colocar o problema mais

profundamente e que mostram melhor sua importância.

Para começar, mesmo admitindo que a vida mística seja o pleno desabrochar normal da vida da

graça, este cimo, embora normal, permanece, não obstante, um cimo. E, por causa da negligência, da

preguiça espiritual, da falta de generosidade na provação e falta de docilidade ao Espírito Santo, esse

cimo já é bem raramente atingido dentro da Igreja Católica, mesmo nas ordens religiosas, mesmo

recebendo nelas tantas luzes sobrenaturais, tantos exemplos, tantas graças, especialmente pelos

sacramentos, sobretudo pela comunhão cotidiana. Tanto mais será difícil de atingi-lo quando se está

privado desses múltiplos auxílios!

Ademais, como nos escrevia recentemente um missionário bem inteirado destas questões, é

facílimo, selecionando bem – e não são escolhas desse gênero que se toma como base? –, reunir

grande número de textos descritivos desses místicos ―de fora‖ que parecem exprimir-se, com

espantosa similitude de termos, como São João da Cruz sobre o essencial da vida mística. E se

chegará a isto:

a) Para todos: a essência da contemplação é o conhecimento geral, amoroso, confuso, indistinto,

―sem formas nem imagens‖, que o Doutor do Carmelo ensina.

b) Para todos: a conduta prática a observar na contemplação é uma espécie de ―nada‖ universal, e

consiste em ―abstrair o entendimento de toda noção particular‖ (Subida do Carmelo, l. II, c. XII) e em

―dedicar-se à atenção amorosa em Deus, sem nada querer especificar‖ (Chama Viva, III, 3, § 6).

c) Para todos, finalmente (e é isto talvez o mais notável) o apogeu e perfeição da vida mística

existe quando a alma, ―transformada totalmente em seu Bem-Amado‖, tornou-se ―Deus por

participação‖ (Cântico Espiritual, XXII).

Parece assim que todas essas almas, seja qual for o caminho pelo qual tenham progredido, com ou

sem o auxílio da doutrina infalível e dos sacramentos da Igreja visível, se reúnem no topo. Mas

reúnem-se deveras?

A questão, como se vê, é das mais importantes:

Admitindo, de nossa parte, que a mesma graça santificante seja pressuposta nessas almas

diversas, acontece que do ponto de vista exposto mais acima tudo pareceria se passar como se essa

graça (com a fé nas duas primeiras verdades de ordem sobrenatural: [i] Deus, autor da salvação,

existe e [ii] Ele recompensa as boas obras; e com a caridade) fosse suficiente para chegar até mesmo

aos altos graus da união sobrenatural com Deus, sem ser necessário ter conhecimento explícito do

mistério da Encarnação redentora e receber os sacramentos. Essa fé explícita na pessoa divina do

Salvador, Seus exemplos, os sacramentos, os ensinamentos e diretrizes da Igreja pareceriam, por

conseguinte, não trazer ao católico nada além de um auxílio secundário, para não dizer acidental, uma

maior segurança, estando o essencial alhures e acima. [12]

Mais ainda, o próprio São João da Cruz (que, na realidade, como é evidente, fundamenta toda a

sua mística na plenitude da Revelação transmitida por Nosso Senhor, no conhecimento explícito do

mistério da Cruz perpetuado no altar durante a Missa e nos sacramentos, especialmente na união com

o Salvador pela comunhão, a uma só vez espiritual e sacramental) não pareceria porventura, no fim

das contas, definir e descrever a contemplação de uma maneira que nada mais teria de

especificamente cristão e católico, com notas e definições das quais se servem, de fato, para

―reconhecer‖ e ―autenticar‖ os místicos de fora? Ficaria assim suficientemente salvaguardada a

palavra de Jesus: ―Eu sou o caminho, a verdade e a vida‖? [13]

Page 5: A Graça de Cristo e Os Misticos de fora

A questão assim formulada é grave. Seguindo-se a primeira tendência de que falamos, e que se

apresenta sob formas mais ou menos acentuadas, acaso não se chegaria, sob a arremetida do atual

sincretismo, a perder pouco a pouco o sentido da verdadeira contemplação, que é chamado por São

Paulo o sentido de Cristo (I Cor., II, 16)? É a pergunta que faz o missionário de que falávamos mais

acima.

Responder-se-á, sem dúvida, que a doutrina da fé implícita vai justamente contra esse sincretismo

e não significa, de maneira alguma, que a fé explícita e os sacramentos tenham apenas valor acidental.

Sobre este ponto, o Padre Eliseu da Natividade [14] fez justas observações: ―A dificuldade começa –

escrevia ele – no que diz respeito à fé no Mediador. O adulto não pode ser justificado a não ser crendo

de uma maneira ou de outra na Redenção operada por Cristo. Esta fé no Cristo Redentor admite três

estados ou, se se quiser, três graus diferentes: o conhecimento explícito dos mistérios da Encarnação e

da Redenção, tais como nós, os cristãos, conhecemo-los; a ideia de um mediador que se interpõe entre

Deus e os homens; finalmente a convicção de que Deus, em Sua misericórdia, proveu de algum modo

à salvação do gênero humano. Esse último grau de conhecimento do Redentor chama-se fé implícita

em Cristo e confunde-se, de certa maneira, com a fé (sobrenatural) na Providência e a crença em um

Deus remunerador… Crer que Deus salva os homens pelos meios que Lhe aprazem é possuir fé

implícita em Cristo Redentor… (e isso era suficiente, diz Santo Tomás, antes da vinda de Cristo)… É

difícil de sustentar que as condições tenham mudado para aqueles que, tendo vivido depois de Cristo,

nunca ouviram falar d‘Ele‖ [15].

Resta, contudo, uma séria dificuldade, mesmo para aqueles que admitam a opinião segundo a qual

a fé explícita em Cristo Redentor não seja de necessidade de meio após a promulgação do Evangelho.

Há, efetivamente, notável diferença entre o estritamente necessário para a salvação ou para evitar a

danação e o que a união mística com Deus demanda, sobretudo a união em seus graus mais elevados.

Chegamos, assim, a perguntar-nos se não se descura de considerar, aqui, duas coisas

importantíssimas.

1.º Encontra-se nesses ―místicos de fora‖ o conjunto de condições, sobretudo a purificação

profunda, que a verdadeira mística exige, ou seja, a contemplação sobrenatural e a íntima união com

Deus que dela resulta?

2.º Não há neles, se estão em estado de graça, antes uma mística ou pré-mística natural, isto é,

uma contemplação natural de Deus, que lembra a de Platão e Plotino, ou mesmo a de certos

platônicos cristãos, como Malebranche e os recentes ontologistas que conhecemos? [16]

Se omitirmos de considerar muito atentamente esses dois pontos, seremos conduzidos,

precisamente como o foram os ontologistas, a uma confusão mais ou menos latente entre natureza e

graça, e acabaríamos falando em uma mística universal, mais ou menos bem balbuciada; a nossa seria

apenas a mais correta [17]. E não somente essa confusão seria deplorável para nós, mas seria também

sem proveito algum para as almas de boa vontade que, fora da Igreja visível, possam tender à

verdadeira vida interior, à conversação íntima e profunda com Deus. A questão, como se vê, é grave;

importa não se pronunciar levianamente: toda precipitação aqui seria especialmente perigosa.

Como diz o Pe. Allo, O. P. [18]: ―Hoje, nos meios dedicados ao estudo e à admiração da mística, um

sincretismo perigoso começa a delinear-se; e os fiéis dotados de ciência e de zelo não deveriam fechar

os olhos para essa ameaça. Isso precisava ser dito.‖

* * *

Page 6: A Graça de Cristo e Os Misticos de fora

Dificuldades do problema

Há aqui, para começar, as duas grandes dificuldades da teologia mística considerada em si mesma:

1.º o objeto é transcendente, pois trata-se da união com Deus considerado em Sua vida íntima, e não

mais apenas conhecido naturalmente desde fora, pelo reflexo de Suas perfeições no espelho das coisas

sensíveis; 2.º o sujeito de que se trata é o indivíduo humano, do qual diziam os antigos: individuum

est ineffabile, decerto que não como Deus, cuja vida íntima está acima das fronteiras da

inteligibilidade que é para nós naturalmente acessível, mas porque o indivíduo humano é um

composto misterioso de espírito e matéria, matéria pouco inteligível em si e que está, por assim dizer,

abaixo das fronteiras da inteligibilidade. Não há ciência senão do geral, do universal, pois a ciência se

obtém por abstração da matéria individual, que repugna assim, em certa medida, à inteligibilidade.

Daí o mistério do composto humano individual, onde se entrecruzam constantemente os atos das

faculdades superiores, a inteligência e a vontade, e os da imaginação, da memória, dos sentidos

exteriores, e todas as emoções da sensibilidade ou paixões mais ou menos desregradas, em estado de

saúde ou de enfermidade.

Há por conseguinte ―noites escuras‖, no fundo, muito diversas, que se assemelham

superficialmente. Umas vêm de um trabalho profundo da graça divina, outras não, encontrando-se

por vezes nestas últimas, sobretudo, neurastenia e muita miséria humana.

Essas dificuldades são as da teologia mística em geral e de sua aplicação mesmo em ambiente

cristão e católico fervoroso.

Mas essas dificuldades crescem muito, como é evidente, em se tratando dos místicos de fora, que

são o nosso tema.

Não nos esqueçamos de que pode existir e existe, entre a verdadeira mística sobrenatural e a falsa

mística assaz manifestamente diabólica, uma certa mística ou pré-mística natural, cujas

―experiências‖ mais ou menos turvas tornam-se a fonte obscura, e por vezes envenenada, dos sistemas

mais contraditórios.

Já se disse que certas filosofias não-cristãs nada mais fazem que conceptualizar mística selvagem,

que existe desde sempre. Há métodos de êxtase que são pré-históricos.

É certo que essas ―experiências‖ estão dentro do ―sentido da verdade‖? Temos o direito de

conceptualizá-las num sentido cristão de mística autêntica, antes que em sentido panteístico?

Muitas vezes já se falou da falsa caridade, que – por vezes sem se precaver disto – não tem, de

maneira alguma, o mesmo objeto formal que a caridade infusa, mas se atavia com o seu nome e no

fundo não passa de liberalismo ou vão sentimentalismo. O princípio corruptio optimi pessima se

aplica aqui com uma profundidade que frequentemente passa despercebida. Não havendo nada maior

sobre a terra do que a verdadeira caridade, que é essencialmente sobrenatural, não há nada pior do

que a falsa. Assim também, não havendo nada maior do que a verdadeira mística, que é o exercício

eminente das três virtudes teologais e dos dons do Espírito Santo que as acompanham, não há nada

pior do que a falsa. Ela é, evidentemente, tanto mais perigosa quanto mais assume as aparências da

verdadeira. Poder-se-ia ficar tentado a falar da alma de verdade que nela está presente; não há talvez

senão somente um grão de verdade, que longe de ser a alma dela, está a serviço do erro voluntário ou

involuntário que é o princípio daquele desvio. Naquilo que é falso simpliciter e não só secundum quid,

o verdadeiro é desviado de seu fim. Essas observações, que se dirigem diretamente contra os teósofos,

não devem ser esquecidas aqui.

Page 7: A Graça de Cristo e Os Misticos de fora

Caso não se considere suficientemente que existe uma pré-mística natural, desemboca-se numa

falsificação, para não dizer numa caricatura da vida contemplativa, e isso poderia ser obra de

predileção do espírito da mentira, que se oculta o mais que pode sob as aparências da verdade.

Um certo sincretismo modernista é levado a dizer: ―Cristo está aqui, ou: Ele está ali.‖ ―Não creiais

nele‖, diz o Evangelho (Mt., XXIV, 23). De tal ponto de vista, Cristo estaria por toda parte, salvo talvez

ali onde Ele verdadeiramente está.

Por onde se vê a dificuldade do problema: como distinguir uma mística sobrenatural que, por

causa da ignorância de vários mistérios revelados, permanece bastante amorfa, de uma mística ou

pré-mística natural, que aliás pode existir mesmo em almas em estado de graça, como se viu em

vários platônicos cristãos, dos quais era às vezes difícil dizer se eram cristãos platonizantes ou

platônicos cristianizantes?

A dificuldade aumenta ainda pelo fato de o vocabulário místico vir em parte de Dionísio e dos

neoplatônicos e, de certa maneira, não ser rigorosamente próprio à Igreja. Plotino fala muitas vezes

de purificação, κάθαρσις {catarse}, mas em sentido completamente diferente que São João da Cruz.

Além disso, esse vocabulário está, frequentemente, bem mais na linha das descrições psicológicas

práticas que na das descrições que poderiam ser chamadas de teológicas, ou escritas pela razão

especulativa à luz dos princípios revelados. É pois, no fundo, como observava o missionário de que

falamos mais acima, uma linguagem demasiado humana, e da perspectiva da ―experiência‖ do homem

contemplativo. Não espanta, portanto, que os pseudomísticos dela se sirvam, como os verdadeiros

místicos.

Cremos serem estas as principais dificuldades do problema: referem-se umas à natureza do sujeito

bastante misterioso, no qual se encontra a obscuridade vinda do alto, a de Deus, cuja luz é inacessível,

e a obscuridade de baixo, que vem da matéria, parte essencial do composto humano. Entre essas duas

obscuridades, é muito difícil de distinguir a verdadeira mística sobrenatural de suas analogias

naturais. A dificuldade aumenta por decorrência do vocabulário, muitas vezes, bastante comum aos

verdadeiros e aos falsos místicos; ela aumenta ainda pela impossibilidade de ver, e de ver viverem,

―os místicos de fora‖, que não nos são conhecidos a não ser por documentos com frequência bastante

incompletos. Já é bem trabalhoso para um diretor julgar bem um dirigido, que ele conhece só por

alguns colóquios e por cartas, chegando às vezes a um julgamento muito diferente do proferido por

pessoas bastante sensatas que veem viver todos os dias e há muito tempo esse dirigido. Com quanto

mais razão será difícil proferir juízo exato sobre ―os místicos de fora‖ de que se trata aqui! Sem

embargo, estando a questão colocada aos teólogos e aos missionários, cumpre saber a que princípios

diretores recorrer, para procurar resolvê-la.

II. – ELEMENTOS DE SOLUÇÃO

Vários destes elementos foram indicados por dois teólogos que viveram em meio aos muçulmanos,

o pranteado Padre Lemonnyer e o Padre Allo, em La Vie Spirituelle de 1.º de maio de 1932 [19], bem

como pelo Sr. J. Maritain na sua última obra, notabilíssima a mais de um título: Distinguer pour

Unir, ou: Les Degrés du Savoir [20].

Elevemo-nos progressivamente dos graus eminentes da ordem natural para os graus superiores da

ordem da graça. Haveria, para começar, deste ponto de vista, muito que dizer sobre o trabalho da

imaginação e da sensibilidade mais ou menos desordenada em cima dos primeiros dados de que vive

o sentimento religioso, quer provenham estes da razão natural que se eleva para Deus, ou de tradições

Page 8: A Graça de Cristo e Os Misticos de fora

religiosas mais ou menos alteradas. Esse domínio é ilimitado: basta pensar nas fantasias por vezes

inverossímeis dos poetas, mesmo cristãos e católicos, sem nem mesmo falar dos decadentes. Para nos

restringirmos, só formularemos os princípios relativos à atividade de nossas faculdades superiores:

inteligência e vontade.

Esses princípios de solução dizem respeito, como se vê, antes de tudo à contemplação natural e ao

amor natural de Deus, na medida em que são possíveis no estado atual; e, em seguida, às diferentes

formas de inspiração superior que o homem pode receber. É fácil de reconduzir os princípios

diretores a estas duas categorias.

* * *

O conhecimento natural e o amor natural de Deus

Importa recordar que, segundo o ensinamento da teologia católica tal como vem formulado por

Santo Tomás de Aquino (Ia, q. 60, a. 5; Ia-IIae, q. 109, a. 1, 2, 3; IIa-IIae, q. 26, a. 3), o homem, após

sua queda [21], pode ainda, sem a graça, por suas forças naturais, conhecer a existência de Deus

autor de nossa natureza, os atributos divinos mais manifestos, e amar a Deus autor de nossa

natureza, com amor natural ineficaz, o qual, sem nos fazer renunciar ao pecado mortal, ou seja, sem

retificar fundamentalmente o nosso querer e a nossa vida, leva-nos a admirar as perfeições de Deus

naturalmente cognoscíveis, Sua infinita sabedoria e bondade. [22] Essa admiração é, ela própria,

princípio de veleidades que, em uma alma naturalmente poética, principalmente nos grandes artistas,

se exprimem com um lirismo que pode fazer pensar na verdadeira mística. Pode não haver aí, todavia,

nada além de um sentimentalismo cheio de flutuações enganosas e cujos mais belos arroubos não

passem de fogo de palha.

Em almas naturalmente dotadas de inteligência vigorosa ou de vontade forte, esse amor natural e

ineficaz por Deus, autor de nossa natureza, parecerá mais intenso, sobretudo se ele se unir, como num

Plotino, ao amor à filosofia; ou, como em outros, ao amor à arte; ou ainda, ao amor à pátria, num

povo oprimido.

É aí que facilmente se encontrará uma prefiguração natural da vida mística que poderá iludir, se

nos esquecermos da palavra de Jesus: ―Não são todos aqueles que me dizem: Senhor, Senhor, que

entrarão no reino dos céus, mas, sim, aquele que faz a vontade de meu Pai‖ (Mt., VII, 21). Não nos

esqueçamos, tampouco, de que no plano atual da Providência todo homem está ou em estado de

graça, ou em estado de pecado mortal; está voltado para Deus ou afastado d‘Ele, sem meio termo; a

indiferença absoluta não é possível com relação a Deus.

Em seguida, sobre as analogias naturais da verdadeira mística, é necessário notar aquilo que diz o

Pe. Lemonnyer, art. cit., p. [78]: ―Que, por exemplo, fatos de catalepsia especial, materialmente

semelhantes ao êxtase místico, ou de levitação, ou de radiação luminosa, ou estados psíquicos mais ou

menos análogos às provações místicas possam aparecer fora da Igreja e ser realmente observados, que

nos importa isso, e quais objeções de princípio se imagina que tenhamos a opor-lhes? Normais ou

patológicos, naturais ou diabólicos, são fenômenos que não exigem necessariamente causa divina.

―Nem mesmo consideramos a aparição deles impossível sob a dependência de uma contemplação

natural com objetivo religioso, como podia ser a contemplação neoplatônica, como pode ser a

contemplação búdica, teosófica ou qualquer outra de afinidade cristã. Essa contemplação natural,

preparada e sustentada por uma ascese conveniente, conduzida em virtude de um método e prática

Page 9: A Graça de Cristo e Os Misticos de fora

bem planejados até um grau excepcional de intensidade, pode comportar consequências psíquicas e –

o temperamento contribuindo, principalmente se a imaginação e a emotividade fizeram sua parte –

consequências corporais, materialmente semelhantes a tais ou quais fenômenos místicos acessórios,

salvo, sem dúvida, a levitação. Facilimamente, alucinações aí se mesclarão, suscetíveis de evocar a

ideia de visões proféticas.‖ Haveria muito que dizer, a esse respeito, sobre o temperamento de certas

raças predispostas à passividade e ao fatalismo.

* * *

Porventura o amor natural a Deus, de que acabamos de falar, pode atingir aquilo que foi chamado

de ―apreensão imediata de Deus‖, e que permitiria falar aqui não mais apenas de pré-mística natural,

mas de mística natural propriamente dita?

O panteísmo, especialmente o de Plotino e, mais ainda, o de Espinosa, responde afirmativamente.

Explicamos noutra parte por que a teologia católica deve responder: não. [23] Seria a confusão entre a

natureza e a graça.

Há diferença de objeto formal entre a intuição obscura natural de Deus conhecido desde fora, no

espelho das coisas sensíveis, sem a graça da fé, e o conhecimento sobrenatural e quase-experimental

de Deus, fundado na Revelação divina e na fé infusa unida à caridade e esclarecida pelos dons do

Espírito Santo. Unicamente o conhecimento sobrenatural pode chegar a alcançar ―as profundezas de

Deus‖, como diz São Paulo (I Cor., II, 10); noutros termos, somente ele atinge a vida íntima de Deus,

a Deidade, primeiro obscuramente pela fé e claramente em seguida pela visão beatífica. [24]

O Sr. Maritain insiste com toda a razão neste ponto (Op. cit., p. 533): ―Admitir, a qualquer grau

que seja, sob as formas mais simplesmente esboçadas que se queira, uma experiência autêntica das

profundezas de Deus no plano natural seria necessariamente: ou confundir nossa intelectualidade de

natureza, especificada pelo ser em geral, com nossa intelectualidade da graça, especificada pela

essência divina mesma; ou então confundir a presença de imensidade, pela qual Deus está presente

em todas as coisas a título de Sua eficiência criadora, com a inabitação santa pela qual Ele está

especialmente presente, a título de objeto, nas almas em estado de graça; ou ainda, baralhar em um

mesmo conceito híbrido a sabedoria de ordem natural (a sabedoria metafísica) e o dom infuso de

sabedoria; ou enfim, atribuir ao amor natural por Deus aquilo que pertence exclusivamente à

caridade sobrenatural. De todo modo, seria confundir o que é absolutamente próprio à graça com o

que é próprio à natureza.‖

Se a vida vegetativa, a vida sensitiva e a vida racional constituem três ordens distintas, com

maioria de razão cumpre reconhecer acima delas a ordem da vida propriamente divina, superior à

vida racional do homem e à vida angélica.

Somente assim pode-se salvaguardar o sentido das palavras de São Paulo (I Cor., II, 9): ―São

coisas que nem o olho viu, nem o ouvido ouviu, nem jamais passaram pelo coração do homem: as

coisas que Deus preparou para aqueles que O amam. Foi a nós que Deus revelou-as por meio do Seu

Espírito; porque o Espírito tudo penetra, mesmo as profundezas de Deus. Porque qual dos homens

conhece o que se passa no homem, senão o espírito do homem, que está nele? Assim também,

ninguém conhece o que se passa em Deus (Sua vida íntima), senão o Espírito de Deus.‖ Que distância

há entre conhecer de fora o Vigário de Jesus Cristo, pelo que todo o mundo sabe a respeito dele, e

conhecer sua vida íntima! Com maioria de razão, que distância há entre conhecer Deus de fora, pelo

Page 10: A Graça de Cristo e Os Misticos de fora

reflexo de Suas perfeições na ordem criada, e conhecer a Sua vida íntima ao menos obscuramente por

revelação divina!

Por isso, sempre foi necessário, para ser salvo, ter fé infusa explícita no mínimo nestas duas

verdades primeiras da ordem sobrenatural: Deus, autor da salvação, existe e Ele é remunerador:

―Deus est et remunerator est‖ (Hebr., XI, 6). Sem essa fé explícita não há como ter fé implícita nos

demais mistérios sobrenaturais.

Ainda que o nosso amor natural de Deus fosse eficaz, como poderia sê-lo sem a graça caso o

homem não estivesse caído, caso se achasse ele em estado de pura natureza e, sobretudo, de natureza

íntegra, ainda assim o homem não atingiria aquela ―apreensão imediata de Deus‖. Nem mesmo a

alcançariam os anjos, que têm necessidade como nós de ser elevados à ordem sobrenatural da graça,

para conhecer obscuramente primeiro, e claramente em seguida, a vida íntima de Deus ou o mistério

da Deidade (Cf. Santo Tomás, Ia, q. 62, a. 2). Há uma distância imensurável entre conhecer Deus

enquanto Deus, em Sua vida íntima, mesmo obscuramente, e conhecer Deus desde fora, como o

Primeiro Ser e Primeira Inteligência, pelo reflexo de Suas perfeições nas criaturas.

É porque o nosso amor natural por Deus não pode alcançar essa experiência da vida íntima de

Deus, que nós não falamos de ―mística natural‖, mas somente de ―pré-mística natural‖.

* * *

A inspiração superior e suas diferentes formas

Mas se o nosso amor natural por Deus não pode chegar à experiência íntima que, em virtude do

dom de sabedoria, só se encontra na verdadeira mística, é não raro dificílimo de distinguir na

realidade concreta esse amor natural de um amor proveniente de inspiração superior. É árduo,

sobretudo, num filósofo ou alma vigorosa em que esse amor natural por Deus se una a algum outro

amor forte que tenha a sua grandeza, e venha acompanhado de uma certa ascese purificadora, como a

κάθαρσις de Plotino.

É aqui, principalmente, que pode haver uma pré-mística natural, ainda mais difícil de distinguir

bem, concretamente, da verdadeira mística, porque a inspiração superior de que acabamos de falar

nem sempre é da mesma natureza, longe disso.

Lendo atentamente as obras de Santo Tomás, vê-se que ele distingue pelo menos quatro espécies

de inspirações superiores, dentre as quais duas são de ordem natural, e duas da ordem sobrenatural

da graça. Pode-se reduzi-las à tabela seguinte, a ser lida de baixo para cima:

Inspiração

de ordem sobrenatural

inspiração mística propriamente dita, levando, por exemplo, ao recolhimento passivo e outros graus de oração infusa. inspiração mística impropriamente dita, dada, sobretudo, por causa da indigência do sujeito ou do meio.

de ordem natural

proveniente de Deus, autor da natureza, por exemplo para a salvação temporal de um povo. proveniente dos espíritos criados, bons ou maus, como a inspiração poética.

Pode haver, como sabemos, inspirações que não venham direta e imediatamente de Deus, mas dos

espíritos criados, bons ou maus. E não é raro que os místicos de fora tenham buscado algum contato

com os espíritos.

Page 11: A Graça de Cristo e Os Misticos de fora

Como observa o Sr. Maritain (Op. cit., p. 546): ―O cuidado que Santo Tomás dedica em refutar as

teorias de Avempace, de Alexandre de Afrodísia, de Averróis, sobre a possibilidade, para o homem, de

atingir imediatamente por intuição intelectual o mundo dos puros espíritos,[26. C. Gentes, l. III, c.

41, 42, 43, 44, 45.] mostra bem a que ponto a tentação de um tal comércio pode seduzir os filósofos.‖

Esquece-se também, com muita frequência, de considerar que pode haver inspiração divina de

ordem natural, como a que pode receber um grande filósofo, um grande poeta, um artista de gênio,

um legislador, um estratego. Santo Tomás trata disso várias vezes, particularmente na Ia IIae, q. 68,

a. 1, citando o capítulo 14 (De bona fortuna) do livro VII da Moral a Eudemo, escrita por um discípulo

platonizante de Aristóteles, onde se fala dos homens extraordinários que, movidos por um instinto

divino, não têm necessidade de deliberar para fazer grandes coisas. Ver também a Ética a Nicômaco,

l. VII, c. I, n. 1, 2, 3, e o comentário de Santo Tomás, lição 1.

O final do Banquete de Platão e parte do Górgias parecem ter sido escritos sob inspiração desse

gênero. Donde a expressão: o divino Platão.

Basta recordar alguns leitmotivs de obras wagnerianas ou certas sinfonias de Beethoven, para se

dar conta de que a inspiração natural poética ou musical, unida ao amor natural e ineficaz por Deus,

possível sem a graça, pode às vezes proporcionar a ilusão de verdadeira mística. Ela a proporcionará

ainda mais caso se encontre, como pode suceder, numa alma em estado de graça.

* * *

Há muitas vezes também inspirações divinas da ordem da graça, mas é raríssimo que sejam de

ordem propriamente mística.

Primeiro que tudo, cumpre assinalar, nas almas que buscam a verdade religiosa, a inspiração que

as conduz a crer sobrenaturalmente nas verdades necessárias com necessidade de meio para salvar-

se, especialmente nas duas primeiras: Deus est et remunerator est (Hebr., XI, 6), Deus (autor da

salvação e não só da natureza) existe e recompensa as boas obras. Esta fé explícita nessas duas

primeiras verdades sobrenaturais contém a fé implícita nas demais.

Santo Tomás diz inclusive (Ia IIae, q. 89, a. 6) que quando a criança, mesmo não batizada, atinge

plenamente o uso da razão, ela deve ordenar a sua vida a um fim bom, e se ela o faz, recebe pela

graça a remissão do pecado original [27], ou seja, é justificada por batismo de desejo. Noutros termos,

a criança mesmo não batizada, chegando plenamente ao uso da razão, deve escolher, não somente por

veleidade, mas EFICAZMENTE o caminho do bem e afastar-se deliberadamente do caminho do mal.

Ora, escolher assim a reta via é já amar eficazmente ao bem mais que a si mesmo e, portanto, é amar

eficazmente e acima de tudo ao Sumo Bem, Deus, autor de nossa natureza, conhecido ao menos

confusamente.

Isso, o homem caído não pode fazer, como vimos, sem a graça [28]. Para que o cumprimento desse

preceito seja hic et nunc {aqui e agora} realmente possível, a criança recebe então uma graça

suficiente e, se não resistir a esta, ela recebe um maior auxílio e até mesmo, segundo Santo Tomás, ela

é justificada, o pecado original lhe é remido. Este texto da Ia IIae, q. 89, a. 6, deve ser relacionado com

aquele bem conhecido do De Veritate, q. 14, a. 11, ad 1m, esquecido pelos jansenistas: ―Hoc ad

divinam Providentiam pertinet, ut cuilibet provideat de necessariis ad salutem, dummodo ex parte

ejus non impediatur. Si enim aliquis taliter (in silvis) nutritus, ductum naturalis rationis sequeretur in

appetitu boni et fuga mali, certissime est tenendum, quod ei Deus vel per internam inspirationem

revelaret quae sunt ad credendum necessaria, vel aliquem fidei praedicatorem ad eum dirigeret, sicut

Page 12: A Graça de Cristo e Os Misticos de fora

misit Petrum ad Cornelium.‖ {N. do T. – Tradução livre: ―Pois pertence à Divina Providência

fornecer a todos o que é necessário à sua salvação, contanto que da parte deles não se interponha

obstáculo algum. Logo, se alguém criado assim (na selva) seguir a direção da razão natural na procura

do bem e evitação do mal, deve-se crer firmissimamente que Deus ou lhe revelará por inspiração

interior aquilo que é necessário crer, ou dirigirá algum pregador da fé até ele, como enviou Pedro a

Cornélio [Act. X, 20].‖} Pio IX fala do mesmo modo, num texto citado no início deste artigo (cf.

Denzinger, nº 1677). Deus não comanda jamais o impossível e torna possível a todos os adultos o

cumprimento de Seus preceitos.

Aqui é mais fácil, do que nos casos precedentes, de discernir – por sua eficácia, pela boa conduta

que dele resulta – aquele amor sobrenatural a Deus, de um amor natural ineficaz que, sob certos

aspectos, se lhe assemelha. Se a criança, de que acabamos de falar, perseverar no bem malgrado todos

os obstáculos que a cercam, ela será salva.

* * *

Finalmente, como observou o Pe. Lemonnyer (art. cit. p. [7]), importa recordar uma distinção feita

com frequência pelos teólogos, especialmente pelos tomistas, a propósito dos dons do Espírito Santo,

os quais, sendo conexos com a caridade, estão em toda alma em estado de graça.

Dentre as inspirações especiais do Espírito Santo que os dons nos dispõem a receber, há aquelas

que nos são concedidas principalmente por causa de nossa fraqueza ou da indigência do meio em

que nos encontramos, para realizarmos certos atos salutares e meritórios, que outras pessoas mais

fortes ou em ambiente menos ingrato realizariam pelo simples exercício das virtudes infusas com

ajuda da graça atual comum. Essas inspirações especiais do Espírito Santo receberam o nome de

graças místicas menores ou impropriamente ditas. Não é raro que convertidos recebam-nas no

momento de sua conversão, e em seguida por um tempo mais ou menos longo, para suprir de algum

modo à falta de formação deles [29].

Outras inspirações especiais do Espírito Santo que os dons também nos dispõem a receber nos são

concedidas, sobretudo, em razão da perfeição do ato a ser realizado. Estas, quando a elas não se

resiste, dispõem proximamente ao estado místico inicial descrito por Santa Teresa na IVª Morada, e

mesmo aos seguintes. Pode-se chamá-las de graças místicas maiores ou propriamente ditas. Dentre

os tomistas, João de S. Tomás fez clarissimamente essa distinção [30].

Vê-se, pois, que a inspiração superior de que acabamos de falar se apresenta sob formas muito

variadas. Ela pode pertencer à ordem natural, e provir seja dos espíritos criados, bons ou maus, seja

de Deus, autor de nossa natureza, como notaram vários filósofos gregos, especialmente o autor da

Moral a Eudemo, l. VII, c. 14.

A inspiração superior pode ser também da ordem sobrenatural da graça. E (sem falar aqui da

inspiração poética, nem das demais graças por si extraordinárias) ela pode ser mística, quer somente

em sentido largo, quer em sentido próprio. A inspiração mística impropriamente dita segue-se

geralmente à justificação e é, então, princípio de atos a um só tempo salutares e meritórios; mas ela

pode preceder à justificação e dispor a esta mediante atos salutares, mas não ainda meritórios, pois o

princípio do mérito é o estado de graça e a caridade.

Acima dos atos naturais que podem conter uma certa prefiguração da mística, há entre os atos

sobrenaturais, portanto, grande diversidade, desde os primeiros atos salutares até atos grandemente

Page 13: A Graça de Cristo e Os Misticos de fora

meritórios, que não são todavia, falando propriamente, de ordem mística. — Cremos serem estes os

principais elementos de solução.

* * *

O que concluir na ordem da possibilidade e na ordem da existência

Na ordem da possibilidade é mais fácil de se pronunciar:

1º A verdadeira mística, que comporta – que no mínimo prepara proximamente – o

conhecimento quase-experimental de Deus presente em nós, não é possível fora do estado de graça;

mas, fora do estado de graça, pode haver uma pré-mística natural e, também, influências diabólicas.

Essa pré-mística natural pode existir ao mesmo tempo que graças atuais que disponham a atos

salutares ainda não meritórios; ela pode até mesmo existir em almas em estado de graça, que fazem

atos meritórios, como se viu especialmente em filósofos cristãos de tendência platônica.

2º No plano atual da Providência, em que o estado de pura natureza não existe, todo homem está

ou em estado de graça ou em estado de pecado mortal, não existe meio termo. Todo homem está ou

voltado para Deus, ou desviado d‘Ele, conversus ad Deum vel aversus a Deo. No estado de natureza

pura, o homem teria nascido com uma vontade ainda não convertida para Deus, nem desviada d‘Ele,

mas capaz de se converter ou de voltar as costas para Ele. No estado atual, o homem nasce pecador,

―aversus a fine ultimo supernaturali, et indirecte a fine ultimo naturali‖ [31], pois todo pecado contra

a lei sobrenatural transgride ao menos indiretamente a lei natural, que nos prescreve obedecer a Deus

no que quer que Ele mande. Por conseguinte, todo homem ou está voltado para Deus, ou apartado

d‘Ele. Mais precisamente: todo homem, ou ama a Deus eficazmente com um amor de estima

(―appretiative‖) acima de todas as coisas, o que supõe a graça santificante e a caridade, ou então não

atinge esse amor eficaz de Deus, e isso seja por causa do pecado original, se ele não tem o pleno uso

da razão, seja também por causa de um pecado mortal pessoal (cf. Sto. Tomás, Ia IIae, q. 89, a. 6). Por

isso Nosso Senhor disse: ―Quem não está comigo, está contra mim‖ (Mt., IX, 39), e também aos

Apóstolos, o que é consolador: ―Quem não é contra vós, é por vós‖ (Mc., IX, 39; Lc., IX, 50). A

indiferença propriamente dita ou neutralidade absoluta não é possível com relação ao fim último.

Logo, na economia atual da salvação, todo homem está em estado de graça ou em estado de pecado

mortal.

3º O estado de graça é possível fora da Igreja visível, e realiza-se nos homens que, fazendo com a

ajuda da graça atual o que está em seu poder, chegam a amar eficazmente a Deus mais que a si

mesmos com um amor de estima, senão com um amor sentido. ―Facienti quod in se est (cum auxilio

gratiae actualis) Deus non denegat gratiam (habitualem)‖ [32]. {N. do T. – Tradução livre: ―A todo

aquele que faz o que está em seu poder (com o auxílio da graça atual), Deus não recusa a graça

(habitual ou santificante).‖}

4º As graças místicas impropriamente ditas, ou menores, não somente são possíveis fora da

Igreja visível, como podem ali ser bastante frequentes nas melhores das almas em estado de graça,

para suprir à indigência de tais ambientes, onde os filhos de Deus que ali se encontram têm tão

poucos auxílios [33]. Assim, as almas que verdadeiramente estejam, no sentido teológico, de boa fé e

de boa vontade, podem chegar a um genuíno espírito de oração, como observaram os missionários

com bastante frequência. Poderá haver aí, por conseguinte, tentativas mais ou menos duradouras de

intimidade com Deus, principalmente se no ensinamento religioso restam vestígios do Evangelho,

Page 14: A Graça de Cristo e Os Misticos de fora

como na doutrina do Islame e em algumas de suas tradições [34]. A fortiori, essas graças se

encontrarão em meios onde, apesar dos erros da heresia protestante ou do cisma, o Evangelho for

pregado e Cristo for amado por almas de boa fé [35].

5º Quanto às graças místicas propriamente ditas, ou maiores, pelas quais a alma chega aos

estados místicos propriamente ditos, descritos por Santa Teresa a partir da IVª Morada (recolhimento

passivo e quietude), elas são possíveis fora da Igreja visível, pois ―a graça das virtudes e dos dons‖

pode desenvolver-se, embora bem mais dificilmente. Mas tudo leva a pensar a priori que essas graças

místicas propriamente ditas, raras já na Igreja visível, são raríssimas nesses meios. Pode até ser que

existam aqui e ali certos casos do que Santa Teresa chama de IVª Morada, mas é muito duvidoso que

haja mais [36].

* * *

Se, da ordem da possibilidade, passamos à da existência, é muito mais difícil de se pronunciar.

1º Quase sempre nos faltam os elementos de apreciação necessários para julgar sobre o caráter

―essencialmente sobrenatural‖, sobre as ―experiências‖, dos místicos de fora. Somente a Igreja poderia

se pronunciar firmemente sobre esses casos.

2º Mesmo para se ter uma séria probabilidade, seria preciso, ao trazer textos desses místicos de

fora, não se contentar em reter aqueles que produzem uma sonoridade de mística cristã, mas haveria

que expor também os que têm caráter nitidamente panteístico, ou quietista, ou mesmo erótico, como

os há em muitos deles.

Sendo suficientemente exigente, os casos seriamente prováveis de verdadeira mística nesses meios

seriam verossimilmente bem pouco numerosos e reduzir-se-iam quiçá, em sua maioria, a tentativas

de curta duração. Não nos esqueçamos, com efeito, do que São João da Cruz disse até mesmo dos

meios católicos mais protegidos (cf. Noite Escura, l. I, c. 9): ―Deus não eleva à contemplação

propriamente dita todos aqueles que, seguindo o caminho do espírito, desejam alcançá-la; Ele não

leva nem sequer a metade.‖ — Chama Viva, 2ª estr., v. 5: ―Por que tão poucos chegam a este alto

estado?… (Muitas almas), a partir do momento em que Deus as prova, fogem do labor e recusam-se a

padecer a menor secura e mortificação.‖ Se assim é na Igreja visível, com mais forte razão fora dela.

3º Notemos que seria preciso, consequentemente, mostrar-se reservadíssimo com relação a

pretensos místicos numerosíssimos que estão, no mínimo, manchados de monismo panteísta [37].

Sem dúvida, para o bem das almas ―de boa vontade‖ em sentido evangélico, a pré-mística natural que

se acha nesses meios pode ser utilizada por Deus, assim como Ele pode utilizar a poesia; São Paulo o

fez, em seu discurso perante o Areópago: ―In ipso enim vivimus et movemur et sumus, sicut et

quidam vestrorum poetarum dixerunt: Ipsius enim et genus sumus‖ {N. do T. – Na tradução da

Vulgata pelo Pe. Matos Soares: ―Porque n‘Ele vivemos, nos movemos e existimos, como até o

disseram alguns dos vossos poetas: Somos verdadeiramente da Sua linhagem.‖} (Act. Ap. XVII, 28).

Mas nós ignoramos em que medida Deus serve-Se assim, para o bem das almas, dessas flores

naturais.

4º Seria necessário, acima de tudo, excluir de entre esses pretensos místicos aqueles que, como os

teósofos, querem possuir a beatitude final só pelas forças da sua natureza, o que lembra o pecado do

anjo, tal como o descreve Santo Tomás [38], muito mais do que verdadeira mística.

5º Tudo considerado, é bem provável, portanto, que se venha a encontrar muito frequentemente a

contemplação natural cara a Plotino e Proclo.

Page 15: A Graça de Cristo e Os Misticos de fora

Plotino [39] fala diversas vezes do êxtase e diz que, para unir-nos ao primeiro princípio, é preciso

que nos reduzamos à simplicidade absoluta, que ultrapassemos todo raciocínio e toda multiplicidade.

―Devemos esperar em silêncio que a luz divina nos apareça, tal como o olho, voltado para o horizonte,

aguarda o sol que vai se levantar do Oceano… O pensamento não pode senão elevar-nos, pouco a

pouco, à altitude donde é possível descobrir Deus. É como a onda que nos carrega e, dilatando-se,

ergue-nos, de modo que, de sua crista, subitamente, nós enxergamos.‖ Por mais elevada que seja para

Plotino, essa contemplação é natural, pois nossa natureza provém aí do Uno por emanação, é nele que

nós somos e que nós subsistimos. Nesta forma do panteísmo como nas demais, seria verdadeiro dizer

já de nossa natureza aquilo que a doutrina cristã diz da graça: ela é já uma participação da natureza

divina.

Proclo [40] diz do mesmo modo: ―A alma, ao inteligir, conhece a si mesma junto de todos os seres

contingentes. Mas, elevando-se acima da inteligência, ela se ignora e ignora também os contingentes;

unindo-se assim ao Uno, ela se compraz no repouso, fechada a todos os conhecimentos, tornada

muda e silenciosa, de um silêncio intrínseco.‖

Acerca dessa contemplação natural, é necessário recordar-se do que dizem a respeito Ruysbroeck e

Tauler. Este último diz no Sermão LV, 5: ―Se alguém considerasse esse caminho (da alta

contemplação) com uma liberdade abusiva e uma falsa luz, seria a maneira de proceder mais

lamentável que poderia haver no tempo. O caminho que conduz a este termo deve passar pela

adorável vida e paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo… É por esta amável porta que é preciso passar,

forçando a natureza, exercitando-se na virtude com humildade, doçura e paciência. Em verdade,

sabei-o: quem não vai por este caminho acabará por extraviar-se‖. [41] Essa observação é feita

certamente para cristãos, mas mostra bem que diferença imensa existe entre a contemplação

sobrenatural e aquela que se encontra num Plotino ou num Proclo.

Recordemos, para terminar, as razões pelas quais a verdadeira mística, embora seja o desabrochar

normal da vida da graça, é, assim como a perfeita docilidade ao Espírito Santo, coisa rara mesmo na

Igreja visível, mesmo nas ordens religiosas, onde se acha todavia o auxílio dos sacramentos, da

comunhão cotidiana. Embora esteja ela no desenvolvimento normal da vida da graça, a vida mística

permanece um cimo e, lá onde ela existe, ela frequentemente não ultrapassa a IVª Morada ou oração

de quietude. A razão disso é que ela exige ordinariamente como condições: pureza de coração,

simplicidade de espírito, uma verdadeira humildade, amor ao recolhimento, perseverança na oração,

uma ardente caridade, o que se obtém utilizando da melhor maneira possível os grandes meios que a

Igreja nos proporciona, os sacramentos, a santa comunhão, deixando-se formar pela liturgia e pelo

estudo sobrenatural da doutrina sagrada. Esse conjunto de condições não se encontra realizado com

frequência nem mesmo nos católicos, muito menos ainda naqueles que não pertencem visivelmente à

Igreja.

E, portanto, – sem negar por mais minimamente que seja que os pagãos recebem graças

suficientes que lhes permitem, se a elas não resistirem, chegar à fé infusa das verdades absolutamente

necessárias à salvação e à caridade [42], – pode acabar sendo que ―a experiência do divino‖ que se

acredita observar em diversos ―místicos de fora‖ não seja, o mais das vezes, senão uma espécie de pré-

mística natural, profundamente distinta da verdadeira, que é de ordem essencialmente sobrenatural.

Se há algumas tentativas dessa última, parecem ser apenas de curta duração ou não ultrapassar os

graus inferiores do conhecimento quase-experimental de Deus.

A gente se dá conta disso melhor, ao comparar esses ensaios com o espírito e a vida dos santos, por

exemplo o que São Paulo diz da vida dos Apóstolos: ―Chamados de impostores e contudo verídicos, de

Page 16: A Graça de Cristo e Os Misticos de fora

desconhecidos embora bem conhecidos; considerados como moribundos, e eis que estamos vivos;

como acabrunhados, nós que estamos sempre alegres; como pobres, nós que enriquecemos a muitos;

como não tendo nada, nós que possuímos tudo‖ (II Cor., VI, 8-10). Tal é a verdadeira mística, com os

sinais que a acompanham.

Esta solução, cremos ser ao mesmo tempo firme, para responder às exigências dos princípios, e

bastante maleável, para respeitar os diferentes modos de ação da graça divina nas almas. Ela evita os

dois erros que assinalamos no início deste artigo: o naturalismo e um pseudo-sobrenaturalismo

estreito como o dos jansenistas. Ela mantém, de um lado, que é uma grandíssima graça nascer na

Igreja Católica, e ela afirma com vigor, por outro lado, que Deus não manda jamais o impossível e que

Ele torna realmente possível a todo adulto o cumprimento dos preceitos que eles têm de observar.

Frisando-se, como fizemos, as deficiências desses místicos de fora, cremos que se propõe melhor a

verdadeira vida àqueles que, segundo a expressão de São Paulo, buscam-na como que às apalpadelas

(Act., XVII, 27) e que, pela graça de Cristo, mas somente por ela, podem encontrá-la e perseverar nela

até a morte.

Recordemo-nos de que Leão XIII, no começo deste século [vinte], consagrou o gênero humano ao

Sagrado Coração de Jesus; a irradiação dessa graça deve aumentar neste ano jubilar [a. 1933] que

marca o aniversário da Redenção.

Roma, Angelico.

fr. Rég. GARRIGOU-LAGRANGE, O. P.

_______________

1. Louis Massignon, La passion d’Al-Hosayn-ibn-Mansour-al-Hallâj, martyr mystique de l’Islam, 2 vol., Paris,

Geuthner, 1922. — Le Dîwân d’al-Hallâj, diário asiático, janeiro-março de 1931.

2. Miguel Asin Palacios, El Islam cristianizado, estudio del “sufismo” a través de las obras de Abenarabi de

Murcia, Madrid, 1931.

3. Émile Dermenghem, L’Éloge du vin (Al Khamriya), poema místico de Omar ibn al Faridh, ―L‘Anneau d‘or‖,

Les Éditions Véga, Paris, 1931. Tradução integral acompanhada de notas, introdução crítica e ensaio histórico e

teológico sobre a mística muçulmana.

4. Nouvelles Littéraires, 25 de janeiro de 1930. Resenha da obra do Pe. Bruno O. C. D. sobre São João da Cruz.

5. Études Carmélitaines de outubro de 1931, p. 162: ―L‘expérience mystique d‘Ibn‘Arabi est-elle surnaturelle ?‖

6. O Padre Clérissac, O. P., notara bem como os grandes problemas de nosso tempo desembocam neste.

Escrevia ele:

―Existe um fato notável. Não o chamo de o conflito das grandes tendências modernas (científicas, sociais e

místicas), mas de sua convergência, pois elas convergem por toda parte na direção de uma religião única, sejam

quais forem aliás os desígnios daqueles que as representam.

Sem dúvida, a questão científica se pôs em todos os tempos, se bem que antigamente ela provavelmente não

implicasse, como hoje, enigmas filosóficos nem problema algum de história e de exegese.

Sob as formas variadas da escravidão e do pauperismo, a questão social sempre nos assombrou.

Entre as formas extremas do iluminismo e do quietismo, as aspirações místicas encontraram no passado

múltiplas aberturas para se extravasarem.

Mas, em nossos dias, essas tendências adquiriram um aspecto especial e uma vida nova. Cada uma delas toma

algo de empréstimo às duas outras, e comunica-lhes em troca algo de si mesma: a ciência pretende ser religião,

o socialismo quer ser uma moral e se apresenta como culto febril à justiça; a mística, por seu turno, defende o

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seu direito de ser científica. Some-se a isso que essas três tendências, por seu conteúdo e sua ação, concorrem

para realizar, sob uma forma definida e suprema, seja o conhecimento experimental de Deus, seja a apoteose do

homem. Não considero exagerado ver aí o maior acontecimento da história desde as invasões bárbaras. Não

tomemos um fato desses por simples manifestação de forças cegas. Acautelemo-nos contra a atração sedutora

dessas tendências que cativam por toda parte os espíritos e os corações; acautelemo-nos quanto à importância

das transformações inevitáveis que daí resultarão.‖

De fato, a estas aspirações gerais dos povos, respondem as últimas encíclicas do Soberano Pontífice sobre Cristo

Rei, sobre Sua influência santificadora em todo o Seu corpo místico, sobre a família e a santidade do

matrimônio cristão, sobre as questões sociais, sobre a necessidade de reparação, sobre as missões. Em todas

essas encíclicas está em jogo o reinado de Cristo sobre toda a humanidade. De tudo isso segue-se que, para ela

conservar a preeminência que ela deve ter sobre a atividade científica e sobre a atividade social, a religião, a

vida interior, tem de ser profunda, tem de ser uma verdadeira vida de união com Deus. É uma necessidade

manifesta.

7. Cf. Bulletin de la Société Française de Philosophie, maio-junho de 1925: Saint Jean de la Croix et le

problème de la valeur noétique de l’expérience mystique; cf. ibid., p. 87: Observações escritas pelo Sr. M.

Blondel ao Sr. J. Baruzi sobre o caráter infuso da contemplação de que fala São João da Cruz. Ver também R.

Dalbiez, Une nouvelle interprétation de saint Jean de la Croix (Vie Spirituelle, 1928): ―A interpretação integral

da experiência mística, ou será teológica, ou não existirá.‖ — Pe. Benoît Lavaud, O. P., Psychologie

indépendante et prière chrétienne (Revue Thomiste, 1929) e Les problèmes de la vie mystique (Vie Spirituelle,

junho de 1931).

8. Cf. Santo Tomás, Ia IIae, q. 109, a. 6: Utrum homo possit sese ad gratiam praeparare sine gratia. – ―Ad hoc

quod praeparet se homo ad susceptionem doni gratiae habitualis oportet praesupponi aliquod auxilium

gratuitum Dei interius animum moventis, sive inspirantis bonum propositum‖ et Ia IIae q. 112, a. 3: Utrum ex

necessitate detur gratia, se praeparanti ad gratiam. – ―Praeparatio (non secundum quod est a libero arbitrio,

sed) secundum quod est a Deo movente, habet necessitatem ad id ad quod ordinatur a Deo, non quidem

coactionis, sed infallibilitatis: quia intentio Dei deficere non potest, secundum quod Augustinus dicit in libr. de

Dono persev., c. XIV: quod per beneficia Dei certissime liberantur, quicumque liberantur.‖

{N. do T. – Tradução livre da nota acima: « Cf. Santo Tomás, Ia IIae, q. 109, a. 6: ―Se um homem, por si

mesmo e sem o concurso externo da graça, pode ou não pode preparar-se para a graça. …Ora, para que o

homem se prepare para receber esse dom, não é necessário pressupor algum dom habitual suplementar na

alma, do contrário continuaríamos até o infinito. Mas devemos pressupor um dom gratuito de Deus, que move

a alma interiormente ou inspira o bom desejo.‖ E também Ia IIae, q. 112, a. 3: ―Se a graça é ou não é dada

necessariamente a todo aquele que se prepara para ela. …A preparação do homem para a graça vem de Deus,

como Motor, e do livre arbítrio, como movido. Logo, a preparação pode ser considerada…tal como ela é desde

Deus, o Motor, e assim ela tem uma necessidade – não de coerção, claro, mas de infalibilidade – quanto àquilo

a que ela está ordenada por Deus, já que a intenção de Deus não tem como falhar, conforme o dizer de

Agostinho em seu livro sobre a predestinação dos santos (De dono persev., 14) de que ‗pelas boas dádivas de

Deus todo aquele que é libertado, é com plena certeza libertado‘.‖ »}

9. ―Notum Nobis Vobisque est, eos qui invincibili circa sanctissimam nostram religionem ignorantia laborant,

quique naturalem legem ejusque praecepta in omnium cordibus a Deo insculpta sedulo servantes ac Deo

obedire parati, honestam rectamque vitam agunt, posse, DIVINAE LUCIS ET GRATIAE OPERANTE VIRTUTE,

aeternam consequi vitam...‖ Denzinger, 1677.

{N. do T. – Tradução no contexto (o trecho citado na nota acima é o que vem grifado a seguir): ―E aqui,

queridos Filhos e Veneráveis Irmãos, é preciso recordar e repreender novamente o gravíssimo erro em que se

acham miseravelmente alguns católicos, ao opinar que os homens que vivem no erro e alheios à verdadeira fé e

à unidade católica possam chegar à eterna salvação. O que certamente se opõe em sumo grau à doutrina

católica. Coisa notória é para Nós e para Vós que aqueles que sofrem de ignorância invencível acerca de nossa

Page 18: A Graça de Cristo e Os Misticos de fora

santíssima religião, que cuidadosamente guardam a lei natural e seus preceitos, esculpidos por Deus nos

corações de todos, e que estão dispostos a obedecer a Deus e levam vida honesta e reta, podem, AUXILIADOS

PELOS SOCORROS DA LUZ E DA GRAÇA DIVINAS, conseguir a vida eterna; pois Deus, que manifestamente

vê, esquadrinha e sabe a mente, o ânimo, os pensamentos e costumes de todos, não consente, de modo algum,

conforme Sua suma bondade e clemência, que ninguém seja castigado com os eternos suplícios que não for réu

de culpa voluntária. Porém, bem conhecido é também o dogma católico, a saber, que ninguém pode salvar-se

fora da Igreja Católica, e que os contumazes contra a autoridade e definições da mesma Igreja, e os

pertinazmente divididos da unidade da mesma Igreja e do Romano Pontífice, sucessor de Pedro, ‗a quem foi

encomendada pelo Salvador a guarda da vinha‘, não podem alcançar a eterna salvação.‖ (Papa Pio IX, Quanto

Conficiamur Moerore, Denzinger 1677).}

10. Cf. Dublanchy, De axiomate: Extra Ecclesiam nulla salus, Bar-le-Duc, 1895, p. 373 ss. e art. Église, col.

2.163 ss. do Dict. de Théol. Cathol. — Capéran, Le problème du salut des infidèles (ensaio teológico), Paris,

Beauchesne, p. 80 ss., 92. — Édouard Hugon, Hors de l’Église point de salut, Paris, Téqui, 2.ª ed., 1914, cap. I,

II, III, IV.

11. Como notam o Sr. Maritain (Les Degrés du Savoir, p. 542) e também o Pe. Bruno, parece todavia que o caso

de Ibn‘Arabi, narrado pelo Sr. M. Asin Palacios, requer muito maiores reservas que o de al-Hallâj, de que trata o

Sr. L. Massignon.

No número de abril de 1932 de Études Carmélitaines, o Sr. Miguel Asin Palacios, p. 139-239, cita textos

impressionantes do ―Sharh Hikam‖ de Ibn‘Abbâd Rondi, que certamente fazem pensar no que, mais tarde,

escreverá São João da Cruz, especialmente estas sentenças e seu comentário: ―Frequentemente Deus te ensina,

na noite da desolação, o que Ele não te ensina no esplendor do dia da consolação... Convém, pois, que o

servidor reconheça a graça que Deus lhe dá na noite de angústia‖ (citado ibid., p. 152). — ―As tribulações

escancaram generosamente o tesouro dos dons divinos... As tribulações levam a alma à presença de Deus e a

ensinam a conversar com Ele firmada na tapeçaria da sinceridade... Sê convicto da tua própria baixeza e Deus te

ajudará com Sua nobreza... Dize a teu Senhor, prosternado sobre o tapete da pobreza espiritual: ―Ó Rico! Quem

ajudará o pobre, senão Tu?‖ — ―Ó Forte! Quem ajudará o fraco, senão Tu?‖ — ―Ó Nobre! Quem ajudará o vil,

senão Tu?‖ (Ibid., p. 158).

Não se fica menos impressionado com o que é dito (ibid., pp. 118 ss.) das virtudes desse mestre: castidade,

mortificação, humildade, abnegação, caridade. Essas virtudes se exprimem nestas belas sentenças: ―Quem ama

ser famoso não é sincero diante de Deus‖ (ibid., p. 140); — ―Roga por aquele que te ofendeu, tua oração será

ouvida‖ (p. 143); — ―É nas tribulações que o homem pratica as virtudes interiores, dentre as quais a menor é

mais meritória do que montanhas de obras exteriores de virtude. São elas, por exemplo, a paciência, a

conformidade, a renúncia às coisas deste mundo, o abandono confiante à providência e o desejo de sair ao

encontro de Deus‖ (p. 145); — ―Para os que buscam a Deus, os dias de tribulação devem ser páscoas‖ (p. 157); —

―Mediante a visita de tribulações, aquele que busca a Deus obterá uma grande pureza de coração e uma

delicadeza de consciência que, por vezes, ele não obtém nem pela oração, nem pelo jejum‖ (p. 157); — ―Que o

servidor de Deus examine a obra com a qual gostaria de estar ocupado no momento mesmo de morrer, e que ele

a escolha...‖ (p. 161); — ―Engana-se aquele que se preocupa mais com suas devoções do que com suas

obrigações‖ (p. 162); — ―Há dois tipos de servidores: aquele que no estado místico se compraz em seu estado, e

aquele que está com Deus que lho concede‖ (p. 165).

Assegura-se-nos que Ibn‘Abbâd não escreveu poemas eróticos e que é por erro que se os atribuiu a ele.

{N. do T. – A nota acima foi levemente modificada pelo autor, quando este seu estudo de out. 1933 para

Études Carmélitaines foi incluído como penúltimo capítulo de seu livro de 1934 Le Sauveur et Son Amour pour

Nous, passando então a concluir com o seguinte parágrafo:

« Em contrapartida, uma pessoa muito clarividente, alma de oração, que vive em Marrocos, nos escreve depois

de tomar conhecimento desses textos de Ibn‘Abbâd: ―O trato cotidiano com as serventes daqui auprès des

fathmas qui nous servent (N. do T.) me demonstrou com frequência o quanto é preciso ter circunspecção para

Page 19: A Graça de Cristo e Os Misticos de fora

dar um sentido ao seu vocabulário religioso e julgar acerca de sua vida interior. Constantemente, por exemplo,

elas empregam as mesmas palavras que nós para significar abandono à vontade divina, e contudo, que abismo

entre seu abatido fatalismo e nosso vívido abandono cristão! Isso me ajuda a compreender como pode haver

profunda diferença de fonte para os estados mais elevados que têm analogias aparentes.‖ »}

12. Por isso, os tomistas defendem geralmente como mais provável, com Santo Tomás (IIa IIae, q. 2, a. 7), esta

tese bem conhecida: ―Post Evangelium sufficienter promulgatum, fides explicita Incarnationis est omnibus

necessaria necessitate medii ad salutem.‖ {N. do T. – Tradução livre: ―Depois de o Evangelho ter sido

suficientemente promulgado, a fé explícita na Encarnação é, para todos, necessária com necessidade de meio

para a salvação.‖}

Santo Tomás, loc. cit., diz: ―Post tempus gratiae revelatae, tam majores quam minores tenentur habere fidem

explicitam de mysteriis Christi.‖ {N. do T. – Tradução livre: ―Depois de a graça ter sido revelada, tanto os

doutos quanto os simples estão obrigados a ter fé explícita nos mistérios de Cristo.‖}. — Item, IIa IIae, q. 2, a. 8,

fine, ad 1m et 2m.

A razão disso é que Jesus Cristo é o caminho para chegar à salvação: ―Ego sum via, veritas et vita‖ {―Eu sou o

caminho, a verdade e a vida‖} (João, XIV, 6). E São Pedro diz em Atos IV, 12: ―Non est aliud nomen datum

hominibus, in quo oporteat nos salvos fieri‖ {―Nenhum outro nome foi dado aos homens pelo qual devamos ser

salvos‖}. Não há como ser salvo a não ser por Cristo, sendo incorporado a Ele, pertencendo a Seu corpo místico;

isso parece exigir nos adultos, após a realização do mistério da Encarnação, uma fé explícita nesse mistério,

uma fé explícita n‘Aquele que apaga os pecados do mundo.

Sem embargo, podemos nos indagar se o Evangelho deve ser considerado como promulgado lá onde ele ainda

não foi pregado e lá onde sua pregação foi completamente esquecida. Em todo caso, mística verdadeira

pressupõe fé, no mínimo implícita, no Redentor.

13. São João da Cruz, no Cântico Espiritual, estrofe 37, diz que os mistérios que há em Cristo recebem o nome

de cavernas, para simbolizar sua profundidade e grandeza; que os tesouros que Ele encerra são semelhantes a

uma mina inesgotável; e que aquilo que os Doutores aí descobriram representa apenas uma mínima parte. Na

Subida do Carmelo, l. II, c. 20, ele mostra que é faltar com o respeito para com Cristo, que trouxe a plenitude

da Revelação, pedir revelações privadas. Ele insiste na palavra divina proferida no Tabor: ―Este é o meu Filho

bem-amado, em quem pus minha complacência; ouvi-o‖ (Mt., XVII, 5). São João da Cruz crê ademais, como

Santa Teresa, que o contemplativo não deve, por seu próprio movimento, afastar-se da consideração da

Humanidade de Cristo.

14. Études Carmélitaines, out. 1931, p. 162, art. já citado.

15. Ibidem, p. 163.

16. O Padre Allo, O. P., Mystiques Musulmans (Vie Spirituelle, 1.º de maio de 1932, p. 110), cita as palavras do

persa Bisthâmi, que transformado pela união, em nome de Alá exclamava: ―Não há outro Deus além de mim,

adorai-me. Glória a mim! Quão grande é a minha majestade!‖, e também aquelas de Al Hallâj: ―Ana al Haqq.

Eu sou a Verdade.‖ — ―Levemos em conta‖, diz ele, ―o exagero oriental; mas, também em território cristão, a

Inquisição teria tido que se haver com eles… No que toca ao ‗puro amor‘ deles, será mesmo de admirar aquela

boa mulher (de que fala E. Dermenghem, op. cit., p. 30) que queria apagar o inferno com seu balde de água e

queimar o céu com sua tocha, para que Deus deixasse de ser amado por outra razão que não por Si mesmo?‖ —

Esse artigo excelente do Padre Allo deve ser lido na íntegra, por sua incidência na questão que nos ocupa.

17. A propósito, por exemplo, do livro do Sr. E. Dermenghem, o Padre Allo escreve justamente (loc. cit., p. 114):

―Teríamos desejado que o distinto tradutor e comentador se apoiasse um pouco mais na crítica e fizesse ver

melhor que ele capta o alcance de todas essas diferenças. De fato, uma confiança nobilíssima no espírito

humano esclarecido e dirigido por Deus, uma largueza de coração quase demasiadamente ‗católica‘, levaram-no

a descobrir por toda parte os mesmo efeitos da iluminação divina, a reduzir tudo a um catolicismo que sabe

expressar-se mais ou menos bem; parece que ele muitas vezes não viu nada além de nuances onde, porém, há

Page 20: A Graça de Cristo e Os Misticos de fora

contrastes de cor muito distintos… Há diferenças de espécie, e uma só espécie pode ser a boa, a verdadeira, a

sobrenatural.‖

18. Vie Spirituelle, loc. cit., p. 117.

19. A. Lemonnyer, L’existence des phénomènes mystiques est-elle concevable en dehors de l’Église ?, onde é

lembrada (p. 73-77 sq.) aquela boa distinção entre ―as graças místicas menores, que podemos chamar de

suplência (por causa da fragilidade do sujeito ou das dificuldades especiais em que ele se encontra) e as graças

místicas maiores, que nomearemos de perfeição‖; é destas últimas que falam habitualmente os autores

místicos, especialmente Santa Teresa, a partir da IVª Morada, ou das primeiras orações passivas.

20. Ver nessa obra a IIª Parte, cap. VI, Experiência mística e Filosofia, especialmente p. 532-539: ―Existe

experiência mística de ordem natural? 532. — Primeira objeção, 534. — Segunda objeção, 535. — Terceira

objeção, 539... As analogias naturais da experiência mística, 555-573.‖

21. Por causa dessa queda, ele nasce pecador, ―aversus a Deo, directe aversus a fine ultimo supernaturali et

indirecte aversus a Deo fine ultimo naturali‖ {N. do T. – Tradução livre: ―apartado de Deus, diretamente

apartado do fim último sobrenatural e indiretamente apartado de Deus, fim último natural‖}, pois todo

pecado que vá diretamente contra a lei sobrenatural vai indiretamente contra a lei natural, que nos prescreve

obedecer a Deus não importa o que Ele ordene.

22. Cf. os Comentadores de Santo Tomás no tratado da graça, Ia IIae, q. 109, a. 3. A maioria formula assim a

questão: ―Utrum homo lapsus possit diligere Deum super omnia ex solis viribus naturalibus sine gratia? et

Utrum homo lapsus possit sine speciali gratia omnia legis naturalis praecepta implere?‖. {N. do T. –

Tradução livre: ―Se só por suas próprias forças naturais e sem a graça o homem pós-lapsário pode amar a Deus

acima de todas as coisas?‖ e ―Se o homem pós-lapsário pode, sem uma graça especial, cumprir todos os

mandamentos da lei natural?‖} Nós tratamos amplamente, noutra parte, desse amor natural e ineficaz por

Deus: L’Amour de Dieu et la Croix de Jésus, t. I, p. 107-150.

23. L’Amour de Dieu et la Croix de Jésus, t. I, p. 199-205: ―Que pensar de uma apreensão imediata de Deus na

ordem natural‖.

24. É precisamente porque a Deidade, ou a Essência divina como tal, constitui um OBJETO FORMAL que

ultrapassa infinitamente o objeto próprio de toda inteligência criada, angélica ou humana, que Santo Tomás

pôde escrever C. Gentes, l. I, c. 3: ―Quod sint aliqua intelligibilium divinorum, quae humanae rationis penitus

excedant ingenium, EVIDENTISSIME APPARET.‖ {N. do T. – Tradução livre: ―Que, dentre as verdades

referentes a Deus, haja aquelas que excedem totalmente a capacidade da razão humana, É

EVIDENTÍSSIMO.‖}

O objeto próprio de nossa inteligência é efetivamente o ser inteligível das coisas sensíveis; a partir daí, ela pode

naturalmente elevar-se ao conhecimento da existência de Deus e das perfeições analogicamente comuns a Deus

e às criaturas, mas ela não pode elevar-se a conhecer (―quidditative‖) o que é em si A DEIDADE, objeto formal

da inteligência divina, nem o que pertence PER SE PRIMO, essencialmente e imediatamente a este objeto

formal. Como diz Santo Tomás, ibid.: ―Sensibilia ad hoc ducere intellectum nostrum non possunt, ut in eis

divina substantia videatur quid sit, quum sint effectus causae virtutem non aequantes.‖ {N. do T. – Na

tradução de D. Odilão Moura, OSB: ―As coisas sensíveis não podem levar o nosso intelecto a ver nelas o que é a

substância divina, porque elas são efeitos não equivalentes à virtude da causa.‖}

Os anjos não podem, tampouco, conhecer naturalmente aquilo que é o objeto próprio da inteligência divina:

―Non autem naturali cognitione angelus de Deo cognoscit quid est, quia et ipsa substantia angeli, per quam in

Dei cognitionem ducitur, est effectus causae virtutem non adaequans‖. {N. do T. – Tradução livre: ―O intelecto

angélico, porém, não conhece naturalmente o que Deus é, porque a própria substância angélica – da qual o anjo

se serve para chegar a conhecer Deus – é efeito não equivalente à virtude de sua causa.‖}

Santo Tomás, ibid., n.º 2. — Item, Ia, q. 1,a. 6: ―Sacra doctrina propriissime determinat de Deo, secundum quod

est altissima causa: quia non solum quantum ad illud, quod est per creaturas cognoscibile, sed etiam quantum

ad id, quod notum est sibi soli de seipso, et aliis per revelationem communicatum.‖ {N. do T. – Tradução livre:

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―A doutrina sagrada ou: teologia sobrenatural trata, propriissimamente, de Deus enquanto causa excelsa: não

somente do que se pode conhecer d‘Ele por intermédio das criaturas, mas também do que só Deus conhece de

Si mesmo, e que é comunicado aos outros por revelação.‖}

É por causa dessa diferença de objeto formal que nós mantemos, contra uma objeção recente, que se pode

demonstrar que há em Deus uma ordem de mistérios sobrenaturais, isto é, de mistérios inacessíveis às forças

naturais de toda inteligência criada.

É por isso que Santo Tomás disse, na passagem da Contra Gentes que acabamos de citar: ―Evidentissime

apparet…‖ Se há um objeto formal que pode constituir uma ordem nova, é o da inteligência divina.

Tratamos desta questão mais extensamente no número de janeiro de 1933 da Revue Thomiste (p. 71-84), e em

De Revelatione, Vol. I, cap. 11. {N. do T. – Esse artigo para a Revue Thomiste foi incluído no ano seguinte como

o primeiro capítulo da Parte II de seu livro Le Sens du Mystère et le Clair-Obscur Intellectuel (cf. trad. esp.

baixável no site ObrasCatolicas.com): é o estudo sobre ―A existência da ordem sobrenatural ou da vida íntima

de Deus‖, em resposta à recém-mencionada objeção.}

27. ―Cum usum rationis habere incoeperit... primum quod tunc homini cogitandum occurrit, est deliberare de

seipso. Et si quidem seipsum ordinaverit ad debitum finem, per gratiam consequetur remissionem originalis

peccati‖ (loc. cit.). {N. do T. – Tradução livre: ―Quando começa a fazer uso da razão... a primeira coisa na qual

ocorre a um homem refletir então é deliberar sobre si mesmo. E, se ele então dirige-se para o devido fim, ele,

por intermédio da graça, receberá a remissão do pecado original.‖ (Ia IIae, q. 89, a. 6).}

28. Cf. Sto. Tomás, Ia IIae, q. 109, a. 3.

29. Os convertidos recebem por vezes também, no momento de sua conversão, graças propriamente místicas e

mesmo graças inteiramente extraordinárias, como a conversão do Padre A. Ratisbonne, que lembra a de São

Paulo.

30. Cf. João de S. Tomás, Cursus Theol., De Donis, In Iam IIae, q. 68, diss. XVIII, a. 2; Solv. obj. nº 6: Como o

Espírito Santo vem em socorro de nossa fraqueza em meio às dificuldades. Cf. Sto. Tomás de Aquino, Ia IIae, q.

68, a. 2, ad 1 e 3. — Nós tratamos noutra parte da influência dos dons do Espírito Santo na vida ascética,

influência esta latente e bastante frequente, ou então manifesta mas rara, enquanto que na vida mística ela se

torna simultaneamente frequente e bastante manifesta. Cf. Perfection Chrétienne et Contemplation, 6ª ed., p.

371, 404-408, 769.

31. Cf. Santo Tomás, Ia IIae, q. 109, a. 3, e nos comentadores, no início do tratado da graça, a exposição da tese:

―Utrum homo in statu naturae lapsae nondum reparatae minores vires habeat ad bonum morale (naturale)

quam habuisset in statu naturae purae?‖ {N. do T. – Tradução livre: ―Se o homem em estado de natureza

decaída ainda não reparada tem menos forças para realizar o bem moral (natural) do que ele teria em estado de

natureza pura?‖}.

32. Cf. Santo Tomás, Ia IIae, q. 109, a. 6; e q. 112, a. 3.

33. Como observa o Pe. Lemonnyer, art. cit., p. 73 et sq.: ―As graças místicas menores são, propriamente,

graças de suplência. Deus, para concedê-las, leva menos em consideração o mérito, que a necessidade. Ele as

mantém em reserva, antes como socorros misericordiosamente concedidos à fraqueza, que como meios diretos

de acelerar o progresso na perfeição… Se há candidatos natos às graças místicas menores, são aqueles católicos

incógnitos, membros unicamente da Igreja espiritual… Faltam-lhes tantas coisas…‖

34. Cf. Pe. Allo, art. cit., p. 108 sq.: ―Os ‗sufis‘ ou contemplativos maometanos aprofundaram e vivificaram o

monoteísmo do Corão, que sempre foi a autoridade dogmática deles; se o cristianismo (eles estimavam

enormemente os monges cristãos) exerceu sobre eles algumas influências, foram bem menores que as do

neoplatonismo. O Vedanta indiano exerceu também as suas… Naturalmente que não admitiam a Encarnação,

dogma cristão. Eles veneravam muito a Jesus… que era para eles o tipo mesmo da união transformante… Eles

foram muitas vezes, embora no geral ortodoxos, expostos às calúnias e perseguições dos teólogos literalistas, ao

ponto de terem seus mártires, como o famoso Al Hallâj.‖ Compreende-se que, num meio desses e com tais

provações, haja nos melhores uma certa intimidade com Deus e genuínas inspirações do Espírito Santo.

Page 22: A Graça de Cristo e Os Misticos de fora

35. Essas graças devem mesmo ser mais frequentes depois da Consagração do gênero humano ao Sagrado

Coração, feita pelo Papa Leão XIII no começo deste século {vinte}. E Maria, Mãe de todos os homens,

certamente obtém a salvação de muitos pecadores. {N. do T. – Mais ainda depois da Congração do Mundo ao

Imaculado Coração de Maria, com menção especial à Rússia, realizada pelo Papa Pio XII em 31 de outubro de

1942 (repetida a 8 de dezembro) e, ainda mais explicitamente, em 7 de julho de 1952.}

36. Cf. Lemonnyer, loc. cit.: ―As graças ou fenômenos místicos maiores supõem uma caridade em vias de se

tornar perfeita, e chamada a sê-lo efetivamente. Mesmo no seio da Igreja visível, onde a graça de Jesus Cristo se

derrama com maior abundância, são raras, em suma, as almas que Deus assim favorece, após tê-las disposto a

tanto. É-se levado a crer que sejam bem mais raras ainda naquela dispersão onde a atmosfera espiritual é

menos pura e são tão reduzidos os meios exteriores de santificação... A existência de fenômenos maiores da

vida mística permanece perfeitamente concebível naquela porção da Igreja espiritual que é exterior à Igreja

visível, se bem que há fortes razões a priori para crê-la raríssima.‖

37. Não obstante, como foi justamente assinalado: ―Se o coração é humilde e fiel sem saber dizê-lo, a graça

sobrenatural saberá tomar plena posse dele, e tal imperfeição na formulação doutrinal nada mais será que

homenagem muda e involuntária à plena transcendência da Revelação cristã.‖ — As graças prevenientes e de

confortação, concedidas às almas mais conscienciosas desses meios pagãos, visam talvez menos, em geral,

retificar fórmulas abstratas que traduzem mal por vezes o que está no fundo da inteligência e do coração, que

compensá-las no movimento concreto da alma para Deus, delas surrupiando o veneno mediante o vazio da

teologia negativa, mediante o espírito de renúncia e de abandono. Assim Eckart e Rosmini juntavam a fórmulas

especulativas errôneas uma verdadeira caridade.

38. Ia, q. 63, a. 3: ―In hoc angelus appetiit indebite esse similis Deo, quia appetiit ut finem ultimum

beatitudinis id ad quod virtute suae naturae poterat pervenire, avertens suum appetitum a beatitudine

supernaturali, quae est ex gratia Dei.‖ {N. do T. – Tradução: ―O anjo maligno desejou indevidamente ser

semelhante a Deus, porque desejou como fim último de sua bem-aventurança aquilo a que poderia chegar com

suas próprias forças, desviando o seu desejo da bem-aventurança sobrenatural, que é dada pela graça de

Deus.‖}

39. Enéadas, V, 5, 10; IV, 3, 32 {N. do T. – Na versão que pude consultar: V, 5, 8; VI, 7, 36}.

40. Procli Opera Inedita, edição de Victor Cousin, Paris, 1864, col. 171.

41. Cf. Sermões de Tauler, tradução pelos Rev.s Pe.s Hugueny, Théry O.P., e A. L. Corin. Introdução teológica

do Pe. Hugueny, t. I, pp. 92, 93.

42. Santo Tomás diz até que não repugna que Deus faça um milagre para confirmar uma verdade natural da

religião ou o valor de uma virtude como a castidade. Cf. De Potentia, q. 6, a. 5, ad 5m, onde ele diz, a propósito

de uma vestal que teria carregado água do Tibre num vaso perfurado, como relata Santo Agostinho em De

Civitate Dei, l. X, c. 26: ―Non est remotum quin sit in commendationem castitatis quod Deus verus per suos

angelos bonos hujusmodi miraculum, per retentionem aquae fecisset, quia si aliqua bona in gentibus fuerunt, a

Deo fuerunt.‖ {N. do T. – Tradução livre: ―Não se exclui que, para recomendar a castidade, o verdadeiro Deus

fizesse por meio de Seus anjos bons um milagre desse gênero, retendo a água, pois se houve entre os pagãos

alguns bens, estes vieram de Deus.‖} É verdade que esse fato extraordinário não é um milagre propriamente

dito, pois não excede o poder natural dos anjos bons ou maus.

_____________

PARA CITAR ESTA TRADUÇÃO:

Rev. Pe. R. GARRIGOU-LAGRANGE, O. P., A graça de Cristo e os ―místicos de fora‖ — Pré-

mística natural e mística sobrenatural, Roma, 1933; trad. br. por F. Coelho, São Paulo, abr.

2014, blogue Acies Ordinata, http://wp.me/pw2MJ-2gn

Page 23: A Graça de Cristo e Os Misticos de fora

de: ―Prémystique naturelle et mystique surnaturelle‖, publicado originalmente em: Études

Carmélitaines, out. 1933, pp. 51-77 [cf. transcrição em:

https://web.archive.org/web/20040322113858/http://www.salve-

regina.com/Spiritualite/Premystique_naturelle.htm], e reproduzido no ano seguinte pelo A. sob o

título ―La grâce du Christ et les mystiques du dehors‖, como capítulo XVIII de seu belíssimo livro: Le

Sauveur et Son Amour pour nous, pp. 427-64.