a geraÇÃo da net estÁ - ige.min-edu.pt · doente. não há nada que não possa ser feito online,...
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8 | Domingo 5 Abril 2015 | 2
A GERAÇÃO DA NET ESTÁ SEM REDE
PAULO MOURA TEXTO NUNO FERREIRA SANTOS FOTOGRAFIA
2 | Domingo 5 Abril 2015 | 9
Os adolescentes de 12 a 15 anos têm uma experiência diferente da Inter-net. Estão dentro dela, todo o tempo, não distinguem o real do virtual. Que oportunidades e pe-rigos os esperam? Num mundo onde tudo o que fazemos online é registado e vigiado, uma gera-ção totalmente digi-tal será particular-mente vulnerável. Em Portugal, onde o hiato entre a lite-racia informática entre pais e fi lhos é dos maiores da Eu-ropa, a “geração Magalhães” está en-tregue a si própria
André Nunes, 12 anos, faz vigílias madrugada fora com dois monitores abertos, um para jogar e outro no Skype. E Mafalda Nunes, 13 anos, tem todas as suas conversas importantes online
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Marta Gonzaga, 14 anos, 9.º ano,
Funchal. Nem precisa de sair
da cama. Basta estender um
braço para enviar à melhor
amiga, por Snapchat, uma ima-
gem sua a acordar, mas só por
um segundo, talvez dois, para
que a amiga não se fi xe nos por-
menores. Pode ver um vídeo
de cinco segundos de alguém
conhecido a lavar os dentes, actualizar fotos de
alguns desconhecidos que adicionou no Insta-
gram, congelar num screenshot um momento
banal registado do outro lado do mundo. Selfi es
no Instagram, acha feio. E chat no Facebook é
pouco autêntico. “Já ninguém usa o Facebook.
Há um ano, sim, mas agora…” A competição
pelo número de “likes” é uma infantilidade do
passado. Uma obsessão inútil por “ser ou não
ser muito popular”. Que importância tem is-
so? “Tudo é falso no Facebook. Os verdadei-
ros amigos estão no Twitter. É um ambiente
diferente.”
Tudo o que escreve no Twitter tem destina-
tário: os elementos da banda One Direction.
Nunca responderam, mas “só de escrever as
frases uma pessoa já se sente melhor”. Tal co-
mo formular desejos na Fandom da banda ou
despejar milhares de caracteres de histórias
inventadas com o One Direction Harry contra-
cenando com outras celebridades, no site para
jovens escritores Wattpad. As fi cs (fanfi ction)
de Marta são de leitura proibida a amigos e
família, fi ntados com nicknames e passwords,
embora já tenham ultrapassado as 27.840 visua-
lizações, todas de leitores desconhecidos. Cada
um dos 1700 seguidores recebe uma notifi cação
sempre que Marta “lança ao mundo” um novo
capítulo, tal como ela (e outros mil milhões de
seguidores) foi notifi cada de cada um dos 300
capítulos da série After, que a americana Anna
Todd foi publicando na Biblioteca Virtual, antes
de os ler na íntegra no ecrã do telemóvel. E de
ter respondido com comentários, sugestões e
desabafos, no Wattpad, Fandom, WhatsApp,
Instagram, Snapchat ou Twitter, em forma de
emogies, abreviaturas ou onomatopaicos, sobre
a vida social ou íntima dos One Direction, das
amigas ou de si própria.
“Vou de férias mpts (meus putos)” e “Naque-
les momentos em que a mãe grita contigo e tu
fi nges que não ouves” são exemplos das frases
que Marta lança no Twitter, para depois contar
os retweets que provoca, as reacções do género
“ahahah”, ou :) (smile), ou mesmo as reaction
picture (selfi es que as amigas fi zeram com a cara
com que reagiram ao tweet).
Tudo isto sem sair da cama, no seu quarto,
onde é notório que a secretária nunca é usa-
da, enquanto André Nunes, 12 anos, 7.º ano,
Parede, Cascais, faz vigílias madrugada fora
com dois monitores abertos ao mesmo tem-
po, um com o jogo multiplayer online League
of Legends, ou Minecraft, ou Watchdog, outro
com o Skype dividido em cinco chamadas si-
multâneas onde vai comentando o jogo com os
amigos, e talvez ainda um vídeo no YouTube
com explicações sobre o jogo, além do Face-
book, as sms do telemóvel e provavelmente a
PlayStation. Por vezes fi ca online seis ou sete
horas seguidas, com a mãe no quarto ao lado a
ameaçar desligar o router e a irmã a queixar-se
da sobrecarga da rede que a torna lenta quando
ela quer ver um fi lme no Wareztuga.pt, falar
com as amigas no Facebook e constituir família
no jogo Sims.
Mafalda Nunes, 13 anos, 8.º ano. Todas as
suas conversas importantes decorrem online.
Tem uma amiga com quem fala todos os dias
no Facebook. Foi ela que colocou na rede social
fotografi as dos cadernos e dos apontamentos,
quando Mafalda faltou às aulas por ter estado
doente. Não há nada que não possa ser feito
online, excepto ler livros, que Mafalda prefere
em papel. Em tudo o resto, a Net é preferível à
realidade. Nem a praia consegue competir. Não
há tanta vontade de sair, ou de namorar, como,
com a mesma idade, acontecia com a geração
anterior. Comprar roupas de marca também já
não é importante. Ter um iPhone, sim. Não é o
mesmo que usar um qualquer smartphone de
marca branca. Desculpa: a velocidade.
Mafalda vem à porta do quarto. “Quem está
a usar a Net? Está tão lenta. O pior que há é
a lentidão.” A mãe manda André para a ca-
ma. Desculpa dele: “É frustrante sair a meio
de um jogo. Porque tem de se recomeçar. Nos
jogos online os jogadores têm penalizações se
interromperem a partida a meio. Podem fi car
impedidos de jogar por uma semana.”
Sofi a prefere viajar. Sofi a Lucas, 12 anos, 7.º
ano, Braga. O Google Earth é o seu site favorito.
Foi lá que conheceu Paris, Nova Iorque, Roma,
Washington, Londres, lugares que quer visitar
na realidade.
Também gosta de jogos, e conversa com as
amigas no Facebook, onde também começou
a namorar. Foi um caso que começou e acabou
por via digital. O primeiro contacto aconteceu
na realidade, mas aí o rapaz não se declarou.
Admitiu mais tarde: “No primeiro dia em que
te vi, achei que irias ser minha namorada.” Mas
guardou a conjectura para si. Só no Facebook
a inclinação ganhou realidade. Foi lá que se
declarou, no Dia dos Namorados, e foi por sms
que pôs termo a uma relação de 111 dias e mais
de 5 mil mensagens (uma média de 50 por dia).
Fê-lo movido pelo pragmatismo, quando Sofi a
mudou de escola: “Não te vou ligar mais, ar-
ranjei outra.”
A 400 quilómetros de distância, Duarte po-
dia ter assistido a tudo isto, se usasse as suas
técnicas hackerianas preferidas de Man in the
Middle. Mas ele prefere usar as suas armas pa-
ra o Bem.
Duarte Marques, 14 anos, 9.º ano, Carnaxide,
Oeiras. Aprendeu muito cedo a usar compu-
tadores, porque o pai tinha uma empresa de
informática. Começou por um Magalhães, que
lhe foi atribuído na escola. Um “Gamalhães”,
diz ele, com que conseguia “gamar” música,
software, ou tudo o que quisesse. Agora, sen-
te que sabe mais do que a maioria, o que é
uma forma de poder e uma responsabilidade.
É contra a pirataria, mas a favor da total liber-
dade na Web.
É Anonymous. Tem a máscara de Guy Fa-
wkes, que encomendou pela Net, em três ver-
sões — normal, dourada e prateada. Tenciona
usar a Internet para mudar o mundo, que vê
dominado pela corrupção, o crime e a injustiça.
“O que pretendo é mudar o sistema político,
do mundo em geral.” Através de sites de hacti-
vismo, e da rede do Anonymous, imagina-se a
praticar acções de rebeldia com consequências
signifi cativas, embora planeie vir a trabalhar
numa grande empresa, como consultor de se-
gurança informática.
“Leio muitos artigos sobre Internet e infor-
mática. O conhecimento é gratuito e é poder.
Quanto mais conhecimento reunirmos, mais
poder temos.”
Ainda não lançou nenhum grande ataque, e
nunca o fará de forma gratuita. Apenas umas
habilidades, para treinar. “Com o Skype, con-
sigo desligar o router de outra pessoa”, diz
Duarte. “E posso interceptar comunicações
no Skype, que não são encriptadas.” E inserir
intempestivos scripts ou pop-ups quando as pes-
soas estão a navegar por um site qualquer.
E aquelas imagens esquisitas, por exemplo
um cavalo a galopar só com duas pernas, que
apareceram no meio da projecção powerpoint
da professora? Foi ele, confessa. “Tive pena.
Por vezes as professoras querem o nosso bem,
não são demoníacas.”
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É alterar as notas ou as faltas, que a professo-
ra introduz no portal da escola? “Esses sistemas
são muito vulneráveis. Era muito mais difícil
dantes ver o caderno onde os professores regis-
tavam as notas. Os professores ainda guardam
algumas notas num caderno. Essas são as mais
difíceis de ver.” Entrar no site para mudar uma
nota ou uma falta é portanto fácil. Se Duarte o
fez ou não, é informação secreta. Que o pode
fazer, isso sim, gosta que se saiba.
Um dos objectivos de todas as acções dos
Anonymous “é serem levados a sério”. Não co-
metem “actos ilegais que não façam sentido”,
mas acham importante fazer sentir o seu poder.
“Anonymous é uma comunidade. Não é um
grupo para onde se entre ou a que se pertença.
Quem quiser ser Anonymous é. Basta ter esta
atitude, de resistir contra o sistema. Estamos
atentos ao que acontece. Vemos tudo. Estamos
em todo o lado. Somos o teu vizinho, o teu
amigo, o teu professor.”
Atirar sites abaixo pode ser um aviso, uma
demonstração de poder e revolta. Quanto mais
importantes e mais supostamente invulnerá-
veis forem os sites, melhor. O do PÚBLICO, por
exemplo. Duarte pode fazê-lo colapsar, se qui-
ser. “Fácil. Basta um telemóvel e a ajuda de uns
tantos amigos. Posso experimentar? Só como
teste, para ver até que ponto o site é vulnerável
ou não? Mas depois pode levar semanas até que
se consiga trazê-lo de novo à vida.” No dia da
publicação da reportagem, hoje, domingo, 5
de Abril, o PÚBLICO sofreria um eclipse. Fi-
cou no ar a possibilidade. Não serias capaz de
o fazer, Duarte!
A Internet tem mais de 20 anos, mas
nos últimos cinco transformou-se
qualitativamente. Não só multipli-
cou as possibilidades, com aplica-
ções que permitem fazer quase tu-
do de forma virtual, mas também
se tornou ubíqua. Até há pouco
tempo, ia-se à, ou usava-se a In-
ternet. Agora estamos na Net em
permanência, através dos portáteis
ou dos smartphones, por redes wifi ou 4G.
Já se tinha identifi cado uma geração de “nati-
vos digitais”, ou de “millennials”, mas só muito
recentemente surgiram entre nós os primeiros
seres totalmente conectados de nascença. Há
quem lhes chame “hyperconnected” ou “cy-
berkids”, mas a verdade é que ainda não há
nome para a nova espécie, e pouco se sabe
sobre o que são ou virão a ser.
Para eles, escrever à mão num papel é uma
actividade arcaica apenas obrigatória pela tei-
mosia jarreta de alguns professores ou pais.
Comunicar é algo natural, que não implica
deslocações nem gastos, o conhecimento está
disponível em quantidades ilimitadas, a infor-
mação brota de todo o lado, sem fi ltros nem
critérios de validação, não há distâncias nem
obstáculos, o consumo de arte e cultura é fácil e
gratuito para todos, e a sua produção também,
o que é real e virtual confundem-se, a liberdade
é uma evidência e uma vertigem, a privacidade
uma noção cada vez mais longínqua.
Que oportunidades e que perigos esperam os
jovens que têm agora 12, 13 ou 14 anos? Serão
donos de poderes nunca vistos ou estarão a
posicionar-se para serem escravos? Servirá a
sua fabulosa vida online apenas para os colocar
à mercê de eventuais ditaduras do futuro?
Muitos dos perigos da vida online têm sido
estudados e objecto de campanhas de infor-
mação dirigidas aos adolescentes e aos pais,
hoje conscientes dos riscos relacionados com
a pedofi lia e vários tipos de crimes. Cuidados
como o de não colocar fotografi as de menores
nas redes sociais, não divulgar moradas ou nú-
meros de telefone, não aceitar desconhecidos
como “amigos” são já mais ou menos habituais,
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segundo os conselhos divulgados pela polícia
nas escolas.
As práticas de cyberbullying, ostracismo ou
violência também têm sido alvo de alguma
atenção. O mesmo com o vício e uso excessivo
da Internet, e com os problemas da imagem e
da reputação, sob o ponto de vista da aceitação
social e da obtenção e manutenção de empre-
go. Mas ninguém está a informar os jovens so-
bre a vulnerabilidade global e irreversível que
vem com a imersão no mundo digital.
Todos os nossos gestos digitais deixam uma
pegada e podem ser gravados, descodifi cados,
processados. Sabe-se que empresas usam da-
dos fornecidos por redes sociais para conhe-
cer os padrões de consumo dos utilizadores
e orientarem as suas campanhas de vendas.
Sabe-se também que agências de informação de
governos acedem aos nossos telefonemas, men-
sagens, emails, conversas no Facebook, Twitter
ou Skype, além de registos de despesas com
cartões de crédito, levantamentos multibanco,
sinais de localização de redes móveis e de GPS,
imagens de câmaras de vigilância, etc.
Quanto maior for a porção da nossa vida que
decorre nos dispositivos digitais, maior é a nos-
sa exposição. Em breve não será possível dar
um passo sem ser controlado por alguém. Há
inegáveis vantagens nesta realidade e podemos
optar por aceitá-la. Mas será possível a opção
contrária? Ou estabelecer limites?
Para Teresa Paula Marques, psicóloga e di-
rectora clínica da Academia de Psicologia da
Criança e da Família, a concluir uma tese de
doutoramento sobre Facebook, Riscos e Oportu-
nidades, uma das noções a ter em conta é que
já não há distinção entre mundo real e mundo
virtual. Para os jovens, é o mesmo ter falado
com um amigo pessoalmente ou através do
Facebook. “São duas faces da mesma realida-
de.” Por isso, é de esperar comportamentos
idênticos. “Os adolescentes gostam de ser vis-
tos por todos, admirados pelos seus pares. As
meninas pela beleza, os rapazes pelas façanhas.
São muito populares o desafi o da canela (em
que se ingere canela até ao vómito), o desafi o
do desmaio, as fotografi as em locais arriscados.
No Facebook, o efeito que temos nos outros é
mensurável imediatamente pela quantidade de
‘likes’. Estes têm um grande impacto na auto-
estima. Se forem poucos, a tendência será para
acentuar as acções. No caso das meninas, pa-
ra usar biquínis mais ousados, no dos rapazes
para fazerem coisas mais perigosas. É por isso
que o comportamento no Facebook tende a
ser excessivo.”
Pelo mesmo motivo, são geralmente mais
intensas, nas redes sociais, as manifestações
tanto de afecto como de agressividade.
“Há páginas de ódio e perseguição, e é difí-
cil descobrir quem está por trás. Há casos de
assédio online, são enormes os riscos de cy-
berbullying e de sexting, em que os namorados
divulgam na Net, após terminada a relação, as
fotografi as íntimas que a rapariga lhe enviou.
Mas por outro lado é muito fácil ‘desamigar’
alguém. Mais do que na vida real. E os estudos
mostram que ser ‘desamigado’ tem um impacto
negativo fortíssimo nos jovens.”
Uma das consequências inevitáveis da vida
na Net é a confusão entre os níveis de privaci-
dade e de intimidade. Entre estes e o nível do
que é público, os jovens são capazes de distin-
guir. Mas o que é íntimo passa facilmente para
a esfera do que é meramente privado, explica
Teresa Marques. “As pessoas expõem facilmen-
te a sua orientação sexual, ou outras informa-
ções íntimas, o que as torna particularmente
vulneráveis.”
Fazem-no porque não têm a consciência
da verdadeira dimensão das audiências que
podem atingir, nem do carácter indelével das
informações disponibilizadas nas redes sociais.
“Tudo o que está no Facebook é eterno e pode
vir a ser perigoso mais tarde.”
Quanto à noção da existência de poderes
superiores, de alguma entidade que venha a
pretender ter poder sobre nós e de quem nos
deveríamos proteger, os jovens não a conhe-
cem.
Não identifi cam ninguém que devessem
temer ou de quem fosse prudente esconder
alguma informação íntima ou confi dencial.
Apenas um ser representa para eles uma au-
toridade simbólica, uma entidade com quem
há que ter mil cuidados, a quem não se pode
mostrar tudo.
Não, não é a NSA, nem a Administração ame-
ricana, o Estado Islâmico, as grandes empresas
multinacionais ou o Clube de Bilderberg. É a
avó. Por ela se pratica a autocensura e se faz
uma criteriosa regulação dos botões de priva-
cidade do Facebook. “O que não gostarias que
a tua avó visse” — este parece ser o único limite
à liberdade dos jovens na Internet. A avó é a
última fronteira.
Ana Jorge, investigadora da Universidade
Nova de Lisboa, a realizar um pós-doutora-
NUNO FERREIRA SANTOS
No plano anterior, Duarte Marques, 14 anos. É contra a pirataria, mas a favor da total liberdade na Web. Anonymous, tem a máscara de Guy Fawkes, que encomendou pela Net, em três versões — normal, dourada e prateada (como se vê na capa da Revista 2)
Marta Gonzaga, 14 anos, diz que tudo é falso no Facebook e que os verdadeiros amigos estão no Twitter
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mento sobre Culturas dos Media e Consumos
Infanto-Juvenis, cita a investigadora america-
na de redes sociais Danah Boyd para expli-
car o conceito de “colapso dos contextos”.
Os jovens “perderam a capacidade de selec-
cionar discursos diferentes para audiências
diferentes. Não têm consciência de que o que
dizem estará disponível para vários tipos de
públicos”.
E, se as campanhas educativas têm sido bem
sucedidas no que respeita às práticas de pre-
venção da criminalidade através da Internet,
falta toda uma educação para a cidadania no
que respeita ao uso consciente da Rede. Por
exemplo no que respeita à partilha de informa-
ção e ao uso de dados. “As redes sociais não são
de graça. No Facebook estão a gerar valor para
os anunciantes. Nós somos audiência.”
Para Ana Jorge, é arriscado falar de caracte-
rísticas próprias de gerações, porque não se
pode generalizar excessivamente. Os estudos
mostram que há muitas diferenças e muitos
ritmos no seio de uma mesma geração, clivada
por grupos sociais, culturais ou regionais.
As camadas mais pobres, por exemplo, são
mais vulneráveis aos riscos da Internet. Numa
família onde os pais não dominam as tecnolo-
gias, é menos provável que os fi lhos lhes con-
tem os problemas que encontram ou aceitem os
seus conselhos. Não reconhecem autoridade a
quem não domina os gadgets ou a terminologia
que lhes está associada.
Também as raparigas são mais vulneráveis
do que os rapazes, e os jovens de alguns países
mais do que os de outros.
Entre os países da União Europeia, Portugal
é um dos que apresentam um hiato maior en-
tre a literacia digital de pais e fi lhos. Há toda
uma geração iniciada nos computadores com
a campanha dos Magalhães nas escolas. Foi
um factor de unifi cação dos jovens, mas não
dos pais. “Devido ao Magalhães em 2008 e ao
projecto E-Escola, Portugal é um dos países
europeus onde é maior o número de famílias
onde são os fi lhos que sabem mexer nos com-
putadores”, diz Ana Jorge.
Em parte por este motivo, Portugal é tam-
bém um dos países onde os jovens acedem
mais à Internet sozinhos a partir do seu quar-
to. Os pais associam o uso dos computadores
à realização dos trabalhos escolares, pelo que
abdicam de vigiar as actividades dos fi lhos na
Internet. Neste sentido, os adolescentes por-
tugueses, em particular os provenientes de
famílias com níveis educacionais mais baixos,
são particularmente vulneráveis aos perigos
do mundo digital.
Os pais de Sofi a exercem um con-
trolo disfarçado, mas fi rme so-
bre tudo o que ela faz na Net. A
mãe, Vânia Mesquita Machado,
que é médica pediatra, explica
todas as regras que Sofi a deve
respeitar, diferentes das dos ir-
mãos mais novos. Só teve acesso
ao Facebook aos dez anos e na
condição de os pais conhecerem
a password. Apenas pode colocar fotografi as
suas com óculos de sol e só aceitar amigos que
conhece.
Se surgem problemas, a mãe sabe que ajudar
a fi lha passa por dominar os mesmos meios.
Uma vez, uma amiga de Sofi a começou a ter
um comportamento reprovável. Enviou men-
sagens e fez comentários sobre ela com ou-
tras amigas, mexeu nas suas coisas no cacifo
da escola. Vânia pediu-lhe amizade no Face-
book. Quando ela aceitou, fê-la explicar o que
se passava, a responsabilizar-se e a corrigir o
comportamento.
“Se eu tivesse ido falar com a mãe dela, não
teria resultado. O Facebook foi a solução.”
Os pais de Mafalda e André sabem da sua vida
escolar através da plataforma Inovar, onde os
professores registam as notas, faltas, sumários
e outras observações, além das despesas do
cartão de refeições.
Sofi a Martins, a mãe, dá grande liberdade
aos fi lhos nos contactos com amigos nas redes
sociais, porque viveram oito anos em Oleiros,
uma aldeia da região de Castelo Branco, e per-
deram o contacto com os colegas.
Agora vivem na Parede mas falam com eles
todos os dias. A mudança não foi tão traumática
graças à Internet. “Falo sempre com a minha
melhor amiga, que será sempre a minha me-
lhor amiga”, diz Mafalda.
Sem a Net, a vida seria muito diferente. Uma
vez, lembram-se de que a electricidade falhou.
“Estivemos assim cinco horas, não sabíamos o
que fazer”, diz André. “Foi dramático.” Mafalda
acrescenta: “Foi o fi m do mundo.”
Marta sonha com o dia em que um dos ele-
mentos dos One Direction lhe responda. Nunca
chegou nenhum tweet deles, mas sim de um
primo. Pelo menos de alguém que afi rma ser
seu primo. “Nesse dia foi uma emoção cá em
casa”, diz Susana Gonzaga, mãe da Marta. Um
primo respondeu. Mas como pode saber se é
realmente primo? “Eu confi rmei, fui ver os ami-
gos e mensagens dele.”
Marta mostra mensagens que trocou com o
suposto primo. “Diz qualquer coisa sobre ti”,
perguntou ela. A resposta: “I like feet” (gosto
de pés).
O star system na Net é muito próximo da lou-
cura. Há ídolos que nasceram no Youtube e
nunca fi zeram nada na vida real, os fandoms
de bandas como os One Direction reúnem mi-
lhões de fãs que escrevem e lêem histórias in-
ventadas, virtuais, sobre os rapazes da banda
e se automutilam realmente quando um deles,
Zayn Malik, abandona o grupo.
“Eu sei que a música deles não é muito boa”,
diz Marta. “Eu dantes gostava de Grunge, dos
Red Hot Chilli Peppers, e não é a mesma coisa.
Mas os One Direction são o meu guilty plea-
sure.”
Apesar de toda a sua vida online, Marta gosta
de ler livros em papel. E de capa dura. Anda a
ler vários clássicos. Anna Karenina, Jane Eyre,
todo sublinhado. Orgulho e Preconceito em in-
glês. Sabe passagens de cor. Diz sem hesitar: “If
your feelings are still what they were last April,
please tell me so at once…”
A mãe de Duarte, Ana Bastos, não lhe paga
a Internet no telefone, mas ele “rouba” o sinal
das redes que apanha por todo o lado. Conhe-
cimento é poder. E a única saída para quem
vai viver num mundo dominado pelo digital.
“Hoje, os mais jovens são mais responsáveis”,
diz ele. Porque já sentem na pele o que lhes
vai acontecer.
Duarte vê o futuro com preocupação. “A tec-
nologia muda a personalidade das pessoas. A
maioria vai ser como robôs. Mas alguns vão
ser mais livres. Your ignorance is their power.
Wake up!”
Duarte imagina no futuro uma espécie de
regresso da Idade Média. “Na época feudal, o
povo era escravo, mas isso soava-lhes normal.
A mente deles estava fechada. Não tinham ca-
pacidade para se revoltarem. Agora parece-me
que essa realidade está a voltar. Na sua maioria,
as pessoas são simples. Não vão reparar que
estão a ser usadas.”
Quem quiser resistir tem de fazê-lo dentro da
Internet. De certa maneira, “a terceira guerra
mundial já começou, é a guerra digital”. No
futuro, Duarte imagina-se, se necessário, a ter
duas vidas, uma normal, no emprego, seguindo
as regras, outra como Anonymous. “A Inter-
net não pode ser controlada. A Internet não
é um país.”
Dois países,uma semana,
dez autores
Carlos Reis
Gonçalo M. Tavares
Jerônimo Pizarro
Afonso Reis Cabral
Alexandra Lucas Coelho
Norberto Morais
Emilio Fraia
Gregorio Duvivier
Matilde Campilho
Adriana Calcanhotto
O Ípsilon atravessa
o Atlântico e promove
com a Livraria Cultura
o evento que vai fazer
Portugal falar
com o Brasil.
São Paulo
facebook.com/PublicoBR
18 | Domingo 5 Abril 2015 | 2
QUANDO OS BEBÉS SEM SORRISO SE TORNAM ADULTOS
Nasceram quando o país mal pronunciava a palavra “autismo” e tornaram-se adultos com perspectivas limitadas. Se mantiveram a inocência original, precisam de uma ocupação especializada quo-tidiana que escasseia; se desenvolveram competências para o mer-cado laboral, depara-se-lhes a intolerância de patrões e colegas que se sentem incomodados pela sua incapacidade de estabelecer con-tacto visual ou perceber instruções que envolvam humor, ironia ou sentido fi gurado. Esta semana assinalou-se o Dia Mundial de Con-sciencialização do Autismo
ALEXANDRA COUTO
A Francisca era uma criança normal
até que um dia, aos dois anos e
meio, deixou de falar. Passou a não
encarar ninguém nos olhos e fi cava
em pânico quando via armários fe-
chados. Hoje tem o corpo de uma
mulher de 24 anos a envolver uma
personalidade de menina, pon-
tua conversas que se desenrolam
sem ela com um súbito grito que
faz parar uma sala inteira e, se alguém estiver
a escrever à mesa e pousar a esferográfi ca de
forma descuidada, ela pega-lhe automatica-
mente, vira-a na direcção de quem escreve e
alinha-a na vertical. Repete o gesto uma e outra
vez, tantas quantas os outros se esquecerem
de cumprir com a posição. Depois, despede-se
com um beijo. E outro, e ainda mais um. “Ela
é sempre assim querida?”, perguntam à mãe
da beijoqueira. “É. Mas o que você não está a
perceber é que isso é a forma de ela dizer que
se quer ir embora”, responde.
O Pedro tem 22 anos, acompanha educa-
2 | Domingo 5 Abril 2015 | 19
MANUEL ROBERTO
damente qualquer conversa e, mesmo que se
mantenha muito reservado, reage com riso
franco a qualquer nota de humor. Sentado no
chão, reparte-se por tarefas simultâneas que
dispõe em seu redor: lê o jornal, joga cartas,
faz contas na calculadora e preenche páginas
e páginas com a escrita encriptada que criou
para si próprio. É perante emoções mais fortes,
no entanto, que realmente se denuncia como
diferente. Quando queimou o pescoço num
trabalho de soldadura do seu curso técnico-
profi ssional, por exemplo, não emitiu um ge-
mido que fosse, não contou a ninguém que
se ferira e a mãe só descobriu a gravidade do
problema por lhe ter reparado num número
excepcional de visitas ao espelho da casa de ba-
nho. Já quando o momento é de grande alegria,
manifesta-se com gestos nervosos dos braços
e um dedilhar irrefl ectido no tronco. “É como
se fossem cócegas”, conta o pai. “Mas ele fá-
las tão inconscientemente que às vezes nem
repara que fi ca com a pele em ferida, quase
a sangrar.”
A Francisca e o Pedro são autistas. Mas se
a terminologia correcta para enquadrar este
tipo de patologias neurocomportamentais é
“perturbações do espectro do autismo”, isso
deve-se precisamente à abrangência do leque
de formatos em que a doença se pode manifes-
tar: a Francisca estará no extremo do espectro
que envolve menos autonomia; o Pedro está
diagnosticado com Síndrome de Asperger, que,
no extremo oposto, é ocupado pelos autistas
mais funcionais.
Cada um destes jovens tem assim um con-
junto de peculiaridades muito próprias, o que
não invalida a existência de aspectos que serão
comuns a todos os autistas e que se farão notar
pela primeira vez entre os dois e os três anos de
idade. Para o médico João Guerra, que integra
o Departamento de Pedopsiquiatria do Centro
Hospitalar do Porto, as características nucleares
da doença são “um comprometimento do fun-
cionamento social, um padrão restritivo e repe-
titivo de interesses, e, depois, um conjunto de
outras alterações associadas ao desenvolvimen-
to, como limitações de linguagem, do sistema
motor e ao nível sensorial”. O pedopsiquiatra
garante que “não se consegue detectar uma
causa única” para o problema, mas atribui-o
a razões de origem genética e ambiental, ad-
mitindo ainda a possibilidade de “uma certa
interacção com a imunologia, que provocará no
cérebro a alteração que causa a doença”.
No primeiro caso, por exemplo, alguns dos
diagnosticados evidenciam diferente suscepti-
bilidade epigenética, o que signifi ca que sofre-
ram variações celulares e fi siológicas que não
foram causadas por alterações no seu DNA e
sim por reacções químicas como a da acção
repressiva das proteínas no silenciamento de
determinados genes. “As alterações epigené-
ticas não alteram o gene em si próprio, mas
mudam a forma como é feita a leitura genética,
activando ou não esse gene”, complementa
João Guerra. “Essas alterações depois permitem
que nos adaptemos ao meio, mas também nos
fazem sofrer infl uências do mesmo, nomeada-
mente a infl uência de agentes químicos, entre
outros, que, estando presentes no ambiente,
poderão dessa forma ter uma acção nociva no
neurodesenvolvimento.” Crianças que vinham
evidenciando um desenvolvimento aparente-
mente normal e que até já usavam alguma lin-
guagem podem assim, “de um momento para
o outro”, apresentar uma regressão no desen-
volvimento. “Não sabemos bem o que se passou
no cérebro dela para que tenha regredido, mas
algo aconteceu na interacção da sua genética
com o ambiente.” O médico do Porto assegura,
contudo, que “a maioria dos casos de autismo
ocorre mesmo é em pessoas com familiares que
já têm perturbações desse género”.
Pedro Caldeira, da Unidade de Primeira In-
fância do Centro Hospitalar Lisboa Central,
acrescenta que a globalização também terá in-
fl uência: “O autismo poderá estar relacionado
com o aumento da idade em que as pessoas
têm fi lhos, sobretudo a dos pais homens, mas
também é de considerar o efeito do aumento
de parceiros provenientes de culturas distin-
tas. Quando o relacionamento do casal é em
Francisca, 24 anos, na casa do Porto
20 | Domingo 5 Abril 2015 | 2
idiomas diferentes das suas línguas nativas, o
problema já pode vir dos pais, mas há coisas
que se perdem na tradução — aspectos subtis,
nuances reveladoras — e descartamos esses
indícios por pensarmos que são apenas sinais
de outra cultura.” Um parceiro “muito calado
ou demasiado interessado por pontes ou ma-
pas”, por exemplo, poderá estar a manifestar
uma difi culdade subclínica de autismo, mas
a esposa portuguesa não considerará o facto
pertinente e, provavelmente, até lhe achará
alguma graça. “Vai dizer que se calhar é por
ser sueco”, aventa o médico.
Já sobre o papel do sistema imunológico no
aparecimento do autismo, João Guerra diz que
não há certezas quando à forma como esse
infl ui na doença, mas descarta o “mito” sobre
os riscos da vacinação. “Não existe evidência
científi ca de que a exposição a vacinas provo-
que o autismo ou constitua factor de causa-
efeito determinante”, assegura. “Na década de
[19]80 houve um estudo de Andrew Wakefi eld
relacionado com uma tripla vacina de saram-
po, rubéola e papeira que criou alarme, mas
desde então não existe evidência disso. Aliás,
eu vacinei os meus fi lhos de consciência tran-
quila e acho que todas as crianças devem ser
vacinadas.”
Negligenciar a vacinação poderá, aliás, ter
consequências como as que se viram há pouco
mais de dois meses nos Estados Unidos, onde
uma criança infectada com sarampo transmi-
tiu a doença a 58 outras pessoas num dos par-
ques de diversões da Disneylândia, após o que
o surto se espalhou a 14 dos 50 estados do país.
Em 2008, em plena campanha eleitoral, Bara-
ck Obama admitia a suspeita de que as vacinas
surtissem efeitos nos índices de autismo, antes
de se dar como provado, em 2010, que Andrew
Wakefi eld falsifi cara os dados constantes da
sua investigação; agora, em Fevereiro de 2015,
o Presidente norte-americano dava os méritos
científi cos das vacinas como “indisputáveis”.
A frase que usou foi esta: “Olhámos para isto
uma e outra vez — há todas as razões para se
ser vacinado, mas não há nenhuma para não
se ser.”
BEBÉS SILENCIOSOSComo é que se distingue, então, um bebé mera-
mente mais tímido e sossegado de uma criança
que padeça de efectivo autismo? As histórias
são muitas e, embora todas evoluam de forma
diferente, há primeiros sintomas comuns, que
pais e médicos poderão ter tendência a desvalo-
rizar. Um indício revelador é o que João Guerra
defi ne como “bebés sem sorriso social” e Pedro
Caldeira como “bebés silenciosos”. Têm um a
dois anos, não interagem com os outros, não
estabelecem contacto ocular, não conseguem
brincar de forma simbólica, ao faz-de-conta.
“Aos dois anos e meio, a Francisca começou
a ter umas reacções muito estranhas. Não podia
ver armários fechados que começava a cho-
rar. Notava-se que sofria e nós pensámos que
aquilo fosse resultado de um trauma provoca-
do na ama, um susto qualquer que ela tivesse
apanhado sem nós sabermos”, recorda Raul
Almeida, pai da jovem. Seguiram-se assim uma
série de diagnósticos: primeiro, mutismo elec-
tivo; depois, afasia; em terceiro, um “problema
neurológico não identifi cado”; quarto, psicose
infantil; e, por último, autismo — detectado em
Pamplona, na Clínica Universitária de Navar-
ra, que em meados dos anos 1990 sujeitou a
menina a um encefalograma de 24 horas e lhe
examinou todos os cariótipos sanguíneos. “Há
um certo alívio em dar nome às coisas, porque
isso ajuda-nos a seguir um caminho”, diz Paula
Almeida, mãe da Francisca. “Mas quando veio
a fase de ela fi car muito nervosa, ter muitos ti-
ques, bater na mesa sistematicamente e dar-se à
ecolalia, que é a emissão repetida de sons, nisto
dos diagnósticos já tínhamos perdido quase três
anos”, lamenta.
No caso do Pedro, a busca pela identifi ca-
ção do problema foi idêntica e limitou-se à
oferta médica nacional. “Ele era muito calmo
e afável, mas deixou de reagir quando o cha-
mávamos. Ficava fascinado por fi os, passava
horas à volta da roda de um camião e, se lhe
déssemos uma garrafa de litro e meio só com
um bocadinho de água dentro, fi cava a abaná-
la séculos, todo feliz”, recorda o pai, Albino
Almeida. Entre 1994 e 1995, a família correu
vários especialistas sem obter um diagnóstico,
o que atribui a “desconhecimento total ou pura
falta de sensibilidade” dos médicos de então.
Albino ainda fi ca visivelmente revoltado, aliás,
ao recordar o pediatra que lhe disse que “os
rapazes são sempre assim, mais preguiçosos”.
Como o menino tinha muitas otites, decidiram
fi nalmente tentar um otorrinolaringologista, “já
em desespero, no fi nal da linha”, e deram assim
com a solução. “O meu fi lho não ouvia nada
de um ouvido e no outro só tinha 10% de au-
dição. Marcámos logo a cirurgia, mas, quando
julgávamos que estava tudo resolvido e fi cámos
quase aliviados, abre-se então a porta para o
problema que fi cou até hoje — aquela operação
tornou o meu fi lho autista. Foi um interruptor
que se mexeu no cérebro dele e os eléctrodos
sensoriais do Pedro mudaram por completo”,
sentencia Albino. Aos quatro anos de idade,
a doença foi apresentada “quase como uma
sentença de morte” e, aos sete, apuraram o
diagnóstico para Síndrome de Asperger. “Foi
um terramoto”, diz a mãe do Pedro, Cristina
Almeida. “Chorei muito eu, chorámos muito
os dois juntos”, confessa o marido.
Pedro Martins e Raquel Araújo são pais do
Francisco, mas, apesar de esse já ter nascido
na década de 2000, passaram por idênticas di-
fi culdades. “A reacção dos médicos era sempre:
‘Não se preocupe que isto é normal”, conta a
mãe do menino. “Diziam-me para esperar, pas-
sado um mês eu tornava a ir lá e a conversa era
a mesma. Toda a gente me dizia para ter calma
e eu não queria ter calma nenhuma!”, desaba-
fa. O despiste de problemas de audição fez-se
por iniciativa do casal e o primeiro diagnóstico
de autismo também partiu da própria família.
“Fui pesquisar no Google e naquele tempo só
havia informação em sites americanos, mas os
sintomas batiam todos, todos certos”, revela
Pedro Martins. “Quando ele me chamou para
ver o computador, eu não queria acreditar”,
completa Raquel. “Tinha uma ideia muito vaga
sobre o autismo e a impressão era de que se
tratava de uma coisa muito má, portanto aquilo
pareceu-me o fi m do mundo.”
Nélia Martins nem sequer sabia que o autis-
mo existia. “Nunca tinha ouvido falar de tal
coisa”, reconhece. Mas teve o Daniel em 2005,
passados dois anos começou a notar que ele
se isolava cada vez mais e, quando a segunda
gravidez a levou a ser seguida na Maternidade
Júlio Dinis, que integra o Centro Hospitalar do
Porto, partilhou os seus medos com a obstetra.
“Então veio lá uma pedopsiquiatra do Hospital
Magalhães Lemos e acho que quando ela viu
o Daniel percebeu logo tudo, mas, como eu
estava nas últimas semanas de gravidez, não
me quis dizer nada”, supõe a mãe do menino.
“Quando realmente me deram o diagnóstico,
foi horrível. A pior fase da minha vida.” O que
Nélia ainda não sabia nessa altura é que o seu
segundo fi lho, o Gonçalo, também viria a ser
autista. “Nessa altura, acabou-se a minha vida.
Agora ultrapassei essa fase e já consigo falar dis-
to, mas, se ao saber do Daniel o chão me tinha
fugido dos pés, ao saber do Gonçalo acabou-se
tudo. Não sobrava nada.”
FOTOGRAFIAS DE NELSON GARRIDOPedro, 22 anos, reparte--se por tarefas simultâneas que dispõe em seu redor: lê o jornal, joga cartas, faz contas na calculadora e preenche páginas e páginas com a escrita encriptada que criou para si próprio. Na página da direita: Nuno tem 45 anos e está a trabalhar nos Recursos Humanos do Sport Lisboa e Benfica
2 | Domingo 5 Abril 2015 | 21
UM PAÍS (QUASE) SEM NÚMEROSJoão Guerra reconhece que a tendência geral
dos médicos será para aguardar pela evolução
dos sintomas até um ponto que não permita
dúvidas, na expectativa de evitar “um diagnós-
tico com uma carga tão negativa que até justi-
fi ca que alguns clínicos prefi ram usar para o
autismo a expressão ‘perturbações da relação
e da comunicação’”. O pedopsiquiatra alerta,
contudo, que, “quanto mais cedo for detectado
o problema, maior será a evolução da criança”,
pelo que em 2014 acompanhou a introdução
em Portugal do Modelo Denver de Intervenção
Precoce, uma metodologia terapêutica que,
desde os anos 80, vem sendo aplicado nos Es-
tados Unidos para diagnosticar crianças autis-
tas com idades a partir dos 12 meses. “Seria
recomendável que houvesse mais atenção para
este problema nos centros de saúde, por parte
dos médicos de clínica geral e mesmo dos en-
fermeiros das vacinas. Uma coisa que funciona
muito bem em Portugal é o Plano Nacional de
Vacinação e isto signifi ca que os enfermeiros
contactam muito com crianças até aos dez
anos, pelo que podem colocar-lhes questões
para testar comportamentos”, recomenda o pe-
dopsiquiatra. “Não se quer excesso de alarme,
mas apenas que as crianças realmente autistas
possam ser intervencionadas mais cedo.”
Pedro Caldeira diz que também é necessária
estatística nacional. “Não há números publica-
dos e, sempre que os pedi, tropecei em algum
tipo de parede”, revela. “Seria muito importan-
te que estes casos fossem monitorizados, para
sabermos se estão a aumentar e se começarem
a preparar respostas para os autistas adultos”,
avisa.
Questionado sobre o assunto, o Instituto da
Segurança Social não soube indicar quantos
autistas usufruirão de benefícios pela doença,
dado que o respectivo sistema de informação
“não discrimina os benefi ciários de subsídios
ou apoios pelos diagnósticos ‘elencados’ ou
por outras defi ciências ou doenças, excepto
em casos pontuais autorizados pela Comissão
Nacional de Protecção de Dados”. A Direcção-
Geral de Saúde (DGS) também não soube indi-
car quantos autistas diagnosticados existem em
Portugal. “Esses números, como todos os seme-
lhantes de outras entidades clínicas, existirão
na ACSS [Administração Central do Sistema de
Saúde], entidade a que a DGS recorre quando
precisa desse tipo de informação”, esclareceu
Álvaro Andrade Carvalho, director do Progra-
ma Nacional para a Saúde Mental.
Contactada a ACSS, essa dedicou um mês
a recolher os números possíveis: os dos casos
de internamento hospitalar motivado por per-
turbações de ordem autista, nas unidades sob
tutela das administrações regionais de saúde
(ARS) do Alentejo, Algarve, Lisboa, Centro e
Norte. No contexto das entradas atribuídas a
Perturbações da Relação e da Comunicação,
em 2004, houve apenas seis internamentos,
enquanto em 2014 se verifi caram 50. Já as hos-
pitalizações motivadas por Perturbações do
Espectro do Autismo foram 59 em 2004 e uma
década depois passaram a 152. A Síndrome de
Asperger, por sua vez, motivou 1136 interna-
mentos em 2004 e 1387 no ano passado.
À excepção dos casos de Asperger na ARS
Norte, onde as hospitalizações diminuíram de
595 para 434 nos dez anos em análise, todas as
outras regiões e patologias demonstram um
agravamento do problema. É a zona de Lisboa,
no entanto, que revela um crescimento mais
gritante: de 2004 para 2014, os internamentos
por Perturbações do Autismo passaram de 18
para 71 e os motivados por Asperger subiram
de 302 para 692. A informação expressa nestes
números peca, inevitavelmente, por defeito.
Como sublinha a própria ACSS, “não representa
NUNO FERREIRA SANTOS
a prevalência de autismo em Portugal, mas sim
a distribuição de doentes entrados nos hospi-
tais do Serviço Nacional de Saúde aos quais
foram diagnosticados os problemas referidos”.
Ficam fora desse universo, portanto, todos os
autistas que, embora diagnosticados, não sofre-
ram crises que justifi cassem a sua permanência
em hospitais.
O estudo que é sistematicamente aponta-
do pelos especialistas como o único existente
em Portugal sobre a demografi a do autismo é
o de Guiomar Gonçalves Oliveira, do Centro
Hospitalar e Universitário de Coimbra, que em
2005 analisou um universo de 67.795 crianças
portuguesas de sete a nove anos de idade, no
contexto do ano lectivo 1999/2000. O traba-
lho aponta para uma prevalência média de 9,2
casos de autismo por cada 10 mil crianças da
amostra, com diferenças regionais signifi ca-
tivas no território dos Açores, onde a mesma
média sobe para 15,6 crianças, eventualmente
devido a laços de maior consanguinidade entre
os progenitores.
Carlos Nunes Filipe, regente da Unidade Cur-
ricular de Fundamentos de Neurociências da
Faculdade de Ciências Médicas da Universidade
de Lisboa, justifi ca a difi culdade na obtenção
de estatística ofi cial realçando que, mesmo ao
nível internacional, “os estudos têm variações
enormes por causa da utilização de diferentes
critérios de diagnóstico”. Isso dever-se-á às su-
cessivas alterações introduzidas no Manual de
Diagnóstico e Estatística das Doenças Mentais
(DSM), que serve de orientação à comunidade
médica internacional e que, a cada nova edição,
complica a análise comparativa da progressão
do autismo em períodos que sejam abrangi-
dos por diferentes classifi cações. “Os critérios
da DSM III em 1994 e da DSM IV TR em 2014,
por exemplo, são quase impossíveis de com-
parar”, explica o psiquiatra. A ACSS, por sua
vez, regula-se pela ICD9CM — 9.ª Revisão da
Classifi cação Internacional de Doenças, que
desde 1989 é a versão utilizada nos hospitais
portugueses para efeitos de codifi cação das
altas hospitalares.
Muito mais simples é avaliar a progressão
do autismo nos Estados Unidos — onde até
Outubro todo o sistema de saúde fi cará apto
a regular-se pela IC10CDM. A estatística ofi cial
é regularmente divulgada pelo Centro para o
Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) e as es-
timativas mais recentes revelam uma prevalên-
cia totalmente díspar da portuguesa: indicam
que, entre as crianças norte-americanas com
oito anos de idade, uma em cada 68 sofrerá de
uma desordem do espectro do autismo. Equipa-
rando essa proporção com aquela que é a refe-
rência portuguesa, em cada 10 mil crianças nor-
te-americanas haverá assim 147 autistas e não
apenas 9. Os números ofi ciais do CDC revelam
ainda que a incidência da doença é quase cinco
vezes maior sobre o género masculino: um em
cada 42 rapazes tem o problema, enquanto nas
raparigas isso acontece com apenas uma em
cada 189. Diferentes estudos indicam que essa
disparidade estará relacionada com diferenças
de actuação hormonal ao nível dos neurónios:
a testosterona diminui a capacidade de ligação
das células a determinados genes, enquanto o
estrogénio aumenta essa aptidão. O Centro de
Investigação do Autismo da Universidade de
Cambridge adianta que essa distinção começa
em pleno útero, durante a gestação.
TERAPIA, SEMPRETerapia ocupacional para desenvolver compe-
tências, terapia da fala para melhorar a dicção
e ajudar à interpretação da linguagem para
além do seu sentido literal e acompanhamen-
to psicológico para avaliar o estado psíquico do
indivíduo — estes são mecanismos essenciais
à evolução de qualquer autista. “Tudo o que
acontece no futuro depende do grau da doen-
ça e da estimulação que a criança receber ao
longo da vida”, defende a psicóloga Ana Bessa,
que vem acompanhando autistas num centro
terapêutico de Amarante. “Esse acompanha-
mento também pode passar por hipoterapia,
com cavalos; por terapia com o Modelo Denver,
que permite trabalhar uma série de compe-
tências em simultâneo; ou por sessões de psi-
comotricidade, para ajudar em determinados
problemas motores. A questão é que todas as
terapias contam para o desenvolvimento, desde
que os pais da criança tenham condições para
lhas proporcionar”, defende.
O psicólogo André Peixoto, que está agora
a concluir a certifi cação internacional no Mé-
todo Denver pela Universidade da Califórnia,
nota que, “cientifi camente, não se pode afi r-
mar que exista um modelo melhor do que os
outros”, já que a abordagem da intervenção
depende sempre do perfi l de cada criança e
da interacção possível entre essa, a sua família
e os terapeutas. “No entanto, baseando-me na
minha experiência profi ssional e no contacto
com outros métodos de intervenção, o Modelo
Denver revela ser claramente a abordagem mais
completa de intervenção precoce nas Pertur-
bações do Espectro do Autismo”, sustenta. “É
abrangente, pois aborda de forma explícita to-
dos os domínios de desenvolvimento da crian-
ça, nomeadamente a cognição, a comunicação
expressiva e receptiva, a sua evolução social e
emocional, as suas competências motoras, a
sua aptidão para o jogo e imitação, a sua auto-
nomia e comportamento.”
POUCAS SOLUÇÕES AO PÉ DA PORTA
Raul e Paula Almeida andaram por Espanha e
até pelos Estados Unidos em busca de terapias
adequadas para a Francisca, mas a oferta dos
anos 90 era mais restrita e a mãe da menina
acabou por deixar o Direito para ser terapeu-
ta da própria fi lha. A família teve sorte com a
“excepcional” professora do 1.º ciclo que soube
acolher a menina em Ovar e depois mudou-se
para o Porto para a poder inscrever num colé-
gio que a aceitasse com o seu problema, já que
a EB2/3 pública só a autorizava a frequentar três
disciplinas e “deixava-a abandonada” no resto
do horário. “Apoios, naquela altura? Zerinho.
Ser autista nos anos 90 era muito diferente do
que é agora”, garante Paula. “Hoje, por exem-
plo, as escolas passaram a ter UEEA [Unidades
de Ensino Estruturado para Autistas] e, mesmo
que a distribuição geográfi ca dos recursos ainda
seja má e faltem soluções para a idade adulta,
22 | Domingo 5 Abril 2015 | 2
isso já faz uma diferença muito grande.” Por
enquanto, a Francisca mantém-se assim num
colégio em Lisboa que a aceita com os seus 24
anos enquanto o pai exerce funções de deputa-
do na Assembleia da República; a questão que
se coloca é saber o que acontecerá quando a
família tiver de regressar ao Porto para Raul
Almeida retomar as suas funções empresariais.
“Que alternativas ocupacionais é que a Francis-
ca terá no Porto, para se manter sempre activa?
O que é que se faz com um autista adulto que
não pode estar sozinho?”, pergunta a esposa.
Albino e Cristina Almeida sabem que o Pedro
terá mais autonomia, mas mantêm-se por Vale
de Cambra, onde “há menos oportunidades”.
Isso evidenciou-se logo aos quatro anos, quan-
do cinco horas diárias em autocarros, transbor-
dos e caminhadas se impuseram como a única
forma de aceder à terapia mais próxima, no
Hospital Magalhães Lemos, no Porto. Depois
foram as batalhas no ensino, com professoras
insensíveis ao facto de o Pedro só compreender
frases de sentido literal, “um bullying terrível
por parte dos outros miúdos” e a informação
de que o rapaz não podia frequentar a escola
para além do 9.º ano. “Não imagina o murro
que eu dei naquela mesa!”, recorda Albino, que
trabalhava pela madrugada dentro e acumulou
três esgotamentos. “Virei-me para os directores
da escola e disse: ‘Vocês, que são técnicos de
educação e supostamente sabem mais do que
eu, expliquem-me o que é que vai acontecer
ao meu fi lho se ele sair daqui — porque o que
estão a fazer é um crime!” Teria sido crimino-
so, sim, porque o Pedro acabou o 12.º ano e,
embora desempregado, tem agora um curso
técnico-profi ssional. “É muito cumpridor, ri-
goroso, dedicado”, diz a mãe, que há muitos
anos abdicou do emprego por ele. “Precisa é
de um trabalho e que alguém lhe dê uma opor-
tunidade, mas eu não vejo muito disso por aí”,
ironiza o pai.
Pedro Martins e Raquel Araújo ainda não
pensam nessa etapa porque o Francisco tem
apenas 11 anos, mas também passaram pela fase
de não saber onde encontrar aquilo de que ele
precisava. “No Porto havia muito pouca tera-
pia e eu sentia-me numa aldeia. Imagine-se se
eu vivesse numa zona do interior!”, equaciona
Raquel. Foi assim que a família se viu obrigada
a separar-se durante alguns meses, com o pai
a exercer como advogado no Porto e a mãe
a viver em Lisboa com o fi lho, para receber
formação no Modelo ABA — Análise Compor-
tamental Aplicada. “Sei que tenho muita sorte
e um dos motivos é a fl exibilidade de horário
que sempre me deram na empresa — que é da
família”, justifi ca a mãe do Francisco. “Por isso
é que a decepção maior foi mesmo com as esco-
las, sobretudo com as de orientação religiosa,
que foram as piores. Nem nos deixaram falar.”
Entre todas as escolas que contactou, umas não
deram resposta aos pedidos, outras só tinham
vagas até saberem que essa seria preenchida
por um autista e a maioria não dispunha de
professores receptivos a que o Francisco es-
tivesse sempre acompanhado na sala de aula
por uma terapeuta. “Estou disposta a pagar o
acompanhamento para facilitar o ritmo da aula
e a direcção da escola nem se importa, mas
a professora vira-se p’ra mim muito ofendida
com um: ‘Você tem noção do que me está a
pedir? Já imaginou como isso é intrusivo? Como
perturba a relação de intimidade que eu crio
com os meus alunos?’”, exemplifi ca Raquel.
A solução tardou, mas acabou por aparecer e
Francisco tem feito todo o seu percurso escolar
com terapeutas próprias que o acompanham
no contexto real da sala de aula: a psicóloga
Alexandra Marques e a psicomotricista Isabel
Lourenço. “Estamos com ele nas aulas todas, a
traduzir aquilo que as professoras dizem e que
ele não percebeu, e nos intervalos também o
FOTOGRAFIAS DE MANUEL ROBERTO
ajudamos a socializar com os outros meninos”,
conta Alexandra. “Depois fazemos-lhe fi chas
adaptadas com a matéria e criamos-lhe vídeos
e powerpoints, porque ele reage melhor a visua-
lizações do que a textos. Afi nal, não é por acaso
que é aluno de ‘quatros’ e ‘cincos’”, acrescenta
Isabel, com certa vaidade. “E de 98% a Inglês”,
realça o pai, entre risos. No total, o Francisco
tem assim 35 horas de acompanhamento se-
manal, inclusive nesse “deserto” terapêutico
que são as férias e pausas lectivas. A despesa
mensal é de 1500 euros e Raquel sente-a como
bem aplicada: “O meu fi lho tem muita sorte e
isto só prova que um pai nunca deve aceitar as
coisas negativas que lhe dizem. Num relatório
chegaram a dizer-me que ele nunca ia aprender
a ler nem a escrever e, se eu fosse uma mãe que
me acomodasse, ele agora não estava no 6.º
ano. O meu único arrependimento é o de não
ter começado com a terapia mais cedo, mas,
naquela altura, eu não tinha conhecimento do
quanto isso podia fazer a diferença.”
Nélia Martins vive numa casa de habitação
social, perdeu o emprego no Porto devido às
ausências frequentes para acompanhar os dois
fi lhos autistas, está desempregada desde 2009 e
tem o marido na mesma situação, mas também
se diz “uma pessoa com muita sorte”. Explica:
“Mudei-me para a Maia para ter os meus fi lhos
numa escola que lançou um projecto-piloto
para autistas e foi a melhor coisa que me acon-
teceu. As terapias são dadas pela escola, gratui-
tamente, e, se não fosse isso, eu não sei o que
seria da minha vida nesta altura.” O Daniel e
o Gonçalo têm, cada um, uma hora de terapia
ocupacional por semana, outra de terapia da
fala e 30 minutos de acompanhamento psico-
lógico. “Tenho noção de que é muito pouco
e gostava de os pôr nos cavalos e na natação,
mas, a 40 ou 50 euros por terapia, não me che-
gavam 600 euros por mês para cada criança”,
contabiliza. Se o cenário já lhe pareceu muito
negro, agora sente-se “mais animada por notar
que as coisas estão a evoluir um bocadinho”. É
verdade que ainda precisa de um emprego que
não implique rotatividade de turnos, porque
o Daniel não dorme sem ela, e que também
precisaria de terapia para si própria, porque
às vezes se sente “a dar em maluquinha” e os
médicos “só sabem receitar medicação para
dormir”. Também é certo que não tem tempo
para frequentar grupos de apoio e que passa
temporadas sem sair porque “as pessoas vêem
uma criança de nove anos a fazer uma birra
num café e olham logo para a mãe como se ela
não soubesse educar os fi lhos, sem imaginarem
que o problema possa ser outro”. Ainda assim,
o que Nélia queria mesmo depende sobretudo
do Estado. “O problema maior são as interrup-
ções lectivas e as férias. Os miúdos vêm para
casa a 12 de Junho, só voltam à escola a 15 de
Setembro e, pelo meio, não há terapia, não há
psicologia, nada. O que é que eu faço com eles
este tempo todo?”, afl ige-se. Evita pensar no
que será dos seus fi lhos quanto tiver 60 ou 70
anos, com receio de “perder a força e sanidade
mental para tomar conta deles”, mas é por isso
que gostava de perceber outro envolvimento
público no problema do autismo. “Se o Estado
investisse mais nas escolas para apoiar estes
miúdos, mesmo fora do período de aulas, se
calhar ia vê-los chegarem a adultos com capa-
cidade para ter emprego e pagar impostos. Se
não pensam nisso agora, daqui a alguns anos
o que lhes vai bater à porta é um problema
muito maior.”
LISTAS DE ESPERAQuem já lida com esse problema são os
pais da Francisca, que, em colaboração
com outras famílias de autistas, consideram
criar no Porto um centro de actividades
ocupacionais que garanta aos seus fi lhos
uma opção residencial no futuro. “Há falta de
respostas por parte da própria comunidade”,
observa Raul Almeida. “É enorme o número
de creches e infantários que a sociedade civil
gerou e que o Estado depois apoiou, mas, no
caso do autismo, não há respostas sufi cientes
e os pais têm de dar o primeiro passo nesse
sentido.” Outra medida que os pais da
Francisca gostavam de ver introduzida em
Portugal é a legalização da fi gura do care
taker adoptada na Califórnia para autistas
sem retaguarda familiar. “Trata-se de um
curador que é destacado para acompanhar
o autista e lhe proporcionar uma vida tão
próxima quanto possível daquela a que ele
estava habituado. A nossa fi lha gosta muito
de passear à beira-mar, por exemplo, e nós
gostávamos que ela continuasse a fazer isso
com grande independência e autonomia
quando nós já cá não estivéssemos.”
Equacionar essas opções torna-se inevitá-
vel quando a oferta nacional de soluções resi-
denciais especializadas para adultos autistas
é escassa. A referência do sector é a APPDA
— Associação Portuguesa para as Perturbações
do Desenvolvimento e Autismo e essa tem vá-
rias delegações em diferentes pontos do pa-
Francisco tem 11 anos e é acompanhado por terapeutas próprias, mesmo quando está na escola: a psicomotricista Isabel Lourenço (na fotografia) e uma psicóloga
2 | Domingo 5 Abril 2015 | 23
facto de que “eram precisas muito mais vagas
residenciais para acorrer a toda a gente com
autismo”. Mas para a mãe do Francisco, que
há muito vem defendendo que “é preciso ha-
ver uma mudança de cultura no país”, esse
poderá ser um indício de que já começou a
transformação. “Ela tem de acontecer”, pro-
clama Raquel Araújo. “E não é só para bem
do meu fi lho e dos miúdos como ele que já
cá estão — é para bem dos autistas todos que
ainda hão-de vir.”
UMA FORÇA LABORAL COMPETENTENem todos os autistas terão condições para as-
sumir um posto de trabalho na sua vida adulta,
mas os diagnosticados com Síndrome de As-
perger situam-se entre os mais funcionais e de
maior autonomia — são os chamados “aspies”,
assim designados desde que o termo foi pela
primeira vez utilizado em 1999 pela educadora
norte-americana Liane Holliday Willey, tam-
bém diagnosticada com a síndrome.
“Um dos grandes problemas dos miúdos da
parte mais elevada do espectro é que até são
muito inteligentes, mas totalmente desajusta-
dos em contexto social”, analisa o pedopsiquia-
tra João Guerra. “São muito literais, muito ingé-
nuos, não percebem subtilezas da linguagem.
Alguns têm desejo de interagir com os outros e
de ser aceites, mas são gozados e não percebem
porquê. Sofrem muito. Sofrem mesmo.”
Essa dor refl ecte-se nas famílias e nota-se
nos pais do Pedro, por exemplo, que não que-
rem recordar detalhes, mas reconhecem que
“houve períodos muito complicados na esco-
la”. Albino diz que o fi lho hoje desvaloriza esses
incidentes “porque foi educado para isso”, mas
o jovem tem noção do que os provocava e ele
próprio identifi ca o problema: “As pessoas se
calhar não percebem as diferenças.”
Superadas as etapas mais amargas sem con-
sequências decisivas na auto-estima do indiví-
duo, contudo, a maioria desses autistas “reve-
la grandes aptidões informáticas e um óptimo
raciocínio matemático, consegue apreender
instintivamente qualquer tipo de programa-
ção e acaba colocada em altos cargos a nível
internacional”, como realça Patrícia de Sousa,
directora técnica da Associação Portuguesa de
Síndrome de Asperger (APSA). Além disso, “fa-
lam muito bem Inglês de forma autodidacta”,
pela mera exposição à língua a que são sujeitos
na televisão e na rádio, “e daí que, entre os que
tiram curso universitário, muitos optem pelo
de Tradução, que não lhes exige quase esforço
nenhum”. Apresentam alguma debilidade na
motricidade fi na, mas “têm uma excelente
memória de longo prazo, um óptimo mapismo
visual, são muito organizados, rápidos e per-
feccionistas”. Enquadram-se particularmente
bem em rotinas que a maioria das pessoas
considera monótonas e também apreciam a
exigência de pontualidade, que só se revelará
um problema por falha alheia: “Como não têm
fi ltro, se alguém se atrasa cinco minutos, eles
não compreendem, não aceitam.”
Foi com base nesse potencial laboral que
a APSA lançou um Programa de Emprega-
bilidade ao qual já aderiu a empresa Quinta
d’Avó, de molhos gourmet maioritariamente
para exportação, e a REN — Redes Energéti-
cas Nacionais. No primeiro caso, a empresa
gastronómica vem confi ando a montagem das
suas embalagens cartonadas a “aspies” da Ca-
sa Grande, a valência da APSA para jovens
com mais de 16 anos que precisam melhorar
a sua formação, treinar competências e obter
emprego. No que se refere à REN, está em
curso um processo de recrutamento com vista
à escolha de um “aspie” para um estágio de
seis meses no respectivo departamento de
contabilidade. A APSA, por sua vez, prepara
antecipadamente os funcionários dessas em-
presas para as peculiaridades da síndrome
e garante ainda um orientador ao novo fun-
cionário, que, sem esse acompanhamento,
teria difi culdades em preparar um currículo
ou enfrentar uma entrevista de recrutamento.
“É uma aprendizagem colectiva que envolve
todas as partes e precisamos é de mais empre-
sas que queiram aderir ao programa”, nota
Patrícia de Sousa.
Mesmo que as coisas não corram bem à pri-
meira, a experiência acumulada será sempre
vantajosa para o autista e o argumento parte
precisamente de um “aspie” de 45 anos que
foi apoiado pela Casa Grande e agora integra a
equipa de Recursos Humanos do Sport Lisboa
e Benfi ca. “É bom ir passando por toda a parte
e fi car a conhecer as pessoas. É um processo de
aprendizagem”, afi rma Nuno. “Já fui vendedor,
trabalhei num videoclube e depois num hos-
pital. Lá fui muito maltratado, mas isso fez-me
crescer bastante. Agora estou muito bem. Nun-
ca tinha tido um orientador e ele é fundamental
para os empresários verem que estas pessoas
merecem uma oportunidade.”
A respiração do Nuno denuncia que a formu-
lação de algumas perguntas o obrigou a traduzi-
las para si próprio, mas as respostas são sempre
convictas e claras, em frases curtas e pausadas.
No Benfi ca, passou por diferentes departamen-
tos antes de se sentir adequado e agora informa
com orgulho: “O meu desempenho é apreciado
por todos e tem permitido a renovação do meu
contrato. Dessa forma vou fi cando mais tempo.
Insiro processos no computador, corrijo can-
didaturas que o servidor altera, revejo textos
— ninguém fazia estas tarefas; foram criadas de
propósito só para mim.”
Outro aspecto que lhe agrada no actual em-
prego são as suas condições privilegiadas para
a prática desportiva. “Faço cycling aqui mesmo
ao lado, três vezes por semana. É excelente. É
a melhor coisa que se pode ter e com preços
mais baixos e óptimas condições.” Jogos no
estádio é que só vê quando lhe oferecem bilhe-
tes e, se alguns autistas fi cam perturbados em
contextos ruidosos e agitados, não é esse o caso
do Nuno, que se mantém impassível perante
arrufos de adeptos. “A cabeça de um Asperger
é diferente da cabeça habitual das outras pes-
soas”, explica. “Tem uma espécie de espaço
vazio onde as outras pessoas têm a zona dos
sentimentos e, portanto, ele é imune a tudo
o que se passa à volta. Consegue apreciar as
coisas boas, tem empatia, mas ignora as más e
o que estiver a acontecer de mal noutro local.
É por isso que consigo estar lá perfeitamente
calado e sereno.”
Em Vale de Cambra, não há riscos de o Pe-
dro se envolver em lutas clubísticas. Gosta de
futebol, wrestling e snooker, mas, perante o te-
levisor, vitórias e derrotas provocam-lhe quase
a mesma reacção. Sente a falta dos amigos que
seguiram para a universidade e agora preen-
chem as folgas com as namoradas, é um facto.
Mas não guarda memória das más experiências
na escola nem consegue explicar porque não
contou a ninguém da queimadura no pescoço.
Aliás, se agora sabe quem alertar no caso de a
mãe ter um desmaio, é porque lho ensinaram
da primeira vez que ela perdeu a consciência e
ele se deixou fi car imóvel a seu lado. Será que
em algum desses momentos pensou em quanto
a Síndrome de Asperger fazia dele diferente?
“Por acaso não”, responde o próprio. “Acho
que é tudo igual, depois de aprendermos as
coisas.” Essa autoconsciência talvez explique a
avidez de autodidacta com que investiga insec-
tos e répteis, colecciona mapas e defi ne dietas
calóricas. Mas na sua rotina metódica continua
por cumprir a ambição de um emprego. “Vai
ser difícil”, antecipa. “Era preciso um patrão
compreensivo.”
ís, mas as de Portimão e Viseu, por exemplo,
não dispõem desses recursos. A APPDA com
maior oferta residencial será a de Lisboa, que
acomoda 37 pessoas, e seguir-se-á a do Norte,
cujo lar em Vila Nova de Gaia acolhe 20 uten-
tes e já tem uma lista de espera de 38 pessoas
entre os 16 e os 48 anos. Ana Maria Gonçalves,
vice-presidente da instituição, não revelou os
preços aí praticados (que algumas das famí-
lias entrevistadas descrevem como “exorbi-
tantes”), mas anuncia para Gaia um projecto
pioneiro concebido a pensar na população
autista que, embora com uma esperança mé-
dia de vida normal, envelhece precocemente
a partir dos 45 anos — sobretudo por culpa
da medicação destinada a corrigir questões
comportamentais e de problemas de saúde
detectados tardiamente devido à difi culdade
de comunicação verbal característica da do-
ença. “O nosso novo projecto prevê um apoio
de 24 horas sobre 24 horas a pessoas com per-
turbações do espectro do autismo com idade
superior a 40 anos, num lar residencial com a
capacidade de 12 utentes”, revela a responsá-
vel da APPDA. “Mas [considerando] que essas
pessoas irão precisar durante toda a vida de
algum tipo de suporte, tem de ser nossa mis-
são sensibilizar a sociedade para a necessidade
de se criarem serviços adaptados a cada grupo
etário e para a obrigação de se viabilizarem
esses serviços”, remata.
Em Coimbra, a APPDA local abriu em Feve-
reiro uma residência autónoma para cinco au-
tistas de idade superior a 16 anos e, segundo
a psicóloga Tânia Morais, que acompanha o
projecto, essa é “a primeira valência do géne-
ro na região Centro”. Os inquilinos em causa
usufruem da vivenda como qualquer grupo
de jovens universitários faria, partilhando ta-
refas domésticas e assegurando as suas refei-
ções, mas contam com o apoio nocturno de
um técnico permanentemente disponível no
local. “Durante o dia estes jovens trabalham
ou estudam; à noite, vêm para casa, fazem a
vida normal de qualquer outra pessoa e vão
desenvolvendo cada vez mais o seu já eleva-
do grau de autonomia”, refere a psicóloga.
Enquanto isso, a residência vai funcionando
também como “plataforma de teste” para a
Universidade de Coimbra e diferentes em-
presas tecnológicas testarem novas soluções
para a população com necessidades especiais:
a casa está equipada com domótica e integra
dispositivos de monitorização à distância, de
alerta em caso de emergência e de registo
online dos produtos de neuro-reabilitação
utilizados pelos inquilinos.
Essa inovação não distrai Tânia Morais do