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O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 48
A formação social e territorial (FS&T) sul-rio-grandense na longa
duração e a identidade regional
Luiz Roberto Pecoits Targa
“Em resumo, não há verdadeiramente
melhor definição de História que esta: a
História é a ciência de uma mudança e,
sob muitos pontos de vista, uma ciência das diferenças.” Marc Bloch.
“É preciso que os estudos históricos mantenham o contato com o presente,
fonte de toda a vida.” Marc Bloch.
Para estabelecer a relação entre a formação social e territorial do
Rio Grande do Sul (RGS) e a identidade regional, um dos objetivos
maiores deste capítulo, precisa-se tecer duas considerações introdutórias
sobre manifestações dessa mesma identidade nos dias que correm.
Primeiramente, o RGS é habitado por uma população que,
sabidamente, esposa características culturais que a diferenciam de outros
povos regionais do País. Esses habitantes dos outros brasis, embora
possuam marcadas diferenças entre si, se reconhecem mais facilmente
como pertencentes a um mesmo ethos brasileiro, partilhando um ponto de
vista comum sobre os gaúchos: algo como se estes últimos fossem
estrangeiros no “seu” Brasil. Ao longo das décadas, nos séculos passados,
essa espécie de sentimento sobre a estrangeirice gaúcha foi mudando de
forma, criando nuances. Mas persistiu o fato de fundo: havia algo de
insólito a respeito dos gaúchos, que poderia ser mais facilmente expresso
Economista, Técnico da FEE.
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como não brasileiro1. Se, de fato, o era ou não, pouco importa, o que
interessa aqui é simplesmente a constatação do diverso, sentida tanto
pelos gaúchos quanto pelos demais brasileiros.
Pode-se especular a respeito dessa diferença, utilizando uma
manifestação das mais óbvias e que está sempre na vitrine: o futebol.
Aceita-se a ideia de Paul Auster de que o futebol é a forma que tomou a
guerra, hoje em dia, entre os europeus. Posto que ela foi tão importante
para os Estados europeus quanto o foi para a formação do RGS, passo,
então, a aplicá-la na nossa História. Ou seja: joga-se futebol porque não
se luta mais. Pensa-se que a asserção é uma luva para especular sobre
todas as relações (internas e externas) que os sul-rio-grandenses
mantêm, a começar, consigo mesmos. Senão, vejamos: a rivalidade
disciplinadamente militar entre gremistas e colorados que deixa Porto
Alegre em pé de guerra se apenas um dos dois vai pelear (principalmente
se o “outro” for time de “fora”, pois, se o rival perder, o “sabor” é maior)2
1 O estranhamento ou o desconforto que as instituições do RGS ou que alguns de seus líderes causam no cenário nacional são palpáveis. Nesse sentido, é precioso o artigo de Helga Iracema L. Piccolo (1998, p. 61 -66), onde elenca as muitas expulsões dos gaúchos da comunidade brasileira, realizadas inclusive por alguns dos próceres da história nacional, tais como: Capistrano de Abreu em 1900, que considerava o RGS um membro gangrenado do Brasil e recomendava sua amputação; José Veríssimo em 1912, considerando a Constituição castilhista obra monstruosa, e o RGS como corpo estranho à Nação; o Historiador Basílio de Magalhães (deputado por Minas Gerais (MG)) durante a campanha da Aliança Liberal (1929), que negava aos gaúchos o direito de intervir nas questões da Nação, uma vez que eram platinizados; Humberto de Campos, que considerava o RGS um eterno foco de desordem e parcela espúria da nacionalidade (1932-33); o também Historiador João Ribeiro, que queria eliminar simultaneamente o RGS e a Amazônia do conjunto nacional (1957). Enfim, pelo acalorado rancor de José Honório Rodrigues (1988, p .56-57, p. 63), que também participava dessa sinfonia e
considerava o RGS a fonte de todos os males ditatoriais do Brasil. Lembra-se ainda do grande Lima Barreto; e não custa lembrar um dos insignes contemporâneos, Antonio Candido (em texto de 1963 sobre Sagarana), que criticava insolitamente Castilhos e Vargas na sua parte da fortuna crítica que viria a integrar as Obras Completas de João Guimarães Rosa, nomeando duas “aberrações” gaúchas: o Estado Novo, como tendo sido a do processo de industrialização/centralização, e a Constituição castilhista, como a aberração do período de descentralização federativa. Nominações por demais curiosas para um intelectual desse vulto. 2 Vão dizer que, em outros lugares, também se tornou assim, responde-se que aqui é mais duramente encarniçado, praticamente bipolar e quase desde sempre. Em um outro
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lembra, definitivamente, a inconciliável clivagem histórica entre
maragatos e chimangos, cuja memória divide até hoje a sociedade
gaúcha. Mas não são outras as acirradas resistências que se manifestam
em relação ao tipo de futebol que se joga no Sul, ao estilo de seus
técnicos (para tal, é ocioso chamar atenção para a resistência — para não
dizer extremada má vontade — da crônica esportiva, em particular, do
eixo Rio de Janeiro—São Paulo (SP) para com Luiz Felipe Scolari e para
com Dunga)3. Também me parece um espelho dessas guerras, no
presente, a rivalidade futebolística que o Brasil, e o RGS em particular,
possui com a Argentina e o Uruguai, seus arqui-inimigos históricos do
Prata.4 Parece que, no futebol, como em muitas outras coisas, muito nos
separa, ou, melhor dizendo, diferencia, e isso, simultaneamente, tanto
dos platinos quanto dos brasileiros. Contra todos eles, os sul-rio-
grandenses tiveram uma história de enfrentamentos militares, hoje a
arena é futebolística. Mas, durante um bom tempo, e do melhor,
sobretudo “contra” os brasileiros, essa arena foi política.
Pensa-se que, ontem como hoje, esse fenômeno da diferenciação
sul-rio-grandense decorreu da existência, durante um período de tempo
suficientemente longo, de uma poderosa formação social e territorial que
marcou profundamente a fisionomia cultural do povo sul-rio-grandense
(malgrado sua infinita diversidade interna).
campo, a bipolaridade ferrenha é um traço eterno do comportamento político dos gaúchos. 3 Para uma explicação diversa da que se dá aqui, ver Ostermann (2002); para uma
aparentada, ver Ostermann (1998). 4 Outras peculiaridades que emanam do futebol gaúcho: na crônica esportiva, é difícil imaginar que desponte um outro “aristocrata” alhures, pois é quase constrangedor ver Ruy Carlos Ostermann, absolutamente blasé, acompanhando e, eventualmente, interferindo em um painel onde comparecem os usuais comentaristas rastaqueras do supereixo. Na mesma emissão que antecedeu o jogo da Seleção em Porto Alegre, em 2009, Ostermann falava também em uma “escola de árbitros” do Sul, competente e diferenciada. E onde mais, senão no Sul, seria assunto preocupar-se com as “escolas” de crônica esportiva, remontando até as primeiras conversas de Ruy com Foguinho, como, certa vez, fez David Coimbra? É muito requinte.
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Dissecando e montando um plano de exposição, a questão primeira
que se deve responder é se ainda existe, no RGS, essa FS&T, bem como
se, todavia, existe a totalidade econômica que a ela teria correspondido.
Para responder essas questões, é preciso decompor e responder questões
outras, inclusive aquelas que se colocam com anterioridade, a saber:
a) como se constituiu e em que período a FS&T sul-rio-grandense?
Nessa análise, é preciso enfatizar em que ela se diferenciou da
formação brasileira de outras regiões do País;
b) com que características e em que período ela atingiu sua máxima
expressão? Qual forma de totalidade econômica que lhe
correspondeu?;
c) por fim, que razões maiores, endógenas e exógenas ao RGS
(nacionais e internacionais), foram responsáveis pelo seu colapso?
Quais são seus vestígios, seus sinais no nosso presente? Ou,
melhor ainda, como fica o nosso presente recente, os nossos
últimos 20 anos, quando comparados aos do apogeu dessa FS&T?
Registra-se, enfim, que se examinaram as questões, sempre que
possível, dentro de uma perspectiva comparativa. O território de base
escolhido para a comparação é o de São Paulo, por dois motivos: tornou-
se a economia regional capitalista mais importante do País e (também por
isso) foi sede da reflexão econômica, social e política mais importante e,
por ambos, também hegemônica do mesmo.
1 COMO SE FOI CONSTITUINDO E EM QUE PERÍODO A FS&T SUL-
RIO-GRANDENSE?
O pri nci pal perí odo de consti tui ção dessa FS&T foi o sécul o 19 , e ,
diferentemente de qual quer outra soci edade regi onal do Brasil , a do RGS
foi fruto da fronteira em guerra. Muito antes de existir qualquer população
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em seu territóri o, ele já fora envol vido pel as di sputas militares entre
Portugal e Espanha pela posse da Colônia de Sacramento no século 17.
Seu território mesmo, ou partes dele, ora pertenceu à Espanha, ora a
Portugal. A partir de um dado momento, a fronteira oscilava entre Porto
Alegre e Rio Pardo e o Uruguai incorporado como Província Cisplatina.
Depois vieram a longa guerra dos pecuaristas contra o Império do Brasil
(a Revolução Farroupilha) e as infindáveis guerras contra os Estados do
Prata, Estados-nação em construção; guerras estas que só terminaram
em 1870. E, nessas guerras, foi sempre o RGS que forneceu os
importantes contingentes em homens, cavalos e alimentos. Embora sua
classe dominante rural enriquecesse com o saque propiciado pela maioria
dessas guerras, a economia e a população em geral foram desorganizadas
e sangradas nas mobilizações militares. O território do RGS era a
passagem obrigatória para que as tropas brasileiras atingissem os países
do Prata. Esse passado de guerras, derrotas, vitórias e lutos viria a
marcar, para sempre, o imaginário social sul-rio-grandense.
Mas, o que é mais importante, dessa característica belicosa e militar
surgiram tanto os projetos privados da classe dominante dos pecuaristas
armados quanto a cl asse médi a rural dos col onos, pequenos propri etári os
imigrantes não ibéricos. Logo, os dois traços fundadores da sociedade
meridional. O primeiro terá como principal consequência a Revolução
Farroupilha, que viria a se constituir, doravante e sempre, em um marco
referencial mitológico de primeira ordem para a sociedade sul-rio-
grandense como um todo: um patrimônio de bravura, honra e heroísmo
(Leitman, 2008, p. 161). O segundo, a criação da classe média rural, fait
du prince (D. Pedro I) a partir de 1824, viria a gerar uma diversificação
social no Sul que foi única no Brasil. Essa diversificação social foi um dos
mais profundos e originais traços da sociedade que se formava no sul do
Brasil, pois essa sociedade de imigrantes se diferenciou e terminou
composta por muitas classes sociais, tanto rurais quanto urbanas. Essa
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sociedade colonial tornou a sociedade meridional, como um todo, a
soci edade regi onal mai s diversi fi cada do Brasil . Nessa soci edade col oni al,
era extraordi nári a a di visão soci al do trabal ho5. Daí que, mai s cedo que
alhures no Brasil, nela fosse socialmente demandada uma reforma fiscal
(ou seja, uma alteração na relação entre o Estado e a sociedade), pois os
colonos queriam dividir com a parte tradicional e pecuarista da sociedade
meridional o ônus fiscal da província imperial. Fato diante do qual a recusa
dos deputados pecuaristas da Campanha, que dominavam a Assembleia
Provincial, fazia com que fracassassem os projetos de reforma fiscal do
representante dos colonos, apresentados em sucessivas legislaturas.
Contrariamente a essa grande divisão social do trabalho, que ocorria
nas zonas de povoamento do RGS, em São Paulo, latifúndio e escravidão,
monocultura de exportação e monopólio no mercado internacional foram
insti tui ções que se sobrepuseram, baseando-se em um ti po de expl oração
econômica autárquica (a fazenda de café) que estrangulava a divisão
soci al do trabalho (poi s el a i nternali zava a di visã o do trabalho), gerando
(do mesmo modo que a monocul tura do açúcar já o fi zera, ante riormente,
no Nordeste do Brasil ) as cl asse s soci ai s bási cas da soci edade brasil ei ra: a
dos escravos rurais e a dos senhores de grandes extensões de terras e de
grandes plantéis de escravos rurais. Essa ordem social monocultora era
exportadora para o mercado internacional (tal como a açucareira também
o fora) e gozava de uma posição monopolística nesse mercado.
Outra foi a sociedade escravista no Sul: nela, latifúndio e escravidão
não foram instituições que se sobrepusessem. Então, à classe dos
senhores de terra não correspondeu uma classe de escravos rurais. O
escravismo em massa produtivo concentrou-se nas charqueadas, que
eram, geralmente, propriedade de comerciantes, localizadas perto de
5 Esse acesso ao “capital terra” por parte de mais amplas camadas da população rural viria a ser um dos pilares que marcariam, para além mesmo da industrialização e dos seus efeitos concentradores de renda e patrimônio, a distribuição de renda no RGS, como se voltará a referir mais adiante.
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cidades, e que constituíam atividades de tipo artesanal protourbanas e
não autárquicas, e cujo produto nunca gozou de monopólio no mercado
brasileiro (seu principal mercado). Logo, mesmo a parte tradicional e
escravista da sociedade meridional não se parecia com a cafeicultora ou
com a açucareira.
Enfim, consideremos a substituição do trabalho escravo pelo livre,
que foi a questão maior da sociedade e da economia brasileiras no século
19, que deu origem a uma relação importante entre abolição e imigração
e que foi, obviamente, diversa nas duas regiões. Essa relação foi
assimétrica nas duas províncias: em SP, a escravidão bloqueou a
imigração, enquanto, no RGS, a imigração sufocou o setor escravista com
falta de mão de obra, pois os imigrantes possuíam um destino alhures que
não o do trabalho ao lado dos escravos.
Foi assim que, em meados do século 19, imigrantes europeus não
ibéricos foram levados a SP para substituir os escravos nas plantations,
experiência que fracassou, porque os cafeicultores tentaram manter com
eles um tipo de relação idêntica à que mantinham com seus escravos.6
Outra foi a situação no Sul. Neste, o Governo Imperial estabeleceu a
colonização não ibérica como um mundo à parte do mundo escravista
tradicional e que deveria opor-se a ele. O objetivo era formar uma classe
média rural proprietária e não escravista, que servisse de contrapeso ao
poder dos latifundiários e dos charqueadores escravistas. No RGS, pelo
menos enquanto durasse a tutela imperial sobre as colônias de
6 Refere-se a experiência liderada pelo suíço Thomas Davatz (1980), em 1856, na fazenda do Senador Vergueiro, em Rio Claro, em SP (melhor relato em Dean (1977)). Do fracasso dessa experiência, resultou uma enorme propaganda, na Europa, contra a emigração para o Brasil, que fez sustar o fluxo. Esse seria retomado nos últimos três anos da escravidão, de forma crescente, financiado pelo Governo Imperial, para que não faltassem braços para colher o café, que estava em crise de força de trabalho pelas fugas massivas de escravos.
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povoamento, era proibido o uso (próprio ou alugado) do braço escravo
nas colônias.
Em SP, a escravidão bloqueou e fez fracassar a imigração (que,
enquanto existiu, foi um projeto privado dos cafeicultores, embora o
transporte internacional fosse pago pelo erário imperial), e os imigrantes
permaneciam na mesma condição de expropriados que viviam na Europa.
No Sul, não somente eles se transformavam em proprietários dos meios
de vida e de produção, como essa imigração roubou braços do setor
escravista meridional, pois representou, durante todo o século 19, uma
alternativa atraente ao assal ari amento nas charqueadas escravi stas.7
Outra diferença entre SP e RGS é marcada pelas conjunturas
econômicas das duas regiões no final do Império. Constatava-se uma
trajetória de expansão econômica da cafeicultura durante todo o século
19, que acabara por concentrar a escravaria produtiva do País e cuja
classe dominante estava unida em torno de bandeiras políticas de
descentralização contra a organização unitária e engessada do Estado
monárquico; enquanto o RGS se debatia em uma crise econômica que
durava já 10 anos, fruto de grandes transformações econômicas que
foram: a aproximação deliberadamente intencional (por parte dos
uruguaios) entre as redes de estradas de ferro do Uruguai e as do RGS,
que abriram o mercado gaúcho às mercadorias contrabandeadas vindas
de Montevidéu (o que estabeleceu um sério conflito entre os capitais
comerciais do Leste — de Porto Alegre e de Pelotas — com os do Sudoeste
— associados e representantes do capital comercial de Montevidéu); a
7 Por fim, a dissolução do escravismo nas duas regiões foi diversa. Em SP, houve grandes comoções sociais já a partir da abolição dos castigos corporais, com fugas em massa das fazendas, sendo os escravos apoiados e suas fugas organizadas por elementos da classe média urbana, e essas convulsões e fugas precipitaram a queda do Estado escravista brasileiro (Saes, 1985). No Sul, o movimento não foi impetuoso, pois já havia ocorrido uma abolição geral (hipócrita, incompleta e insuficiente) anos antes de 1888. Além disso, a Província já perdera grande parte de seus escravos para o café, pois também não tinha mais condições de disputá-los, dado o preço que os escravos haviam atingido no mercado brasileiro pela expansão cafeeira.
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melhoria dos plantéis bovinos do Uruguai e, em um grau muito menor, da
Campanha do RGS — com superprodução e queda de preço — e o
consequente deslocamento da demanda das charqueadas de Pelotas da
Campanha gaúcha para os plantéis uruguaios; e, por fim, a perda do
mercado consumidor cubano de charque (pois os cubanos começaram a
consumir a carne resfriada norte-americana). Essas transformações
colocaram em conflito interno as quatro mais importantes frações da
classe dominante regional: a dos capitais comerciais do Leste contra a dos
do Sudoeste (representantes dos capitais montevideanos), a dos
charqueadores de Pelotas contra a dos criadores da Campanha (Baretta,
1985, p. 25-33). O conflito estabeleceu uma crise na dominação (regional)
de classe.
Em resumo, no final do Império, a classe dominante paulista estava
unida em torno de objetivos comuns e vinha de um longo período de
expansão econômica, enquanto a do RGS estava cindida e empobrecida
por uma crise de 10 anos para a qual não se encontrava solução. Diante
do impasse sem solução, sua elite dividiu-se e formulou dois projetos pra
o futuro da sociedade meridional. A oligarquia tradicional defendia o
status quo, queria aprofundar a especialização na pecuária de exportação,
já os republicanos pensavam que essa especialização era a raiz da crise
da economia do RGS, pois tornava a renda interna dependente de poucos
produtos pecuários e do comportamento dos mercados externos. Eles
formularam um projeto alternativo: diversificar a produção interna e a
pauta exportadora, para tornar a economia da Província menos vulnerável
ao comportamento dos mercados externos. Queriam desenvolver o
comércio e as indústrias naturais (as que utilizavam as matérias-primas
da região) e apoiar os pequenos proprietários rurais. Continuar
fomentando a imigração não ibérica e distribuir títulos de propriedade aos
imigrantes (Fonseca, 1993, p. 24-25). Ou seja, os republicanos
positivistas já formulavam um projeto de reforma e transformação social,
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quiçá um projeto desenvolvimentista, posto que inconforme com o
presente.8 Desse modo, junto com as ideias republicanas de igualdade de
todos perante a lei, o positivismo republicano, no Sul, já atrelava ao seu
projeto político um programa de transformação social: com ideias, pelo
menos, protodesenvolvimentistas. No limite, a República já nasceria
desenvolvimentista no Sul9.
Foram, portanto, duas sociedades muito diferentes entre si que
chegaram ao final do século 19, no Rio Grande do Sul e em São Paulo,
quando foi Proclamada a República no Brasil. Sociedades diversas,
vivendo conjunturas econômicas e políticas diversas, enfrentaram
diferentemente a crise de mudança do regime político. Doravante, viriam
a ter, forçosamente, destinos diversos dentro da História republicana
nacional.
2 COM QUE CARACTERÍSTICAS, E EM QUE PERÍODO, A FS&T ATINGIU SUA MÁXIMA EXPRESSÃO?
A FS&T atingiu seu apogeu na Primeira República, quando àquela
base social diferenciada que se formara durante o Império veio somar-se
um Estado de natureza burguesa.
Chega-se, assim, ao núcleo da problemática, pois esse é o período
brasileiro da transição do escravismo para o capitalismo (1888-930). Se,
até agora, o que se viu foi a construção de uma sociedade diversa no Sul,
nesse período de “acabamento” e auge da formação social, investiga-se
8 À parte o fato de os republicanos serem positivistas e, portanto, inclinados a pensar o progresso social, o futuro e a transformação (Fonseca, 2009), penso que os homens não tiram “coelhos de cartolas”, e os republicanos positivistas somente conseguiram formular um projeto desenvolvimentista avant la lettre para o RGS porque essa sociedade, dominada pelo segmento tradicional e escravista, já apresentava, em seu seio, uma solução desenvolvimentista: o seu segmento colonial. 9 Para ver um excelente artigo que aponta o positivismo como uma das raízes do desenvolvimentismo, consultar Pedro C. D. Fonseca (2004).
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mais a fundo o papel do Estado e das ações da elite que o ocupou para
conformar, finalmente, a FS&T sul-rio-grandense.
Para uma visão global desse período de transição para o capitalismo
no Brasil, informa-se, em linhas gerais, como RGS e SP nele evoluíram.
Trata-se de um período de suma importância na História do País, sendo
nele que esses dois estados adquiriram características específicas (em
termos econômicos e políticos). É também porque se trata de um período
de transição e porque a organização política do País, na época, permitia
uma grande autonomia de ação (política e administrativa) aos estados
federados que essas sociedades regionais puderam seguir trajetórias
diferenci adas tanto no pl ano econômi co quanto no p olíti co.10
A experiência meridional foi, sobretudo, política: a elite que tomou o
poder no Sul não possuía o respaldo da tradição patrimonialista e, por
isso, foi-lhe necessário apelar para uma nova forma de dominação para
obter legitimidade. Assim, apoiada, ideologicamente, no positivismo
conservador de Auguste Comte11, ela exerceu uma dominação racional-
burocrática sobre a sociedade sul-rio-grandense, dominação esta
permanentemente contestada pela elite tradicional (a dos oligarcas
rurais). Para arrancar a sociedade da crise em que se vinha arrastando há
já uma década, ela apoiou sua dominação na promoção da expansão dos
setores modernos da economia meridional, a mais diversificada do País
(social e economicamente), fomentando a pesquisa agropecuária e
industrial e a própria industrialização; apoiou também o desenvolvimento
das cooperativas, dos bancos privados (os maiores bancos nacionais,
depois do Banco do Brasil) e a expansão da lavoura moderna do arroz
irrigado. Em suma, ela estimulou, e isso é o mais importante, a expansão
10 Com efeito, levando em conta o nível atual de centralização do poder no Brasil, a Federação, tal como se apresentava na época, apareceria, aos nossos olhos, muito mais como uma confederação. 11 Positivismo conservador, mas que, considerado o contexto latino-americano da época, oligarca e liberal, era progressista, e muito.
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das novas classes emergentes: a dos capitalistas e a dos operários, que
eram embrionárias quando chegou ao poder. Essa elite transformou o
RGS, realizando, no Estado, as experiências de relação Estado-sociedade
que viriam a fundamentar o futuro Estado desenvolvimentista
brasileiro (1930-90).
Outro foi o caso de São Paulo. O início da transição encontrou São
Paulo em um dos períodos de euforia da expansão cafeicultora, e sua elite
não tinha motivos para mudar mais nada, uma vez que conseguira, com a
redação da nova Constituição nacional, os instrumentos político-
administrativos que necessitava para se autogerir. Quanto à economia
cafeeira, atrelada ao capital internacional, ela passaria por interessantes,
curiosas e audaciosas peripécias especulativas, que pasmariam o próprio
capital internacional. Assim, os hábeis especuladores paulistas
conseguiram transformar uma política de defesa de preços internacionais
do café em uma agressiva política de sustentação e de valorização de
preços do produto no mercado internacional. Ao mesmo tempo, o capital
originalmente aplicado nas plantations já se havia desdobrado no grande
capital cafeeiro, que já investira em obras de infra-estrutura urbana e nas
ferrovias antes da República e continuava a impulsionar tanto a
construção civil quanto o transporte ferroviário. Por fim, essas iniciativas
viriam a fomentar a industrialização de São Paulo, que, em 1919, já
concentrava 33% do valor da transformação industrial do Brasil.
Mas todo esse desenvolvimento foi, aos poucos, minando a
solidariedade interna da classe dominante paulista (o bloco de interesses
agrários, mercantis e capitalistas apoiado na lavoura do café) e criando
cisões em seu seio. A crise mundial de 1929 veio coincidir com uma das
crises cíclicas do café no mercado internacional, o que sempre açulava
uma crise no interior da oligarquia cafeeira. Ela precisava, ainda uma vez,
controlar o País, para controlar a distribuição de suas perdas (inclusive
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entre suas frações). A Primeira República (1889-930) entrava em colapso.
A revolução veio do Sul: Getúlio Vargas, Presidente do RGS, encabeçou-a.
A Primeira República foi, inicialmente, altamente descentralizada, e,
durante toda a sua existência, o poder central procurou recuperar algo da
capacidade de centralização que havia perdido com a queda do Império.
Um dos mecanismos criados para articular as partes ao todo,
estabilizando o caótico poder dos estados regionais, mas mantendo as
suas autonomias, foi a criação da “política dos governadores”, que
atribuiu, doravante na história do Brasil, um papel extremamente
relevante aos governadores dos estados na política nacional.12
Box 1
A hipótese geral da problemática que subjaz ao exame que se fará
da FS&T em seu apogeu é: o fenômeno mais importante da história do
Brasil na longa duração, a revolução burguesa (violenta),13 não ocorreu
nem no epicentro político nem no econômico do Brasil (Rio de Janeiro e
São Paulo), mas nessa sociedade meridional, uma sociedade acêntrica14.
Isto porque o vulto e a significação desse evento para a história nacional
12 Na época, os governadores dos estados, segundo cada constituição estadual, poderia ser denominado de presidente ou de governador. Os graus de liberdade para a organização constitucional dos estados era tal que vários estados possuíam, por exemplo, tanto uma câmara de deputados estadual quanto um senado estadual (caso de São Paulo, por exemplo). Por outro lado, de época em época, alguns governadores (e seus respectivos estados) viriam a ser mais importantes que outros, embora seja verdade que alguns atravessaram todos os períodos sendo sempre importantes: são os grandes eleitores históricos (como MG e SP). Embora o RGS não tenha tido importância no Império, foi um grande desestabilizador dessa política durante a Primeira República. Foi importante com Vargas e com Jango (de uma outra maneira); ainda foi um grande protagonista com Brizola na Legalidade (de modo algo similar ao da Primeira República)
e até a ascensão do Partido dos Trabalhadores (PT) à Presidência, mas sua estrela foi, definitivamente, apagando-se nos últimos anos, para não ter nenhum significado atualmente. Por fim, dentro da organização política nacional, aquele poder dos governadores foi, durante todo o século 20, uma instância mediadora e democrática que, infelizmente, desapareceu ao longo do último período presidencial (2007-10). 13 Que acompanhou, em inúmeras sociedades, a passagem de um modo de vida predominantemente rural e agrícola para um modo urbano e industrial, mantido o contexto da época (cujo centro, grosso modo, foi o século 19). 14 Por sociedade acêntrica entende-se uma sociedade que não é regionalmente central nem periférica dentro de um território político e econômico nacional.
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demonstram que a sociedade que gestou essa revolução não poderia ser
meramente periférica15 em relação aos dois epicentros. Com efeito, a
ocorrência do fenômeno indica que ela se encontrava em estado “mais
avançado” de transformação das forças sociais do que as sociedades dos
epicentros16.
E mais, durante os 39 anos que se seguiram ao ato revolucionário (a
promulgação e a efetiva entrada em vigor da Constituição castilhista de
1891, em fins de 1892), a sociedade e o Estado meridionais gestaram
todos os ingredientes do Estado burguês e desenvolvimentista que Getúlio
Vargas, a partir da vitória da Revolução de 1930, começou a implantar no
Brasil como um todo. Esse Estado nacional desenvolvimentista (dito
Varguista por alguns) perdurou, com transformações, até 1990.17
Dado que a revolução não pode ser detectada em nenhum dos dois
epicentros, pensou-se, durante muito tempo (e ainda hoje), que, muito
simplesmente, não teria havido revolução burguesa no Brasil. As únicas
grandes exceções a esse disparate histórico são o grande trabalho
fundador de Florestan Fernandes (1987) e a magnífica e corajosa tese de
15 Ou seja, dependente, atrasada, subordinada e atrelada aos dois epicentros. 16 O que supõe a explicitação da hipótese complementar de que o estado de “desenvolvimento” das forças sociais estava “mais atrasado” nos dois epicentros. Na verdade, essas são somente formas de expressão, pois não se acredita nesse tipo de juízo comparativo/valorativo (ou seja, no caso, “competitivo”) sobre o estado de transformação das forças sociais. Ver, por favor, as conclusões. 17 Portanto, é inútil buscar alhures as origens da modernização que sofreu o Estado brasileiro a partir da década de 30, como, por exemplo, nas transformações internas do aparelho de Estado da União e de suas políticas centralizadoras, que se intensificaram durante toda a Primeira República, como fez Topik (1989), ou na burocratização crescente do aparelho fazendário do Estado de São Paulo e em sua autonomização em
relação aos interesses da classe dominante regional ao longo da Primeira República, como foi tão bem reconstruído e analisado por Perissinotto (2000). Não, as origens estão, todas, no RGS do Partido Republicano Riograndense (PRR). Aliás, esses autores só buscaram lá, porque desconhecem a História do Sul e porque pensam que a origem deveria estar, forçosamente, por lá. Dois grandes pensadores do “centro” contrarrestam essa tendência geral, Alfredo Bosi (2000), que afirma estar a origem do Estado-Providência brasileiro no RGS do PRR, e Aspásia Camargo (1992), que localiza aí a origem do Estado Desenvolvimentista Brasileiro (EDB). Para que se comprove que a primeira experiência desenvolvimentista foi realizada no RGS e ainda durante a Primeira República (durante a Presidência de Vargas, em 1928-30), ver Fonseca (2004; 2004a).
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O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 62
Décio Saes (1985). No entanto, o primeiro pensou-a como tendo ocorrido
tão somente na longa duração, e o segundo como tendo ocorrido
condensada no tempo, entre 1888 e 1891, entre a Abolição da Escravidão
e a implantação da primeira Constituição republicana, e cuja “segunda
parte”18 teria ocorrido, de forma pacífica, na “superestrutura”19 jurídica e
política do Brasil, o que teria aberto o caminho para o desenvolvimento de
relações de produção capitalistas. Infelizmente, ambos estiveram
centrados na análise dos fenômenos nos dois epicentros. A revolução
burguesa ocorreu concentrada no tempo e de forma extremamente
violenta, mas seu desenrolar deu-se na sociedade acêntrica do Rio
Grande do Sul, pois fora ela quem reunira condições históricas para que
tal ocorresse. E mais, a revolução constituiu-se pela tomada do aparelho
de Estado por uma vanguarda política (sem experiência político-
administrativa anterior), jacobina (fanática e absolutamente
intransigente), que esgrimia uma variante simplificada e crioula da
ideologia positivista de Auguste Comte e que impôs uma Constituição sui
generis, que, por exemplo, condenava a oligarquia tradicional à
ilegalidade política.20 Através da obediência cega a essa Constituição, de
uma rígida disciplina partidária, essa vanguarda teve condições de
18 Tem-se liberdade para distinguir os dois momentos: o da violência, que precedeu à derrubada do escravismo, e o pacífico, que foi o de estabelecimento do novo regime republicano. 19 O jargão é usado aqui, não em Décio Saes. É verdade, também, que Saes mostra que a derrubada do sistema escravista foi violenta em São Paulo, com as classes médias urbanas aliando-se aos escravos rurais e organizando suas fugas em massa, enfim, apoiando a revolta rural (Saes, 1985). Mas as transformações violentas cessaram nesse
ponto. A partir daí, as elites regionais tomaram as rédeas do processo e fizeram cessar a violência revolucionária (o mesmo não ocorreu com a elite do Sul, que se cindira). Por outro lado, também é verdade que os dois autores pensam a revolução burguesa com agentes sociais e episódios que existiram e ocorreram somente nos epicentros, preferentemente em SP. São, portanto, etnocêntricos, umbilicais. Como sempre, a História regional de SP faz-se passar por História do Brasil. Não somente no caso desses autores, mas o fenômeno ocorre com a maioria absoluta dos pensadores do “centro”. 20 Os institutos constitucionais que permitiam isso eram o da re-elegibilidade ad aeternum do Presidente do Estado e o da escolha e nomeação do Vice-Presidente pelo próprio Presidente do Estado do RGS.
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O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 63
estabelecer uma continuidade administrativa que lhe permitiu
implementar um sem-número de projetos.
Box 2
Desde a Proclamação da República em 1889, essa vanguarda só
conseguiu estabilizar-se no poder no final de 1892 (depois de um longo e
conturbado período em que, alternativamente, ocupou e afastou-se ou foi
afastada do mesmo). E a modificação que empreendeu na dita
“superestrutura política e jurídica” antecedeu o pleno desenvolvimento
das relações de produção capitalistas na região. Sua primeira obra foi a de
estabelecer a autonomia do Estado em relação à classe dominante
regional. Aliás, essa autonomia do Estado criou, de fato, as condições para
que tal ocorresse, confinando as forças reacionárias da oligarquia
tradicional e patrimonialista na imobilidade de uma oposição que só
poderia realizar contestações oratórias: sobretudo sua ala rural, que se
ergueu na contrarrevolução chamada de Revolução Federalista de 1893 e
que viria a retomar as armas em 1923. Essa imobilização da oligarquia
tradicional foi condição sine qua non do sucesso político e administrativo
do PRR.
Com efeito, ao contrário do Governo Federal e de todos os demais
governos estaduais do País, uma situação histórica peculiar impediu que
os políticos imperiais meridionais (fossem eles liberais ou conservadores)
continuassem atuando nos quadros políticos meridionais durante a
Primeira Republica (1889-930). À parte um curto período que terminou já
em 1892, eles ficaram confinados a uma oposição ilegal até 1924 (ou a
uma oposição legal mais extremamente restringida e, pode-se afirmar, de
expressão simbólica, consentida, impotente e inexpressiva)21. No resto do
País, seus congêneres da oligarquia tradicional dominaram as políticas
21 Isto não quer dizer que, localmente, em sub-regiões do RGS, conservadores e liberais não se tenham convertido ao PRR e dominado a política local. Porém, no nível global do Estado, predominou o comando do PRR nomeando interventores por todo o Estado, o mais das vezes, totalmente estranhos às localidades que viriam a dirigir.
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regional e nacional, pois, na passagem da Monarquia para a República,
simplesmente viraram a casaca, e a sua prática de dominação e de
legitimação permaneceu a mesma: patrimonialista e oligárquica .
Box 3
Situação diversa, porém, ocorreu com a vanguarda positivista que
se estabeleceu no poder, no RGS. Pois, não possuindo o respaldo da
legitimação tradicional para se fazer obedecer (uma vez que os seus
legítimos detentores foram por ela colocados na oposição), ela precisou
legitimar-se em face de toda a sociedade meridional (e não somente
diante de seus pares, como fazia a oligarquia tradicional), mostrando-se
eficiente na administração da coisa pública, transparente no uso dos
recursos públicos,22 prestando contas e dando o mínimo possível de
pretextos para que a população em geral se indignasse e insurgisse com
os atos do Poder Executivo. É nesse comportamento que foi forjada uma
das imagens mais fortes do político gaúcho: o de portador de uma ética
republicana ilibada.23 Isso também porque havia uma poderosa liderança
que lhe fazia oposição, que lhe ameaçava e que possuía, além disso,
aliados em todas as oligarquias suas irmãs que governavam os demais
estados da Federação e, inclusive, a própria União. No entanto, tanto o
Governo da União quanto os das oligarquias regionais que governaram os
demais estados do Brasil legitimaram-se segundo a forma tradicional
herdada do Império, e somente o PRR foi forçado a buscar uma outra
forma de legitimação: racional e burguesa.
22 Por um lado, o patrimônio de importantes líderes gaúchos da Primeira República permaneceu inalterado durante sua vida, como foi o caso de Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros e Getúlio Vargas. De quantos outros políticos nacionais pode-se dizer a mesma coisa? Por outro lado, o calcanhar de Aquiles do regime republicano positivista viria a ser, sobretudo, a fraude eleitoral e as interventorias municipais. 23 Mário Maestri (2008) refere-se a uma ética republicano-castilhista no trato da coisa pública. Esse tipo de comportamento criou uma imagem que ficou associada ao desempenho dos políticos gaúchos, imagem que se projetou duravelmente para o futuro e que atravessou quase todo o século 20. Ela está, definitivamente, sepultada hoje em dia.
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Box 4
Retomando, então.24 Ora, formas de dominação tradicionais com as
respectivas formas de legitimação não podem dar lugar senão a práxis
políticas “irracionais”. Por isso, deve-se acrescentar, ainda, que a relação
fiscal que o Estado estabelece com a sociedade (ou com diversos
segmentos da mesma) expressa o grau de sofisticação do mesmo e seu
grau de racionalidade. Assim, um Estado que baseia suas receitas em dois
ou três impostos principais é um Estado “fiscalmente primitivo”
(importações, exportações, transferência de propriedade), enquanto um
outro que diversifica suas fontes de receita fiscal é um Estado “mais
sofisticado” (guardados, é claro, as devidas proporções e o momento
histórico para o qual é dirigida a análise). Um Estado que reconhece a
necessidade de realizar uma reforma fiscal, multiplicando suas fontes de
receita, e nunca consegue implementá-la, é um Estado governado por
forças “irracionais”.
24 Mesmo utilizando ferramentas weberianas, a análise deste texto é diversa da dos estudos que são referidos a seguir. No Brasil, as análises baseadas em uma abordagem weberiana foram raras, duas, porém, tiveram grande importância: uma sobre a História do Brasil (Faoro, 1996) e outra sobre as relações entre São Paulo e a União (Schwartzman, 1988). Por um lado, diferentemente desses trabalhos, a investigação realizada aqui lançou mão das ferramentas criadas por Weber sem, no entanto, proceder a uma análise globalmente weberiana, como aquelas realizadas pelos autores citados. Por outro lado, acredita-se que as ferramentas analíticas criadas por Weber são independentes das sociedades políticas que, na sua imaginação, deram origem às respectivas elaborações. Quer-se dizer, com isso, que o poder analítico das ferramentas por ele criadas na Sociologia da Dominação transcende, em muito, as sociedades históricas que lhe serviram, imediatamente, de inspiração (para a sua fabricação), ou seja, as sociedades democráticas da sua época. Do contrário, poder-se-ia querer
estabelecer que a ferramenta teórica dos “cachos de invenções” de Schumpeter, por exemplo, criados a partir do que ocorria no sistema capitalista, só pudesse ser aplicada a esse sistema e não, por exemplo, ao sistema industrial soviético. Ora, a teoria dos “cachos” é uma propriedade das sociedades tecnológicas e industriais (sobretudo em certas fases dessas) e é ferramenta para examinar o poder de multiplicação/disseminação de invenções em um sistema tecnológico industrial qualquer (a extrema burocratização das instituições pode, por exemplo, dificultar seu funcionamento, mas a ferramenta está aí para ser utilizada e colocar esse emperramento a nu), não sendo, portanto, a teoria dos “cachos” uma propriedade exclusiva do sistema capitalista.
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Por outro lado, há que se buscar coerência ou não (ou seja,
racionalidade) entre a ideologia esposada pelos governantes e sua prática
política, e aqui se levam em consideração, particularmente, o ponto de
vista liberal não interventor na economia e o positivista que definia o
enquadramento dentro do qual essa intervenção poderia e deveria
ocorrer. Ou seja, importa verificar a coerência entre ideologia dos
governantes e sua práxis de política econômica e, portanto, a
racionalidade ou irracionalidade desse procedimento.
Antes de tudo, a vanguarda que ocupou o aparelho de Estado no
RGS, procedeu à execução das três tarefas imediatas do Estado
burguês25, a saber: instaurar a autonomia relativa do Estado em relação à
classe dominante regional; criar a separação entre o público e o privado;
finalmente, realizar uma reforma fiscal, abandonando a estrutura fiscal do
Estado oligárquico, patrimonialista e monoagroexportador. Para a
execução da primeira tarefa, já havia sido promulgada a Constituição do
Estado, peça fundamental para garantir a continuidade administrativa do
PRR e bloquear (ad infinitum) a volta da classe dominante tradicional ao
poder. Isso provocou, imediatamente, o exílio dos grandes pecuaristas da
Campanha e a contrarrevolução (a Revolução Federalista de 1893) na qual
essa classe e seus projetos foram enterrados. Essa guerra civil foi uma
luta entre o passado (o projeto de continuidade do status quo da
oligarquia rural, ou seja, de aprofundamento do modelo pecuário
exportador) e o futuro transformador dessa sociedade rural em urbana e
industrial (Targa, 2003). A oposição continuaria, até 1923, como a sombra
ameaçadora e organizada, dentro e fora do RGS (no Brasil, na Argentina e
no Uruguai), pressionando a vanguarda no poder. A separação da esfera
pública da privada deu-se, fundamentalmente, no enfrentamento da
25 Derivadas de Saes (2000).
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questão da apropriação privada e fraudulenta das terras públicas26, na
sub-região do Planalto, caminho de expansão das novas colônias de
povoamento (agora, um projeto republicano).27 O processo de
discriminação das terras públicas foi encetado por nove Comissões de
Verificação, que trabalharam durante oito anos (1897-905) e instauraram
inúmeros processos contra os especuladores imobiliários.28 O objetivo era
a retomada dessas terras pelo Estado, para distribuí-las em colônias de
povoamento. Essa ação do jovem Estado burguês colocou em xeque um
dos principais meios através dos quais a grande propriedade era
construída: a apropriação ilegal das terras públicas.29 Por fim, o Governo
do RGS procedeu a uma reforma fiscal graças à vontade política para
implantar o Imposto Territorial (sobretudo sobre a grande propriedade
rural), mas também por uma política de incentivo tanto à multiplicação
dos setores produtivos na região quanto à diversificação da pauta
exportadora. Todas essas três tarefas essenciais do Estado burguês
estavam realizadas até 1914.
26 “O Estado correu o risco de ser completamente despojado das terras que deviam compor seu patrimônio pelas legitimações concedidas aos particulares, a despeito da Lei de 18 de setembro de 1850. De 1854 a 1889, 766.100 hectares passaram do domínio público para o privado: 218.000 em 25 anos, e 547.300 em 9 anos (entre 1881 e 1889). Essas legitimações eram em grande parte fraudulentas...” (Roche, 1969, p. 118-119). 27 Estendendo ainda mais aquela distribuição do “ativo terra” que já vinha ocorrendo desde o Império e que acompanharia, agora, os primórdios da industrialização no Estado. 28 A primeira comissão concluiu que, só no Município de Santa Cruz, o Estado estava em condições de recuperar 10% da área total, equivalente a 19.300 hectares. Porém, uma vez que grande parte das terras já havia passado a terceiros compradores de boa fé, o Governo do RGS tornou sem efeito as indenizações que lhe seriam devidas, mas regulamentou as terras públicas, promulgando a Lei de 1899 (que completa e corrige a Lei de Terras de 1850), seguida do Regulamento de 1900. O texto definiu as terras
públicas devolutas como sendo aquelas que não são nem de uso público nem apropriadas por título legítimo. A Lei, fixando um prazo de doisanos para a entrada de pedidos de legitimação, limita a superfície legitimável em 50 hectares em áreas de campo e de 25 hectares em áreas de floresta. Esses textos solucionavam com justiça a questão da terra e interessavam diretamente ao processo de colonização em curso, mostrando a relação íntima entre ambos (Roche, 1969, p. 119). 29 É preciso insistir na relevância dessa façanha: lembra-se que a economia era ainda agrária, fundada sobre o poder fundiário. Atacar esse instituto tradicional (a apropriação ilegal das terras públicas) era realmente um ato revolucionário e inédito no País. Adiante veremos que nada disso foi conseguido alhures.
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Apresentam-se, agora, como evidências do andamento da
modernização no Sul, três ações do Estado burguês no RGS: a
implantação do Imposto Territorial, com a respectiva reação de grandes e
pequenos proprietários rurais (1902-13); a peculiar reação do Governo
estadual à greve geral de 1917; e a encampação da rede ferroviária
regional (1920). Com esses três exemplos, quer-se mostrar que a relação
que o Estado meridional foi entabulando com a sociedade gaúcha não era
tradicional, ou seja, de tipo oligárquico e patrimonial,30 porém uma
relação nova no contexto nacional: racional e burguesa. Com efeito, essa
era uma relação modernizadora que rompia com o passado.
Examina-se a primeira ação: a implantação do Imposto Territorial. O
Partido Republicano Riograndense fizera inscrever no seu programa,
desde os tempos do Império, a necessidade de substituir o imposto
indireto sobre as exportações31 por um imposto direto sobre a propriedade
imobiliária (rural e urbana). Quando a Constituição republicana foi
redigida e aprovada, dela constava um artigo que estabelecia essa
substituição.32
Em plena crise fiscal, o Imposto foi implantado em 1902, no bojo de
uma reforma fiscal, com a justificativa de que ele vinha em socorro da
indústria e do comércio, que sofriam com o Imposto de Exportação (que
já fora reduzido, mas que deveria sê-lo ainda mais33). Segundo a reforma
30 Nem mesmo ideologicamente liberal, tão ao gosto das oligarquias brasileiras e latino-americanas. 31 Por exportação, entendia-se a venda de qualquer mercadoria para fora dos limites do RGS (conceito comum a todos os estados do Brasil). O programa republicano visava
também substituir os impostos indiretos pelos diretos e principalmente fazer com que o Imposto Territorial fosse a principal fonte do erário público. 32 A partir da entrada em vigor da Constituição do RGS, portanto, a introdução do Imposto Territorial não dependia mais de nenhum trâmite legislativo, pois dependia somente de uma iniciativa do Poder Executivo. O Imposto Territorial pode ser tratado, assim, como matéria administrativa e não como matéria legislativa. 33 Durante o período imperial, para diferentes classes de mercadorias, as taxas de exportação totalizavam 13%, 10% e 9%. O Governo republicano do RGS já as havia reduzido para 10%, 6% e 4% (Carvalho et al., 1998, p. 107). Mas o Governo do PRR queria reduzi-las ainda mais, ou mesmo suprimi-las.
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proposta pelo Poder Executivo, um outro imposto, sobre as transferências
de propriedade, também deveria ser reduzido de 7% para 6,5%. O cálculo
do imposto decompunha-se em duas partes: na primeira parte, era
considerado o valor venal do imóvel (terra nua, imóveis de exploração,
residências, investimentos, etc.), e o valor tributado foi de 0,2%; na
segunda parte, tributava-se a extensão das terras, que foi tributada à
razão de 10 réis por hectare.
Em 1903, na reunião da Assembleia de Representantes34, foi lido um
documento do Clube Gaúcho de Bagé protestando contra a introdução do
Imposto Territorial e manifestando-se em favor do Imposto de
Exportação. Baseavam-se, para isso, em Leroy Beaulieu, que
recomendava este imposto para países jovens, já que haveria de recair
sobre os consumidores estrangeiros e não sobre os produtores nacionais
(Minella, 1985, p. 30). No caso brasileiro, o argumento era válido para o
café, o cacau ou para a borracha, porém inválido para a maioria das
mercadorias sul-rio-grandenses, pois essas se constituíam em bens-
salário vendidos no mercado brasileiro (e, assim, o Imposto elevava o
preço ao consumidor e provocava restrição de demanda no mercado
nacional). Face àquela arenga, o Presidente do Estado aumentou a tarifa
do Imposto para 0,25% sobre o valor venal dos imóveis e para 30 réis por
hectare sobre a extensão das terras.35
34 A Constituição do RGS estruturava os poderes de modo não liberal: havia um Poder Executivo, um Poder Judiciário e uma Assembleia de Representantes. Essa era uma reunião de deputados eleitos, que funcionava somente durante dois meses ao ano e que possuía, fundamentalmente, um papel de conselho fiscal das contas do Executivo. Não
havia um Poder Legislativo. As leis emanavam do Poder Executivo. Esse tipo de lei teria herdeiros na História do Brasil, muito mais tarde seriam os decretos-lei e as atuais medidas provisórias. 35 Sua justificativa foi a de que as receitas haviam sido inexpressivas no ano anterior e que elas deveriam ser suficientes para substituir todos os impostos indiretos do Estado, que elas deveriam constituir, até mesmo, a base sólida de todo o sistema orçamentário estadual (Mensagem..., 1913, p. 21). Mas os deputados atenderam a uma das reivindicações do Clube de Bagé e reduziram para 5% a taxa do Imposto Sobre Transferência de Propriedades, e o governo reduziu ou suprimiu o imposto sobre alguns importantes produtos de exportação. Assim, a taxa sobre o charque e a banha de porco
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Essas disposições do Governo foram criticadas tanto pelos grandes
pecuaristas da Campanha do Sudoeste do RGS (reduto político dos
oposicionistas ao Governo) quanto pelos arrozeiros do Leste (lavoura
mecanizada de arroz irrigado) e, também, pelos colonos das zonas de
povoamento.36 O descontentamento foi, portanto, geral com o Imposto
Territorial e com o seu tipo de incidência. As críticas eram as seguintes: a
crítica unânime dos pecuaristas era de que o Governo não levava em
conta a diferença na qualidade das terras e as taxava igualmente, eles
reivindicavam tratamento fiscal diferenciado para terras de diferentes
qualidades; as críticas dos arrozeiros e dos colonos eram as de que os
investimentos produtivos37 e mesmo as residências eram incluídas para
efeitos de cálculo do valor venal do imóvel, e eles pleiteavam sua retirada
da base de cálculo.38
Independentemente das críticas, o Governo enfrentou uma
dificuldade maior quando da aplicação do novo imposto: seria preciso
realizar o cadastro geral das terras e, para tal, seriam necessários muitos
anos, e os custos seriam enormes. Por causa disso, não restou ao
Governo outra alternativa senão confiar na boa-fé dos contribuintes.
Porém, pouco a pouco, com o passar dos anos, o Governo deu-se conta
de fraudes e de incorreções nas declarações dos proprietários de terras.
foi reduzida de 6% para 2%; sobre os couros, de 10% para 9%; o arroz e a farinha de mandioca ficaram isentos (Miranda, 1998, p. 142). 36 Os colonos e os arrozeiros recusavam-se a pagar o Imposto e deixavam acumular a dívida (Minella, 1985, p. 33). 37 Os arrozeiros eram extremamente prejudicados com esse modo de cálculo do Imposto, pois trabalhavam sobre terras alugadas. Nelas, eles eram forçados a realizar pesados
investimentos em silos para tratamento e armazenamento dos grãos, em instalação de bombas (com instalação de sistema elétrico) e na construção de canais de irrigação. 38 As críticas dos arrozeiros encontravam eco junto ao Governo do PRR, pois sua produção se articulava tanto à indústria (pela demanda de equipamentos) quanto ao sistema financeiro (demanda de créditos) e, além disso, expandia-se aceleradamente sobre terras, muitas vezes ociosas, consagradas tradicionalmente à pecuária extensiva. Aos olhos do Governo, esse conjunto de relações representava uma ação modernizadora dos arrozeiros exatamente sobre o setor pecuarista, um dos setores produtivos mais conservadores da economia meridional. Por isso, os arrozeiros constituíram-se, rapidamente, em poderoso grupo de pressão sobre o Governo estadual.
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Isso foi descoberto quando se compararam os valores declarados para fins
de recolhimento do Imposto Territorial com os valores praticados nas
transações inter-vivos submetidas ao Imposto de Transferência de
Propriedade. Baseado nessa comparação, o Governo pode retificar os
valores das terras e fixar novas taxas fundiárias. Essa alteração ocorreu
em 1912, e o cálculo levava em conta as diferenças de qualidade das
terras, bem como os municípios onde elas se localizavam. O valor de cada
tipo de terra em cada município do Estado era fixado segundo os valores
médios das transações inter-vivos do ano anterior, naquele município, a
partir de 1913 (Miranda, 1998, p. 144).
Finalmente, em maio de 1913, a Federação das Associações Rurais
do RGS, com sede em Pelotas, fez pressão sobre o Governo, propondo
uma reforma radical sobre o Imposto Territorial que foi aceita. Desse
modo, foram excluídas do cálculo do valor venal da terra as residências e
as benfeitorias, e, finalmente, as terras foram classificadas em três tipos
de qualidade: superior, média e inferior. Genericamente, as primeiras
foram taxadas em 100 mil réis por hectare; as segundas, em 45 mil réis
por hectare; e as últimas, em 15 mil réis por hectare.39 Como já se disse
anteriormente, no entanto, esse modelo geral foi adaptado à realidade de
cada município do RGS (a variedade dos resultados pode ser constatada
no Quadro 1). Nesse mesmo quadro, pode-se também verificar o
atendimento do Governo às reivindicações de rebaixamento das alíquotas
para diferentes tipos de qualidade de terras em vários municípios.
Veja-se, então, como se distribuiu a carga fiscal do Imposto
Territorial entre as diferentes populações de sub-regiões típicas do RGS: a
zona da pecuária tradicional, a zona de colonização alemã, a zona de
colonização italiana40 e a zona ocupada pela cultura do arroz.
39 Lembra-se que, em 1902, essa taxa era de 10 réis por hectare e que, no ano seguinte, subiu para 30 réis por hectare. 40 Para essa zona, existem informações somente a partir de 1914.
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Em primeiro lugar, observe-se (Tabela 1) que, enquanto a superfície
total das terras tributadas aumentou em quase um milhão de hectares
(um aumento de somente 8%) entre 1905 e 1928, o número de
contribuintes dobrou no mesmo período (aumento de 103%). Esse
aumento, no entanto, não foi homogêneo em todas as zonas, pois, nesse
período de 23 anos, ele foi mais acentuado na zona da pecuária
tradicional (109%) que na zona de colonização alemã (51%), ou mesmo
na zona de cultura do arroz (73%)41.
Se bem que o valor venal do hectare sempre tenha sido (e é até
hoje) mais elevado na zona de colonização que na zona de pecuária, esta
foi a mais pesadamente atingida pelo Imposto Territorial. De um lado,
porque os produtores de outras zonas foram parcial ou totalmente isentos
do Imposto, de outro, porque houve uma ação firme do Estado face aos
pecuaristas que haviam, até 1913, praticado importantes evasões fiscais.
Com efeito, o Governo conseguiu implantar sua política de tributação
fundiária na Campanha, exercendo, assim, pressão sobre a
comercialização das terras.42
De fato, a parcela do Imposto Territorial recolhido na zona da
pecuária tradicional era maior que a recolhida pelas outras três zonas
juntas. Examinando os dados referentes às contribuições médias por zona
(Tabela 1), no ano de 1914, observa-se que um contribuinte da zona de
colonização alemã pagava, em média, 7 mil réis; o da zona italiana
pagava 5 mil réis; o da zona arrozeira pagava, em média, 14 mil réis;
enquanto o da pecuária pagava 35 mil réis.
41 Os arrozeiros perderam posição em termos de participação no número total de contribuintes do Estado (de 69% em 1905 para 54% em 1928), bem como no valor da contribuição para a receita total do Imposto Territorial, pois passou de 48% em 1905 para 34% em 1928. 42 Era uma intenção explícita do Governo, que justificava a implantação do Imposto, ele desejava retirar as terras de uma situação de ociosidade, forçando sua entrada no mercado de terras (tanto para arrendamento quanto para venda).
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O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 73
Um exemplo alhures: a criação do Imposto Territorial no Rio de
Janeiro data de 1898 (um estado cafeicultor), mas a lei não foi jamais
aplicada (Enders, 1993, p. 216). No entanto, os administradores tentaram
uma política de diversificação da produção agrícola que se destinava ao
abastecimento da Capital Federal. Entre 1903 e 1914, as exportações de
milho, arroz e batata-inglesa tiveram um sucesso espetacular. Mas se, em
1918, as exportações de café não representavam senão 10% do total de
receitas públicas, elas atingiram 40,1% desse total em 1924. Isso quer
dizer que a conversão dos produtores de café em policultores foi
temporária e que não representou senão um “marca-passo” aguardando o
retorno de uma conjuntura favorável à produção de café (Enders, 1993, p.
214-215).
Box 5
O Governo do RGS foi o único da Federação brasileira a conseguir
implantar o imposto fundiário também sobre os grandes proprietários
fundiários, o único onde esse imposto produziu receitas importantes para
os cofres públicos e, finalmente, o único que diversificou durável e
estruturalmente sua produção e suas exportações regionais. Salienta-se
também, e isso é de suma importância, que as críticas e demandas
procedentes dos contribuintes foram absorvidas e incorporadas ao projeto
do Governo.
Pode-se, então, concluir que o Governo do RGS, contrariamente aos
de outros estados brasileiros, foi o único que levou a cabo um projeto de
reforma orçamentária, com firmeza e de acordo com suas idéias políticas.
Assim, os impostos indiretos representavam, em 1893, quase 70% das
receitas do Estado; em 1929, passaram a representar menos de 40%
desse mesmo total. Entre os impostos indiretos, o das exportações
representava, em 1893, mais da metade das receitas estaduais, mas, em
1929, ele havia caído para menos de 20% desse total. Quanto aos
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O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 74
impostos diretos, sua participação no total das rendas fiscais do Estado
passou de cerca de 30% para cerca de 40%.43
O Imposto Territorial fora criado no bojo de uma reforma
orçamentária. Vejamos, então, o significado das receitas provenientes
dessa base para os cofres públicos estaduais. As receitas do Imposto
Territorial permitiram a prática de isenções fiscais elevadas sobre os
valores das mercadorias exportadas, através de vultosa renúncia fiscal.
Com efeito, a magnitude dessa tomou uma tal proporção que, a partir de
1919, a soma das receitas provenientes do Imposto de Exportação e do
Imposto Territorial lhe foi sistematicamente inferior (Carvalho et al.,
1998, p. 135-136). Esse Imposto de Exportação remanescente prendia-se
a uma dualidade na política exportadora do Governo Estadual: ele
renunciava ao Imposto de Exportação sobre as mercadorias que queria
tornar mais competitivas no mercado nacional e taxava pesadamente as
mercadorias que poderiam fazer falta para o abastecimento do mercado
interno regional. Com essa política, o Governo evitava crises de
abastecimento e aumento do custo de vida no mercado regional. Essa era
uma outra faceta, onde se manifestavam a responsabilidade social do
Governo Estadual e o seu compromisso com a reprodução da população
sob sua tutela. De um ponto de vista doutrinário, para o Governo
Estadual, somente deveria ser objeto de exportação o excedente da
produção sobre o consumo regional44.
A segunda ação do Governo Estadual que examinaremos é a que
ocorreu frente à greve geral de 1917. Essa greve inscreveu-se no
43 Para São Paulo, os números foram os seguintes: em 1893, os impostos indiretos representavam quase 78% do total das receitas estaduais, sendo que as exportações respondiam por 70%; em 1929, haviam passado a representar, respectivamente, 58,3% e 48,2%. As exportações ainda respondiam, portanto, por metade, praticamente, das receitas do Estado. Já os impostos diretos haviam aumentado sua participação de 20% para 34% (Carvalho, 1996, p. 206). 44 Observe-se que essa posição face às exportações era oposta às dos governantes de estados primário-exportadores, onde a atividade exportadora era considerada o motor da economia.
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O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 75
contexto criado pela Primeira Guerra Mundial, quando o RGS, como de
resto todo o Brasil, foi levado a exportar bens de primeira necessidade
(que, até então, não faziam parte da pauta exportadora) para os países
em guerra. A elevação dos preços desses bens foi agravada por uma
política inflacionista praticada pelo Governo Federal (destinada a financiar
o déficit orçamentário do País), bem como pela política de sustentação dos
preços do café. Instalou-se uma situação de penúria de bens-salário, o
que provocou a generalização de movimentos grevistas pelo País,
sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo, logo nas outras principais
capitais e, em seguida, pelas cidades do interior dos estados.
Na metade de julho, 50.000 grevistas em São Paulo foram
violentamente reprimidos. Um operário foi morto, e seu enterro foi
seguido de pilhagens a armazéns e lojas de alimentos. O Governo chamou
tropas militares do interior do Estado e do Rio de Janeiro para proteger
São Paulo, que se transformou em um campo de batalha. Em 18 de julho,
o movimento grevista explodiu com força no Rio de Janeiro (os primeiros
movimentos já haviam ocorrido em março).
Nesse contexto, formou-se, em Porto Alegre, a Liga de Defesa
Popular, representando a Federação Operária do RGS. Em 1º de agosto de
1917, essa liga dirigiu-se ao Presidente do Estado com uma longa lista de
reivindicações, que ela deu a conhecer à população de Porto Alegre
através de um panfleto. Os operários protestavam contra os baixos
salários e a alta dos aluguéis, bem como contra os elevados preços dos
bens de primeira necessidade.45 A essa ação, seguiu-se uma greve geral:
45 Vale a pena consultar a lista de reivindicações: “1. Diminuir os preços dos bens de primeira necessidade; 2. Tomar medidas para evitar o embarque do açúcar; 3. Instalar um abatedouro municipal para fornecer carne à população por preços razoáveis; 4. Criar feiras livres nos bairros operários; 5. Vender obrigatoriamente o pão ao peso e publicar semanalmente o preço do quilo; 6. A prefeitura deve fazer pagar pela água 10% do preço do aluguel e 5% no caso de aluguéis inferiores a 42$; 7. A Companhia de Eletricidade deve praticar o preço de 100 réis para o transporte segundo o contrato passado com a Municipalidade; 8. Aumentar em 25% os salários autuais; 9. Generalizar
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O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 76
desde 31 de julho já estavam paralisados os funcionários da estrada de
ferro, ocupando nove estações ferroviárias importantes do RGS; em 1º de
agosto, entraram em greve tipógrafos, operários da construção civil,
carpinteiros, padeiros e tecelões. Houve manifestações e comícios, os
padeiros distribuíam gratuitamente pão aos “miseráveis”. No mesmo dia,
os operários da Companhia de Eletricidade (inclusive os do transporte
urbano, que só deixaram a paralisação em 5 de agosto) entraram em
greve. Porto Alegre ficou, desse modo, paralisada, pois não havia mais
energia (luz), alimentação, nem transporte público ou privado (Petersen;
Lucas, 1992, p. 204).
Em 2 de agosto, em resposta à Liga, o Governo publicou dois
decretos: no primeiro, aumentava os salários dos funcionários públicos e,
no segundo, regulava as exportações dos bens de primeira necessidade.46
Os editoriais do jornal do Governo (A Federação) aproveitaram a
ocasião para valorizar sua atitude, o fato de ele ter sido atento às justas
reivindicações dos grevistas, o fato de ter-se apressado em atender-lhes
as reivindicações (evitando, desse modo, o agravamento do conflito como
ocorrera no Rio de Janeiro e em São Paulo), enfim, o fato de o Governo
ter agido diretamente sobre os salários e sobre os preços dos bens-salário
e, de modo indireto, jogando com seu prestígio, ter desarmado os
a jornada de trabalho de 8 horas; 10. Estabelecer uma jornada de trabalho de 6 horas para as mulheres e crianças” (Bodea, 1979, p. 32-33). 46 Em 2 de agosto, respondendo à Liga de Defesa Popular, o Governo publicou dois decretos. No primeiro (nº 2.287/1917, artigo primeiro), o Governo aumentou os salários dos “proletários a serviço do Estado”, de maneira escalonada, atribuindo um aumento de 25% aos salários inferiores e aumentos regressivos até os salários mais elevados. No
segundo decreto (nº 2.288/1917), regulamentou as exportações de arroz, de banha de porco, de batata-inglesa, de feijão e das farinhas (segundo o artigo segundo desse decreto: “[...] esta exportação será provisoriamente limitada ou suspensa se os preços de venda no varejo destes produtos ultrapassarem aqueles estabelecidos pela tabela mensal de preços”. Em 4 de agosto, o Prefeito de Porto Alegre, José Montaury, fez baixar, depois estabilizou, os preços do açúcar, do arroz, da banha, da cebola, da linguiça, dos ovos, da erva-mate, do leite, da manteiga, das massas, do milho, dos fósforos, dos levedos, do pão, do sal, do charque, do querosene, do sabão e das velas (Bodea, 1979, p. 37-45). Com a queda dos preços, as greves terminaram em 15 de agosto.
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O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 77
conflitos sociais, o que, segundo o jornal, seria precisamente o papel do
Estado. Com efeito, o Governo havia também agido junto à Câmara de
Comércio e de Indústria, não somente para obter a baixa dos preços como
para fazer elevar os salários do setor privado (Bodea, 1979, p. 40-56).
Sob a pressão da Liga, o Presidente do Estado reuniu o patronato e obteve
um aumento generalizado dos salários do setor privado. Lembra-se que o
Governo já havia dado o exemplo, aumentando os salários dos
empregados públicos.
Do ponto de vista deste trabalho, a atitude do Governo gaúcho face
à greve explica-se por sua busca de legitimação não tradicional , ou seja,
de uma legitimação outra que não aquela que levou a oligarquia
tradicional a massacrar os grevistas no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Esse foi o meio que a elite dirigente meridional encontrou para mostrar-se
competente (e, então, legítima) na gestão da sociedade gaúcha nesse
momento particularmente crítico. De fato, era a necessidade que possuía
o PRR de prestar contas de seus atos ao conjunto da sociedade meridional
(e não somente aos seus pares da oligarquia, como ocorria no resto do
País) que explica sua reação pronta, positiva e inédita (comparativamente
do que ocorria no País, à época) face às reivindicações dos
trabalhadores47.
Essa atitude do Governo Estadual face à greve geral de 1917 é um
indicador de que estava a ser construído, no Sul, um tipo novo de relação
Estado-sociedade. Um tipo não tradicional e não oligárquico. E mais, que
esse novo tipo era impossível de ser ensaiado alhures pelo Brasil, pois,
preuve par faute, ele não foi sequer esboçado em nenhum outro estado
da Federação. 47 Essa conduta face à greve não foi homogênea. Os dirigentes do PRR em Pelotas atacaram os grevistas e, em Santa Maria, o mais importante centro ferroviário estadual, sob a orientação do Supervisor Geral (estrangeiro) da administração da estrada de ferro, os grevistas ferroviários foram violentamente reprimidos. Esse fato serviria de argumento para que os operários viessem a reivindicar a encampação da ferrovia, três anos depois, pelo Governo Estadual (em 1920).
Targa, L. R. P. A formação social e territorial sul-rio-grandense na longa duração e a ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 78
Por fim, a terceira ação do Governo do Estado que se quer trazer
como exemplo é a estatização da Estrada de Ferro do RGS. A rede de
estradas de ferro do RGS — a Viação Férrea do RGS (VFRGS) — havia sido
alugada até 1905 à Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fer du Brésil, de
capital belga, mas cujo controle acionário passara, em 1910, para o grupo
norte-americano Brazil RailwayCo., pertencente a Percival Farqhuar. Os
serviços fornecidos pela companhia eram precários, as tarifas eram
elevadas, e os salários dos operários muito baixos. O aumento do tráfego
não ajudava a melhorar os resultados operacionais, pois as receitas se
esgotavam nos trabalhos de recuperação das linhas e na aquisição do
material rolante. E mais, o Governo Federal já havia intervindo para fazer
baixar as tarifas, quando a eclosão da Primeira Guerra Mundial tornou
ainda mais difícil a importação de peças de substituição e de novos
equipamentos (Dias, 1986, p. 165-184).
A essas dificuldades veio sobrepor-se a precária situação financeira
das empresas do grupo Farqhuar, que estava em pleno declínio no plano
internacional. Em 1917, a greve (a que se fez referência anteriormente)
contribuiu para agravar a situação financeira da empresa. Em 1919, o
resultado operacional foi deficitário. A Associação Comercial de Porto
Alegre e os operários da Estrada de Ferro redobraram as pressões sobre o
Governo, exigindo medidas severas em relação à Companhia. Em junho
de 1920, sob a pressão do Executivo gaúcho, o Governo Federal estatizou
a Companhia e transferiu seu controle para o Governo do RGS em julho
do mesmo ano (Dias, 1986, p. 186-190).
Ora, essa encampação, que ocorreu em 1920, já era um fato
estabelecido doutrinariamente pelo PRR desde 1913, como se depreende
dos conteúdos da Mensagem de Borges de Medeiros à Assembléia de
Representantes naquele ano. A encampação seria realizada sob o conceito
de “socialização dos serviços públicos”. Segundo esse conceito, era
necessário retirar da exploração privada (denominada no texto
Targa, L. R. P. A formação social e territorial sul-rio-grandense na longa duração e a ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 79
presidencial de “exploração privilegiada”) tudo que possuísse relação com
os interesses da coletividade. Em outras palavras, o Presidente afirmava
que existiam serviços cujo fornecimento deveria ser de responsabilidade
exclusiva do poder público.
O Presidente anunciava também, duas condições para que a
intervenção do Estado fosse legítima: (a) que o objeto de exploração
fosse um serviço público e (b) que fosse um serviço cuja exploração
exigisse um regime de monopólio. Como exemplo de serviços
pertencentes à exclusiva competência do Estado, ele citava o
recolhimento dos impostos, os correios, os telégrafos e a fabricação de
moeda. E ainda mais, dizia ele, a administração das estradas de ferro, dos
portos e dos canais. Ele acrescentava que o Estado poderia fornecer o
serviço das estradas de ferro a preço de custo, até mesmo com perdas;
que o ideal seria fornecer o serviço gratuitamente, tal como era gratuita a
utilização das rodovias (malgrado, também nesse caso, existissem custos
de construção e de manutenção).
Finalmente, o Presidente fazia uma afirmação que se chocava com a
ideologia liberal dominante da época, a do laissez-faire: “[...] se através
da exploração da estrada de ferro, o Estado não se torna o senhor
absoluto do mercado, pelo menos não será seu escravo”. Então, ele
concebia um Estado que não estava submetido ao mercado. De fato,
segundo ele, o Estado deveria intervir para nivelar e generalizar as
condições que permitissem o exercício da livre concorrência capitalista,
impedindo a formação de “monopólios funestos”. Finalmente, ele afirmava
que era uma atribuição do Estado presidir o “livre jogo das forças
econômicas” e “de exercer uma ação reguladora segundo as necessidades
ditadas pelo bem-estar social” (Mensagem..., 1913).
Uma vez que, nos três exemplos, nos deparamos tanto com
discursos quanto com ações consequentes e coerentes com o mesmo,
podemos dizer que estamos diante de ações racionais dos administradores
Targa, L. R. P. A formação social e territorial sul-rio-grandense na longa duração e a ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 80
públicos gaúchos, ações, portanto, opostas à de um estado guiado por
elites tradicionais que esposavam a ideologia liberal que pregava, por
exemplo, o não intervencionismo econômico, mas que praticavam o
intervencionismo e o faziam, pesadamente, defendendo, por exemplo, os
interesses dos negócios do café, como em SP. Nesse caso, a esquizofrenia
exposta no discurso liberal48 não intervencionista casado à agressiva
política de valorização do café no mercado internacional só pode ser
explicada pela dominação patrimonialista que vinha legitimar essa
paradoxal intervenção. Nesse tipo de dominação tradicional, a
racionalidade e a coerência não são quesitos que importem, nem que
precisem ser justificados. A elite dirigente que comandava o RGS possuía
um outro corte ideológico e comportamental e foi por isso que, na crise
republicana de 1929-30, pôde liderar uma “revolução” que reorientou o
destino do Brasil.
Por fim, comparativamente, as forças sociais dos epicentros do
Brasil e do RGS não estavam mais atrasadas ou adiantadas quando da
fundação da República. Elas, de fato, estavam em situações diversas ou
em posições diversas. De fato, o sucesso da lavoura de exportação
sustentava a forma tradicional de dominação e impedia mesmo sua
transformação em outra (forma). Seria necessário o fracasso retumbante
da primeira para que fosse possível emergir uma forma alternativa de
dominação nos epicentros nacionais. Outra era a situação que vigia no
Sul, pois, durante a passagem do escravismo para o capitalismo e da
Monarquia para a República, o fracasso da pecuária de exportação já
ocorrera no Sul, há já mais de 10 anos. O que permitiu a formulação dos
dois projetos antagônicos para o futuro da sociedade meridional, e a
pecuária de exportação era a base de grande parte das atividades
econômicas das outras frações da classe dominante regional — a dos
48 Pedro C. D. Fonseca preferiria que se denominasse contradição e não esquizofrenia.
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O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 81
charqueadores e a de parte significativa dos grandes comerciantes
atacadistas. Mas não há dúvida de que a revolução burguesa e a fundação
do Estado burguês tiveram por palco o território do RGS, e isso no
alvorecer mesmo da República no Brasil, e foi aí que se gestou a
modernização das relações entre Estado e sociedade no Brasil, sob o
comando dos positivistas, sim, desses amaldiçoados Cains das histórias
brasileiras escritas por liberais de tão surpreendentes matizes (que vão da
direita à esquerda). Cains, mas fazedores de História.
2.1 Qual forma de totalidade econômica que correspondeu à FS&T?
A totalidade econômica que correspondeu a esse período foi a de
uma economia que crescia movida por um motuo (até certo ponto)
próprio: o desenvolvimento do mercado interno impulsionava o
crescimento regional, com as trocas entre as várias sub-regiões
(geográficas e econômicas) do RGS. E essa foi a via da industrialização do
Estado, e não a da substituição de importações, como alhures (Herrlein
Jr., 2000). Motuo diverso como o foi também o da formação do seu
mercado de trabalho industrial, onde houve pleno emprego e onde nunca
existiu um exército industrial de reserva (como em São Paulo, que
transbordava do excedente que não podia faltar para colher o café). Era
uma economia quase “fechada” e com vocação à autossuficiência (fruto,
decisivamente, da política econômica estadual, que isso preconizava e
estimulava), quase a de um Estado-nação fechado49. Economia de um
Estado-nação não sem razão, pois esse se comportava, então, com alguns
dos atributos de Estado soberano, mesmo dentro da Federação brasileira.
49 E isso serviria de base para a formulação do paradigma imaginariamente mais poderoso para analisar a economia gaúcha: o de uma economia regional fechada (Targa, 1989).
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Pois, dada a insegurança que causava ao Governo do RGS o exílio hostil
de sua oposição no Uruguai e na Argentina, era forçoso que mantivesse
um serviço secreto atuante nos dois países e que, muitas vezes,
submetesse aos interesses de sua própria reprodução no poder os
interesses do Brasil no Prata (logo, da diplomacia brasileira no grande
estuário)50.
Os positivistas, porém, fizeram mais pelo futuro do RGS. Fruto de
suas posições ideológicas e de posturas práticas, eles quiseram e
precisaram alfabetizar o Estado (para criar o seu colégio eleitoral e tornar-
se, finalmente, o terceiro grande estado eleitor do Brasil nos anos 10 do
século 20) e conseguiram o mais elevado nível de crianças alfabetizadas
do Brasil. Mas também criaram escolas técnicas rurais, industriais e
comerciais, para formar mão de obra qualificada, e apoiaram o
desenvolvimento da Escola de Engenharia de Porto Alegre.51 E, com isso,
assinala-se um dos maiores legados da administração positivista para o
futuro do RGS: a distribuição da propriedade rural, anteriormente falada,
e o fornecimento do ensino básico e do técnico (distribuições dos ativos
“terra” e “capital humano”) durante o período inicial da industrialização
geraram o que se poderia chamar de distribuição originária de ativos
sociais básicos (Targa, 1992). Eles forneceriam, doravante, durante o
período compulsoriamente concentracionista da industrialização — e
mesmo durante as políticas altamente concentracionistas de renda do
período militar (1964-85) —, um freio à concentração de renda no RGS.
Foi depois dos anos 90 que esses efeitos anticoncentração deixaram de se
fazer sentir52. E isso aponta o quanto, na História do RGS, seja a que
50 Ver todos os fatos mais significativos no capítulo excelente de Ana L. S. Reckziegel (2007), embora a autora os interprete desde um ponto de vista radicalmente oposto ao deste artigo. 51 Os tradicionais cursos de bacharéis de Direito e Medicina tinham menor importância para eles. 52 Ainda nos anos 1987-88, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) complexo calculado por Albuquerque (1991), que, entre 12, incluía sete indicadores sociais,
Targa, L. R. P. A formação social e territorial sul-rio-grandense na longa duração e a ......
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agentes sociais se queira responsabilizar (seu “povo”, suas classes
médias, seus partidos políticos, seus gestores públicos, suas lideranças
políticas ou empresariais), é sempre o passado que acusa o presente.
3 QUE RAZÕES MAIORES, ENDÓGENAS E EXÓGENAS AO ESTADO
(NACIONAIS E INTERNACIONAIS), FORAM RESPONSÁVEIS PELO
COLAPSO DA FS&T? COMO FICAM OS TRAÇOS DOS NOSSOS ÚLTIMOS 20 ANOS, QUANDO COMPARADOS AOS DO APOGEU
DESSA FS&T?
Por fim, especula-se, sumariamente, sobre as forças maiores que
fizeram soçobrar essa FS&T e a respectiva totalidade econômica. A
primeira emergiu ainda na própria década de 20, quando o RGS foi
deficitário em sua balança comercial com o resto do País, e seus líderes
compreenderam que o estrangulamento do mercado interno nacional
impedia o crescimento da economia regional. Ou seja, a saída de
diversificar as exportações gaúchas encontrara seu limite nos estreitos
mercados de outras regiões brasileiras. Era necessário mudar a inflexão
da economia nacional de agroexportadora para a de mercado interno,
para que o RGS continuasse crescendo. Mas foi só o início, o primeiro dos
impasses. Sua economia com ênfase no trabalho e em organizações não
fordistas (a indústria gaúcha fora construída a partir de modelos
organizativos e materiais alemães) de tamanhos pequenos e médios, iria
enfrentar concentração e centralização dos capitais que, depois de 1970,
se imporiam em nível nacional, com centro em SP. Depois disso, viria a
internacionalização de seu agronegócio nos anos 90.
Entre o RGS dos positivistas e este em que temos vivido nos últimos
20 anos, os contrastes podem parecer realmente choquantes. Senão,
vejamos: então, uma ética política republicana ilibada, contas públicas
colocava o RGS no topo da listagem nacional (Targa, 1992). Nesse artigo, é exposta a argumentação feita acima, sobre a distribuição originária dos ativos sociais (por similaridade à ideia de acumulação originária), que partiu do exame de trabalhos de Adelman e Furtado sobre a Teoria da Pobreza (Adelman, 1986).
Targa, L. R. P. A formação social e territorial sul-rio-grandense na longa duração e a ......
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transparentes, os mais elevados índices de alfabetização infantil do Brasil,
a maior esperança de vida do País (presumivelmente, então, o IDH mais
elevado do País), estatizações para que os regimes de monopólio não
extorquissem a população; mais recentemente, a dilapidação progressiva
daquele patrimônio social, com um IDH em recuo, em comparação ao do
resto das regiões brasileiras, com perda de competitividade do seu ensino
médio, aumento da insegurança pública, privatizações com objetivos
paradoxais (porque privatizar companhias que a gestão pública acabara
de tornar econômica e financeiramente viáveis?). Mas o RGS também foi
abalado porque perdeu importância estratégica, uma vez que houve a
desmilitarização da questão platina: Uruguai e Argentina deixaram de se
constituír em inimigos potenciais do Brasil. E, ao contrário da situação
anterior, passou-se a entender o espaço como um continuum comercial e
de parceria (virtuais, pelo menos), que desmobilizou, também, um arsenal
ideológico importante da cultura fronteiriça militar no Sul.
Também foi necessário que ocorressem mudanças na natureza
efetiva do federalismo nacional que acabassem por enfraquecer
definitivamente o poder dos governadores (definitivamente, no segundo
Governo Lula), para que se visse a FS&T desaparecer pulverizada, pari
passu com a corrupção institucional de grande parte de seus mais
importantes partidos políticos, que se apresentaram financiados por
poderosos órgãos do/ou ligados ao setor público.53 Mas também, enfim,
53 “A crescente subsunção da economia sulina ao grande capital global e a dissolução do tecido socioeconômico tradicional rio-grandense, no contexto de grande fragilidade do
movimento social, erodiram objetiva e subjetivamente o que poderíamos chamar de ética republicano-castilhista, equiparando as práticas políticas regionais às do resto do Brasil. Agora, faz-se política para enriquecer, legal ou, mais e mais, ilegalmente.” (Maestri, 2008). Segundo o autor, portanto, existe, nesse alvorecer do século 21, um retorno aberto ao patrimonialismo tão caro às políticas imperial e colonial. Novos contextos socioeconômicos, desse modo, recuperam práticas políticas arcaicas. E muitos outros historiadores chegaram a pensar que a História era um processo onde o progresso se afirmava inexoravelmente. Por fim, assinale-se que o grupo social que apoiou predominantemente os comportamentos políticos de tipo “positivista” foram as classes médias, aliás um dos mais importantes grupos sociais produzidos pelo tipo de
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pela própria fragilidade financeira do Estado e da sua consequente falta de
autonomia para definir políticas próprias.
Há uma séria crise de lideranças políticas no Sul, ou um enorme
vazio delas, e isso forma um contraste brutal com o início do período
republicano (e mesmo com o período anterior à ditadura militar). E o RGS,
pela primeira vez desde o final do Império, desapareceu do cenário
político nacional enquanto força política, pois não conta mais. Emudeceu.
Existem políticos gaúchos (e um político, como Dilma W. Rousseff, que se
fez na política do Sul) em posição nacional proeminente, mas não
representam uma força da região, são peças isoladas do jogo. A última
vez que um grupo político gaúcho jogou um papel forte em uma decisão
nacional foi quando se decidiu a que grupo político de direito caberia a
liderança da primeira campanha vitoriosa de Lula à Presidência, e coube
ao segmento paulista a liderança. E a frente popular do Sul, que, então,
entrara nessa justa, era, talvez, o último remanescente (como grande
grupo) daqueles políticos herdeiros de uma ética republicana. Pensa-se
que o primeiro mandato de Luiz Inácio da Silva deu no que deu —
escândalos com sindicalistas que haviam sido guindados à condição de
administradores maiores da República, mensalão envolvendo políticos
paulistas, mineiros e nordestinos, etc. — por causa dessa vitória do
segmento paulista do PT.
Mas, uma FS&T não desaparece assim no más. Ela luta
desesperadamente para sobreviver, e essa luta transfigura-se na esfera
do imaginário de todas as classes sociais, na esfera das emoções
coletivas, nas expressões artísticas — peculiaridades na dominação do
rock no Sul, no tipo de cinema — e na reativação, algo desesperada, desenvolvimento econômico e social proposto pelo PRR para o RGS. Como outras classes, elas estão profundamente desinteressadas pelo processo político hoje em dia. Esse comportamento marca uma abismal diferença com o seu comportamento durante a campanha das Diretas Já, como na campanha de Darcy Ribeiro para Governador do Rio de Janeiro ou durante as três primeiras campanhas vitoriosas do PT para a Prefeitura de Porto Alegre.
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O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 86
talvez reacionária ou conservadora, de seus mitos fundadores e da prática
de suas tradições reinventadas. O imaginário coletivo nunca foi tão
gaúcho. São os estertores da formação. Que durem para sempre.
Enfim, o presente seria incompreensível sem o passado: todos os
fenômenos de incompreensão mútua entre os gaúchos e os demais
brasileiros seriam ininteligíveis sem a existência dessa FS&T que
explicasse as diferenças e divergências, sem esse passado, elas não
passariam de preconceito, de implicância, de idiossincrasia ou de doença
social — seja dos “outros”, seja dos sul-rio-grandenses. Foi a existência
da FS&T no passado que continua fazendo com que se busquem, antes de
tudo, as diferenças e não as similitudes entre os gaúchos e os demais
brasileiros, seja no chimarrão e na bombacha, seja no frio, na rispidez, no
futebol, ou alhures.
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