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XIV Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Maringá-PR, 18 a 20/11/2015 1
A FIGURA DE HAROLDO GODWINSON COMO EXEMPLO NEGATIVO DE REALEZA NA CRÔNICA DE GUILHERME
DE POITIERS
Lucio Carlos Ferrarese (LEAM – PPH – UEM) Jaime Estevão dos Reis (DHI – LEAM – PPH - UEM)
Nesse artigo temos por objetivo analisar a figura de Haroldo Godwinson, rei anglo-
saxão da Inglaterra, na Crônica de Guilherme de Poitiers. Redigida entre o ano de 1073 e
1074 (THORPE, 1973, p. 32) a Crônica relata a conquista da Inglaterra pelas mãos do Duque
normando Guilherme, estrangeiro àquela terra, no ano de 1066. Guilherme da Normandia,
alcunhado o Conquistador graças a esse feito, foi o último poder estrangeiro a efetivamente
chegar às ilhas britânicas até os dias de hoje, feito tal que não ocorreu nem mesmo durante
quaisquer outras guerras que o Império Britânico e a Inglaterra participaram. A vitória de
Guilherme, o Conquistador, trouxe uma mudança tal à sociedade inglesa do início do século
XI ao centralizar a posse das terras (BRIGGS, 1998, p. 64), o que tornou o papel que o último
rei anglo-saxão desempenhou durante sua regência mais destoante para a sociedade que os
novos reis normandos desejavam estabelecer. Diante dessa figura, Guilherme de Poitiers
decidiu escrever uma crônica para registrar os feitos dos antepassados do Duque da
Normandia, bem como os feitos do próprio Guilherme, mas acaba também por se referir à
figura de Haroldo, já que este se torna o maior rival e parte importante para o entendimento da
vitória normanda.
Guilherme de Poitiers, normando nascido em Préaux, viveu parte de sua vida como
guerreiro a serviço do Duque Guilherme da Normandia. Entretanto, começou a estudar em
Poitiers, onde professou seus votos e tornou-se capelão também em favor do Duque
(THORPE, 1973, p. 32), acompanhando-o na maioria de suas batalhas. Entretanto, ele não se
encontrava presente à Batalha de Hastings, que assegurou a conquista do trono inglês, apenas
indo para a Inglaterra após a conquista. Na segunda metade do século XI, Guilherme de
Poitiers escreveu a Gesta Guillelmi Ducis Normannorum et Regis Anglorum, ou História de
Guilherme, Duque dos Normandos e Rei dos Ingleses, ainda na contemporaneidade da
batalha, com acesso ao relato de muitos dos participantes da Batalha de Hastings e do próprio
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Guilherme, o Conquistador (THORPE, 1973, p. 32). Como um vassalo do Duque normando,
é possível estabelecer que a construção de sua narrativa seja favorável a seu suserano e
desfavorável a seu rival, este o qual ele procura demonstrar como um homem que, embora
poderoso, era ultima ratio indigno de ser rei. Em especial, trataremos dos capítulos 1.41 a
1.46 e 2.1 a 2.25 dessa crônica. Para a melhor compreensão dessa fonte, é necessário
resgatarmos o contexto histórico da batalha, e apresentar os principais personagens que
compõem tal história.
Entre os anos de 1042 e 1066, a Inglaterra tinha como rei Eduardo, alcunhado o
Confessor por sua grande religiosidade. Eduardo era filho do rei deposto Ethelred, tendo
subido ao poder após vários conflitos de pretendentes ao trono, e sua criação havia ocorrido
com seus parentes na Normandia, juntamente com seu sobrinho em segundo grau, Guilherme
da Normandia. Embora fosse considerado um homem santo, teve que arcar com as
consequências dos atos de seu progenitor, que fora considerado injusto, inepto e tirânico pelos
nobres ingleses, e suas estreitas relações com a Normandia eram tais que muitos ingleses o
consideravam quase um estrangeiro em seu reino. Durante seu reinado, houve um aumento da
participação normanda na administração da ilha britânica, o que causou certas dificuldades
entre ele e seus súditos, em especial Haroldo Godwinson, Conde de Wessex.
Haroldo Godwinson era o filho mais influente e poderoso do Conde Godwin, o nobre
mais poderoso da Inglaterra nessa época, possuindo grandes terras, vários vassalos, bem como
era considerado como um inglês autêntico em termos de ascendência. Sua irmã Edith estava
casada com o próprio Eduardo o Confessor, estreitando suas relações com o trono inglês. Em
1051, ele chegou mesmo a contestar o poder de Eduardo juntamente com seu pai Godwin e
com seus irmãos, o que levou ao exílio dele e de sua família do reino inglês, com a
subsequente perda do seu condado (GRAVETT, 1994, p. 7). No ano de 1052, através do uso
de armas, Haroldo e sua família retornaram à Inglaterra e exigiram a restituição do condado
perdido, no qual sucedem, abalando a autoridade do rei Eduardo. Esse conflito de poder,
embora não tenha evoluído para um confronto direto após esse episódio, continuaria até a
morte de Eduardo, e levaria à contestação do trono inglês.
Em um curto adendo, devemos falar do irmão de Haroldo, Tostig. Tostig Godwinson,
que controlava as terras da Northumbria, fora considerado tirânico pela população, que se
revoltou contra ele no ano de 1065. Haroldo, ouvindo as reclamações dos nobres da
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Northumbria, concordou pelo exílio do seu irmão, que buscou refúgio com o rei Haroldo III
da Noruega, também chamado Haroldo Hardrada. Ali, planejaria sua vingança contra seu
irmão, que não o apoiara, e sua atuação seria importante para a futura justificação da vitória
de Guilherme.
Enquanto estes eventos ocorriam na Inglaterra, além do Canal da Mancha, no Ducado
da Normandia estava Guilherme, cognomado o Bastardo por ser o fruto do amor do duque
Ricardo II da Normandia e a filha de um artesão de couro. Tendo convivido muito próximo a
Eduardo o Confessor, este o considerou como herdeiro do trono inglês quando falecesse, já
que não possuía herdeiros. Reconhecido como único herdeiro e criado desde cedo para
suceder a seu pai, Guilherme desde cedo participou da política e da guerra no ducado da
Normandia e em obediência a seu suserano, o rei francês.
Guilherme e Haroldo tornaram-se posteriormente rivais pela coroa do reino inglês,
porém essa relação nem sempre foi completamente inamistosa. Entre os anos de 1063 e 1064,
Haroldo Godwinson pediu permissão ao rei Eduardo para velejar pelo Canal da Mancha, e
possivelmente atracar na Normandia. Existem discordâncias em relação aos motivos de
Haroldo para essa viagem: a visão normanda afirma que o conde Haroldo levava uma
mensagem de Eduardo para Guilherme, reafirmando o seu direito ao trono inglês, enquanto
que a visão inglesa era de que Haroldo tinha pedido permissão a seu rei para visitar seu irmão
e seu sobrinho, que se encontravam como reféns na corte normanda desde a desobediência do
pai de Haroldo em 1051 (GRAVETT, 1994, p. 9).
Em qualquer das narrativas, a viagem não terminou bem para o conde. Ele naufragou
na costa de Ponthieu, na Normandia, e foi aprisionado pelo conde local de nome Guy, um
vassalo de Guilherme, para ser usado como um refém de resgate. O Duque normando, no
entanto, ordena que Haroldo seja libertado, e este conviveu com Guilherme como hóspede,
embora conhecesse muito bem que a qualquer momento poderia ser considerado como um
prisioneiro.
Enquanto permaneceu com Guilherme, Haroldo participou da campanha do Duque
contra os Bretões localizados ao leste da Normandia, e recebeu armas típicas da cavalaria
conforme a tradição normanda. Não apenas isso, ao fim da campanha, Haroldo participou de
uma cerimônia de juramento, onde prometia ajudar o Duque normando a garantir o seu trono
inglês, e se submetia a ele como um vassalo nessa ocasião, juramento este feito sobre
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relíquias sagradas possuídas por Guilherme. Com a promessa feita, o Conde inglês recebeu
permissão e provisões para retornar à Inglaterra, junto com seu jovem sobrinho Hacune,
enquanto o irmão de Haroldo, Ulnoth, permaneceria e seria libertado quando Guilherme fosse
coroado rei.
Em Janeiro de 1066, Eduardo o Confessor faleceu sem descendentes. Sua saúde já
estava frágil desde o final do ano de 1065, o que fazia com que seu suplício fosse de
conhecimento tanto na Inglaterra quanto na Normandia. Enquanto passava seus últimos
momentos em sua cama, assistenciado por sua esposa e por seus súditos mais próximos,
Eduardo proferiu seus últimos desejos. Neste ponto novamente existem divergências. Em uma
visão pró-normanda, Eduardo teria “confiado” a Haroldo seu reino e de sua rainha, para que
fossem mantidos seguros enquanto Guilherme não fosse oficialmente coroado. A visão pró-
inglesa argumenta que o último desejo do rei Eduardo era de que Haroldo tinha sido confiado
o reino para se tornar, sim, o seu governante. Ademais, logo após o falecimento de Eduardo, o
conselho dos nobres ingleses, conhecido como witenagemot ou witan, se reuniu e resolveu
eleger Haroldo como líder real, em oposição a escolher um normando, um estrangeiro, como
seu senhor. Haroldo foi então coroado, completamente ciente de que deveria enfrentar muitos
opositores desejosos do seu trono.
Guilherme logo tomou conhecimento desses acontecimentos, e rapidamente contestou
a coroação de Haroldo. Em vários momentos enviou emissários para transmitir seu
descontentamento, e demonstrar suas razões. Primeiramente, ele relembrava as declarações
anteriormente feitas por Eduardo publicamente, de que o havia escolhido como seu herdeiro.
Após, ele afirmava a validade do juramento prestado por Haroldo em sua casa, feito sobre as
relíquias sagradas, de que ele seria seu vassalo. Por fim, o fato de ser o sobrinho em segundo
grau de Eduardo, e o mais velho e mais próximo parente consanguíneo masculino, confirmava
sua linhagem como sucessor. Haroldo contra-argumentaria que, na tradição inglesa, os
desejos finais do rei eram o seu último juízo de valor, e, portanto, com validade superior às
outras declarações anteriores. Ademais, embora Haroldo não o mencionasse, ele também
apoiava a autoridade do witan, que o havia apontado como rei. Por fim, referente ao
juramento prestado a Guilherme, ele afirmava que o havia feito sob coação, mesmo que
implícita, e que era um juramento inválido.
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O impasse não foi solucionado através da diplomacia. Portanto, Guilherme logo
começou a pleitear a obtenção da coroa através do uso de armas. Ele enviou emissários para
explicar sua posição para o Papa Alexandre II, demonstrando os seus argumentos de que
estaria cumprindo uma guerra justa.
A questão religiosa merece um adendo neste ponto. A Igreja Católica na Inglaterra
possuía um Arcebispo chamado Stigand, que havia sido excomungado por vários papas por
ter adquirido sua posição através das mãos do rei, e não das leis canônicas. Com a derrota de
Haroldo, a Igreja Católica via a oportunidade de retirar a influência de Stigand da Inglaterra e
reaproximá-la de sua influência. Os motivos de Guilherme, que tinha uma maior ligação com
o papado do que os reis ingleses, juntamente com esse motivo, foram razões suficientes para
que o Papa concordasse com o pedido do Duque normando, e até mesmo enviasse a ele um
estandarte abençoado e um anel com uma relíquia sagrada, um fio de cabelo de São Pedro,
justificando sua batalha como justa.
Enquanto isso ocorria, Tostig Godwinson, o irmão exilado de Haroldo, conquistou o
apoio de Haroldo III da Noruega para que ambos invadissem a Inglaterra. Haroldo
Godwinson estava ciente, neste momento, de que Guilherme logo atacaria, e esperava ser
atacado pelo sul primeiro, porém seu irmão foi mais rápido. Haroldo III da Noruega e Tostig
invadiram pela região da Northumbria, e o rei inglês Haroldo Godwinson é forçado a
mobilizar as tropas que se encontravam no sul para o norte, contra esses novos inimigos.
Ambas as forças se encontraram na Batalha da Ponte de Stamford. Tostig e Haroldo
Godwinson ainda tentam entrar em um acordo, porém nos termos do acordo Haroldo III da
Noruega não seria poupado, o que acarretou a impossibilidade de paz pela diplomacia. A
batalha ocorre, e Haroldo surge como vencedor, matando Haroldo III, mas ao custo da vida de
Tostig e de muitos ingleses.
A vitória do rei inglês não durou muito tempo. Pouco depois, o Duque normando
conseguiu cruzar o Canal da Mancha com suas forças, e através da marcha forçada Haroldo
alcançou o exército invasor próximo à região de Hastings. Uma última tentativa diplomática
foi feita, porém infrutífera, e a Batalha de Hastings iniciou-se em 14 de Outubro de 1066. As
forças de Haroldo posicionaram-se em terreno elevado, colina acima, em uma muralha de
escudos, sendo que seu exército era composto majoritariamente de combatentes a pé,
enquanto que as forças de Guilherme tinham divisões de infantaria, arquearia e cavalaria. A
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batalha foi difícil para ambos os lados, que apresentava apenas uma pequena vantagem
numérica para Haroldo, porém o uso da arquearia e de táticas avançadas de cavalaria contra
os ingleses que não detinham essas mesmas capacidades conquistaram a vitória de Guilherme
(BRIGGS, 1998, pág. 59). O Duque normando derrotou o único homem com força o bastante
para contestar seu trono, e com suas forças ele continuou a combater quaisquer nobres
ingleses que se opuseram a seu reinado. Guilherme foi coroado em Londres no Natal de 1066
e a atuação normanda mudaria os destinos da Inglaterra.
Esse contexto histórico também se encontra na crônica de Guilherme de Poitiers, a
História de Guilherme, Duque dos Normandos e Rei dos Ingleses. Entretanto, a maneira como
o autor constrói a figura de Haroldo Godwinson, procurando contestar sua figura, demonstra
seu interesse em retratá-lo negativamente, tendo sua construção colocada em oposição a
Guilherme. Eduardo, o Confessor, é o benevolente ancião que representa a tradição, a ordem
estabelecida universalmente por Deus, a qual será retornada por Guilherme após a intervenção
de Haroldo. Já este é o vilão, embora não seja um inimigo que possa ser considerado
explicitamente maligno, e possua certa dignidade que o autor lhe confere. A construção da
narrativa favorece uma história que apresenta uma temática referente à justiça, à ordem do
mundo, à lealdade e verdade, e a feitos em armas que ora exaltam o valor guerreiro de seus
participantes, ora amargamente condenam os danos causados à vida de tantos.
A relação de Eduardo e Haroldo é uma relação de vassalidade direta, porém,
dificultosa, visto o poder que Haroldo possui, conforme a Crônica de Poitiers:
“Para confirmar sua promessa [do trono de Eduardo para Guilherme], ele enviou Haroldo a Guilherme, Haroldo, o mais rico de seus subalternos, o mais poderoso e o mais honrado. [...] Ao mandar Haroldo, o rei Eduardo se portou sabiamente, porque, com sua riqueza e autoridade, Haroldo era o homem para conter quaisquer revoltas dos Ingleses, se, com aquela perfídia e agitação que eles tão comumente demonstram, eles se levantassem em revolta” (POITIERS, 1973, p. 33).
Guilherme, por sucessão, deve receber o trono da Inglaterra, já que Eduardo não
possui descendentes. Eduardo, por sua vida santa, é considerado sábio, e sua decisão,
portanto, acertada. Como já apontado pelo contexto histórico acima, no entanto, apesar de seu
envio Haroldo não irá promover essa coroação, mas antes a tomará para si: dessa forma ele
quebrará a ordem dada por seu senhor, de que ele deveria obedecer Guilherme quando sua
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hora chegasse. Surge a primeira crítica passível de Haroldo: a desobediência a seu suserano
quando do momento de sua coroação. Numa sociedade onde tal relacionamento é importante
para a coesão política e social do reino, a desobediência é uma falta grave, tendo reflexos na
viabilidade de confiança dos futuros vassalos para com o rei Haroldo, e deste para com os
suseranos de Haroldo, quais sejam, o Papa ou mais diretamente a Deus.
Sendo preso por Guy na Normandia, Haroldo está sujeito à magnanimidade de
Guilherme, ao estar em necessidade de ser resgatado (POITIERS apud THORPE, 1973, p.
34). Apesar de toda sua riqueza e poder na Inglaterra, na Normandia ele é um mero hóspede
do qual se espera gratidão pelas benesses recebidas, o que reforça a ideia de quão mais
profunda será a traição e a desobediência futuras do conde inglês, da quebra do juramento que
ele faz de que ajudará Guilherme a se tornar o rei da Inglaterra (POITIERS, 1973, p. 34). A
campanha da qual Guilherme e Haroldo participam contra os Bretões é outros desses
momentos de que Haroldo recebera benesses: “[...] agora o duque o fizera seu irmão-em-
armas, na esperança de que, ao dá-lo esta honra, garantisse que ele permanecesse fiel e
obediente” (POITIERS, 1973, p. 34). O tempo que Haroldo passa com Guilherme, o
juramento que faz sobre as relíquias sagradas, é considerado essencial para explicar o quão
triste seria a traição:
“Estas, então, são as reprimendas feitas contra ti, Haroldo. Depois de todas essas gentilezas, como pôde se atrever a privar Duque Guilherme de sua herança e fazer guerra contra ele, você que, por um juramento tão sacrossanto, atou a si e a todo o seu povo a ele, colocando suas mãos nas dele e jurando lealdade? Cabia a ti manter os Ingleses em obediência. Ao contrário muito perniciosamente tu os encorajaste em sua revolta. Os ventos seguintes que inflaram suas velas negras como carvão conforme viajavas de volta para casa trouxeram nada mais do que tristeza. Homem horrível! As calmas águas do mar que lhe permitiram que retornasse a tua costa nativa devem ser eternamente amaldiçoadas. O calmo porto onde aportaste deve carregar seu fardo de vergonha, pois contigo veio o mais desastroso naufrágio que tua terra natal já sofreu...” (POITIERS, 1973, p. 37).
A figura do traidor é essencial para a temática heroica medieval, influenciada pelo
traidor original da cosmogonia cristã: Lúcifer. Conforme Deus estabelece o sentido, e a ordem
do Universo, aquele que se volta contra a ordem estabelecida é seu anjo mais glorioso e que
mais bênçãos havia recebido, cuja arrogância, traição, e desejo de almejar por mais do que lhe
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cabe o fazem almejar uma posição divina que não lhe pertence. Dessa forma, a figura do
traidor que Haroldo incorpora, embora com ressalvas, é ainda mais chocante para o leitor,
ainda mais vilã. Quando Haroldo sobe ao poder, ele o faz “sem uma eleição pública”, e com o
apoio de “assassinos” e do excomungado Stigand (POITIERS, 1973, p. 38). Diante de tal
perspectiva, o herói Guilherme busca o oposto, o mais justificado dos homens, que se
apresenta na figura do Papa Alexandre II, e dos seus vassalos fiéis, os quais ele convence um
a um com sua sagacidade e seu carisma (POITIERS, 1973, p. 39-40). Para o discurso de
Guilherme de Poitiers, Haroldo está em completo erro. Haroldo possui apenas a força bruta
para garantir seu trono, enquanto que a justiça se encontraria do lado de Guilherme, conforme
este fala sobre seu adversário:
“ ‘Todos nós conhecemos a habilidade militar de Haroldo,’ disse [Guilherme]. ‘Se nos enche de medo, também eleva nossas expectativas. Ele está usando sua riqueza sem propósito. Ele pode gastar seu dinheiro, mas é impotente para garantir seu trono. Ele não tem a audácia e a força de vontade para oferecer mesmo a menor porção do que aqueles de minha facção estão preparados a prometer.. [...] Guerras são vencidas pela coragem, e não pela mera força dos números. Ademais, Haroldo estará lutando para reter o que ele roubou’ ” (POITIERS, 1973, p. 40-41).
Enquanto Guilherme move suas tropas através do Canal da Mancha, Haroldo enfrenta
seu irmão Tostig ao norte, e com a morte deste mais um motivo se adiciona à lista da sua
injustiça: não apenas Haroldo estava injustamente no trono, quer por eleição de seus
subordinados, quer por não possuir o sangue real; não apenas tinha quebrado sua palavra dada
em juramento sagrado, tornando-o um mentiroso, um perjuro; mas também, agora, era um
fratricida, e que necessita ser castigado o mais depressa. Não apenas Tostig teria se oposto a
Haroldo, como também sua irmã Judite, esposa de Eduardo e anterior rainha, nos seguintes
termos: “[...] pois ela o considerava como um assassino truculento, um homem manchado por
sua vida laxa, incansável em sua busca pelos bens de outras pessoas, o inimigo jurado da
igualdade e dos justos tratos” (POITIERS, 1973, p. 43).
Quando as forças de ambos finalmente se encontram no campo de batalha, o exército
de Haroldo é descrito como números exageradamente maiores (POITIERS, 1973, p. 44; 48),
demonstrativo tanto de sua força como rei inglês quanto de inimigo perigoso a ser vencido
por Guilherme. Guilherme é demonstrado como corajoso e loquaz, e em uma última tentativa
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de diplomacia, ele propõe combate corpo-a-corpo em duelo para com Haroldo, que diante da
proposta age de maneira tanto temerosa quanto temerária:
“Quando monge trouxe a resposta de Guilherme a Haroldo, [...], ele empalideceu de terror [...]. O enviado lhe perguntou várias vezes qual seria sua resposta. Primeiramente ele disse: ‘Nossa marcha continua’. Então ele mudou isso para: ‘Nós marchamos para a vitória’.” (POITIERS, 1973, p. 46-47).
Esta falta de sabedoria demonstraria mais um dos defeitos de Haroldo, tornando-o um
rei inepto ao jogar a vida de seus soldados fora em busca de uma batalha cujo ganho seria
apenas pessoal a ele. Mesquinhez que acaba por terminar com sua morte e a de seus
seguidores. Entretanto, a relação com o vilão derrotado, morto em batalha, não é uma relação
de ódio ou escárnio sobre sua morte:
Nós Normandos não lhe oferecemos qualquer insulto, Haroldo: ao contrário nos apiedamos de ti e choramos ao ver teu destino, nós e o piedoso Conquistador, que se entristeceu com tua queda. Tu conquistaste tal medida de sucesso conforme merecestes, e após, novamente como tu merecestes, tu encontraste tua morte, banhado no sangue de teu próprio coração. Agora tu jazes ali, em teu tumulo perto do mar: por gerações de ingleses e normandos ainda não nascidos tu serás amaldiçoado. Assim devem cair aqueles que procuram seu próprio bem supremo no grande poder terreno, que se rejubilam apenas quando o usurpam, aqueles que, assim que o agarram, lutam para mantê-lo pela força das armas. Mais do que isso, tu estava manchado com o sangue de teu irmão, com teu temor de que na grandeza dele ele faria a tua própria [grandeza] menor. Então em louca fúria tu correstes em direção a esta segunda luta, de forma que, enquanto tal levava à queda de tua terra natal, tu pudesses manter teu poder régio. O cataclismo que causastes o arrastou para as profundezas junto com ele. Tu não brilhas mais sob a coroa que tão injustamente usurpou; não te sentas mais no trono que tão orgulhosamente ascendeu. Teus últimos momentos provaram se estavas certo ou errado para te exaltar com este presente dado pelo Rei Eduardo quando ele morreu (POITIERS, 1973, p. 54-55).
Haroldo, então, morre graças às injustiças cometidas por sua cupidez, e a ordem é
novamente restaurada com a ascensão de Guilherme ao trono.
Toda a narrativa de Guilherme de Poitiers no remete a uma história onde as relações
entre senhores e vassalos, entre cavaleiros líderes e subordinados são norteadores da
existência humana. Haroldo Godwinson morre pois é um cavaleiro perjuro, um guerreiro
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vassalo que não cumpriu sua palavra, sendo castigado por Deus pelas mãos de Guilherme,
aquele que é abençoado através de suas ações. Para que Guilherme, o Conquistador, se torne o
herói de uma história exemplar de como um cavaleiro deve e não deve agir, deve-se colocar a
figura sombria no espelho, o lado contrário que são as ações de Haroldo Godwinson.
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