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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A FEMINIZAÇÃO DAS TAREFAS DOMÉSTICAS: UMA BREVE DISCUSSÃO A PARTIR
DA CAMPANHA #SHARETHELOAD
Sílvia Góis Dantas1
Resumo: A partir de uma discussão crítica sobre a feminização do trabalho doméstico, o artigo
investiga as estratégias discursivas do vídeo publicitário #ShareTheLoad da marca de sabão em pó
Ariel, veiculado na Índia, como parte de uma campanha maior que gerou grande debate público. O
comercial alcançou sucesso internacional depois de ampla difusão nas redes sociais e teve como
objetivo despertar conscientização e engajamento dos homens nas tarefas domésticas a partir do
questionamento “Lavar roupa é uma tarefa apenas feminina?”.
Palavras-chave: Estudos de gênero. Tarefas domésticas. Publicidade.
As tarefas domésticas: a permanência da feminização
Ao se investigar as mudanças ocorridas na sociedade nas últimas décadas no tocante às
questões de gênero, podemos constatar que a crescente atuação feminina no mercado de trabalho
não acarretou uma entrada maior do homem no âmbito privado a ponto de haver uma significativa
igualdade na distribuição das tarefas domésticas. Longe disso, muitas investigações acerca da
divisão desses afazeres (Costa et al., 2008; Araújo, Scalon, 2005; Picanço, 2005, dentre outros)
indicam a assimetria. Ao entrar no mercado de trabalho, as mulheres atraíram para si mais
responsabilidades, sem que se desvencilhassem de outros deveres marcadamente invisíveis: os
trabalhos domésticos, aqui definidos como “um conjunto de tarefas relacionadas ao cuidado das
pessoas e que são executadas no contexto da família – domicílio conjugal e parentela – trabalho
gratuito realizado essencialmente por mulheres” (Fougeyrollas-Schwebel, 2009, p. 257). Como
indicam vários estudos, apesar de todos os avanços quanto à autonomia feminina, a participação do
homem nos serviços domésticos tem crescido de forma bastante insatisfatória.
Chegamos ao século XXI constatando que os direitos e o ingresso das mulheres na esfera
pública acabaram com seu confinamento, na medida em que houve um trânsito em direção
à esfera pública, assim como possibilitaram uma maior autonomia da mulher nas próprias
relações privadas. Porém, no que diz respeito à clássica divisão do trabalho doméstico,
pode-se dizer que esse trânsito em sido solitário, quase de mão única. A trajetória dos
homens em direção a um maior envolvimento doméstico tem sido em ritmo lento
(ARAÚJO; SCALON, 2005, p.70).
Nesse contexto, fica clara a permanência da clivagem mulher privada/homem público, pois a
mudança no modelo familiar acumulou-se ao modelo profissional, não havendo alternância, nem
1 Doutoranda em Ciências da Comunicação pelo PPGCOM-USP. São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]
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escolha, mas sim estratégia de conciliação entre papéis profissionais e domésticos, de tal forma que
elas continuam realizando o essencial das tarefas domésticas. Como exemplo, as pesquisas de uso
do tempo e produção doméstica na França indicam que, embora a partilha das tarefas esteja um
pouco menos desigual, mulheres e homens ainda exercem papéis domésticos distintos. Nesse
sentido, Fougeyrollas-Schwebel (2009, p. 259) destaca as atividades relacionadas com a roupa
como tarefas quase exclusivamente realizadas por mulheres.
Também no Brasil, esse desnível entre a divisão do tempo de homens e mulheres com
tarefas domésticas segue expressivo, como aponta a pesquisa Mulheres brasileiras e gênero nos
espaços público e privado.2 Os resultados mostram que o principal responsável pela execução (ou
orientação) dos serviços domésticos permanece sendo a mulher (93% em 2000 e 91% em 2010),
mantendo a tensão entre trabalho produtivo e reprodutivo como parte do cotidiano feminino (Ávila,
2013). Segundo Oswald (2013), em matéria publicada em O Globo, no espaço de uma década
(2003-2012), os homens brasileiros teriam aumentado em oito minutos a dedicação do seu tempo ao
trabalho doméstico, um índice maior do que o dos Estados Unidos, onde esse aumento representou
sete minutos. O que continua saltando os olhos é a grande disparidade entre o tempo despendido por
homens e mulheres ao redor do mundo. Na Índia, por exemplo, “enquanto as mulheres dedicam
20,61% do seu tempo com o trabalho não remunerado, esse percentual não passa de 2,17% entre os
homens (Oswald, 2013).”3
Mais que simples números, esses indicadores trazem em si marcas das hierarquias de gênero
e devem ser analisados como resultado de um processo cultural e histórico, em que as funções
atribuídas às mulheres ao longo dos séculos influenciaram (e continuam influenciando) a posição
ocupada por elas no mercado de trabalho e nos lugares de poder.
Histórica e culturalmente, especialmente dentro da sociedade capitalista, sempre coube à
mulher a responsabilidade pelos cuidados com a casa e com a família, independentemente
de sua idade, condição de ocupação e nível de renda. O trabalho doméstico recaía sobre as
mulheres com base no discurso, vivo até hoje, da naturalidade feminina para o cuidado.
Essa atribuição social do cuidado ao feminino, primeiramente, limitou a vida das mulheres
ao espaço privado, e posteriormente, com as transformações socioeconômicas e a busca de
independência feminina, marcou desvantagens em relação aos homens na atuação
econômica e social. (SOUSA; GUEDES, 2016, p. 125)
Como se sabe, a predominância dos homens nos lugares de poder e visibilidade está ligada à
destinação prioritária à esfera produtiva, com as funções de maior valor social, ao tempo em que as
2 Pesquisa realizada com mais de 3.500 indivíduos nas cinco regiões do País em agosto de 2010 pela Fundação Perseu
Abramo e Sesc (Venturi; Godinho, 2013). 3 O contexto social indiano é bastante complexo e não será objeto de análise aqui em razão das escolhas da nossa
pesquisa.
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mulheres ficaram restritas à esfera reprodutiva e à família, marcadas pela invisibilidade e
gratuidade. Hirata e Kergoat (2008) avançam nessa discussão da divisão sexual do trabalho
reconhecendo “dois princípios organizadores: o princípio da separação (há trabalhos de homens e
trabalhos de mulheres) e o princípio hierárquico (um trabalho de homem ‘vale’ mais que um
trabalho de mulher). Esses princípios são válidos para todas as sociedades conhecidas, no tempo e
no espaço” (p. 266). A separação e a hierarquia ficam bastante marcados na unidade doméstica, um
dos espaços em que a dominação masculina analisada por Bourdieu (2010) se manifesta de forma
mais evidente, entendimento que Hirata ratifica ao afirmar que, “sendo a forma privilegiada de
expressão do amor na esfera dita ‘privada’, os gestos repetitivos e os atos cotidianos de manutenção
do lar e da educação dos filhos são atribuídos exclusivamente às mulheres” (Hirata, 2007, p. 253).
Nesse sentido, Araújo e Scalon também apontam o “peso da dimensão cultural das construções
simbólicas sobre as atribuições e os lugares sociais de homens e mulheres na divisão social do
trabalho” (Araújo; Scalon, 2005, p. 69).
Ao que parece, além do fator cultural que vem de longa data conferindo às mulheres a
responsabilidade pelos cuidados com os filhos e com a casa, parece também existir certo
comodismo dos homens, que se preocupam mais com a esfera pública e com a sua vida profissional
do que com a gestão das atividades domésticas. Exemplo disso é que os homens que moram
sozinhos ou com filhos conseguem administrar a carreira e os cuidados domésticos
simultaneamente, mas quando há uma mulher em casa, ela, muitas vezes, concentra tais tarefas,
possivelmente no intuito de autoafirmação e controle de “seu território”, como supõe Lipovetsky
(2000). Segundo ele, o princípio de inércia cultural não bastaria para explicar essa continuidade
enquanto tantas outras permanências e tabus ruíram nesse cenário. Seria preciso enxergar, nesse
envolvimento doméstico das mulheres, um fenômeno relacionado à reivindicação de um lugar e
busca de sentido, estratégias de poder e objetivos identitários; constituiria, assim, segundo o autor,
uma maneira de controlar um território ou de estabelecer um mundo seu.
Esse argumento um tanto polêmico reforça a necessidade de voltar a Boudieu (2010), autor
que analisa como a mulher incorpora, por meio de esquemas de percepção e avaliação dificilmente
acessíveis à consciência, os princípios da visão dominante masculina que a leva a achar normal, ou
mesmo natural, a ordem social tal como ela é. Isso se dá por meio da violência simbólica, que
envolve um sistema de estruturas duradouramente inscritas nas coisas e nos corpos sob a forma de
predisposições, percepções, pensamentos e ações orientadas pela valorização do masculino e
submissão do feminino.
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As mudanças visíveis que afetaram a condição feminina mascaram a permanência de
estruturas invisíveis que só podem ser esclarecidas por um pensamento relacional, capaz de
pôr em relação a economia doméstica, e portanto a divisão de trabalho e de poderes que a
caracteriza, e os diferentes setores do mercado de trabalho (os campos) em que estão
situados os homens e as mulheres (BOURDIEU, 2010, p.126, grifo no original).
Muito embora a situação esteja aos poucos mudando, como se pode observar no cotidiano
das grandes cidades, a “naturalização” da feminização das tarefas domésticas ainda permanece
como resultado de um longo processo cultural. Nesse quadro, muitas vezes o trabalho extralar da
mulher ainda está atrelado muito mais à necessidade financeira do que à autorrealização. Na sua
investigação sobre representações dos papéis femininos e masculinos na vida familiar a partir da
pesquisa “Gênero, Família e Trabalho no Brasil”,4 Picanço (2005, p. 158) conclui pela existência de
formas não-homogêneas de representação do feminino. Como ela explica, ainda há forte
valorização feminina na vida doméstica por parte de muitos homens e mulheres e, apesar de haver
mais saídas conciliatórias para a mulher trabalhar fora de casa, “de modo geral, o alargamento da
visão dos homens em relação à contribuição feminina para a renda está ainda muito mais vinculado
à necessidade econômica para a reprodução da família do que a um deslocamento da representação
tradicional dos papéis femininos e masculinos” (Picanço, 2005, p. 166).
Assim, percebemos que as sutis mudanças quanto à entrada masculina no campo das tarefas
domésticas não têm acompanhado a dinâmica social. Legitimados pelo cômodo discurso do amor e
da dedicação femininos aos filhos e à família, tão recorrente nas instituições e no discurso
midiático, muitos homens ainda associam trabalho doméstico à categoria feminina, como se não
fosse tarefa sua participar da organização e preparação do cotidiano doméstico. Exemplo disso é se
referir ao trabalho como “ajuda” (“ajudar minha mulher”; “ajudar nas tarefas domésticas”),
enunciação que evidencia a ideia de contribuir com o outro em uma função que não seria sua, ou
seja, que extrapola suas atribuições, e adquire um tom condescendente.
Enquanto isso, nos lares de diversos países, é fácil verificar a separação e a hierarquia
(Hirata e Kergoat, 2008) por meio do controle dos espaços. Homens seguem na área social
assistindo televisão ou utilizando computadores, enquanto as mulheres (ainda) permanecem ativas
nos ambientes invisíveis (cozinha, área de serviço etc.), tentando, a cada dia, pôr fim nas infindáveis
tarefas que se acumulam. Ainda que ela trabalhe fora, a “carga” continua, na maioria das vezes
sendo feminina e assim, “poucas mulheres, qualquer que seja a sua condição social, escapam do
trabalho doméstico” (Fougeyrollas-Schwebel, 2009, p. 261). Como as pesquisas mostram, isso
acontece na França, nos Estados Unidos, no Brasil, na Índia... pelo mundo afora.
4 Pesquisa realizada com 2 mil indivíduos, conforme Picanço (2005, p. 154).
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A campanha #SharedTheLoad
Conforme vídeos de divulgação disponíveis no Youtube5, a campanha partiu da constatação
da discrepância entre a distribuição de tarefas domésticas entre homens e mulheres na Índia,
sociedade altamente marcada pelas diferenças sociais e pelas hierarquias de gênero. Segundo
estatísticas, 73% das mulheres casadas na Índia sentem que os homens preferem relaxar a ajudar
com as tarefas domésticas. Mais de dois terços das mulheres casadas sentem que existe
desigualdade com a distribuição desses afazeres. Com grande penetração na Índia, a marca de sabão
em pó Ariel decidiu fazer um apelo pela divisão da carga de trabalho com o mote: “Lavar roupas é
uma tarefa somente de mulheres?”.6
Veiculada em mídia televisiva e principalmente mídia digital, a campanha #ShareTheLoad
conseguiu gerar um debate nacional no intuito de chamar os homens à atividade. Outras ações de
marketing incluíram folhetos dentro da embalagem de sabão com instruções “para ele e para ela” e
a utilização da etiqueta com orientações de lavagem nas roupas (Figura 1), espaço pouco explorado
pelas marcas, onde se podia ler, nas inscrições em verde, “Pode ser lavado por homens ou mulheres.
Compartilhe a carga.”
Figura 1. Plano detalhe da etiqueta de roupa utilizada como veículo de divulgação da campanha.
Fonte: Vídeo "Share the Load" - P&G. Cannes Lions 2015
Ainda segundo os vídeos de divulgação, houve um crescimento de 60% das vendas da marca
Ariel e mais de um 1,5 milhão de homens engajados, postando imagens de lavagem de roupa nas
redes sociais com uso da hashtag #ShareTheLoad.7
5 Vídeo "Share the Load" - P&G. Cannes Lions 2015. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=LqlrTGd1Imw> e vídeo Ariel | Share The Load. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=MOpLBgEZOkk>. Acesso em: 07 maio 2017. 6 Embora não tenhamos dados estatísticos a respeito, a concentração feminina acerca da atividade de lavagem de roupa
parece ser uma constante, como já identificou Fougeyrollas-Schwebel (2009, p. 259) no contexto francês. 7 Desenvolvida pela BBDO da Índia, a campanha foi premiada com um Glass Lion no Festival Internacional de
Criatividade Cannes Lions em 2015.
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Como extensão dessa campanha, em um segundo momento viralizou nas redes sociais um
vídeo mais recente em que um pai, ao perceber a filha se desdobrar em sua dupla jornada enquanto
o genro assiste à televisão, pede desculpas a ela em uma carta, justificando sua passividade pelo
aprendizado social ao longo das gerações. A abordagem do tema traz à tona o machismo da Índia,
de forma que essa “divisão” parece ser “naturalizada”. O produto anunciado (sabão Ariel) só é
revelado quase no final do comercial de dois minutos, quando o pai declara que vai passar a ajudar
sua esposa com a lavagem de roupas. O vídeo nos chamou a atenção diante dos estudos das
questões de gênero e da (ainda) feminização das tarefas domésticas, razão pela qual passamos a
examiná-lo mais detidamente a seguir, apresentando a transcrição do áudio e a descrição das cenas.8
Comercial Ariel: “o que você viu, você aprendeu”
O comercial é ambientado em um apartamento amplo e bem decorado, onde os espaços de
sala de estar, sala de jantar e cozinha são integrados. Na primeira cena, avô e neto brincam, quando
a mãe abre a porta e entra carregada de sacolas de supermercado, com uma bolsa ao ombro onde
parece estar um notebook. Mal entra em casa, ela já pergunta ao filho se terminou a lição de casa e
ao se aproximar, reclama que o filho manchou a camiseta de novo. Dirige-se ao pai e entrega-lhe
um papel falando: “Pai, aqui está sua passagem de volta”. Toca o celular, ela atende e conversa ao
aparelho, enquanto vai colocando as compras de supermercado na cozinha, com o telefone apoiado
no ombro. O pai observa atentamente seus movimentos, de um cômodo para outro, executando as
tarefas sem ajuda e tentando dar conta de tudo ao mesmo tempo. Nesse momento entra uma locução
em off com a voz do pai:
Minha princesinha, você está crescida agora. Costumava brincar de casinha e agora você
gerencia o seu próprio lar e o seu escritório. Eu estou tão orgulhoso. E eu sinto muito.
Lamento por você ter que fazer isso tudo sozinha. Lamento por eu nunca interferir enquanto
brincava de casinha. Eu nunca te disse que isso não é trabalho para se fazer sozinho. Mas o
seu marido também não... Como eu poderia ter dito isso? Se que eu nunca ajudei sua mãe
quando ela precisou... E o que você viu, você aprendeu. Seu marido deve ter aprendido o
mesmo com o seu pai. Quando brincava de casinha, ele fingia assistir televisão, enquanto
uma menina como você fingia fazer o chá. Lamento em nome de seu pai. Lamento em
nome de todos os pais que dão o exemplo errado.
As cenas mostram a infinidade das atividades domésticas se sobrepondo enquanto o marido
parece agir como se estivesse ali para ser servido: com o telefone ainda no ombro, a mulher faz chá
e leva para ele, impassível, à frente da TV. Volta para a cozinha, acende o fogão e abre o notebook
na bancada da cozinha; vai à sala e junta os brinquedos do filho; arruma as verduras na geladeira
8 Vídeo Comercial Ariel - #ShareTheLoad - Legendado PT-BR. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=RVdlduwtEdE>. Acesso em: 07 maio 2017.
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enquanto o marido grita da sala: “Lave minha camiseta verde”. Ela, então, vai até o filho e tira a
camiseta deste, sai de cena segurando a camiseta e volta com outras peças de roupa, que coloca na
máquina de lavar ao fundo (vemos, embora sem muito destaque, a embalagem de Ariel em cima da
máquina). Depois disso, mexe no notebook, carrega uma pilha de pratos até a mesa de jantar, onde
os distribui, ainda falando ao celular sobre trabalho (ver Figura 2).
Figura 2. Cena do comercial #ShareTheLoad
Fonte: Vídeo Comercial Ariel - #ShareTheLoad - Legendado PT-BR
Num segundo momento do filme, pai e filha trocam um abraço. A seguir, há um close em
um móvel da sala, onde há um porta-retratos com a foto do pai e da filha mais novos. Há um bilhete
na frente escrito “Do papai”. Vemos a mão dela pegando o papel e o abrindo. Continua a locução
com a voz do pai: “Mas não é tarde demais. Eu irei fazer um esforço consciente para ajudar sua mãe
com as tarefas de casa. Eu posso não me tornar o rei da cozinha, mas pelo menos eu posso ajudar
com a roupa”. Enquanto isso, vemos a imagem do pai no banco de trás de um carro em movimento.
Logo o carro para em frente a uma casa, na qual uma mulher chega à janela. É a esposa. Ela parece
estar enxugando a louça. Tem um pano nas mãos. Corta para cena do pai em um quarto
desarrumando a mala. A esposa vem se aproximando para pegar a roupa suja. Ele faz um sinal que
não precisa e passa por ela levando a sua roupa suja, enquanto ela olha para ele intrigada. Volta a
cena da filha concluindo a leitura da carta com um semblante pensativo, sentada à mesa do seu
apartamento, ao tempo em que ouvimos os últimos trechos em áudio, ainda na locução dele: “Todos
esses anos, eu estive errado. É hora de acertas as coisas. Para você, Papai.”
Por fim, vemos o casal colocando a roupa na máquina; a mulher parece instruir o homem.
Em cima do eletrodoméstico, há uma embalagem do sabão em pó Ariel, depois focalizada em
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destaque quando entram frases em lettering: “Why is laundry only a mother´s job?”; “Por que lavar
roupas é um trabalho apenas para mães?”; “Dads #ShareTheLoad”.
Para analisar as estratégias discursivas do vídeo publicitário e da marca, recorremos ao ethos
discursivo, noção que procede dos escritos aristotélicos, a fim de perceber os recursos para
convencimento do destinatário, nesse caso, o espectador-consumidor, uma vez que “a fé em um
discurso, a possibilidade de que os sujeitos nele se reconheçam presume que ele esteja associado a
uma certa voz (que preferiremos chamar de tom [...])” (Maingueneau, 1997, p. 46). Embora não
explícito, o ethos pode ser revelado pelo modo de expressão a partir da associação entre traços de
caráter e corporalidade. Como o autor esclarece, o conteúdo e o ethos confundem-se na enunciação,
e juntos são responsáveis pela construção de sentido, pois o tom tem a função de comprovar o que é
dito e atua de forma lateral, mobilizando a sensibilidade e os afetos do destinatário.
O tom familiar do vídeo – casa, família reunida, filho brincando – é o primeiro passo que
contribui para a mobilização dos afetos e a identificação com o enunciatário, na medida em que
transmite intimidade e confiança, e uma certa curiosidade: qual o tema desse anúncio? À medida
que a mulher entra e vai desempenhando as tarefas domésticas, cresce a identificação,
principalmente, claro, com o público feminino, mantendo um tom familiar e amoroso, de carinho e
cuidado.
A quebra na expectativa da narrativa comercial se dá com o despertar do interesse do pai
pelas atividades da filha, acompanhado da sua locução em off, quando se mostra culpado pela
sobrecarga da filha e pede desculpas. Em tom contrito, a enunciação de que “Todos esses anos, eu
estive errado. É hora de acertas as coisas” faz emergir uma voz social feminina que clama por
melhores distribuições nas tarefas domésticas, ou seja, vai ao encontro das aspirações das mulheres
por uma sociedade mais igualitária em um momento de maior protagonismo feminino.
O aprendizado pelo exemplo familiar, bem como a inércia masculina materializada no
“fingimento” dos homens vendo televisão enquanto os valores são transmitidos às crianças são
temas abordados em um tom de autocensura: “isso não é trabalho para se fazer sozinha”. Essa
enunciação tardia, no discurso do pai, ganha mais força por não ter sido dita à menina, reforçando
as marcas da hierarquia de gênero por meio da desigualdade nos serviços domésticos.
Mas é de se ressaltar que, mesmo consciente, o pai não se levanta para ajudar a filha.
Apenas observa e condena mentalmente o genro, numa atitude similar à sua. O genro, além de não
participar das tarefas, ainda dá ordem (“Lave minha camiseta verde”), à qual a mulher obedece,
como se houvesse realmente introjetado a dominação masculina (Bourdieu, 2010).
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Com consciência do erro, o pai pede desculpas, mas se mantém inerte, apenas observando a
filha trabalhar, até se inspirar a escrever a carta e começar, enfim, a “ajudar” sua esposa no seu
retorno, quando revela acerca do “esforço consciente para ajudar sua mãe”. Ao que parece, mesmo
com o despertar acerca da sobrecarga da filha, parece difícil partir para a ação. Mas enfim, voltando
para casa, ele se mostra participativo com a mulher, ao tempo em que começa a lavar suas roupas,
ou seja, “encarna” a enunciação de “É hora de acertas as coisas” quando há a associação entre o
caráter (ter a intenção de participar, perceber a injustiça da divisão de tarefas) e a corporalidade
(executar a tarefa da lavagem de roupas, isto é, colocar as roupas na máquina de lavar). Nesse
ponto, o ethos adquire mais expressividade, consubstanciando a expectativa feminina de que os
homens assumam tarefas que são deles também.
De maneira geral, o discurso publicitário contemporâneo mantém, por natureza, uma
ligação privilegiada com o ethos; ele busca efetivamente persuadir ao associar os produtos
que promove a um corpo em movimento, a uma maneira de habitar o mundo. Em sua
própria enunciação, a publicidade pode, apoiando-se em estereótipos validados, “encarnar”
o que prescreve. (MAINGUENEAU, 2015, p. 19)
As estratégias discursivas do vídeo, evocando o tom arrependido do pai pela opressão da
qual a filha é vítima e propondo uma mudança de atitude masculina, poderiam ser consideradas
“estratégias sensíveis”, isto é, “jogos de vinculação dos atos discursivos às relações de localização e
afetação dos sujeitos no interior da linguagem” (Sodré, 2006, p. 10). O recurso de utilização do
sensível contribui para a captura da atenção e para a ampliação dos pontos de contato com o
consumidor, reforçando o território da marca (Quessada, 2003). Este autor indica o “efeito de
turvação” existente nos dias atuais entre conteúdo publicitário e o não-publicitário, entre
comunicação e informação, entre o que tem ou não função comercial. Essa opacidade dos limites
faz com que a publicidade transborde sobre o cotidiano, e seu discurso seja assimilado com um
sentido de comunhão, como uma maneira de manter o senso comum na sociedade, de forma que “o
discurso publicitário apresenta-se assim como um discurso político que não tem a ver com a ordem
do político: por fim, a publicidade indistingue o político-político e o político-publicitário.”
(Quessada, 2003, p. 83-84).
Prova dessa turvação pode ser percebida na difusão do vídeo por meio de
compartilhamentos em perfis da rede social Facebook, dissociando-se da prioritária função da
venda do produto e ganhando status de um vídeo de denúncia sobre a “disponibilidade permanente
do tempo das mulheres a serviço da família” (Fougeyrollas-Schwebel, 2009, p. 258). Ao se espraiar
pela rede, o vídeo adquire um tom político, de ativismo feminino e conscientização sobre a
feminização das tarefas domésticas.
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Permanências e mudanças
Criado pela agência de propaganda BBDO para o contexto indiano, o comercial
#ShareTheLoad trata de uma realidade comum a muitos países, como o Brasil: a concentração das
tarefas domésticas nas mãos das mulheres. Essa talvez tenha sido uma das razões da vasta
repercussão por aqui, após a premiação em Cannes.
Quando se analisam os lugares de gênero na publicidade, é comum a acusação de
manutenção e legitimação de discursos hegemônicos; esse é, na verdade, um grande problema que
vem começando a mudar, com mais anunciantes preocupados com o empoderamento feminino e o
respeito à diversidade – de corpos, sexualidades, estilos de vida.
A nosso ver, o comercial do Ariel caminha nesse sentido, quando começa ilustrando o
estereótipo da dona de casa dedicada ao lar e à família, e desconstrói esse discurso na voz do
arrependido pai – o que gera, talvez, maior consideração também por parte do público masculino.
Se ainda há muitas permanências (apesar da consciência do erro, o pai não se levanta para ajudar a
filha; e o genro dá ordens à mulher, é servido, nem se dá conta da situação opressiva), o vídeo
ganha um tom de discurso engajado e ativo, ou, no dizer de Quessada (2003), um discurso político
que não é da ordem do político, que turva fronteiras e se espraia pelo Facebook, sendo amplamente
compartilhado, curtido, comentado. Se é notório que ainda falta muito para que haja uma divisão
igualitária das tarefas domésticas, também é consenso que é preciso colocar o tema em destaque
para que gere, ao menos, debate e, com otimismo, engajamento masculino. O mérito desse
comercial parece ser a empatia com as mulheres, colocando-se no lugar delas com realismo e
solidariedade, aliada à visão pela perspectiva masculina– na maioria das vezes total e
convenientemente cega a essa carga.
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The feminization of household chores: a brief discussion from the advertising campaign
#ShareTheLoad
Abstract: Starting from a critical discussion about the feminization of domestic work, the paper
analyses discursive strategies of advertising video #ShareTheLoad of the brand of Ariel soap.
Spreading in India, the video was part of a campaign that generated large public debate. The trade
reached international success in social networks and aimed to raise awareness and participation of
men in domestic tasks from the questioning “Is washing clothes a task only feminine?”.
Keywords: Gender studies. Household chores. Advertising.