a face cruel da justiça - caryl chessman

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– 1 – A FACE CRUEL DA JUSTIÇA por Caryl Chessman Título em inglês: THE FACE OF JUSTICE Tradução de Rubens C. Veras Impresso por “Revista dos Tribunais S/A” São Paulo – 1960 Este material NÃO tem copyright. FreEbook Apie essa idØia!

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Page 1: A Face Cruel da Justiça - Caryl Chessman

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A FACE CRUEL DA JUSTIÇApor Caryl Chessman

Título em inglês: THE FACE OF JUSTICETradução de Rubens C. Veras

Impresso por “Revista dos Tribunais S/A”São Paulo – 1960

Este material NÃO tem copyright.

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PREFÁCIO

Todos conhecem a emocionante história de Caryl Chessman, o escritorcondenado do Corredor da Morte, autor de “2455, CELA DA MORTE”, “A LEI QUERQUE EU MORRA” e do livro que ora é lançado: “A FACE CRUEL DA JUSTIÇA”.

Chessman desde o dia três de julho de 1948 está confinado à Penitenciária deSan Quentin; sobre ele, durante todos esses longos anos, pesam duas sentenças demorte por sufocação e envenenamento, na sinistra “sala verde” – a Câmara de Gás deSan Quentin, na Califórnia.

A FACE CRUEL DA JUSTIÇA narra a mais recente fase da incessante batalha deChessman para escapar ao verdugo. Conta como ele se tem aprofundado no estudo dosistema processual e penal norte-americano. Mostra os esforços que ele e seusdedicados advogados desenvolvem no sentido de conseguir para si o que alega serjusto: um novo julgamento, porque o que o condenou à morte foi irregularmentetranscrito por um escrivão substituto. Nesse julgamento, Chessman afirma que poderádemonstrar, cabalmente, que não é culpado dos horrendos crimes que lhe imputam.

Recentemente, em meio a violentas demonstrações populares de apoio àpretensão de Chessman, em todo o mundo, o governador da Califórnia, Edmund G.Brown, concedeu um adiamento da execução de Chessman para que o Legislativocaliforniano estudasse projetos visando a abolir ou suspender experimentalmente apena de morte naquele estado norte-americano. Qual seja o desfecho, não se podeprever, no momento. Mas, não há a menor dúvida de que para ele terá contribuído,decisivamente, este livro que é um candente libelo contra a pena de morte.

A FACE CRUEL DA JUSTIÇA!

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Índice

INTRODUÇÃO 4

PRIMEIRA PARTEOU BIGORNA OU MARTELO

CAPÍTULO 1DOIS VIERAM À PRISÃO 10

CAPÍTULO 2ENCONTRO COM UM MONSTRO 20

CAPÍTULO 3VOCÊ SERÁ AMALDIÇOADOSE O FIZER 28

CAPÍTULO 4VOCÊ SERÁ AMALDIÇOADOSE NÃO O FIZER 39

CAPÍTULO 5UM SEGREDO DIGNODE SE CONHECER 47

CAPÍTULO 6LINHAS E PLANOS DE BATALHA 60

CAPÍTULO 7“VOCÊ TEM O CORPO” 71

CAPÍTULO 8PREPARE-SE SE PUDER! 77

CAPÍTULO 9XEQUE-MATE OU IMPASSE 93

CAPÍTULO 10DUELO NO TRIBUNAL 104

CAPÍTULO 11JUSTIÇA? JUSTIÇA!O QUE É ISSO? 120

SEGUNDA PARTEPALMILHAR À NOITE

CAPÍTULO 12COMO SE SENTE, TOLO? 139

CAPÍTULO 13“QUANDO EU USO UMA PALAVRA”,DISSE HUMPTY-DUMPTY... 147

CAPÍTULO 14O REI DO CORREDOR DA MORTE 160

CAPÍTULO 15 “A CULPA, CARO BRUTUS” 175

CAPÍTULO 16A VERDADE – CEBOLA OUCAIXA DE SURPRESAS? 187

CAPÍTULO 17OUTRA “VITÓRIA” COMO ESSA... 190

TERCEIRA PARTEA TORRE DAS TREVAS

CAPÍTULO 18SÓ MAIS UM PASSO A SER DADO 205

CAPÍTULO 19ÂNSIAS DE FAZER O BEM 214

CAPÍTULO 20UM SERVIÇO TERMINADO,UMA PROMESSA CUMPRIDA 221

CAPÍTULO 21ARÍETE: UM FATO CONSUMADO 226

CAPÍTULO 22UM JULGAMENTO HISTÓRICO 229

POST SCRIPTUM 236

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INTRODUÇÃO

UMA UNIDADE DE ULTRA-ALTA SEGURANÇA, eriçada de minuciosas garantias decustódia, isolada do resto da Penitenciária Estadual da Califórnia, em San Quentin...

Um guarda armado, de inquiridora lanterna elétrica na mão, patrulhandoincessantemente o estreito passadiço de vigia, junto à parede...

Uma entrada de portões duplos, aferrolhada e de múltiplas fechaduras, apelidadade A Gaiola...

Um longo e cavernoso corredor, gradeado e entelado, com lâmpadas nuas, acesasvinte e quatro horas por dia, lançando sombras fantasmagóricas pelo teto...

Trinta e quatro celas de máxima segurança, com grades na frente, paredes decimento, não tão largas quanto uma pessoa de braços esticados e menos de duas vezeso comprimento do corpo, onde homens atormentados pela esperança são mantidos emconfinamento enjaulado por meses, anos e depois são levados, uma tarde, de elevador,para baixo, e “humanamente” mortos na manhã seguinte...

Este é o Corredor da Morte – no seu melhor aspecto, um lugar impiedoso,sombrio, um pesadelo; no pior, um inferno em vida.

Há anos o Estado da Califórnia erigiu este frio templo de aço e concreto dedicadoà loucura social. E aqui, na agora famosa cela 2455, é onde tenho existido desde amanhã de sábado, 3 de julho de 1948. Depois de mais de oito anos, e meia centena debatalhas judiciais, ainda há uma câmara de gás no meu futuro.

ISSO não me agrada nem um pouco.Não que eu esteja preso por um paralisante temor à morte, pois tenho visto,

ouvido, provado e cheirado demais a Morte; tenho estado perigosamente perto daMorte por tempo demais, por vezes demais, para me preocupar com a perspectiva daextinção física iminente.

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Enquanto tenho esperado esta eternidade para morrer, uma mulher e sessenta enove homens já foram executados naquela “Sala Verde” lá embaixo. Outros ficaramloucos. Alguns dementes ludibriaram o carrasco, pondo violentamente termo às suasvidas penhoradas. Eu próprio já tenho estado a poucas horas de ter minha vida extinta,antes que desesperados recursos legais suspendessem abruptamente a execução.

Não estou preocupado com as raivosas afirmações segundo as quais eu irei diretopara a parte mais quente e mais horrível do inferno, no momento em que inalar aquelafumaça letal do cianureto. Venha quando e como vier, minha morte física significaráapenas uma cessação total da consciência. E se esse inferno cristão, por uma chance emdez bilhões, for uma realidade de após a vida, tenho certeza de que o Príncipe dasTrevas terá muito trabalho em inventar uma tortura que eu não considere como meroaborrecimento, depois do meu confinamento pelo soberano Estado da Califórnia.

Além disso, não obstante o fato de que certos fazedores de lendas sem inibiçõesme tenham apregoado como um dos “monstros” mais execráveis do século vinte, eusou um monstro que o demônio não quer. E ele tem boas razões para isso. Quase quecertamente eu violaria a cálida hospitalidade desse superestimado arqui-inimigo, comalgum engenhoso plano para tirá-lo do negócio, da mesma forma como tenho tentadotirar o emprego do carrasco da Califórnia e tornar a sua câmara de gás uma peça demuseu.

O inferno, para minha mente “distorcida”, não faz mais sentido do que oCorredor da Morte e o que considero como assassínio legal, infligido pelo Estado. Isto,eu sei, é heresia para o espírito daqueles indivíduos que seguem a grande tradição deTorquemada e outros, daquela ilustre companhia.

Uma de minhas características dominantes é uma feroz insistência empermanecer independente, o que pode ser uma razão pela qual sou chamado deegomaníaco (assim como psicopata). Para falar mais às claras, a minha alma, se aindapossuo uma, não está à venda. Em conseqüência, aqueles que ponderarem sobre osignificado social deste livro, farão bem em conservar em mente o dito de JosephConrad: “A crença em uma fonte supernatural de mal não é necessária; os homens,sozinhos, são bem capazes de qualquer malvadeza” (incluindo homens auto-santificados, que se proclamam São Jorge, empenhados no combate de morte contra omal).

Hoje, como no passado, esses espécimes oportunistas continuam a demandar o

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sagrado privilégio de obstruir a lenta luta da humanidade para criar um mundo maissadio, mais humano. A sua lei é a lei do medo, da força, câmaras de execução eretribuição, e submissão de cordeiro à sua vontade patriarcal. Os uivos de alarmaangustiado que deles extraí, considero como altos elogios. Não tremo diante deles.

Isto basta quanto ao miasma que se instalou em torno do caso Chessman e dohomem na cela 2455, ocultando a verdade sobre ambos e desanimando muitas pessoasde se aventurarem bastante perto para uma inspeção própria, por medo decontaminação...

Dizem que o gato tem nove vidas; se isto é verdade, sei o que um gato sentequando, sob as condições mais arrepiantes, é obrigado a gastar as primeiras oito dessasvidas em uma luta pela sobrevivência de câmara de horrores, e a Impiedosa Ceifadoramete na cabeça que será muito divertido tentar arrebatar-lhe a nona. Tudo o que ogatinho pode fazer é assoprar.

O Homo Sapiens pode escrever livros.A Face Cruel da Justiça completa uma trilogia iniciada com 2455, Cela da

Morte, e continuada com A Lei Quer Que Eu Morra. É uma história que se passa contrao pano de fundo, desenrolando-se na primeira plana, do internacionalmenteacompanhado Caso Chessman; mas não é primordialmente uma história daqueleChessman que, no espírito do público, é uma combinação de nome notório noscabeçalhos, besta selvagem e psicopata em uma jaula, e um arrogante ludibriador daJustiça, embora esse improvável Chessman seja trazido para o palco e receba umaoportunidade par representar pela – sinceramente espero – última vez.

No que me diz respeito, seu trabalho terá sido feito, então; seu valor máximo,como alvo para as sensibilidades enraivecidas dos bons cidadãos, terá sidocompreendido. O bom senso impõe que, na hora indicada, ele pare voluntariamente, ouseja puxado sem-cerimoniosamente para o lado; e dê a Caryl Chessman – homem eautor – uma oportunidade. Este mundo é pequeno demais para ambos os Chessman.Um tem de desaparecer.

O Estado da Califórnia está igualmente determinado a dar cabo,permanentemente, deste Chessman salafrário. Com o que eu não posso concordar é omeio a ser empregado. O Estado, asininamente, insiste em que nada menos do que umaviagem à sua câmara de gás letal fará o serviço; enquanto que minha posição é que a

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gente não pode matar com cianureto aquilo que nunca possuiu a realidade da carne eosso. Em resumo, embora eu vá continuar a resistir totalmente à drástica e poucoimaginativa solução do Estado, farei o possível para exterminar esse horrendo exemplode perversidade do século vinte, que leva meu nome. Minhas armas serão as palavras.

As introduções, embora venham em primeiro lugar nos livros, normalmente sãoescritas em último lugar, quando o autor pode apreciar o que realmente pôs no papel,e amoldar jeitosamente suas palavras introdutórias a fim de corresponderem ao queapresentou, ao invés do que esperava apresentar. Estou invertendo o procedimentonormal, em deferência à necessidade. Geralmente eu sei para onde vai o livro e,especificamente, sei porque; mas não sei como ele irá terminar ou as reviravoltasdramáticas que ele (e eu) sofreremos antes de que se chegue à última página. Nãoposso saber.

Uma cruenta e decisiva luta pela minha vida, na forma de uma audiênciaplenária, ordenada pela Corte Suprema dos Estados Unidos, depois de sete anos oumais de complicado litígio em tribunais estaduais e federais, está para ser iniciada noTribunal Distrital dos Estados Unidos, em San Francisco. Representando-me estarão osadvogados George T. Davis e Rosalie S. Archer.

Davis tem tido uma fabulosa carreira como promotor público e confidente depolíticos. Foi discípulo de August Vollmer, um dos imortais da criminologia científica, ede Max Radin, o gigante legal de uma era recém-finda. Davis tem defendido assassinosdenunciados e sem um tostão, e multimilionários reis da indústria de munições, comigual êxito e zelo, e com audácia e engenhosidade tática tais que deixaram osadvogados oponentes meneando a cabeça, incrédulos.

Rosalie Sue Asher? Como ela se tornou um dos advogados e uma boa amiga deum homem condenado, a quem os tablóides se têm deliciado em chamar de nomescalculados para excitar e chocar os leitores mais famintos de sensações, é uma partereveladora do meu livro.

Outras pessoas que povoarão meu livro são os meus vizinhos, os homenscondenados do Corredor da Morte; um pitoresco detetive particular; a mãe de duascrianças, que pagou um terrível preço por me amar; repórteres e colunistas,compassivos, cruéis ou não; jurados obstinados e testemunhas peritas, empenhadas emum jogo mortal; um escrivão de tribunal, falecido, e seu alcoólico substituto;inflamados promotores, decididos a encher de ciladas este recurso legal de última

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cartada, e a me enviar rapidamente para a morte; funcionários da prisão e policiais, eum agente literário e amigo cuja fé em mim como escritor e como pessoa humananunca fraquejou.

Com exceção do Chessman de temerosa legenda, essas pessoas são reais.Nenhuma teve de ser inventada para aumentar o impacto dramático deste livro.

Em jogo aqui, está a vida de um homem – a minha própria. O caso éacompanhado e calorosamente debatido em todo o mundo. Tem derrubado eestabelecido precedentes de importância legal. Promete ter repercussões aindamaiores. Se se demonstrar, nas próximas audiências do tribunal federal, que eu fuiinconstitucionalmente condenado no início, e que minha condenação foi mantida emgrau de recurso, através da conivência e fraude de funcionários públicos, comosustento; e depois, se um júri descobrir, em novo julgamento, que estou inocente dosrepulsivos crimes do Bandido da Luz Vermelha(*), como tenho veementementesustentado em todo esse brutal sofrimento, há poucas dúvidas de que a Califórniareexaminará o seu sistema de justiça criminal, com grande possibilidade de abolir essa“relíquia da barbárie humana” – a pena capital.

Machiavelli chamou a Sorte de mulher. A Justiça, também, é uma mulher – umaatriz cativa, forçada a representar muitos papéis, freqüentemente indecentes eestultificantes – e a ser o porta-voz de tanta insensatez, na sua maior parte sinistra edestrutiva. Em seu nome, através dos séculos, temos torturado e assassinado nossossemelhantes.

Com um grande aparato de retidão, elaboramos uma ciência e uma arte depunição.

Esta história começa na Califórnia setentrional, em um dia de começo de outono,cinco anos depois do marco divisório de nosso século...

(*) O “Bandido da Luz Vermelha” é a alcunha dada pelos jornais a um homem que molestava

casais estacionados nos morros ao redor de Hollywood, roubava o homem e forçava a mulher a sair doautomóvel para propósitos sexuais. [Deduz-se que o criminoso brasileiro homônimo, teve o nomepossivelmente dado pela imprensa local, inspirada pelo caso da Califórnia.]

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PRIMEIRA PARTE

OU BIGORNA OU MARTELO

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CAPÍTULO 1DOIS VIERAM À PRISÃO

EM UM LÍMPIDO DIA DE OUTUBRO de 1955, um conversível Chevrolet deixou a cidadebeijada pelo vento, pelo Golden Gate e atravessou a mais longa ponte pênsil do mundo,entrando no suburbano Condado de Marin.

Ali, há mais de cem anos, em primitiva terra montanhosa, marginada a oestepelo Pacífico e a este por numerosas baías, golfos e ilhas, um cacique bronzeado, datribo dos índios Licatiut, posteriormente convertido para a fé católica pelos padres daIgreja Católica Romana, e batizado com o nome de Marinero (“Marinheiro”) guerreouferrenhamente contra os exploradores espanhóis que montavam vivazes puro-sangues,e cujas armaduras rebrilhavam sob o céu ensolarado da Califórnia.

Agora, orgulhosos espanhóis e nobres selvagens não mais existiam. A terrapitoresca tinha sido domada, colonizada e subdividida. Super-autoestradas e pistaslivres substituíam trilhas tortuosas, cachos interligados de comunidades emdesenvolvimento. Por cima, muito acima das revoluteantes gaivotas, aerodinâmicosaviões de caça a jato cortam os céus. Os estampidos sônicos se tornaram quase lugarcomum.

Ali há fortes, estações de radar e de orientação, campos de aviação e estaleiros,bases navais e docas da Guarda Costeira – pois os perigos de hoje não são os perigosromânticos, localizados, de há um século. São ao mesmo tempo mais terrificantes, maisdiabolicamente abarcantes. O inimigo não é um cacique índio, com seu bando de

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bravos pintados, mas a fanática Hidra de olhos frios, de uma nova era, o mestre pluralde uma ideologia estranha que domina metade do mundo e que, por um ou outromeio, jurou dominar ou destruir o remanescente. As armas deste inimigo não são oarco e a flecha, nem o pau-trovão de cano longo, mas sim engenhos termonucleares deespantosa magnitude, capazes de vaporizar a humanidade.

No momento, este inimigo estava piamente falando de paz. Simultaneamente, omundo vigiava um quarto de hospital em Colorado, onde Dwight D. Eisenhower,Presidente dos Estados Unidos, convalescia lentamente do ataque cardíaco que oabatera. Wall Street esteve em pânico, e o mercado de carne de porco estevealarmantemente baixo. Mas o romance, não. Em todo o mundo, perguntava-se: “Seráque a princesa Margaret desposará Peter?” A princesa colocaria o dever antes do amor.O Vaticano anunciaria que, em um ponto crítico de sua recente enfermidade, o PapaPio XII tivera uma visão de Jesus Cristo. A canonização do pontífice de setenta e oitoanos de idade foi prevista para breve.

Outro nome estava nos jornais – o nome de um jovem californiano que, doacanhado confinamento de uma cela da morte, escrevia livros e lutava contra osesforços do Estado para tomar sua vida. “É melhor um impasse do que passe de tolo”,disse ele, comentando o fato de ter sido capaz, por incrível que pareça, de permanecervivo, mas não de derrubar duas sentenças de morte.

Faltavam alguns minutos para as nove daquela manhã de outono, e o tráfego quesaía de San Francisco era leve. A mulher na direção do conversível guiava com calmaquase que displicente. A seu lado, sentava-se um homem de constituição compacta,beirando os cinqüenta, a mão sobre a pasta no assento entre eles. Os dois falavamsobre generalidades do que tinham pela frente. Ouviram seus nomes mencionados comalguma extensão, em um boletim de notícias.

O Chevrolet corria na direção norte, Auto-estrada 101, até que, com o MonteTamalpais erguendo-se a sudoeste além do Ribeirão de Corte Madeira, ele virou no“Boulevard” de “Sir” Francis Drake, atravessando Greenbrae. Entrando no “Boulevard”Francisco, com as águas calmas e manchadas de sol da Baía de San Rafael logo além, eletomou a direita de novo. Em Point San Quentin, onde trabalhadores construíam umnovo pontilhão para Richmond sobre a baía, e onde o velho embarcadouro, incrustadode mariscos, levava ao serviço de “ferry-boat” para aquela cidade, o conversível voltou

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à direção oeste, entrando em uma estrada estreita, tortuosa, a qual seguiu por quaseum quilômetro antes que a mulher parasse o carro.

“Bem, George, aqui estamos”. Ao descer, endireitou a saia de seu costume feitosob medida, e relanceou os olhos através do portão, para a amurada mais além.

O homem concordou com um aceno de cabeça. Sopesou a pasta com ummovimento do braço para cima e para baixo, como se o seu conteúdo subitamentetivesse assumido uma nova importância. Atravessou-lhe a mente o pensamento de queesta era uma viagem que levara não minutos, mas meia existência, para ser feita. Ele acomeçara há anos quando, menino ainda, assistindo, fascinado, a um julgamentocriminal, resolvera tornar-se um advogado famoso. O sonho do menino se tornararealidade, e agora o advogado famoso enfrentava a hora mais decisiva de sua vidaprofissional.

Estava pronto a lutar contra o Estado da Califórnia pela vida de um homem cujocaso, qualquer que fosse o seu resultado, faria história legal e exerceria profundainfluência no curso da legislação criminal e da penalogia.

“Sim, Rosalie,” disse ele, “aqui estamos.”O alto portão de ferro, de dobradiças, que se abria para fora e era operado

manualmente por um homem de uniforme, estendia-se através da estrada. Apenasveículos oficiais – e de vez em quando um esquife – eram autorizados a entrar e sair, emesmo assim só depois de cuidadosa inspeção.

Esta era a entrada principal da mais antiga prisão da Califórnia. Fora fundadahavia cerca de cem anos, quando um navio-prisão apodrecido, ancorado na baía, tinhasido lançado à terra, quase que estilhaçado pela fúria de uma tempestade. Suadesgraçada carga, os convictos, foram levados à terra e mantidos naquele local atépassar a tempestade. Decidiu-se construir ali uma prisão. Poder-se-ia dizer que foramos – ou as – Fúrias que escolheram o lugar.

À esquerda do portão, do lado da baía, debruçava-se uma torre armada, umasentinela de concreto, com olhos que viam em todas as direções. Quase embaixo datorre ficava a sala onde os visitantes forneciam suas identidades ao guarda de serviço eassinavam o livro de registro. Uma placa dizia:

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Departamento de CorreçõesPENITENCIÁRIA ESTADUAL

DA CALIFÓRNIASan Quentin

Eles deram seus nomes, assinaram o registro, e foram conduzidos para dentro.Andando rapidamente, cobriram os duzentos e tantos metros até o posto deverificação, todo cercado, em baixo de uma grande torre de arsenal, com pontelevadiça, que tinha em vista de toda a frente da prisão, de cima da qual, em umcomprimento de onda partilhado com a Patrulha Rodoviária, se mantinha comunicaçãoradiofônica em dois sentidos, continuamente, com os carros do esquadrão institucionalde patrulha e os pontos principais do rigoroso sistema de guarda da prisão. Porcompanhia, o encarregado tinha uma metralhadora calibre ponto trinta, de canolongo.

À esquerda do caminho que atravessaram, a cerca de seis metros abaixo, haviaum parque de estacionamento de empregados. As águas escuras do Estreito de SanPablo lambiam interminavelmente o seu lado mais distante. Para a direita, através darua pavimentada, havia casas dos funcionários e depois, nesta ordem, um posto deserviço, um salão de recreação de funcionários, um posto de bombeiros com doiscarros e o edifício da administração, quase quadrado, de dois andares.

Atrás desses prédios, na encosta de um morro, havia mais casas residenciais,algumas recentemente construídas. Diretamente em frente ficavam os antigos, maciçose severos edifícios que formavam a frente da prisão propriamente dita, dentro dosquais, emparedados, quase cinco mil homens, de todas idades, raças e descrição,cumpriam pena por crimes que iam desde furtos de menor importância, com umacondenação criminal anterior, até assassínio em primeiro grau.

A mulher foi examinada pelo Inspectoscópio, essa maravilha eletrônica tãoproficiente no desvendamento de contrabando – metal inofensivo em cintas, pílulasesquecidas, e os ossos da gente – para o seu operador. Esperando que o homem fosseexaminado, ela olhou para a esquerda, onde um tubo se projetava na direção do céu.Por detrás dos óculos pretos, de aros de chifre, os olhos da mulher se endureceram.

Ela odiava aquele tubo, odiava o seu significado. Traindo sua aparência inocente,ele saía de uma sala verde no meio da qual, como algum implacável deus pagão, uma

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câmara octogonal, de janelas de vidro, acaçapava-se acabrunhantemente no escuro,esperando. Ali, sob o clarão de lâmpadas elétricas sem proteção, e o olhar fixo emorbidamente fascinado de testemunhas oficiais, o Estado, usando um gás letal e umainquieta mistura de ritual e ciência, administrava a morte a seus condenados. O tuboera o símbolo de uma justiça tacanha, impiedosa. Embaixo dele se cometia,regularmente, o assassínio judicial. A vingança última, pelo fiat legislativo, era doEstado.

O prisioneiro que eles vinham visitar estava esperando a morte. Mais de uma vezele estivera a poucas horas da execução. Lealmente, Rosalie Asher o visitara, desdeentão. Como advogada, ela o auxiliara a preparar o seu testamento e a pôr seusnegócios em ordem. Como amiga, ela ficara doente com o jogo de gato e rato que oEstado fazia com a sua vida. Mas, miraculosamente, ele ainda estava vivo, e por isso elase alegrava. Um dia, se Deus quisesse, aqueles que uivaram pela sua morte,compreenderiam quão errados haviam estado.

Em julho de 1948, Rosalie Asher recebera uma carta de Al Matthews, advogadocriminal em Los Angeles, seu antigo sócio e colega de classe. A carta lhe informava queum homem com o nome estranho de Caryl Chessman fora recentemente enviado aoCorredor da Morte de San Quentin, como sendo o infame Bandido da Luz Vermelha, daCalifórnia do Sul, e gostaria de se avistar com ela.

Respondeu à carta, dizendo que iria à prisão tão logo retornasse de umas fériasno Canadá, e pedindo mais pormenores “com relação tanto ao Sr. Chessman quanto àscircunstâncias relativas à sua prisão, julgamento e condenação”. A resposta não foitranqüilizadora. Chessman, pelo que parecia, não era geralmente considerado umsujeito agradável, ou de mentalidade social. Tinha um prontuário criminal longo eviolento. Defendera-se a si próprio no julgamento e parecia pretender continuar a fazê-lo. O caso tivera uma estranha reviravolta com a morte do escrivão do tribunal. Houvealguma controvérsia sobre se um registro das sessões do julgamento, necessário parauso no recurso obrigatório ao Supremo Tribunal da Califórnia, poderia ser preparadocom as anotações do escrivão falecido.

Um interessante ponto legal.Mas o que poderia esse Sr. Chessman desejar dela?Ao retornar de suas férias no Canadá, ela fez a viagem de cento e sessenta

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quilômetros de carro, até San Quentin, e nós nos vimos pela primeira vez – com umadivisão entelada, e barras da grossura de um dedo, entre nós. Uma barreira muitomaior nos separava filosoficamente: entre nós havia mundos de distância. Tinha ela,então, vinte e nove anos de idade.

“O que Al fez comigo!”, pensei. “Preciso de um advogado, uma raposa velha, comexperiência, tutano e argúcia, e vejam só o que me aparece – uma gatinha mole!”

A gatinha tinha garras, como logo descobri. Em minhas cartas a Matthews eufizera referência à doutora Asher, como Al o fazia, simplesmente como “Rosalie”. Deum amigo no escritório do diretor, onde uma cópia de toda a minha correspondêncialegal era enviada, ela soubera desse lapso e imediatamente tornara claro, como oprimeiro ponto de ordem, que tal familiaridade não seria tolerada. Fui informado deque isso não era condizente com a manutenção da relação adequada entre cliente (emespecial um vagabundo psicopata e condenado) e advogado.

O certo era “Doutora Asher”, fui informado.Com as formalidades assim firmemente estabelecidas, surgiram lápis e papel de

minuta legal.“Agora, Sr. Chessman, gostaria de lhe fazer algumas perguntas sobre o caso. O

senhor se importa?”“Não.”“Em primeiro lugar, o Sr. Matthews me contou que o senhor fez sua própria

defesa no julgamento. Acha que foi certo isso?”Encolhi os ombros. “Pessoas que se defendem a si próprias contra uma acusação

criminal, que têm por cliente um tolo, não o fazem necessariamente por acharem-nocerto ou errado. As circunstâncias e a necessidade têm o hábito de nem sempredeixarem ao indiciado a liberdade de exercer julgamento independente, bom ou mau.Em resumo, eu me vi encurralado, eu me defendi, e aqui estou, com duas sentenças àmorte e quinze condenações à prisão.”

“E no entanto o senhor tenciona continuar a se representar nos tribunais deapelação. Como pode o senhor fazê-lo efetivamente, de uma cela de prisão?”

“Descobrirei um modo.”“Mas o senhor tem suficiente experiência legal?”“Por qualquer padrão racional, não.”“Então, por que não deixa um advogado representá-lo?”

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“A senhorita quer a verdade crua, ou uma história fantasiosa?“Quero a verdade, naturalmente.”Havia duas razões. Primeiro, eu passara anos em uma floresta virgem onde, se a

gente tenciona sobreviver e reter um pouco de integridade pessoal, se desenvolve ohábito de lutar nossas próprias brigas, seja com punhos, facas ou armas de fogo – ou,como agora, com recursos legais. A gente não confia inteiramente nas pessoas,inclusive em advogados criminais.

Em segundo lugar, continuei, nesta luta a Califórnia me provocara, e eu estavadecidido, vivesse ou morresse, a fazer com que esse belo Estado se arrependesse de meter acusado dos crimes que me acusara. Eu fora muitos tipos de delinqüente, e comcerteza todos os tipos de um louco violento – mas não era o Bandido da Luz Vermelha.Não era um estuprador que me esgueirasse e rondasse por trilhas de amorosos; foraum bandido que ultimamente fizera um sindicato de bookmakers(*) protegido pelapolícia passar um tempo quente, ao assaltar os seus coletores e locais de aposta. E háuma grande diferença entre estupradores e assaltantes, como aqueles quevirtuosamente me haviam empurrado, através do julgamento, até a condenação, iriamdescobrir.

“De maneira que esta luta é minha e, enquanto eu pensar como penso, terá deser lutada à minha maneira. Por isso é que, para ser franco, não estou interessado embonitas preleções sobre minha atitude, ou belos conselhos sobre como devo proceder.Mas não estou tão ofuscado pelo ressentimento que não compreenda que preciso deseu auxílio, se a senhorita estiver disposta a dá-lo. Francamente, não estou em posiçãode lhe oferecer uma porção de razões persuasivas sobre porque a senhorita me devadar maior atenção, além desta: a senhorita não se arrependerá de ter me dado umamão. Algum dia, poderá mesmo ser compensada por isso. Uma vez que meti na cabeçaque, potencialmente, possuo o material de que são feitos os escritores, e contanto queo carrasco não me pegue primeiro, talvez eu seja capaz de provar a esse mundomaravilhoso que, apesar de tudo, há em mim alguma coisa de valor criativo e social.”

“Compreendo”, disse ela, pensativamente.Nos oito anos que se passaram desde então, tivemos alguns animados

(*) Contraventores que recebem e pagam apostas de jogo ilegal, geralmente corridas de cavalos

ou lutas de boxe, comparáveis aos banqueiros de jogo do “bicho” brasileiros. (N. do E.)

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desentendimentos. Em várias ocasiões ela ficou furiosa com minha aparenteobstinação. Pelo que podia perceber, eu fora amaldiçoado com um espírito que nãocedia.

A srta. Asher uma vez escreveu: “Não tenho nem o tempo nem a inclinação, sr.Chessman, para discutir filosofias com o senhor. E uma vez que o senhor tem julgadoconveniente discutir os meus motivos, fico sem nenhuma alternativa a não ser retirar-me completamente do caso.”

Sozinho, de minha própria maneira, sem pedir nem dar quartel, eu continueiminha teimosa guerra litigiosa contra o Estado da Califórnia, levando-a aos tribunaisfederais. Por duas vezes quase fui executado. Passaram-se meses, e com esses mesesuma crise.

Um dia, a srta. Asher encontrou uma carta minha em sua correspondência.“Escrevi um livro,” informava a carta, “e agora preciso de alguma assistência quantoaos pormenores relativos à publicação.”

O livro era 2455, Cela da Morte.Isto trouxe Rosalie de volta ao caso – para sempre. Ela auxiliou a garantir sua

rápida publicação. Leu o manuscrito, e eu não mais era um insondável enigma. Lutarae ganhara uma batalha contra mim mesmo e contra o ódio. Ela redobrou seus esforçospara me salvar, deixando o crédito e a glória legal para outros. Quatro vezes depoisdisso o carrasco quase me reclamou e, conforme ficou registrado em meu segundolivro, A Lei Quer Que Eu Morra, foi sempre ela que tratou de pôr meus negóciospessoais em ordem, quem me visitou quando eu tinha apenas horas de vida, quemprendeu a respiração comigo enquanto os dados legais, nos quais eu apostara minhavida, eram lançados.

Foi ela então quem, a meu pedido, se tornou advogada com procuração nosautos da causa, juntamente com George Davis. Foi ela quem se mostrou minha maisleal amiga, ao permanecer minha crítica mais severa, ao gastar virtualmente todo odinheiro que deveria ter sido seus honorários, a fim de me dar um futuro, ao agircomo uma engrenagem de equilíbrio, evitando que eu voasse para a direção errada, aome incutir, à força de repetição, uma filosofia de não violência, autodisciplina eintegridade, cheia de sentido. Ela me ensinou um novo e dinâmico significado para apalavra coragem.

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Meus visitantes cruzaram a rua e entraram na sala de espera das visitas. Ofuncionário puxou o cartão de visita do prisioneiro, entregando-o ao guardaencarregado. O guarda sorriu e cumprimentou-os. Rosalie S. Asher era bem conhecidapara os funcionários da prisão; ela visitava regularmente o seu cliente condenado.

“E este é o Sr. Davis?” disse o guarda.“Sim,” disse Rosalie Asher.“Ótimo. Daqui a um minutinho estará aqui a pessoa com quem vieram falar.”Fizeram-se ligações telefônicas. O Escritório do Capitão foi notificado. Dois

guardas foram incumbidos de trazer o prisioneiro à sala especial, trancada e dividida,onde os condenados de San Quentin vêem seus advogados, recebem visitas de parentesou amigos, e são entrevistados pela imprensa, sob o olhar vigilante de um guarda.

O homem preencheu o formulário de visita. Seu nome: George T. Davis. Negócioou ocupação: advogado. Endereço do escritório: Post Street, 98, San Francisco 4,Califórnia. Idade: 48 anos. Já fora condenado por crime? Não. Já fora preso por outrascausas que não violações do Código de Trânsito? Não, de novo. Estado civil:divorciado(*).

O funcionário encarregado da sala de visita, adjacente à sala de espera, veio até aporta.

Eles levantaram-se.Estava para começar uma conferência que, nas semanas seguintes, iria moldar o

trio em um time provado em combate. Contra eles se reuniria todo o peso e poder dosegundo maior estado da nação. Estariam em jogo a vida de um homem e – em umsentido mais amplo – o triunfo decisivo de uma entre duas espécies de justiça.

O guarda de ronda, um corpulento irlandês apreciado e respeitado pelos homensdo Corredor da Morte, enfiou a chave na fechadura da porta da cela.

“Está pronto, Chess? Eles estão aí.”“Estou pronto.”A trava de segurança ergueu-se. O guarda puxou a porta da Cela 2455, abrindo-

a, e depois fechou-a atrás de mim. Retângulos de luz do sol formavam padrõestremeluzentes no chão de cimento. A trava de segurança caiu novamente no seu

(*) Desde essa época ele contraiu novo matrimônio.

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encaixe. Eu andei os trinta metros de corredor, até a Gaiola. O sargento encarregadoda unidade deixou-me passar. Dois guardas esperavam. Um me revistou, enquanto ooutro nos fez assinar o livro de registro. Mais portas de aço se abriram e foramfechadas atrás de nós. Descemos o equivalente de cinco andares, até o nível do solo, noelevador manobrado por um prisioneiro. Dobrando uma esquina, a alguns metros dedistância uma da outra, havia mais duas portas de aço, pontilhadas de rebites. A daesquerda levava à câmara de gás. (Quando ela se abre para alguém, ele não volta mais.)Tomamos a da direita. Ela levava, através da rotunda do Bloco Norte, para o GrandePátio, o enorme quadrângulo cimentado onde os homens com números desta cidademurada são levados de um a outro dos blocos de celas igualmente enormes, paradentro e para fora dos dois refeitórios, e para suas diversas ocupações. Um guardaarmado de rifle, em um passadiço acima de nós, seguiu-nos com o olhar.

Nossa caminhada de quatrocentos metros, com um guarda na frente e o outroatrás de mim, levou-nos do Grande Pátio, através de outro portão, a um posto deinspeção e um jardim, o único lugar bonito da prisão. Uma porta com vidro à prova debalas foi aberta, de dentro para fora, e nós entramos – “Entre Portões”, eles achamavam. A passagem por mais outra porta nos levou a um corredor inclinado. Poucoantes de chegar à sala de visitas principal, eu virei à direita, em uma saleta, e fuitrancado. Ela poderia ter sido desenhada por um surrealista: uma pequena sala, de umverde melancólico, em forma de caixa, dividida em duas por uma partição. Barras dagrossura de um dedo, e grossa tela, com aquela luz brilhante batendo do nosso lado,tornavam quase impossível ver-se a pessoa no lado mais escuro da tela. E depois, aqueleinquiridor e bem alimentado guarda sentado no corredor, diretamente atrás de mim,esforçando-se para nos ouvir. Com suas sinistras conotações, um apavorante símbolode nossa época, supostamente esclarecida.

Preenchi os formulários necessários e depois fiquei olhando através das barras eda tela, observando a entrada do lado das visitas, desta “gaiola”. A srta. Asher entrou,seguida pelo homem cuja fotografia eu vira tão freqüentemente nas primeiras páginasdos jornais. Porque seus clientes raramente vinham para San Quentin, ele tambémnunca o fazia.

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CAPÍTULO 2ENCONTRO COM UM MONSTRO

“CARYL,” disse Rosalie, “este é o Sr. Davis.”“Bem, Sr. Chessman, prazer em conhecê-lo.” Davis estendeu a mão através do

pequeno guichê.“Alô”, disse eu, sorrindo. “Experimente tratar-me de Caryl”. Preferia que o

fizesse.“Ótimo. E você me trate de George.”Sentamo-nos.“Bem, Rosalie,” disse Davis, entrelaçando os dedos das mãos poderosas e

descansando as palmas na plataforma que nos separava, “agora que Caryl e eu fomosapresentados, nós a elegemos, por unanimidade, presidente deste conclave.” Sorriu.“Você gostaria de nos chamar à ordem e estabelecer os regulamentos?”

“A presidente agradece a ambos pela honra, declara aberta a sessão e depois,estando familiarizada com a disposição e qualificações de ambos, considera maisacertado retirar-se apressadamente, e assumir o papel mais seguro de espectadora”.

Davis e eu nos entreolhamos e rimos. “Ela nos conhece,” disse eu.“Deixe-me dizer-lhe, Caryl, que você tem sorte em contar com Rosalie a seu lado.”Eu aprendera a reconhecer conversa fiada. Mas aquilo não era. Ali, tinha eu

quase certeza, estava o homem de que eu precisava. Não era um desses tipospomposos, que passam por advogados.

“Concordo,” disse eu. “E creia-me, sei que tenho sorte. Isto nos traz ao Problema

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Número Um. Você teria razões para objetar, se se encarregasse do caso, em ter a Srta.Asher como colega no conselho de defesa, e a trabalhar em estreita ligação com ela?”

Davis não respondeu imediatamente. Nem hesitou por muito tempo. “Euconsideraria um privilégio trabalhar com ela,” disse.

“Bom. E você já discutiu o caso com ela, e leu o parecer da Corte Suprema dosEstados Unidos, ordenando as audiências?”

Davis concordou com um aceno de cabeça.Eu pedira que ele viesse. Depois de sete anos, três meses e alguns dias de disputar

uma desesperada batalha pela sobrevivência, eu acabara de ganhar uma vitória deúltima cartada, na Suprema Corte dos Estados Unidos. O Tribunal Distrital Federal forainstruído no sentido de realizar audiências sobre as minhas acusações, entre outras ade que, em seguida a uma condenação ilegalmente obtida, uma transcrição,fraudulentamente preparada, das anotações do escrivão que registrou o julgamento,fora usada como base para confirmar minhas duas condenações à morte e quinzesentenças de prisão.

As repercussões da decisão favorável ainda estavam sendo sentidas desde oCorredor da Morte até o Escritório do Promotor do Condado de Los Angeles e pontos anorte, sul, leste e oeste, quando me vi sem representante legal. Dependendo do jornalque se tiver lido, os dois advogados de San Rafael que me estavam representando, ouhaviam abruptamente me abandonado, em conseqüência de uma briga, ou tinham sidodespedidos em virtude de uma briga maior. Nenhuma versão de nossa súbitaseparação, com as dezenas de variações sonhadas pelos redatores, era bem correta;mas esta é outra história. O fato importante no momento era que eu me deparava comuma luta decisiva pela minha vida e, sem assistência geral de primeira, eu seriaderrotado. Seria derrotado de forma ainda pior, com o tipo errado de assistência legal.

Advogados habilidosos e de sucesso eram escassos. Geralmente, além disso, elesrecebiam honorários fabulosos pelos seus serviços, e pagamento sempre na hora.

“Quanto a dinheiro,” disse eu. “Eu não tenho nada.”“Eu sei,” disse Davis. “Rosalie me explicou a sua situação. No meu entender, você

exauriu seus fundos na luta com o caso até esse ponto crítico e no cumprimento deoutras obrigações.”

“É mais ou menos isso. Agora estou quebrado. Poderia prometer-lhe o dinheiro,sem dúvida, mas não costumo fazer negócio dessa maneira. Poderia contar-lhe a

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respeito dos milhares de dólares que ganhei com meus escritos, só que há uma coisa,como você sabe. Fui amordaçado. Não tenho permissão para escrever uma linha queseja, para publicação. Não somente isso, como o manuscrito de meu último livro, umromance que, tenho certeza, vale pelo menos 25 mil dólares e provavelmente muitomais se levar em conta os direitos cinematográficos, publicação em série e outros, foiapreendido pelo Diretor. Estou com um processo em andamento, agora, para tentartirá-lo dele. Se terei êxito ou não – e, se o tiver, quanto tempo levará – são questõesabertas. Além disso, você provavelmente leu que eu transferi meus direitos sobre olivro para Francis Couturier, uma amiga em Los Angeles, que tem dois filhinhos.”

“Rosalie também me contou isso.”“Provavelmente, conseguirei levantar dinheiro suficiente para pagar as despesas

suas e de Rosalie na preparação para as audiências, contanto que não sejam muitograndes, mas isso não é muito motivo para que você se envolva em um caso comoeste.”

“Até agora não vejo razão pela qual não possamos chegar a um acordo.”“Então, não temos problemas nesse setor.”Isto nos levou ao âmago da questão. “Sem se comprometer, então, você acha que

estaria interessado em se encarregar do caso?”“Sim.”“Presumo que, se o fizer, você saiba em que se estará metendo?”“Vamos trocar isso em miúdos, para ficarmos bem certos,” disse eu. “Em

primeiro lugar, você terá um ‘monstro’ por cliente, no entender do consenso público,um bastardo diabolicamente arguto e oportunista – desculpe minha linguagem, Rosalie– que venderia sua querida e velha vovozinha, ou seu advogado, para salvar seuprecioso pescoço ou ver seu nome em uma manchete. Na verdade, anteontem eu li quedespedi Ben Rice e Jerry Duffy(*) porque, agora que eles me ajudaram a conseguir asaudiências que pretendia, eu queria dominar todo o espetáculo.

Um brilho humorístico surgiu nos olhos de meu advogado em perspectiva: umarelação final fora estabelecida.

“Não pareço estar-lhe impressionando com o fato de que sou o tipo maistraiçoeiro de cliente que existe, e que meu caso é o mais desalmado e o mais indigno de

(*) Esses dois advogados já tinham sido meus patronos.

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todos.”“Você está me impressionando, Caryl, mas talvez não da maneira que pensa. Eu

também leio jornais, nas linhas e entrelinhas – e acabei de ler seu último livro, “A LeiQuer Que Eu Morra”. Também acabo de ter uma longa conversa com Rosalie, e ela meauxiliou a confirmar uma opinião minha.

“Qual é?”“A de que os jornais se têm enganado redondamente. Que você teve muito pouca

chance nos tribunais. Que você não deveria estar no Corredor da Morte. Que é umabsurdo que você não mais seja autorizado a escrever. Que é bem possível que vocêseja inteiramente inocente dos crimes em virtude dos quais foi condenado à morte.Que você precisa de auxílio agora, mas ainda não está inteiramente certo a meurespeito. Isto eu compreendo perfeitamente. É algo que você deve decidir por simesmo.” Tirou um charuto do bolso. “Não vou tentar influenciar a sua decisão comuma conversa promocional, a todo vapor,” continuou ele, depois de remover o celofanedo charuto. “Mas se novas indagações, não importa o quão rudes ou pessoais, lheauxiliarem a decidir-se, vá em frente e faça-as, e não se preocupe com a minhasensibilidade.”

“Obrigado, George, por tornar fácil o que tenho a dizer. Antes de você vir, eu mefiz algumas perguntas contundentes. “Davis,” disse eu a mim mesmo, “é um advogadomuito ocupado. Será que ele terá o tempo e a disposição para devotar semanas deesforço concentrado, na preparação do caso do modo pelo qual tem de ser preparado?Estará ele disposto a, por causa dele, trocar murros com o Estado da Califórnia?Examinará ele o caso, não como uma chance de conseguir muita publicidade, mas comoo desafio mais importante de sua carreira? Finalmente, compreenderá ele que háconsideravelmente mais, em jogo, do que a vida de um homem?

Acendi um cigarro e continuei. “Ora, creio que sei muito bem como você iráresponder a essas perguntas, mas quero que dê outra olhada atenta ao conjunto deprovas no caso. Quero que você se satisfaça, além de qualquer dúvida, de que a causapode ser vitoriosa, de que deve ser vitoriosa, de que você é o homem para ajudar aconseguir essa vitória, e que nada o impedirá de consegui-la, por mais exaustivo quepossa ser o esforço requerido.”

“Não creio que desejaria este caso, tão grande e politicamente explosivo como é,em quaisquer outras circunstâncias,” disse ele.

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“Bom. De maneira que... como ficamos no momento?”“Perto de um acordo. Agora sei que você deseja debater isso com esta nossa

silenciosa sócia, de modo que peço licença. Estarei na sala de espera, Rosalie.”A Srta. Asher concordou com um aceno de cabeça e sorriu.Davis e eu trocamos um aperto de mão novamente, através do guichê.“Caryl,” disse ele, “foi bom conhecê-lo. Estava querendo fazê-lo há anos,

admirado com a luta que você sustenta. E depois os seus livros. Como você conseguiupermanecer são, está além de mim. Sei que, depois de todo esse tempo, eles teriam deme pôr em uma cela acolchoada. Bem, até logo. Voltarei breve.”

Concordamos em uma data.“Rosalie,” disse eu, quando ele saiu, “ele é humano! É difícil acreditar, mas talvez

eu ainda caia de pé, apesar de tudo!”O rosto de Rosalie estava inescrutável. Eu conhecia seu hábito disciplinado de

examinar cuidadosamente cada problema, de proceder com extremo cuidado, e deformar um juízo ou uma estimativa de uma pessoa só depois da mais completaconsideração.

“Está certo, Srta. Compenetrada, tem de haver alguma coisa errada. A minhafalta de sorte o exige. De forma que, onde está o senão?”

“Não há senões,” disse ela. “Por enquanto.”“Por enquanto? Então você não confia em Davis? Eu pensei que você gostasse

dele.”“Ele é um excelente advogado.”“Mas você acha que ele é o nosso homem? E será capaz de trabalhar com ele?”“Sim.”“Então, o que é?”“Só não quero ver você elevar muito alto as suas esperanças. Não posso esquecer

– bem, tudo o que houve antes.”Naquele momento o pesadelo do passado estava lá na sala conosco, frio e

palpável.“Eu também não posso esquecer. É por isso que lhe pedi para tomar parte

destacada nesta próxima batalha nos tribunais. Sem a sua ajuda total, e sem a ajudaagressiva de um sujeito como George Davis, eu não tenho chance. Você sabe o tipo deguerra legal total em que estamos metidos.”

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“Sim.” Rosalie permaneceu prática. “Providenciarei para que George receba todasas minhas cópias dos autos da causa – e farei o possível para responder a quaisqueroutras perguntas que ele possa ter.”

Assenti com a cabeça, agradecendo. “E você estará de volta com ele na terça-feira?”

Ela estaria.“Bom. Então, se ele tomar o caso, você e ele podem dar a notícia para os jornais.

No momento, gostaria de ficar o mais possível em segundo plano.”Quinze minutos mais tarde, eu estava de volta à minha cela da morte, andando

incansavelmente de um lado para o outro.

No domingo de manhã, George Davis voltou, dois dias antes do que foraplanejado. Ele tivera uma idéia, e ela o fizera vir correndo. Em questão de minutos, euestava tão entusiasmado quanto ele. Como dois garotinhos felizes, elaboramos ospormenores.

A idéia de George era uma beleza em sua simplicidade e, uma vez posta emprática, fornecer-nos-ia uma alavanca legal de que tínhamos muita necessidade.

Ela se baseava em uma proposição básica da lei: nas audiências ordenadas pelaCorte Suprema, eu tinha direito à assistência efetiva de advogados – de minha própriaescolha. George Davis (juntamente com Rosalie Asher) era a minha escolha, e eleestava disposto e pronto a se tornar meu advogado. Naturalmente, tinha direito deesperar compensação adequada por seus serviços. Nós combinamos honoráriosrazoáveis.

“No entanto,” salientou George, “você está quebrado, e custando vários milharesde dólares a Tio Sam.”

“Esta é a horrível verdade,” concordei, com um sorriso largo. “De maneira quevocê talvez se tenha decidido a aceitar um cheque meu?”

“Caryl, eu não aceitaria um cheque seu nem de quarenta centavos,” caçoou ele.“Mas tenho algo melhor do que isso.”

“Continue.”“Aceitarei sua promessa de escrever um livro, em lugar dos honorários.“Mas o Departamento de Correções, sinto ter de lembrá-lo a você, diz que eu não

posso escrever nada para publicação. Eles me amordaçaram e algemaram.”

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“Caryl, Caryl,” disse George, com tristeza, meneando o charuto para mim comuma das mãos e, com a outra, procurando nos bolsos fósforos que não estavam ali,“será que eu preciso ilustrar isso para você?”

Não foi preciso. Usando aquele acordo como nossa grande alavanca,perfeitamente legal, talvez eu pudesse derrubar a proibição de escrever. Ele forneceriaa meu advogado uma poderosa arma, talvez a decisiva de nosso arsenal. Postoabertamente em questão, estaria meu direito constitucional à assistência efetiva de umadvogado, assim como aquelas garantias constitucionais fundamentais que proíbem asupressão do direito do cidadão, de falar livremente e de não ter sua propriedadearbitrariamente tomada pelo Estado, ao arbítrio deste último.

“Desta forma,” disse George, “nós atacamos o caso em todos os pontosvulneráveis, e uma vez que nos tenhamos apoderado da iniciativa, não vamos dar folga.Contestamos frontalmente não apenas a validade de suas condenações, mas também opropósito da legislação sobre roubos, nos termos da qual, através de umainterpretação que a tornou irreconhecível, você foi condenado à morte. Mais ainda, nósquestionamos diretamente o direito dos funcionários da prisão, de silenciá-lo. Nossoobjetivo final é conseguir um novo julgamento, o que, estou convencido, pode e deveser feito, e depois provarmos para o júri que você não é o Bandido da Luz Vermelha. Eaí está, Caryl, o seu material para um livro, nossa chance de jogar uma bomba na penacapital, e minha oportunidade de determinar se sou mesmo o advogado criminal quegosto de acreditar que sou. Este caso deverá dizê-lo.”

George Davis estava disposto a jogar sua reputação como advogado criminal,uma enorme soma de honorários legais e meses – talvez anos, de sua vida profissional –contra a oportunidade de forçar a abertura do caso Chessman e, ao fazê-lo, expor ainjustiça insensata inerente à aplicação da pena de morte na Califórnia!

“Você acaba de conseguir um cliente, e um negócio.”Trocamos um aperto de mão para selar nosso insólito acordo. Os papéis formais

seriam preparados e assinados em alguns dias. George e Rosalie voltariam para me verna manhã de terça-feira. A sua decisão de me representar seria então anunciada. Outradramática e explosiva série de batalhas judiciais iria começar.

“Você sabe se há um microfone oculto neste lugar?” perguntou George.“Saber não sei, mas estou quase certo que não há. Sou muito desconfiado, e essa

possibilidade costumava me preocupar. De maneira que, algumas vezes que Rosalie me

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visitou, eu pisquei para que soubesse o que ia fazer, baixei a voz e disse-lhe umaenormidade. Uma coisa, como ‘Recebi a arma, sim, está escondida em minha cela. Masacho que eles enviaram o tipo errado de lâminas para serra de arco’.”

George riu baixinho. “Se alguém estivesse ouvindo, os guardas teriam seatropelado na pressa de chegar à sua cela.”

“Exatamente.”“Mesmo assim, a instalação que eles têm aqui é esquisita, e é claro que se

elevarmos a voz acima de um cochicho aquele guarda sentado ali no corredor, logoatrás de você, poderá nos ouvir. Não gosto disso. As relações entre advogado e clientedevem ser absolutamente confidenciais e invioláveis.”

“Eu sei. No Corredor da Morte, apelidamos esta interessante salinha de A Gaiola.Naturalmente, seu nome oficial é muito melhor.”

“Bem, em tempo nós iremos tratar disso. Agora, porém, quero que você meconte tudo o que lhe aconteceu até este momento, neste ano.”

“Tudo?”“Tudo.” Ele acentuou a palavra. Sabia que o êxito no lidar com uma causa,

freqüentemente depende tanto de um completo reconhecimento do cliente, como deuma exaustiva familiaridade com o caso. Estivera estudando as pilhas de documentoslegais; relera 2455, Cela da Morte, e A Lei Quer Que Eu Morra; examinara nossoarquivo de provas, folheara os grossos livros de recortes de jornais, cronologicamentearrumados. Queria sentir o caso.

“Já sei o que os jornais e os tribunais tiveram para dizer. Agora eu quero ahistória como você a viveu. Isto é, se você não se importa em me contar.”

Eu não me importei em contar-lhe, como agora não me importo em contar aomundo.

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CAPÍTULO 3VOCÊ SERÁ AMALDIÇOADOSE O FIZER

AO LEMBRAR O PASSADO, fiquei impressionado com a futilidade de tentar prever ofuturo. Tinha provas concludentes de que meus olhos não eram tão penetrantes assim.Pois, durante os dez primeiros meses de 1955, meus planos mais bem elaborados,concebidos e aperfeiçoados com apaixonada devoção, não deram miseravelmente paratrás? Não fora eu reiteradas vezes obrigado a torcer-me e me virar, a bater em retiradae a fazer rodeios? Portas, que pareciam abertas e desguarnecidas, não se tinhamsubitamente fechado com estrondo, justamente quando eu as alcançava? E, parasublinhar o paradoxo, não tinham outras portas, aparentemente barradas para semprepara mim, tão subitamente se escancarado convidativamente?

Eu reencontrei, faz pouco tempo, a “definição do Calvinismo”, do ReverendoLorenzo Dow. As quatro linhas apegaram-se à minha mente recusando-se a seremdesalojadas:

“Você pode e você não podeVocê fará e você não fará,Você será amaldiçoado se o fizer,Você será amaldiçoado se não o fizer.”

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Tirando-as de seu contexto teológico, e colocando-as em uma moldura secular,elas poderiam ter sido diretamente dirigidas – ou diretamente visadas – a mim. Demodo que o sorriso que elas provocavam, e a mensagem farpada que ensinavamtinham seu lado sinistro. No entanto, durante o ano, eu conseguira rir tantas vezesquanto praguejara. Freqüentemente, fizera as duas coisas ao mesmo tempo.

Este feio e monástico microcosmo, chamado Corredor da Morte, era o únicomundo que eu conhecia. O macrocosmo além dele, com suas maravilhas eacontecimentos quotidianos, há muito começara a borrar-se, até que eu fiqueiseparado dele não só por espaço repleto de barras, paredes e guardas, como tambémpelo tempo. Comecei a existir, contemporaneamente, em uma dimensão diferente dele.Cada um de nós, ao que parecia, possuía uma realidade distinta. Nós nosencontrávamos apenas por procuração, na maior parte das vezes pelos jornais.

Durante todo o ano de 1955, como nos anos precedentes, meu nomefreqüentemente estava em evidência, em negros cabeçalhos e em acalorados editoriais.Se um escritor bilioso precisava de um alvo para sua cólera, eu era invariavelmenteexibido e sujeito a tremenda sova, para a aparente satisfação de todos os interessados.E assim a lenda, de florescimento noturno, de Caryl Chessman, tão bem fertilizada ecuidada, chegou a seu mais pleno desabrochamento.

Como um ateu divertido poderia acompanhar a descrição, feita por um pregadorfundamentalista, do Céu e Inferno e dos perigos do pecado, eu lia os jornais e revistaspara me manter em dia com um mundo que existia, e que no entanto não existia – nãopodia existir – para mim.

Vivendo precariamente, como o fazia, à sombra da câmara de gás, com ocarrasco e o Estado da Califórnia fazendo o impossível para me proporcionar umaolhada interna naquela acaçapada e octogonal câmara da morte, eu achava difícil mealarmar pela ameaça de uma guerra com Bombas-Infernais, ou pelas maquinaçõespolíticas do mundo comunista. Compreendi, entretanto, que a humanidade se deparavacom uma luta ainda mais desafiadora pela sobrevivência do que eu. Estranhamente,havia paralelos em nossos respectivos impasses. E, da mesma forma que a sociedadenão resolveria o seu problema criminal me matando – ou a um milhar, cem mil pessoascomo eu – a humanidade não resolveria seus problemas através de sua auto-destruição.

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1955 foi meu ano sabático(*) como condenado. Mas eu não tive folga. Os vilõesmonstruosos, ao que parece, nunca têm. Mantive-me ocupado em evitar o abraço docarrasco, desviando-me das tijoladas verbais de cidadãos inflamados, lutando pelodireito de ser ouvido, resistindo à guerra total declarada contra mim por meu inimigolegal, verdadeiro Golias, e planejando uma surpresa estonteante para o Estado daCalifórnia.

Inicialmente, minhas preocupações giraram em torno de como resolver asmúltiplas definições de uma palavra – justiça. Na sua base, indo além da culpa ouinocência, ela envolvia duas questões cruciais: em questões criminais, esse brilhanteconceito rotulado justiça judicial visava a ser um catalisador para o bem de todos, ouuma força destrutiva, punitiva, nos “Duques de Ferro” de alguns? Se fosse verdadeiraaquela primeira hipótese, por que ocorria ser a justiça mais freqüentemente infligida,do que aplicada?

Machiavelli dissera:”

Os esforços do homem para abolir a Força sempre se provaram inúteis. (Mas, nãoobstante sua penetrante perspicácia, ele falhou, tão completamente como moralistas,pacifistas e filósofos posteriores, sem perceber por quê). Isto deve ser aceito tãonaturalmente como seu apetite por alimento, e tudo o que um homem pode esperar é queo Poder se encontre ao lado da Justiça, a Força ao lado do Direito. E quanto mais nobre –isto é, mais legal for o Poder que é ministrado... mais abençoadas serão as condições daspessoas sobre as quais é exercido.

Um perigoso non-sequitur de dois gumes, este.Se minha admiração por esse estranho florentino não fosse tão grande, eu teria

saudado o trecho com um “Bah!” de desprezo e depois o expulsaria do espírito. Ele eraessencialmente falso. Podia-se almejar mais, e lutar-se intelectualmente por isso. Mas,prove-se isso; encontre-se o método para demonstrar, acima de qualquer disputa, afalsidade de uma premissa maior que ainda é universalmente aceita, sem controvérsias,mesmo pelas nações mais avançadas do ponto de vista democrático, e futilmentetornada a base para políticas de “paz” e “progresso” e o bem de todos, inclusive o

(*) Na história antiga da Judéia, todo sétimo ano, durante o qual os israelitas eram proibidos de

cultivar suas terras. [N. do T.]

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controle do crime. Com minha vida em jogo, durante anos procurei o método, mas noslugares errados, e com os instrumentos errados. Então, em 1955, fiz uma estupendadescoberta.

E a descoberta explicaria porque Leonard Sacks, ao criticar A Lei Quer Que EuMorra, no número de novembro de 1955, da Revista Jurídica da Universidade de NovaYork, escreveu:

Menos efetivos são os trechos do livro em que Chessman ataca a pena capital deum ponto de vista teórico; ali, sua exposição é freqüentemente confusa (ou perturbadora)e inclusiva Os argumentos básicos – que se deve tentar a reforma, ao invés da punição,que a pena de morte não serve como desestímulo ao crime – são, meritórios ou não, jáfamiliares e sovados.

Isto era verdade; o que é familiar e sovado não excita; por sua própria natureza,eles são incapazes de disparar a imaginação. Mesmo fatos inatacáveis podem vir a serencarados como coisas áridas. Daí, por um lado a crítica era válida, principalmenteporque tanto punha a descoberto a natureza essencial dos seres humanos quanto afalta de “eficiência” retórica – distinta do mérito social, histórica, empírica eteoricamente derivado – de minha exposição, fosse ela “confusa” ou não, naquela seçãodo livro.

Portanto, se eu precisasse teria um perfeito álibi para o que ali escrevera. Mas,para usá-lo, tinha que admitir que a “sociedade” também possuía um perfeito álibipara suas câmaras de execução, e eu não estava disposto a fazer uma concessão tãoespúria. Para o diabo com os álibis! Eles nublavam a questão.

Um homem decidido a cometer suicídio pulando de algum lugar alto, obviamentenão poderia ser dissuadido disso só por ter a lei da gravidade de Newton explicada parasi em termos teóricos, da mesma forma que outro homem, vendo um engenhotermonuclear precipitando-se do céu contra ele, não poderia encontrar nem consolo ousegurança ao ser informado que:

“Bem, você sabe como é. E=mc2, e tudo aquilo.”Se os tribunais cometessem um erro ao pronunciar julgamento, azar do cidadão

supostamente “mau”: seu pescoço não deixaria de se fraturar da mesma forma, quandoele se precipitasse pelo alçapão da forca; a eletricidade o assaria da mesma forma,quando a corrente fosse aplicada; e o gás letal o mataria da mesma forma, quando a

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fumaça fosse inspirada para seus pulmões.A Justiça, se é que existe um ser tão exaltado, é impotente para agir independen-

temente de seus agentes. Eu presenciara tanto de sua violenta obra que, algumas vezes,achava que ela devia mesmo ser uma prostituta facinorosa, sádica e esquizofrênica; ou,como Machiavelli havia dado a entender, uma criatura submissa, conservada – edefendida ou impassivelmente violada – pelo Poder.

Por mais sutilmente racionalizado que seja, o suicídio não é um ato racional; nemo é a guerra; e nem o é a imposição da pena capital, nem a centena de outros atos ouatividades racionalmente indefensáveis desse animal racional, o Homem. Mas,reconhecer este fato, e reforçá-lo com a compreensão científica da psicodinâmica queproduz e justifica a conduta aberrante, tanto no indivíduo como no seu grupo, nãopodem abolir o suicídio, a guerra ou a imposição da pena de morte.

Algo mais se faz necessário.O Poder? Uma autoridade humana, benevolente, toda poderosa, para pôr em

vigor padrões universalmente fixados, para impor e demandar valores “dignos” emoralidade de padrão único? O pervertido experimento marxista revelou a futilidadedesta abordagem.

Você será amaldiçoado se o fizer... se for condenado à morte por crimes que nãocometeu.

E teimosamente conseguir continuar vivo.E ver o seu caso se tornar uma “cause célèbre, inextricavelmente ligada ao valor

da pena de morte como tal”, acompanhado em todo o mundo.E deixar os poderes judiciário, executivo e legislativo do governo de um estado

moderno se colocarem à força na posição insustentável de tentarem vindicar suasações no caso, ao recusarem-se a vindicar você.

E, sendo o alvo de ódio, violência e vingança, disciplinar-se no sentido de rejeitaro ódio, violência e vingança.

E aprender a criar; e agir da maneira que você tem certeza ser a certa, semconsideração com conseqüências pessoais.

E inutilmente tentar renunciar a seu cargo de Cara Malvado – ver essa ofertarecusada com indignação.

E escrever livros sobre temas sociais, dizendo o que você sabe que deve ser dito.E ser aclamado por sua obra, ler que sua “voz vinda das trevas será por muito

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tempo lembrada”, aconteça-lhe o que acontecer.E recusar-se a permanecer em silêncio ou arriscar-se ao cumprimento da ameaça

de destruírem o manuscrito apreendido de um de seus livros.E elaborar secretamente um audacioso plano para escapar de um Corredor da

Morte “à prova de fuga” se os tribunais desta terra persistissem em privá-lo dequalquer oportunidade de provar suas acusações contra a sentença de morte que lhefoi imposta...

Isto, para mim, me custou o tornar-me completamente amaldiçoado, temido,odiado e desprezado. Foi o preço pago por dar início a uma série de explosões e assimpôr em movimento algumas forças sociais, há muito devidas, contra uma untuosa eburocratizada Autoridade, que calmamente chegou à conclusão de que não poderiaestar errada. Foi o preço que eu teria de continuar pagando.

Como outros antes de mim, porém, eu descobri, neste ano de 1955, que minhasalvação estava em não ser salvo, em não estar seguro.

A porta da Cela 2455 do Corredor da Morte fôra aberta para eu entrar, e depoisfechada e trancada atrás de mim na manhã de sábado, três de junho de 1948. Ali,exceto por breves comparecimentos no tribunal superior local, eu permanecera desdeentão. Como resultado, com a lenta e enlouquecedora passagem dos anos, eu ganhei adúbia distinção de ter vivido mais tempo sob sentença de morte, do que qualqueroutro homem condenado nos então 179 anos de história da Nação.

Dia após dia, eu continuei a quebrar meu próprio recorde. Várias vezes, duranteesse período, estive a alguns dias e, às vezes, até a algumas horas e minutos de terminha vida extinta. A tensão deste andar na corda bamba legal, sobre abismos negros esem fundo, deveria ter destruído meu sistema nervoso.

Quase que destruiu.Em julho de 1955, quando comecei a ter hemorragias internas, vomitei sangue e

fiquei tão doente e tonto que literalmente caí de cara no chão, tive uma conversa como médico. Ele cutucou o meu abdome, fez uma porção de perguntas – sim, meuestômago queimava como o diabo, há muito tempo – e me fez um exame clínico.

Eu tinha uma úlcera.Acalme-se, aconselhou o médico. Ambos tivemos um largo sorriso. Sob suas

recomendações, deixei de fumar durante vários meses, reduzi minha ingestão do caféfervido e requentado do Corredor da Morte (capaz de abrir um buraco em um barril

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de ácido), praticamente vivi de leite, suplementando-o com uma dieta leve, e fielmenteengoli o remédio receitado, a todas as horas – até que, alarmantemente, eu descobrique estava ficando cego!

“Doutor”, disse eu, “o que há? O senhor me estufa de pílulas porque tenho umburaco no estômago ou duodeno, e de repente meus olhos dão o prego. Eu ponho umafolha de papel na máquina, martelo as teclas, e vejo as palavras nadando juntas. Écomo tentar ler um trecho em língua estrangeira, submerso em água de roupa suja.Não disse nada no começo, mas está ficando pior. Está tão mal que agora eu preciso deuma lente de aumento para ler os cabeçalhos nos jornais.”

O médico riu e explicou. As pílulas grandes, brancas, com gosto de giz – dotamanho de uma moedinha e do triplo de sua grossura – eram inofensivosneutralizadores de ácidos. Os vilões, como eu suspeitara, eram as outras pílulas querecebera, as pequenas e róseas pílulas, amargas como losna [absinto]. Contendo umasubstância sintética, do tipo da beladona, essas pestinhas agiam diretamente sobre onervo vago do estômago. Este nervo é que acionava o fluxo de ácidos gástricos. Aodeprimir a ação do nervo, as pílulas reduziam radicalmente a produção de ácido,dando, assim, à área ulcerada, uma chance de cicatrizar-se. Um dos efeitos secundáriosdesses pequenos diabinhos eram as travessuras que faziam com a “abertura contrátilda íris”. Resultado, em muitos casos: extrema, embora temporária, dilatação da pupila,e pronunciado prejuízo para a visão.

Eu fiz a pergunta óbvia; normalmente, por quanto tempo teria de continuar otratamento?

De seis meses a um ano.“E o que acontece se eu parar de tomar as pílulas – agora?”Talvez nada mais do que um agudo desconforto; nada mais do que carregar uma

fogueira na barriga, com severos ataques que viriam e talvez iriam embora. Esta erauma possibilidade, e não muito provável. A área ulcerada, por outro lado, deveria ficarpior, se não fosse efetivamente tratada. Poderia sangrar novamente e me deixarbombardeado. Talvez fosse necessária cirurgia de emergência e...

O médico continuou catalogando as feias possibilidades, mas eu já ouvira osuficiente.

Qualquer situação, mesmo quando composta de todos os horrores que o homeme a natureza possam ajuntar, pode se tornar terrível só até certo ponto; depois, ela se

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torna ridícula.Eu dei uma risada. Por uma eternidade, eu fora furiosamente atacado de fora,

sujeito a todas as pressões imagináveis. Agora, estava sendo perfurado por dentro – e,ao que parecia, tinha um sério dilema à minha frente. Só que eu sabia que ambas assoluções poderiam ser más. Aí estava a questão. Parecia que eu tinha a feliz escolhaentre uma morte prematura “calma”, livre de úlceras, com os cumprimentos do Estadoda Califórnia, ou uma existência prolongada, cheia de úlceras. Porque, se eu nãopudesse enxergar, não poderia escrever – livros ou minutas. Estaria desarmado. Minhamáquina de escrever seria inútil. Bela situação!

Novamente eu ri de mim mesmo. Este era um problema com o qual eu nãopoderia ser violento, ou brigar como um louco por causa dele. Subitamente,descobrindo que as emoções primitivas são uma séria responsabilidade, eu tinha queme descartar delas – pelo menos para o momento. Tinha que elaborar uma soluçãoconciliatória com o meu trato digestivo, sem ficar fatalmente comprometido com oEstado da Califórnia.

Enquanto engolia litros de leite e mascava aqueles neutralizadores de ácido, comgosto de giz, como se fossem balas, fui reduzindo os róseos bombardeiros midriáticosaté que, de maneira meio embaçada, consegui ver o que estava fazendo, e fazê-loconservando essa quinta coluna interna sob controle. Para tanto, fui obrigado adesistir dos violentos exercícios físicos que fazia regularmente, desde que viera para oCorredor da Morte. Os exercícios estrênuos, eu descobri, despertavam os ácidos. Paramanter a cabeça clara, tive de relaxar o corpo. E essa vida sedentária, abruptamenteadotada, trouxe espasmos musculares, familiares a atletas que param subitamente detreinar. Os músculos do peito, costas, braços e pernas tinham cãibras que duravamvárias horas.

Por essa época, minha vida se transformara em uma farsa de pesadelo acordado– e o objeto da piada era eu. No entanto, era uma piada bem instrutiva, com umamoral inconfundível.

Preparando-me para fazer a barba numa manhã, parei para estudar o rostoescalavrado no espelho, fitando-me, um tanto embaçadamente. O público, eu o sabia,ficaria desanimado com a imagem. Ela não mostrava um esgar, não se viam chifres oupresas, nem havia um filete de saliva esgarçando-se dos cantos da boca, de lábios cheiose esmagados. Mais ainda, o nariz encorcovado e quebrado, era só isso – um nariz

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encorcovado e quebrado; e, cobertas como estavam pela barba por fazer, as maxilas“audazes, desafiadoras e determinadas”, como as descrevera um repórter, pareciam umtanto comuns. A linha dos cabelos prosseguira em sua lenta retirada porém,surpreendentemente, não havia nenhum grisalho no cabelo castanho, aparado curto; e,embora o rosto fosse velho demais, batido demais, marcado e escalavrado demais paraos trinta e quatro anos de serviço que até então prestara, não obstante ele pareciabem vivo e, na minha opinião, razoavelmente humano. As criancinhas não oconsideravam amedrontador.

Era, em resumo, pelo que eu, seu proprietário, podia ver – um rosto, a útil ecorriqueira propriedade de um condenado, longe de ser bem feito, um tanto sardônicona expressão, e consideravelmente mais funcional do que artístico em seu rústicodesenho. A impressão de conjunto era a de que uma dúzia de escultores divergentestivessem participado na sua modelagem e remodelagem.

E por detrás daquele rosto havia um cérebro – com suas limitações; um espíritoperturbado, cheio de conflitos e contradições, imagens e sonhos, que, contra óbicesformidáveis, lutava pela sobrevivência, tateava, à sua própria maneira e com suaspróprias ferramentas, em busca da verdade, lutava por criar, e procurava mudar a sipróprio e ao mundo.

Acrescente ao rosto e ao cérebro um corpo mesomórfico, de 90 quilos, alto, deombros largos, levemente marcado de velhas feridas de balas e facadas, pálido emvirtude de seu confinamento sem sol, há anos, em uma caverna artificial, há poucotendo passado de seu ápice como máquina de luta, com mãos de dedos longos, de nósesmagados – e aí tem você o indivíduo Caryl Chessman, o simples mortal, desafiador,cercado e às vezes estupidificado.

Quanto ao Caryl Chessman lendário, a coisa era diferente.O ano de 1955 viu o Chessman lendário se tornar (1) O Exemplo Horrível, uma

espécie de portentoso equivalente criminal do “Goop”(*) de Gelett Burgess; (2) umMonstro gabola e dissimulador, secretamente dado a inenarráveis excessos; (3) umaBesta babante, capaz de emporcalhar a inocência com um único olhar de luxúria, e dehipnoticamente pôr a beleza sob um encantamento maléfico; (4) um espantoso Taradosexual, de rondar noturno, saído de um livro de Freud, ou da Caldeira do Diabo, e de

(*) “Goop” – personagem criado por Frank Gelett Burgess, humorista norte-americano.

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volta para lá, se ao menos os tribunais parassem com esse retardamento inconcebível;e (5) um Houdini(**) legal, sem lei, menosprezador da Justiça e agent provocateur,enviado pelo Demônio (ou os comunistas?) para fomentar a desconfiança naAutoridade legalmente constituída.

O máximo em absurdos ocorreu quando certos escribas, impressionados pelaaceitação, pelo público, das lendas, futilmente tentaram destruir sua própria efrankensteiniana criação.

Essa tentativa de descomissionamento foi algo que o público não aceitou; pois ali,no Caryl Chessman da tenebrosa lenda criminal, estava um perfeito objeto de ódio,uma válvula ideal para a hostilidade reprimida, um alvo natural para as frustraçõespessoais e os sentimentos de culpa ocultos, um esplêndido bode expiatório, um conviteaberto para expressar-se sentimentos violentos, uma oportunidade de se tomar umaatitude definida contra o pecado e participar, pelo menos por tabela, de uma batalhacósmica entre o bem e o mal – em suma, uma válvula de segurança para o indivíduo,em uma sociedade que se está tornando, rapidamente, complexa e “civilizada” demais,com os perigos externos a ameaçá-la de maneira muito remota e terrível para que ocidadão possa enfrentá-los em um nível pessoal.

Assim, a lenda cresceu.Talvez eu deveria ter-me sentido lisonjeado, e de cabeça virada por essa súbita

elevação a tais legendárias alturas. Afinal, poucos criminosos na história conheceram“êxito” tão singular, tanto durante suas vidas como postumamente.

Mas eu não fiquei lisonjeado, e minha cabeça não virou. Nem, por mais furiosoque pudesse ficar, às vezes, com o que era impresso e dito a meu respeito, cometi oerro de acreditar que meu problema seria resolvido pela destituição dos destituidores,contadores de lendas e esganiçadores alarmistas, ou por entrar na liça, com trombetastocando e flâmulas esvoaçando, para combater a lenda que trazia meu nome. Nem,pelo contrário, fui tentado a unir forças com esse Chessman lendário, e a procurarcapitalizar a sua duvidosa reputação. Meu senso de humor e integridade não medeixariam fazê-lo.

Além disso, eu já encontrara um uso social muito superior para a lenda; em uma

(**) Houdini – ilusionista e mágico norte-americano, famoso por seus números de fuga e

desaparecimento.

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forma apropriadamente irônica, ela se tornara um poderoso aliado em minha decididacampanha contra o que Harry Elmer Barnes e Negley K. Teeters, criminalistas de famamundial, denominaram de “essa relíquia da barbárie humana”, a pena capital.

Minha epopéia de sofrimento havia atraído a atenção mundial.2455, Cela da Morte, fora publicado não apenas nos Estados Unidos, mas

também na maioria dos países que compreendem o mundo não-comunista. A Lei QuerQue Eu Morra se seguiu. O homem que emergiu das páginas desses livros pareciaestranhamente em contradição com a lenda. Daí o exarcebamento do interesse; quetipo de indivíduo realmente ocupava a Cela 2455 do Corredor da Morte?Dezenas de diretores de jornais e revistas de todo o País, da América Central e do Sul,da Europa, e de outros lugares, enviaram representantes para me entrevistar, eraramente eu deixei de fazer calorosos amigos. Freqüentemente, os que falaramcomigo, em particular as jornalistas, haviam vindo esperando encontrar um demôniosorridente ou rosnador. Ao invés disso, encontraram apenas um homem sitiado, tãointeressado nos seus trabalhos, vidas e terras natais como eles estavam interessadosnele e no problema que se diz que ele simboliza, e o brutal microcosmo onde vive.

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CAPÍTULO 4VOCÊ SERÁ AMALDIÇOADOSE NÃO O FIZER

O ANO COMEÇOU com uma grande dose de melodrama jurídico.Em janeiro de 1955 o carrasco quase me pegou, quando o Juiz Federal do

Distrito, Louis E. Goodman, me expulsou de seu tribunal. Era um habito que SuaExcelência tinha; ele já me dera várias vezes antes o equivalente jurídico da vassouradano cachorro, e manteve sua ficha em perfeita ordem, ao fazê-lo novamente.

Ao indeferir sumariamente uma petição para concessão de habeas corpus,proposta por sugestão da Suprema Corte dos Estados Unidos, o juiz Goodman proferiuuma sentença carregada de retóricas perguntas do tipo: “Quando a roda vai parar degirar? O que devem os cidadãos pensar de nossa administração da justiça, que pareceuma máquina automática de pôr moeda para funcionar?”

O meritíssimo foi aplaudido por ter “falado com bom senso e sem papas nalíngua sobre o abuso da lei e dos tribunais, no caso de Caryl Chessman.”

As palavras destemperadas de parecer foram enviadas por teletipo a todos oscantos do País. Na Califórnia, elas inspiraram violentos sentimentos e artigos de fundoainda mais violentos. Reverberaram na Assembléia Legislativa da Califórnia, noCongresso dos Estados Unidos e em outros fóruns. Encorajaram sujeitos giras ainundarem o Correio com cartas indecentes. Uma dessas mensagens garatujadasameaçava um de meus advogados de então, Berwyn A. (“Ben”) Rice, de morte, e seu

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filhinho de mutilação. Outra guinchava que eu deveria ser “castrado com ummaçarico”.

Sem se intimidar por esse furor, o desembargador Willian Denman, do NonoTribunal de Recursos dos Estados Unidos, certificou haver causa provável para recorrerdo julgado de Goodman, e determinou o adiamento de minha execução iminente.

Então foi um inferno. O juiz Denman foi admoestado por “tornar a Justiça umapalhaçada”, por “tirar o respeito de seu tribunal”, por dar ajuda e conforto a um“inimigo público”. Os advogados Ben Rice e Jerome A. (“Jerry”) Duffy foramaguilhoados por continuarem a me representar em juízo.

Eu era um “estuprador, pervertido, ladrão e raptor”, que fora “condenado poruma sociedade justa a morrer por seus crimes”. E “os cidadãos estão saturados dosrábulas e caçadores de publicidade que se lançam a esses casos para perpetuarconscientemente os abusos, e saturados dos imbecis que os incitam, ao abrigaremcriaturas como Chessman em seus regaços protetores.”

O Tribunal de Recursos manteve a decisão de Goodman através do que,indubitavelmente, foi uma das razões mais originais jamais oferecidas por um tribunalde apelação para acabar com as esperanças de um litigante condenado.

“As numerosas petições que temos diante de nós mostram que Chessman é umapessoa de extraordinária habilidade,” diz o parecer, assinado pelo tribunal pleno,através do desembargador Denman. Os arrazoados que acompanham aquelas petiçõesanteriores, pessoalmente preparados por mim, eram “dignos de um advogado criminalexperiente”, continuava o parecer.

Então, amaldiçoado assim com um elogio tão agourentamente grande, eu leveina cabeça. A espada da lei fuzilou em um golpe – e fora com a minha cabeça delitigante, em um ofuscante truque de prestidigitação.

Pelo que eu podia perceber, o raciocínio silogístico era assim:

PREMISSA MAIOR: Eu era inteligente e por demais habilidoso no manejo da lei paranão ter sempre estado cônscio do crucial significado legal de minhas presentesalegações contra a validade da sentença de morte e das outras. (Eu, naturalmente,estivera cônscio do significado dessas alegações.)

PREMISSA MENOR: Se essas alegações fossem mais do que “lembranças mentirosas”

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(sugeria-se abertamente que nada mais eram do que isso), eu as devia ter apresentadoe encaminhado anteriormente, nos tribunais do Estado. (O parecer deixava de salientarque a essência de minha acusação era de que os tribunais estaduais nunca me haviamconcedido uma audiência e a conseqüente oportunidade de defensor tais alegações.)

CONCLUSÃO: Era tarde demais, “do ponto de vista da lei”, para a intervençãofederal (embora a Suprema Corte dos Estados Unidos, que se supunha ter a últimapalavra em tais assuntos legais, tivesse especificamente se mantido na opiniãocontrária, ao denegar a revisão de minha última sentença adversa, da Corte Supremada Califórnia “sem prejuízo para a aplicação de um pedido de habeas corpus noTribunal Distrital norte-americano apropriado.”)

Este tipo de lógica era capaz de deixar um lógico – ou um litigante condenado,em busca da mais rudimentar espécie de justiça – louco varrido. O público, osfuncionários do Estado e a imprensa, no entanto, estavam intoxicados por ela;achavam-na impecável. Em artigo de primeira página, um jornal de São Franciscocomentou com gozo: “a decantada capacidade de Caryl Chessman como gêniointelectual provou ser sua maior desvantagem ontem, quando...”

Sim, pensei, quando!Nosso breve pedido de nova audiência foi rejeitado. Foi apresentado à tarde, e

sua denegação carimbada na manhã seguinte. Da mesma forma, meu adiamento deexecução se esgotou, e no dia seguinte, 13 de maio, foi marcada nova data para minhaexecução – 15 de julho de 1955. Eu soube desse esperado desenvolvimento nos meusfones de ouvido, durante um boletim de notícias, e sorri. Meu juiz, o excelentíssimo Dr.Charles W. Fricke, refleti, desapontado, continuava em forma.

Novamente, pela sexta vez (a nona, contando dois pedidos de nova audiência euma petição original de habeas corpus), tinha de levar o caso à Corte Suprema dosEstados Unidos, se ainda esperasse conseguir que algum tribunal finalmente julgasseminhas alegações de fato sobre o mérito. E, novamente, houve dramáticascomplicações.

Antes que Rice e Duffy pudessem apresentar nosso pedido formal de remessa dosautos, e tratar de outros pormenores processuais e jurisdicionais, a Suprema Corteentrou em suas férias de verão anuais; só se reuniria novamente em outubro. O

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ministro William O. Douglas, da Corte Suprema, que normalmente tratava de todas asaplicações de adiamento de execução provenientes dos sete estados do oesteperfazendo a nova Circunscrição Judicial, não estava disponível. Deixara o País. Oministro Tom Clark fora designado para funcionar em seu lugar.

Investigando, Ben e Jerry souberam que o Ministro Clark se encontrava em suacasa em Dallas, no Texas. Enviaram-lhe, por via aérea, um pacote registrado, de entregaespecial, contendo nosso requerimento para adiamento de execução e uma cópia dopedido de remessa dos autos, informando-lhe que o caso fora registrado na pauta daCorte Suprema em Washington, D.C. Depois, com o tempo se esgotando, obtiveramalgumas notícias perturbadoras de um amigo meu na United Press; Clark fora paraEstes Park, no Colorado, a fim de presidir à conferência anual dos juízes federais dadécima Circunscrição Judicial!

Será que a aplicação para adiamento e os outros papéis o teriam alcançado antesde partir de Dallas? Sem se arriscarem, Ben e Jerry apressadamente tomaram um aviãopara Denver, no Colorado. Lá, alugaram um carro e correram para Estes Park. Minutosantes de localizarem o ministro Clark, depois de se registrarem em um dos hotéis daestação de férias, Ben telefonou para sua mulher a fim de informá-la de seusprogressos.

“Nós conseguimos,” disse Ben. “E vamos falar com Tom Clark agora mesmo. Rezepor nós. Dentro de uma hora deveremos ter alguma novidade. Se fracassarmos aqui,seguiremos de avião para Washington.”

“Ben, quer dizer que você não soube?” perguntou a sra. Rice, incrédula.“Soube do quê?” disse Ben, com todos os tipos de possibilidades calamitosas se

atropelando no espírito.“Ora, o boletim de notícias,” replicou a sra. Rice.Meu encontro com o carrasco fora desmanchado!O ministro Clark recebera o requerimento antes de sair de Dallas. Pouco antes da

chegada de meus insones advogados ao Colorado, e depois de estudar tanto a aplicaçãocomo o pedido, ele afixara sua assinatura a uma ordem adiando a execução e enviou-aàs pressas para a Corte Suprema em Washington. Lá, os repórteres de agênciastelegráficas, que esperavam uma notícia sobre o caso, souberam do adiamento.

Ben desligou o telefone.“Tarde demais,” disse a Jerry Duffy. Então teve um sorriso largo. “Foi concedida

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a suspensão.”Eu ganhara um pouco mais de tempo. À minha frente jazia uma espera de três

meses em uma “Terra de Ninguém” legal, cheia de minas. Eu ainda acreditava que oEstado da Califórnia tinha direito a mais do que um cadáver, em virtude de todas assuas penas litigiosas.

Não morreria em 1955, mas veria os homens a meu redor levados para seremmortos naquela fábrica de assassínios legais, lá embaixo. A Califórnia conservaria seucarrasco e a câmara de execução suficientemente ativos durante todo o ano, parapassar à frente de todos os demais Estados da União no número de pessoas a quemtirava a vida. Mesmo assim, haveria consideráveis dores de barriga entre osfuncionários, pelo fato de que estava levando muito tempo para executar uma pessoacondenada pelo Estado, em seguida ao proferimento da sentença de morte.

O “notório caso Chessman” era citado como “prova conclusiva da necessidade deuma preocupação menos fastidiosa, da parte dos tribunais, pelos ‘direitos’ deassassinos e raptores condenados e de uma justiça de câmara de gás mais rápida. Asociedade tem direitos, também, e um deles é o direito de exterminar esses cachorrosloucos depressa, sem compunção ou compaixão. A idéia de que camaradas maníacoscomo Chessman não tiveram julgamentos equânimes, ou possam ser inocentes, é purainsensatez.”

Os juízes da nona Circunscrição Federal realizaram sua conferência anual em SãoFrancisco, em fins de junho; e aí também, – quando eu tinha menos de três semanas devida – o caso Chessman figurou em preeminência. A 1.º de julho de 1955 o “Chronicle”,de São Francisco, estampou na sua primeira página um artigo que em parte dizia que:

“Uma medida tornando ilegal a maior parte das petições dirigidas a tribunaisfederais, por facínoras condenados pelo Estado, tais como Caryl Chessman, o autor-prisioneiro condenado de San Quentin, foi aprovada por unanimidade, endossada pelosjuízes federais da nova circunscrição, ontem.”

O artigo afirmava, mais para diante:“A recomendação para alteração da lei foi apresentada à conferência pelo juiz

Louis E. Goodman,” o culto jurista da “roda girando”, que me dera uma recepção tãoquente em janeiro e que, aparentemente ainda não abrandado, advogava agora uma

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nova abordagem para essa importante fase da administração da Justiça; ao invés desugerir leis eficientes que – em casos merecedores, depois de uma audiência plena –permitissem a juízes federais decidirem se homens condenados por um Estado tinhamou não sido constitucionalmente encarcerados, Goodman propunha a aprovação deuma lei que os desproveria completamente do direito e dever de estudar e decidir taiscasos.

Isto, naturalmente, tornaria muito mais fáceis os julgamentos pelos juízes; naverdade, isto os eliminaria completamente! Então o carrasco poderia realmente fazerseu trabalhinho sem ser perturbado por “interferência” do tribunal federal.

O clamor prosseguiu durante todo o ano. Os ataques contra mim foramredobrados. Mas, cada vez mais, ouviam-se vozes calmas.

Os proponentes da pena de morte tiveram um bruto susto no começo do anoquando, conforme foi anunciado por uma notícia da United Press, “a ComissãoJudiciária da Assembléia deixou, por um voto, ontem à noite, de acabar com a sentençade morte na Califórnia durante os próximos cinco anos” em base experimental.

Uma subcomissão interina foi estabelecida para estudar o problema, efetuaraudiências e anunciar suas conclusões para a sessão regular de 1957, da AssembléiaLegislativa da Califórnia.

A pena capital fora posta em julgamento, e agora seus autoritários eapoquentados advogados sentiram que os velhos e cansados argumentos não poderiamsuster o barco muito tempo mais. No entender desses defensores da retaguarda, dajustiça retributiva, faziam-se necessárias táticas diversionárias. Muitas dessas tentativasderam para trás. Sempre que possível eu colaborei nisso.

Procurei manter minha luta pessoal pela sobrevivência e meu ataque contra apena capital separados, mas aqueles que se opunham a mim não admitiam isso.Insistindo em que os dois “problemas” deveriam ser considerados juntos, elescometeram seu mais grave erro tático; ao invés de ser seriamente enfraquecida, minhaposição ficou dez vezes mais reforçada. É sempre mais fácil disputar uma guerra, doque duas.

A Lei Quer Que Eu Morra foi publicado em julho de 1955, justamente quatrodias antes do que fora marcado para ser executado. O livro admitia, livremente, minharaivosa parcialidade contra as câmaras de morte, cadafalsos e cadeiras elétricas, eminha determinada intenção de tornar todos os carrascos desempregados:

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No entanto [disse Leonard Sacks em sua crítica do livro na Revista Jurídica daUniversidade de Nova York], os argumentos contra a pena capital estão brilhantementeapresentados, tanto pelo próprio livro como pela exibição de promessa demonstrada peloautor, que faz com que sua execução pareça uma trágica perda. O livro, às vezes, talvez[na verdade, não] inadvertidamente, é muito significativo ao ilustrar a tortura mental doshomens condenados que esperam o carrasco. Chessman salienta isso da maneira maisvívida, quando descreve seus próprios pensamentos e atividades, à medida que sãomarcadas as datas de execução, concedidas suspensões, e marcadas novas datas deexecução. O resultado é descrever a execução legal como um processo que rebaixa nossasociedade, um processo indigno do estudo de civilização que buscamos atingir [o negrito émeu].

Aquela sentença em negrito resume incisivamente a resposta final à pena capital.As execuções legais rebaixam, sem necessidade, a nossa sociedade; são, sem dúvida,indignas do estado de civilização que buscamos atingir.

Lá estava o mal essencial.A crítica prosseguia:

Além disso, o autor sustenta que seu companheiros não eram criminososempedernidos, ou “monstros” merecedores da morte, mas pessoas estonteadas,condenadas pelos caprichos de um sistema legal que deve, necessariamente, distribuir suajustiça em uma base subjetiva, dependendo da interpretação, pelo júri, dos fatos, dassimpatias do juiz, ou da competência dos respectivos advogados.

O sr. Sacks poderia ter acrescentado: ou os métodos e ambições políticas depromotores, a atitude usualmente parcial da imprensa, a paixão do público, e o estadode solvência do denunciado.

E havia as fraquezas inerentes à pena de morte. Elas motivavam e continuariama motivar o mau conceito da administração da justiça. Elas, e a filosofia anacrônica quejustifica e canta as virtudes do assassínio legal. Aqueles dispostos a me considerarresponsável pelas fraquezas, estão cegos. É como insistir que dois mais dois seria iguala sete, não fosse por causa de Caryl Chessman. Era infantil o tornar-me um bodeexpiatório. Eu havia conseguido meramente trazer à força essa ridícula adição social

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para a atenção do público, através da teimosa disputa do meu caso, e das minhasobras. A violência da reação oficial e do público significava apenas que a parte maisdifícil da tarefa que dispusera para mim mesmo, ainda estava à frente.

Talvez tão à frente como a Sessão Regular de 1957 da Assembléia da Califórnia.Talvez ainda mais à frente.

Harley O. Teets, diretor de San Quentin, havia apreendido o original domanuscrito de A Lei Quer Que Eu Morra, provando a validade do seu título, quando euprocurei entregá-lo à minha advogada Rosalie S. Asher. Vários dias depois eu soube,pelos jornais, de alguma nova razão, de acordo com os funcionários penitenciários daCalifórnia, pela qual o novo manuscrito me fora arrebatado. Para mim essas razões,todas elas, traziam a convicção que a gente geralmente encontra, quando a burocraciaé pegada desprevenida e fica aborrecida porque alguém, e em especial um presocondenado, tem o inconcebível desplante de exigir uma prestação de contas sua.

Melvin Belli, o famoso advogado especializado em defesa de lesões pessoais, foium entre um vasto número de pessoas preeminentes que teve mordazes comentários afazer, concernentes a essa providência. “Mesmo na Idade das Trevas,” observou,causticamente, “os prisioneiros eram autorizados a escrever e a publicar suas obras”.

Na Idade das Trevas sim, mas, em nossa era iluminada, e neste Estado iluminado– NÃO! Era, por certo, um segredo de polichinelo o porquê do meu silenciamento.

Mel Belli ofereceu-me seus serviços para lutar contra essa proibição de escrever.Ele e a srta. Asher levaram o caso ao tribunal federal. Dêem aos tribunais estaduaisuma oportunidade de agir no assunto primeiro, foram eles informados. Tomaram-se,então providências legais no Tribunal Superior do Condado de Marin. Mas, antes que aquestão pudesse ser resolvida ali, Clarence Linn, Assistente Principal da PromotoriaGeral da Califórnia e um velho inimigo forense meu, disse aos jornalistas que omanuscrito era propriedade do Estado.

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CAPÍTULO 5UM SEGREDO DIGNODE SE CONHECER

GRANDES ADVOGADOS CRIMINAIS são uma espécie rara.E, uma vez mortos, para citar as palavras de Marvin Henry Bovee, eles, como os

grandes guerreiros e os grandes terremotos, “são principalmente lembrados pelosmales que causaram,” mesmo quando esses supostos “males” na verdade tenham sidoimportantes serviços prestados à causa da liberdade.

Não existem dois iguais.Eles têm sido homens melancólicos e homens risonhos, de todas as colorações

políticas, ou de nenhuma.Um deles, talvez o maior de todos, ouviu sua própria condenação à prisão por

um crime que não cometera. “Sairei e soltarei suas prostitutas, cafetões e assassinos,”gritou, em amargo protesto – e conservou sua palavra, com uma espantosa vingança.Dos 350 assassinos que defendeu, nenhum teve o laço da forca colocado no pescoço,ou sentiu a nauseante queda através do alçapão do cadafalso. Um feito lendário este,porque o velho mestre praticava a advocacia em um tempo e lugar notórios pelos seusjuízes, propensos a sentenciar à forca, e de justiça crua, de terra de gado.

Tiveram seus vícios; e quem for exigente poderá depreciar seus métodos, masnão poderá duvidar de sua coragem. Nenhuma turba, nenhuma dose de paixãopopular, poderia intimidá-los. Eles combateram com tudo o que tinham na defesa do

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mais torpe, mais odiado cliente.Quem o teria feito de outra maneira? A lei dá ao promotor uma espada – e a

Justiça fornece ao réu um escudo. Sem aquele escudo – e alguém habilidoso em seu usodefensivo – o inocente, assim como o culpado, são impotentes quando acusados deterem cometido um crime.Os ditadores conhecem o perigo das leis, advogados e constituições, que não podemdobrar à sua vontade arbitrária. Quem, por exemplo, fala em nome dos azarados réusnos “Tribunais do Povo”, na China Vermelha? Nenhum Samuel Liebowitz, nenhum EarlRogers. E é possível conceber-se um Clarence Darrow sendo autorizado a funcionarcomo defensor para o cardeal Mindszenty na Hungria, ou um Monman Pruiett comopatrono do carniceiro Laurenti Beria na Rússia?

Os grandes advogados criminais de uma nação são uma espécie rara e, emboraeu o duvide, talvez uma espécie em vias de extinção. Nossa era de conformidade, comseu pensamento de rebanho, temores em massa e pressões de torniquete, ameaça-os deextinção. Felizmente, há convincentes provas de que a espécie é dura de morrer. Elanunca se renderá passivamente à conformidade.

“Nenhum homem,” observou Samuel Johnson, “jamais se tornou grande porimitação.”

O que, então, produz grandes advogados criminais? Eis aqui uma respostacomplexa porém concreta. Curiosamente, ela demonstrará que Moses Crowellprovavelmente se expressou melhor quando escreveu que:

“É um segredo digno de conhecer-se o de que os advogados raramente vão ajulgamento.”

A cena desenrolou-se em uma sala de sessões, no velho Palácio da Justiça de SãoFrancisco. A acusação contra o jovem réu era assassínio, o alvejamento fatal epremeditado de sua sogra enquanto, em sua própria casa, ela segurava o filho do réunos braços.

O caso fora sensacionalisticamente exacerbado pela imprensa, e o promotorapresentara uma série de provas aparentemente condenadoras. Em sua peroração parao júri, ele não deixara pedra sobre pedra. Pedira uma condenação por assassínio emprimeiro grau e a pena de morte. Insistira, desde o começo do julgamento, em que oEstado não aceitaria menos do que isso.

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“Não sejam conciliatórios!” trovejou ele, depois de ridicularizar a alegação de queo tiro fora um acidente. “Cumpram o seu dever! Façam com que futuros assassinos asangue frio saibam o que esperar! O réu perdeu o seu direito à vida!”

Depois, fora a vez do defensor do réu falar pelo seu jovem e amedrontadocliente. Aproximou-se dos doze jurados confiantemente, relanceando o olhar pelosrostos severos.

“O promotor lhes disse para não serem conciliatórios,” começou êle,quietamente. “Eu também lhes peço para não serem conciliatórios – com o seu sensocomum, sua compreensão da natureza humana sob extrema tensão emocional, ou suaconsciência.”

O advogado de defesa dirigiu um olhar esturricante ao promotor e voltou-senovamente para o júri. “Eu sei e os senhores sabem, que este não é um caso deassassínio em primeiro grau. Na verdade, não é nem um caso de assassínio!”

Esta última sentença latejou pela sala de sessões. A cabeça do promotor ergue-senum arranco. Os que estavam na mesa da imprensa abandonaram sua pose deindiferença relaxada. Haviam esperado um pedido comum de clemência. O júrisobressaltado, olhou interrogativamente para o advogado de defesa. Não era um casode assassínio?

O defensor tinha, agora, a atenção total dos jurados; ele nunca mais a perdeu.Seu argumento final foi fascinante. O tempo foi esquecido enquanto sua voz se elevavae caía.

Então, ele resumiu o caso. As provas trazidas a julgamento revelavam,incontestavelmente, que o réu amava seus filhos. Ficou tonto de desespero quando suaesposa o deixou, depois de uma briga, e levou as crianças para morar com a mãe dela.Ele lá fora para convencer a esposa a voltar para o lar. Como símbolo de suadeterminação cega, ao invés de uma arma para o cometimento de homicídio, ele levaraconsigo um revólver. Houve uma cena na sala de estar. Sua sogra, segurando o seufilho mais novo nos braços, ordenara-lhe que fosse embora. Ele gesticulara com orevólver e implorara para ver a mulher.

A sogra gritou com ele, ameaçou-o. Ele se esquecera de que tinha um revólver namão, até ouvir o seu estrondo. A bala por pouco não acertou no garotinho, e atingiu asogra. Ela resvalou ao solo, morta. Mesmo um atirador perito não teria ousado tal tiro.Foi apenas por um milagre que a criança não fora acertada. A arma tinha descarregado

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acidentalmente, no calor da cena emocional. Ele não poderia ter assassinado alguémconscientemente, diante do menininho a quem adorava, e cujo amor e respeito queriamais do que tudo. Isto era inconcebível. Se tivesse tencionado ferir a sogra, tê-lo-iafeito com as mãos, e certamente não teria arriscado a vida de seu filho.

O advogado de defesa fez um aceno de cabeça em direção ao réu. “Para o restoda vida este jovem terá de responder à sua consciência pelas suas ações. Eu nãodesculpo o que ele fez; eu não peço que o desculpem. O propósito deste julgamento,porém, não é chegar a um julgamento moral, mas a um julgamento legal. De acordocom isso, devemos aplicar padrões legais. Daqui a pouco o juiz os instruirá sobre alegislação aplicável. O promotor insistiu em que os senhores pronunciem um veredictode assassínio em primeiro grau, ou então nada. Muito bem, então deve ser nada.”

“Muito obrigado,” disse o defensor e sentou-se, exausto. Para ele, aquelas últimashoras perante o júri tinham sido agoniadas. Ele ouviu distraidamente o promotorprocurar destruir sua argumentação como sendo nada mais do que “virtuosidadehistriônica” e reafirmou a exigência incondicional do Estado, por uma condenação deassassínio em primeiro grau e a pena de morte.

Depois de horas de deliberações, os jurados retornaram a seus lugares.“Membros do júri,” disse o juiz, “chegaram a um veredicto?”O porta-voz levantou-se. “Chegamos, meritíssimo.”Uma longa pausa. Então o veredicto foi lido:“Consideramos que o réu... é inocente.”George T. Davis repetira seus êxitos.Um repórter acorreu. “Diga-me, Sr. Davis, desta vez o senhor não acha que foi

apenas bafejado pela sorte?”George encolheu os ombros. “Talvez. E agora diga-me, meu prezado jovem amigo

jornalista, você não acha que foi bom eu ter tido sorte?”

À medida que sua fama crescia, aumentava o número de pessoas em maus lençóisque desejavam seu auxílio. Se ele fora dez homens, ainda assim não poderia ter-seencarregado da defesa de todas elas. Como resultado, foi obrigado a selecionar seuscasos. 0 fato determinante naqueles que selecionava não era o montante da contabancária do cliente ou a promessa que o caso oferecia, de acrescentar mais brilho à suareputação. O ouro e a glória nunca eram bastantes.

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George é um ferrenho adversário da pena capital. “Para mim, é difícil distinguirentre um assassínio cometido pelo indivíduo e um cometido pelo Estado,” tem dito ele.“A morte infligida pelo Estado, em minha opinião, revela apenas uma abismal falta deimaginação. Nós dizemos que tirar a vida é errado e então damos o exemplo.”

Os arquivos desse grupo de advogados criminais altamente selecionado, que seencarregaram e venceram casos “impossíveis”, emoldura a mais definitiva condenaçãoda pena capital que poderia ser feita; sob nosso sistema de administrar justiça, comsuas verificações e garantias, a pena de morte foi imposta quase que exclusivamentecontra aqueles que não tiveram a boa sorte de serem defendidos por um George T.Davis!

Uma segunda escola, de estilo “as-uvas-estão-verdes”,(*) tentou destruir Davis.Freqüentemente ele tem sido menosprezado como um advogado “de sorte”.

Uma vez, depois de uma rápida ida a uma loja de novidades, ele entrou na sala deimprensa do Palácio da justiça de uma grande cidade da Califórnia. Fora informado deque um repórter embriagado estava manifestando-se em altas vozes contra Davis.

O repórter olhou de soslaio para George. “Ora, falai no mal, aprontai o pau!Muito bem, seus adoradores de heróis, aqui está ele em pessoa: o fabuloso Sr. GeorgeDavis, o único e legítimo advogado de sorte do mundo. Ele é capaz de cair numaprivada legal e safar-se sorrindo como um anúncio da pasta de dentes, e perfumadocomo um canteiro de rosas. Revistem-no e provavelmente vocês encontrarão um pé decoelho em cada bolso!”

O sorriso aberto de George não tinha malícia. O repórter observou, fascinado dehorror, Mr. D. começar, calma e casualmente, como se fosse a coisa mais natural domundo, a extrair um pé de coelho de cada um de seus bolsos!

“Meus clientes,” disse ele, “precisam de um advogado de sorte. E o secretário deseu jornal? Você não acha que ele encontraria uso para um repórter de sorte,também?”

E quando o jornalista de olhos esbugalhados reparou, tinham-lhe sido entreguesnove pés de coelho, e George fora embora. Ele fitou aqueles símbolos de boa sorte porlongo tempo; então o pleno significado do humor quixotesco de George o atingiu. O

(*) Pessoas que desdenham aquilo que invejam e não podem obter, como a raposa da fábula de La

Fontaine (“A raposa e as uvas”).

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repórter deu uma gargalhada. A partir daquele momento, George Davis tinha um novofã.

Assim é Davis, dentro ou fora dos tribunais. Sua função era a de defenderclientes, não a si próprio. Aprendera que a inocência nem sempre é o bastante. Destaforma, quando necessário, podia ser mestre de espetáculos, mágico, encantador deaudiências e ator de segunda classe. Mas eram sempre papéis. Ele era um lutador nato,mas não um lutador mesquinho. Adorava o rebuliço da arena judicial, as demandas queela impunha à argúcia do espírito. No entanto, ao se estudá-lo mais profundamente,verificava-se ser ele um homem dos mais sociais e mais compreensivos.

Em 1903, Thomas Duvaras, um menino imigrante de Kalamata, Grécia, chegouaos Estados Unidos. Encontrou trabalho como trocador de ônibus, lutou com a novalíngua, economizou seus centavos, elevou-se à posição de garçom e mais tarde,sucessivamente, a chefe dos garçons e mâitre d’hotel. Apaixonou-se por EmmaKalchhauser, uma bonita moça alemã. Casaram-se em 1906, em Chicago. Um empregomelhor para Thomas os levou a St. Louis. Lá, a 29 de maio de 1907, nasceu seu únicofilho, um menino. Papai Duvaras distribuiu charutos.

“Nosso Georginho, ele é um belo menino. Ele – como se diz? – será alguma coisa.Ele será um bom homem e um bom norte-americano.”

Em 1910, mudaram-se para São Francisco. O nome da família foi encurtado paraDavis. “Não queremos que outros meninos pensem que nosso George é um estrangeiro.Isto poderia não ser muito bom.”

George, jovem risonho e atarracado, freqüentou uma escola primária de SãoFrancisco, o Ginásio de Marysville, o Colégio de Sacramento High e Sacramento Júnior.Diplomou-se em filosofia em 1928. Como o fizera durante seu último ano de ginásio,curso clássico e universidade, trabalhou para poder freqüentar a faculdade de Direito,tocando pistons e bateria nas bandas locais, à noite, e servindo como diretor de um dosplaygrounds de São Francisco nos fins de semana. O seu horário era apertado, masparecia dar-se bem com ele. Até achou tempo, numas férias de verão, para zarpar devapor de frete, em viagem ao redor do mundo.

Durante três anos, na faculdade de direito da Universidade da Califórnia, afamosa Boalt Hall, ele compilou uma impressionante bagagem de cultura escolástica e,orientado pelo Dr. Herman Adler, devotou especial estudo ao crescente papel da

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psiquiatria na legislação criminal. Colou grau em Direito em 1931.Pouco depois, prestou os exames de prática. Enquanto esperava pela notícia de

aprovação, e antes, ainda, de ser autorizado a exercer a profissão, Matt Brady,Promotor distrital de São Francisco, admitiu-o em seu escritório. George recebeu umtítulo imponente: “Promotor Distrital Assistente, encarregado de pesquisaspsiquiátricas.” Aprendeu como funcionava o escritório de um promotor; participou dabem-sucedida campanha de Matt Brady para reeleição ao cargo. Ambas as experiênciasforam inestimáveis antevisões dos fatos da vida política e da promotoria, que não seensinam na faculdade de Direito.

Mas a vida de um político, e promotor de uma grande cidade, não era para ele.Em 1932, renunciou a seu cargo no escritório do Promotor Distrital. Tinha vinte ecinco anos quando montou banca.

Havia apenas acabado de pendurar sua tabuleta, quando os jornais da área dabaía estouraram com a história do “Massacre de St. Mary’s Park”.

No bairro de St. Mary’s Park, da cidade, um homem fora visto por um vizinho aointrometer-se na casa de uma família que estava de férias. A polícia cercou a casa ecomeçou uma busca de sala em sala. O ladrão foi finalmente localizado no salão, ondeestava escondido.

“Lá está ele! Atrás do rádio!”“Cuidado! Ele está armado!”Balas zuniram, enterrando-se nas paredes e no teto. Quando o ladrão foi

agarrado, de arma na mão, havia cinco policiais mortos e um ferido. Cinco mais umperfaziam seis, o número exato de tiros disparados pelo ladrão, um jovem ex-presidiário da penitenciária de Utah. O ladrão havia abatido a tiros e a sangue frioaqueles bravos defensores da lei e da ordem.

Pelo menos esta foi a versão dos jornais e da promotoria, e o júri a aceitou.Glenn Johnson, o ladrão, foi condenado a morrer na forca em San Quentin. Aceitou seufim filosoficamente; sabia, desde o começo, que não tinha chance, e ficara divertido eespantado pela combativa defesa dele feita pelo seu jovem advogado, George T. Davis.

George havia afirmado que os policiais, ao invés de ordenarem a seu cliente quese entregasse, como ele o teria feito, começaram a disparar e então atiraram uns nosoutros. (Johnson lhe contara, em uma conferência antes do julgamento: “Eles não

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disseram absolutamente nada. Só começaram a disparar. Eu fiquei com um medo dosdiabos, imaginando que eles pretendessem me matar ali mesmo. Sem pensar, comecei adisparar minha arma. Não poderia ter acertado em todos eles. Não tenho nem certezade que atingi um dêles. Eles devem ter-se matado uns aos outros.”)

George desafiou o promotor distrital a trazer, perante o júri, os resultados dosexames post-mortem. O promotor distrital se recusou; conseguiu conservar suprimidaaquela prova definitiva, desta forma garantindo a obtenção de uma pena capital.George atacou acerbamente seu velho patrão por fazê-lo. Jurou que nunca novamenteum cliente seu perderia a vida por ter um promotor se recusado a produzir provas,mesmo se isto significasse ser citado por desrespeito ao tribunal, ou coisa pior.

“George,” disse-lhe Matt Brady, em particular, “seja razoável. A manutenção daconfiança pública na polícia é sempre a consideração fundamental. Será que você nãoentende isso, e a posição em que eu estava?”

George sorriu sem alegria. “Sim,” disse ele, “entendo muito bem. Bem demais.”“Não deixe isso abatê-lo,” disse Glenn Johnson, em uma última reunião com seu

defensor, antes de ser transferido, através da baía, para San Quentin. “Você fez umtrabalho formidável. Só que lhe deram uma mão de um baralho marcado. Mas veja ascoisas desta maneira: você aprendeu muito. Agora, você sabe o que terá pela frente.”

O carrasco de San Quentin nunca mais reclamou outro cliente de Davis. Georgeapareceu como defensor em um segundo julgamento por assassínio, algumas semanasmais tarde, e desta vez estava preparado.

Bertha Berger era acusada de ter morto a tiros o marido, com um rifle calibre22. O Estado pô-la em julgamento pedindo a pena de morte, afirmando que Berthamatara com malícia preconcebida. Ela jurou que o tiro fora acidental. O marido voltarapara casa bêbado, ameaçando espancá-la. Ela tomara o rifle para proteger-se. Ele agar-rou o rifle e, na luta, a arma disparou quando a mão dele bateu no gatilho. Na verdade,ele próprio se matara.

O Estado levou um perito ao banco das testemunhas para depor que a arma nãopoderia ter disparado acidentalmente do modo alegado pela ré. George pegou o rifle epediu ao perito que mostrasse ao júri porque e como isto era impossível. “Nósreproduziremos o que aconteceu,” sugeriu. “Eu serei o réu, e o senhor, o morto.”

O perito, confiante, agarrou o cano; subitamente, George mudou de posição. A

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mão do perito escorregou e bateu no gatilho. Ouviu-se o click da batida do gatilho; operito e o promotor enrubesceram.

“Parece que o senhor acaba de se matar,” disse George. (“Aquêle click poderia tersido ouvido a três salões de distância,” recorda George. “Antecipando o que opromotor faria, eu praticara com um modelo exato daquele rifle 22 por semanas.”)

Bertha foi absolvida.

Um escritório de advocacia do este, representando Tom Mooney, estavaprocurando um advogado agressivo, na área de São Francisco, para trabalhar no casoem nível local. George foi recomendado por William Denman, posteriormente ministro-presidente do Tribunal de Apcelações dos Estados Unidos. Mooney, o controvertidolíder trabalhista condenado, juntamente com outro indivíduo, por assassínio nonotório atentado com bombas, no Dia da Preparação, durante a Primeira GuerraMundial, estivera em San Quentin por quinze anos. Originariamente ele foi condenadoà forca, mas aquela sentença fora comutada para prisão perpétua quando, insistindoem que ele fora vítima de um conluio e estava sendo transformado em mártir, asfileiras trabalhistas protestaram longa e violentamente.

George lutou brilhantemente em defesa de Mooney, e por fim obteve plenoperdão para seu famoso cliente. No processo, obteve da Corte Suprema dos EstadosUnidos uma decisão importante e sem precedentes para o efeito de que o falsotestemunho, conscientemente usado pela promotoria para obter uma condenação,constituía uma violação do Artigo sobre Direito Processual encontrado na décima-quarta emenda da Constituição dos Estados Unidos.

Então, justamente quando sua carreira se estava aproximando da maré cheia, asegunda guerra mundial engolfou os Estados Unidos. Sem procurar arranjar um postode oficial ou um cargo fácil, George alistou-se no exército como soldado raso. Quatroanos mais tarde, como oficial, deu baixa com um comissionamento de reserva e umaótima folha de serviço. Servira com um batalhão de combate da P.E., e no escritório doJuiz Curador. Sua emocionante investigação de uma rede de espionagem mundial olevara à América do Sul, Turquia e demais países europeus.

Ao retornar à vida civil, trabalhou, por breve período, em incumbência especial,no escritório do promotor distrital de São Francisco. Novamente, ao começar a irritar-se com o regime de trabalho, compreendeu que seu lugar era na mesa dos advogados

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da defesa e voltou, para sempre, à advocacia particular.

Em 1948, defendeu Kenneth Long, um jovem soldado que pensava ter morto amulher. Ao conseguir introduzir, como prova, uma gravação em fita das declarações deLong sob a influência do pentotato de sódio, um “soro da verdade” administrado porum antigo psiquiatra da Marinha, estabeleceu outro marco pioneiro no processo dejulgamentos norte-americano. Casou-se. Tornou-se líder da campanha presidencial deHarry Truman na Califórnia do Norte, e viu-o ganhar, confundindo os peritos. Recusouuma oferta de juizado federal. Aceitou Alfred Krupp e Friedrich Flick como clientes.

Os acontecimentos dos seus quatro anos seguintes encheriam uma dúzia delivros. Ao terminar o quadriênio, ele se estabelecera firmemente como um dosprincipais advogados criminais da nação. Então, em um dia de outubro de 1955,recebeu um telefonema de Sacramento. “O sr. Chessman gostaria de discutir com osenhor a possibilidade de o senhor representá-lo.” disse-lhe a advogada Rosalie S.Asher. “O senhor acha que estaria interessado em encarregar-se do caso?”

O caso Chessman... Era o sonho de um advogado, ou o seu pesadelo, dependendodo advogado. Sim, disse ele sem hesitação. Estava interessado. Estava definitivamenteinteressado.

George Davis caminhou até a larga janela do escritório em seu apartamento, noelegante bairro de Pacific Heights, em São Francisco, a amada e cosmopolita cidade desua infância. Era quase madrugada – ele trabalhara a noite inteira – e uma frente denevoeiro se aproximava lentamente. As luzes piscavam nas docas. Uma sirena denevoeiro gemia monotonamente. Mais abaixo, na baía, ele podia divisar a ilha deAlcatraz, a penitenciária do governo federal.

Voltou-se novamente para a mesa. Com quarenta e oito anos, estava no ápice desua carreira. E agora, tinha um caso que exigiria o máximo de sua habilidade. Quantomais mergulhava nele, mais o caso de Chessman disparava a sua imaginação. Olhoupara um gordo volume da Transcrição de Notas do escrivão, e os nove grossos volumesda disputada Transcrição do Escrivão da Corte, do julgamento original, nos quais o seucliente condenado se defendera. Relanecou o olhar pelo pequeno arranha-céu dearrazoados legais, petições, requerimentos baseados em equidade e o monte de outrosdocumentos, a maioria deles preparados em uma cela da morte, e relativos a mais de

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cinqüenta ações legais diferentes. Seus olhos repousaram na lista de pareceresreportados sobre o caso.

O Povo contra Chessman (1950)... Chessman contra a Califórnia (1953)... In ReChessman (1954)... O Povo contra o Tribunal Superior e In Re Chessman (1954)...Aplicação de Chessman (1955)... Chessman contra Teets (1955)... Estes eram algunsdos relatórios que estudara, e havia outros – muitos outros. O Povo contra Knowles(1950) era um deles. Esta fora a dividida decisão, de quatro votos contra três vencidos,da Corte Suprema da Califórnia, que fizera com que a altamente controvertida Seção209 do Código Penal da Califórnia (a chamada lei do pequeno Lindbergh), sofresse umaemenda durante a sessão regular de 1951, da Assembléia Legislativa da Califórnia. Oanômalo resultado fora que Chessman fora julgado, condenado e sentenciado à mortepor “rapto” técnico para o propósito de roubo, um ato que, aparentemente, não maisseria punível nos termos da lei regulamentada.

Enumerada ainda estava a extensa disputa perante a Suprema Côrte dos EstadosUnidos. Chessman contra a Califórnia... houve quatro ações desse tipo, de 1950 a1954. A segunda, em 1950, era uma moção solicitando permissão para apresentar opedido original de habeas corpus. Foi denegada, como o foram outras moções parareexame do caso. Chessman contra Teets (1955) “N.º 196,” leu Davis. Termo deoutubro de 1955, remessa de autos concedida, reformada decisão do Nono Tribunal deRecursos, e causa reenviada ao Tribunal Distrital para uma audiência, 350 U.S. 3.”

Inquestionavelmente, era o caso de pena capital mais extensamente disputadonos anais legais norte-americanos. E sua eventual resolução prometia acrescentar maispáginas fundamentais para a história do lento, e às vezes convulsivo, desenvolvimentoda lei.

Davis chamou sua entrada no caso de “o maior desafio que jamais espereienfrentar, como advogado e como pessoa.” “Em certos pontos,” acrescentara, “éimpressionante saber que em minhas mãos está, agora, a responsabilidade pelo queacontecerá a Caryl Chessman. Duvido que a história me perdoe se eu falhar.”

Antegozando o fragor do combate legal contra terríveis inimigos, ele nãoconsiderava a possibilidade de fracasso. Ao mesmo tempo, estava plenamente cônscioda guerrilha que seria uma constante fonte de perturbação. Seria confrontado porfranco-atiradores fora dos tribunais, além da soldadesca treinada, do inimigo legal,dentro da arena judicial.

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Já recebera cartas anônimas e telefonemas fustigando-o por, conforme declaravaum missivista desequilibrado, vir em ajuda “daquele sujo, viciado [maníaco] e filho deuma cadela que é Chessman.” E, advertia um segundo, “É melhor que você não venhacom nenhum de seus truques de rábula, senão eu o pegarei.”

Sua longa e finalmente bem sucedida luta para tirar Tom Mooney da prisãoquase que resultou, mais tarde, na destruição de sua carreira no exército e de suareputação. Um antigo dono de jornal, então coronel do serviço secreto, que se opuseraviolentamente à libertação de Mooney, enviou um relatório falso, porémsuperficialmente plausível e confidencial, a seu general, segundo o qual George Davis,cujo amor pela democracia é tão grande quanto o de qualquer de nós, era umassociado de radicais e possivelmente um elemento subversivo. A “prova”: George foraadvogado de Mooney; fizera discursos em favor de seu cliente; e, para coroar a série deabsurdos, por ocasião da morte de Mooney, fora um dos carregadores honorários docaixão, no funeral do líder trabalhista.

Inicialmente, não houvera razão para questionar o relatório. Foi baixada umaordem no sentido de que, a menos que George fosse imediatamente transferido paraum cargo não essencial (e, portanto, estigmatizado), nenhum relatório vital do serviçosecreto seria mais enviado para a área de defesa da qual o sargento Davis estavaincumbido. Era tempo, George soube de como fora caluniado. Foi a seu general, que oouviu com atenção e depois fez um barulho dos diabos. O general se recusou adestituir George; ameaçou levar o caso ao Pentágono, e a fazer o coronel se identificarpublicamente, se a ordem não fosse prontamente rescindida. Uma rigorosainvestigação inocentou completamente Davis.

Depois, havia o juiz federal perante o qual comparecera como defensor do réu,em uma série de julgamentos de júri, muito disputados. Todas as vezes os réus foramabsolvidos, e o juiz ficou cada vez mais indisposto. Quando, no último caso, umexecutivo por evasão ao imposto de renda, foi anunciado o veredicto de inocente, o juizverberou o júri.

O porta-voz dos jurados inflamou-se. “Meritíssimo, creio que V. Excia. não tem odireito de criticar-nos como o está fazendo. Era de nosso dever determinar a culpa ou ainocência do réu, de acordo com as instruções que V. Excia. nos deu. Nós o fizemos,

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conscientemente. A interpretação apresentada pelo advogado do réu, Dr. Davis,pareceu-nos a mais satisfatória e razoável. Não vejo o que possamos ter feito deerrado.”

“Está dispensado o júri!” ripostou o Juiz.Depois disso, em virtude do sistema de rotação, o juiz presidiu o grande júri

federal. Pouco tempo mais tarde, George foi denunciado, e submetido a julgamentopela ridícula acusação de conspirar visando a violar as leis de imigração. Depois que ocaso se esboroou e George foi absolvido, lutou mais arduamente do que nunca pelosseus clientes.

Houve uma dezena de outros incidentes quando ele fora atacado por desfecharduros golpes em nome daqueles a quem defendia.

Agora, tinha ele o caso Chessman.

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CAPÍTULO 6LINHAS E PLANOSDE BATALHA

OS JORNAIS ANUNCIAVAM:

GEORGE DAVIS NOVO ADVOGADO DECHESSMAN.

DAVIS CHAMA O CASO CHESSMAN SEU“MAIOR DESAFIO”.

DAVIS PEDIRÁ DESEMBARAÇO DO LIVRODE CHESSMAN.

DAVIS VAI AJUDAR CHESSMAN NAAUDIÊNCIA DO TRIBUNAL FEDERAL.

Ele e Rosalie Asher entraram com uma comunicação formal de procuraçãominha, no protocolo do Tribunal Distrital Federal em São Francisco. Verificaram que omandado da Suprema Corte, determinando as audiências, ainda não chegara. Nós oesperávamos para breve.

O Procurador Geral da Califórnia, Edmund G. Brow, amigo pessoal de George e,no processo criminal. freqüentemente seu acérrimo “inimigo” legal, disse, ementrevista para o Chronic1e de São Francisco:

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“Este réu vem solicitando a audiência há muito tempo. Em vista do fato de estarem jogo a vida de um homem, acho que uma audiência plena provavelmente servirápara desanuviar a atmosfera, e vou determinar a meus assistentes que sigamintegralmente a instrução do tribunal.”

A declaração sem dúvida explicava porque o Estado não requerera à SupremaCorte a reconsideração e reforma de sua decisão. Nem a súbita presença de Davis,como meu novo patrono, encorajou qualquer manobra de retardamento da parte dofuncionalismo da Califórnia. Ele dera a entender, publicamente, que não haveriaretardamentos.

“Caryl lutou por essas audiências durante mais de sete anos,” disse ele,publicamente, “e queremos iniciá-las o quanto antes. Tão logo o tribunal esteja prontopara nos ouvir, começaremos.”

George e Rosalie apresentaram um memorando em apoio ao pedido de habeascorpus que eu instituíra no Tribunal Superior do Condado de Marin, perante o juizJordan L. Martinelli, visando a conseguir o desembaraço de meu romance, The Kid Wasa Killer, e outros manuscritos inéditos, que haviam sido apreendidos pelo diretorHarley O. Teets. O memorando tachava a apreensão de clara transgressão do artigosobre a liberdade de palavra, objeto da primeira emenda à Constituição dos EstadosUnidos.

Ele dera rápida seqüência à sua intenção anterior de “lutar com vigor” pormedidas judiciais visando a derrubar a proibição de escrever, imposta a condenadosnos termos de uma severa e, conforme alegávamos, inconstitucional interpretação doinsensato estatuto de morte civil da Califórnia.

Questionado por um repórter do Independent-Journal, de San Rafael, Georgedisse que essa interpretação determinava que eu era incapaz de “fazer qualquer coisa,até mesmo de pensar em algo a não ser o que se seguiria depois da morte.”

Frances Couturier, minha velha amiga e governanta de meu falecido pai, veio deautomóvel de Los Angeles para me ver, cheia de alegria em virtude da decisão da CorteSuprema. Suas ferventes preces, disto estava convencida, haviam sido atendidas. Osofrimento porque estivera passando não fora em vão. Haveria um final feliz.

“Isto quer dizer que você volta para casa logo, não?”“Espero que sim, minha cara,” disse eu. “Mas isto também significa que vamos

ter de travar primeiro um duro combate judicial.”

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“Mas você vencerá. Eu sei que você vencerá. E é isto que importa.”Concordei com um aceno de cabeça. Como estavam os pequenos Cheryl e David?

Estavam muito bem, e me haviam enviado uma intimação: eu deveria voltar para casacorrendo.

Casa! Gostei do som da palavra. Era uma palavra mágica. Casa!

...você vencerá. Eu sei que você vencerá.George, confiante, disse à imprensa: “Em virtude do interesse internacional no

resultado deste caso, da profunda importância dos temas legais envolvidos, e do fatode que a vida de um homem está em jogo, Caryl e eu concordamos, logo no começo,que eu deveria primeiro satisfazer-me plenamente quanto ao mérito do caso, antes detomar a decisão final de representá-lo. Estou convencido de que as alegações deChessman, de conduta fraudulenta da parte do promotor e do escrivão do tribunal nopreparo da transcrição do seu julgamento podem ser, e serão provadas.”

Mas nem George, Rosalie ou eu nutríamos falsas ilusões de que a nossa tarefaseria fácil. A coleta de provas, sua interligação em um todo coeso, e sua apresentaçãoperante o tribunal, demandariam incansável esforço.

Eu era o único completamente familiarizado com os documentos no caso, astranscrições, declarações juramentadas, autos, correspondência e contratos: assim, eraessencial que nós três nos sentássemos juntos em condições favoráveis, epeneirássemos essa massa de material. No entanto, as condições de realização deconferências em San Quentin eram virtualmente proibitivas.

“Tão logo chegue o mandado, e o Tribunal Distrital readquira jurisdição sobre ocaso,” disse-me George, “minha primeira providência será pedir que você seja posto sobcustódia do delegado federal e transferido para a Cadeia do Condado de SãoFrancisco.”

De outra forma, as tentativas de preparação de defesa equivaleriam a tentarcorrer com uma perna só.

Testemunhas importantes se haviam dispersado, e duas haviam morrido.Algumas haviam desaparecido completamente no ano em que o juiz Louis E. Goodmandenegara sumariamente minha petição, forçando-me, à custa de vários milhares dedólares, a levar o caso através de todas as instâncias, até a Suprema Corte novamente,antes de conseguir as audiências. Entrementes, eu não podia pedir a minhas

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testemunhas que permanecessem em fila à porta do tribunal. Agora elas precisavamser localizadas e entrevistadas. Tinha-se de verificar o quanto suas memórias se haviamempanado com a passagem do tempo, e se elas ainda estavam dispostas a prestardepoimento.

Mais ainda, os arquivos de vários tribunais localizados em São Francisco, SanRafael e Los Angeles tinham de ser reexaminados, seu conteúdo reestudado, o quetambém se aplicava aos arquivos do Secretário do Condado de Los Angeles junto aoTribunal Superior, o Chefe dos Arquivos do Condado e o Procurador do Condado, suaJunta de Supervisores, e os arquivos, relatórios de detenções e livros de registro da suapolícia. A presença de documentos vitais naqueles arquivos tinha de ser confirmada.

Além disso, as notas taquigráficas do escrivão falecido permaneciam sob acustódia do Promotor J. Miller Leavy, e George tencionava torná-las públicas através dedeterminação judicial, na primeira oportunidade. No momento em que ficassemdisponíveis, tínhamos de nos certificar de que eram mesmo as notas. Tínhamos demanter à nossa disposição um perito em documentos controvertidos. Tínhamos,também, de ter pelo menos um escrivão perito em taquigrafia, pronto para começar atrabalhar nas notas. Longas horas de estudo seriam necessárias; e os emolumentos deuma pessoa competente para fazer esse estudo altamente especializado. e depoisprestar depoimento como perito qualificado, capaz de agüentar o ásperointerrogatório de advogados do Estado, seriam custosos. O preço da justiça é alto. Amenos que um monte de dinheiro estivesse a caminho, prontamente, a deusa de olhosvendados, com a balança na mão, permaneceria cega. E eu era quase um mendigo –porque a Califórnia o desejava que assim fosse. Um diretor de prisão havia arrebatadominha propriedade literária, e o diretor de um sistema penitenciário havia decretadoque eu não seria autorizado a escrever uma linha que fosse, para publicação. Comoparecia que não obteríamos uma decisão do juiz Martinelli a não ser depois de algumassemanas, fui quase compelido, mais uma vez, a voltar-me para amigos que viviam forada lei, em busca de auxilio financeiro – ou rolar no chão, fingir de morto e esquecertudo sobre a deusa e sua balança.

Então Rosalie me disse: “Eu consegui fundos.” Ela obtivera o pagamentoantecipado de royalties sobre A Lei Quer Que Eu Morra.

“Mas esse dinheiro é seu, Rosalie.”“Você precisa dele.”

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“Talvez eu nunca seja capaz de restitui-lo a você. É uma má aplicação de capital.Você seria mais esperta se comprasse um novo Cadillac.”

Eu havia transferido todos os direitos sobre o livro para ela. Se quisesse usar osrendimentos provindos dele, para auxiliar um cliente condenado a ganhar o futuro,isto era com ela. Ela não admitia argumentações da parte do cliente, nenhum protesto“lógico”, por mais sincero que fosse. Com uma vida humana em jogo e a própria Justiçano banco dos réus, não se sopesam friamente as vantagens e desvantagens, antes de seusar o dinheiro no lado da vida e da Justiça. Não quando se trata de uma pessoa comoRosalie Asher.

George e Rosalie fizeram uma viagem, deliberadamente divulgada, até a Cidadedos Anjos, a fim de falar com pessoas que tinham informações concernentes ao caso,ou estavam relacionadas com ele, ou mantinham em custódia autos tratando dele.George usava o que parecia ser um relógio de pulso comum; na verdade, era ummicrofone altamente sensível. Dele saía um fio fino e flexível, por dentro da manga atéum bolso interno do paletó, onde ficava um pequeno e chato gravador de fita, umtriunfo da técnica moderna. O gravador de fita funcionava durante uma hora, e podiaser recarregado no mesmo tempo que leva colocar um novo pente em uma automática.Isto nos permitiu obter um registro de possíveis depoimentos, em especialtestemunhas inclinadas a serem hostis, hesitantes ou ambíguas, e a nos protegercontra qualquer testemunha que alterasse seu depoimento. Além disso, evitara quealguém dissesse, no banco das testemunhas, “Ora, eu não disse nada disso, Sr. Davis. Eudisse que...” Ou, “O senhor não se lembra, Mr. Davis? O senhor me disse...”

Havia um segundo propósito, igualmente importante, por detrás da viagem. Osjornais da área de Los Angeles, assim como na parte setentrional do Estado, se haviamconcentrado com tal intensidade sensacionalística no Caryl Chessman lendário, que ohomem na Cela 2455 do Corredor da Morte, e os temas legais no caso, haviam sidoquase que inapelavelmente obscurecidos.

“Mais uma vez! Chessman conseguiu obter nova audiência,” anunciava umcidadão cuja carta, uma entre várias dúzias, desabrochava em uma dessas colunas devox populi em jornais, onde a gente pode sempre ficar a par de informações dadas decátedra sobre o mundo, sobre o que ele tem de errado e sobre o que fazer paraconsertá-lo. O missivista entesourava sua ignorância em uma extraordinária cocçãoverbal de acidez e asininidade:

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“Examinemos o caso desse indivíduo reformado. Esqueçamo-nos de que ele foicondenado por rapto e estupro. Isto foi há oito anos. Esqueçamo-nos do fato de tersido ele julgado e condenado, porque isso, também, ocorreu ha alguns anos...Esqueçamo-nos do fato de que ele não está protestando inocência, mas tentando safar-se através de uma formalidade legal. Consideremos esse louco reformado como umbrilhante autor, embora seus artigos e livros sejam uma porcaria... Não sejamos durospara com Caryl Chessman. Talvez ele seja posto em liberdade e aí todos nos poderemosnos recostar e.. . ele poderá reassumir seus deveres de ameaça à sociedade.”

George sabia que estaria desperdiçando seu tempo se respondesse a tal bobagem.Ao invés disso, injetou sua própria e vigorosa personalidade no caso. Com Rosalie, fezquestão de ser visto e ouvido enquanto em Los Angeles. Não havia nada de operáticoou adolescente nas ações de Mr. D; ele não estava fazendo poses para o publico, ouarticulando palavras argutas para a imprensa. Habilidosamente, estava chamando aatenção para si mesmo e para sua parte e sua atitude no caso Chessman e desta formaafastando-a do demônio mítico, encarcerado em uma cela da morte. Como um pregãona entrada da grande tenda, ele prometia maiores maravilhas do que aquelas falsas,encontradiças em um espetáculo à parte. E os rústicos, que queriam apenas esbugalharos olhos para demônios em forma humana, botando fogo pela boca, eram convidados aprocurá-los em outro lugar.

Esta atividade se ajustava a outro objetivo imediato, que foi resumido da forma amais apta, na pergunta de um repórter incumbido de cobrir o caso:

“O que diabo Davis estará tramando desta vez?”“Não fará mal nenhum,” disse-me George, “que o escritório do procurador Geral,

e aqueles a quem você acusou de fraude, façam-se a mesma pergunta.”Ela os deixaria sobressaltados. Recordando a estratégia espetacular de Mr. D. em

outros casos, eles ficariam à espera de algum estratagema, e estariam preparados paraalegar desonestidades.

“No entanto, ao invés de tirar um coelho legal do chapéu, nós tiraremos a últimacoisa que eles poderiam esperar.”

“O que?” perguntei eu.“A verdade.”Talvez os papéis dos cautelosos e dos manhosos pudessem ser trocados, afinal.

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Um dia, Davis entrou na gaiola de visitas com uma morena de formas atraentes.Resmungou uma apresentação deliberadamente ininteligível, e sentaram-se. A mulherdescansou o lápis sobre um bloco de notas, mantendo baixos os olhos de longos cílios.George remexeu na pasta, parecendo estar supremamente indiferente à sua presença.Aquilo era demais. Ergui o sobrolho, interrogativamente.

“Minha nova secretária,” disse George.A mulher com o sorriso simpático pouco se assemelhava a uma secretária de

advogado. E eu o disse.Ambos riram. “Caryl,” disse George, “Apresento-lhe Lorraine.” Era sua noiva. “Ela

leu seus livros e estava decidida a conhecê-lo.”“Ele não conseguiu me dissuadir,” disse Lorraine. “Muito prazer, Caryl.”Nós conversamos. Eu sabia da incrível história de como ele viera a conhecer a

futura sra. Davis.Fora em 1951. O major Miles, do Exército norte-americano de ocupação na Zona

Ocidental da Alemanha, acusado do assassínio de um policial alemão, estava sendojulgado por um tribunal militar. A promotoria, contando com uma testemunha ocular,alegava que o major havia derrubado a vítima a tiros, a sangue frio, quando estaprocurou interrogar o réu. Ninguém dava muito crédito à versão do major, até que oadvogado da defesa, vindo dos Estados Unidos, interrogou seu cliente e realizoualgumas investigações próprias.

Depois de ter sido absolvido naquele tribunal federal de São Francisco, Davisretornara à Alemanha para atender a pormenores finais, como procurador de AlfredKrupp e Friedrich Flick, e imediatamente se viu em meio a um difícil julgamento deassassínio.

Interrogando a testemunha ocular através de um intérprete, George sentia afrustração de um cão de caça que estivesse resfriado. Tinha certeza de que estiveraseguindo a pista certa, de que estava bem a caminho de uma absolvição. No entanto,subitamente, viu que estava recebendo respostas erradas. Tanto a testemunha, quantoo intérprete, estavam agindo estranhamente.

George dissera ao tribunal que provaria que o réu havia alvejado a vitima nacrença de que o morto havia tentado roubá-lo. Primeiro, tinha de conseguir que atestemunha admitisse que a vítima não apenas havia deixado de se identificarpropriamente – o disparo havia ocorrido à noite – como também se lançado, de arma

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em punho contra o major, e feito menção de pegar-lhe a carteira. Mas o intérpreteinsistia em dizer que a testemunha depunha no sentido de que o morto haviaestendido a mão “gentilmente” para a carteira.

O tribunal estava ficando impaciente. “É melhor o senhor prosseguir com outroponto,” disseram a George.

Ele refez a pergunta de outra forma, e apresentou-a pela última vez. Novamente,a mesma resposta.

Parecia que estava bem arranjado.Então, teve um sobressalto ao ouvir uma voz feminina agitada dizer, “Não, não!

Não está nada certo. A testemunha disse que o policial arrebatou-lhe a carteira. Disseque ele a agarrou e...”

George girou nos calcanhares. A oradora levantara-se, e agora reinava o maiscompleto silêncio no tribunal, todos os olhares fixos nela.

O rosto enrubescido ante a compreensão de que havia interrompido os trabalhosda corte, ela sentou-se. “Desculpem-me,” disse.

Então, foi o intérprete que pediu desculpas. A jovem tinha razão. O erro foradele. Incapaz de pensar na palavra correta em inglês, ele a substituíra por outra, dandoo sentido oposto à palavra dita pela testemunha. George confirmou sua vitória nocaso, ao demonstrar o ângulo em que a bala entrou no corpo da vítima. O tiro foradisparado, como seu cliente afirmara, durante uma escaramuça. O major foi absolvido.

George prontamente procurou aquele pequeno e bilingüe anjo da guarda, deblusa de seda e flamejante saia de camponesa. “Quero agradecer-lhe,” disse. “Sua opor-tuna interrupção salvou a vida de meu cliente.”

“Sr. Davis, eu não consegui ficar calada.”Agora, quatro anos mais tarje, George e Lorraine iam providenciar o seu próprio

final feliz. Planejavam casar-se tão logo clientes urgentes, incluindo um em uma cela demorte, que escrevia livros, lhes dessem tempo suficiente para dizer “Sim”, e sair emuma curta lua de mel.

O que deveriam os professores dizer a jovens e inquiridores espíritos, sobrehomens de uniforme que dão as costas à sua terra natal, e a tacham de agressoraimperialista? O que poderia o governo fazer com eles?

Os ex-soldados Otto Bell, de vinte e quatro anos, Louis W. Griggs e William

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Coward, ambos de vinte e dois anos, haviam mudado de opinião pela segunda vez. Omundo conhecia a sua história. Foram chamados de vira-casacas, e algumas pessoasinsistiam em que eram traidores.

O trio fora capturado pelos comunistas enquanto lutava com forças das NaçõesUnidas, na Coréia. Como prisioneiros de guerra, suas mentes, também, foramcapturadas, através da lavagem de cérebro, do temor e da fraqueza. Gritando chavõescom uma ostentação de bravata, eles, juntamente com vários outros soldados rasosnorte-americanos, recusaram a repatriação em Panmunjom, preferindo ir para a ChinaVermelha, viver e “lutar pela paz.”

O secretário da Defesa Charles Wilson os havia classificado de desertores, e ostrês foram expulsos do exército em janeiro de 1954. Pouco se soube deles até 1955,quando as agências telegráficas divulgaram a notícia de sua decisão de retornarem aosEstados Unidos. Em um dia de julho, de 1955, cruzaram a fronteira da China Vermelhapara Hong-Kong. Funcionários do exército os aguardavam quando seu navio aportouem São Francisco. Acusados de fornecerem ajuda e conforto ao inimigo, foram detidospelos militares, postos a ferros, e levados para a casa da guarda em Fort Baker.

Foi nessa ocasião que George Davis ofereceu seus préstimos. Com dois outrosadvogados, deu início a uma batalha legal para livrar os três homens da custódiamilitar, sustentando que, uma vez que o exército os expulsara de duas fileiras,renunciara a todo o direito de prendê-los ou submetê-los a julgamento. Se necessário,disse Davis, levaria a luta até a Suprema Corte.

Não foi necessário. A 7 de novembro de 1955, a Corte Suprema, em uma decisãode seis votos contra três vencidos, derrubou como inconstitucionais aquelas seções noCódigo de Justiça Militar Uniformizado, que autorizavam às forças armadassubmeterem à corte marcial homens ou mulheres que já tivessem dado baixa doserviço militar.

A Corte agiu no caso de Roberto W. Toth, de vinte e quatro anos de idade, oprimeiro civil a ser detido nos termos do código, em seguida à sua adoção peloCongresso, em 1950. Depois de ter dado baixa honrosa, Toth fora detido pela policiamilitar em Pittsburg e, sem lhe ter sido permitida uma audiência, enviado de avião devolta a Coréia, para enfrentar uma corte marcial sob a acusação de ter participado noassassínio de um civil coreano. Antes que pudesse ser julgado, sua irmã conseguiu-lhe alibertação mediante habeas corpus decretado por um juiz federal norte-americano. A

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ordem de livramento, porém, foi reformada pelo Tribunal de Recursos dos EstadosUnidos, e os advogados de Toth levaram o caso ao mais alto tribunal da Nação.

O ministro Hugo Black pronunciou a decisão da Corte Suprema, adotada pormaioria, dizendo, em parte:

Ela (a lei em questão) priva o réu do julgamento por um júri, e recolhe, sob ajurisdição militar, mais de três milhões de pessoas que se tornaram veteranas desde que odispositivo entrou em vigor. Este número deverá crescer de ano para ano. Tais dadossalientam como seria monstruosa a jurisdição a que o Congresso sujeitaria cada ex-militar,homem ou mulher desta terra, permitindo fossem eles julgados por corte-marcial porqualquer ofensa supostamente cometida enquanto ele ou ela tivessem sido membros dasforças armadas.

Toth foi posto em liberdade. Davis e os dois advogados que trabalhavam com ele,imediatamente procuraram obter o livramento de seus três clientes, com pedidos dehabeas corpus apresentados em tribunal federal. O juiz Federal Distrital, Louis E.Goodman, que anteriormente se recusara a se pronunciar antes de uma decisão nocaso Toth, marcou uma audiência para as duas horas da tarde do dia seguinte.

“Isto implica em julgamento em tribunais civis para os três – se chegarem a serprocessados,” disse Davis à imprensa.

Tinha razão. Depois de uma breve audiência, o juiz Goodman apôs sua assinaturaaos formulários legais necessários. Com o tenente William Welch, George seguiu à todapara Fort Baker. O capitão W. R. Lahey aceitou as ordens de livramento de Welch, e osportões da casa da guarda abriram-se para os três jovens cujas ações haviam arranjadotal problema para o País.

Como cidadão, e oficial do exército no tempo da guerra, o interesse de Georgeem relação ao caso ia além dos cabeçalhos, além de obter um julgamento equânime emuma instância específica. O mundo livre se confrontava com um inimigo fanático, cujaideologia nos era completamente estranha, que não ligava a mínima importância parao indivíduo, e que, em uma impiedosa corrida pelo poder, havia engendrado novas einfernais técnicas para subjugar o espírito dos homens – em particular as mentesimaturas, que não apreendessem ainda o significado e valor da liberdade.

Isto fez com que o que acontecera a Coward, Bell e Griggs, fosse importante paraDavis e para todas pessoas pensantes, interessadas no modo de viver democrático. Era

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essencial que o povo ficasse conhecendo ambos os lados da história. Assim, Georgelevou os três de avião para Portland, Oregon, e entregou-os a outro cliente seu,Thomas A. Wyatt, líder religioso do Templo das Asas da Cura, e um forte e esclarecidooponente do comunismo.

Os três compareceram a programas de rádio e televisão de Wyatt, assim como avárias reuniões públicas, e narraram suas experiências depois de terem sido capturadospelos comunistas. Depois, retornaram a seus lares, e ao menosprezo e ostracismo desuas comunidades.

Um porta-voz do Pentágono disse que o Exército não contestaria a decisão daCorte Suprema de acordo com a qual eles haviam sido postos em liberdade, através derequerimento pedindo nova audiência no caso Toth. Mais tarde, o Departamento deJustiça decidiria que não iria haver tentativas de processar os três jovens em tribunaiscivis. Oficialmente, o governo declarou encerrado o caso.

George falou com o senador Lyndon Johnson, da Comissão Senatorial para asForças Armadas, que manifestou interesse em que os três prestassem depoimentoperante sua comissão. Ele também estivera em contato com o Secretário do ExércitoWilbur Brucker, e anunciara que tencionava ir a Washington de avião para debater comele possíveis alterações nos regulamentos do Exército, relativos à conduta dosprisioneiros de guerra.

Inevitavelmente, pois, haveria, futuros conflitos com os comunistas, e jovensprisioneiros de guerra feitos por eles, seriam sujeitos à obscenidade da lavagem decérebros. Nem todos esses jovens soldados possuiriam a resistência ou força de vontadepara superar em astúcia o inimigo, rir de suas seduções e, se necessário, dizer-lhe quefosse para o inferno, escolhendo uma morte brutal ao invés da degradação oferecida.

Curiosamente, enquanto George lutava com esse problema em suas primeirasfases, eu já havia tratado dele, com alguma extensão, em meu romance The Kid Was aKiller, só para ver o romance apreendido pelo diretor, pouco antes de Mr. D. entrar nocaso. Em seu livro, depois de extensas pesquisas, eu procurei mostrar o preço de umtipo de resistência, e as conseqüências de sua aquisição e posse, quase tão assustadorasquanto as conseqüências de outro tipo de “fraqueza.”

Isto, também, teria de ser compreendido.

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CAPÍTULO 7“VOCÊ TEMO CORPO”

QUANDO RETORNOU de Portland, George me disse, “Fiz tudo o que podia. Agora,veremos.”

Ele realmente fizera tudo o que podia. No entanto o problema era tão complexoque era forte a tentação de simplificá-lo excessivamente, ou de encontrar um bode ex-piatório, ou de se contentar com a indignação. Estas não eram soluções. Nem seria umasolução a legislação punitiva, nem piedosos lugares comuns e trovejantes discursospolíticos, aplaudindo os fortes e amaldiçoando os fracos. Era fácil dizer qual deveria sera orientação do soldado caso ele caísse nas mãos de seu inimigo, mas...

Algumas questões preocupavam Davis. “Eu me tenho perguntado como reagiriase fosse o prisioneiro, com uma arma apontada para a minha cabeça e os peritos emlavagem de cérebros me proporcionando o tratamento completo: privado de sono,privado de tratamento médico, objeto de intermináveis arengas, sujeito a castigosbrutalizantes – sem mesmo ser autorizado a ir ao banheiro – até que meu espírito emeu corpo gritassem por repouso, e eu mal soubesse quem era e onde estava. Será queainda seria capaz de dizer, não, se fosse “solicitado” a assinar uma declaraçãodenunciado a guerra bacteriológica, ou a fazer uma irradiação de propaganda?”

George levou o problema um pouco mais além. “Suponhamos que seus captoresse mostrassem amistosos, e lhe fornecessem remédios e atenção médica, feito

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lisonjeiros apelos à sua inteligência e humanidade e, a todas as horas, dia após dia,pregassem para ele suas sutis mentiras, e plausíveis meias-verdades? Não seria possívelque, depois de algum tempo, seu espírito fosse vencido, e ele começasse a acreditar noque lhe havia sido dito?”

Era uma desagradável perspectiva, mas tinha de ser enfrentada.“Eu sei,” disse eu. “Aqui no Corredor da Morte tenho visto o que o terror

prolongado, a tensão e a pressão podem fazer ao espírito. Não gosto nem de pensar emalgumas das coisas que tenho visto e ouvido. Se eu lhe contasse, você ficaria doente.”

“E no entanto, você teve a força necessária para lutar e resistir,” disse George.“Está certo. Mas, será que eu posso receber crédito pela qualidade de meus

genes? Será que eu posso, verdadeiramente, me vangloriar de haver determinado, ouser o responsável, pela concatenação de circunstâncias que produziram CarylChessman, o chamado psicopata? Será que, honestamente, poderei recomendar o meutipo de resistência como uma alternativa para a ‘fraqueza’ que estivemos debatendo?Além disso, veja onde me levou a habilidade em lutar e resistir. Não recebi medalhas,George. Apenas a fama de ser um monstro, em licença especial do inferno.”

“O que nos traz de volta a seu caso,” sorriu George. “Com o assunto doschamados vira-casacas liquidado, estou livre para me concentrar no problema de comotirá-lo do Corredor da Morte. Pus todas as outras questões de lado.”

“Ótimo,” disse eu.“Parece que estamos com nossos planos de batalha bem elaborados, e, a julgar

pelo trabalho preliminar que preparei, diria que temos um estoque bem tranquilizadorde munições para nossas armas legais.”

Tive um largo sorriso. “Ótimo, mas é melhor que você deixe aquele outro tipo demunições em casa, quando vier à penitenciária, depois disto, ou o pessoal daqui poderáficar com uma impressão errada de sua abordagem deste caso.”

Eu me referia a um item de uma coluna escrita por Ted e Dorothy Fríend noCall-Bulletin, de São Francisco:

Momento embaraçoso? Em absoluto! O advogado George T. Davis não sedesconcerta facilmente. Ele não ficou desconcertado ontem – nem por um momento – emSan Quentin, ao lhe serem apreendidas dez balas, durante a sua passagem peloInspectoscópio, antes de visitar seu cliente Caryl Chessman. “Posso explicar facilmente apresença dessas balas,” disse o Dr. Davis, funcionando como advogado em causa própria.

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“Estive caçando pumas no rancho de Will Tevis, na madrugada de hoje”. A verdade é que oadvogado Davis trazia a prova de sua asserção dentro do próprio carro. Um puma morto!

Agora, George estava no encalço de caça maior. Ele queria fulminar aquelasminhas duas sentenças de morte.

“A única coisa que nos está detendo no momento,” disse Davis, “é um pedaço depapel – um documento legal, chamado mandado; a notificação formal, de que ‘há boacausa para tanto’, da Corte Suprema dos Estados Unidos, para sua ação, o qual, ao darentrada no Tribunal Distrital, fará com que esse tribunal seja reinvestido com ajurisdição necessária para se pronunciar.”

CHESSMAN ENFRENTARÁ O TRIBUNAL NA PROXIMA QUINTA-FEIRA,

anunciou a imprensa. E, segundo uma narrativa, este comparecimento inicial,“fortemente guardado, ao tribunal presidido pelo juiz federal Louis Goodman, é apenasum prelúdio para a audiência plena de Chessman...”

O mandado chegara, e George o apresentara, juntamente com váriosrequerimentos, ao Juiz Distribuidor Oliver J. Carter, a 30 de novembro de 1955. Feito oque, ele prontamente sentiu que o chão lhe fugia dos pés.

O juiz Carter anunciou, laconicamente, que estava devolvendo o caso ao juizGoodman, “que acompanhou o processo originariamente e está familiarizado com atranscrição, com os autos, e desta forma tomará quaisquer providências que se façamnecessárias para a questão.”

George protestou contra a designação. À luz das medidas anteriores, e retóricasexigências do juiz Goodman, no tocante à atitude dos cidadãos em relação à Justiçatipo “máquina automática”, nós tínhamos por assente que qualquer outro juiz doTribunal Distrital que não o juiz Goodman seria encarregado do caso.

O juiz Carter, porém, pensava de outra maneira. A orientação do tribunal, disse,era que o juiz que julgara a questão originariamente, dela tratasse ao voltar, em graude recurso. “Ora, este recurso subiu através de um despacho do juiz Goodman, e deacordo com aquela orientação, está voltando para o juiz Goodman.”

“Compreendo,” disse George. Protestos ulteriores, compreendeu, seriam inúteis.Reunindo os requerimentos propostos, ele desceu o corredor para a sala do juiz

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Goodman. O meritíssimo Dr. Louis E. Goodman estava à sua espera.George passou em revista a audiência com o juiz Carter. “Com todo o devido

respeito, meritíssimo, a V. Excia. e ao tribunal, sugeri ao juiz Carter que talvez o casodevera ser designado para outro juiz, pois que, no parecer em que V. Excia. denegou apetição, havia alguns termos que nos deixaram preocupados, ao sr. Chessman e amim.”

Diplomaticamente, George pedia ao juiz Goodman que se julgasse suspeito,“porque isto vai constituir uma série bem acalorada de contendas.”

O juiz Goodman manifestou surpresa ante a sugestão de George, de que alegasseexceção de suspeição. Ora, ele não nutria nenhuma opinião quanto o caso. Na vezanterior, simplesmente agira de forma rotineira. E naturalmente o caso lhe foraenviado de volta, uma vez que “uma das virtudes de nosso sistema de distribuição, éque os casos são geralmente distribuídos a juízes que com eles já estejam mais oumenos familiarizados.”

O meritíssimo juiz não tencionava afastar-se. Tencionava acompanhar o caso.Poderíamos apresentar uma petição formal, alegando exceção de suspeição, se opreferíssemos. Era de nosso direito. Mas a inconfundível inferência era que estaríamosperdendo tempo. George foi informado de que poderia debater o assunto comigo edepois voltar ao tribunal, às duas horas da tarde.

Então o juiz Goodman interrogou George a respeito dos pedidos que fazia. Tevelugar o seguinte colóquio:

O Tribunal: Sim. O senhor quer que ele esteja aqui (na Cadeia do Condado deSão Francisco) para que possa manter consultas com ele?

Dr. Davis: E o diretor Teets disse que preferia que fosse dessa maneira.O Tribunal: Sim.Dr. Davis: Porque ele acha que...O Tribunal: Bem, ele teria de trazê-lo e levá-lo de volta.Dr. Davis: lsto mesmo.O Tribunal: Bem, isto é costumeiro. Vamos providenciar.

Houve outro debate, em seguida ao qual o juiz Goodman afirmou: “Não vejoobjeção para qualquer dessas questões. Creio que o senhor tem direito a todos esses

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pedidos.” No entanto, o meritíssimo acrescentou: “Acho que o senhor devia pedir aoProcurador Geral para vir aqui se é que o senhor volta hoje à tarde, e acertarmos umadata, e nós a marcaremos. Esta é a maneira mais fácil de fazê-lo.”

George correu para o estacionamento do tribunal, meteu seu Oldsmobileconversível na corrente do tráfego e se dirigiu para este sombrio aglomerado deprédios conhecido como Penitenciária Estadual da Califórnia, em San Quentin. Minutosmais tarde, estava sentado à minha frente, fornecendo-me uma narrativapormenorizada dos acontecimentos da manhã.

Estremeci quando soube que o juiz Louis E. Goodman novamente tinha a minhavida nas mãos. “Ah, não,” disse, “Não pode ser verdade. George, diga que esta é uma desuas piadas.”

“Quisera que fosse.”“Bem, começamos esplendidamente.”Os vincos de bom humor ao redor dos olhos de meu patrono, se tomaram mais

pronunciados. “Espere até ouvir o resto. Você se lembra do que lhe disse a respeito dojuiz federal, que ficou espumando quando vários júris em sucessão absolveram clientesmeus, em casos líquidos, e então foi presidir o grande júri federal?”

“Em seguida ao que, por extraordinária coincidência, você se viu objeto de umaacusação criminal falsa. Sim, eu me lembro.”

“Eu não mencionei o nome do juiz, porque naquela ocasião ele não tinhaimportância,” disse George. “Ou, pelo menos, assim pensei.”

Agora George não precisava me explicar o que queria dizer. Bastava umatentativa para adivinhar.

“Ah, não!”“Pois é isto mesmo!”O teto veio abaixo, e nós rimos às gargalhadas. Como os bonecos de borracha, a

coincidência tem um braço absurdamente comprido. Ou, possivelmente, a coincidênciafosse um nome falso usado por Momo, o deus grego da caçoada e da intriga. Com otempo, os outros deuses ficaram tão saturados de suas caçoadas, que o expulsaram doOlimpo. Talvez esse interessante personagem tivesse finalmente encontrado um lar eum lugar para a prática de seus talentos especiais, no recinto dos tribunais. Talvez eletencionasse ficar por cima, em relação à Justiça – e a Caryl Chessman.

Éramos forçados a esperar para ver.

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George voltou ao tribunal e se recusou a comprometer-se.“Bem,” informou ele ao juiz Goodman, quando se falou no assunto, “V. Excia. me

deu uma oportunidade para conversar com ele a respeito, e nada tenho a acrescentar àquestão no momento, meritíssimo.”

O escritório do Procurador Geral fora notificado e enviara um assistente alto, decalva nascente e voz anasalada, chamado Arlo E. Smith. A primeira iniciativa docavalheiro Smith foi pedir que o assunto fosse adiado até o dia seguinte, para que oformidável Clarence Linn pudesse comparecer e, nós o sabíamos, confundir o tribunalcom a sua oratória. George objetou, com bons resultados. A augusta presença de Mr.Linn não era necessária para se fixar uma data para o processamento inicial. Quinta-feira, oito de dezembro, às dez horas da manhã, foi a data finalmente assentada.

Depois, Smith tentou convencer o tribunal de que minha presença não seria, nemdeveria ser, requerida para então. Não serviria para nada, insistiu ele, “no momento, anão ser pela publicidade com que estaria relacionada, e pela excursão pela cidade, queproporcionaria ao sr. Chessman naquele dia.”

“A presença dele é necessária aqui,” disse George, para este efeito, e novamenteprevaleceu sua opinião.

O habeas corpus foi preparado. Assinou-se um sursis de execução. Nóspoderíamos renovar nosso pedido de despacho impugnando as notas taquigráficas doescrivão do tribunal, quando o pedido de habeas corpus fosse devolvido e eu fosseapresentado ao tribunal. A questão fundamental da transferência de custódia foiadiada.

“Quanto a isso, não acho que haja qualquer necessidade de pressa,” disse o JuizGoodman.

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CAPÍTULO 8PREPARE-SESE PUDER!

RECORDANDO, tudo seria como ver um filme que é rodado no dobro de sua velocidadenormal. Na ocasião, era como se eu fosse forçado a representar naquele filme, umaestranha e chapliniana produção, com o diretor Harley Teets e outros funcionários deSan Quentin se recusando a seguir o roteiro. Eles tinham suas próprias idéias sobrecomo o espetáculo deveria ser representado. Não gostavam da ordem do juizGoodman, e seu desprazer assumia formas peculiares.

Nós havíamos pensado que a linguagem e intenção da ordem do tribunal eramclaras. Então o pessoal da prisão começou a “interpretá-la”. Aparentemente, ela nãosignificava o que dizia, ou dizia o que não significava.

Nós havíamos contratado um investigador particular, e perito em eletrônica,William J. Linhart, para trabalhar no caso. Linhart estava devidamente licenciado peloEstado para praticar sua profissão. Ocasionalmente, ele vinha realizando importantestrabalhos de investigação no caso, desde maio de 1954, para Ben Rice. George trouxe-opara me visitar no dia seguinte a meu comparecimento ao tribunal, e o espetáculocomeçou.

Na entrada, o seu gravador portátil de fita foi-lhe tomado. Ele não poderia, emabsoluto, utilizá-lo durante as conferências comigo. Nem, conforme fui informado,seria aberto o guichê, na tela da gaiola. O guarda não fora “autorizado” a abri-lo.

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Nenhum papel poderia ser passado de um para o outro, para estudo e exame. Umguarda foi postado a menos de três metros de distância. Estava “supervisionando” avisita. Os resultados da conferência foram zero.

Irritado, George deixou a penitenciária. Disse aos jornalistas que iniciaria umaação de desobediência a ordens contra o diretor, se necessário, para que adeterminação do juiz Goodman fosse atendida. Esta'va em jogo a vida de um homem, eele não pretendia ver essa vida comprometida pelo fato de os funcionários da prisãonão apreciarem a determinação.

Acompanhado por Bill Linhard e Alex Brown, taquígrafo perito no sistemaPitman e, durante muitos anos, escrivão oficial do tribunal nas cortes de São Francisco,Rosalie veio me visitar em San Quentin. Através de subordinados, o funcionário do dia,Irving O. Ritter, quis saber a razão exata pela qual ela desejava que o sr. Brown falassecomigo. Uma vez que uma resposta implicaria em fornecer uma peça material de nossocaso, Rosalie recusou-se a fornecer a informação; e, a desperto da disposição dela deatestar pela identidade do sr. Brown e de sua conexão válida com o caso, Rittermandou o sr. Brown embora. Ele não poderia me ver.

Rosalie perguntou se estava disponível uma sala para a entrevista, de acordo coma ordem do juiz Goodman. Foi informada, sem mais aquelas, que teria de usar a Gaiola.Ela explicou que a conferência duraria mais de uma hora. Então, teria de requerertempo “extra”, ao término da primeira hora e de cada hora sucessiva. Mas, o que dizerdas instruções do tribunal, “permitindo ao patrono do suplicante consultá-lo econferenciar com ele entre nove horas da manhã e seis horas da tarde, a qualquer dia,durante o período de audiências?”

A conferência começou às 13,05 da tarde. Ás 13,50 Rosalie foi informada de quesua hora expiraria dentro em pouco. Pediu mais tempo. Teria de falar com o funcioná-rio da sala de espera. Ela o fez. Então, foi informada de que deveria falar com o tenentedas visitas, na subsede do capitão. Ela também o fez, pedindo, além disso, que WilliamLinhart fosse autorizado a falar comigo. O tenente lhe disse que iria verificar, e depoislhe informaria. Ela voltou à Gaiola. Esperamos. Finalmente, o tenente entrou equestionou a sua situação como advogada no caso. Ela lhe entregou a procuraçãoformal que fora apresentada no tribunal distrital, provando ser ela um dos advogadoscom procuração nos autos do caso. Bem, o sr. Linhart seria autorizado a entrar, mas sópor uma hora, e ela teria direito a mais uma hora (a partir das 13,55.) Se quisesse

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mais tempo, teria de pedi-lo quando terminasse sua hora (na verdade, sua “hora” erade apenas quarenta minutos.)

Depois de mais formalidades, Bill Linhart entrou. Antes de entrar para aconferência, sua pasta, contendo informações confidenciais sobre o caso, foi submetidaa uma minuciosa busca física, pelos agentes uniformizados do diretor Teets. Nóstínhamos apenas abordado o trabalho de investigação que em especial precisávamosdebater, quando ele foi notificado de que seu “tempo acabara.” Foi mandado embora.

Fui entregar à Srta. Asher, através do guichê, um documento legal que desejavaque ela lesse, quando o guarda supervisionando a visita exigiu que o documento lhefosse mostrado. Eu lhe entreguei o papel, pensando que ele tencionava apenasrelancear os olhos pelo documento. Ao invés disso, levou cinco minutos a lê-lo. Arelação confidencial foi reduzida a uma farsa. Nós passaríamos todo nosso tempodeixando o guarda ler nossos documentos se esta, como obviamente era a intenção dainstituição, se tornasse a praxe usual. Chamamos o tenente e Rosalie protestou.

O tenente encolheu os ombros. O guarda estava seguindo ordens de cima. Eraassim que teria de ser. Esta era a resposta de San Quentin à ordem do juiz Goodman àpenitenciária, para “providenciar um local e facilidades para a realização privada e livrede tais consultas.”

Poucos minutos mais tarde, Rosalie foi informada que seu tempo terminara. Elateria de ir embora. Eram aproximadamente 15,05. Nós objetamos. Novamente, como ofizéramos uma hora antes. explicamos que a Srta. Asher era um dos advogados comprocuração nos autos, autorizados pela ordem do juiz Goodman, a permanecer até asseis, e que nós precisávamos tremendamente de mais tempo para examinar o caso umavez que, entre outras coisas, ela planejava entrevistar várias prováveis testemunhas epreparar documentos legais durante aquela semana.

O tenente sentia muito. Isto não fazia diferença. Fora explicado a Ritter. Noentender desse importante homem, a Srta. Asher era apenas “uma amiga”. Ritter havia“interpretado convenientemente a ordem do tribunal federal para que significasse queapenas o sr. Davis tinha o direito de conferenciar comigo em seus termos. Ela não seaplicava à Srta. Asher. Sua viagem de cento e sessenta quilômetros desde Sacramentofora uma perda de tempo.

Ambos os advogados procuraram registrar queixas junto ao diretor Teets, masforam informados de que ele não estava “disponível”. Ninguém parecia saber onde ele

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estava. Na manhã de segunda-feira, porém, a primeira coisa que fez foi tornar-sedisponível para a imprensa Anteriormente havíamos lido nos jornais que ele iria “pedirorientação ao escritório ao Procurador Geral do Estado antes de cumprir” a ordem.Agora, eram citadas como palavras suas:

Parece discriminatório e injusto para os outros (condenados) homens, mas esta é aúnica facilidade de que dispomos com fatores de segurança adequados. Não posso tirarespaço do nada, para atender à ordem do tribunal. Exigem que eu reserve a única sala quetemos para o exclusivo uso de Chessman e seus advogados, quando e se eles desejaremutilizá-la.

Se Harley O. Teets é citado corretamente quando diz que “esta é a únicafacilidade de que dispomos com fatores de segurança adequados,” eu iria replicar, emum documento juramentado, apresentado ao tribunal, “então o declarante é forçado achamar de mentiroso o sr. Teets. Em primeiro lugar, o declarante e seus patronosinformaram aos funcionários de San Quentin, em linguagem que não dá margem àdúvidas, que não têm intenção de privar qualquer outro condenado de suas visitas. Odeclarante indicou sua disposição de interromper suas discussões com os advogados,retornando ao Corredor da Morte, se necessário, caso outro condenado tivesse umavisita, e o declarado persiste em sua falsa alegação de que não dispõe de outrasfacilidades. Em segundo lugar, outro condenado, recentemente – mas antes da ordemdo tribunal – recebia a visita de seu pai e de um advogado, na gaiola, quando chegouuma pessoa para falar com o declarante; que sem nenhuma dificuldade ou publicidade,o outro condenado e seus visitantes foram transferidos para o escritório do diretorassociado de custódia (no recinto da prisão) para completar sua visita, enquanto odeclarante recebia sua visita na gaiola. O declarante está preparado para convocar oconcurso dos registros da prisão e dos funcionários, a fim de provar isto e provar queo declarante, algumas vezes com apenas algumas horas de vida, e literalmente dezenasde outros condenados, em anos recentes, têm recebido visitas de advogados, amigos eoutras pessoas no escritório do diretor-adjunto, assim como no pequeno escritóriologo atrás dele.”

Esta era uma das maiores prisões do mundo, com centenas de funcionários, alémde uma instalação de segurança eriçada de garantias, e parecia absurdo alegar que umaordem do tribunal não poderia ser cumprida sem perturbar a rotina da prisão, ou pôr

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em perigo a moral da instituição, como o afirmava o diretor. Fiquei estupefato comessa reação, mas de uma coisa tinha certeza: lutara sete anos e meio para ser ouvidono tribunal, e agora estava disposto a me haver com o próprio demônio, se fossepreciso, para o direito de me preparar.

Sob ordens específicas de Rosalie, para o propósito de pôr o juiz Goodmanprecisamente a par da descrição, tamanho, forma e aparência da gaiola de visitas,assim como das condições exatas sob as quais estava eu sendo forçado a consultarmeus patronos e investigadores, Bill Linhart pediu permissão para fotografar e mediressa “facilidade”. Absolutamente não, disseram-lhe. Ao mesmo tempo, procuroufotografar algumas provas físicas em meu poder para fornecer cópia a George e Rosaliee utilizar em suas investigações. Novamente a resposta foi não. O guichê foi mantidofechado e ele não foi nem autorizado a olhar as provas.

A 15 de dezembro, levei um golpe duro, vindo de outra direção. Depois desuspender julgamento por várias semanas, o juiz Jordan L Martinelli, do TribunalSuperior do Condado de Marin, denegou minha petição de habeas corpus em umparecer de onze páginas, que dava uma extraordinária definição de morte civil. Ohabeas corpus, sentenciava ele, não era um meio apropriado para determinar meusdireitos de propriedade nos manuscritos apreendidos pelo diretor, ou para testar avalidade da proibição de merecer. Se não era, eu não tinha remédio. Isto significavaque o assunto teria de ser levado ao Supremo Tribunal da Califórnia antes que pudessevoltar aos tribunais federais. Mais um atraso inevitável. Mais trabalho duro. Bem, asituação não era nova. Eu sabia como uma porção de formalidades, reais e imaginárias,podiam ser aplicadas pelos juízes ao caso Chessman para evitar considerar o mérito.Agora, mais pelinhos legais haviam sido cortados pelo meio. A Constituição não queriadizer exatamente o que dizia. O Diretor das Correições era uma lei em si mesmo, umsoberano em um domínio onde podia arbitrariamente fazer o que quisesse, e ostribunais eram impotentes para interferir.

No dia seguinte, as notas taquigráficas do escrivão falecido foram produzidas notribunal do juiz Goodman, pelo Chefe da Divisão Criminal do Escritório do Chefe doProtocolo do Condado de Los Angeles. Elas permaneceriam em custódia do Distribuidordo Tribunal Distrital. George imediatamente pôs nosso perito a trabalhar nelas.Armado com declarações juramentadas de todos nós, ele propôs uma moção para metransferir para a Cadeia do Condado de São Francisco, sob a custódia do delegado

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federal ou, no caso de o tribunal ainda se recusar a fazer a transferência, a baixartantas novas ordens quantas fossem necessárias para compelir o diretor a obedecer àordem judicial de 8 de dezembro.

George não teve papas na língua ao defender a moção. Viera à penitenciáriaconseguir o reconhecimento de firma de uma declaração. O tabelião entrara,examinara o documento e depois chamara o funcionário encarregado do livramentocondicional. Veio o funcionário encarregado do livramento condicional. Houve umadiscussão sobre se a declaração poderia ou não ter a minha firma reconhecida. Tiveramde chamar alguém mais para verificar isso. Finalmente, aquela pessoa foi convocadanovamente. Então, foi preciso entrar em contato com o diretor e este teve de serencontrado. Por fim, o documento foi juramentado. Quase uma hora se passara, e nãomais do que cinco ou dez minutos deveriam ter sido necessários, no máximo.

Tinham-nos concedido um tempo limitado para preparar o processo, salientouGeorge. Mas toda vez que ele e Rosalie vinham à penitenciária falar comigo,encontravam demoras desnecessárias. Havia pessoas que ficavam por ali e contavammeus documentos. Contavam-nos antes de eu entrar na Gaiola, e depois de sair dela.Um guarda ficava de pé ou sentado a dois metros e meio ou três metros de distância.Toda vez que começávamos a trabalhar, havia interrupções. George passara toda umasemana discutindo com as autoridades da prisão sobre o significado da ordem dotribunal, e o que era autorizado a fazer por intermédio dele, e não dera em nada.Embora sempre houvesse um verniz de “necessidade” que se alegava, tudo aquilo nãopassava de “um processo de importação, que prosseguia interminavelmente.”

George pediu uma prorrogação de duas semanas e uma oportunidade razoável demanter consultas comigo.

Disse o juiz Goodman: “As coisas são assim mesmo. Se o senhor não quer seradvogado, então arranje um emprego mais calmo, e pronto.” E, “O senhor tem detrabalhar, é o que lhe digo.” Finalmente, “Mas eu não vou mudar a data da audiênciada questão. O senhor tem de se ajeitar com esse prazo, Sr. Davis.”

O Tribunal: “Aí, o caso é diferente. Se o senhor quer que a audiência seja no dia10, está certo.”

Interessante. Se George fosse tão insensato ao ponto de pedir ao tribunal quepusesse em vigor sua própria determinação, e nos desse tempo para preparar-nos,nada feito. Mas, se desejasse um dia extra para fazer algo que não tinha nada a ver

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com o caso, morresse eu ou não, isto era diferente. Isto era possível.Clarence Linn, Assistente-Chefe do Procurador Geral da Califórnia, entrou então

com suas deixas. Com referência à Srta. Asher. “havia uma pequena confusão na prisão.Ela fora denominada nos livros da prisão como uma amiga, ao invés de comoadvogado. (Pura bobagem!) Ela funciona como advogado.” Tal pormenor semimportância poderia ter sido esquecido, para evitar isso, ele o esclarecera.

“Ora, para mostrar como eles foram liberais, basta dizer que têm permitido ainvestigadores particulares entrar com os patronos, o que, segundo o regulamento daprisão, não seria permitido sob qualquer circunstância... eles entraram com umgravador de fita.”

Neste ponto Linn enveredou por longa peroração sobre “a última vez em que osr. Davis levou um gravador de fita à prisão, de que temos conhecimento,” que foi nofamoso caso Kenneth Long, e como George se fizera acompanhar por um psiquiatraque administrara um soro da verdade no prisioneiro, com históricos resultados –procedimento plenamente aprovado pelo juiz que presidira ao ju1gamento, mas nãopelo sr. Linn, ele, de fama de vamos-queimar-os-manuscritos-de-Chessman-ou-esperar-que-morra-e-depois-fazer-com-que-o-estado-os-publique-e-obtenha-os-lucros.

O juiz Goodman fez esse guerreiro legal se calar o bastante para introduzir umcurioso aparte: “Eu gostaria de fazer um parênteses para dizer que, embora não tenhanada a ver com este caso, a questão em apreço deveria estar nos tribunais do Estadoda Califórnia mas, até que haja alguma mudança na legislação, teremos de usar estalavanderia aqui para cuidar do assunto, ao invés do Estado da Califórnia.”

Linn prosseguiu, eriçando as sobrancelhas:“Gostaria de acrescentar, nesse tocante, meritíssimo, que em mais de uma

ocasião, objetos de posse do sr. Chessman têm sido contrabandeados paia fora daprisão, e não sabemos quem é o culpado (sic); pode ter sido um guarda, pode ter sidouma, dentre as numerosas outras pessoas que o têm visitado, mas há, eu não direitrechos de literatura porque não quero dignificá-las por esse termos, mas as coisas queuma prisão não deixaria sair, se soubesse que estavam sendo retiradas...”

George estava saturado com as digressões. Linn, acusou ele, “não tem a audáciade acusar um advogado de alguma vez ter feito algo desse jaez, e naturalmente nãosomos responsáveis pela direção e funcionamento daquela prisão e pela conduta do sr.Chessman, a não ser conosco.”

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“Acho,” disse o juiz Goodman, dirigindo se ao sr. Linn, “que é seu dever, e o deverdo diretor, neste caso, providenciar um lugar (para consultas) sem limitações, semrestrições, sujeito aos regulamentos de segurança da prisão...” Isto iria ser feito ou,então, disse o tribunal, seria baixada nova ordem. Além disso, dependendo de certidõesfornecidas pelos patronos, os peritos investigadores e testemunhas seriam autorizadosa falar comigo.

“A única coisa,” replicou Linn, um sujeito duro de convencer de que esseChessman deveria receber algo que não fosse sua dose de cianureto, “é que ele temmais liberdade do que teria se estivesse em Alcatraz, nas mesmas circunstâncias” – umaobservação, conforme se verificou, que poderá ter fornecido ao meritíssimo uma idéia“extraordinária” e “sem precedente”.

A decisão sobre a moção de transferência foi adiada por uma semana, mas nãoantes que Linn tivesse mudado de terreno e pronunciado uma diatribe contra mim.

“Ele constitui um problema de comportamento; não há dúvida, e o tem sido poranos, e lá ele tem comparecido perante juntas disciplinares vez por outra. Ele acha quedirige a prisão, e de vez em quando um pobre guarda reage de acordo. É precisodesculpar-se coisas desse tipo.”

Nossas esperanças de que as instruções expressas do juiz Goodman a Linnresultassem em uma melhora da situação em San Quentin foram de pouca duração.Quando não se forneceram facilidades adequadas, George protestou junto ao diretorTeets. Não importa qual fosse a ordem ou sugestão do juiz Goodman, disse Teets; eletinha instruções do sr. Linn para dirigir a prisão de acordo com seus próprios pontosde vista. E seus pontos de vista não incluíam quaisquer alterações na situação depatrono e cliente. Mais ainda, seus pontos de vista não mudariam no futuro.

Três dias mais tarde, George trouxe dois peritos para falarem comigo a fim dediscutirmos assuntos pertinentes à transcrição do escrivão, o âmago do problema emdisputa no processo. Depois de considerável dificuldade para fazê-los entrar, receberamordens para deixar a Gaiola dentro de uma hora. George requereu um adicional detrinta minutos para eles. Foi informado de que o diretor dissera para não concederemmais tempo – e eles foram embora. Foram forçados a esfriarem os calcanhares na salade espera, enquanto George completava sua entrevista comigo.

George já agüentara o bastante. Na manhã de quinta-feira, 21 de dezembro,estava ele de volta ao tribunal para forçar uma definição. Tinha transcrições,

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documentos e outros materiais. Estas eram as únicas cópias disponíveis para nós, e noentanto todas as tentativas de movimentar tais documentos haviam resultado emdemoras e importunações.

O problema, disse George, “chegou a um estágio, meritíssimo, em que eu querodizer que em vinte e quatro anos de prática, completados agora, e de considerávelprática nesse setor, e conferências em cadeias e prisões não apenas em todo o País, masem outras partes do mundo, eu nunca antes fui confrontado por tal tipo deimportunação, contínuo como um suplício chinês.”

Teets tinha seus pontos de vista sobre como sua penitenciária deveria serdirigida. Mas, conforme George esclareceu, ele, George Davis, também tinha um deverpura com seu cliente, de preparar-se efetivamente para aquela audiência. “E ascircunstâncias são tais que atingem ás raias do impossível, e fazê-lo dentro do prazoque recebemos é impossível. Eu tenho estado em algumas das prisões de maior índicede segurança na Europa, e sempre tive à minha disposição uma sala com facilidadescompletas, (sem) nenhum guarda dentro da sala...”

O sr. Bennett, seu adversário, contou então ao tribunal o “tempo de querealmente o sr. Davis dispunha em San Quentin,” que nada provava a não ser que erainsensato perder tempo tentando conferenciar comigo, quando as condições eram tãoinapelavelmente desfavoráveis.

A transferência para a Cadeia do Condado de São Francisco resolveria nossoproblema, disse George. “Não resolveria,” disse o meritíssimo. “E eu não possoconstruir uma cadeia, ou alugar um quarto no Hotel Mark Hopkins, e eles não têmfacilidades na Cadeia daqui, porque nós a inspecionamos totalmente.”

“Meritíssimo, com sua licença, eu debati extensamente o problema com o Sheriff– não com o Sheriff substituto (como o meritíssimo o fizera) – e ele me garantiu quetodas as facilidades que possamos esperar ou razoavelmente antecipar, estãodisponíveis na Cadeia do Condado.”

“Bem, Sr. Davis, eu não quero saber o que o senhor conversou com o Sheriff. Nósvimos as facilidades locais e elas simplesmente não existem na Cadeia do Condado deSão Francisco.”

Uma vez que todos os prisioneiros federais são mantidos para julgamentonaquela cadeia, tal opinião necessariamente significava que nenhum deles tiverarazoável oportunidade para conferenciar em particular com advogados, investigadores

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e testemunhas. Obviamente, o juiz Goodman se decidira a não nos conceder a únicacoisa que teria resolvido imediatamente o problema.

A discussão voltou às condições em San Quentin. O Sr. Bennett alegou que oguarda que supervisionava nossas conferências não ouvia o que dizíamos.

George esmagou tal asserção ao narrar como me contar uma piada, e “ouvi oguarda rindo da piada. Assim, fiquei sabendo que o guarda não estava apenas sentadolá, estava escutando. Todos estavam escutando, e eu estava cochichando.”

Sr. Bennett: Bem, contrataremos um guarda surdo, e colocá-lo-emos do lado defora da porta.

Sr. Davis: Bem, o senhor dispõe de muitos burros, e creio que poderia arranjarum surdo também.

O TRiBUNAL: ...Como eu disse, o senhor tem de usar suas roupas velhas lá, sr.Davis, e tirar o melhor partido dessas dificuldadezinhas, o senhor compreende.

Sr. Davis: Senhor juiz, com sua licença, já que V. Excia. levantou esta questão,fico realmente profundamente comovido pelo conteúdo emocional de suas declaraçõessobre a labuta que aguarda os advogados na sua fatigante representação de seusclientes.

A argumentação de George prevaleceu – no papel. O juiz Goodman emendou suaordem anterior, que passou a rezar que os patronos autorizados a conferenciar com osuplicante “devem incluir os advogados Davis e Asher.” Também, que “quaisquerperitos, investigadores ou testemunhas designadas e certificadas... pelo conselho dadefesa também serão autorizados a participar das entrevistas, da mesma forma edurante o mesmo período... outorgado para conferências com o conselho da defesa...”

Ele determinou, ainda, que o diretor ou seus prepostos e funcionários “nãodeverão examinar nenhum dos documentos que trocarem de mão entre os advogados eo suplicante em suas conferências, ou levados pelo suplicante às conferências.” Havia aressalva de que o diretor podia realizar “uma revista razoável em qualquer das pessoasque fossem às conferências, ao deixarem a prisão, conforme seja necessário paradeterminar se estão sendo retirados da prisão quaisquer objetos ou materiais dequalquer tipo, que não manuscritos ou documentos relativos a êste caso.”

A ordem abalou o diretor Teets. Na manhã seguinte, ele compareceu perante ojuiz Goodman, e agora era Bennett quem apresentava uma moção ao tribunal para metransferir para a Cadeia do Condado, para que “possamos lavar as mãos do problema.”

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O diretor tinha de manter a máxima vigilância sobre os condenados, disse ele.Tinha “apenas uma facilidade para tais visitas.” Não apreciava a ordem do tribunal;estava em conflito com suas idéias de como sua penitenciária deveria ser dirigida.

George interrogou Teets a respeito da Gaiola.“Não nos referimos a ela como ‘a Gaiola’, sr. Davis,” disse Teets. Era a “sala de

visitas dos condenados”.“Sim,” disse George. “E aquela sala tem, entre o condenado e os visitantes, sejam

eles advogados ou outras pessoas, um pesado dispositivo de tela, além de grades, não éverdade?”

“É correto.”“E a única abertura que existe, pelo que eu me lembre, é pequena, junto ao nível

da mesa, e é conservada fechada a chave, a menos que seja aberta por um dos guardas,para o propósito da visita.”

“Correto.”A abertura tinha “trinta e três centímetros por quarenta e três, com barras e

intervalos de dez centímetros na abertura, uma vez aberta a parte de tela,” prosseguiuGeorge.

Então houve uma nova revelação. Todas as testemunhas, investigadores eadvogados do sexo masculino, decidiu o diretor, poderiam usar o escritório doSargento da Guarda, no Corredor da Morte. A srta. Asher teria de continuar a usar aGaiola. Muito bem, disse o juiz Goodman. O problema estava resolvido.

George pediu para prestar compromisso e depor ele próprio. Foi rejeitado.Depois que Bennett solicitou novamente a minha transferência, George procurou emvão convencer o tribunal de que a única solução era me transferir para a cadeia doCondado. Não deu em nada.

Isto tornou uma piada a afirmação anterior do juiz Goodman. “Seria minhaopinião, sr. Linn, que eles devem ter o direito, se é que a preparação deve vir a terqualquer significado real, de conferenciarem em particular e livres de supervisãoquanto a quaisquer papeis que estejam examinando e que se relacionem com esteassunto. Não sei como o senhor poderá evitar isso.” Acrescentara o meritíssimo:“Porém, se o diretor achar que isto não pode ser feito, então vou ter de transferir acustódia.”

Eu estava agudamente cônscio do que significava esta última denegação. Suas

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conseqüências seriam destacadas em um documento juramentado que foi anexado aosautos permanentes do caso:

“Os prepostos do declarado estão agora convencidos de que o juiz Goodman nãotem intenção de pôr em vigor a sua ordem. Estão atualmente penalizando severamenteo declarante por causa disso e sujeitando-o a ridículo, abuso, insultos, medidasdisciplinares e importunação. Repetidamente revistam a pessoa do declarante e seusdocumentos legais. Menos de quarenta e oito horas depois que o juiz Goodman baixousua ordem emendada, a 21 do dezembro, um assistente de Diretor de Custódia em SanQuentin, Louis Nelson, desafiadoramente respondeu com uma ordem escrita segundo aqual o declarante o todos os objetos de sua... propriedade, incluindo documentoslegais, deveriam ser passados em revista, diariamente, por uma turma especial deverificação. As objeções do declarante foram postas de lado, às gargalhadas. ‘As ordensde um juiz não significam nada para a gente’, foi a resposta de um guarda. Há, alémdisso, uma nova ordem no sentido de que o declarante pode ser despidocompletamente, a qualquer hora; seus papéis legais podem ser examinados, a qualquerhora. Essas ordens se aplicam somonte ao declarante e a nenhum outro condenado. Odeclarante ouviu um sargento dizer, ‘O diretor não vai deixar nenhum maldito juizfederal (epíteto rasurado) ficar nos dizendo o que fazer!’”

“Os papéis legais do declarante, assim como sua pessoa, ainda são submetidos aum minucioso exame toda vez que o declarante vai para uma conferência legal com seuadvogado, ou dela retorna. O respeito às determinações de garantia do isolamento erauma farsa. O declarante se avistou com o advogado George T. Davis no escritório doSargento da Guarda, que fica fora da área engaiolada do Corredor da Morte, na sexta-feira e no sábado, 23 e 24 de dezembro de 1955. Nas duas vezes, o guarda sentou-sedo lado de fora da porta, observando, e aparentemente contando, todos os papéis queeram trocados, e tomou copiosas notas, uma prática iniciada desde que as ordens dojuiz Goodman foram baixadas. As precauções espúrias de segurança triplicaram, aoinvés de serem relaxadas, desde que aquelas ordens foram baixadas. No sábado, 24 dedezembro de 1955, o sr. Davis permaneceu à porta do escritório do sargento daGuarda e viu um sargento da prisão examinar todos os papéis que o declarantedesejava levar à conferência. O declarante estava à espera. O sargento pegou o fone,discou um número e se queixou, “Chessman trouxe uma caixa inteira de porcarias. MeuDeus, vou levar uma hora para examinar tudo. Além disso, não creio que alguns papéis

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do monte tenham relação com o caso dele”, embora tivessem. Quando o sargento viu osr. Davis de pé junto à porta, e compreendeu que fora ouvido, disse ao sr. Davis emtom desagradável, “Sr. Davis, o lugar que lhe foi designado é atrás da mesa, noescritório.” Finalmente, depois de remexer nos papéis do declarante, devolveu-os e avisita pôde começar, com um guarda observando.

“Na ocasião de sua chegada para a conferência de sexta-feira, o declaranteperguntou ao sr. Davis onde estavam as duas caixas de papéis que ele planejara trazer,e o sr. Davis disse ao declarante que as tinha no carro mas que não pudera trazê-laspor causa da forte chuva e pelo fato de o sr. White, no escritório do Diretor, não tê-lodeixado levar seu carro até a entrada da prisão propriamente dita. O sr. Davis foraobrigado a estacionar na borda dos campos da prisão, e andar cerca de duzentosmetros sob o aguaceiro, para ingressar na parte murada e então, depois de entrar,percorrer mais cento e cinqüenta metros antes de chegar ao bloco norte de celas,onde, no último andar, foi realizada a conferência. Se o sr. Davis tivesse trazido ospapéis, eles teriam se empapado completamente, arruinando-se.”

“Quando a conferência terminou, e tão logo o sr. Davis foi levado, sob escolta,para fora, o sargento instruiu o declarante no sentido de permanecer no escritório elhe disse que “eles” lhe haviam dado ordens para submeter o declarante a uma “revistacorporal”, significando que o declarante deveria remover todas as roupas e,juntamente com seus papéis, ser submetido a uma busca minuciosa. Agindo de acordocom instruções do sr. Davis, dadas anteriormente, o declarante pediu para falar com osr. Davis antes que esse saísse da prisão, a fim de explicar que a ordem do tribunalestava sendo violada. O declarante também pediu para ser informado sobre quemtinha dado a ordem para a “revista corporal”, se fora o diretor, e queria que aquelapessoa, fosse ela quem fosse, ficasse sabendo que ele protestava, sob a alegação de quea ordem do juiz Goodman estava sendo flagrantemente violada. O sargento se recusoua responder qualquer das perguntas do declarante, afirmando acaloradamente que nãotinha de transmitir nenhum protesto do declarante e pedindo para saber, repe-tidamente, e de forma beligerante, se o declarante se recusava a obedecer à ordem dese submeter espontaneamente a uma revista. Se o declarante se submetesseespontaneamente, o declarado poderia alegar que o declarante renunciara a seu direitoà ordem do juiz; se declinasse, como o fez, a submeter-se “espontaneamente”, entãopoderia ser acusado de violação dos regulamentos da instituição.

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“Um grupo de capangas, sob a direção do tenente O'Malley, veio à unidade edespiu e revistou o declarante, que se submeteu passivamente, sob protesto. Desdeentão, o declarante foi acusado de se ter recusado a obedecer ordens, nestes termos(para citar o documento de acusação), ‘o indivíduo em questão se recusou a atenderuma ordem direta... para se despir e submeter-se de boa vontade a uma revista de suapessoa.’ Este é, claramente, um método deliberadamente exasperante e cínico de pôr odeclarante em uma posição em virtude da qual pudesse ser colocado em regime deisolamento, sujeito a penas disciplinares e separado de seus documentos legais, com abenigna afirmação, feita pelo declarado ao tribunal e ao público, que o declaranteconstituía um problema de disciplina e que a punição fora puramente rotineira e semrelação, naturalmente, com o caso. Torquemada poderia tomar lições com oDepartamento de Correições da Califórnia.

Enquanto tentávamos preparar o caso para a audiência, a área da baía sofreualgumas de suas piores tempestades em cinqüenta anos. Em várias ocasiões, George eRosalie tentaram vir falar comigo, mas tiveram de voltar, porque as estradas estavaminundadas, ou tinham se esboroado sob as águas. Freqüentemente, quando Georgeaparecia, estava ensopado até os ossos.

“Ernk!”A cabeça de George ergueu-se de um golpe, e o charuto quase lhe caiu da boca.

“O que foi isso?”Eu tive um sorriso largo. “Isto foi um ‘oink’, com sotaque de Brooklin.”“O que?”Agora eu deixara meu patrono encafifado. Estávamos a dois dias do Natal, e

realizávamos nossa primeira entrevista no escritório do Sargento da Guarda, a unidadede controle do Corredor da Morte, dando vista para o corredor que confrontava ascelas de morte.

“Você leu ‘1984’, de Orwell?”George assentiu com a cabeça. “Sim. O ‘Big Brother.” (*)

“Isto mesmo,” disse eu, “O ‘Big Brother.’ E ‘A Fazenda dos Bichos’, também de

(*) Na obra, o “ente supremo”, omnisciente e todo-poderoso de uma sociedade comunista levada

às suas últimas conseqüências. (N do T.).

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Orwell?”Ele também lera aquela pequena sátira. Sabia de tudo sobre Snowball, o porcino

Napoleão de chapéu-côco etc.“Então dê uma olhada pela porta atrás de mim, mais além do guarda e da Gaiola,

e ao longo daquele corredor gradeado e entelado. Lugar melancólico, não, George? Eaquêles são os condenados, Mr. D. Eles acabaram de sair para o corredor, para operíodo de exercício, de duas horas. Aquele é todo o seu mundo.”

Sacudi o maço de cigarros, para tirar um.“Imagine-se enjaulado como um animal em uma daquelas celas, durante uma

porção de anos, esperando o carniceiro da sociedade, nobre alma, vir pegá-lo. É bemduro – a espera, a pressão, a tensão. Pode ficar tão duro que a gente se transforma emum idiota lamentoso, cheio de risadinhas ou rosnados. Não, não se usa violência física,a menos que a gente fique indócil na fita, provocando a reação. Mas o grande “BigBrother” baixa suas diretivas e políticas, e o pequeno “Big Brother” as segue. Ele nãonos concede vida particular. Ele nos vigia constantemente. Ronda a cela da gente.Censura-nos a correspondência. Prepara a nossa monótona dieta. Tem uma hora e umamaneira de fazer tudo. E ele ressente, talvez por temer quaisquer veleidades deindividualidade, qualquer leve desvio do rígido padrão. Se a gente deixar, ele atépensará por nós. Cortesmente, ele até nos dará o sinal quando for para tomar aquelainspiração profunda, e morrer. E se a gente não se conformar, passivamente, tornamo-nos criadores de casos.”

George estava começando a compreender. Ali estava um lugar que podiadegradar e destruir uma pessoa, como indivíduo, antes que ela fosse levada para baixoe destruída fisicamente. Era um lugar sombrio e horrível, e não se ousava tomá-lomuito a sério, a ele, nós próprios, ou ao “Big Brother”. Quando necessário, tratava-se orepelente drama do Corredor da Morte, como uma palhaçada penológica. E se vocêfosse Caryl Chessman (ou Eugene Burwell, ou James Rogers), encontraria maneirasefetivas de combater o lugar, de mantê-lo à distância. Criava-se, fantasticamente, mascom mortal propósito e efeito, um mito próprio, como contrapeso, e a gente opersonificava com a antítese da figura do tipo de autoridade porcina, Napoleão – “Big-Brother”: Joe Shoat, um individualista vulgar e rústico, nos moldes de Villon, digamos,ou Celini, que, com uma paixão pela vida e desprezo pela morte, lançava desafios aosdentes do cosmos autoritário, com o seu grito de gelar o sangue, “Ernk!”, e seguia seu

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alegre caminho, chocando as multidões Peckisniffianas e confundido o “Big Brother.”Foi Gene que “ernkara”. Eu o descrevi, a ele e a Rod, para George. “Você os está

vendo?”Ele estava.“São assassinos de guardas, condenados, George; os ‘monstros’ números Dois e

Três do Corredor. Assassinos degenerados, de sangue frio, chamou-os um promotor.São também meus amigos. Algum dia, quando tivermos tempo, quero lhe contar mais arespeito deles. Mas, agora, temos trabalho a fazer.”

Quando o levaram para fora, sob escolta, o sargento me disse para permanecerno escritório. “Big Brother” tinha outra surpresa reservada para mim – fui despidopela turma de capangas. Meus papéis legais foram saqueados. Eu tinha pela frenteacusações disciplinares.

Aquilo era insensato. Nós poderíamos ter recebido uma sala, em plena obediênciaà ordem do juiz Goodman, informados de que “Está certo, ei-la; mãos à obra” e tudo oque teria acontecido é que teríamos nos preparado para a audiência. Se eu quisessecontrabandear um manuscrito, ou fugir, ou fazer entrar algo, não precisaria dacolaboração de meu defensor. Havia outras maneiras. Mas a Autoridade achava que elaé que sabia as coisas. Super-sensível com respeito às suas prerrogativas, e iludida porsuas ficções, a Autoridade tolamente convertera a ordem de um juiz em um espúriodesafio contra si própria, e seus próprios e cegos princípios autoritários. Revidara comuma exibição coercitiva de segurança.

Quando, insultuosamente, a gente diz a uma pessoa que não confia nela, quandose procura controlá-la com a força, quando se alega, piedosamente, estar-se prestandoum serviço público ao pisotear direitos legais, a gente se coloca em uma posiçãovulnerável. Dá-se ensejo a um dia de ajuste de contas.

De volta à minha cela da morte, eu friamente pensei sobre o assunto.Freqüentemente, enfrentara uma última chance nos tribunais. Agora, tencionava daruma última chance aos tribunais. Eu me aprontaria para um embate legal decisivo – sepudesse. Se não pudesse, por não ter sido autorizado a tal, a alternativa óbvia era fazerarranjos para um embate extrajudicial.

Era hora de entrar em contato com alguns amigos, novamente, e fazer algunsplanos provisórios.

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CAPÍTULO 9XEQUE-MATE OUIMPASSE

COLOQUEI os papéis legais, e papel carbono, na máquina de escrever. Acendi umcigarro, e depois bati o título do tribunal e da ação e pus um cabeçalho no documento.Através de uma nuvem de fumaça de cigarro, franzi os olhos para as paredes e gradesda cela legal, porém sem enxergá-las. As teclas da máquina de escrever começaram oseu téque-téque.

“ESTADO DA CALIFÓRNIACONDADO DE MARIN“CARYL CHESSMAN, prestando primeiro o devido compromisso, dispõe e declara

que...”

Como se exigia, qualifiquei-me, identifiquei o processo e o juiz da audiência.“O Declarante”, prossegui, “está dando entrada a esta declaração de acordo com

o dispositivo do 28 U.S.C. parágrafo 44. Seu objetivo é desqualificar o juiz Goodman deouvir e decidir o processo, sob alegação de que ele nutre uma prevenção pessoal contrao declarante e está prevenido em favor do Diretor Harley O. Teets, diretor da Peniten-ciária de San Quentin, e do Estado da Califórnia, as partes contrárias neste processo.”

Dei uma tragada no cigarro e passei em revista os fatos no meu espírito. Os

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documentos de referência de que necessitava, estavam empilhados à direita da mesa dedatilografia. Desta vez não iria haver outro impasse no caso Chessman, mesmo que issosignificasse um xeque-mate. Desta vez eu tencionava tornar minha posiçãoinconfundivelmente clara: ou lutaríamos de acordo com as regras, ou deixaríamos todoo piedoso fingimento de lado. Comecei a trabalhar. A declaração completa tomou oitopáginas do tamanho legal. Ao ser apresentada, uma notícia de primeira página, em umjornal de São Francisco, sobre esta tentativa de opor exceção de suspeição contra o juizGoodman, classifica-la-ia de “um dos documentos de linguagem mais acerba jamaisrecebidos no Tribunal Federal Distrital daqui.”

A meio caminho da petição, Rod, um de meus companheiros do Corredor daMorte, gritara, “Hei, arranjem um extintor de incêndio. A máquina de escrever deChessman está pegando fogo.”

Eu escreveria:“...o juiz Goodman tem, teimosamente, denegado repetidos apelos e moções

solicitando uma ordem de transferência da custódia do declarante para o delegadofederal. Ele o tem feito em face de evidências esmagadoras de que o declarado e seusprepostos não podem, ou não querem, atender à ordem emendada do juiz Goodmanrespeitando o direito do declarante, seu defensor e peritos testemunhas e investi-gadores, de consultarem-se e conferenciarem livremente e em particular. Ele o temfeito em face da apresentação de tal moção pelo advogado do próprio declarado. Temafirmado que a Cadeia do Condado de São Francisco não possui as facilidades para taisconferências, embora não haja nenhuma evidência nos autos para suportar aafirmação, e embora tenha se recusado a permitir que o sr. Davis ateste em contrário.Tem afirmado, arbitrariamente, que as facilidades para a realização de consultas sãoadequadas em San Quentin, quando o próprio declarado admite não serem, assumindo-se que a adequabilidade é medida pelas e contra as próprias ordens e declarações dotribunal nos autos, e quando o declarante e seu conselho de defesa são sujeitos a todotipo concebível de importunação, humilhação e vexames, que o declarado e seusprepostos possam arquitetar, com o resultado de que o declarante está sendo impedidode preparar seu caso para a audiência, e o juiz Goodman se recusa a tomar qualqueratitude realista quanto a isso. Isto dá às afirmações do juiz Goodman, de que ‘Nós ofaremos’, referindo-se à transferência de custódia, e ‘Creio que o senhor tem direito atodas essas ordens’, incluindo a transferência de custódia, um som oco e motejador.”

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Sem poupar palavras, eu acrescentara:“O declarante afirma que tem sido submetido a abusos oriundos da linguagem

destemperada de juízes e de tribunais, e que não deveria ser compelido a ver a sua vidadependendo de um juiz que tem, irritadamente, denunciado seus esforços legais parasobreviver e que, além disso, tem dito, sem reservas, que é facultado ao declaranteexercer certos direitos legais essenciais, e depois os retira O declarante é inocente doscrimes do Bandido da Luz Vermelha, em virtude dos quais foi condenado. Ele estácansado, de ser usado como saco de pancadas por mentalidades doentias, oportunistaspolíticos, piedosos editorialistas e outros, quando tal espancamento é encorajado pelopoder judiciário. O declarante propõe que é hora de parar com esse julgamento à basede epítetos ou indignação virtuosa. O declarante crê que sua causa deve ser ouvida porum juiz que esteja zelosamente disposto a proteger seus direitos, não importa quãoimpopular tal orientação possa vir a ser, um juiz que lhe proporcione umaoportunidade razoável e legal, de se preparar para a audiência, um juiz que lhe concedauma audiência plena e justa sobre os fatos, e então que decida o caso sem paixão, semprevenções, sem estar de olho nas primeiras páginas dos jornais ou preocupado com ohabilidoso torneado de uma frase.”

“Em resumo, a roda parará de girar quando o declarante tiver seu dia, notribunal, perante um juiz sem prevenções.”

A declaração foi protocolada no Tribunal Distrital a 29 de dezembro. No diaanterior, George dera entrada, junto ao juiz Jesse W. Carter, da Corte Suprema daCalifórnia, a nossa petição de habeas corpus e uma cópia autenticada do acordo quehavíamos assinado, anexa ao documento n.º 1 do suplicante. De acordo com ajurisprudência da Corte Suprema, o ministro Carter, que atraíra para si tamanhabarragem por haver sustado, por duas vezes, a minha execução e depois teve suasentença confirmada pela Corte Suprema Federal, quando esta ordenara a realizaçãodas audiências do Tribunal Distrital, enviou a petição a seu tribunal, para consideração.Não tínhamos esperança de que o tribunal pleno concedesse uma audiência mas, serecusasse, não seria porque tivéssemos sido covardes.

Depois de destacar os fatos, eu pedira: Que a ordem do Diretor de Correições,Richard McGee, “proibindo aos condenados escrever obras para serem publicadas,assim como proibindo a mera posse de manuscritos pelos condenados, com ameaça deconseqüências disciplinares punitivas pela violação desse preceito... fosse julgada

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inconstitucional e inoperante, porque a ordem nega ao suplicante liberdade de palavra,em desafio às Constituições estadual e federal, porque ela o priva de sua propriedade edo direito de criar, vender ou transmitir propriedade literária, sem o processo de leidevido, e porque ela é arbitrária e caprichosa, e nega ao suplicante a proteçãouniforme das leis, ao arbitrariamente castigar a classe (prisioneiros condenados) à qualpertence o suplicante.”

Eu então solicitava mais um parecer expresso, afirmando que tinha o direito deentregar, imediatamente, o manuscrito de The Kid was a Killer à destinatária queescolhera, Frances Couturier, e de honrar o acordo assinado com Davis. De outraforma, eu poderia perder a vida unicamente porque o Departamento de Correições meimpusera o estatuto de indigência.

A 30 de dezembro, George compareceu perante o juiz Goodman, e ouviu omeritíssimo ler uma breve sentença, na qual se recusava a julgar-se suspeito.

Então o meritíssimo se ofereceu para me transferir para Alcatraz!Disse que, “uma vez que há contínuas queixas e objeções do suplicante e de seu

conselho de defesa, concernentes à maneira e natureza da custódia na penitenciáriaestadual de San Quentin, e à disponibilidade de tempo e facilidades para conferência, asúltimas das quais foram expressas na declaração a que deram entrada ontem, otribunal, por iniciativa própria, procurou verificar se a União, através do ProcuradorGeral, poderá prover facilidades que eliminariam algumas das objeções feitasconcernentes ao assunto. E, para esse fim, sob sua própria iniciativa, o tribunaldebateu a questão com o sr. Bennett Diretor dos Presídios Federais, em Washington,assim como o Diretor Madigan, na Prisão de Alcatraz.”

O meritíssimo fez alguns comentários sobre as formalidades de minha custódia.Depois, prosseguiu: “As únicas facilidades que o governo dos Estados Unidos tem, nestavizinhança, e que estão disponíveis, são as facilidades de Alcatraz. O Diretor dosPresídios e o Diretor de Alcatraz comunicaram ao tribunal que podem fornecer, para obenefício do suplicante, facilidades em Alcatraz que consistirão de um quarto separadona unidade hospitalar, fora do seu bloco de celas, na Prisão de Alcatraz, e uma salaparticular a ela adjacente, para consultas entre o suplicante e seu conselho de defesa eas testemunhas e pontos referidos neste caso.

O meritíssimo acrescentava, porém, que não baixaria a ordem de transferênciade custódia sem tanto o meu consentimento quanto o de meu advogado.

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A oferta, calorosamente apresentada como fora, parecia um pouco boa demais.George assegurou ao tribunal que se avistaria comigo o mais rápido possível. O

tribunal teria minha resposta logo.Então, George tentou conseguir que o Estado da Califórnia se juntasse ao Diretor

de San Quentin, como parte suplicada no processo. Nada conseguiu.“Pessoalmente”, disse o juiz Goodman, “não creio que faça muita diferença, de

uma maneira ou de outra.”A diferença que iria fazer seria fatal, como posteriormente se tornaria claro.Agora, que o tribunal fizera sua oferta de nos dar a oportunidade de nos

prepararmos, depois da perda de mais de três semanas, George solicitou umaprorrogação de duas semanas a fim de nos permitir, a nós e ao perito taquígrafo, quetínhamos posto a trabalhar nas anotações, realizar alguma coisa. Depois de acaloradatroca de palavras entre ele e o sr. Bennett, George recebeu seis dias.

Em seguida, George levantou a questão da notificação de testemunhas fora dajurisdição daquele distrito judicial federal.

O Tribunal: Creio que há algum dispositivo na legislação sobre a requisição detestemunhas de fora do distrito.

Sr. Davis: Se houver, ficaria muito satisfeito em conhecê-lo, e o Procurador Geralsem dúvida me porá a par dela.

Sr. Bennett: Isto abre uma vasta questão, meritíssimo. Não sabemos quem o sr.Davis deseja trazer ou porque ele deseja trazer...

Sr. Davis: Certamente que estamos dispostos a dar o nome das testemunhas.O Tribunal: Acho que o senhor tem de ter algo um pouco mais específico, sr.

Davis, para apresentar ao tribunal neste setor. Entrementes eu vou verificar o assunto.Tanto o tribunal como o sr. Bennett iriam ser brevemente informados das

testemunhas que der desejávamos apresentar.

ALCATRAZ OFERECIDA A CHESSMAN, anunciava um cabeçalho. Os jornaisjogavam com a oferta que me fora feita, de um “apartamento de dois quartos”, nasombria ilha-presídio do governo. O Rochedo(*) não era notório por sua hospitalidade

(*) “The Rock” - denominação popular da Penitenciária de Alcatraz, na baía de São Francisco. (N.do T.).

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aos presos, condenados ou não, e nunca, anteriormente, alguém tivera a chance de irpara lá ou não, à sua escolha.

A 31 de dezembro, vinte e duas horas depois que a oferta me fora feita, Davisenviou um telegrama para a casa do juiz Goodman:

“Notificando-lhe que Chessman consente na remoção para Alcatraz nas mesmascondições que se aplicariam ao Presídio de San Quentin, incluindo a possibilidade derealizar conferências em particular e elaborar documentos, o uso de máquina deescrever etc. Solicito providências imediatas, hoje se possível, uma vez que o tempourge e a oportunidade de conferências neste fim-de-semana, em San Quentin, nova-mente degenerou para os mais baixos níveis, indicando, praticamente, a perda de trêsdias de preparo.

Naquela tarde, George recebeu um telefonema comunicando-lhe que oconsentimento telegráfico para a transferência fora recebido pelo juiz Goodman, masnão seria posto cm vigor a não ser na terça-feira seguinte, 3 de janeiro, em virtude doperíodo de feriados interveniente.

George estava ficando cada vez mais desconfiado. Eu também. Já que o juizGoodman dissera que todas as providências tinham sido tomadas, por que não poderiaeu ser transferido imediatamente? O escritório do delegado federal tinha funcionáriosde plantão. Alcatraz ficava a menos de uma hora de carro, e depois quinze ou vinteminutos de barco, de San Quentin.

Na segunda-feira pela manhã, George telefonou, e nós três ficamos gostandoainda menos daquilo tudo. O telefonema foi feito para o Diretor Madigan, de Alcatraz.George estava telefonando, explicou, para saber se o diretor tinha recebido qualquerinformação antecipada de minha esperada transferência, e para saber das condiçõesgerais sob as quais eu seria mantido. Madigan disse que não, o juiz Goodman nãoestivera em contato com ele, mas tencionava entrar em contato com o juiz Goodman.Era evidente que o diretor não apreciava a idéia da transferência. As condições em seupresídio, salientou, seriam provavelmente mais severas do que aquelas em San Quentin.Eu não seria instalado no hospital, como dissera o juiz Goodman, mas sim confinado auma minúscula cela no velho bloco de celas, não mais em uso, o que equivalia aconfinamento solitário; e de acordo com os regulamentos do “Rochedo”, severasrestrições seriam impostas ao que eu seria autorizado a ter na cela. As facilidades paraconferências consistiriam de um quarto bem distante do bloco de celas. O diretor

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advertiu George de que as facilidades ligadas ao uso da sala eram “um tanto pri-mitivas”. A situação seria completamente inadequada para a srta. Asher. Madiganreiterou que falaria com o juiz Goodman na manhã seguinte, tão logo o meritíssimoestivesse disponível. Explicaria a situação, para evitar qualquer engano não intencional.

George veio ver-me. A oferta “extraordinária e sem precedentes” do juizGoodman perdera todo o seu brilho.

“Que espécie de brincadeira é essa?” disse eu. “O meritíssimo Louis E. Goodmanfaz alarde para nós e o mundo da proposta maravilhosa que me está fazendo, e diz quefalou com o diretor de Alcatraz. O diretor de Alcatraz então diz a você que não soubede nada do juiz Goodman. Tudo o que sabe é o que lera nos jornais, e adverte-nos deque não devo ir. E se o que eu quero é conseguir minha transferência para oconfinamento solitário, posso fazê-lo aqui. Muito bem, o próprio meritíssimo fez aoferta, sem ninguém pedir. Agora nós lhe daremos uma chance de pô-la em prática.”

Tão logo o tribunal abriu, na manhã seguinte, demos entrada a umconsentimento formal de transferência. Tudo o que solicitávamos era que atransferência adquirisse significado, através de uma ordem apropriada. George levoutodos os meus papéis legais pertinentes à audiência, para que eu não ficasseatrapalhado com eles na hora da transferência, que seria na manhã de terça-feira. Se atransferência devesse significar o que o juiz Goodman dissera, eu poderia recebê-los devolta em Alcatraz. Agora era a vez do meritíssimo.

George manteve-se disponível o dia inteiro de terça-feira. Nada aconteceu. Elenão podia dar-se ao luxo de perder mais tempo. Encerrado o expediente do tribunal,ele seguiu de avião para Los Angeles. havia testemunhas a serem entrevistadas, eoutras questões relacionadas com o caso tinham de ser tratadas sem demora.

Na manhã de quarta-feira, o juiz Goodman esfregou-nos no nariz o seguintedespacho:

“Uma vez que o suplicante não concorda com uma ordem de transferência de suacustódia para a Penitenciária de Alcatraz, nas condições estabelecidas pelo tribunal, naaudiência de 30 de dezembro de 1955, a custódia do prisioneiro não será alterada.”

Segundo os jornais, não havia jeito de contentar esse Chessman. Naturalmente, omeritíssimo não mencionava que “as condições estabelecidas pelo tribunal” não eramas condições que o homem que mandava em Alcatraz dizia existirem, realmente.Evidentemente, estávamos sendo repreendidos por não aceitarmos gato por lebre.

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Injustificavelmente, eu me recusara a abocanhar, cegamente, a isca, e ver-me lançadoem confinamento solitário.

Notificado da ordem do meritíssimo naquela manhã, em Los Angeles, Georgetelefonou para o diretor Madigan e indagou se a situação continuava a mesma, agoraque o diretor havia conversado com o juiz Goodman. Continuava, disse o diretor. Nãohaveria nenhuma vantagem possível – e todas as desvantagens imagináveis – natransferência. Além disso, eu não seria autorizado a usar uma máquina de escrever emminha cela ou na sala de entrevista, estivesse ou não presente o meu advogado.

Eu reli uma sentença da esplêndida oferta do juiz Goodman: “Em acréscimo aisso, esqueci-me de dizer que a srta. Asher poderia participar das ditas conferências aomesmo tempo, uma vez que a unidade à qual fiz referência, a unidade hospitalar, éfora do bloco de celas.”

O meritíssimo “se esquecera” de outra coisa: não haveria nenhum isolamento;seria a mesma coisa que trabalhar dentro de um aquário, e não havia nem uma latrinana instalação.

Tão logo George voltou, demos entrada a uma moção, solicitando ao tribunalque anulasse sua ordem anterior, denegando a transferência; e com a moção seguiramdeclarações, juramentadas, destacando todos os fatos. Na verdade, indagava-se ao juizGoodman: Por que a denegação de transferência? Por que V. Excia. disse que eu haviaacrescentado condições, quando tudo o que pedia era que V. Excia. especificasse suaspróprias condições, em uma ordem escrita?

A moção foi ouvida e “passada” – para o limbo judicial. O meritíssimo, significa-tivamente, não desmentiu um único fato das declarações. Desta maneira, eu pelomenos tinha um registro comprovado, para combater qualquer alegação futura de quehavia rejeitado uma oferta “extraordinária” e “sem precedentes”.

A situação piorou. Apresentamos ao tribunal uma lista de vinte e duastestemunhas residentes fora do distrito, cujo depoimento considerávamos altamentepertinente à apresentação de nosso caso, e solicitamos a sua notificação. O juizGoodman se recusou. Faltando apenas uma semana para as audiências, ele informou aGeorge que se julgara incompetente para determinar a notificação. Era tarde demaispara tomar depoimentos.

Ao mesmo tempo, requeremos um mandado determinando a produção imediatade vários registros tratando do caso, em Los Angeles, incluindo todos os registros,

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memorandos e relatórios dos guardas, sobre Stanley Fraser(*) e Helen Arthur Fraser,nos arquivos do Departamento de Polícia de Los Angeles. “Especialmente osapresentados na delegacia divisional de Walshire, 4526 West Pico Boulevard, LosAngeles, Califórnia, incluindo o livro de registro de ocorrências daquela delegacia, entrejulho de 1948 e fevereiro de 1951,” e “O registro hospitalar e os arquivos completossôbre Stanley Fraser, quando de sua hospitalização no Hospital Geral do Condado deLos Angeles em agosto de 1953, e tratamento de delirium tremens e tentativa desuicídio.”

Depois de longa discussão, o resultado foi que muitos dos arquivos e registros,incluindo os dois acima mencionados, nunca foram produzidos, e o remanescente nãofoi produzido até que começou a audiência.

George renovou sua tentativa de fazer o Estado da Califórnia aparecer comoparte suplicada, e seus prepostos diretamente responsáveis perante o tribunal.Novamente foi repelido. Disseram-lhe que a questão poderia ser resolvida na audiência.

Nós tínhamos esgotado as moedas para pôr na máquina judicial. Alguns milharesde dólares não vão muito longe quando os peritos e investigadores têm de ser pagos de25 a 100 dólares por dia além de despesas, e quando as despesas da defesa e dezenasde outros custos, incluindo a obtenção de transcrições das extensas audiências,anteriores ao julgamento, são totalizados. George e Rosalie já estavam desembolsandodinheiro próprio. Sem nenhuma outra alternativa, dei entrada em uma declaraçãojuramentada, pedindo permissão para funcionar in forma pauperis. Amargava-me serforçado a fazê-lo.

Para mostrar que eu dispunha de bens, se o Departamento de Correições fosseordenado a liberá-los, George requerera ao diretor Teets a produção do manuscrito,até então inédito, de meu romance apreendido, The Kid Was a Killer. Como se temesseque alguém pudesse arrebatá-lo e fugir, o diretor fez que o manuscrito, fortementeembrulhado, fosse levado ao tribunal por dois reforçados tenentes do presídio.Ninguém pôde nem dar uma olhada nele. E a notificação duces tecum, ordenando suaprodução, foi desprezada. O manuscrito foi retornado às pressas para o cofre de SanQuentin, no edifício da administração.

(*) Stanley Fraser “transcreveu” as notas taquígráfícas do estenógrafo do tribunal que faleceu

durante o decorrer de meu julgamento. É essa transcrição que alego ser falsa.

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O tribunal disse: “Sr. Davis, eu não vou perder tempo enfronhando-me emqualquer querela sobre quaisquer livros ou papéis que o suplicante alegue terem valor,porque não tenho nada com isso. O processo é apenas de habeas corpus.”

“Está certo; há apenas uma questão de vida ou de morte dependendo desteprocesso,” pensei.

O juiz Goodman me permitiu funcionar como indigente legal, mas disse que nãoachava que tal permissão significasse alguma coisa. Aparentemente, não significou.George procurou conseguir que as notas taquigráficas fossem copiadasfotostaticamente e nos fossem fornecidas sem despesas, nos termos da Secção 2250 doTítulo 28 do Código dos Estados Unidos porque, sob as condições de restrição queforam estabelecidas, nosso perito estava achando impossível completar seu confrontodas notas originais contra a transcrição Fraser. O juiz Goodman indeferiu orequerimento. A Secção, disse, não lhe dava autoridade para concedê-lo. Tambémdenegado foi um pedido de prorrogação, em último recurso.

Ainda por cima de tudo isso, em um movimento bem calculado, Tio Sam sapecouum direito de retenção contra mim, no valor de vários milhares de dólares, porimpostos não pagos sobre meus rendimentos de 1954 como autor. Isto significava quemesmo que eu conseguisse arranjar algum dinheiro, ele teria de ir para o governo; eunão poderia usar um dólar dele sequer, para pagar as custas da contenda.

O arrocho começara.Meu conselho de defesa e eu tivemos uma conversa final. Rosalie viera de

Sacramento, e ficaria até o término das audiências. Estava em férias de seu cargo deBibliotecária Legal do Condado de Sacramento.

George recusou-se a admitir que estávamos derrotados. A difícil corrida deobstáculos, posta em nosso caminho, havia meramente despertado seu instinto decompetição. “Nós ainda podemos vencer”, disse ele.

Dei uma gargalhada. “George, se alguém, que não fosse você, me dissesse issoagora, eu ia querer brigar. Mas o mais louco de tudo isso é que eu me sinto inclinado aconcordar com você.

“Nós temos um fundamento, que diabo”, disse George, mastigando o charutoapagado.

“Claro”, disse eu. “Só que, como vamos levá-lo ao tribunal?”“Sim”, disse Rosalie, “Como?”

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“Não sei”, disse George, “ainda. Mas deve haver uma maneira. Sempre há, se agente procurar bem. Tive um caso, uma vez...”

George nos contou de um difícil caso de homicídio na zona este da baía, quecausara sensação. Um persa fora acusado de matar a tiros sua namorada. Ou o seucliente saía do tribunal como homem livre, ou seria sufocado pelo gás letal,dependendo de uma coisa: se o júri iria acreditar em uma testemunha de voz pausada,do tipo vizinho-da-casa-ao-lado, da promotoria, ou no acusado, um “estrangeiro”amorenado, que falava um inglês estropiado. George de repente se convenceu de quetinha a solução. Um sovado truque teatral, diriam, mais tarde, com desprezo, algumaspessoas; um brilhante golpe de mestre, insistiriam outras. E o que disse o júri?

Inocente!Como George o conseguira? O acusado jurara pelo Alcorão, olhando para o

Oriente. E as cerimônias de prestação de juramento foram solenes. Uma vez que algunsmembros do júri eram maçons (como o era Mr. D.), a causa do acusado não seprejudicara pelo fato de que aquele cerimonial de juramento era similar ao ritual e àlinguagem do juramento maçônico!

Eu compreendi. Como poderíamos impressionar suficientemente o juiz Goodman,para obter pelo menos sua carrancuda assistência em apresentarmos provasfundamentais no tribunal?

A resposta certa significava a sobrevivência; a resposta errada, ou a falta deresposta, a morte.

A morte em uma saleta verde.Nossa entrevista já terminara há muito, e eu me quedara a pensar até ficar com

a cabeça tonta, quando, de repente, tive um “estalo”.Era isso!Dentro de sessenta segundos, minha máquina de escrever corria na velocidade

máxima.“Isto”, pensei, “ou me dará uma chance justa, ou então vou procurar justiça fora

do tribunal. Se não me deixarem nenhuma alternativa, darei um rude tranco nosdiscípulos do grande deus da Custódia, e da justiça da câmara de gás.”

Foram tomadas providências.Só havia um ponto fraco em meu plano: êle não levara plenamente em conta

Rosalie Sue Asher.

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CAPÍTULO 10DUELO NOTRIBUNAL

TEMPO: Nove e meia da manhã. Local: A sala gradeada e entelada no escritório doDelegado Federal.

“Mas, que diabo, Rosalie, eu quero fazê-lo”, disse eu pela terceira vez.“Certamente que sei do risco envolvido. Mas será que não tenho o direito de arriscar omeu próprio pescoço, se quiser?”

“Não”, repetiu ela.Voltei-me para George. “Explique para ela”, disse.Davis teve um largo sorriso. “Eu, não. Além disso, estou inclinado a concordar

com ela.”“Não deixarei que você faça isso”, repetiu Rosalie.“Está vendo?” disse George. “Eu lhe avisei. Ela já se decidiu. Se vocês me dão

licença, vou sair para fazer um reconhecimento, e depois me encontro com vocês doisno tribunal.”

George elevou a voz em um chamado, pedindo para sair.“Vou indo, sr. Davis”, replicou uma voz.“lnferno”, disse eu, tirando um cigarro do maço, “até meu amigo George dá o

fora em mim. Que posso fazer?”À porta, George voltou-se. “Você poderia tentar fazer caretas para ela,” sugeriu,

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matreiro. “Ou mostrar-lhe os matutinos, que acentuam ser você um monstro feroz eperigoso. Talvez isso a impressione.”

“Você é muito prestativo”, disse eu.O subdelegado abriu a porta, e George saiu.Acendi meu cigarro, tirei uma profunda tragada, e suspirei.“Vamos estudar esse negócio mais uma vez e então, se você ainda achar que não,

será não. Certo?”“Está bem.”“Sem ser por nossa falta, não estamos realmente preparados da maneira que

deveria ser. Desde que a Corte Suprema ordenou aquelas audiências, temos dado comobstáculos e armadilhas, e achamos que estamos amarrados com um juiz prevenido.Esse juiz ainda se recusa a intimar testemunhas de que precisamos para provar nossasacusações. Se não obtivermos o depoimento daquelas testemunhas, e uma audiênciacompleta e justa, estaremos perdendo tempo.”

“Não”, disse Rosalie. “Podemos recorrer. As cortes de apelação protegerão o seudireito a uma audiência completa.”

“Claro, podemos apelar”, disse eu, “e, provavelmente, poderemos ganhar orecurso. Mas onde nos leva isso? De volta para onde começamos. E êsse é o problema:já estou saturado de disputas judiciais, do Corredor da Morte e de tudo o mais. Seteanos e meio é o bastante. Assim, se não há nenhuma maneira de conseguí-lo, eu querodisputar a parada decisiva agora mesmo – ou nunca.

“Poderia ser nunca.”“Compreendo isso, mas estou disposto a me arriscar.” Apanhei um documento

legal datilografado, de duas páginas, dentre meus papéis. “Quero que George lance estabomba tão logo o caso seja iniciado. Quero que ele se levante e diga: “Meritíssimo,nesta oportunidade temos aqui uma estipulação que desejamos fazer. Está assinadapelo sr. Chessman, pela srta. Asher e por mim próprio. Nosso desejo é estipular,livremente, que não apelaremos se a sua sentença nos for contrária. A única condiçãoque fazemos, ao oferecer a estipulação, é que o patrono do Estado concorde – temosum lugar para a sua assinatura, aqui – em não recorrer, se a sua decisão nos forfavorável.”

Deixei o documento cair novamente sobre meus papéis.“Desta forma, limpamos a atmosfera. Comunicamos, formalmente, que falamos

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sério. E há o risco calculado. Será que mesmo um juiz que prejulgou a questão, e queestá disposto a me lançar em um escorregador lubrificado, que dá para a câmara degás, não estará virtualmente obrigado, através da pressão da opinião pública, a nosconceder o tipo de audiências pelo qual temos lutado todos esses anos? E, se nosconcederem essas audiências, nós ganharemos. Vamos escancarar esse caso.

“Sim”, disse Rosalie. “Se...”“Aconteça o que acontecer, eu não culparei você ou George.”“Se a estipulação for aceita e perdemos por não sermos autorizados a vencer,

você se terá colocado em uma posição em que George e eu não lhe poderemos ajudar,por mais que o desejarmos.”

(Talvez então eu me sentisse livre para me ajudar a mim próprio. Talvez ocaminho para a liberdade não passasse pelo tribunal, afinal de contas. Se a estipulaçãofosse feita, eu teria provas conclusivas, de uma coisa ou de outra. Todas as dúvidasestariam resolvidas.)

Rosalie nada disse por quinze segundos, pelo menos. Finalmente, falou.“Caryl, quero que você me dê sua palavra que, aconteça o que acontecer no

tribunal, você nada fará, judicial ou extrajudicialmente, sem primeiro conversar comigoe com George.”

Era a mesma coisa que me pedir para que eu me manietasse com algemas quenenhuma serra pudesse cortar.

“Quando dou minha palavra, eu a respeito.”“Eu sei. Se não soubesse você acha que teria passado de sete anos tentando lhe

salvar o futuro? Lembre-se, Caryl, de que nada se resolve quando não é bem resolvido.”Medi o chão a passadas compreendendo que se repudiasse tal lealdade, tal fé

inabalável e tal raro senso comum, seria menos ainda do que um homem – e mais doque um monstro – do que alegavam meus críticos mais ferozes.

“Diabo,” disse, “que tenho a perder a não ser minha reputação de cachorrolouco?... Está certo, Rosalie, você tem minha palavra.”

“Obrigado, Caryl. Você não lamentará tê-la dado.” Rosalie ergueu-se da cadeira.Eram quase dez horas da manhã.

Aquilo deixava por resolver a questão da estipulação, lembrei a ela.“Nós não vamos estipular,” disse, com firmeza.“Fui derrotado!” disse, sorrindo. (E eu é que era considerado o sujeito durão!)

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“Bem...” peguei a estipulação. “Adeus, amiga velha,” disse, e, lentamente, rasguei-a empedaços.

“Posso sair, por favor, sr. delegado?” chamou Rosalie para o subdelegadoencarregado da chave da porta.

Às dez horas da manhã do mesmo dia, flanqueado pelo delegado federal, Frank o.Bell; dois de seus assistentes, Wayne Ritchie e Frank Johnson, ambos antigos guardas deAlcatraz; e um tenente da prisão, R. J. Morin, entrei na apinhada sala de sessões dotribunal do meritíssimo Louis E. Goodman, mais parecendo, declarou Francis B. O’Gara,do Examiner, de São Francisco, “um próspero litigante civil que um prêso condenado,lutando pela vida.”

George Davis e Rosalie me aguardavam na mesa do conselho da “defesa”, entrealtas pilhas de documentos e transcrições legais. Instalei-me em uma cadeira entre elese juntamos as cabeças em uma conferência de última hora. Rosalie me recomendouque me mostrasse bem comportado. George assegurou-me de que estava preparado.

Um dos mais estranhos e mortais duelos na história da legislação criminal norte-americana estava para ser iniciado nesta manhã de segunda-feira, 16 de janeiro de1956. As audiências haviam sido apregoadas pela imprensa, cujos representantesestavam de pé, ou sentados, ao redor de sua longa mesa perto do lugar do juiz,esperando que as hostilidades começassem.

Em jogo, estava a vida de um homem. A minha.Conseguiria o celebrado e resplendente George Davis, como a imprensa o havia

chamado, trazer um notório “morto” de volta á vida, com sua mágica legal?“Outro assalto na luta de sete anos de Caryl Chessman para derrotar a câmara

de gás” – ou o demônio – “começa hoje, na Corte Federal daqui”, informara O'Gara, doExaminer, acrescentando que esse processo de habeas corpus, determinado pela CorteSuprema dos Estados Unidos, bem poderia resultar em uma “solução final em suabatalha judicial sem precedentes.”

Resultaria? Poderia resultar?“Hoje”, prosseguia a narração, “pela primeira vez, serão chamadas testemunhas

para depor sobre as acusações de Chessman, (entre outras) de que lhe foi negado odevido processo de lei e igual proteção legal, em virtude de uma transcriçãoalegadamente fraudulenta e inexata” dos autos do processo de julgamento, preparadapelo tio da mulher do Promotor Distrital, em seguida à morte do escrivão oficial do

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tribunal, sob a supervisão do promotor, e utilizada pela Corte Suprema da Califórniacomo fundamento para manter, em recurso, a sentença de morte e outrascondenações.

“Caryl Chessman, anteriormente ‘o criminoso que valia por dez.’... O perfeitohomem mau, com o quociente de inteligência de um gênio”, acrescentaria o Call-Bulletin de São Francisco, “foi levado hoje, acorrentado e algemado, ao prédio dosCorreios... Quatro guardas haviam trazido Chessman da Penitenciária de San Quentin,onde, durante os últimos sete anos e meio, ele sua frio no Corredor da Morte. Em seisocasiões anteriores, o vilão condenado esteve à sombra da câmara de gás, só para tersua execução adiada por meio de uma chicana judicial.”

“Este comparecimento, no entanto, é o seu derradeiro.”Talvez. Mas fique prevenido. Não escorregue. Não se deixe empurrar.“O escritor de 34 anos, de Corredor da Morte, estará armado com massas de

documentos e uma lista de cerca de 30 testemunhas, ao abrir o caso, registrou DavidPerlman, do Chronicle, de São Francisco. “O Estado vem tentando enviar Chessman àcâmara de gás de San Quentin, desde 1948... Um brilhante escritor, que aprendeuDireito em uma cela da morte de San Quentin, Chessman até agora se livrou de seisencontros com a morte; recorreu ao Supremo Tribunal Federal nove vezes,” além deum incontável número de vezes a tribunais federais e estaduais inferiores.

“A maior parte desses apelos, ele próprio os preparou; e enquanto osapresentava, encontrou tempo para escrever dois livros que foram best-sellers – 2455,Cela da Morte, e A Lei Quer Que Eu Morra – e várias outras obras inéditas.”

“Agora, Chessman está contestando a validade do primeiro processo legal queconfirmou sua sentença de morte inicial, imposta por tribunal.”

A imprensa salientava que “medidas de segurança sem precedentes” haviam sidotomadas, “para qualquer eventualidade.”

A imprensa fora excluída da rampa do porão e vizinhanças, meu ponto dechegada e de partida. Um policial uniformizado fora incumbido de guardar a entradapara a rampa, com outros nas imediações, de prontidão. Dentro do prédio, o corpo defuncionários do delegado federal assumira a responsabilidade. Os corredores entre oescritório do delegado haviam sido interditados para todos que não fossem funcioná-rios autorizados, indo ou voltando do tribunal. Dentro da própria sala de sessões, logoque entrei, todas as portas ficaram guardadas; um “guarda de segurança” sentou-se a

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uns dois metros atrás de mim, e outras precauções haviam sido tomadas.“Uma vez que Chessman chegue à sala de sessões, só o juiz Goodman poderá

traçar-lhe o destino”, dizia um jornal.Isto tomava por assente muito que não estava aparente.“Será que um de vocês tem uma bombinha de festas sobrando, para me

emprestar?” sussurrei.Rosalie me concitou ao silêncio, com um “shhhh”.“É melhor deixar os fogos de artifício comigo,” disse George.“Parece que assim tem de ser.” Olhei para os espectadores. Nenhum emprestou

qualquer significado a meu aceno, e o quase imperceptível, porém enfático, meneio decabeça.

“Não,” significou aquele meneio. “Esperem.”“Dois amigos,” sussurrei, ainda mantendo o rosto sem expressão.Rosalie olhou para mim, severamente.“Estão interessados em que seja feita justiça,” acrescentei, sorrindo levemente.“Caryl, se você...”“Não se preocupe, se houver alguma coisa, começará daquela direção.” Apontei

para o juiz. “De modo que aquele é o lugar e a pessoa que é melhor vocês vigiarem.”Meu olhar derivou novamente para os espectadores, entre êles Bill Linhart, que

piscou para mim. Sentado a cerca de quatro metros de distância dele, estava seuassistente Alan, ostentando a sua habitual expressão neutra. Então localizei o terceiro“amigo”, que me disseram estaria presente, um homem corpulento, parecendo muitojovem para seus trinta anos. Hollywood, onde morava, nunca o teria lançado no papelde vilão; nem ele era ator. Nem ninguém o teria associado com o casal, também deHollywood, sentado no lado oposto da sala da côrte: êle com uma calva nascente, demeia altura e talvez com trinta e oito ou trinta e nove anos de idade, poderia ser umdiretor de alguma firma, e sua esposa , elegantemente vestida, a líder de seu círculosocial.

Poderiam ser – mas não eram. A ocupação daqueles três era consideravelmentemais arriscada.

Quatro minutos se haviam passado desde que eu tomara lugar à mesa da defesa,quando soou a hora.

“Todos se levantem”, disse o meirinho. O juiz Goodman, de beca preta, entrou na

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sala, caminhou até a mesa e sentou-se. O meirinho continuou com as palavras rituais,concluindo: “Este egrégio tribunal está agora em sessão. Nós nos sentamos novamente.Houve um arrastar de pés.

O escrivão convocou o caso de Chessman contra Teets, “audiência sôbre habeascorpus. Queriam os respectivos advogados por favor dar seus nomes para os autos?”

George identificou-se e a Rosalie, “pelo suplicante”, William M. Bennett e oassistente Arlo E. Smith anunciaram-se “pelo suplicado”. O suplicante também estavapessoalmente presente – “em custódia,” anotariam as atas do escrivão.

Cumpridas essas formalidades, Bennett apresentou um requerimento deadmissão aos trabalhos, perante a corte, do “Sr. J. Miller Leavy, a quem solicitaríamosque se associasse ao nosso conselho neste caso.” O sr. Leavy, disse Bennett, foraadmitido à Ordem dos Advogados estadual em 1931; exercera advocacia no escritóriodo Promotor Distrital do Condado de Los Angeles desde outubro de 1932.

A primeira escaramuça legal havia sido provocada. George, de pé, protestavaacaloradamente. Leavy era uma das partes acusadas pelo suplicante de fraude; ia seruma testemunha material na audiência, tinha vital interesse pessoal em seu resultado.Seu emprego e reputação estavam em jôgo.

“Nas circunstâncias peculiares deste caso”, disse George à corte, “solicitar que osr. Miller Leavy participe dos trabalhos, como advogado, seria mais ou menosequivalente a pedir, cm data posterior, que o juiz Fricke participe como juiz desteprocesso”. Insistiu que isso era desnecessário injustificado e contrário à ética;levantaria uma séria dúvida quanto à equidade da própria audiência.

O juiz Goodman, dardejando o olhar pela sala apinhada, esperou Georgeterminar, e depois prontamente passou por cima de suas objeções, e deferiu orequerimento de Bennett. J. Miller Leavy, um homem de aparência agradável, cabelocortado à escovinha, começando a ficar grisalho, a voz sonora e o hábito de lamber oslábios, tomou lugar à mesa do conselho, ocupada por Bennett e Smith. Daí em dianteLeavy participaria ativamente – e algumas vezes teatralmente, ao folhear papéis deforma impressionante, pedir para examinar documentos, interpondo comentários eprecipitando-se para o banco das testemunhas – como advogado do suplicado, além defigurar como testemunha importante no processo.

E eu, há apenas questão de minutos estivera discutindo violentamente comRosalie sobre a apresentação de uma estipulação de que não recorreríamos! Agora

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podia ver como o pessoal da Procuradoria Geral teria abocanhado a chance deestipular, maravilhado ante a minha ingenuidade. Como poderiam perder? Obviamenteestariam garantidos e sabiam disso. Eu enfrentava um revólver judicial carregado.Aquela estipulação te-lo-ia disparado, expulsando me deste mundo.

Já que eu fora autorizado a comparecer in forma pauperis, George requereu aotribunal uma transcrição diária do processo, custas a serem cobertas pelo governo. Orequerimento foi deferido; obviamente, indeferi-lo teria sido um abuso flagrante dadiscreção da corte. Desde então, toda manhã, recebíamos uma cópia da transcrição,feita pelo escrivão, dos trabalhos do dia anterior; George a utilizava com significativoresultado ao inquirir testemunhas.

Mas o juiz Goodman não hesitou em negar de imediato, em rápida sucessão,primeiro a renovação de nosso pedido formal para que as notas taquigráficas – emtorno das quais girava a audiência – fossem copiadas fotostaticamente sem despesas, asquais efetivamente sufocavam qualquer posterior estudo delas fora do tribunal, umavez que os originais não podiam ser removidos da custódia do escrivão; e, em segundolugar, nosso renovado requerimento pedindo que o Povo do Estado da Califórnia, assimcomo o encarregado de minha custódia, fossem citados como co-suplicados, o queserviu para nos colocar em uma posição ainda mais inauspiciosa.

Com respeito a esse último requerimento – classificado pela imprensa como mera“formalidade”, sem conseqüência real – o juiz Goodman adotou a curiosa posição deque tinha liberdade de decidir qual o campo de ação que nos seria atribuído nainquirição de testemunhas contrárias – em especial o juiz Fricke, J. Milier Leavy eStanley Fraser – e que ele também tinha o direito de exercer seu arbítrio, ao invés deestar limitado pela Consolidação Federal de Leis de Processo Civil, na determinação doefeito obrigatório de seus depoimentos contra mim.

Agora eu tinha um laço legal em torno do pescoço, e ele estava sendo apertadomesmo antes de que a primeira testemunha prestasse depoimento. Em seguida, viriamas algemas jurídicas.

George procurou obter minha transferência para a Cadeia do Condado de SãoFrancisco durante as audiências. De outra forma, ficaríamos grandemente prejudi-cados, uma vez que eu não estaria disponível para consultas. O juiz Goodman disse queiria estudar o assunto. Mais tarde, naquele dia, ele determinou que eu deveriapermanecer em San Quentin, mas poderia ser trazido para o escritório do delegado

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federal às 8.30 da manhã e lá permanecer, depois da suspensão dos trabalhos da corte,até as 18 ou 18,30. Todos os dias, eu teria de ser registrado à saída e entrada de SanQuentin, um processo demorado, e ainda teria toda a minha bagagem legal examinadaduas vezes por dia pelos funcionários da prisão. Teria a escolher entre não transportarcomigo papéis importantes, ou correr o risco de ver seu conteúdo amplamentedivulgado.

O meritíssimo Louis E. Goodman havia traçado o meu destino.Quando George procurou pôr o tribunal a par do que tencionávamos provar, as

provas que apresentaríamos e a natureza exata dos problemas. o juiz Goodman fê-localar-se. O meritíssimo havia lido a petição, afirmou. Isso era tudo o que se fazianecessário. Além disso, presidira o julgamento de uma grande quantidade de casos dehabeas corpus. Sabia como tratar deles.

“Sim, pensei, não há duvida de que V. Excia. sabe, meritíssimo. E é claro que V.Excia. tem algumas idéias fixas sobre como lidar com este. Mas nós temos algumassurpresas para V. Excia. Pode ficar certo de que eu tratarei disso.

George estava irritado, agora, mas isto só era aparente para alguém que oconhecesse bem. Suas ações eram mais deliberadas, sua maneira, ainda maisexageradamente polida. Os espectadores inclinaram-se para a frente nos bancos,antecipando uma erupção de hostilidades, e um pouco de trovejamento da parte deGeorge Davis.

George, porém, estava fazendo um jogo de espera. Seu plano não era atacarsombras, mas contra-atacar um inimigo legal, e estava confiante em que aquele inimigose exporia logo. Entrementes, não se deixaria levar a um movimento mal calculado, porprovocações.

Bennett fez o primeiro passe, procurando pegar-nos desprevenidos, através deum hábil truque tático. Solicitou que os autos da Corte Suprema da Califórnia fossemoferecidos a exame como provas suas (isto é, do suplicado.)

George tinha agora a abertura que desejara. Exigiu que o suplicante fosseautorizado a apresentar sua causa de sua própria maneira, uma vez que ele havia feitoas acusações e tinha o ônus de prová-las. Com um encolher de ombros que implicavaque apenas quisera ser prestativo, Bennett calou-se.

George prosseguiu. Como primeira testemunha pelo suplicante, chamou PaulDiNoia, escrivão-assistente na Corte Suprema da Califórnia.

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“O senhor está aqui, sr. DiNoia, em resposta a uma notificação duces tecum?”“Estou.”E, sim, DiNoia trouxera consigo os volumosos autos de seu tribunal sobre o caso

Chessman.George pediu que eles fossem marcados como prova n.º 1 do suplicante. DiNoia

foi dispensado. Cecil Luskin tomou assento no banco das testemunhas. Luskin, reveloua inquirição, fora escrivão-assistente de Condado de Los Angeles desde 1946, e antesdisso sheriff assistente durante dezessete anos. Em 1948, fora designado para otribunal do juiz Fricke. Atualmente, era chefe da divisão criminal do escritório doescrivão do Condado de Los Angeles.

Sob a orientação de George, o sr. Luskin identificou os numerosos autos tratandodo caso Chessman que fora instruído para trazer. Esses, então, foram marcados paraidentificação.

George S. Jones, Escrivão do Tribunal Superior do Condado de Marin, foichamado a depor. Luskin desceu do banco das testemunhas enquanto ele prestava umbreve depoimento e, em cumprimento à notificação duces tecum que lhe foraentregue, apresentou o arquivo n.º 308, do Condado de Marin. Era o processo dehabeas corpus de maio de 1954, perante o juiz Thomas Keating, que quase fez que oProcurador Geral da Califórnia fosse citado por desrespeito à corte; concedeu-me umsursis de execução acerbamente contestado, horas antes que a marcada para a minhamorte; e, para desespero dos funcionários da Promotoria do Estado, tribunaissuperiores e o próprio governador, estabeleceu que a sentença à páginas 349 de 2455,Cela da Morte, então recém-publicado, era uma declaração de fato e não uma bravataôca: “Estou pronto a recomeçar tudo, a partir da corte baixa estadual, com novoprocesso, com nova ofensiva legal.”

O grosso arquivo foi marcado para identificação. Jones foi dispensado, e Luskinvoltou ao banco das testemunhas. Houve uma suspensão dos trabalhos, para almoço.Então, teve prosseguimento a identificação e marcação dos autos de Luskin.

O juiz Goodman ficou impaciente. Parecia querer que nós simplesmentelargássemos os autos ali para constar no processo, uma maneira perigosa deapresentar provas. Em certa ocasião ele exclamou: “O senhor está levando muitotempo, sr. Davis.” Em outra, interrompendo o interrogatório de Luskin, feito porGeorge, disse: “Mas que pergunta tola!”

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Nós não pensávamos assim. George, adiantando-se rapidamente, não estava lácom jeito de fazer “perguntas tolas”, mas não retrucou. Os autos falariam por simesmos.

Às três e alguns minutos, faltando apenas uma hora para a suspensão dostrabalhos, e com todos os arquivos e autos mais importantes – agora enchendo váriascaixas – marcados para identificação, George pediu uma interrupção para que ele,Rosalie e eu pudéssemos percorrer as milhares de páginas de provas, uma tarefaformidável mesmo sem limite de tempo, e localizar os documentos que teriam de serusados no interrogatório das testemunhas. Isto, disse ele, evitaria demoras nostrabalhos, quando se procurasse um determinado documento, soterrado sob centenasde outros.

O requerimento irritou muito o juiz Goodman. Nós poderíamos ter localizadoesses documentos antes, admoestou ele.

Ele não nos disse como poderíamos ter realizado tal proeza. Os autos acabavamde ser postos à nossa disposição. Anteriormente, não pudéramos conseguir acesso aalguns deles. Os que tínhamos localizado, desde então haviam sido embaralhados aoserem copiados fotostaticamente para uso no tribunal, ao serem encaixotados,transportados, folheados pelas testemunhas e marcados pelo escrivão. Nem porsombras continuavam em sua ordem original.

“Chame sua próxíma testemunha,” ordenou o juiz Goodman.Nossa próxima testemunha seria Stanley Fraser, comunicou George. Fraser não

estava presente, embora havia dias tivéssemos informado ao tribunal que ele deveriaestar presente, como nossa primeira testemunha importante, quando as audiênciascomeçassem. O tribunal o havia ordenado, e os advogados do suplicado haviamgarantido à corte que ele lá estaria. George foi repreendido por isto também, como se,por inferência, ele tivesse de saber que a ordem do tribunal, e as garantias dosadvogados oponentes, não significavam nada.

Bennett então teve uma declaração extraordinária a fazer. Foi ainda maisnotável, por ter sido seu superior imediato quem havia garantido a presença de Fraser.“Perdoe-me a linguagem pouco jurídica,” disse, “mas a hora é de provar o que diz, ouentão calar a boca. Vamos ver as provas dessa vasta conspiração, de que tanto ouvimosfalar.”

Quase que estourei em gargalhadas ante este absurdo dos absurdos, mas levei

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um chute nas canelas que sufocou meu impulso. Rosalie não dormia no ponto.O juiz ameaçou encerrar a fase de instrução imediatamente se, no futuro,

nenhuma das partes estivesse com suas testemunhas prontas. Uma vez que estavamalém da influência das notificações esta ameaça nos deixou à mercê do Estado, no quedizia respeito a duas de nossas três testemunhas contrárias mais importantes. Haviaoutros querelantes esperando, anunciou o meritíssimo; ele não tencionava ficarnaquele caso “até o Natal.”

Tudo isso porque havíamos solicitado urna interrupção de uma hora!Finalmente, foi-nos concedida a suspensão – além de outras coisas. Sabíamos,

agora, exatamente o que tínhamos pela frente.“Todos permaneçam sentados a não ser o suplicante e o guarda de segurança,”

apregoou o meirinho da corte, Louis Linss.Saí da sala de sessões. Logo depois da porta, flashes explodiram-me no rosto e

câmeras rodaram. Novamente algemado, fui levado de volta ao escritório do delegado.

Quando George apareceu e foi trancado conosco, eu media o chão a passadas,mastigando galinha frita. Minutos antes, um funcionário me trouxera uma refeição eeu a espalhara em cima da pequena mesa. Rosalie, sentada a um canto da sala, tinhaum copo de papel com café na mão, um cigarro na outra.

“Bem, Caryl... Rosalie.” George largou a pasta e os jornais da tarde em cimacadeira. Pisquei para ele, enquanto ele tirava o sobretudo.

“Estava acabando de dizer a Rosalie,” disse eu, “a sorte que tive em não tê-ladeixado me convencer a dar entrada naquela estipulação. Você sabe como ela deu duropira me forçar a fazê-lo.

George manteve o rosto sério. “Certamente que sei, e acho que foi escandaloso,”disse.

“Vocês dois!” disse Rosalie.George escolheu um pedaço de galinha.“Doutor,” disse eu, “tire essas mãos jurídicas e cheias de dedos de minha

galinha!”George não me deu muita importância.“Desculpem-me o mau jeito,” disse Rosalie, quando terminamos a galinha,” mas

acho que devo lembrá-los, alegres rapazes, de que temos um problema.”

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“Foi um dia instrutivo,” disse George.“Ela é apenas uma desmancha prazeres,” acrescentei, lavando as mãos. Mas sabia

que chegara a hora de fazer um sério planejamento.“Fui agarrado pela imprensa,” disse George. “Foi isto que me atrasou. Também

falei com Bill Linhart. Ele e Alan estão mesmo a trabalhar com suas engenhocaseletrônicas. Vão passar boa parte da noite ocupados. Bill me disse que virá falar comvocê de manhã para apresentar um relatório.”

“Ótimo,” disse. “Bem, creio que agora sabemos precisamente o que temos diantede nós, no tribunal. O problema é o seguinte: o que faremos?”

“Lutaremos,” disse George.“Mas não nas condições oferecidas. Nada de vendas nos olhos. No meu modo de

ver, o juiz Goodman tenciona entregar a você um revólver de festim, de salvas, emlugar de uma pistola de duelo. Fará muito barulho, proporcionará entretenimento paraos espectadores e repórteres e lhe dará oportunidade de fazer uma boa exibição – masuma vez que você comece a usá-la, estarei frito, com perdão da palavra. Descobri issoquando o meritíssimo se mostrou tão disposto a permitir que Leavy figurasse nostrabalhos, e quando se mostrou disposto a nos deixar na situação em que poderíamosou convocar Leavy, o juiz Fricke e Stanley Fraser como nossas próprias testemunhas,ou então nada feito. É melhor nos convencermos de que, agora, a única maneira de sedescobrir uma fraude neste tribunal, de acordo com a nova definição dada pelo juizGoodman a essa palavra, será uma das partes acusadas de fraude subir ao banco detestemunhas e dizer: “Sim, devo confessar. O senhor tem razão. Conspiramos erealmente preparamos uma transcrição fraudulenta.” E nenhum de nós é tão ingênuoa ponto de acreditar que isto acontecerá.”

George concordou, com um aceno de cabeça. “Continue.”“Portanto, a menos que nos rendamos submissamente, sem lutar, ou

inversamente, a menos que nada mais façamos do que soltar rugidos inúteis, enquantoo Estado me vai enrolando em sua teia antes de me enviar para o carrasco, istosignifica que temos de conseguir que as minutas dos trabalhos mostrem claramentecontra o que lutamos, e estamos lutando. Temos de esgotar todos os recursospossíveis, à nossa disposição. Temos de continuar lutando por nossas testemunhas,mesmo sabendo que isto provavelmente é inútil. Temos de dar ao juiz Goodman umachance de dizer não, não e NÃO! até que o tribunal fique parecendo com uma sessão da

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ONU em um dia de mau humor dos russos.Continuei a catalogar as necessidades. “E isto não é tudo,” disse.“Você quer dizer que há mais?” perguntou George.“Há mais. Muito mais. O povo acredita que o querelante vai ao tribunal e faz uma

acusação. Há uma audiência. Ele apresenta suas provas e, naturalmente, tem todas asoportunidades para fazê-lo. Depois o querelante oponente apresenta as suas provas, eo juiz decide imparcialinente a causa. Presumivelmente, faz-se justiça. Mas nós sabemosque não é sempre assim, e é por isso que há tribunais de apelação. Sabemos que, semser por sua culpa, o litigante pode ser apanhado em uma teia de aranha deformalidades, que a prevenção, consciente ou inconsciente, do juiz pode fazer a balançapender para o lado contrário, que, em resumo, a lei também pode ser aplicada contraele, além de a seu favor.”

Esmaguei o toco do cigarro no cinzeiro, e acendi outro. “Quando isso acontece,”continuei, “nosso querelante ou diz para o diabo com todas essas bobageiradas legais,ou encontra a maneira de demonstrar que uma injustiça santarrona tem se disfarçadode justiça. Francamente, quando percebi como iam ser orientadas essas audiências,meu primeiro impulso foi dizer para o diabo com tudo isso e, não estando preso, dar ofora. E não para San Quentin. A despeito de toda essa espetacular exibição de custódia,eu havia elaborado um plano, “só por garantia,” e ninguém se teria machucado. MasRosalie tem uma teimosa crença na possibilidade de o caso ser resolvido favoravel-mente nos tribunais. Já que eu lhe devo a vida mais de seis ou sete vezes, ela não tevemuito trabalho em extrair uma promessa que exclui quaisquer atividades extra-curriculares de minha parte, tais como dar o fora sem mais aquela.”

“Ou, possivelmente, arranjar de ser morto na tentativa,” disse George.“Está certo, ou possivelmente arranjar de ser morto na tentativa. De qualquer

modo, esse tipo de solução estava excluído, e meu segundo impulso foi fazer o que vocêsugeriu há um momento atrás – lutar. Levantar-me e descer o braço, sabendo desde ocomeço que o resultado seria um fracasso. Mas isso, compreendi, seria uma loucura, edificilmente justificaria a crença de Rosalie. É exatamente o que aqueles que estãoansiosos para me envenenar com gás gostariam que eu fizesse, e ultimamente nãotenho estado disposto a lhes dar esse tipo de cooperação. Então eu me acalmei umpouco. Lembrei-me que você sempre ganhou suas causas por ter uma teoria a respeitodelas. Talvez estejamos errados, mas desta vez decidimos que seria o bastante alvejar a

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oposição com os fatos e a verdade, e teríamos apostado em um ganhador. Bem, naminha opinião, esta é, ainda, a única teoria praticável.”

George encolheu os ombros, mas sem sombra de derrotismo.“Para ganhar, agora, temos de perder, e isto não é um paradoxo, como tenho

certeza que vocês concordarão, quando eu explicar o que tenho em mente. Paraganhar, você, George, se estiver disposto, terá de deixar que os outros façam gato esapato de seu ego e, aparentemente, lhe dêem a maior sova de sua vida jurídica.”

Apontei para as caixas de provas, trazidas do tribunal. Rosalie e eu as havíamosexaminado rapidamente, verificando os documentos. “A resposta, tenho certeza, estáali em grande parte. É como um grande quebra-cabeças, que foi espalhado em dozelugares diferentes, e com tantas peças extras que nunca ocorreu a ninguém, exceto,provavelmente, para os advogados do Estado, armar o quebra-cabeças e ver o que deveser visto Até agora, nunca fui capaz de fazer isso, e o advogado do Estado não quer queisso seja feito. Lutarão com fúria redobrada se tiverem uma suspeita que forMr. D., eisqual é o seu objetivo real.”

Expliquei minha teoria com pormenores. O seu princípio orientador foraenunciado, havia séculos atrás, por um sábio romano: Ars est celare arten – “Averdadeira arte é o ocultamento da arte.” A Califórnia fora astuciosa, pelo menos.Através da “engenhosidade humana”, ela havia preparado um conjunto de autos emvirtude dos quais a minha vida fora declarada confiscada pelo Estado. Agora cabia anós empregar essa mesma engenhosidade humana – e o que um enraivecido promotoruma vez denominara a “virtuosidade histriônica” de George – para destruir aquelesautos.

Eu estivera observando as reações do juiz, dos advogados oponentes,espectadores, guardas, amigos e inimigos. Estivera ouvindo com toda atenção, e comum terceiro ouvido psicológico. Lera os jornais, nas suas linhas e entrelinhas. Nossasreações haviam sido previstas.

Davis era um cospe-fogo, e o tribunal e a oposição estavam preparados para lidarcom um cospe-fogo. Iam ter uma grande surpresa. Rosalie era simplesmentedecorativa, uma intelectual com diploma de advogada. Ficaríamos satisfeitos se todoscontinuassem a pensar assim – por algum tempo. Entrementes, Rosalie permaneceria,em público, uma esfinge que tomava notas, alternadamente sorrindo e franzindo osobrolho. Sem ser percebida, ela também estaria desempenhando uma função vital. Eu,

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para muitos, era um “monstro” condenado, em exposição, na melhor das hipótesesuma amedrontadora e incompreensível curiosidade de outro mundo e – bem, vocês quecontinuem. No tribunal, minha incumbência seria parecer, como diz o povo, tão gordo,bobo e feliz quanto possível.

“Em linhas gerais, é isso,” disse eu.“Fico satisfeito porque sempre me dão os serviços fáceis,” disse George. “Falando

sério, acho que dará certo. Nós faremos que dê certo. Você sabe, há vinte e cinco anosas pessoas vêm me dizendo que, no fundo, sou um ator frustrado. Se é verdade, apartir de amanhã de manhã eu deverei perder toda a minha frustração em uminstante.”

Assim, pusemos a girar a Roda da Fortuna. Eu apostara a minha vida onde eladeveria parar.

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CAPÍTULO 11JUSTIÇA? JUSTIÇA!O QUE É ISSO?

GEORGE SE INCLINOU PARA MIM. “Bem, lá vai. ‘Ars est celare artem’ – espero.”Ajeitando distraidamente a gravata, aproximou-se a mesa do juízo, enfiou a mão nobolso da calça e olhou a seu redor, franzindo o sobrolho, como se estivesse perplexo. Ojuiz Goodman o observava atentamente. Os repórteres e os advogados do Estadotambém.

Não invejei meu advogado pelo que foi a hora mais brilhante de sua carreira –embora, aparentemente, a mais tenebrosa. Ela se estenderia agoniadamente durantevários dias, em que Rosalie e eu estremecíamos, maravilhados.

17 de janeiro: o segundo dia das audiências, que continuariam até 25 de janeiroe então concluir-se-iam, abruptamente, com uma nota de inquietação. Nessa ocasião, oque fora debatido e atestado daria para encher quase mil páginas da transcrição dostrabalhos, feita pelo escrivão. Muitos milhares de palavras mais teriam aparecido nosjornais. O volume das provas do caso daria para atulhar uma saleta. E George Davis,fustigado e escarnecido, com o seu ego ardendo, cumpriria magnificamente a suamissão.

Nunca, em um tribunal, aquele provérbio latino seria melhor comprovado. Nem,até ser tarde demais, iria o advogado do Estado compreender que a “vitória” tão fácilem uma batalha jurídica poderia custar-lhe a guerra legal. Cavalos de Tróia seriam

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prêmios insignificantes demais para serem reclamados pelo vencedor.Cecil Luskin subiu novamente ao banco das testemunhas. George logo entrou em

função, depois de uma animada troca de palavras com o juiz Goodman e Bennett, sobreum documento que não havíamos conseguido localizar. Isto levou à introdução, comoevidência, da maior parte de nossas provas que, no dia anterior, haviam sido marcadasapenas para identificação. Então, George me chamou para depor.

Identifiquei a prova documental n.0 17 do suplicante (ainda não apresentadacomo tal), como sendo uma cópia autêntica daquela vital declaração juramentada queeu tinha dirigido ao tribunal estadual, pedindo, especificamente, que fosse produzidaquando se realizasse a audiência destinada a resolver sobre a transcrição contestadadas minutas do julgamento, preparada por Fraser com base nas anotações do escrivãofalecido. Sim, disse eu, procurara no arquivo n.º 1 do Cartório do Tribunal Superior enão fora capaz de encontrá-la ali. George então pediu para que o documento fosserecebido como prova.

“Meritíssimo,” disse Bennett, erguendo-se, “antes de decidir a respeito,poderíamos nos certificar se não está mesmo no arquivo original?”

“Sim,” disse o juiz Goodman, reservando seu julgamento.Sem causar surpresa a ninguém, o documento foi encontrado, agora que

havíamos estabelecido sua existência, e depois que os jornais haviam anunciado:Chessman Diz que Recursos Foram jogados no Lixo. Naturalmente, foi por uma dessasinfelizes distrações do escrivão que o mais importante de todos os documentos, emnossa série de provas, não fora copiado fotostaticamente.

Mais ou menos na mesma hora em que o documento era localizado, outradescoberta era feita no Corredor da Morte em San Quentin, na cela onde eu fazia meutrabalho legal. Logo depois da saída da turma de inspeção regular, aconteceu de umguarda entrar na cela, escolher um livro na estante e encontrar aquele exemplar de ALei Quer Que Eu Morra que estivera em plena vista durante seis meses. Tenentes,sargentos e guardas o haviam visto, dezenas de vezes, ao revistarem minhas coisas, enunca lhe haviam dado atenção. Outra notável coincidência. Ergueu-se um clamor.“Mas o que é isto! Um livro contrabandeado!” Tomaram-se medidas disciplinares.Instaurou-se um a grande investigação. Mais três revistas da cela foram realizadas, e eunão fui mais autorizado a usá-la. No sábado seguinte, sob as vistas de dois tenentes,depois de a cela ter sido novamente revistada, e me terem dito, “Por que você não joga

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fora toda essa tralha?”, fui avisado de que deveria levar minha “tralha” para a Cela2455. A cela legal fora fechada para sempre. Tão logo as audiências da corte federalterminassem, o diretor faria algumas comunicações peculiares à imprensa e eu seriasubmetido à ridícula formalidade de um julgamento pela junta disciplinar local, emvirtude da odiosa ofensa de ter em meu poder um “livro não autorizado” – de minhaprópria autoria.

“É tudo, sr. Chessman.”Retornei à mesa da defesa.O sr. Fraser estava presente? perguntou George. Estava, disse o sr. Bennett.Stanley Fraser foi chamado ao banco das testemunhas e prestou juramento. Um

homenzinho de idade, cheio de corpo, de rosto redondo e fala pausada, estaimportante testemunha contrária, que havíamos acusado de frente, permaneceu sobincisiva inquirição durante três dias.

O Chronicle de São Francisco diria:“George T. Davis, que tem arrebentado uma porção de testemunhas em sua

resplendente carreira de advogado, deu com uma dura de roer na Corte Federaldaqui... Disparou uma porção de perguntas contra Stanley Fraser, um escrivão detribunal de Los Angeles, tipo baixinho e meticulosamente preciso, e cobriu bastanteterreno. Mas ficou praticamente na mesma, em seus esforços para provar que CarylChessman foi vítima de uma conspiração para condená-lo à morte.”

Foi o mesmo com os outros jornais e serviços noticiosos. Na maior parte, eles seconcentravam no evidente, em lugar do real, e os repórteres presentes estavamconvencidos de que George deveria ter perdido sua forma. Para eles, Georgeassemelhava-se a um pugilista que está apanhando duro de seu oponente e, noentanto, entre os assaltos, sorri largamente e diz: “Acho que estou mostrando umascoisinhas a esse sujeito.” Naturalmente que estava, e brilhantemente. Paracompreendê-lo, no entanto, a gente precisava estar olhando na direção certa.

O meritíssimo Louis E. Goodman recebeu todas as oportunidades de tornar claraa sua posição – para os autos. Não hesitou em atender-nos.

Embora Leavy e Fraser fossem acusados de conspirar visando a preparar umatranscrição fraudulenta, o juiz Goodman não permitiu a George perguntar a Fraser seele e Leavy haviam conversado antecipadamente sobre seus depoimentos. “Um júri,”

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disse ele, “pode algumas vezes impressionar-se com isso; eu não.”Não obstante o fato de a posição de Fraser, como escrivão da corte, e suas

qualificações, estarem diretamente em pauta, o juiz Goodman declarou, quando Fraserera inquirido por George: “Não estou interessado na história da testemunha”, e, “Nãoestamos interessados, para o julgamento do habeas corpus, na qualificação ou nopassado de qualquer dessas pessoas.”

O meritíssimo então jogou uma bomba arrasa-quarteirões em cima de nós. Senão tivéssemos previsto como seriam as audiências, ela nos teria sido fatal. Nossapetição afirmava, claramente, que as notas taquigráficas do escrivão falecido estavam,“em grande parte, indecifráveis”, e que Fraser era “incompetente para copiar” essasnotas. Este era o problema fundamental do caso. No entanto, quase no começo da in-quirição de Fraser por George, o juiz Goodman disse que não iria permitir que aexatidão da transcrição de Fraser ou sua habilitação para transcrever as notas fossempostas à prova. George esmurrou a mesa, e seguiu-se essa troca de palavras:

O Tribunal: Claro que não sei o que ele (Fraser) pôs na transcrição.Sr. Davis: É por isso que estou tentando saber.O Tribunal: Não creio que a Corte Suprema dos Estados Unidos pretendia que eu

passasse dias ou semanas nesse tribunal, a verificar a exatidão desta transcrição.Mesmo que o pretendesse, eu não vou fazer isso.

Sr. Davis: Bem, poderíamos gastar talvez dez minutos com isso?O Tribunal: Isto não é objeto de disputa neste caso. Este homem (Fraser) poderia

ter sido o mais incompetente escrivão do mundo, e poderia ter feito uma atrapalhadada transcrição ao datilografá-la, e mesmo assim isso não levantaria nenhuma questãofederal. O Estado da Califórnia e as partes nesse processo poderiam determiná-lo.

E depois:O Tribunal: É isto mesmo, não vou submeter a provas a sua (de Fraser)

habilidade neste processo, nem verificar se a sua afirmação de que transcreveu este –fez essa transcrição corretamente – é correta, ou não... E se há qualquer falhaprocessual envolvida nisso, como disse a Corte Suprema, isto é outro problema. Masquanto à sua mera exatidão – ela poderia – ela poderia estar setenta e cinco por centoerrada, e mesmo assim não levantaria nenhuma questão federal.

Para se garantir, acrescentou: “...mas o que o Estado da Califórnia oferece, noque diz respeito a métodos de providenciar uma transcrição, não concerne ou diz

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respeito a esse tribunal.”Estarrecidos, Rosalie e eu nos entreolhamos, enquanto George prosseguia,

fazendo um pormenorizado “oferecimento de prova”. O Juiz disse ser isso “umaexposição dos seus pontos de vista na questão,” acrescentando, “eu talvez venha apassar meu tempo aqui a ouvir polêmicas entre o senhor e alguns escrivães, sobre seum certo símbolo era azul ao invés de verde...”

Então Davis foi acusado de agir de má fé ao tentar fazer com que Fraser lessesem ajuda, se pudesse (o que finalmente admitiu que não podia), só uma determinadapágina das anotações taquigráficas, no banco de testemunhas, e por pressupor queFraser iria conferenciar com as outras pessoas que com ele haviam sido acusadas defraude, se tentasse fazer uma cópia de um dia para o outro. “Não dou a mínima im-portância a isso,” disse o meritíssimo.

Por ter explanado nossa posição no assunto, George foi acusado pelo juizGoodman de fazer “discursos”, os quais, disse, “não me causam a mínima impressão.” Ojuiz Goodman disse que não se poderia esperar que Fraser copiasse aquela página nasala de sessões. “Não podemos exigir isso dele. É ridículo.”

Era tão “ridículo” que confirmaria o que eu procurava, em vão, conseguir umaoportunidade de provar havia oito anos.

O juiz Goodman tentou então forçar Davis a dizer que não confiava no tribunal,meramente por não concordar com que Fraser tentasse uma transcrição fora dorecinto, e em condições em que Fraser pudesse consultar a sua própria transcriçãoanterior, e falar com Leavy. Finalmente, disse que Fraser poderia fazer a transcriçãodaquela página já identificada das anotações, no dia seguinte, no recinto, e George foiforçado a abandonar a questão. Tal teste não teria significado. Durante a noite, Fraserteria toda oportunidade de fazer comparações com a sua transcrição, e de estudar acópia fotostática das notas taquigráficas em poder de Leavy. Se Fraser fosse capaz deler as notas, e não fosse culpado de fraude, o teste não lhe teria sido justo. Se nãofosse capaz de ler as notas, sendo culpado de fraude, o teste não nos teria sido justo.Mas era assim que, aparentemente, o meritíssimo queria que fossem as coisas.

Mais adiante, nas audiências, o Estado apresentou Paul Burdick, um escrivão detribunal aposentado. Qual, perguntou-lhe o advogado da suplicado, era a sua opiniãoda transcrição de Fraser? “Um momento,” disse Davis, e perguntou como a permissãodada pelo tribunal a Burdick para responder àquela pergunta podia ser conciliada com

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sua decisão anterior, sustentando que a exatidão da transcrição, e a habilitação deFraser para decifrar as anotações taquigráficas do escrivão falecido, não estavam emquestão.

“Além disso,” disse Arlo Smith, “este homem (Burdick), é um perito. Certamenteque ele está capacitado a opinar sobre a exatidão da transcrição,” e o juiz Goodmanconcordou. A pergunta poderia ser respondida. Nós estávamos sendo realmente bemtratados.

Burdick traçou uma resplandecente imagem do serviço feito por Fraser. Umatranscrição de grande fidelidade. Além disso, as anotações de Perry(*) mostravam que ascontrovertidas instruções para o júri coincidiam exatamente com a transcrição.

Agora, estávamos em um buraco. Se o Estado conseguisse se sair com essafantasiosa manobra, nossa posição seria desesperadora. Eu estaria perdido. “Deixe, queeu vou pegá-lo,” cochichou George. Levantou-se e se aproximou do banco detestemunhas. Seu interrogatório foi casual, amistoso e letal. Sim, admitiu Burdick, eleera um “grande amigo” tanto do juiz Fricke como de Fraser. Sim, considerava Leavyseu amigo também. Sim, fora contratado pelo Estado, por intermédio de Leavy – erecebera 100 dólares para examinar um certo trecho da transcrição, comparando-acom as anotações; 50 dólares por dia para examinar verificar outros trechos; 50dólares por dia para comparecer como testemunha; setenta e oito centavos por milha,a título de despesas de transporte, por uma viagem de mil e seiscentos quilômetros, idae volta a Los Angeles.

Davis começou então a sondar as qualificações de Burdick, e este prontamenteanunciou que não dissera ser um perito na taquigrafia de Perry. O juiz Goodmaninterrompeu para afirmar, inacreditavelmente: “Ele não disse isso.” Mas, naturalmente,como os autos o demonstravam, ele dissera exatamente isso, e o mesmo fizera Smith,que sem dúvida recebera instruções para oferecê-lo como perito “certamente quecapacitado a opinar sobre a exatidão desta transcrição.”

George desferiu o golpe. Burdick admitiu que não seria capaz de ler uma páginainteira, ou mesmo meia página de um determinado trecho das anotações de Perry! Elesó conseguia entender uma ou outra palavra! (Não obstante, fora capaz da espantosa

(*) Ernest R. Perry era o estenógrafo do tribunal que falecera subitamente durante o meu

julgamento, em 1948.

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proeza de examinar as anotações em comparação com a transcrição, habilidadeequivalente à de uma pessoa que não soubesse ler o original de um livro em línguaestrangeira, mas que fosse capaz de se pronunciar, como perita, sobre os méritos datradução para o inglês.)

Então, vieram admissões ainda mais espantosas de Burdick; ele encontraratrechos, na transcrição de Fraser, em que faltavam os debates; outros, em que Perryhavia “resumido” suas notas; em que, por seis a oito páginas, os trabalhos no tribunaltinham sido “rápidos e acalorados” em que palavras eram omitidas; em que passagensaté de sete e oito linhas, de símbolos taquigráficos de Perry, sobre os debates quanto àadmissibilidade de depoimento, não haviam sido traduzidas. Sim, as anotações de Perryeram “difíceis de se ler”. Sim, em certos trechos, elas estavam “completamenteilegíveis.” Sim, as anotações sobre as controvertidas instruções ao júri estavam“completamente atrapalhadas com aquelas anotações a lápis” de Fraser, e essasanotações, também, estavam “irreconhecíveis”. Burdick não conseguia lê-las. O juizGoodman então afirmou que não estava interessado na habilidade da testemunha emdecifrar as anotações que lhe fossem apresentadas.

Claro que não.Não tivemos chance de chamar a depor, sobre as anotações, o nosso próprio

perito.Durante as audiências, a Corte Suprema da Califórnia, contra o voto vencido do

ministro Jesse W. Carter, indeferiu minha petição de habeas corpus visando a forçarum pronunciamento definitivo sobre o direito da penitenciária de me proibir deescrever, e de apreender e conservar os meus manuscritos. Com os recursos estaduaisexauridos, prosseguimos, dando entrada a um requerimento impetrando mandado desegurança para liberar o manuscrito de The Kid Was a Killer e afirmando que euestava autorizado, pela Constituição, a usar o produto de meu intelecto a fim deatender às custas da causa, e pagar meu advogado.

O juiz Goodman denegou a petição in limine, dizendo-se “incompetente” parafazer tal declaração em um processo de habeas corpus. Não poderia interferir com“regulamentos de segurança” da prisão. A justiça do homem pobre estava passandomal naquele dia. Que tolo eu fora, pensei, em confiar aos tribunais a solução desseproblema, e por não ter contrabandeado The Kid Was a Killer para fora da prisão,quando tive a oportunidade!

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Duas vezes mais, quando se fizeram novos requerimentos, o juiz Goodman disseque não era “competente” para ordenar a notificação de testemunhas de Los Angeles e,com uma exceção, recusou-se a providenciar a sua produção, embora, como foimencionado, muito antes de as audiências começarem, ele assegurara a Davis que, comou sem autoridade legal específica, tentaria conseguir que todas as testemunhas dedepoimento relevante fossem produzidas. Depois ele negou um pedido de prorrogaçãode duas semanas, para que pudéssemos tomar depoimentos. Não há necessidade disso,disse ele.

JUIZ DE L. A. PODE SALVÁ-LO, DIZ CHESSMAN, anunciou a imprensa.E o juiz Goodman afirmou que o meritíssimo Wiliam B. Neeley era a única

testemunha, residente fora do distrito, a quem estaria disposto a chamar. Então, aosaber que deveria ser testemunha, o juiz Neeley, antigo defensor publico do Condadode Los Angeles, de repente não se lembrou de mais nada, e até forneceu umadeclaração juramentada neste sentido. Não mencionamos a carta que eu recebera dojuiz Neeley, há alguns anos, na qual ele afirmava, sem reservas, que se recordavaclaramente da questão em pendência. Que teria adiantado?

Era desencorajador. Mas George nunca se esquecia de nosso objetivo – nem debancar o palhaço, quando a ocasião o exigisse e a tensão ficasse muito grande. Estavaele dando duro em Fraser, e o tribunal ficara muito irritado, porque George pareciaprocurar “provar uma negativa”, quando ocorreu o seguinte:

Pergunta: E não é verdade, sr. Fraser, que, embora o senhor possa ter sido capazde transcrevê-las, (as anotações de Perry), sem entrelinhas a lápis, o resultado teriasido mutilado, ilegível, e uma monstruosidade de relatório?

Sr. Bennett: Oh, se o meritíssimo me der licença...O Tribunal: Terei de manter a objeção contra isso.Sr. Davis: Pergunta: Bem, não é verdade que o resultado...O Tribunal: O senhor está voando alto demais, creio eu.George sabia como se atrapalhar.Sr. Davis: Não é verdade, sr. Fraser, que o resultado, sem a ajuda de suas

anotações, seria – na verdade seria mutilado e realmente – bem, seria mutilado, não éverdade?

Todos sorriram, e deram uma risadinha às custas de George. O pobre coitadodevia estar perdendo sua forma. Sua sorte fabulosa se esgotara. Estava levando uma

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sova, e nem mesmo o percebia.Quando chegou a hora do meritíssimo Charles W. Fricke, de quem poderíamos

ter esperado fria hostilidade, Davis sorria gentilmente.O Tribunal: Podem começar, senhores.Sr. Davis: Juiz Fricke.Juiz Fricke: Presente.Sr. Davis: O senhor teria a bondade de tomar assento na mesa do juízo – perdão

– no banco das testemunhas.(O juiz Fricke prestou juramento.)Sr. Davis: Este foi mesmo um lapso freudiano.A inquirição feita por George ao mentalmente vigoroso jurista de setenta e três

anos, que havia condenado à morte um total de acusados mais de duas vezes superiorao de qualquer outro juiz, na história da Califórnia, foi bem descansada. Sim, depôs ojuiz Fricke em sua voz profunda, ele presidira ao julgamento do caso Chessman. Georgeentão inquiriu-o sobre seu longo passado, como promotor e juiz, e sobre os livrosjurídicos que escrevera.

O palco estava armado. Mais peças do quebra-cabeças se tornavam disponíveis.Rosalie e eu começamos a armá-las.

O juiz Fricke soubera, depôs ele, que as anotações não poderiam ser transcritascom suficiente exatidão e que outros escrivães as haviam examinado e não conseguiamlê-las, mas Leavy havia lhe informado que Fraser era capaz disso. Leavy afirmara que ojuiz Fricke, ao saber que a Associação dos Escrivães do Tribunal do Condado de LosAngeles havia protestado contra a tentativa de transcrição das anotações, feita porFraser, fizera “alguns comentários”... no sentido de que a Associação dos Escrivães deTribunais não tinha nada a ver com a maneira pela qual ele dirigia seu tribunal.

O juiz Fricke depôs que dissera a Leavy para apanhar as anotações de Perry eprovidenciar para que fossem postas sob a custódia do secretário do Tribunal Superior,e Leavy disse ao juiz Fricke que isso tinha sido feito. Mas tal ordem nunca foi atendida.As anotações de Perry, revelaram as provas, haviam sido guardadas ou por Leavy oupor Fraser, desde 1948, e quando Fraser completou a transcrição, ele as conservouconsigo. Ainda em 1954, elas haviam sido guardadas em uma garagem, pelo irmão deFraser, e o juiz Fricke nunca soube disso. Depois, as anotações foram guardadas emuma caixa de depósitos de segurança, por Cecil Luskin e Leavy, de modo que eu nunca

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pude mandar examiná-las, até que fossem produzidas perante o Tribunal Distrital, nomês anterior. Conforme alegado, elas haviam sido conservadas escondidas por Leavy. OEscrivão do Condado de Los Angeles dissera a Luskin que as anotações deveriam serentregues a ele para serem depositadas em lugar seguro, e Luskin depôs: “Eu informeiao sr. Leavy daquele fato, e ele me disse que não queria que as anotações fossemremovidas da caixa do depósito de segurança naquela ocasião.” Leavy conservara asanotações.

Fraser, conforme alegáramos, recebera mais de três vezes os emolumentosregulamentares pela preparação daquela estranha transcrição Fraser. A alegada relaçãoentre Leavy e Fraser existia mesmo. Fraser era tio da mulher de Leavy, e, disse, “commuita honra”. Fora tão modesto quanto a essa honra, porém, que ocultara esseparentesco do juiz Fricke até depois da questão do manuscrito ter sido resolvida. Omesmo fez Leavy.

Fraser admitiu que deixara Leavy examinar o “rascunho” de sua transcrição, eque realmente “se aproveitara da colaboração dele (Leavy), de suas idéias, de suarecordação de trechos em que encontrava dificuldades...” Leavy também admitira querealmente examinara aquele rascunho, tanto em casa como no escritório, de vez emquando – talvez por mais de vinte e cinco ocasiões diferentes – e se assegurara de que“estava indo bem”. Uma maneira bem imparcial de proceder, naturalmente.

Então, fez-se uma revelação inacreditável. Sem o consentimento, ou ciência dojuiz Fricke, de minha parte, mas com o conhecimento, e por sugestão de Leavy, Fraserconferenciara com suas testemunhas-chave da promotoria, os detetives de Los AngelesLee Jones e Colin Forbes, sobre o rascunho da transcrição de seus depoimentos,preparado por Fraser, permitindo, assim, que seus depoimentos fossem reconstituídos,não apenas na minha ignorância, como também do tribunal, e secretamente. Esseespantoso fato não chegara ao conhecimento da Corte Suprema da Califórnia emquaisquer dos processos perante ela e nunca fora revelado por Leavy ou Fraser, até aaudiência atual. O juiz Fricke depôs que, se tivesse sabido que Fraser havia falado comJones e Forber, o assunto, sem dúvida, teria sido levantado na ocasião da entrega datranscrição.

Sem dúvida aqueles dois haviam apenas se esquecido de lhe contar. Afinal decontas, tratava-se apenas de uma questão de vida e morte para mim.

O juiz Fricke depôs que não dissera a Leavy que eu estaria presente na ocasião da

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entrega, e que nunca dera a Leavy autoridade para apresentar a declaraçãojuramentada, na corte Suprema da Califórnia, na qual Leavy jurava que eu seriaapresentado em juízo na ocasião do processo de entrega formal. Naturalmente, nãocompareci.

O juiz Goodman: “Creio que este é outro caso em que um advogado diz o que ojuiz fará, antes que ele o faça.”

George concordou com um aceno de cabeça, sorrindo, e disse: “Sim, e destaforma prejudicando um homem à espera do cumprimento da sentença de morte,meritíssimo.”

George inquiriu o juiz Fricke com respeito a alegações, na petição, de que Fraserera incompetente, tinha um longo prontuário de detenções por embriaguez e era dadoao uso excessivo de álcool.

“Não teria hesitado por um momento em revogar quaisquer processos quetivessem sido realizados até aquela ocasião, se tivesse sabido disso logo depois,” depôso juiz Fricke, resolutamente, referindo-se à alegada incompetência de Fraser em virtudede seu apego ao álcool. “Se tivesse ouvido um boato, que fosse, a respeito disso, claroque teria feito uma investigação, para me certificar se haveria qualquer fundamentopara os boatos.”

Claro que ele nunca “ouvira um boato que fosse, a respeito disso, pois os hábitosde ingestão alcoólica, e o prontuário de detenções de Fricke, não eram, então,conhecidos por mim, e naturalmente nem Leavy nem Fraser teriam informado o juizsobre eles. Aparentemente, não queriam preocupar o jurista com pormenores tãoinsignificantes.

Nem, aparentemente, o juiz quisera se preocupar. Durante as audiências, comofizera antes de que elas começassem, George reiteradamente procurou exibir osprontuários de detenção do FBI e CII, assim como os arquivos e registros de detençõesda Polícia de Los Angeles, para provar essas alegações, ao que o juiz Goodman serecusou. Ele os havia julgado “inadmissível”. Também fomos impedidos de provar,pelos registros hospitalares, que o apego excessivo ao álcool, da parte de Fraser, com asua inevitável danificação cerebral, levara ao delirium tremens, alucinações, tentativasde suicídio e demorada hospitalização. Uma vez que isto ocorrera depois de Frasercompletar a transcrição, nada tinha a ver com o caso, decidiu o meritíssimo, revelandoum conhecimento de medicina completamente oposto aos fatos geralmente aceitos por

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qualquer primeiro-anista de medicina.Quando George tentou fazer que Fraser identificasse alguns dos conteúdos dos

livros de notas de Perry – repleto de milhares de símbolos taquigráficos a lápis, feitospor Fraser – o juiz Goodman lhe disse para mudar de assunto. O meritíssimo entãoacabou com o interrogatório, ao pôr as anotações em evidência, retirá-las, e depoisapresentá-las novamente. Eram agora nossas provas, e assim não poderíamosquestionar seu conteúdo; se o fizéssemos, elas deixariam de figurar como provas eentão, não estando à disposição da corte, qualquer pergunta relativa a seu conteúdoseria irrelevante.

Quando Davis procurou obter a acusação de Fraser por ter alegado, sobjuramento, que as anotações de Perry iam ficando mais fáceis de ler à medida queprosseguia, o meritíssimo anunciou: “Acho que o tribunal é que julgará a testemunha,”impedindo, assim, a propositura do libelo. Na mesma ocasião, disse: “Não há talafirmação na declaração juramentada”. George a estava utilizando como base parapropositura de acusação. Mas tal afirmação existia, e vazada em linguagem clara, comoo demonstrou uma consulta à declaração jumentada. Quando, anteriormente, Davistrouxe à baila o assunto do depoimento futuro do juiz Fricke, o juiz Goodmananunciara que eu ficaria comprometido por todas as palavras que o juiz Fricke dissessese o convocássemos, e que Davis não teria nenhum direito especial de inquiri-lo; então,“... o senhor pode aceitar isso ou não, como o preferir.”

Rosalie substituiu George, e me inquiriu em relação a meu proclamado direito deestar presente ao processo de entrega da transcrição quando o juiz Goodmansuspendeu a inquirição com este incrível comentário: “Não faz qualquer diferença seuma pessoa deseja exercer seus direitos ou não. Se desejar – ou tem o direito ou nãotem. Isto é tudo. Não vejo nenhuma vantagem em perder tempo nesta fase doassunto.”

Rosalie então procurou obter o meu depoimento relativo aos erros natranscrição de Fraser que me impediram de provar que fora condenadoinconstitucionalmente. O juiz Goodman interrompeu-a para dizer que, se não houvessemuitos erros na transcrição envolvendo questões constitucionais, ele permitiria que asperguntas fossem respondidas, “mas se vai haver um grande número deles, então tereide dizer que estaria além do setor de requerimentos, neste processo de habeascorpus”. A única coisa, acrescentou, “que se elevaria à condição de, por si própria, ter

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qualquer significado ou relação real com a questão da fraude, seria a questão dasinstruções do juiz.” Qualquer outra privação de direitos constitucionais fundamentaisnão contaria, por mais flagrante que fosse. Se eu tivesse sido ferido apenas umpouquinho, poderia dizê-lo; mas se tivesse sido ferido fatalmente, teria de permanecerem silêncio.

O juiz Goodman perguntou a Rosalie quanto tempo mais ela precisaria. Quandoela replicou, ele comentou: “A afirmação de um advogado quanto a isso nunca é demuita confiança.” Disse-lhe que se apressasse.

Rosalie nunca perdia seu autodomínio. “Sim, meritíssimo.”Bennett entrou no espetáculo.Srta. Asher: Isto é anterior a isso. Ele aqui pediu (em uma declaração

juramentada) uma transcrição sem retoques.Sr. Bennett: Bem, talvez tenham fornecido a ele uma transcrição revisada, mas...Srta. Asher: Talvez tivesse acontecido isso.Sr. Bennett: Que diferença faz?Srta. Asher: Bem...Antes que ela pudesse replicar, Bennett levantou uma objeção contra a

orientação do interrogatório. Não tinha relevância, disse.“Creio que é uma questão de terminologia, meritíssimo”, disse Rosalie. Voltou-se

para mim e disparou uma pergunta. Ao solicitar uma cópia do manuscrito semretoques, por isso pretendera eu significar o rascunho? “Sim”, disse eu. “E minhadeclaração juramentada dizia isso.”

“Agora, sr. Chessman...”Rosalie estava empertigada, as mãos crispadas no gradil. Lançava suas perguntas

com enérgica autoridade. Durante a hora seguinte, eu não tive sossego. Parecia ser oobjeto de sua ira reprimida. Ela assemelhava-se a uma Têmis enraivecida, procurandodesfazer com suas palavras e sua presença, um decreto errôneo de suas filhas, asParcas, em uma corrida contra suas filhas, as Horas. Gradualmente ao observá-la – e aresponder suas perguntas – todas as demais pessoas na apinhada sala de sessõesperderam sua realidade.

Fui trazido de volta ao presente com um sobressalto, quando ouvi Bennettpropor uma objeção e solicitar que minha resposta fosse eliminada dos autos, por nadater com a pergunta. A srta. Asher confessou que ela, também, ficara um tanto confusa

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com minha resposta. Ao ler a transcrição, mais tarde, eu próprio ficaria confuso – eacharia graça. Verificaria que falara uma página inteira e, de maneira altamentesonora, não dissera nada. Este foi meu único lapso.

Como suas últimas testemunhas, o Estado apresentou duas mulheres idosas, osjurados Nana L. Bull e Mary E. Graves. De uma coisa ambas as senhoras tinhamnotáveis recordações. Quanto a outros assuntos, fracassavam no teste da memória.Sim, elas se recordavam das instruções dadas pelo juiz Fricke, quando o júri retornou àsala de sessões, para novas instruções sobre o tema da penalidade aplicável àsacusações de rapto, e o significado da prisão perpétua sem possibilidade de liberdadecondicional, e a transcrição de Fraser continha exatamente o que o juiz Fricke dissera.Ele não lhes havia dito para se decidirem pela pena de morte; não fizera quaisquercomentários adversos a meu respeito.

Davis não perdeu tempo com inquirições. As madames Bull e Graves, ao leremque eu ia ter uma audiência, ouviram uma chamada ao dever e entraram em contatocom o sr. Leavy. De acordo com notícias de jornais, elas anteriormente haviammanifestado sua indignação por eu ainda estar vivo. A sra. Graves foi citada em umjornal como tendo dito que o júri se decidira pela pena de morte porque a lei exigiaque o fizessem (o que era exatamente o que eu estava alegando todo esse tempo). Asra. Bull, que se estendeu consideravelmente, para que todos soubessem que meconsiderava terrivelmente mau, escreveu uma carta para um jornal de Los Angeles naqual, além de exigir a minha morte, porque Mary Alice Meza (*) perdera o juízo, haviaaumentado de seis o número de crimes pelos quais ela e seus colegas jurados mehaviam condenado. E aquele pedaço de papel (apresentado como prova) no qual opresidente dos jurados havia escrito as questões que preocupavam o júri? Que pedaçode papel? E os elementos de tempo envolvidos? Bem... e não houvera dúvidas quanto àminha culpa? Absolutamente não! Os jurados haviam imediatamente me consideradoculpado de todas as acusações. (Na verdade eu fora absolvido de uma, e o júri sereunira durante trinta e seis horas.)

Um dos atos finais do juiz Goodman foi deferir uma objeção à inquirição queDavis fazia do juiz Fricke, sobre um debate, no julgamento, a respeito da notificação de

(*) A mãe de Mary Alice Meza alegava que sua filha ficara louca em virtude de um suposto assalto

que eu teria cometido contra ela.

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testemunhas, sob a alegação de que a discussão constava da transcrição. Ela nãoconstava. Mas George não contestou. Ele chegou ao assunto de outro modo.

Finalmente, depois de passar dias ouvindo depoimento sobre como o juiz Frickehavia determinado a preparação dos autos da questão pela “engenhosidade humana”,aprovando um procedimento inteiramente desconhecido para a lei da Califórnia, e quefoi efetuado sob a direção não supervisionada do promotor, pelo tio de sua mulher, ojuiz Goodman teve esse comentário extraordinariamente notável:

“Doutor, não é necessário para um juiz dar prosseguimento a um recurso. Elenada tem a ver com isso. O querelante é quem o faz.”

Mesmo com o soberbo autodomínio que demonstrara, eu ainda me maravilhoante o fato de George não ter lançado as mãos aos céus e pedir-lhes quetestemunhassem essa paródia da justiça.

25 de janeiro de 1956; cercado por subdelegados, entrei na sala de sessões etomei lugar na mesa da defesa, pela última vez. Os trabalhos levaram exatamente dezminutos. Embora tivesse sido “apressem-se, apressem-se, não, não,” antes, agora o juizGoodman, munificentemente, anunciava que os advogados poderiam, se o desejassem,debater “o dia inteiro”. Nas circunstâncias, Davis declinou de fazer qualquersustentação. Bem, terá o suplicante alguma coisa a dizer? Meneei a cabeça,encontrando o olhar do juiz Goodman, sorrindo sem alegria. Ouvi Rosalie soltar arespiração quando George disse que não, o suplicante nada tinha a dizer. Bennettentão afirmou que, uma vez que o sr. Davis não tencionava fazer sustentação oral, nemele nem o sr. Smith o fariam. Acrescentou que achava que o suplicado haviadesmentido aquilo que o suplicante nem mesmo chegara a provar. Poderia o suplicantepermanecer no escritório do delegado pelo resto do dia?, perguntou George. Orequerimento foi deferido. Nós teríamos uma decisão dentro de alguns dias, indicou ojuiz Goodman.

Então houve esse último diálogo, para encerrar o espetáculo:Sr. Bennett: Só quero dizer, em meu nome e no de meus colegas, que desejamos

agradecer a este tribunal pelo tempo que dedicou à causa, pela paciência e indulgência;e, se aumentarmos o trabalho do tribunal, pela maneira por que procedemos, ora, porcerto o lamentaríamos. Mas desejamos agradecer ao tribunal pela audiência que aquifoi concedida.

O Tribunal: Bem, não acho que este tribunal precise de agradecimentos...

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Sr. Bennett: Bem, esse é o nosso modo de sentir.O Tribunal: Apenas por ouvir uma causa que é de seu dever ouvir, Sr. Bennett.Sr. Bennett: Sim.O Tribunal: Bem, vamos interromper os trabalhos.Todos, com exceção do suplicante e do guarda de segurança, receberam o aviso

de que deviam permanecer sentados. Eu me levantei sem pressa. Lorraine, quecomparecera diariamente, sorriu para mim, do seu lugar, logo junto do gradil, perto denossa mesa. Ao atravessar a sala de sessões, notei que o diretor Teets nãocomparecera. Várias vezes, durante o acidentado decorrer das audiências, ele e seusecretário haviam sentado juntos da mulher de Leavy, e, durante os intervalos, eu ovira empenhado em animada conversação com Leavy, Bennett, Smith, Fraser e outros.Talvez eles estivessem se congratulando pela sua maneira firme e efetiva de lidar com oproblema Chessman. Meus três amigos haviam partido para Hollywood, convencidos deque eu fora um louco em ter preferido esperar pelo encerramento do espetáculo – e omachado. Talvez tivessem razão.

Atravessei a soleira da porta. Um flash estourou. Um repórter perguntou: “Quevocê acha do resultado?” Encolhi os ombros. Enquanto era algemado, ouvi outrorepórter fazer algum comentário volúvel, envolvendo a palavra justiça. “Justiça?”,pensei. “Justiça! O que é isso?” As câmeras de televisão giravam enquanto eu faziaaquela longa e tortuosa caminhada ao longo do corredor, até a sala a nós destinada, noescritório do delegado.

Tudo terminara. A sorte fora lançada. E, por Deus, agora tínhamos todas aspeças para esse quebra-cabeças legal. Nesse sentido havíamos vencido, contraformidáveis obstáculos. Graças a George e Rosalie, eu tinha os autos de que precisava.Tinha uma chance: não fora derrotado. Uma sensação de cansaço me invadiu, oabatimento causado pela tensão.

Bill Linhart trouxe duas caixas de arquivos. “O sr. Davis e a srta. Asher mepediram para providenciar que o senhor recebesse isso. Disseram para lhe avisar queestarão aqui logo depois do almoço.”

Agradeci, com um aceno de cabeça. “Obrigado, Bill. Se você tiver um minuto,puxe uma cadeira.”

O detetive particular descansou seus cento e vinte quilos de volume em umacadeira. Fizera um tremendo trabalho. Pena que não tivéssemos podido usar nem um

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décimo das provas que reunira, às vezes em condições perigosas. Mas ele vira por simesmo o que tivéramos pela frente. Prova eloqüenteda eficiência dos métodosdespistadores de George me fora fornecida quando Bill, diplomática epreocupadamente, perguntara se eu estava satisfeito com o serviço que George estavafazendo. “Não posso compreender,” dissera ele, “e as pessoas estão dizendo...” Narrarao que ouvira.

“A despeito das aparências”, tranqüilizei-o: “George está lutando de maneira maisárdua e mais brilhante por mim, Bill, em condições mais difíceis, do que jamais o fezpor qualquer outro cliente. O que você me contou, acaba de prová-lo.”

Tio Sam havia protocolado uma ordem de seqüestro contra todas as minhasposses e recursos, se os houvesse. Mas eu ainda conseguiria levantar esse seqüestro eprovidenciaria para que Bill fosse completamente pago, nem que isso fosse a últimacoisa que fizesse. Ele me disse que não estava preocupado; sabia que eu o pagariaquando pudesse. O que lhe preocupava era o resultado do caso. Tinha várias novaspistas, e tencionava continuar trabalhando.

“Nós ainda vamos estourar esse caso.”“Claro,” disse eu.Trocamos um aperto de mão.Rosalie veio no começo da tarde. George fora retardado. Pegamos todos os

documentos de que ela teria necessidade para preparar o requerimento de umacertidão de causa provável para recurso. Então, repassamos os pontos que teriam deser incorporados naquele requerimento. Não tínhamos ilusões sobre a orientação queiria seguir a decisão do juiz Goodman. Mesmo assim, não poderíamos imaginar queseria tão flagrante como veio a ser.

Um subdelegado me trouxe uma refeição, com café a mais. Insisti para queRosalie comesse um dos sanduíches de salada de galinha com o café. Agora ela nãoprecisava se preocupar com a dieta. Durante as audiências, ela perdera cinco quilos.

“Você sabe, Rosalie, nós dois estamos com a cara tão comprida que isto melembra a última refeição dos condenados.”

“Não diga isso.”“Não parece real, não?” Era como acordar de um pesadelo.“Você estará bem em San Quentin?” perguntou.“Sim. Não se preocupe.”

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Ela sorriu, mas seus olhos permaneceram preocupados. Provavelmente, minhagarantia fora feita com muita presteza demais para ser convincente.

“Eu me arranjarei muito bem,” disse eu.George entrou e meneou a cabeça. “Parece que os peritos me elegeram, por

unanimidade, o advogado mais trapalhão do mundo.”“Graças a Deus,” disse eu, enquanto ele se largava em uma cadeira. “Se eu não

estivesse lá, você nunca poderia ter me convencido de que uma coisa como essa poderiater acontecido. É fantástico.”

George tirou os óculos e esfregou os olhos. Entreguei-lhe uma xícara de café.“Caryl, eu acho que estou começando a compreender plenamente o que você tem

tido de enfrentar, durante sete anos e meio.”Eu tive um sorriso largo. Era a maneira de um condenado lidar com o que era

brutalizante e horrível – rir daquilo, reduzindo-o ao absurdo que era, negando-lhe afalsa dignidade que exigia.

Debatemos aspectos imediatos e práticos do caso, e então chegou-me a hora deir-me embora. Sabíamos o que minha volta para o Corredor da Morte poderiasignificar: que eu nunca mais deixaria a prisão novamente – vivo.

Rosalie e George saíram e viraram para a direita. Para a liberdade. Eu virei para aesquerda, e tomei o elevador para o porão. Comecei o que um jornalista chamou deminha “última viagem”. Estava escuro, e começou a garoar. Não era fácil ficar sentadoali, as algemas mordendo-me os pulsos, e olhar para uma cidade animada de luzes esons e pessoas, e saber que esse mundo estava a apenas dois passos – e no entanto aduas sentenças de morte – de distância. Bem, eu fizera minha escolha. Não haviaarrependimento.

Logo San Francisco ficou atrás de nós. Quando a estrada baixou, descemos paraoutro mundo, um mundo fantasmagórico, de negro céu noturno e nevoeirorevoluteante.

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SEGUNDA PARTE

PALMILHAR À NOITE

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CAPÍTULO 12COMO SE SENTE, TOLO?

REITERADOS BOLETINS DE NOTÍCIAS anunciavam que o meritíssimo Louis E.Goodman me havia sentado a pua. Eu sorri matreiramente. Era isto o que eu temia.Fiquei a fumar e a percorrer a passadas a cela no seu comprimento. Dei uma risadasem prazer. Sabia o que teria pela frente – outra vertiginosa volta de montanha russa.

Os jornais do dia seguinte traziam narrativas mais pormenorizadas.

CHESSMAN REJEITADO.

CHESSMAN PERDE SUA NOVA MANOBRA PARA ESCAPAR À MORTE.

CHESSMAN NADA DIZ SOBRE SUA DERROTA LEGAL.

Da noite para o dia, a imprensa havia mudado de opinião quanto a um pontoimportante: eu não havia perdido a “última” chance à vida, afinal. Esta súbita meia-volta jornalística sem dúvida havia sido propiciada pela declaração de Davis: “Claro quevamos recorrer!”

Alcançado um sensacional clímax, os jornais, pressentindo outro embate legalainda mais violento, já haviam começado seu “crescendo”. Anunciavam: “O Vice-Procurador Geral do Estado, William Bennett, que combateu com êxito as alegações de

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Chessman durante a audiência, não fez comentários sobre a decisão de ontem, do juizGoodman.” (O que esperavam que ele fizesse? Batesse no peito e soltasse umensurdecedor grito de vitória, como Tarzan sobre o cadáver de um gorila?) Seguia-se,depois, a linha vital: “O sr. Bennett revelou que o Estado resistirá a qualquer recursoporventura interposto”.

O Estado resistiria, como linha de conduta. Há quase oito anos ele estivera“resistindo”. Mas o que não era de se esperar – ou tolerar – na opinião de uma parcelado público, novamente ultrajada, era o fato de que eu e meu advogado tivéramos aaudácia de pensar em recorrer de uma decisão tão incontestavelmente justa emeritória. Não tinha o juiz Goodman me apodado de mentiroso, e coisas piores? Nãotinha ele decidido que minhas alegações eram infundadas? Qualquer pessoa quetentasse defender-me, agora, seria ou chicaneiro ou coisa pior.

Tarados submeteram George e Rosalie a uma enxurrada de injúrias anônimas eobscenas. Telefonavam e cuspinhavam; escreviam cartas anônimas e despejavaminvectivas histéricas. Iniciavam boatos.

Outros dirigiam sua barragem contra mim. Como cogumelos venenosos, suasopiniões apareciam em massa nas colunas de cartas à redação. Eu as lia, como nopassado, com espanto, divertindo-me e me nauseando.

Um “Canadense desapaixonado” escreveu que “...tenho contemplado odesenvolvimento do caso de Caryl Chessman com olhos esbugalhados e incrédulos,espantado pelo fato de que as leis de um país civilizado possam fornecer tão mimadaproteção a um conhecido monstro.”

A sra. D. M., de São Francisco, sentindo-se ultrajada porque muitos entre seus co-cidadãos haviam manifestado um interesse simpático pela minha situação, escreveu:

“...é para mim, uma coisa indizivelmente horrenda pensar que uma pessoadecente e civilizada possa falar de Chessman como outra coisa que não um monstro vil,indigno de se associar até mesmo com outros criminosos... Quem sabe quais outroscrimes sexuais não terão sido cometidos em anos recentes, pelo fato de a Justiça tersido tão lenta neste caso?”

De maneira que – cortem-lhe a cabeça!C. Z., suspeitando que a cabeça em questão possa não separar-se tão facilmente,

demandava: “Por que devemos continuar a encorajar uma farsa de justiça, como nocaso de Chessman, só para mencionar um deles?” Eis a compassiva sugestão de C. Z.:

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“Depois de condenar um homem acusado de assassínio, e sentenciá-lo à morte, por quenão seguir os costumes correntes em círculos militares de muitas nações do passado, edo presente, de entregar ao condenado uma adaga, espada ou pistola carregada, epermitir-lhe salvar o que lhe resta de honra?”

Eu tinha uma sugestão compassiva para C.Z.: que ele enfiasse sua cabeçasuperaquecida em um balde de água gelada, e depois lesse a Décima-Quarta EmendaConstitucional.

O Independent Journal de San Rafael, o orgulho do maravilhoso Condado deMarin, o condado em que está situado San Quentin, comentou: “Caryl Chessmanenfrentou, ontem, sua derrota em silêncio”, um silêncio danado de barulhento, poderiaeu ter acrescentado. Continuava a história. “Chessman”, teria dito o diretor HarleyTeets, “tem se tornado cada vez mais retraído nas suas conversas com nossosfuncionários. Não disse nada para ninguém.” A citação era acompanhada por essaterna observação: “O silêncio do condenado de trinta anos de idade parecia quaseincompatível com suas bravatas usuais e prontos ‘protestos’ de inocência dos crimes daLuz Vermelha...”

Na manhã de quarta-feira de Cinzas, enquanto meus frenéticos “fãs” diziam essascoisas tão edificantes a meu respeito, tive um visitante há muito esperado, um coletordo Serviço do Imposto de Renda. Ele desejava – e obteve de mim – uma declaraçãofinanceira pormenorizada, e manifestou confortador interesse pelos manuscritosapreendidos e conservados pela prisão, em particular pelo meu romance inédito TheKid Was a Killer.

Certamente, disse eu, depois de ter respondido a última pergunta no longoformulário, eu estava mais do que disposto a assinar a declaração. “Contanto,”acrescentei, “que possa assinar sem fornecer uma cópia ao Escritório do Diretor. Nãocreio que minhas questões financeiras sejam da conta deles.” Bati na tela que nosseparava, lembrando-me de quão freqüentemente, nos últimos tempos, o conteúdo decomunicações confidenciais para mim tinha sido revelado à imprensa, ou ao escritóriodo Procurador-Geral – uma vez antes mesmo de que a carta me fosse entregue – eentão extraída do contexto para ser usada contra mim. Isto não acontecerianovamente.

Notifiquei o guarda que o coletor tinha uma declaração que precisava de minhaassinatura. O tenente encarregado da sala de visitas foi posto a par de meu pedido,

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depois o assistente administrativo do Diretor. Dois jovens brilhantes do departamentode livramento condicional foram enviados. Qual a natureza da declaração? indagaram.Teriam de examiná-la, disseram. (Evidentemente, eles não confiavam em agentes dogoverno federal!) Sinto muito, disse o coletor. Bem, nesse caso, teria de levá-lo “dooutro lado da rua” (ao escritório do Diretor) para ser verificado. Sinto muito, mas não,disse o coletor. Mas, insistiram os brilhantes jovens, era necessária a aprovação paraque um preso fosse autorizado a assinar qualquer documento destinado a sair dopresídio.

O coletor salientou que a legislação federal lhe dava poderes para receber adeclaração, e a mesma lei me permitia, no exercício de meu próprio e independente jul-gamento, assiná-lo; nenhum terceiro tinha qualquer direito legal de insistir emconhecer seu conteúdo; os assuntos debatidos entre o contribuinte e o governo eramconfidenciais. Um dos brilhantes jovens então adiantou um argumento que consideravadecisivo: “A assinatura de Chessman poderá se relacionar com seus direitos civis, erequer a restauração desses direitos pela Comissão de Maioridade.”

“Escutem aqui,” disse eu, “vocês parecem que não entendem. Este cavalheiroestá ansioso para voltar a seu trabalho, e eu tenho outra visita me esperando.Acontece, também, que eu estou morto, do ponto de vista civil, de acordo com a lei daCalifórnia. Enquanto estiver sob sentença de morte, a Comissão de Maioridade nãopode restaurar meus direitos civis, mesmo se o quisesse. Além disso, vocês deveriamsaber que esta declaração não tem nada a ver com direitos civis, e eu não preciso, nempedi, qualquer proteção benevolente tanto da minha parte como de agentes dogoverno federal. Tenho dois experientes advogados para me aconselharem eprotegerem meus interesses. Estou pronto a assinar a declaração e fui aconselhadopelos meus advogados a fazê-lo. Serei autorizado ou não a assinar?”

Mais telefonemas, mais consultas cochichadas. Então, ação. Fui autorizado aassinar a declaração sem que seu conteúdo fosse visto por qualquer funcionário daprisão.

Minha atitude pouco colaborou para me tornar o condenado mais popular deSan Quentin. Mas, não ligava a mínima para isso. O Departamento de Correições da Ca-lifórnia é que havia escolhido a música. Agora, que dançasse ao som dela. Havia umpropósito frio, não malícia barata ou picuinha, por detrás do que eu fizera.

No dia seguinte, dois membros da turma de vasculhação, à caça de manuscritos

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ou outro tipo de contrabando, nada encontrou depois de passar um pente fino pelaminha cela. Naquela manhã relanceei os olhos pela coluna de Herb Caen, “Bagdá-junto-à-baía”, no Examiner, de San Francisco. O meu caro Herby não estava no seu humorirascível habitual. “RODAPÉ: Ah, esse Caryl Chessman é fino. Logo depois de sua últimasolicitação de novo julgamento, (e muito antes da decisão negativa do juiz Goodman),ele foi até o Procurador-Geral adjunto, William Bennett, estendeu a pata e sorriu:“Quero congratular-me com o senhor por uma acusação bem sucedida demais!”

Havia uma nota ao rodapé. Eu dissera a Bennett: “É pena que o juiz Goodman eoutros tivessem de perder o caso para o senhor, antes de lhe darem uma chance deganhá-lo.”

Bennett replicara a essa estocada de dois gumes, com um sorriso. Seu significado,porém, não lhe escapara. “Nós veremos,” disse.

CASO CHESSMAN: ATE QUANDO? demandava o Mirror-News, de Los Angeles. “Otortuoso e entulhado de chicanas caso de Caryl Chessman, assaltante e estupradorcondenado, poderá finalmente estar entrando em seus últimos estágios, depois de terfeito uma farsa da Justiça, por quase oito anos.” Um tribunal federal em São Franciscohavia decidido, prosseguia o artigo, “que os fundamentos em que Chessman baseavatodos os seus ardilosos recursos contra a condenação e a sentença de morte, sãodesprovidos de mérito... (esta foi) a mesma decisão, na realidade, adotada por seteoutros tribunais, e no entanto o caso ainda continua nesse vaivém entre tribunaisfederais, estaduais e as Cortes Supremas dos Estados Unidos e da Califórnia.”

O jornal prosseguia com uma longa digressão sobre a história do caso, “flagranteexemplo de irresponsabilidade jurídica”. Mencionava meus “numerosos e revoltantescrimes” e o sistema de justiça “que se enreda em vírgulas ano após ano.” Os confusosmeandros da Justiça, no caso Chessman, deveriam dar novo ímpeto a propostas “parareformar nosso sistema apelacional, por meio de legislação federal”, concluía anarrativa.

Naquela hora, eu gostaria que esse jornalista tomasse meu lugar na cela 2455,por apenas trinta dias. Como seria diferente, então, o seu modo de ver!

Frances Couturier ficou abalada com a decisão do juiz Goodman, e a selvagem einsensata gritaria que a ela se seguiu. Para diminuir o choque, eu lhe escrevi, contandode nossos planos de recurso, de nossa redobrada determinação de levar a luta pelocaso a uma conclusão bem sucedida, para anular a decisão do juiz Goodman. Não men-

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cionei o lado sombrio da questão. Frances estava doente, e tinha dois adolescentesdoentes para cuidar, e dívidas se acumulando. O que mais me doía era não poderajudá-la, porque os funcionários da prisão me haviam amordaçado e apreendidopropriedades minhas no valor de milhares de dólares.

A 8 de fevereiro, eu esperançosamente abri o Chronicle de São Francisco. Láestava, na página nove: As OBRAS DE CHESSMAN PODERÃO SER SALVAS PELO FISCO.“Aqueles manuscritos apreendidos, do escritor do Corredor da Morte, Caryl Chessman,poderão ainda chegar às mãos de um editor,” começava o artigo. Minha conversa como funcionário do Serviço de Imposto de Renda havia dado “motivo a notícias de que ogoverno poderia apreender e vender os manuscritos,” o que era exatamente o quedesejávamos.

O Diretor Distrital Harold Hawkins, do Departamento do Fisco havia afirmado, nodia anterior, que não poderia comentar a possibilidade de tal apreensão, “no momento.Mas creio que posso dizer que essa é uma medida que empregamos costumeiramente –falando de modo geral – quando todos os outros meios de se recolher os impostosfalham.”

Seis dias depois, o item principal na coluna de Ted e Dorothy Friend, no Call-Bulletin, de São Francisco, continha notícias mais animadoras: “Dois estúdios deHollywood estão com representantes prontos para fazer ofertas – e ofertas altas – se osrapazes do Fisco de Tio Sam apreenderem os manuscritos de The Kid Was a Killer, deCaryl Chessman e puserem-no a leilão, para pagamento de impostos.”

Então soubemos que o Departamento de Correições da Califórnia se oporia a talapreensão. Uma situação adorável. A maneira mais fácil de me matar, naturalmente,era conservar-me quebrado. Talvez eu desistisse, ou então os meus advogados ofizessem. Acrescente-se a isso o inferno mental de saber que Frances e seus filhosestavam necessitados, e mal conseguindo sobreviver. Não tive um estouro, mas o ódioem mim se acumulava.

Enquanto esperava que o Juiz Goodman agisse, eu arrumara o melhor quepudera a massa de documentos legais que, com a perda da chamada cela legal, foraobrigado a jogar em minha atulhada cela. Dois dias depois do encerramento dasaudiências, os jornais da área da baía lançara a notícia de que “o escritório particularde advocacia” de Caryl Chessman no Corredor da Morte em San Quentin (que,naturalmente, não fora nem meu, nem particular) “está sendo reconvertido em uma

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cela para Burton W. Abbott.” A fonte dessa informação era o diretor Teets.No dia seguinte, Burton (“Bud”) Abbott foi trazido para o Corredor da Morte, e

instalado na antiga cela legal. Este era o frágil e jovem estudante de contabilidade daUniversidade da Califórnia que, depois de um fantástico julgamento de três meses, foracondenado, por escassas provas circunstanciais, e pelo trovejar teatral de um pro-motor, pelo rapto e assassínio da escolar Stephanie Bryan. Eu tinha um novo oponentede xadrez, e um parceiro para o bridge e whist.

O diretor Teets era citado como tendo dito que a instalação de Bud Abbottnaquela cela, em lugar de em uma das outras dez celas desocupadas, “fora apenas umacoincidência”. A mais notável e melhor divulgada “coincidência” na história penal!

Esta conexão entre os nomes do “monstro” condenado, da Califórnia meridional,e a recém-condenada “aberração” da Califórnia setentrional, ajudou a inflamarcidadãos impressionáveis, com sua curiosa tendência de escreverem para seus jornais, eos secretários de tais jornais estavam sempre dispostos a imprimir a insensatez maisfuriosa que fôsse.

Dizia uma carta: “Eu prevejo o seguinte: recursos, manobras legais e,eventualmente, uma firma editora, Chessman-Abbott, daqui a cinco anos.” Umasegunda dizia que nós poderíamos “relembrar (nossas) deliciosas incursões de rapto eestupro.”

Eu fui “julgado” pelo tribunal disciplinar institucional, por estar de posse de“livro não autorizado”, o exemplar de A Lei Quer Que Eu Morra, que ficara em minhaprateleira durante mais do um ano, antes de ser “encontrado”. Meu castigo: umarepreensão e advertência oficiais. A intensiva investigação, feita pelos mais capazesdetetives sobre como eu conseguira o livro, empacara.

Como eu conseguira o livro, afinal? indagaram os componentes do tribunal.“Pelo correio,” disse eu. “Queria um exemplar e pedi para que fosse enviado

diretamente do editor. O que foi feito. Se os senhores não queriam que eu recebesseum, então evidentemente alguém cochilou, quando o exemplar me foi entregue, depoisde chegar à prisão.” Acrescentei, sorrindo: “Fiquei satisfeito em recebê-lo.”

Naturalmente, uma explicação tão simples tinha de ser rejeitada. Os funcionáriosda prisão preferiam acreditar que ele havia chegado ao Corredor da Morte através deum plano de capa e espada. Não fiz muita força para convencê-los do contrário. Aqueleexemplar de A Lei Quer Que Eu Morra era a minha maneira de dizer muito obrigado a

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suas ridículas alegações anteriores, de que o manuscrito do livro não poderia ter sidocontrabandeado para fora da prisão, quando o fora – depois que o sr. Linn havia faladoem destruí-lo. Não só tinha o manuscrito saído, como ali estava a prova de que o livropublicado havia conseguido entrar na prisão. Ao me acusarem de sua posse nãoautorizada, e me considerarem culpado, os membros do tribunal haviam sidocompelidos a engolir suas próprias palavras.

Rosalie me enviou os dois livros sobre taquigrafia Pitman, que eu pedira paraprosseguir em meu estudo das anotações do falecido escrivão do tribunal. Eles foramenviados de volta a ela. Foi informada pelo diretor, que fez questão que a imprensarecebesse a notícia, de que ele não havia “autorizado” os livros. Esse pequeno gesto derepresália me fez rir. O diretor, naturalmente, não contou à imprensa que, com plenoconhecimento e aprovação da instituição, eu estivera usando os livros todas as noites,na prisão, durante o decorrer das audiências, e os levava e trazia regularmente dotribunal comigo.

Bill Linhart procurou falar comigo, a respeito de um novo desenvolvimento docaso, e foi enxotado. Não volte, disseram-lhe; o caso está encerrado.

O Corredor da Morte passou por outra inspeção geral, e um dos guardasderrubou, “acidentalmente”, minha máquina de escrever, da mesinha. Eu a peguei emtempo, e tive um largo sorriso.

E assim foi. Diariamente, de uma ou outra maneira exasperante, eu fui “posto emmeu lugar”. Os presos chamam a esse atencioso tratamento de “estafa”. Eu venci atempestade, sorrindo por fora, e fervendo internamente. Um dia ainda seria a minhavez de jogar.

Soube que o escritório do Procurador-Geral estava tão confiante em que me seriarecusada uma certidão de causa provável para recorrer, que Bennett havia pedido aopromotor J. Miller Leavy para não pedir ao juiz Fricke que marcasse uma nova data deexecução, até que expirasse o prazo jurisdicional de trinta dias para conseguir acertidão. Daquela forma, acreditava-se, a data seria para valer; eu não me safarianovamente. A impressão geral era que eu tinha menos de noventa dias de vida.

“Como se sente, tolo?”Ainda teimosamente esperançoso. E exausto. Mentalmente cansado. Desgostoso.

Irritado. Tenso. Curioso. Vazio. Como se estivesse para explodir – ou entrar em colapso.

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CAPÍTULO 13“QUANDO EU USO UMA PALAVRA,”DISSE HUMPTY-DUMPTY...

BRAMIA LÁ FORA UMA TEMPESTADE DE INVERNO, e a água da baía fora agitada atétornar-se uma escuma verde-sujo. Rajadas de vento atiravam a chuva contra as janelasda sala de visitas principal, em furiosas salvas em stacatto.

Eu estava na “facilidade de visitas” adjacente, dos condenados, aquele cubículogradeado, trancado e entelado, esperando por Rosalie. Ela tirou a capa.

Não pude deixar de perceber. O perigo que eu corria estava escrito – estampadoseria uma palavra melhor – em sua face tensa. Retribuí-lhe a saudação, tentando meconvencer de que esta era uma visita de rotina.

“Você trouxe uma cópia da decisão?”“Sim.” Ela retirou páginas grampeadas de sua pasta, e entregou-mas através do

guichê.“É melhor que eu dê uma lida rápida nisso, antes de falarmos a respeito.”

Relanceei os olhos para meu relógio de pulso. “Eles fecham este lugar entre 14,35 e14,40 nos dias de semana. Isto nos dá apenas cerca de trinta e cinco minutos.”

Rosalie concordou, com um aceno de cabeça. “Desculpe-me por não ter vindoantes. Não foi só o tempo.” Parecia relutante em continuar.

“Está O.K.” Ao chegar à terceira das onze páginas, meu rosto se tinhaensombrecido. Aquela decisão era como algo surgido de um pesadelo, uma sombria e

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brutal caçoada do espírito subconsciente, na qual fora posto uma quantidadedemasiada de coisas horrendas. O preto era piamente julgado ser branco; em cima, eratransformado embaixo. As palavras eram aparentemente tão desapaixonadas, tãoracionais! A gente acreditaria que um suplicante arguto, mas não arguto demais, haviarecebido uma sucessão de golpes mortais. As autoridades estaduais recebiamdistintivos de mérito. Possibilidade de fraude? Inconcebível! Os motivos de todoshaviam sido de uma pureza incontestável. Isto é, todos menos eu. Em resumo, a únicacoisa errada com re}açáo ao caso Chessman, era Chessman, um pecador que estavasujeito ao pronto castigo por parte do carrasco.

“Quando eu uso uma palavra,” disse Humpty Dumpty, “ela significa exatamente oque eu desejo que signifique – nem mais, nem menos.”

Tal era o teor da decisão do juiz Goodman, no caso de Chessman contra Teets. Euconsegui ostentar um largo e gélido sorriso que, provavelmente, era maisamedrontador do que tranquilizador. “Bem, minha cara advogada, isto é o queesperávamos.”

A decisão era real; tão real, que marcaria o súbito e profano fim do caso e demim mesmo. Pior ainda, justificaria tudo o que fora escrito e esganiçado a meurespeito. Justificaria a pena capital, e repudiaria aqueles que haviam tentado meajudar, a menos que agíssemos com rapidez.

“Você preparou a petição de causa provável?” perguntei.Rosalie começou a responder, depois deteve-se. “Não,” disse ela, finalmente.“Não!”“É por isso que tinha de falar com você.”“Eu não compreendo,” disse eu, com a irritação fazendo nós em meu estômago.

Que diabo estava errado? Será que esta melhor e mais leal das amigas havia finalmentedecidido que o caso não tinha esperanças? Estaria ela pensando em afastar-se? Não,não podia ser. No entanto...

Não havia tempo para ser sutil ou atencioso. “Rosalie,” disse eu, “nósconcordamos em que você iria escrever aquela petição. Você sabe que estamos lutandocontra o tempo. Temos que apresentá-la primeiro a Goodman, pedindo a certidão, enão há dúvida de que ele nos rejeitará. O caso é que não sabemos quanto tempo elelevará para decidir.” Tomei uma inspiração e continuei: “Depois, temos de ir para aCorte de Apelação. Mais tempo gasto, e nossas chances lá são, na melhor das hipóteses,

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de apenas cinqüenta por cento. Se disserem não, temos de propor o requerimentoperante um juiz da Corte Suprema, em Washington. George terá de voltar de avião, edar entrada pessoalmente na petição. Não há outro jeito. E tudo isso tem de ser feitodentro de trinta dias ou eu estarei morto, literalmente. No entanto, você...”

“Caryl, por favor! Não venha por cima de mim, que não agüento. Tudo o quevocê diz é verdade, mas só torna as coisas piores. Procure compreender. Eu comecei apetição uma dezena de vezes. Eu...”

“Desculpe-me, Rosalie. Por causa dessa minha conversa estúpida, eu mereço quefaçam uma massagem em minha cabeça dura com um taco de beisebol. Agora, se vocêpuder perdoar este chamado monstro que tem por cliente, vamos começar de novo.O.K.?”

“Está certo.”“Primeiro, você teria qualquer objeção a que eu redigisse a petição?”“Nenhuma. Mas você será capaz?”“Não apenas capaz,” disse eu, sombriamente, “mas, nas circunstâncias, danado de

ansioso. Você se recorda de que, quando o diretor me arrebatou a cela legal e me fezjogar a minha ‘tralha’, como a chamou, em minha própria cela, os jornais o citaramcomo tendo afirmado que o fizera porque eu contava com ‘abundante assistênciajudiciária’. De maneira que não soubemos se isso foi uma advertência não intencionalde que a ‘tralha’ estaria na lista como a próxima coisa a me ser tomada. Felizmente,deixaram-me – por enquanto, pelo menos – com minha máquina, papéis legais esuprimento de papel. Bem, acho que acabo de encontrar uma maneira de garantir queconservarei toda essa ‘tralha’ salva-vidas.”

“Como?”“Funcionando em causa própria – in propria persona – além de através de

‘abundante assistência judiciária.’ Dessa forma, estarei protegido, e poderei fazer aminha parcela completa dos trabalhos, deixando George completamente livre para oserviço nos tribunais, e aliviando a ambos de uma porção de pormenores fatigantes. Oque você acha?”

“Creio que é uma idéia sensata,” disse ela. “E é o que você quer.”“Sim, é o que eu quero. Relanceei os olhos para meu relógio. Tínhamos apenas

vinte minutos de sobra. “Agora, voltemos à petição – e a você. Acho que sei porquevocê não foi capaz de redigir essa praga. Mas tenho de ter certeza. É importante, para

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nós dois. Não quero que essas razões se interponham entre nós. Além disso, uma vezque tenha certeza delas, as razões terão muito a ver com o que porei na petição.”

Rosalie compreendeu. Ela preencheu as lacunas para mim.Voltara a Sacramento, das audiências, à beira de um colapso. Aguardara a decisão

com medo, sentindo estar mais vulnerável do que nunca o estivera antes na vida.Então a espera terminara. A decisão do juiz Goodman lhe fora gritada pelo rádio,

televisão, e pelos cabeçalhos. Quase que imediatamente, ela recebeu uma cópia dodespacho. O pressentimento de que ele lhe seria entregue, não diminuiu o choque. E asrepercussões foram piores.

Seu telefone tocava e tocava. Tarados, de mentes depravadas e com a nauseantetendência de sexualizar as indignações que professam, chamavam o seu número. “Queespécie de desnaturada __________________ é você?”, perguntava um. “Não acho que vocêseja mesmo advogada; acho que você é uma __________________ .” Ela recebeu umatorrente de cartas anônimas e cartões postais, nos quais estavam garatujadasreferências à sua raça, e obscenidades de sanitários públicos. “Maldita judia amante deestupradores,” escrevia um deles, “por que não volta para o gueto e leva esse monstrosexual Chessman com você?” Um segundo, na repelente suposição de que ela “não seimportava cm ganhar dinheiro sujo” de qualquer forma, sugeria maneiras e meiosbiológicos de aumentar sua renda. “Mas acho que não lhe estou dizendo nada que vocêjá não saiba.”

Uma bisbilhoteira de tempo integral “passou para dizer alô” – e tentou obterinformações dela. “Rosalie, minha cara, mas como e que você veio a se meter com essetal de Chessman? Eu tenho ouvido umas histórias horríveis a esse respeito.Naturalmente eu sei que não pedem ser verdedeiras, mas...

Um advogado com quem ela estivera associada, em casos civis, disse-lhe: “Asher,eu lhe avisei para não tocar no caso Chessman, nem de longe. Sabia que você se ia quei-mar. Imagino que agora você está disposta a admitir que eu tinha razão, quando lhedisse que vagabundos baratos como Chessman põem seus advogados na berlinda, atoda hora. É por isso que eu nunca pego um caso criminal, mas creio que todos temosde aprender por experiência própria.”

Foi consultar o médico. Contra as suas determinações, ela tomara uma parteativa e direta em minha defesa. Anteriormente, sofrera uma importante operação, ehavia teimosamente adiado testes, para verificar se seria necessária uma segunda e

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séria operação. “Você não deveria ter feito isso,” disse-lhe o médico, depois de tomar-lhe a pressão. Ele lhe disse com franqueza: “A hipertensão pode produzir danospermanentes. Agora você precisa de repouso e calma completa. Desta vez eu insisto.”

Mas não podia descansar até que a petição fosse redigida. Tinha a vida de umhomem nas mãos.

Relera o despacho do juiz Goodman, e compreendera que fora apanhada em umaodiosa armadilha. Sozinha, não era capaz de abrir as suas garras. A faculdade – e suaexperiência legal – não a haviam preparado para isso.

Com nova percepção, ela compreendeu que eu fora apavorantemente correto noque escrevera em A Lei Quer Que Eu Morra. Julgando erroneamente meus motivos,atribuindo à minha luta pela sobrevivência uma finalidade niilista, um métodomaquiavélico e um catilinário impulso para destruir ou, pelo menos, desacreditarseriamente sua maquinaria judicial, o Estado da Califórnia impiedosamente sedeterminara a me destruir, assim como a reputação de qualquer pessoa que procurassefrustrá-lo. Em conseqüência disso, um numero demasiado grande de cidadãos, malorientados pela imprensa, haviam confundido hipocrisia com moralidade, fantasia elenda com fatos legais e verdade.

Um advogado, limitado às questões legais específicas em causa, estava malequipado para combater tais fantasmas como os que haviam lançado suas ominosassombras sobre o caso, obliterando os dois problemas básicos envolvidos:

Era eu culpado?Teria minha condenação sido obtida, e mantida, de acordo com as salvaguardas

constitucionais, que garantem a todos os acusados um julgamento justo?A honestidade de Rosalie não lhe deixaria completar a petição, embora seu

espírito de advogada insistisse em que ela devia fazê-lo. Ela não poderia bancar HumptyDumpty. Para ela, as palavras tinham de significar o que elas ela claramente indicavamcomo querendo significar. Por mais que dissesse, ou por mais convictamente quepudesse dizê-lo, seu esforço estaria predestinado ao fracasso, e o fracasso da Justiça –se esta palavra ainda tem algum sentido fixo – poderia ser-lhe lançado aos pés.

Agora eu compreendia perfeitamente. Mais ainda, com minha original percepçãointerior de tolo, e minhas habilidades especiais de “psicopata”, eu via como poderiaabrir as mandíbulas da armadilha, libertar minha amiga e rearmar e pôr isca naarmadilha, para os próprios caçadores.

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Não havia tempo de explicar, e nenhuma razão de encerrar a entrevista com umanota de lamentação. “Algum dia, Rosalie, depois de termos ganho esse caso maluco, eeu tiver reconquistado uma certa medida de respeitabilidade, espero que você meconvide para um jantar. – Terei uma história para lhe contar. Não me deixe esquecerdisso.”

Um segundo guarda se juntou ao que, sentado do lado de fora do postigo,permanecera para supervisionar a visita.

“É hora de ir,” disse,“Estou pronto.” Levantei-me e me voltei para Rosalie:“Você viu, desta vez eles não disseram que nossa hora chegara. Ela não chegou.”

Retornando à minha cela de morte, com papéis legais em altas pilhas a meuredor, trabalhei virtualmente sem parar, durante vários dias e noites, relendo os autose datilografando o rascunho final de nosso “Requerimento para Certidão de CausaProvável de Recurso.”

Era um escorchante documento de vinte e quatro páginas, que acusava, empormenores, “que o suplicante não teve uma audiência de modo algum, a não sernominalmente, e que a audiência foi realizada perante um juiz cuja prevenção pessoal épermanente contra o suplicante transpira dos autos.”

Preparei pessoalmente o requerimento, em virtude dos falsos rumoresconcernentes a meus advogados e a ofensas a que eles, e em especial Rosalie, haviamsido sujeitos. Tinha absoluta confiança neles mas, uma vez que sua reputação pessoal eprofissional havia sido impugnada, eu não poderia, em sã consciência, “pedir-lhes parapreparar este requerimento. Se o fizessem, e fosse negada uma certidão, isto daria,erroneamente, crédito àqueles rumores grotescos e infundados. Presumivelmente,poderia manchar as suas vidas.”

Em resumo, “Se o judiciário resolver converter este requerimento em uma notade suicida, o suplicante é da opinião de que deverá morrer por suas próprias mãos.”

“É de uma ironia verdadeiramente socrática,” acrescentei, o fato de ter sido euobrigado a funcionar novamente em causa própria, além de através de advogados –“ou pôr duas pessoas honradas, que funcionam nesta jurisdição, em uma posiçãoinsustentável, na verdade obrigá-los a jogar roleta russa com suas reputações esituação social.”

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Da única maneira possível, eu tornara a minha posição um assunto de registropermanente e destruíra qualquer possibilidade, qualquer que fosse o resultado dademanda, de que George ou Rosalie pudessem ser prejudicados por tão sinistrainsensatez. Cópias da petição foram enviadas ao escritório do Diretor, para seremenviadas aos advogados pelo correio, com as cinco cópias adicionais requeridas, umadas quais seria colocada em meu arquivo institucional, uma segunda enviada aoescritório do Governador, uma terceira ao Procurador-Geral e a quarta ao Diretor deCorreições.

Enviei a Rosalie uma cópia da petição, e uma carta na qual dizia: “Náo é hora delegalismos.” A abordagem calculada, de psicopata garatujante, foi recompensada.

Sua resposta foi pronta e prática: ela viu, imediatamente, que aquelas partes dapetição tratando de considerações extra-legais em torno do litígio teriam de sereliminadas completamente; além disso, outras mudanças e acréscimos teriam de serfeitos.

Telefonou para um número de São Francisco. “George,” disse, quando elerespondeu ao telefone, “não podemos apresentar a petição como está.”

“Claro que não. E tenho certeza de que Caryl sabia disso quando a preparoudesse jeito.”

“Então você acha que ele não se importará se a alterarmos?” “Nem um pouco.Tenho certeza de que ele ficará satisfeito com todas as alterações que você e euacharmos que devem ser feitas. De modo que vá em frente.”

Ela fez uma completa revisão da petição, e enviou-a por via aérea, serviço deentrega especial, para Davis. Então mandou uma carta para o “Prezado Sr. Chessman,”às vezes o mais difícil e imprevisível dos clientes. Primeiro, ela dizia que eu havia “feitoum trabalho prodigioso. Posso apenas imaginar a tensão que deve ter causado otrabalhar tão depressa, tantas horas.” Ficava satisfeita pela confiança que euexpressara nela e em George, e sabia que George também o ficaria.

“No entanto, devo dizer-lhe que não posso, em sã consciência, como um de seusadvogados, permitir que o documento seja apresentado em sua forma atual... agora éhora de legalismos, e não de uma récita de fatos extrínsecos, por mais válidos quepossam ser para outros propósitos.”

Em resumo, eu traduzi: “Estamos fazendo o que é essencial e melhor para você;de maneira que, por favor, ao invés de explodir irracionalmente, procure compreender.

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E, aprove ou não em princípio as nossas providências, não afunde o barco”George deu entrada no documento, juntamente com o necessário “Aviso de

Apelação”, junto ao Tribunal Distrital dos Estados Unidos.Isto foi a 11 de fevereiro. A 15 de fevereiro, o juiz Goodman tersamente denegou

a petição: “Sendo este tribunal da opinião de que não existe causa provável, o pedidode certidão de causa provável é denegado.”

CHESSMAN PERDE NOVAMENTE, anunciou um jornal, acrescentando que adenegação do recurso fora feita no que se acreditava ser “tempo recorde”. Mas,concluía a narrativa, “Pessoas ligadas ao forum daqui, assinalaram que isto nãosignifica o fim da luta de Chessman.”

Restavam-nos ainda dois tribunais – e metade do tempo regulamentar paraconseguir a apelação já se passara. George veio ver-me; depois, no fim-de-semana,completou os papéis para darem entrada na corte de apelação. Bem cedo, na manhã desegunda-feira, 20 de fevereiro, compareceu no cartório do Tribunal de Apelações dosEstados Unidos, extraiu um feixe de documentos da pasta e protocolou-os com ocartorário Paul P. O'Brien. Conversou brevemente com o secretario do juiz-presidenteWilliam Denman.

Depois, a espera. Um dia se passou, outro, um terceiro, quarto – e nem umapalavra. Veio o fim-de-semana; o tempo estava se esgotando. Rosalie veio aÚanhar ospapéis que eu havia preparado, caso fossem necessários, para apresentação na CorteSuprema dos Estados Unidos. George estava pronto para tomar um avião paraWashington, dentro de uma hora.

“Pelo menos este suspense dá boas reportagens,” disse eu.“Mas imagino que não está fazendo muito bem à sua úlcera,” disse Rosalie.Não estava mesmo. Mas eu preferia isso à cura para a úlcera – e para todos os

meus males e aspirações – receitada pelo Estado da Califórnia. Curas de pílulas decianureto, ministradas em salinhas verdes, eram por demais drásticas e permanentes.

“Nós já passamos por esse tipo de coisas – quantas vezes, antes?” disse eu.“Tantas, que já era para estarmos acostumados. Claro que eu ainda quero viver.Porém, estou preparado para morrer. Tenho de estar. Por ora, é o bastante e acho queé melhor deixarmos as coisas como estão. Temos feito, e estamos fazendo, tudo o que épossível, legalmente. Isto põe o caso nas mãos dos tribunais – e o das Parcas. De formaque voltarei para o Corredor da Morte, vou escrever algumas cartas particulares, e ler

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um ou dois livros. Você que vá passar o fim-de-semana com seus amigos, e descanse.Não pense no caso e nesse atormentado litigante, e divirta-se por mim também. Vocêfará isso?”

“Vou tentar.”Pouco antes de se esgotar nosso prazo, quando parecia que os sinos legais iriam

dobrar por mim pela última vez, o juiz presidente William Denman concedeu a certidãoda causa provável. E com ela, o magistrado, cuja atitude em relação a mim e ao casovinha sendo tão ambivalente, prolatou um sucinto parecer de justificação, no casoChessman contra Teets, que contrastava vividamente com a sentença anterior deGoodman.

“O escrivão do tribunal que taquigrafou o julgamento faleceu depois de traduzirapenas uma parte de suas anotações (em antiquada e obscura taquigrafia Pittman)”,consignava o parecer. “Por uma peculiaridade da lei californiana, em um processo civil,a morte do escrivão dá ao tribunal por onde corre a ação, o poder discricionário deanular o julgado, e determinar a realização de novo julgamento... nas não há nenhumdispositivo comparável para o processo criminal.”

(Os legisladores da Califórnia, muitos dos quais se haviam unido contra mimquando se realizaram audiências sobre projetos de lei visando a abolir ou suspender apena capital, e todos os que, na sessão ordinária de 1955 da Assembléia Legislativa daCalifórnia, haviam solicitado ao Congresso que vedasse o meu acesso a tribunaisfederais, eram muito mais atenciosos com recursos relativos a, por exemplo, a validadedo testamento contestado da Tia Maggie, ou o terceiro processo de divórcio de umaborboleta social, do que com um apelo sobre a validade de uma condenação à pena demorte, no caso do falecimento do escrivão do tribunal principalmente se o nome dorecorrente fosse Caryl Chessmau.)

Continuava o parecer: “Então, outro escrivão (o tio por afinidade, do promotorque funcionara no julgamento) terminou a transcrição das notas. Depois disso foiouvido um processo para esclarecer a transcrição, pelo tribunal superior que julgaraChessman. De tal processo participou o escrivão que terminara a transcrição (e que,por sugestão do promotor, havia mantido consultas, fora do recinto do tribunal, comtestemunhas principais da promotoria sobre os seus depoimentos) e que tevedificuldades em certos trechos das anotações feitas pelo sistema de taquigrafiautilizado pelo falecido escrivão. Ao procurar vencer essa dificuldade, ele utilizou o

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depoimento de certas testemunhas, inclusive o do promotor. O último colaborou,fornecendo, de memória, um relato do que ocorrera no julgamento (e através doexame do rascunho da transcrição, antes que esta fosse passada a limpo e desseentrada no tribunal superior).”

O caráter quase tendencioso desse “processo de apresentação” era entãocomentado: embora eu tivesse requerido autorização para estar presente, e embora opromotor tivesse garantido à Corte Suprema da Califórnia que eu estaria presente,“Chessman não foi autorizado a presenciar os trabalhos de esclarecimento datranscrição, nem a se representar por advogado a fim de apresentar suas afirmações,entre outras a de que a transcrição evidenciaria certas declarações prejudiciais, feitaspelo promotor da acusação, e as instruções dadas ao júri, segundo as quais, caso osjurados se decidissem pela culpabilidade do réu, deveriam pronunciar um veredictopela pena de morte. Foi-lhe negada a oportunidade (de verificar a capacidade doescrivão substituto) de inquirir testemunhas, apresentar testemunhas, e colaborar,também, com o que se lembrasse, para as bases a partir das quais a transcrição foiafinal compilada.”

Teria tal insólito procedimento dado causa a uma privação de meu direitoconstitucional a um julgamento conforme a lei? De acordo com a situação, comprovadapor fatos, havia uma “razão justificável”, dando-me o direito de apresentar um recursoa seu tribunal, decidiu o juiz Denman.

O parecer provocou algumas repercussões surpreendentemente favoráveis eoutras negativas. Royce Bryer, em sua coluna “O Mundo de Hoje”, no Chronicle de SanFrancisco, de 1.o de março de 1956, teve certas observações mordentes a fazer sobre aadministração da justiça, até aquela data, no caso Chessman. Disse ele:(*)

Diariamente, em seu jornal, os funcionários públicos desfiam suas mágoas ante adificuldade que encontram em levar os criminosos à Justiça. Na Califórnia, em toda parte,basta um jornalista se aproximar de um guarda, um promotor ou um procurador geralassistente, para que as lágrimas amargas comecem a escorrer.

Na Califórnia, Chessman é o Grande Exemplo. Vejam só que sujeito – 16 toneladasde autos, e qual o resultado!... Bem, o novo desenvolvimento do caso Chessman poderá servagamente instrutivo para as pessoas pouco vivas, que vêm agüentando a canção

(*) Reprodução permitida por Royce Brier e o Chronicle de San Francisco.

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melancólica dos funcionários públicos desta era. Todos conhecem Chessman... Vai paraoito anos que ele está na cela da morte.

Às vezes, ele funciona como seu próprio advogado. Escreve arrazoados e livros. Dizque seu julgamento foi irregular – o escrivão do tribunal faleceu, e a transcrição foicompletada por outro. Ele tem se virado e revirado, derrotando-os sempre. Mas, por que?

Faz pouco tempo, foi indeferida uma petição de novo julgamento de Chessman,pelo tribunal federal. Em grau de recurso, o juiz-presidente William Denman, do judiciáriofederal, concedeu uma certidão de causa provável, para determinar se foi negado aChessman o devido processo de lei na questão da transcrição. O caso é o seguinte: quandoa transcrição estava sendo preparada para o recurso junto ao tribunal prolator, opromotor e outras testemunhas depuseram, de memória, sobre o que fora dito nojulgamento, por serem obscuras, em certos trechos, as anotações deixadas pelo falecidoescrivão do tribunal. Mas nem Chessman, nem seu advogado, estiveram presentes a estaaudiência. Os advogados de Chessman afirmam que o réu tinha o direito constitucional deestar representado, e de apresentar a sua versão da transcrição. O judiciário federalconcordou em termos.

Depois de mencionar formalidades da lei, disse o juiz Denman:“Aliás, é bem provável que, se Chessman tivesse estado presente... alguns dos...

recursos, petições... e mais apelos, poderiam ter sido evitados”.Isto deveria alertar o leitor, porque, do ponto de vista da casta dos promotores,

tudo está errado no caso Chessman, a não ser o nobre zelo dos que tentam conseguir aexecução de sua sentença. A decisão de Denman sugere (um tanto polidamente, percebe-se), que essa narrativa de frustrações é um pouco parcial.

Se o juiz pode saber que um réu tem direito, por lei, a ser representado em umprocesso de transcrição, por que não o saberá o promotor? É verdade que os juízesexistem para suprir os lapsos dos promotores, mas por que deverão os promotoresatribuir os seus lapsos à sociedade, aos tribunais, às constituições ou à argúcia demoníacados criminosos? Não é que os numerosos aspectos do “processo de lei” sejam novos. Seráque não são ensinados na Faculdade de Direito? Mesmo que não houvessse uma lei assentesobre o caso, será que um promotor, ou um tribunal, também não deveriam saber que osdireitos de um réu oferecem armadilhas para a promotoria, e para a administração daJustiça em geral?...

Nenhum promotor ou magistrado envolvido se dignou a responder à chocanteheresia de Brier, de ousar questionar, publicamente, os métodos extraordinários e o“nobre zelo”, tão sacrificado, daqueles que “tentam me levar à (sic) Justiça”.

Afinal de contas, será que o sr. Brier não compreendia que os membros daquelaexcelsa classe são prepostos do soberano, e que o soberano não pode errar? Não lhe

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haviam dito, já, que “Chessman, a besta humana”, era um arguto e dedicadoescarnecedor da Justiça, indigno de viver? Que os persistentes e veementes protestos deinocência da besta, eram apenas uma máscara cínica? Assim, não deveria ser evidentepara ele – e para qualquer pessoa que pensasse direito – que o fim almejado (minhaexecução) justificava o meio oportunístico que estava sendo empregado par se alcançardito fim? Em resumo, o sr. Brier e o juiz Denman estavam, simplesmente, sendoinsensatos. Para as pessoas virtuosas, sempre haveria maneiras de punir tal insensatez.

Desta forma, o ataque, quando chegou, foi tipicamente subterrâneo, por umlado, e de uma crueza flagrante, do outro.

Passado um mês da publicação da coluna de Royce Brier, o Chronicle publicouum artigo exclusivo, assinado por Bernice Freeman. Anunciava que J. Miller Leavy, o“bem-sucedido acusador de Chessman”, dera entrada no judiciário estadual, aacusações secretas contra Berwyn A. (“Ben”) Rice, “antigo advogado do escritorcondenado”. Segundo o artigo, Leavy, esquivando-se a confirmar ou desmentirpublicamente a medida, havia acusado Rice de alegar falsamente que ele, Leavy, foraculpado de conduta fraudulenta (no caso da transcrição), quando Ben apresentarauma petição pessoalmente verificada de habeas corpus junto ao tribunal superior doCondado de Marin, em maio de 1954, e me conseguiu uma “sursis” de execução, menosde um dia antes da data marcada para a minha morte. Leavy parecia estar confiandono parecer do juiz Goodman, que estabelecia que suas ações no caso haviam sidoisentas de culpa, e assim Ben merecia ser punido (pela expulsão do quadro da Ordemdos Advogados, ou suspensão da prática da advocacia, ou repreensão registrada) porter dito tais coisas a seu respeito.

Claro que as acusações dariam em nada. Seriam investigadas e então, algunsmeses mais tarde, receberiam o quieto funeral que mereciam. Mas, nesse ínterim, elasajudariam efetivamente a envenenar o poço da opinião pública contra mim e os quetentassem auxiliar-me. Talvez esse tivesse sido o seu propósito.

Ben, que fora informado da ação de Leavy, mas que ainda não recebera umacópia formal da queixa, teria dito: “Isto confirma o que vem sendo feito do caso emLos Angeles. Minhas ações no caso Chessman sempre foram honestas. Sei de muitacoisa a respeito do assunto que é forte demais para publicação. Leavy está apenasamargado.”

E o que eu diria sobre o apoquentado sr. Leavy, apareceria em nossos arrazoados

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de recursos, e seria escaldante.Dez dias antes de se divulgarem as acusações de Leavy, outro grande diário de

San Francisco, e um destemido cruzado por conta própria, inimigo e denunciador “deChessman, o gangster dedicado”, fez uma revelação de cair o queixo.

É um capítulo à parte. E é contado a seguir.

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CAPÍTULO 14O REI DO CORREDOR DA MORTE

COMO BYRON, que acordou em uma manhã e descobriu que ficara famoso, na manhãde 21 de março de 1956 eu descobri que era o “Rei do Corredor da Morte”. OExaminer de San Francisco fazia essa sensacional revelação sob o título, “CHESSMAN ÉO REI DO CORREDOR DA MORTE, AFIRMA PRESIDIÁRIO”, assinada por WilliamHendricks.

Li o primeiro parágrafo: “Uma briga a socos, até então não divulgada, nocorredor da morte da Penitenciária de San Quentin, resultou nas acusações feitasontem por um condenado cheio de ressentimento, – a dezoito dias da morte na câmarade gás – de que Caryl Chessman reina como um rei, no corredor da morte”.

Isto, sim, é que era novidade!As absurdas revelações haviam sido feitas por Robert Pierce, de vinte e sete anos

de idade, “assassino condenado, de Oakland”. A briga tinha “envolvido Pierce e seucompanheiro de crimes, Smith E. Jordan, de vinte e oito anos de idade”; e HenryThomas, de trinta e três anos de idade, o assassino do Condado de Siskyou,“variadamente descrito como um participante ativo, e um pacificador, que tentouseparar os dois assassinos”.

Mas Pierce “atribuiu tudo a Chessman, o escritor-condenado, cujos sete anos deocupação do Corredor da Morte estabeleceram um recorde.” Em meio a uma torrentede acusações e queixas – incluindo a declaração de sua inocência – ele afirmou que uma

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claque de “veneradores de Chessman” ajuda o estuprador condenado de Los Angeles a“dirigir o espetáculo.”

Hendricks informava que o Diretor Associado Louis Nelson dissera que Pierce nãoera “nem melhor nem pior” do que a média no Corredor da Morte. Se esta citação eraexata, o sr. Nelson estava confessando que pouco sabia a respeito de seus presidiárioscondenados, uma suspeita que eu nutria há algum tempo. Pierce era tão “da média”como um cão hidrófobo e sarnento poderia ser o representante da espécie canina.

Então Hendricks relatava uma horrenda narrativa de brutalidades na prisão. “Nomês passado, disse Pierce, os guardas o espancaram durante vinte minutos, porque elese recusou a deixar que um deles entrasse em sua cela para tirar um “clip” de papel, deum documento legal. Ele mostrou uma cicatriz de dois centímetros no canto direito daboca, infligida, alegou, pelo anel de um guarda antes de ser posto no “buraco dasserpentes” (confinamento solitário).

“Eles deram em mim com a mão fechada, e pisaram em cima de mim. Eles mejogaram no buraco, completamente pelado.”

Quanto à sua mais recente dificuldade: “Tentei falar com Jordan a respeito deuns assuntos legais para conseguirmos um julgamento honesto. Enquanto eu estava noburaco, os ‘tiras’ e a claque daquele herói do Chessman indispuseram o meucompanheiro de crime contra mim. Ele não queria saber de falar comigo.”

“Ontem ele veio como se quisesse falar e em lugar disso me deu um soco. Entãotodos os ‘fãs’ de Chessman pularam em cima de mim. Tivemos uma briga. Eu nãotenho medo de ninguém de lá. A briga durou vinte e cinco minutos.”

“O guarda, no passadiço de vigia, ficou vendo a briga, sem fazer nada. Eu disse aele: ‘Por que você não me ajuda, homem? Eu desisto’.”

Era preciso conhecer-se William “Primeira Página” Hendricks e Pierce, além doestranho mundo do Corredor da Morte, para compreender o que tornou a história tãoembaraçosa para os funcionários da prisão.

Hendricks, calvo e em vésperas de entrar na casa dos quarenta, costumava usarcamisas-esporte espalhafatosas, vestia-se de um jeito que a gente poderia classificar deinformal (mantendo a sua tradição bombástica), e tinha os maneirismos exagerados,mas nada de argúcia inata, de um Hildy Johnson da vida real.

Era o representante de condado pequeno, o pé-de-boi, do Examiner, de SãoFrancisco. Além disso, escrevia uma coluna semanal para o Examiner de domingo, que

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cobria as atividades de seu condado em um estilo que uma vez foi descrito como “umcasamento sob a mira de espingarda, de Runyon gago e Spillane burlesco, com a marcado Sombra, aquele antigo pavor dos criminosos, das revistas de histórias emquadrinhos, a apontar-lhe a espingarda e Mencken, por pura perversidade, lendo ossacramentos matrimoniais”. Além de ser um oráculo em pequena escala, e consultor e“manager” de ferventes candidatos a cargos públicos, ele também se metia em políticade condado.

Esse chefe de imprensa, que acabara de me coroar rei do Corredor da Morte,vinha me atacando há anos. Em 1949, ele escrevera uma “feature” a meu respeito ehavia maldosamente comentado, depois de me descrever como um facínora encorpado,“sempre pronto a dar o bote”, absolutamente impiedoso, com um quociente deinteligência de “gênio”, como eram incôngruas as “fitas cor-de-rosa” que eu amarraraem torno dos calcanhares.

O leitor podia tirar sua própria conclusão: Chessman era algum desviado sexualexibicionista, que usava, festivamente, fitas cor-de-rosa nos sapatos – e daí, baseadonessa significativa prova, provavelmente, ou, pelo menos, com mais razão ainda, euseria culpado dos repelentes crimes sexuais da Luz Vermelha.

Na realidade, a “fita cor-de-rosa” era barbante comum, vermelho, bem resistente.As chinelas de pano, feitas na prisão, naquela época, haviam sido confeccionadas de talmodo que não paravam no pé, a menos que amarradas por baixo da sola e ao redor docalcanhar. O barbante nos fora fornecido para esse propósito específico. Todos oscondenados do Corredor o usavam para prender as chinelas.

Tentei atrair Hendricks para uma nova sessão no escritório do Diretor-Associado.Se eu tivesse conseguido, ela teria sido, como diz o povo, rápida e sem mais aquelas,pois que eu pretendia me expressar sem palavras.

Depois da publicação de 2455, Cela da Morte, meu caso atraiu crescente atençãoe se tornou cada vez mais controvertido. Hendricks, um obstinado advogado da penade morte, importunava-me reiteradamente. Suas “revelações” eram risíveis, masquando a gente está aguardando a morte, não é sempre fácil dar gargalhadas. A maiorparte dos condenados se recusava a ser entrevistada por ele. Ele teve meses de vacasmagras, e depois acertou em cheio com Robert O. Pierce.

Pierce era o exemplo trágico de uma personalidade pervertida e emocionalmente

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atrofiada que, procurando compensar seus defeitos, freqüentemente vai para a prisãoou para o Corredor da Morte, e floresce nesse meio. Há algo de tristementedesequilibrado nesses homens infantilizados, e eles estão sempre tentando,freneticamente, provar o contrário a si próprios, e àqueles com quem entram emcontato. Agem compulsivamente. Para eles, o fato de serem condenados constitui umdistintivo de mérito. Eles se inspiram nos horripilantes vilões que emergem doscérebros férteis porém mal informados dos escritores de Hollywood e da televisão.

Eles lhe dirão que odeiam “tiras”. Essa bravata visa a provar à gente que eles são“boas pedras”. Eles xingam os guardas, e depois xingam ainda mais quando são punidospor fazê-lo. Isto é para deixar bem claro que são “durões”. Usam “benny” (benzedrina),“chá” (maconha) e “coca” ou “H” (entorpecente). É assim que se divertem. Sãomentirosos incorrigíveis porém ineptos, que bravateiam a respeito de “trabalhinhos”imaginários e os “grandes férias” que conseguiram.

Num dia são cáftens em grande escala; no dia seguinte, bandidos em grandeescala. Nunca tiveram carros que não fossem Cadillacs, sempre andavam com pelomenos cem mil na carteira, e tinham “galinheiros” com nunca menos de cinco“virações” escolhidas. Nunca andavam armados com menos do que umasubmetralhadora e dois calibres 45. (A gente vai ver e descobre que eles estão nacadeia por terem roubado à-toa um antigo Ford ou Chevrolet, por terem roubado umabolsa, ou morto a tiros o verdureiro da esquina ou um motorista de táxi, em um roubonada rendoso.)

Na prisão, têm sempre algum grande golpe em preparação, mas tudo o queconseguem é queimar as asas. Têm uma “velhinha” (um pervertido sexual) com quem,se tiverem oportunidade, realizarão atos sexuais e depois se gabarão disso para seuscompanheiros. Habitualmente ameaçam “descer o cano” na cabeça de alguém, ou“encher de chumbo” a sua barriga. Estão sempre tentando esmagar ou falar mais altodo que os companheiros de prisão. Se a gente não estiver disposto a concordar e aconfraternizar-se com eles, a gente se torna um “quadrado”, “torto” ou alcagüete. Agente os evita o quanto puder.

Muitas vezes eles confundem diplomacia ou sensatez, com fraqueza; de formaque, às vezes, a gente verifica ser necessário, se se é um prisioneiro que cuida de sipróprio e não recorre ao Homem para resolver seus problemas, agir com dureza; e emcasos extremos, descer a mão ou algum objeto pesado nas suas cabeças. Eles

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compreendem tal terapia. O tratamento, porém, raramente é duradouro.Crianças-problema da sociedade, da penitenciária e do Corredor da Morte, eles

são encontrados, principalmente, no grupo de menos de vinte e cinco anos de idade. Ocostume atual, nas instituições penais, é segregá-los quando se tornam muito difíceisde controlar. Aqui em San Quentin, juntamente com outros casos graves, eles sãopostos em quarentena, em uma unidade especial no prédio velho da prisão.Freqüentemente, são promovidos ao pavilhão de psicopatas e, ocasionalmente, seafundam mesmo, ao Mendocino, o hospício estadual para os criminosos insanos, oupara Vacaville, onde se situam as instalações médicas do Estado.

Felizmente, muitos dentre esses patéticos casos mentais ultrapassam, em seudesenvolvimento, esse complexo de Dillinger e a compulsão de impressionar todomundo com a sua própria ferocidade. Muitos dentre os “deficientes de caráter” são àsvezes mais cômicos do que perigosos. No entanto os mais violentos e pré-psicóticosentre os componentes desse grupo, constituem para o público – e para o psiquiatra,sociólogo, penalogista, juiz e legislador – um problema de extrema premência, para oqual a punição e a câmara de gás não oferecem solução.

Não são criminosos, a não ser no limitado sentido legal da palavra. Cometemcrimes, é verdade, mas raramente, como ocorre com o criminoso profissional, com fitode lucro. Poucas são as ocasiões, como no caso do psicopata, em que sua criminalidadeaparente se expressa em um ódio auto-destruidor ou desafio da autoridade, ou umafria indiferença em relação aos direitos das outras pessoas.

São como pessoas nascidas sem braços, pernas ou vista. Sua perda não é física,mas sim mental e emocional. Psicologicamente, são cegos; em termos de caráter ematuridade emocional, não têm braços nem pernas, ou então esses membros sãodeformados ou atrofiados. Por seu próprio bem, e para o bem do povo, eles deveriampermanecer em uma instituição destinada a tratar e cuidar de personalidadespsicopatas agressivas. O pior lugar para eles – e para a penitenciária – é a própriapenitenciária.

Não se pune um cego por não ver. No entanto, se um transplante de córnea lherestaurar a visão, a gente efetua a operação. Uma atitude similarmente positiva deveriaprevalecer no caso dos deficientes de caráter. Se assim fosse, teríamos mais cidadãosúteis, e menos grotescos infelizes (e suas infelizes vítimas) como Robert O. Pierce.

Tivesse Hendricks sido mais penetrante, e teria escrito um tipo de revelação

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inteiramente diferente. Teria posto a nu a desumanidade de se executar um louco tãopatético como Pierce. Teria tornado claro, também, que o único rei que qualquerCorredor da Morte pode ter é a morte e, como disse Austin Dobson, “Não há monarcamais terrível”.

Hendricks, é claro, poderia replicar que meramente transmitira o que Pierce lhecontara. Mas isto seria o mesmo que dizer que qualquer história pode ser publicadacomo notícia, se satisfizer a fome popular pelo sensacional. A função de um jornalista ede seu jornal é de informar a seus leitores.

Na hora do exercício, meus “súditos” no Corredor da Morte me gozaram de bomhumor. Esse tipo de tolice, em nosso pequeno e sombrio mundo, não poderia passarem branco. O Barrigão fez um salamaleque tão exagerado que perdeu o equilíbrio equase se esparramou no chão. Gene olhou para mim e fez o comentário maisdevastador de todos: “Ernk!” Eu concordei com ele. Mike “Honesto”, nosso fantásticoirlandês de Boston, disse que tinha “uma boa pista para Hendricks. Vou contar para eleo segredo mais bem guardado da história – que Vossa Majestade guiou a caleche emque John Wilkes Booth(*) fugiu.”

Pierce foi então trancado atrás da “Cortina de Ferro”, como nós chamávamos aponta do Corredor da Morte, isolada para abrigar aqueles que não podiam ou nãoconseguiam dar-se bem com a população do Corredor da Morte. O Manteigueira, comseu costumeiro e depravado sorriso de orelha a orelha, não se esqueceu de fazer comque Pierce visse o artigo de Hendricks.

Pierce, o Campeão por auto-aclamação, ficou fora de si: “Homem,” disse, “aquelesafado me levou no bico. Quero dizer... você sabe... não houve nada. Aquele quadradodo Chessman ficou com todo o cartaz. Isto é duro, homem, duro!”

É evidente que ele não fora espancado e pisoteado, durante vinte minutos ouvinte segundos, pelos guardas da prisão. Levara um único murro no queixo, depois deter recebido ordens para sair da cela, de uma turma de revista. Ele se exaltara até ficarhistérico; então, erguendo, de repente, as mãos em posição de luta, investira contra umdos guardas. O guarda lhe dera um murro e o Campeão beijara a lona. “Desisto!”,gritou. “Não bata em mim! Não houve nada.”

(*) John Wilkes Booth (1838-1865), membro de uma família de atores norte-americanos,

assassino do presidente Lincoln. [N. do T.]

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Muito menos a “claque” dos fãs de Chessman pulara por cima dele. Ele é quehavia avançado contra seu próprio comparsa de crime. Jordan, um homem agradável,simplesmente ficou saturado com os blefes, lamentações e com a direção, peloCampeão, da sua luta legal pela vida.

“O que se pode fazer com um fulano desses?” ele dissera. “A única coisa que euquero é que ele siga o seu caminho, e me deixe em paz. Ele falou tanto que nos pôsaqui. A gente arranja um advogado para nos ajudar, e dali a dois dias ele estáescrevendo para o advogado, ou dizendo que ele é um bastardo imbecil, ou umcachorro sem-vergonha. Ele até tentou dizer a meu advogado como ele devia tratar domeu recurso. Ele é louco.”

E era mesmo, mas não para o arcaico padrão da Califórnia para medir a sanidadelegal. Ele passara tempo considerável em uma instituição mental. O erro fôra tê-lodeixado sair.

Entrara para o Exército e só criou casos. Deu baixa por má conduta e razõespsiquiátricas. Jordan o encontrara morando em um barraco, e ficara amigo dele. OCampeão arranjou uma arma, criou idéias grandiosas, e tiveram início curtas carreirasde bandidos amadores, a sua e a de Jordan. Foram condenados à prisão por roubo e,posteriormente, julgados pelo assassínio de um motorista de praça, durante umatentativa de roubo atrapalhada pelo Campeão. Quando foi preso, ele chegou à tortuosaconclusão de que, ao insinuar abertamente ter cometido o assassínio, as acusações deroubo seriam abandonadas; então, que ele conseguiria convencer o júri de suainocência no assassínio e sair livre. Ao invés disso, cavara a sua sepultura (e a deJordan) com a boca. Continuou a cavá-la mais fundo. Eles teriam tido uma boa chancede pegar prisão perpétua, em lugar de pena de morte, não fosse a sua atuação duranteo julgamento.

Ele atribuía, obscenamente, suas constantes dificuldades a uma qualidademaligna no cosmos, ao fato de que o mundo era composto em grande parte de“quadrados” perversos e vingativos e, por ser negro, de discriminação ou preconceito.A imagem que fazia de si próprio era tragicômica. Sua mente doentia aspirava por“cartaz”.

No começo, como, às vezes, ele era original e cômico, nós nos divertíramos comsuas estripulias, mas logo a novidade se esgotou. Ele tamborilava na mesa por horasseguidas. Tornou claro que considerava a maioria de nós uns “quadrados”. Suas

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gargalhadas insanas eram ouvidas, às vezes, às três horas da manhã. Comiavorazmente. Era baixo, atarracado e de ancas largas.

Eu escrevera um livro; de modo que ele escrevia um, também. Tinha garatujado1.500 páginas, e ainda estava escrevendo quando, ao mesmo tempo que meu romancefoi apreendido, seu manuscrito lhe foi tirado. Eu tomei providências legais, e ele tomouprovidências de boca. Fez melhor do que eu, ao ameaçar de limpar a linha de guardas, efazer que a prisão soubesse com o livro de quem estavam se metendo. Era umverdadeiro tigre, especialmente quando se embriagava com um suco de frutaslevemente fermentado, ao qual adicionava açúcar. Até que não podiam mais seagüentar, ele se dera com Mantegueira e o Grego.

Um par de vezes, fechado na cela, ele ameaçara esmigalhar-me os miolos. Quandoeu, sorridente, lhe dei a oportunidade para tanto, ele se esquivou. Ficara possessoquando, depois de dedilhar desafinadamente um velho violão, muito tempo depois dahora da música ter passado, eu o acompanhei, batendo duas tigelas uma na outra.

Estragava a maior parte de nossos jogos de pingue-pongue e voleibol, com suaconstante importunação e farolagem. “Homem, eu sei que sou o melhor que já fez isso.Sou o Campeão.” Lia revistas “só para homens”, para provar sua virilidade, contava emaltos brados como tratara uma “viração”, e atormentava ou levava as pessoas no bicoquando podia, incapaz de estabelecer relações pessoais em qualquer outro nível.

Encurralou um novo “hóspede”, um jovem que nunca fora preso antes, e queestava mal equipado para lidar com meio ambiente tão atemorizante. Para o recém-vindo, ele “estabeleceu as suas regras”.

“Eu sei que você não dá no couro”, disse. “Este lugar aqui é duro. Homem, estestrouxas daqui são ruins! E estão de olho em você. Você precisa de um amigo, homem,alguém para enxotar essa gente, e eu sou o Campeão. Basta você dizer para eles que euestou encarregado de você. Assim eles não mexerão com você, porque os trouxassabem que não tenho nada a perder. Posso vencer qualquer um deles, de modo que émelhor você me tratar direito.”

Traduzido, isso significava que o recém-chegado faria melhor se se colocasse soba custódia protetora do Campeão, e demonstrasse sua gratidão por isso, submetendo-se aos caprichos sexuais do Campeão. Do contrário, apanharia dele.

Eu soube deste incidente, e prontamente aconselhei ao Campeão: “Pierce, no queme diz respeito, e o resto do pessoal, você pode fazer tudo o que lhe der na veneta

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aqui, se for bastante esperto para derrotar o Homem. Mas você que não force ninguéma fazer nada. Não se aproveite de ninguém, como você tentou, ou então eu vou ter dedescobrir logo logo qual é a sua valentia. Compreende?”

“Tá,” disse ele, carrancudo. Tudo o que tentara fazer, disse, foi “marcar aquelematerial”, e agora eu estava “estragando o seu jogo”.

“Campeão, você não tem jeito mesmo”, disse eu.Ele e Jordan tiveram seus recursos indeferidos. Foi fixada uma data para a

execução, e ela se foi aproximando. Esperando um milagre, Pierce chamara Hendricks,pretendendo vender ao jornalista uma história. Em troca de uma fantasiosa narrativade brutalidades na prisão e despotismo real, ele se convencera de que Hendricksdivulgaria para o mundo os “verdadeiros” fatos a respeito de Robert O. Pierce, e lheconseguiria um advogado criminal de primeira, que estabeleceria a sua “inocência”.

Não saiu como ele pensava. Seus planos nunca davam certo.E, de repente, a Morte riu na cara do Campeão. Ele estava encurralado. Aquilo

não era mais um jogo glamouroso. Era terrivelmente real. Sua mente doentiaesfacelou-se ainda mais sob a tensão. Ele arrebentou os encanamentos na sua cela.Esbravejava, ameaçando morrer “lutando, esperneando e gritando”. Foi transferidopara uma cela de isolamento.

Lá se acalmou um pouco, mas isto era apenas a calma aparente, antes de umatempestade emocional final.

Uma tarde, foi transferido para o andar de baixo, com Jordan, para ali ficar atéde manhã, e então ser executado. A justiça da câmara de gás da Califórnia estava paraobter seu repulsivo triunfo. Ao morrer, o Campeão conseguiria o “cartaz” queambicionara durante toda a sua vida adulta. Só que nunca veria os cabeçalhos.

Os cadáveres não lêem.AOS BERROS ASSASSINO MORRE EM DUPLA EXECUÇÃO, proclamava um

cabeçalho.O veterano jornalista Will Stevens escreveu a melhor e mais completa narrativa

de como foi o fim de Pierce. Eis o seu artigo, como apareceu no Examiner de SanFrancisco, no sábado, 7 de abril de 1956, no dia seguinte ao da dupla execução.(*)

(*) Reproduzido por permissão de Will Stevens e do Examiner de San Francisco

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O soberano Estado da Califórnia, ontem, executou um homem que proclamava asua inocência, e lançava anátemas contra Deus.

Seu nome era Robert O. Pierce, condenado por um júri composto só de mulheres,por ter assassinado um motorista de táxi durante um roubo de sete dólares, em Oakland,em 1953.

Smith E. Jordan, cúmplice de Pierce no crime, morreu a poucos passos de distânciade seu companheiro, depois de um sorriso e uma piscadela jovial para as dezessetetestemunhas de rosto solene, e trinta e dois guardas, que viram os condenados morreremnas câmaras de gás de San Quentin.

A despeito de medidas de segurança mais rigorosas do que nunca, na história daprisão, que conta com trezentas e cinqüenta e cinco execuções, Pierce, de 27 anos deidade, um verdadeiro touro, apenas por questão de centímetros fracassou em umatentativa de suicídio, cinqüenta segundos antes de entrar na câmara de gás. Golpeou aveia jugular, na garganta, com um pedaço de espelho quebrado, de cinco por oitocentímetros, mas não acertou na artéria que procurava, enquanto o reverendo EdwardDingberg, capelão católico, ministrava os últimos sacramentos.

Quase naquele mesmo instante, enquanto o sangue se espalhava no lado direito dopescoço de Pierce, o tenente Clande Lansing e o médico da prisão, dr. Willcuts,precipitaram-se para Pierce. O diretor Harley O. Teets, ali perto, disse: “Levem-no paradentro”.

Cinco guardas da prisão carregaram Pierce – que cumpriu a promessa de “irlutando, esperneando e gritando” – para dentro da câmara de gás, o sangue escorrendodo pescoço e avermelhando as costas de sua camisa branca. Na luta animal que se seguiu,os cinco guardas levaram seis minutos para amarrar Pierce na cadeira. Então Jordanentrou, e foi amarrado rapidamente, por mãos dextras.

De olhos fechados, e a cabeça alta, com estranha dignidade, Jordan ignorou asviolentas maldições de Pierce. Nove minutos depois, ambos estavam mortos, de queixoderrubado ao peito, como crianças cansadas, que brincaram muito, e caíram no sono.

O diretor Teets disse que fora “a execução mais difícil que já haviam tido”, e entãodeterminou uma exaustiva investigação sobre as medidas de segurança que possibilitarama Pierce tentar... suicídio – não apenas no Corredor da Morte – mas virtualmente dianteda porta da própria câmara de gás, segundos antes de entrar.

Os funcionários da prisão haviam previsto complicações contra Pierce – mas nãotanto assim.

Cinqüenta segundos antes que Pierce entrasse na câmara de gás, às 10 horas damanhã, o padre Dingberg entrou na cela de Pierce, e começou a orar. Pierce continuou afumar um cigarro. Então, o sacerdote viu Pierce “esfregar alguma coisa no pescoço” – esegundos depois, o tenente Lansing e o dr. Willcuts viram o sangue – e correram para

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Pierce, quase derrubando o sacerdote.“Sou inocente”, gritou. “Juro por Deus que sou inocente!”As testemunhas viram cinco guardas, como caçadores lutando com um gorila que

tivessem capturado, carregando Pierce para dentro da câmara de gás. Quatro guardasseguraram Pierce pelas mãos e pés, e o quinto guarda lhe imobilizava a cabeça, com umagravata, enquanto guiava o corpo coleante de Pierce, e os demais guardas, para a câmarade gás. Lançaram-no em uma cadeira. As testemunhas, atônitas, sem estarem a par datentativa de suicídio, viram uma grande mancha vermelha se espalhar pelas costas dePierce.

Eram dez horas da manhã.Seu pulso direito foi afivelado. Depois, o esquerdo. Mas agora ele conseguira

libertar os pés. Durante o combate, um guarda conseguira lançar um paletó azul sobre ascostas de Pierce, presumivelmente para ocultar a crescente mancha vermelha, que agoracobria todas as costas de sua camisa branca. A mancha vermelha se infiltrou pelo paletó.

“Oh, Cristo Nosso Senhor, dê-me a morte, mas não assim...”Como um animal exausto, ele relaxou os movimentos, por fim. Naqueles segundos,

os guardas – agora com os blusões ensangüentados – afivelaram-lhe as correias noscalcanhares. Seis minutos haviam sido necessários para amarrar o prisioneiro.

Só então Jordan foi trazido. Ele teve um largo sorriso, piscou, fez um “V” davitória, e depois foi afivelado na segunda cadeira. Os guardas saíram, batendo a porta deaço da câmara de gás.

“Está bem, Senhor”, gritou Pierce. “Se esta é a Sua vontade”.Olhou para as testemunhas, através das janelas de vidro da câmara.“Vocês me mandaram para aqui”, gritou, para os rostos que via. “Eu procedi mal,

mas nunca matei ninguém.”De repente, como um tigre amarrado, acuado por nativos da floresta, Pierce, o

rapaz de 27 anos, fez um supremo esforço para romper as correias que o prendiam. Seusombros maciços ergueram-se alto na cadeira (e sua garganta mutilada ficou à mostra).Por alguns segundos, parecia que ele iria conseguir. Mas as correias agüentaram.

“Deus, você é um ________ sujo!”, urrou ele, “porque eu estou inocente!”Às 10:06 horas, os “ovos” de cianureto caíram em um balde com ácido. Pierce

olhou para a fumaça, curioso.“Deus, você é um...” bramiu ele.Do outro lado da câmara de gás veio uma prece. Era o capelão da prisão.“Padre Nosso, tende pena deles... tende pena deles...”“Seu sujo...” arquejou Pierce, e então sua cabeça lançou-se para trás, quando a

fumaça o alcançou.“Tende pena deles... Padre Nosso, perdoai-os porque não sabem o que fazem...”,

veio a voz do sacerdote.

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Então, houve silêncio no prédio que aloja a câmara de gás. Um tenente da prisão,disse, às 10:15 horas:

“Pronto, cavalheiros.”“Padre Nosso, tende pena deles... tende pena deles...” assassinos condenados pela

morte de Charles Rose, motorista de táxi, a 28 de março de 1953, estavam mortos.Lá fora, cotovias cantavam, na adorável manhã de primavera. A alguns passos da

porta da câmara de gás, violetas, azuis e douradas, desabrochavam ao longo da borda deum gramado recém-aparado...

Aqui, no Corredor da Morte, naquela manhã de sexta-feira nenhum pássarocantou, nenhuma flor desabrochou, e a primavera nada mais foi do que um fatocronológico abstrato.

Pouco antes das dez e meia, ouvimos tocar o telefone, no escritório do sargento.Sabíamos o que isto significava. A execução terminara. A rotina normal seria retomada.Interrompi meu trabalho legal, tirei uma lista de uma pasta, ajustei a folha namáquina e acrescentei dois números, sobrenomes e datas: “66. Pierce 4-6-56”, e “67.Jordan 4.6.56”.

O carrasco arrebatara o “título” do Campeão. Os carrascos são assim mesmo.Suas preocupações haviam terminado.Mas as minhas, não.O Manteigueira estivera excitado com as execuções, desde manhãzinha. Não que

ele se importasse com Pierce ou Jordan. Mas sua necrófila curiosidade foi exacerbadaaté que começou a babar de antecipação. (Oh, que alegria seria dançar em torno doscadáveres, chutando-os triunfalmente, amaldiçoando e escarnecendo deles!) Quando otelefone tocou, o Manteigueira disse, como se fosse o próprio Destino pronunciandoum julgamento exultante:

“Foi agora!”Então apertou os fones nos ouvidos, sequioso por quaisquer pormenores que

pudesse extrair de um boletim de notícias. Menos de uma hora mais tarde, sua esperafoi recompensada.

“Hei, Mike,” gritou ele, para seu vizinho de cela. “Você ouviu isso? Você ouviu?Acaba de sair nas notícias. Pierce, aquele louco filho da mãe, tentou cortar a garganta edepois lutou com os ‘tiras’ até entrar na câmara de gás. Eu disse a você que ele ia fazerqualquer coisa assim.”

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Na realidade, esse resplendente exemplo de humanidade condenada haviaescarnecido: “O covardão provavelmente vai molhar as calças, e depois entrar lendo aBíblia, com os joelhos chacoalhando tanto que nós poderemos ouvir daqui. Ele não temtutano para fazer nada que preste. Esperem para ver.”

Mike, que tinha só uma semana de vida, resmungou sonolentamente.O Manteigueira, como um abutre despencando-se subitamente, e bicando, ávido,

os olhos e outras partes escolhidas de um cadáver ainda morno, começou a saborear opar executado. Eu podia visualizar sangue e entranhas extravasando-lhe dos cantos daboca.

“Amigo Manteigueira”, disse eu, franzindo a vista através das grades, “um diadestes eu vou pegar você também. Você é um bastardo raro demais e de preçoincalculável, para não ser apresentado à posteridade.”

Mas a primeira consideração na ordem do dia era um assunto de vida ou morte,o recurso relativo ao caso Chessman contra Teets.

Nós conseguíramos a vital certidão de causa provável. Agora, tínhamos que agir.Como uma equipe bem engrenada, pusemo-nos a trabalhar.

George tratou de investir contra a corte de apelação com jurisdição, e pôs amaquinaria de apelação em movimento. Por precaução, deu entrada em uma segundacomunicação de recurso, e com ela uma “Designação de Conteúdo dos Autos noRecurso”, que orientaria o escrivão do tribunal distrital na preparação das minutas aserem usadas pelo tribunal a quem era dirigido o recurso.

Normalmente, as minutas teriam de ser impressas, e uma vez que havia cerca deduas mil páginas (excluindo várias caixas de provas, cujos originais seriam transmitidosà corte de apelação para referência), só o custo de impressão teria chegado a cerca de5.000 dólares. Como eu não tinha meios de pagar a impressão ou o preparo dorecurso, George requereu, com base em uma declaração juramentada que eu assinei, aotribunal de apelação, que me permitisse funcionar in forma pauperis, isto é, sempagamento de custas, e com minutas datilografadas.

O requerimento, contestado por Clarence Linn, Procurador-Geral Assistente daCalifórnia, que se arremetia contra o caso como um obeso Dom Quixote, foi ouvido poruma turma de três desembargadores. Linn contou aos juízes quantos milhares dedólares eu havia recebido de meu editor em 1955, e depois acrescentou o que eu

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considero um de seus pronunciamentos mais clássicos:“Esse dinheiro está em algum lugar!”Claro que estava em algum lugar. Tinha-se acabado, porque tanto ele, como os

demais funcionários estaduais, me haviam forçado a esta longa luta legal, e tentavam,por todos os meios, empurrar-me para a câmara de gás. Linn exigiu que eu fornecesseao tribunal uma demonstração contábil, antes que ele se pronunciasse sobre o pedido.

George se recusou a ser encurralado. Se nós fornecêssemos a demonstraçãocontábil, podia-se prever que Linn entraria em uma longa série de considerações sobrecomo eu devia, ou não, ter gasto o meu dinheiro. O problema era simples, e George omanteve simples. “Eu recebi muito menos que a metade” (dos honorários queassentamos), “e estou convencido de que Chessman não tem dinheiro”, disse ele,perante o tribunal.

A inferência era evidente: se Linn tivesse qualquer prova de que eu sonegavafundos, então que a produzisse. Caso contrário, que deixasse de desperdiçar o tempodo tribunal. O Serviço do Imposto de Renda havia determinado o seqüestro de minhaspropriedades e fundos, e recebera de mim uma pormenorizada declaração financeira.Não precisavam de qualquer ajuda de Linn.

Com a argumentação encerrada, o pedido foi submetido a estudo. No diaseguinte, os três juízes baixaram um mandado concedendo o requerimento, e oescrivão do tribunal distrital começou a preparar as minutas datilografadas que teriamde dar entrada dentro de quarenta dias, a partir da hora em que o recurso tinha sidoacolhido.

A última barreira processual fora vencida.Rosalie e eu debatemos como poderiam ser apresentados, de maneira mais

efetiva, os pontos em que nos basearíamos. George, concordamos, precisava, ecertamente o merecera, de um repouso. Bem logo nós o chamaríamos novamente.

Elaboramos o nosso arrazoado inicial do recurso, e nisso o talento e o espíritodisciplinado de Rosalie se provaram inestimáveis. Ela devotou todos os momentos defolga ao preparo de um memorando de precedentes, jurisprudência, citações deautoridades e casos apoiando nossa posição, além de sugestões de argumentos,enquanto eu rascunhava o arrazoado no qual o seu material seria incorporado.

O guarda chegou até o postigo atrás de mim. “Sinto muito, mas terminou a suahora.”

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CAPÍTULO 15“A CULPA, CARO BRUTUS”

FINALMENTE, a noite chegara.E minha cela da morte se tornara sufocantemente menor, mas não só porque

estava atulhada com “tralha” – livros, grossas pastas de papel-manilha e de papelão,estufados de papéis legais, o acúmulo parcial de minha longa luta pela sobrevivência.Havia outra razão.

Durante vários minutos, fitei, carrancudo, a folha de papel que pusera namáquina. As palavras não saíam. Então, uma lufada de ar fresco, sutilmente temperadacom o cheiro salgado da baía e de pólen, lembrou-me de que era verão. Verão?Significava, apenas, que o outono se seguiria rapidamente, e, então, o inverno teriachegado. Eram as prováveis conseqüências do inverno que eu tinha, agora, deconsiderar.

Ao longo da linha, aos meus lados, meus vizinhos condenados – Barrigão,Wildchild, Manteigueira, Asminha e os outros – discutiam, acaloradamente. Política,provavelmente. Ou beisebol, ou sexo. Eu os ouvia e ao mesmo tempo não os ouvia,porque estava prestando atenção a estridentes e contendoras vozes dentro de mimmesmo. Subitamente, puxei a folha de papel da máquina e amassei-a em uma bola.Nada tinha a dizer. Mas havia algumas palavras de Wendell Phillips, aquele ardorosoorador e reformista do século passado, que eu queria reler. Abri meu caderno de notasna página em que as copiara, há muitos meses.

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Não importa a quem pertençam os lábios que vão falar, eles devem estar livres edesamordaçados. A comunidade que deixar de proteger o seu componente maisinsignificante e mais odiado, na livre expressão de suas opiniões, por mais falsas ouodientas que sejam, não passa de um grupo de escravos. Tudo aquilo, no universo, quenão possa ser debatido, não presta.

O Departamento de Correções da Califórnia – reputadamente, “o mais avançadosistema penitenciário do mundo” – aparentemente não concordava com isso. GeorgeDavis me trouxera algumas novas, naquele mesmo dia. Estivera em contato com odiretor daquele departamento, Richard A. McGee.

Depois de cozinhar a decisão durante meses, McGee decidira deixar para ostribunais a decisão sobre meu pedido de autorização para escrever um último livro, epara a liberação dos originais de meu romance, The Kid Was a Killer. Eu continuavaamordaçado; a arbitrária proibição de escrever continuaria a ser rigidamente posta emvigor – a menos que eu conseguisse obter um mandado, derrubando a proibição, eordenando a liberação dos originais conservados pela penitenciária. Mas isto levariameses, como McGee deve ter sabido. Necessariamente, havíamos sido obrigados a ligaras questões legais do direito de escrever, àquelas relacionadas com a validade deminhas sentenças de morte e penas de prisão. Levara meses para os tribunais estaduaismeramente recusarem a concessão de qualquer modificação nas conseqüências daordem opressora do Diretor. E depois o juiz Goodman se havia recusado sumariamentea se pronunciar sobre os direitos legais das partes, na demanda. Mais meses sepassaram, enquanto o recurso era recebido e enquanto, presumivelmente, McGeeestudava meu requerimento. E se o governo federal tivesse tentado apreender osoriginais para pagamento de meu imposto de renda, o Estado teria resistido, através deum longo processo de retardamento.

Agora, a sustentação oral sobre o recurso seria realizada perante a Corte Federalde Apelação dentro de, exatamente, uma semana. Pelo menos outro mês se passariaantes que pudéssemos esperar uma decisão (e depois outros trinta dias, para que adecisão se tornasse final.) Se o tribunal anulasse as condenações do Bandido da LuzVermelha, e determinasse a minha soltura para enfrentar um novo julgamento,provavelmente resolveria que tal decisão tornaria inconteste meu direito legal aosoriginais, pois que, tecnicamente, eu não seria mais um condenado. Mas quase que

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certamente eu teria de continuar no Corredor da Morte, nos próximos meses.No que diz respeito aos meus direitos de autor, eu fora logrado. A vitória mais

decisiva, seria oca e acadêmica; ela não me devolveria os meses durante os quais foracompelido a não tocar na máquina de escrever.

Se eu perdesse – isto é, se o despacho do juiz Goodman fosse confirmado, tantopela Corte de Apelação como pela Corte Suprema dos Estados Unidos – seria executadono começo de 1957. Provavelmente, não veria o primeiro dia da primavera.

Compreendi que, se não começasse imediatamente este livro, ele nunca seriaescrito; não haveria tempo. E o que me impedia de começá-lo naquela noite mesmo?Uma ordem – o uso indevido do poder de um soberano? Não. Não me senti obrigado aobedecer a uma determinação que considerava moral e legalmente errada,especialmente quando eu fizera todo o possível para chegar a uma soluçãoconciliatória.

Era a oportunidade, então, que me detia? De novo, a resposta era não. Todo odemorado trabalho legal já fora feito. Todos os documentos necessários haviam sidopreparados e protocolados. George e Rosalie estavam prontos para discutir o casoperante o tribunal de apelações. Caso a decisão fosse contrária, Rosalie se encarregariada petição solicitando novo exame. Caso ganhássemos, e nos opuséssemos a umaaudiência na Corte Suprema, ou perdêssemos e buscássemos uma, minha participaçãono preparo seja das contra-razões, ou do recurso de revista, não levaria mais do quequatro ou cinco semanas. Fora disso, tinha todo o tempo a meu dispor.

Então, por que continuava a hesitar?Uma razão é que eu ainda não estava convencido de que me sobrara força

suficiente para arrancar de mim o livro. O esforço representaria uma agonia mental,espiritual e física. A criação implicaria em retalhar tecido cicatrizado, reabrindo velhasferidas meio-cicatrizadas.

O problema era se, em tais condições, conseguiria eu manter o controle absolutosobre minha própria pessoa e sobre o material que seria requerido para produzir umlivro equilibrado e significativo. Será que perdera de vista o fato de que a Cela 2455,do Corredor da Morte, não era o centro do universo, mas antes apenas o postoavançado de um inferno insensato, feito pelo homem, e mantido pelo homem?

Finalmente, teria eu algo de importante para dizer – algo que tivesse de ser dito– ou seria eu, simplesmente, vítima meio aloucada e amargurada de uma imperiosa

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necessidade de erguer uma cortina de palavras, como o paciente perturbado de umpsicanalista, entre mim e uma realidade que, de outra forma, achava sombria demaispara encarar?

Tinha de saber se era assim.E só havia uma maneira segura de conseguir respostas positivas às perguntas:

escutar as vozes que se erguiam em clamor dentro de mim; encorajá-las a semanifestarem claramente; deixá-las deblaterarem e rugirem (e, desta forma,calcularem e definirem); registrar seus pronunciamentos fielmente – e depoisinterpretá-los, como o psicólogo interpreta um teste de projeção de personalidade;então, e só então, decidir, à primeira luz do dia, e na luz brilhante da razão.

As vozes não poderiam fornecer uma visão interior mística; mas revelariam se amaldição da patologia, ou a bênção do poder criador, seria a força motivadora por trásdo livro.

Andei de um lado para o outro na cela.Escutei o que diziam as vozes.

Você fez uma promessa. Lembra-se?Você jurou que a Chance o havia traído pela última vez.Talvez você tivesse provocado essa traição final. Pois, anteriormente, em voz de

impudente veemência, ela lhe segredara: “Aquela mulher vendada, chamada Justiça,não passa de uma pobre marafona, de muitas vozes e muitos donos. O seu próprio casoprova o que eu lhe digo.”

Uma ocasião você quase acreditou nisso, mas resistira à afirmação de soberaniasobre você, dessa sereia. De modo que sua loucura fora chamá-la de mentirosa na cara,e na frente do mundo.

O ódio dela contra você, desde aquele momento, havia sido implacável; ela fizeraum terrível juramento de vingar essa afronta à sua “honra”. Esperara, pacientemente,fazendo planos. Então, o atraíra para um beco sem saída, onde seus asseclas estavamesperando por você. O súbito impacto de sua emboscada havia feito você cair dejoelhos.

Despertados pelo alarido, os adoradores da deusa gritaram em aprovação – eentão urraram de desespero quando, com a argúcia e a fúria de um psicopata, você selevantara, e revidara os golpes.

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Em represália por tal conduta, você fora “expulso” da raça humana.Seu nome se tornara uma legenda do mal, e a sombra dessa legenda

virtualmente obliterou a sua própria identidade.Você partilhara do destino, mas sem nada da grandeza poética, imposto por

Shakespeare ao fantasma do pai de Hamlet – “Condenado por certo prazo a palmilhar ànoite! E a jejuar o dia nas chamas.”

E esse prazo certo fora prorrogado, mais de uma vez.Também, através dos séculos, como Omar, você ouvira um muezim gritar da

Torre das Trevas: “Tolos! Sua recompensa não está nem Aqui nem Lá!” Para você, asressoantes palavras tinham significado cortante.

Assim, nesta noite de 1.º para dois de agosto de 1956, você deve se prepararpara tomar uma decisão.

Mas primeiro, para matar uma insaciável sede de liberdade, e a miragemagoniadamente penosa que a sede criou, como substituto para estrela-guia e umhorizonte distante, sorva um longo trago de uma garrafa proibida, que traz umacaveira e ossos cruzados no rótulo. Procure convencer-se de que não mais importa queo conteúdo tenha sido fermentado pelo Ódio e espicaçado pela Traição, ou que você éobrigado a tomar um veneno, como antídoto temporário para outro, ainda maismortífero.

Tão logo o espesso e ardente líquido comece a correr dentro de você, ponha-se atrabalhar. Escreva!

Homem rico, homem pobre, homem mendigo, ladrão, Doutor, advogado,comerciante, chefão.

Eles estão todos aqui (Comecei). Pois esta é a verdadeira história de um homem –e de muitas pessoas, em variados setores da vida. Algumas dessas pessoas, você verá,são muito parecidas com você. Algumas, muito diferentes.

E algumas estão bem mortas.Os mortos, devo acrescentar, tiveram um derradeiro e impreciso relance deste

melhor de todos os mundos possíveis, de um ponto de vista de duvidosa vantagem:enquanto afivelados a uma cadeira de metal, de espaldar reto, aqui na câmara de gásda Penitenciária de San Quentin.

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Eu também, deverei ser executado logo, naquela câmara letal – a não ser queocorra um milagre judicial, ou um passo de magia negra legal, “impossível” e semparalelo. Mas, antes que o carrasco me convoque com um dedo triunfante, giredevidamente seus botões e me envie, finalmente, para o esquecimento – ou, para citara mais remota das alternativas improváveis, antes que o portão do inferno seescancare e eu seja lançado miraculosa ou magicamente de volta no mundo dos vivos –proponho-me a exercer a tradicional prerrogativa do condenado, de dizer suas últimaspalavras.

Minha história completa uma trilogia. Também marca o encerramento de umciclo completo em minha paradoxal existência.

Como o cianureto é comprado em grandes partidas, e conserva em lugar seco efresco, para uso futuro, menos de um dólar comprará o suficiente para apagar achama da minha vida, e um pouco mais de duzentos dólares cobrirão o custo total daexecução. Cerca de nove minutos, uma vez que o gás seja produzido, é o tempo quelevará para me matar.

Em agudo contraste a isso, estou esperando há quase nove anos por essesúltimos nove minutos, o que é mais tempo do que qualquer outro condenado, nahistória deste País, jamais passou sob sentença de morte. E os cálculos das despesaspara me levar para junto da “sala verde”, lá embaixo – onde poderei receber otratamento completo de duzentos dólares, com todos os acessórios – vão desde umaquantia de duzentos mil dólares, por demais conservadora, até quinhentos mil dólares.Em resumo, eu não terei morrido nem fácil nem rapidamente, de maneira que nãoterei sido uma pechincha, fiscal ou não, para a Califórnia.

O reverso da medalha, é que o preço que tenho pago, pessoalmente, por essesanos extras, de Sísifo, tem sido proibitivo. Meus sonhos de um futuro decente ecriador, outrora brilhantes, estão infestados de larvas. E o mais terrível de tudo é ver aesperança morrer, só para renascer e depois, repetidas vezes, ser estrangulada lenta eimpiedosamente.

Meu espelho me diz que estou velho e aparentando mais do que os meus trinta ecinco anos; o cansaço que sinto está nos ossos. Tenho uma úlcera, e nesta noite ela dóicomo se houvesse um rato faminto a dar dentadas em meu duodeno. Estoupreocupado com a conservação de minha sanidade mental. Minha mente está ficandocada vez mais rebelde. Não mais é a sócia cooperante da minha vontade, mas sim a

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carrancuda prisioneira, de minha vontade, que precisa manter, permanentemente,fortes peias em sua rebelde cativa.

A fumaça que revoluteia agora, em torno de mim, é muito mais mortífera, muitomais esmagadora, do que a que me espera na câmara de gás lá embaixo.

Esta não é uma história para aquelas almas santarronas que, durante tantotempo, têm dançado e se babado em torno de minha cova aberta. Se eu morrer esperoque essas palavras, postumamente publicadas, contribuam para que elas ouçam minhasgargalhadas do Além. Se sobreviver... bem, isto é outra questão. Eu me comunicareicom elas pessoalmente.

Por fim, como no caso dos dois primeiros livros da trilogia, esta é uma históriapara aqueles que se interessam por um ser humano, seu semelhante, cuja descida parao inferno, cuja perda de alma e desumanização não foram, originariamente, resultadode uma escolha livremente feita por ele.

Comecei por deixar Caryl Chessman, o condenado, falar. Claro que não seria eleque iria escrever o livro. O escrever propriamente dito seria feito pelo Caryl Chessmanescritor. Porém, as habilidades especiais do Chessman condenado seriam mais do quenunca necessárias para vigiar o manuscrito, conservá-lo oculto dos guardas da prisão e,quando chegasse a hora, encontrar uma maneira de fazer que o manuscrito fosseparar nas mãos de meu agente literário; e, por intermédio deste, para meu editor.

Ambos os Chessman puseram mãos à obra.Andei de um lado para o outro, na cela, durante horas, durante quilômetros,

quatro passos curtos em cada direção, elaborando o tipo de livro que escreveria,delineando o conteúdo, pensando nos problemas técnicos. Depois, durante as horas danoite, comecei a escrever. E reescrever. Freqüentemente, eu só me jogava no catredepois das seis da manhã, para cair em um sono agitado, o espírito em torvelinho.Muitas vezes também, poucas horas depois, quando a penitenciária e o Corredor daMorte começavam um novo dia, haveria a visita da turma de revista. Em algum lugarda cela, de alguma forma, estava meu manuscrito, a soma do que uma mentetorturada achava que devia ser dito. Enquanto os guardas iam cuidadosamente de umacoisa a outra da cela, os livros, os papéis, os arquivos, enquanto procuravam,cutucavam e olhavam em lugares prováveis e improváveis, o Chessman escritor ficavaagoniado. E o Chessman condenado, o feroz guardião que, durante toda a sua vida,

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estivera em luta com a Autoridade, ficava descansado e sorridente, do lado de fora dacela, sem nada mostrar da tensão que sentia.

À medida que aumentava a grossura do manuscrito, aumentava o númerodaquelas escapadas por um triz. Parecia impossível que o livro pudesse ser escrito, semser encontrado. Os revistadores eram profissionais treinados. Sabia disso quandocomeçara; mas decidira também que, em certas condições, uma pequena vantagemcaberia ao caçado, embora ele não pudesse dar-se ao luxo de errar uma única vez,enquanto os caçadores podem enganar-se vezes sem conta e, no entanto, por fim,acuar a sua presa. Ele nunca se pode permitir a sensação de segurança, ou acreditarque, por ter iludido os caçadores uma vez, ou uma centena de vezes, é esperto demaispara ser apanhado. Se o fizer, cairá na armadilha.

Provavelmente, nenhum outro livro jamais foi escrito em meio a tão formidáveisdificuldades. Regularmente, eu tinha de ficar vendo os guardas pegarem o manuscritonas mãos, inspecioná-lo – e depois, pensando que fosse outra coisa, inofensiva, pô-lo delado e continuar o seu escrutínio em outros objetos. Ter escondido o manuscrito emum lugar convencional teria sido inútil. Ele teria sido encontrado imediatamente. Fuiobrigado a manter o manuscrito “escondido” à vista de todos.

Tive de ser capaz de antecipar onde eles iriam procurar, e saber o quereconheceriam e o que não reconheceriam. Assim, fui obrigado a dependerinteiramente de um ousado tipo de camuflagem, fazendo uso de um logro que o olho eo cérebro humano freqüentemente pregam, até mesmo no mais desconfiado emetódico observador.

Eu só podia escrever durante a noite, quando o Corredor da Morte estava“trancado” e o movimento de funcionários era leve. Com os papéis legais espalhados ameu redor, para o benefício de guardas de olho de lince, passando em suas rondas, ecom comentários “inocentes” discretamente interpostos de vez em quando, sobrecomo eu estava cansado do trabalho legal que fazia, eu arrumei o palco.

Sentado em meu catre, uma prancheta de escrever sobre os joelhos, usando umacaneta esferográfica barata, passei a noite escrevendo. Depois, entre quatro e seis damanhã, copiei o que escrevera em taquigrafia, entremeando, liberalmente, compalavras em caligrafia normal e números (isto é, “Peo contra Chessman”, “Sumário deVerificações”, “Sup. Ct. N.º 117963”) entre os símbolos, a fim de lhes dar umaaparência legal, depois do que eu, quietamente, rasguei as páginas escritas em

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caligrafia normal, joguei-as no vaso sanitário, e puxei a descarga. Com alguma prática,logo conseguia rasgar papel sem fazer barulho.

Arrancava-me da cama quando chegava o carrinho de comida, pouco depois dasoito horas, tomava o suprimento matinal de leite para minha úlcera – nunca fui capazde comer muito de manhã – e me acordava com café preto bem quente, e dois cigarros.As dez horas seguintes se passavam rotineiramente, e durante aquele espaço de tempoera eu um escrupuloso cumpridor de todos os regulamentos e regras. Lâminas debarbear e água quente eram-me entregues entre nove e nove e meia; eu me barbeava.Nos dias de banho, eu tomava banho. Talvez tivesse uma visita. Talvez a turma derevista resolvesse vasculhar minha cela. Quando não estava ocupado em outra coisa,passava o resto do tempo, antes de começar o período de exercício, às onze e meia,com a minha correspondência e trabalho legal ocasional.

Durante o período de recreação, de duas horas, no corredor defronte às celas damorte, eu jogava cartas, pingue-pongue, xadrez ou voleibol, ou apenas caminhava econversava. Depois de sermos trancados, entre uma e meia e duas, era servida asegunda e última refeição do dia. Eu comia, guardando leite e alguma coisa paralambiscar durante a noite, e então lia, ou andava de um lado para o outro da cela.

Depois do que eu dormia duas ou três horas, perfazendo um total de quatro asete horas de sono, cada vinte e quatro horas.

Às seis da tarde, o guarda do andar trazia café. Forçava-me para fora da cama,engolia o café e fumava mais dois cigarros. Então tirava a capa da máquina de escrevere pegava o caderno de anotações de taquigrafia. Lá pelas oito horas eu havia transcritoe destruído minhas anotações taquigráficas.

Através desse método de quatro estágios eu escrevi A Face Cruel da Justiça. Mas,naturalmente o livro não poderia ser preparado em forma de manuscrito ou em papelcomum de cópia.

Até as duas horas eu lia, conversava, estudava e, durante pelo menos meia hora,andava um pouco mais pela cela, enquanto pensava o que iria escrever durante a noite,e recriava o período do passado do qual iria tratar. Das dez em diante, punha aspalavras no papel. Escrevia e reescrevia, forçando-me a produzir o equivalente de pelomenos três páginas manuscritas em rascunho final, o que freqüentemente significava,depois de transcrevê-las e revisá-las, material para dez a quinze ou até mais, páginasem escrita normal.

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Não havia espera de “inspiração” ou da melhor ocasião. Quando eu emperrava,pegava um memento mori que conservava para aquele propósito – uma inspiradorafotografia colorida da câmara de gás, lá embaixo – dava uma olhada para ela e, com aajuda de meu demônio(*), voltava ao trabalho.

Como há anos eu usava máquina de escrever e, durante todo esse tempo,escrevera pouco mais do que minha assinatura a mão, depois de duas semanas desessões noturnas eu mal podia segurar a caneta, mesmo na dúzia de posiçõesdiferentes que experimentei, desesperado. Minha mão direita rebelde tremia e secontorcia em cãibras incontroláveis; meus dedos se tornaram garras com aparênciaartrítica; a dor era intensa. Não tinha outra alternativa se não continuar escrevendo,com apenas uma pausa ocasional para flexionar vigorosamente os dedos e massagearenergicamente a mão. Depois de um certo tempo, a dor sumiu. Para aqueles que dizemque cãibra de escritor é puramente psicológica, eu só posso replicar que estãoenganados.

Logo depois de ter começado o livro, foram baixadas novas ordens visando atornar o suicídio (e, embora os seus autores não soubessem disso, a literatura sub-reptícia), ainda mais dificultado do que já estava. Parecia que, toda vez que eu erguiaos olhos, o oficial da primeira vigia do andar estava inspecionando as celas e, a julgarpelo número de rondas feitas pelo guarda armado, ele poderia estar treinando parauma corrida campestre.

Tais ordens resultaram de uma tentativa de suicídio particularmente sangrenta.Uma noite, lá no fim do corredor, um homem rasgou o pulso e deitou-se para morrer.Ele sofria de uma obsessão paranóica, segundo a qual os homens do Corredor da Morteestavam esperando para matá-lo; que, à noite, ouvia-os afiar facas por eles fabricadaspara esse propósito; que os funcionários do presídio, assim como os capelães,protestante e católico, eram membros ativos da conspiração; e que o cabeça desseplano assassino era Caryl Chessman.

Tornara-se um fanático religioso. Deus, acreditava, havia lhe dirigido a mão aomatar seu idoso sogro, a tiros, em uma briga de bêbados, e depois Deus fizera que aarma emperrasse, antes que ele pudesse alvejar a mulher, ou outras pessoas. A vontade

(*) O Autor deve estar referindo-se ao “demônio” socrático, uma espécie de gênio inspirador do

filósofo grego. (N. do T.)

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inescrutável de Deus estava por detrás de todos os seus atos. Uma vez que eu era oprisioneiro mais notório do Corredor da Morte, e um agnóstico ainda por cima, eleinevitavelmente se considerou o instrumento escolhido por Deus para me alcançar. Erade seu sagrado dever converter-me, arrebatar minha alma negra das garras de Satã.Não me compreendia, quando eu lhe dizia que estava disposto a respeitar suas crençase que, em troca, apenas pedia que as minhas, que não lhe seriam impostas, fossem porele respeitadas. Tipicamente, também, ele ficou indignado quando rejeitei sua frenéticamisturada de verdade e salvação eterna.

Para ele, a religião era como se fosse uma droga, e chegou a época em que asdoses mais maciças dessa droga não lhe satisfaziam mais. Impotentes, acompanhamossua lenta e agoniada degringolada para a paranóia. Então, amaldiçoando-nos a todosem tom delirante, ele seccionou uma artéria e quase perde uma quantidade fatal desangue, antes de ter sido levado às pressas, para o hospital, lá recebendo tratamentomédico de urgência.

Enquanto inconsciente, teve um ataque que lhe deixou parcialmente paralisado olado esquerdo do corpo e do rosto. Ao recobrar consciência, resmungou que se haviacortado com uma lâmina de barbear – e isto fez que a turma da revista viessecorrendo. Eles lhe vasculharam a cela de alto a baixo, nada encontrando, e lançaramuma minuciosa busca no resto do Corredor da Morte, à procura de qualquer espécie deobjeto metálico cortante. Suei frio. O manuscrito não foi encontrado.

Úlceras, cãibras de escrever, artérias cortadas, verificações de suicídio, revistas etudo o mais que formava o pão de cada dia no Corredor da Morte, eram,relativamente, problemas sem importância, comparados com os problemas de feiturade um livro.

Exatamente que tipo de livro queria eu escrever?Esta questão básica me atormentava. Um livro humano, decidi, depois do

Chessman escritor e do Chessman condenado terem brigado por causa disso. Aorascunhar a introdução, vi qual abordagem e tratamento temático queria usar, assimcomo ao escrever os primeiros trechos deste capítulo, percebi as armadilhas quedeveria evitar.

Isto apresentava novos perigos, pois escrever um livro na primeira pessoa, com oque equivaleria a um ponto de vista onipresente, poderia, realmente, me pôr em mauslençóis, logo que começasse a substituir os fatos imutáveis pela imaginação. A fim de

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evitar inexatidões e burlas dramáticas, passei longas horas em pesquisas, interrogandoe reinquirindo incisivamente George Davis, Rosalie Asher e outros, até que cheguei aoponto, se isto é possível, de estar tão plenamente a par de suas vidas, hábitos, ideais,crenças e aspirações, como se se tratasse de minha própria vida.

Enquanto eu recriava o passado, o futuro veio ao meu encontro.

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CAPÍTULO 16A VERDADE –CEBOLA OU CAIXA DE SURPRESA?

COMENTANDO o meu primeiro livro, 2455, Cela da Morte, um crítico escreveu:

Em sua derradeira luta pela vida, não é que lhe [Caryl Chessman] tenha faltadoapoio do judiciário. Em todas as ocasiões, uma minoria de juízes esteve a seu favor nascortes de apelação... O que mais perturba em tudo isso, porém, é que, de um ponto devista puramente técnico, ele sempre teve direito a um novo julgamento, e o fato de istonão lhe ter sido concedido, permanecerá como uma grave auto-acusação da justiça norte-americana.

No sistema de indicações judiciárias que funciona aqui e na maioria dos países delíngua inglesa, a filiação e alianças políticas constituem um fator essencial, por demaisessencial e, conseqüentemente, há uma fraqueza inevitável na abordagem, pelo judiciário,de casos em que possa haver um elemento afetando a autoridade, de uma ou de outramaneira... Nenhum tribunal nutre qualquer simpatia por um condenado que procurajustificar-se: os dados estão marcados contra ele. Talvez seja a isto que se refira o axiomade que a Justiça é cega, não apenas que é imparcial. Chessman estava fora da proteção daJustiça... A parte trágica de sua história é que ele é inocente dos crimes pelos quais foicondenado à morte e, mais ainda, que a lei relativa a esse mesmo delito – rapto – desdeentão foi alterada, e tem-se recusado a ele, por uma desprezível artimanha legal, obenefício daquela alteração.

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Mais trágico ainda é que suas alegações são incontestáveis e incontestadas.(*)

Não seriam proféticas essas palavras da Irlanda distante – “sempre teve direito aum novo julgamento... não lhe ter sido concedido”? Não conteriam elas, sem operceberem uma advertência do que estava por vir?

Cento e cinqüenta e três anos, exatamente, antes da sua publicação em Dublin,então estraçalhada por combates patrióticos, Robert Emmet comparecera perante abarra de um tribunal inglês, condenado a morrer no cadafalso por sua participação emum mal-sucedido levante revolucionário contra o governador inglês de sua terra.“Continuamente interrompido”, informava um comentador, “ele lutou para levar seudiscurso até o fim; e disse verdades tão severas a seus juízes como talvez nunca foraouvido antes em um tribunal de justiça”.

No decorrer de sua oração, que lhe mereceu a imortalidade, Emmet disse:

Meus senhores:... a sentença da lei que entrega meu corpo ao carrasco, através doministério da lei, envidará, em sua própria vindicação, por consignar meu caráter aoopróbio; pois deve haver traição em alguma parte; se na sentença da corte, ou nacatástrofe, o tempo deverá determinar. Um homem na minha situação não tem apenas deenfrentar as dificuldades da sorte, e a força do poder sobre os espíritos que elacorrompeu ou subjugou, como também as dificuldades das prevenções estabelecidas. Ohomem morre, mas sua memória vive...

Mas onde está a conclamada liberdade de vossas instituições – onde está a gabadaimparcialidade, clemência e amenidade de vossos tribunais de justiça, se um infelizprisioneiro, que vossa política, e não vossa justiça, está para entregar às mãos do carrasco,não é autorizado a explicar seus motivos clara e verdadeiramente...? Meus senhores, podeser uma parte do sistema de justiça enraivacida, o dobrar o espírito do homem pelahumilhação, para a ignomínia proposital do cadafalso... Vós, meu senhor, sois um juiz; eusou o suposto culpado. Sou um homem; vós também o sois. Por uma revolução do poder,poderemos trocar de lugares, embora nunca pudéssemos trocar de caráter. Se eu soutrazido à barra deste tribunal e não me deixam justificar meu caráter, que farsa é a vossajustiça!

Meus senhores, estais impacientes pelo sacrifício. O sangue que buscais não estágelado pelos terrores artificiais que cercam vossa vítima. Sede pacientes! Tenho apenas

(*) Extraído de uma crítica da edição inglesa (Longmans, Londres), de 2455, Cela da Morte, por

P. A. O. S., no número de agosto de 1956 de “The Garda Review”, órgão oficial da “Garda Siochana”, apolícia popular da Irlanda, publicada em Dublin, Irlanda.

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algumas palavras mais a dizer – estou de partida para meu túmulo silencioso e frio... Sótenho um pedido a fazer na minha despedida deste mundo: Quando meu país assumir seulugar entre as nações da terra, então, e só então, que escrevam meu epitáfio. Tenho dito.

Lord Norbury apressadamente pronunciou sentença: morte na forca. A data era19 de setembro de 1803. Robert Emmet, de vinte e cinco anos de idade, foi levado daSala de Audiências de Dublin. Pouco tempo depois, andando ereto e destemeroso, ojovem mártir, um dos mais dignos patriotas da Irlanda, foi levado à forca. O laço deum carrasco inglês extinguiu-lhe a vida.

Seu nome e memória sobreviveram.Mártires patriotas do começo do século dezenove, e “psicopatas” criminais

condenados, de metade do século vinte, naturalmente, pouco têm em comum. Noentanto, Emmet lutou pelo seu direito de falar antes de ser executado; e, atualmente,de forma diversa, em uma outra época, eu lutava pelo meu direito de livre expressão. Oexemplo de Emmet fora comovente e inspirador. O meu, não obstante seus elementosnegativos e patológicos, poderia ser não menos importante no contexto de minhaépoca.

Eu pediria que meu epitáfio não fosse escrito até que os cidadãos do meu Estado– aqueles que primeiro me condenaram injustamente e que depois me haviamamaldiçoado tão apaixonada, virtuosa e cegamente – renunciassem à sua filosofia de“justiça enraivecida” e ao costume de matar seus semelhantes. Surdos à razão, essescidadãos não haviam sido capazes de ignorar a obstinação. Agora, logo teriam meucorpo se pagassem o meu preço. Em troca de meu cadáver, eu queria a sua câmara degás.

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CAPÍTULO 17OUTRA “VITÓRIA COMO ESSA...

“CHESSMAN”, disse o guarda do andar, “há uma visita para você. Já vem buscá-lo nesteinstante.”

Era Rosalie Asher. Esta era a visita que eu estivera aguardando.Dez minutos mais tarde eu me sentei de um lado da mesa na sala de visitas dos

condenados, cuja partição entelada e gradeada havia sido removida. Na minha frente,sentava-se Rosalie.

“Vejo que você tem algumas anotações em seu bloco”, disse eu.Nós as discutimos. Através dos bons ofícios de Joseph E. Longstrech, o agente

literário de Nova York que lidava com meus rendimentos provenientes de lucros comlivros, o imposto por pagar, sobre minha renda de 1954, logo seria pago. Eu tiraria dascostas o peso de Tio Sam. 2455, Corredor da Morte, estava para ser publicado no mêsseguinte em edição de livro de bolso, cuja renda acrescentaria dólares bem necessáriosa nossos cofres vazios.

Rosalie me fez um rápido relato sobre outros itens relacionados com o caso edebatemos providências que precisavam ser tomadas.

Eu disse: “Estou estupefato. Tudo estava a indicar uma decisão rápida da Cortede Apelação. Eu teria apostado essas duas puídas sentenças de morte, contra um velhocódigo penal, que, por agora, teríamos sabido de alguma coisa. Mas, nada. Silêncio. Écomo esperar um júri demorado voltar com um veredicto. Desta vez eu estou mesmo

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penando.”“Eu sei. Toda vez que penso nisso, eu...” Ela não precisou terminar a sentença.

“Verifico que preciso continuar a dizer para mim mesma o que lhe tenho dito tantasvezes. Tenha esperança, mas não demais. Embora seja difícil não tê-la demais. Queroacreditar...”

Eu também. Desesperadamente.

Durante o período de exercícios do dia seguinte à minha conversa com Rosalie,um presidiário condenado andou até onde eu estava, com os lábios trêmulos. Em vozelevada de histeria, disse: “Você me dá licença para eu me matar?”

Meu sorriso foi pálido. “Você não acha, Jack, que deve esperar que a Califórniadecida, soberanamente, se ela não quer fazê-lo por você?”

“Tenho medo.”“De quê?”“Você sabe. Você deve saber.”“Conte-me,” disse eu.“Não deixe que eles me machuquem, Caryl, por favor!” Jack, tremendo

violentamente, agarrou-me o braço. “Eles não gostam de mim porque eu não sou comoeles e não os entendo. Alguns deles até me odeiam, e estão sempre caçoando de mim evocê sabe o que eles dizem que eu sou e o que querem fazer comigo. Mas vai memachucar. Você tem de detê-los. Você não pode deixar que eles me machuquem.Prometa-me que você não deixará, e...”

As palavras não eram articuladas, eram regurgitadas. Lembrei-me de umasentença de 2455, Cela da Morte: “...Que alegria deve ser para a sociedade, queconforto, que orgulho – esse estúpido e obsceno lugar chamado Corredor da Morte.”

Enfiei um cigarro entre os lábios de Jack e o acendi, enquanto ele sugava afumaça. Por mais que se visse acontecer, sempre havia algo de nauseante nocontemplar a degradação da personalidade humana sob a esmagadora pressão dessematadouro social.

“Acalme-se,” disse eu, asperamente. “Não deixe que esse diabo de lugar lhe dê nosnervos.”

Os dias e noites se confundiam uns nos outros e eram mais ou menos a mesmacoisa. Às vezes, a única questão real parecia ser: quantos faltam ainda?

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Teria eu tempo de completar meu livro? Como iria ele terminar? Quando iriaterminar?

Mais de um mês se havia passado desde que o caso fora apresentado à CorteFederal de Apelação, depois de sustentação oral. Eu esperava. Bem alto, nas gradesatravés do corredor, o ponteiro vermelho de segundos do nosso relógio de paredecontinuava seu incansável girar.

Eu continuava a escrever.Uma ocasião faltou energia elétrica e o relógio parou. O tempo não era mais de

seu interesse. Logo isso poderia se aplicar também para mim, por toda a eternidade.Eu queria acreditar que, desta vez, a decisão judicial me seria (tinha que ser)

favorável, e no entanto...Ao passar os olhos por uma pasta, encontrei um artigo, “O Estranho Caso de

Caryl Chessman”, de Negley K. Teeters, anteriormente publicado em “The TempleAlumin Review”. O dr. Teeters, um dos mais preeminentes criminologistas do País,havia escrito:

Eu vi Chessman e falei com ele na casa da morte, em 1954... Fiquei impressionadocom a argúcia, a aparência calculista e no entanto quase casual, que ele apresentoudurante nossa breve entrevista... Saí de sua cela convencido de que ali estava uma pessoaque é esperta demais para viver ou morrer.

E mais adiante, concluindo:

Se (Chessman) perder, a sociedade terá ganho, mas, paradoxalmente, terá, narealidade, perdido uma batalha. Os ingredientes que formam Chessman e seu caso,permanecerão um mistério. Porém, algum dia, quando a justiça retributiva tiver perdidosua peçonha, a ciência será chamada a sondar mais profundamente os padrões decomportamento das personalidades anti-sociais e psicopatas.

E nesse dia o cientista não mais teria de competir com o carrasco e o espírito devingança e o sadismo que o mantinha.

As presas da justiça retaliatória haviam mergulhado repetidamente em mim, maso veneno ainda não me havia matado, depois de quase nove anos. Mas isto não erarazão para acreditar que eu havia adquirido imunidade contra o que não havia

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possibilidade de imunização. A minha morte era, simplesmente, uma forma mais lentae mais hedionda de morte.

Minha única esperança real era que, antes de o fim chegar para mim, aqueles quecontrolam as presas já tivessem esvaziado suas bolsas de peçonha de uma maneira tãoirrestrita que a justiça retaliatória tivesse perdido seu veneno, seu poder deamesquinhar a sociedade; e que a Califórnia empunhasse seu bisturi judiciário eremovesse aquelas bolsas de peçonha.

Talvez então um homem de sorriso largo, marcado pelas presas, combalido peloveneno, e considerado “esperto demais para viver – ou morrer”, pudesse encontrar apaz, seja na vida, seja na morte, mas provavelmente na última.

Uma manhã de fins de setembro o Diretor Teets visitou o Corredor da Morte.Chegou à minha cela justamente quando os dois guardas regulares da turma de revistasaíam dela, depois de terem-na vasculhado completamente. Eu ainda não fora trancadonovamente. O guarda armado, no passadiço de vigia, observava-nos alertamente.

“Bem, Caryl”, disse o diretor, sorrindo agradavelmente, “eles encontraram algumcontrabando? Algum manuscrito?”

Meu olhar acompanhara o do diretor, adentro da Cela 2455. Lá, em cima damesa, logo em frente da cela, estava o manuscrito inacabado deste livro. Bastava umpasso para a frente, e o diretor poderia ter estendido a mão e o apanhado – tivesse eledescoberto o que era. Ao mudar de lugar minha “tralha”, enquanto faziam a revista, aturma o havia colocado na mesa, juntamente com algumas transcrições e pastas.

Eu lhe devolvi o sorriso. “Não, diretor, não encontraram nenhum manuscrito ououtro ‘contrabando’. Mas não foi por não terem procurado.”

Eles haviam procurado mesmo. Um dos guardas, como um deles sempre o fazia,havia aberto a caixa chata contendo o manuscrito, e examinado as folhas. Felizmente,não olhara para elas da maneira certa. Isto me salvou. As folhas pareciam serinteiramente diferentes do que na realidade eram. A menos que a gente as examinassede um jeito especial, era impossível descobrir-se o que se tinha na mão – e as nossassuspeitas seriam embaladas pela camuflagem empregada, e o fato de que as folhasestavam bem à vista, convidando a uma inspeção.

Como eu ia?, perguntou o diretor.Bem, disse eu.Alguma notícia do caso? Não. Mas provavelmente logo haveria.

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Ele me apresentou dois homens que o acompanhavam. Trabalhavam noprograma de televisão “Arquivo Confidencial”, de Paul Coates, no qual ele aparecerapara responder a perguntas concernentes à pena capital, enquanto participava de umarecente convenção do Congresso Penitenciário Norte-Americano, em Los Angeles. Lá,também, o assunto da pena de morte – e o caso Chessman – haviam sido discutidosexaustivamente, com considerável animação.

Conversamos por mais alguns minutos. Então o diretor seguiu adiante até a celaseguinte, ocupada por Wildchild, nosso bem-humorado tennessiano de vinte e um anosde idade, vindo do exército dos Estados Unidos e do conflito coreano.

“Como você está se saindo?”, ouvi o diretor perguntar.“Bem, Diretor,” disse Wildchild, em voz arrastada, “Vou lhe dizer. O negócio é o

seguinte.”Wildchild estava com as “tristezas”.Novamente trancado em minha cela, acendi um cigarro e me acalmei. Também

tivera as “tristezas”. Mas meu manuscrito estava salvo por mais um dia.No hospital da prisão, o paranóico que, depois de nos amaldiçoar a todos, cortara

as veias de um braço e depois se deitara para morrer, teve uma existência precária porquase três semanas. Um dia, quando seu restabelecimento parecia certo, ele voltou orosto sem expressão para a parede e morreu.

A média recente do Corredor da Morte, de uma tentativa de suicídio bem-sucedida por ano, foi mantida. A inspeção contínua dos demais condenados,prosseguiu.

Minha vigilante espera – e meu sobressaltado escrever – continuaram. Então omeu trabalho foi interrompido quando se lançou o que foi descrito como uma“operação de busca, polegada por polegada, na vasta Penitenciária de San Quentin”, emseguida à descoberta, através de informação de um presidiário não identificado, nalavanderia e área industrial da prisão, de esconderijos de balas calibre 38, duas facasafiadas como navalhas e três grosseiras armas de um tiro só, evidentemente feitas naoficina de San Quentin, para alojar as cápsulas calibre 38.

A história fora divulgada por Bernice Freeman que, logo que se iniciou aagitação, seguiu para Nova York, onde o programa de televisão “O Grande Artigo” lhedevia presentear com uma plaqueta e um cheque, logo depois de sua dramatização deum furo anterior de Freeman: sua participação na solução de um assassínio cometido

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pela chamada “Quadrilha de Assassinos da Montanha”, chefiada por “Big Jack” Santo.Ironicamente, naquele caso ele fora ajudar um antigo jornalista com o qual trabalhara,e que estava protestando sua inocência em altos brados, depois de ter sido acusado departicipação no assassínio. Ela ficara para ouvi-lo fraquejar e confessar, para ela e paraa polícia.

Bernice não sabia da dor de cabeça que ela, o alcagüete e aqueles armeirospresidiários “faça você mesmo” me haviam causado. Os jornais especulavam sobre apossibilidade de que havia sido planejada uma sangrenta tentativa de fuga, e que um“grande arsenal” com tais armas, continuava escondido na prisão, a qual, anunciava-se,“fervilhava de inquietação” e estava “plena de uma atmosfera de tensão”. Osfuncionários do presídio ridicularizaram tais notícias. Então, inadvertidamente, oDiretor Associado Louis Nelson, funcionando em lugar do Diretor Teets, que estava noMéxico, a serviço, forneceu mais material dramático para os jornais.

“Os funcionários da penitenciária acreditavam que as armas não poderiamdisparar, até que...” anunciava um jornal.

Até que, “estando no escritório do diretor, com o cano [de uma das três armas]apontado para o chão, Nelson levou para trás o cão, para mostrar [a jornalistas efotógrafos reunidos] como se engatilhava a arma. A agulha de repente escorregou deseu sulco de ‘segurança’ e a arma pulou-lhe da mão, com um estampido ensurdecedor.Três buracos irregulares apareceram na perna direita das calças de Nelson.”

Eu fiquei com o coração na mão e, como eu, o arguto Rei do Corredor da Morte efacínora sob todos os pontos de vista, era um alvo feito sob encomenda, esperei quealgum artigo insinuasse que estava envolvido de alguma maneira no caso, sendo,talvez, seu cabeça.

O clamor finalmente morreu, e as buscas intensas terminaram. Mais uma vez omanuscrito havia escapado.

Havia um maçarico em minha mente, queimando agoniadamente, quando eupensava em Frances. Suas economias no banco haviam sido comidas pela enfermidadede Cheryl e David. Doente e cheia de dívidas, deu entrada no hospital, para umaoperação. Estava para ser despejada da casa que meu pai queria que ela tivesse. Oinventariante estava vendendo a casa, a despeito das centenas de dólares que eugastara para manter solvente o espólio.

E o diretor Teets ainda se recusava a liberar o original de meu romance, embora

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a devolução do manuscrito fosse representar tanto para Frances e suas crianças. Teriarepresentado comida bastante, roupas quentes, dinheiro para o aluguel – e umachance, para Frances e as crianças, de viver uma vida decente.

Nunca novamente eu esperaria que funcionários da Califórnia tivessem um atode humanidade para comigo.

Amargamente, pensei: “Suas armas e guardas não podem me controlar ou coagiragora – na verdade, nunca puderam – pois já existiu, vocês fariam bem em não seesquecerem disso, um psicopata sorridente e, embora ele tenha renunciado à violência,não se esqueceu de como lidar com o virtuoso uso e abuso do poder, pela autoridade”.

Um artigo a meu respeito, de Wenzell Brown, fora publicado na revista True, eestava dando o que falar. O relatório legal Frank Olson sobre o caso Chessman logoseria publicado no Harvard Law Weekly (Semanário Jurídico de Harvard). 2455, Celada Morte, fora editado como livro de bolso (e, sem consultar os funcionários da prisão,eu arranjei um exemplar dele, assim como do artigo de Wenzell Brown, da revistaTrue). A impressionante fotografia da capa mostrava um par de mãos apertandogrades de cela, e uma introdução na primeira página, em tipo negrito:

“A 14 de maio de 1954, um homem estava marcado para morrer na câmara de gásde San Quentin. Hoje esse homem ainda vive, em grande parte graças ao poder de umlivro – o seu próprio livro.”

Dois meses se passaram desde a sustentação oral, e o tribunal ainda não haviapronunciado um acórdão. Isto me deu o tempo para escrever, de que eu necessitavatão desesperadamente. Entrementes, George Davis havia desaparecido, um hábitotremendamente aborrecido que tinha, em especial porque se tornava cada vez maisimportante para mim falar com ele.

“Caro George,” escrevi, a 16 de outubro, “se eu não falar com você, ou pelomenos receber uma notícia, logo, estarei disposto a mandar arrolá-lo como pessoadesaparecida, não meramente como um peripatético. Não recebi nenhuma resposta aminhas cartas de 25 de setembro e 9 de outubro e uma vez que, na última, eu pedia àsua secretária que me informasse se você não estava na cidade, sem resultado, decidiescrever esta carta para sua casa. (Espero que Lorraine a veja e o ponha a caminho deSan Quentin com a ajuda de algum implemento doméstico – talvez um rolo de

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macarrão.) Também pus Rosalie na sua pista. Como último recurso, usarei cães defaro.

“George, George, falando sério, tenho problemas que demandam discussão, deforma que, por favor, venha logo...”

Quarenta e oito horas depois de minha carta para George, o absolutismo semgraça marcou outro triunfo.

Não foi Clancy, mas dois juízes da Corte Federal de Apelação que deram o golpe.O dia 18 de outubro de 1956 começou rotineiramente no Corredor da Morte. A

turma da revista fez sua visitinha à Cela 2455 e a outra cela. Fomos destrancados logo,para ver o filme que era exibido toda quinta-feira no fim do corredor. Um comediantefazia seu trabalho na tela, quando fui chamado à Gaiola.

“Um repórter do Call-Bulletin quer falar com você à uma hora,” disse o sargento.“Você concorda com a entrevista?”

Concordei com um aceno de cabeça. Aquilo me forneceu a indicação. Um boletimnoticioso confirmou-me as suspeitas. A decisão do juiz Goodman havia sido mantida.

Eu tinha perdido!Derrotado de novo... Não senti nada. Não na hora. Retornei para ver o filme.

Minhas risadas não eram das estripulias do comediante na tela.“Sou Stan Thies,” disse um jovem agradável, quando entrei na sala de

entrevistas. Estendeu-me a mão. “Hugh Bernhard queria que eu falasse com você. Creioque soube da decisão do tribunal. Como você se sente a respeito?”

“Desapontado.” Ou como um homem esmurrado, que continuasse a andar emcírculos, até cair de cara no chão. Só que não podia me dar ao luxo de cair. Se o fizesse,a matilha nos meus calcanhares me despedaçaria.

Thies perguntou sobre o Corredor da Morte e como tinha sido viver durante oitoanos e meio com duas sentenças de morte nas costas. Eu disse que não recomendava aexperiência.

“Há alguma coisa que você queira dizer para publicação?”Pensei neste livro e sorri matreiramente. “Se você tiver qualquer pergunta em

particular que deseje fazer, eu as responderei se puder.”De volta ao Corredor da Morte, soube que Davis, em Honolulu com Lorraine,

estava representando um cliente em uma ação de divórcio envolvendo um milhão de

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dólares, ou por aí. “Os advogados”, comentou-me ele mais tarde, “também têm decomer.” (E os casos criminais duros raramente pagam muito, se o fazem.) “Além disso,”acrescentou, “foi uma oportunidade de tirar umas férias disso tudo.”

Ele não ficou fora muito tempo. Os repórteres o localizaram. Soube dosresultados em meus fones de ouvido, naquela noite e na manhã seguinte. Os boletinsde notícias afirmavam que Davis apresentaria um pedido de nova audiência, que levariao caso à Corte Suprema, se necessário; e que, mesmo se todos os remédios legais atuaisfossem exauridos, ele estivera aprontando uma “arma secreta”, que me manteria vivopelo menos mais cinco ou sete anos, enquanto a luta pela minha vida continuasse.

Naquele ponto eu parei de ouvir. “Pare aí mesmo, George,” disse eu, em voz alta.“Não quero morrer de velho neste lugar.”

Barrigão olhou-me, maravilhado. “Sei de algumas pessoas que certamente nãovão gostar dessa arma secreta.”

“Davis,” disse eu a Barrigão, “dava a impressão daquele advogado de caricaturaque garantia a seu cliente preso: “Eu o tirarei daqui, nem que isto me leve o resto daminha vida.” Davis não era muito velho. Eu não gostava da idéia de sair de San Quentinem uma cadeira de rodas, lá por 1995. Podia imaginar George babando em um cigarro,a barba branca esvoaçando até os joelhos, acenando, triunfante, com os papéis delibertação. Eu franziria a vista para ele, através de olhos remelentos e diria roncandode asma: “Ora vejam só, nós conseguimos!”

Isso não era para mim. Preferia a fumacinha em 1957.Meu vizinho do outro lado, Wildchild de Tennessee, disse, em sua fala arrastada:

“Chess, estive pensando. Você não precisa se preocupar com nada.”“Isto mesmo. Nada, pelo menos até eu dar uma cheirada no ‘bouquet’ daquele

coquetel de cianureto que eles estão prontos a misturar para mim, lá embaixo.”

Os jornais de São Francisco anunciavam em cabeçalhos: DENEGADO RECURSO DECHESSMAN. Depois, em tipo menor: “Chesmann Perde Sua Última Tentativa de Escaparà Morte”. O relato afirmava que eu perdera mais outro assalto em minha longa lutapara escapar à morte na câmara de gás de San Quentin: “A Corte Federal de Apelaçãodaqui denegou seu recurso interposto da ordem do juiz federal Louis Goodman,baixada em janeiro, denegando-lhe um pedido de habeas corpus.”

A sentença, com um parecer de dezoito páginas, assinado pela maioria, estava

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pontilhada de notas de rodapé citando dezenas de casos, e começava assim: “Este é umrecurso contra uma ordem denegando o décimo-primeiro pedido de habeas corpusfeito por Caryl Chessman.” Mesmo em uma questão de simples soma, o autor estavaerrado: esta era a décima-sétima vez que eu procurava obter um pedido de habeascorpus em um tribunal federal ou estadual.

O parecer sustentava que me fora concedida uma audiência “plena e justa”perante um juiz “que não errou em declinar de se desqualificar”. A instância inferiorcorretamente decidira que “não tinha jurisdição para tratar de um requerimento demandado de segurança,” ordenando ao diretor que liberasse os originais de The KidWas a Killer e me permitisse cumprir o contrato com Davis; que eu não tinha nenhumdireito constitucional de estar presente e de participar dos trabalhos do tribunal queprolatara o julgamento, quando da decisão sobre a transcrição dos autos.

Resultado: “Indeferido.”O juiz-presidente William Denman, em um parecer terso e divergente, discordou

incisivamente de seus colegas. Escreveu o magistrado, de oitenta e quatro anos deidade:

Divirjo da extraordinária doutrina segundo a qual a cláusula de devido processo, daDécima-Quarta Emenda, se aplica apenas em parte ao julgamento, pelo Tribunal Superiordo Condado de Los Angeles, dos fatos visando a determinar a transcrição daquilo que setranspirara naquele tribunal, como base para a revisão, da sentença de mortepronunciada por aquele tribunal, na Corte Suprema da Califórnia.

Nada está mais bem estabelecido do que o devido processo, objeto da Décima-Quarta emenda, exige que um litigante, prejudicado pela decisão de um julgamento,deverá ser amplamente informado disso, e terá oportunidade de nele participar e que, seisto lhe for negado, a decisão tomada em sua ausência deve ser anulada.

O parecer prosseguia, então, salientando que eu não tivera oportunidade departicipar no julgamento que visava a criar e decidir aqueles autos, preparados deforma tão extraordinária.

A solicitação de Chessman, de estar presente na determinação das 2.000 páginasdas quais dependia sua vida, foi denegada pelo tribunal prolator do julgamento, emboraseja da essência do devido processo, o direito de inquirir testemunhas produzidas pelopromotor de acusação e em Los Angeles procurar e produzir outras testemunhas, dentre

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os escrivães e jurados que acompanharam o julgamento. Não podia ser mais cristalino odireito de um litigante estar presente na vizinhança do julgamento, isto é, o Condado deLos Angeles, onde testemunhas poderiam ser convocadas e examinadas e reinquiridasdiretamente, sem haver a necessidade de se tomarem depoimentos à distância...

O parecer da maioria é forçado a admitir que a Corte Suprema tem sustentado queo devido processo, da Décima-Quarta Emenda, se aplica à alegada produção de falsotestemunho, mas outra violação do devido processo, não.

Prossegue então, com uma aplicação fragmentada da Décima-Quarta Emenda,(baseando-se em casos inaplicáveis):

O parecer da maioria ignora, ainda, os casos subseqüentes no Supremo em que fazclara distinção dessas decisões anteriores (que foram então consideradas).

O parecer concluía:

Uma vez que não se questiona que Chessman teve denegado seu direito departicipar nos trabalhos em Los Angeles, este tribunal deveria determinar que os autos lácriados deveriam ser anulados e, igualmente, a reafirmação do julgamento, nele baseada.

Rosalie estava visivelmente desgostosa quando falou comigo, no domingo, 21 deoutubro.

“Não é assim tão mau”, disse eu. “Nós devíamos tê-lo esperado, depois de todasas vezes em que me deram o fora antes. Mas, agora, devo insistir numa coisa.”

“O que é?”“Que você renuncie ao otimismo para sempre. Vou precisar de todo o ceticismo

sadio que você puder fornecer.”“A única maldita vez em que eu tinha tanta certeza de que poderíamos ganhar,”

disse ela.Quase que ganhamos. Havíamos estado perto disso. O caso fora disputado nos

tribunais inferiores, intermédios, e de última instância, do Estado e da Nação, durantemais de oito anos. Mas de cinqüenta processos legais separados haviam sido iniciados, emais de quarenta juízes, seja sozinhos, seja como membros de um tribunal, haviamparticipado de alguma fase do caso. Então, finalmente, minha vida fora declaradapenhorada, pelo voto de um único juiz. Se um dos juízes, que constituíam a maioria de

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dois para um, tivesse votado com Denman, eu teria ganho.Rosalie iria preparar o requerimento solicitando nova audiência. Também

transmitiria minha mensagem para George: “Favor vir para cá num galope, já!”Posteriormente, depois de ele haver garantido a ela que tencionava falar comigo

logo, só para desaparecer de novo, eu escrevi que, a menos que ele desse as carasdentro de um certo prazo, eu seria obrigado a procurar novo advogado. Nos termosem que estava, um estranho poderia ter aceito literalmente a fraseologia daquelacarta.

George não.Tive de convencê-lo, antes que ele desvendasse aquela “arma secreta”, que

novamente nossos planos exigiam uma drástica revisão.O uso de sua arma secreta, caso a nova audiência nos fosse denegada, e se a

Corte Suprema se recusasse a reconsiderar o caso, sem dúvida salvaria a minha vida,mas a um preço que eu não estava absolutamente disposto a pagar: ganhando emvirtude do que seria tachado de “formalidade”. Deixaria os pontos básicos do caso porresolver, e eu teria pela frente a perspectiva de passar o resto de minha vidainutilmente, em uma cela de máxima segurança de uma prisão de máxima segurança, eainda forneceria mais argumentos para os encarniçados aderentes da justiça de“câmara de gás”.

Em minha cela, naquela noite, depois de minha conversa com Rosalie, relembreicomo o Ódio e a Traição haviam mofado do que eu queria acreditar sobre a Verdade ea Justiça.

“Espere só,” haviam eles escarnecido, “Você verá.”Eu esperara e então, na manhã de 18 de outubro de 1956, eu tinha visto.

Aprendera, fora de qualquer dúvida – que o último homem inocente havia sidoexecutado quase dois mil anos antes de meu nascimento. Que a gente deve distinguirentre a inocência, que é indefesa e não tem necessidade de defesa, e a mera não culpade crimes específicos em um processo criminal. Que, na realidade e do ponto de vistafilosófico, o direito pode triunfar, e a verdade prevalecer, inteiramente independentesde uma decisão de tribunal. Finalmente, que a derradeira justiça que flui de causasjudiciais é o julgamento que o litigante, sem esperança e sem temor, pronuncia contrasi próprio e depois aceita como final, quaisquer que sejam as conseqüências pessoais.

Este conhecimento constituía minha “vitória”. Embora eu nunca pudesse exigir

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outra vitória, de outra não precisaria jamais. Meu trabalho, então, era torná-lasignificativa. Antes que o ano terminasse, eu encontrei o caminho para tanto. Eusubstituí a arma secreta por uma bomba histórica de retardamento, cujo mecanismofoi ajustado de tal forma que todo o virtuoso alarido em coro, dos discípulos, naCalifórnia, do acredito-no-que-quero, ao-diabo-com-os-fatos, odeio-Chessman, gosto-do-carrasco, não poderá evitar que exploda.

Não era culpado. O poderoso e soberano Estado da Califórnia me haviaempurrado através do julgamento até a condenação e depois me condenado duas vezesà morte por crimes que não cometera. E para fazer que essas condenações fossemlevadas a cabo, ele tivera que fazer da Justiça uma farsa barata.

Tenho certeza de que uma geração futura me dará ouvidos.Eis aqui, então, o que, depois de muita deliberação, eu fiz. Com a ajuda de

amigos, preparei um “embrulho” grande e de um tipo bem especial, que coloquei ondenão pode ser encontrado, apreendido, suprimido ou destruído, contra meus desejos.Nesse embrulho há provas mostrando incontestavelmente que eu não sou o Bandido daLuz Vermelha. Além disso, um documento nomeia, e identifica os dois verdadeirosBandidos da Luz Vermelha (plural), porque na realidade há dois, embora apenas umfigure com certa importância; e, anexos a esse documento, há algumas declaraçõesjuramentadas e cópias fotostáticas de arquivos e prontuários da polícia, além de outrosmateriais, que estabelecem de forma inconteste que a cela 2455 do Corredor da Morteestá ocupada, agora, pelo homem errado. Uma vez que os documentos e demaismateriais do pacote sejam tornados públicos, e caso o sejam, a verdade sobre o casoserá tão gritantemente óbvia, que as pessoas ficarão espantadas até com o fato de euter sido condenado. À custa de muitos funcionários encarregados da aplicação da lei,editores de jornais, promotores, magistrados, funcionários penais, cidadãos inflamadose outros, os bons cidadãos terão uma lição duradoura sobre como as ânsias de fazer obem, quando a paixão domina o impulso, quando o expediente político substitui aliderança corajosa, quando o objeto é a destruição de um homem “mau”, quando aatmosfera está sobrecarregada com o temor, ódio e hostilidade, pode produzir umresultado chocante e terrível. A tragédia não é que esses impulsos criam monstrossintéticos, mas que, no procurar exterminá-los, imperativamente, a verdade,inevitavelmente, é exterminada e a justiça, prostituída.

Se o carrasco se for, meu embrulho nunca será dado a público. Se ficar, o pacote

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será tornado público exatamente cinqüenta anos a partir do dia em que o projeto delei em prol de uma moratória da pena capital for derrotado.

A descrição fornecida à polícia por vítimas do(s) Bandido(s) da Luz Vermelhaserve para mim como serve para você. A metade das vítimas chamadas à delegacia deHollywood e solicitadas a me identificar, recusaram-se a fazê-lo. Alguns dos maiorespsicólogos e psiquiatras do País já declararam que nos autos minha personalidadedefinitivamente não é a de um estuprador e, baseados nos fatos e em meu padrão decomportamento anterior, de um ponto de vista psiquiátrico, as probabilidades são deque eu quase que certamente não sou o Bandido da Luz Vermelha. Não sofri nenhumaexperiência traumática na infância que me leve a atacar mulheres indefesas. Embora euseja um tipo grandalhão, um tanto feio, não afugento mulheres. Não tenho vezo paraestuprador e nunca tive.Eu devo morrer, disse a Justiça, porque o ataque criminoso do Bandido da LuzVermelha levou uma de suas jovens vítimas à loucura. Pondo de lado o fato de que eunão sou o bandido, e concedendo que ele é tudo o que se possa imaginar de nojento emaligno, todas as provas, não obstante, indicam que a enfermidade mental dainfortunada jovem – que resultou em sua hospitalização dezenove meses mais tarde,ao invés de, como o quer a lenda, imediatamente em seguida ao crime, foi e continuasendo irrelacionada com o ataque sexual feito contra ela. Com efeito, existe umadeclaração juramentada de um dos psiquiatras que examinaram a jovem e estavacompletamente familiarizado com a sua trágica condição, afirmando que o ataquecriminoso do Bandido da Luz Vermelha não era a razão pela sua enfermidade mental ehospitalização em Camarillo.

Como, possivelmente, poderia ter a polícia feito o “engano” de acusar o homemerrado com os crimes do notório Bandido da Luz Vermelha? Isto também é algo queestá completamente revelado na caixa de Pandora de fatos que preparei. Só direi oseguinte: a história, plenamente documentada, não acrescentará brilho nenhum aobrasão enlameado e ensangëntado da Califórnia...

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TERCEIRA PARTE

A TORRE DAS TREVAS

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CAPÍTULO 18SÓ MAIS UM PASSOA SER DADO

OLHEI FIXAMENTE para o cabeçalho do Call Bulletin de San Francisco:

JUÍZES FEDERAIS BRIGAM POR CAUSA DE CHESSMAN

“O Juiz Dal M. Lemmon, da Corte Federal de Apelação”, começava a história,“atacou acerbamente aqui, hoje, o juiz-presidente de seu tribunal, William Denman,pela posição do último, segundo a qual Caryl Chessman não foi beneficiado com odevido processo de lei.”

Outros jornais da Califórnia destacam a história, enquanto as agências noticiosasa disseminavam através do País.

JUIZ URGE A EXECUÇÃO DE CHESSMAN. Magistrados Trocam Palavras IradasSobre Chessman. Magistrados Ainda Discutem por Causa da Apelação deChessman. Estes eram alguns dos subtítulos. “Dois juízes da Corte Federal de Apelaçãotrocaram golpes verbais aqui, ontem, em irritado desacordo sobre a validade dasprolongadas tentativas de Caryl Chessman, de evitar a execução na câmara de gás deSan Quentin”, dizia uma narrativa.

A ira do juiz Lemmon irrompera em um destemperado parecer, a 27 denovembro de 1956, sete dias depois que ele e seu colega, o juiz Hamley, haviam votado

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no sentido de denegar uma nova audiência para o recurso.Ele escrevia o parecer, disse, porque “o juiz-presidente Denman persiste em

ignorar a opinião da Corte Suprema”. Salientava que (1) o juiz Goodman haviadecidido contra mim no caso em separado, da fraude; (2) ele e o juiz Hamley haviamsustentado a sentença do juiz Goodman; e (3) “... o parecer da maioria afirma que orecorrente (Chessman) não estava constitucionalmente intitulado a comparecer empessoa e a participar da preparação da transcrição”.

E, como se o próprio Todo-Poderoso o houvesse decretado, “A questão deveriaterminar ali”.

Mas o juiz Lemmon não terminava seu parecer ali:“Tem-se dito que a lei substantiva é para a proteção do povo, e a lei processual

visa a proteção do inocente... Em parte nenhuma Chessman alega ser inocente.”Essa falsidade crua me deixou todo arrepiado.O juiz Lemmon também se referia a um projeto de lei aprovado pela Câmara dos

Representantes dos Estados Unidos em 19 de janeiro de 1956, que teria restrito o usoe escopo do pedido de habeas corpus nas cortes federais, em casos de uma pessoacondenada em um tribunal estadual.

“Estou inteiramente de acordo com o espírito desse projeto”, escreveu o juizLemmon, “que ainda não foi aprovado pelo Senado Federal.” (Uma peça de legislaçãoaltamente questionável, divulgada gritantemente pelos advogados da justiça da câmarade gás, ela fora exterminada na Comissão Judiciária do Senado, e agora o juiz Lemmonfazia o possível para revivê-la e conseguir sua aprovação. Na sua próxima sentença, elefoi adiante:)

“Mesmo na ausência de tal lei, no entanto, tenho a firme convicção de quenenhum tribunal federal deveria, na ausência de razões constitucionais cogentes,inteiramente ausentes neste caso, interferir no processo legal dos tribunais dequalquer Estado.”

Tendo fustigado o juiz Denman e argumentado em prol de decisões, não deacordo com a lei do País, como até então promulgadas pelo Congresso e interpretadaspela Corte Suprema dos Estados Unidos, mas sim pelas suas próprias e prevenidasnoções do que elas deveriam ser, o juiz Lemmon em seguida dirigiu uma descargacontra o mais alto tribunal da Nação.

“O caso de Chessman tem estado perante os tribunais da Califórnia e dos Estados

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Unidos há muitos anos. A ‘demora da lei’ neste caso se tornou um escândalo nacional.”Concluía:“Resta só mais um passo a ser dado no caso do Estado da Califórnia contra Caryl

Chessman. Esse passo será levar a cabo uma das duas sentenças de morte pronunciadascontra Chessman há oito anos e meio.

“Chessman foi beneficiado com todo o devido processo de lei, exceto o pordemais retardado processo de sua execução. Por tal execução, talvez, a mancha nobrasão jurídico da Califórnia será, se não completamente eliminada, pelo menosparcialmente apagada.”

Se Chesterston, o crítico e ensaísta inglês, tivera razão ao afirmar que “a Lógica éprincipalmente valiosa quando serve para examinar os lógicos,” então aqui estava umaprova convincente de que os lógicos haviam sido devidamente enterrados e que, pelomenos para o juiz Lemmon, “A litigação é principalmente valiosa quando serve paraexterminar os litigantes” – isto é, os litigantes chamados Caryl Chessman.

“Nenhuma declaração no momento,” disse George Davis aos repórteres que lhepediram para comentar o parecer do juiz Lemmon.

O juiz Lemmon se colocara em um limbo judicial. “Só mais um passo a ser dado,”dissera. O trabalho de George, agora, era produzir uma serra legal e pôr mãos à obra...

Na manhã seguinte, o juiz-presidente Denman, que já no começo do séculopraticava lei, deu entrada em um memorando com um parecer em resposta. “Nenhumailustração melhor poderia ser dada do aforismo de que “casos difíceis fazem leis más”,do que o parecer do juiz Lemmon, ao denegar o direito de Chessman de uma novaaudiência neste caso,” começou ele.

Depois de dar cabo da “afirmação de que a mesma questão da lei deve serdecidida de uma forma se considerada no começo de uma acusação, e de formadiferente” se considerada mais tarde, o juiz Denman disse que a diferença entre os doistipos de indeferimento e o devido processo relacionado com o caso era “tão evidenteque, como foi visto, o juiz Hamley pronunciou-se em separado sobre cada ponto.”

“Embora possa muito bem ser uma questão de vida ou morte para Chessman, ojuiz Lemmon teria preferido que a Corte Suprema, em seu parecer, reformasse, (peloseu silêncio), seus vários acórdãos de que qualquer processo importante doe recurso éuma parte do devido processo, da Décima-Quarta Emenda.”

Concluía:

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“Nem em nosso parecer no caso Chessman contra Teets... nem no parecer daCorte Suprema... menciona-se, muito menos se dispõe da contenção de Chessman. Éabsurdo argumentar, de qualquer forma, que o Supremo, pelo seu mero silêncio emuma afirmação que não lhe foi apresentada, decide tal contenção adversamente contraa parte que a faz...”

O Examiner, de São Francisco, e outros furiosos jornais anti-Chessman, eramcegos ante esse absurdo. Lamberam-se de gozo com o parecer de Lemmon. Comoesfarrapados cavaleiros, retornando de uma campanha indefinida para recuperar aTerra Santa do Infiel, eles alegremente montaram de novo e lançaram-se a nova cargana guerra contra o homem da Cela 2455, Corredor da Morte.

Um dos muitos editoriais publicados no Examiner (sob seu lema de “Verdade,Justiça, e Servir ao Povo”), afirmava:

Concordamos com o juiz Lemmon... que a demora da lei, no caso de CarylChessman é um escândalo nacional... Depois deste Chessman, virão outros Chessmans.Enquanto tais criaturas forem autorizadas a subverter a Justiça à vontade, abusando dodireito do pedido de habeas corpus, aquela mancha permanecerá.

O juiz Lemmon e todos os outros juízes e membros da profissão podemmelhormente apagar a mancha através da introdução de reformas no uso do habeascorpus. Só assim poderá terminar o que o juiz Goodman tão precisamente descreveu,neste mesmo caso Chessman, como a administração da justiça “tipo máquina automática”.

Nunca ocorrera àqueles escritores que a Califórnia havia ela própria manchadoseu brasão jurídico, e que “reformas” – não importa em que termos bem soantesfossem apresentadas – facilitariam o ocultamento da injustiça. O aceleramento daexecução do injustamente condenado dificilmente constitui um tema adequado paracruzadas trombeteantes.

O parecer do juiz Lemmon e os rugidos editoriais de aprovação provocaram ascartas costumeiras dos leitores, vocalizando seus sentimentos altamente emocionais.

Minhas “manobras legais, de oito anos e meio”, eram um “escândalo nacional” deacordo com uma dona de casa. “De qualquer forma,” acrescentava, “se ele não morrerde dar risada, indubitavelmente morrerá de velho. Este é o tipo de falha que encoraja ocrime e um completo desrespeito por nossas leis, tribunais e juízes.” (Sob a carta haviauma nota do editor: “Continuamos dizendo que isso não pode continuar por mais

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muito tempo. Mas continua.”)Isto excitou Virgil Pinkley, editor e diretor do Mirror-News. Durante anos ele

estivera fazendo o possível para me jogar na câmara de gás, e agora seu jornal estavadestacando a história de um suspeito de estupro. Era, naturalmente, um“impressionante paralelo ao caso de Caryl Chessman.” Sob o título: “ATAQUES DEBESTA HUMANA NARRADOS POR OITO MULHERES NO TRIBUNAL, afirmava-se:

“O Promotor Público adjunto J. Miller Leavy deu a entender que pedirá a pena demorte para o acusado de estupros, considerado o mais maligno atacante de mulheres acomparecer perante os tribunais daqui, desde Caryl Chessman...”

Neste ponto eu poderia ter garantido àquela dona de casa que não haviapossibilidade de que eu morresse de dar risada – ou de velhice. Pelo menos, não noCorredor da Morte. De minha própria maneira, eu tencionava forçar um embatedecisivo, final.

Tinha acontecido!Eu estava acordado, e não sonhando, e os recortes de jornais que tinha na mão

não eram miragens provocadas pela esperança. Eram reais. Folheei-os novamente,relanceando o olhar admirativamente pelos cabeçalhos, relendo o que fora escrito.

Primeiro:

INQUÉRITO LEGISLATIVO SOBREA PENA DE MORTE É ABERTODevemos matar legalmente?

“Será que o medo da câmara de gás detém os assassinos antes de matarem?”“Será que a legislação atual separa os loucos ou incapazes, entre os assassinos

brutais da Califórnia, e determina o seu tratamento como insanos? Ou será que elaenvia o insano para a câmara de execução?

“É justo ordenar que os assassinos sejam punidos com a morte – e então deixá-los sofrer três, cinco, oito anos no Corredor da Morte... à espera?”

“Estas perguntas não são charadas ocas, para os estudos teóricos deuniversidade,” escreveu Mary Ellen Leary, editora-associada do News, de São Francisco.“São problemas que confrontam diretamente a Califórnia.” E “Hoje, um grupo de

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legisladores estaduais ouvirá as opiniões de psiquiatras, professores de criminologia,funcionários encarregados do cumprimento da lei” e outros.

No palácio estadual, em São Francisco, a subcomissão especial da Assembléiasobre pena capital estava em sessão. O Presidente era Lester McMillan (D., LosAngeles).

Os recortes que eu tinha eram encorajadores:

MORATÓRIA DE CINCO ANOS APRESENTADAPELO PAINEL DO PROCURADOR GERALExecuções: Busca-se a sua Suspensão.

“A Morte não impede o crime.”

Nove dentre as onze testemunhas chamadas perante a subcomissão disseram quea Assembléia Legislativa da Califórnia, em sua próxima sessão regular, deveria ou abolira pena de morte completamente, ou pôr um cadeado na porta da câmara de gás de SanQuentin durante cinco anos e estudar os resultados. Quatro razões principais foramaventadas:

Contrariamente à opinião popular, a pena de morte não desanima o crime.A pena capital avilta a vida humana, dessa forma na realidade dando estímulo a

mais assassínios.A imposição de uma sentença de morte freqüentemente resulta em recursos

quase infindáveis, e o “desrespeito” pela lei cresce em razão do intervalo de tempoentre a condenação e a execução.

Havia o constante perigo de impor a pena de morte a um inocente.O dr. Austin MacCormick, professor de criminologia na Universidade da

Califórnia, e uma das principais figuras do país em seu setor, disse, da pena capital:“É uma cicatriz maligna na face da Justiça – quase tão maligna quanto o crime

que ela pune.” Classificou a administração da pena de morte pela Califórnia de“caprichosa, discriminatória e irregular.”

O principal encarregado do cumprimento da lei no “Golden State”, o ProcuradorGeral Edmund G. Brown, expressou opiniões tão positivas quanto aquelas: “A penacapital não é um elemento dissuasório do crime, de qualquer forma, modo oumaneira.” Um elemento dissuasório muito maior, alegava, seria uma sentença de prisão

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perpétua sem a possibilidade de livramento condicional. A discordância da prática desua aplicação criava gritantes inconsistências. “Um promotor público é severo e exige acâmara de gás, e outro não.” Brown recomendava uma moratória de cinco anos para apena capital, e uma boa olhada no registro dos resultados que ela poderia conseguir.

Richard A. McGee, diretor do Departamento de Correições da Califórnia, e umpenólogo nacionalmente conhecido, também recomendava uma moratória: “Não há umpingo de evidência a provar que a pena capital constitui um elemento dissuasório,”disse. Acrescentou: “Mas eu levantaria sérias dúvidas quanto à conveniência de umasentença de prisão perpétua sem possibilidade de livramento condicional; essescondenados seriam difíceis de tratar.”

“Nós procuramos mostrar aos nossos filhos que reprovamos o homicídio,”observava o reverendo C. Lester Kinsolving. “Nós o fazemos através das execuções... Hátambém a sempre presente possibilidade de se executar um inocente. Não há nada maisfrustrante do que uma tentativa de perdoar um cadáver.”

Trevor Thomas, Secretário da Comissão Legislativa da Sociedade de Amigos,afirmava: “Não creio que se possa justificar a pena capital, hoje em dia, seja com razõesmorais, ou científicas. É uma questão de vingança.” Salientou que o povo não sabia quecentenas de assassinos primários cumpriam sua sentença e eram devolvidos à sociedadesem incidentes, enquanto que apenas uma pequena fração daqueles condenados porhomicídio eram executados. Citou a gradual eliminação da pena de morte em todo omundo.

Os dados demonstravam que, com 417 homicídios reportados pela Polícia daCalifórnia em 1955, apenas cinqüenta e duas pessoas haviam sido condenadas porhomicídio em primeiro grau. Destas, quarenta e quatro foram enviadas à prisão, eapenas oito à morte. McGee notava que o diretor de San Quentin, com apenas unsvinte homens no Corredor da Morte (e quase 4.000 homens no presídio) tinha depassar cerca de vinte por cento de seu tempo com estafantes pormenores concernentesà pena de morte.

A pena de morte também se viu mal nas mãos de dois bem conhecidospsiquiatras, os drs. Douglas M. Kelley, da Universidade da Califórnia, e Bernard L.Diamond, do Hospital Monte Zion, de São Francisco. Ambos, juntamente com oprofessor MacCormick, propuseram acabar com aquele secular e arcaico teste deMcNaughton, do certo ou errado, para determinar a sanidade ou insanidade mental (e

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daí a responsabilidade criminal), por se opor inapelavelmente ao conhecimentopsiquiátrico atual. O dr. Diamond propunha, em lugar do inútil teste de McNaughton,que os júris, simplesmente, considerem se um acusado está sofrendo de enfermidademental. Também recomenda a transferência do ônus de provar a sanidade, da defesapara a acusação.

O dr. Kelly fez um apelo especial para que a comissão desenvolvesse um “códigopenal moderno, tratando com a pessoa mentalmente enferma,” propugnandoencarceramento especial para o psicopata e o “deficiente de caráter”. Observara que:

“ ‘The Bad Seed’ foi um bom filme, mas não há prova médica da herançagenética de tendências criminais. No entanto, os tribunais e polícias continuam usandoum padrão secular, acreditando que o vinho velho, queijo velho e leis velhas são osmelhores.”

“Um questionário enviado a cerca de 500 dos “sheriffs” do Estado, promotorespúblicos, juízes, educadores, clérigos e advogados, demonstra haver uma crescenteimpressão de que não deveríamos dedicar-nos à execução de pessoas doentes,” notaraArthur E. Wood, consultor e diretor de pesquisas da comissão, antes de as audiênciascomeçarem. Wood, um professor aposentado da Universidade de Michigan, decriminologia e sociologia, salientara que seus esforços seriam dirigidos no sentido deauxiliar os legisladores e obterem todos os fatos relevantes, e a escrever um relatóriointeiramente objetivo em sua abordagem da abolição.

Uma reveladora estatística que Wood havia recolhido era que “pelo menoscinqüenta” dentre os 110 executados em San Quentin, de 1938 a 1953, eram pessoasmentalmente doentes, mas que haviam sido julgadas legalmente sadias.

E a perturbadora proporção não se havia reduzido desde então. Eu pensei nopequeno Bart, Jack, Manteigueira e o jovem Billi Rupp, esperando para morrer; emRobert O. (O Campeão) Pierce e tantos outros, mortos, e como não apenas esseiluminado Estado se empenhava regularmente em matar os mentalmente doentes,como também o Corredor da Morte brutalizava e, freqüentemente, marcava parasempre, contorcia e destruía os espíritos daqueles mantidos em confinamentoengaiolado.

O “sheriff” Melvin Hawley, do Condado de Santa Clara, solicitando que um painelde peritos, e não o júri, determinasse a sanidade de um acusado, também surgiu comoum enérgico opositor à pena capital, como a sra. James M. Hanley, viúva de um

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promotor de São Francisco. E o advogado A. J. Zirpoli, que lutara tão tenazmente porHenry Thomas, sustentava que deveria haver uma revisão compulsória de todos oscasos de pena de morte pela Comissão de Maioridade e que, em seguida a essa revisão,dever-se-ia fazer uma recomendação ao principal órgão executivo do Estado relativa àclemência do Executivo, uma idéia humana que o governador Goodwin J. Knight haviaanteriormente rejeitado totalmente. Poderia levar algum tempo, e o importante,segundo Knight, era acelerar a matança dos condenados pelo Estado.Este foi o primeiro estudo oficial em escala estatal da punição capital, jamais realizadona Califórnia, e agora parecia que se poderiam adotar medidas construtivas pelapróxima sessão regular da Assembléia Legislativa. Parecia virtualmente certo quenossas leis autodestruidoras, baseadas naquela monstruosa ficção legal, o teste deMcNaughton para a determinação da sanidade ou insanidade mental, seriamreexaminadas – e talvez relegadas ao lixo. Além disso, haveria uma grande demanda emprol de uma lei exigindo que os jurados fixassem as penas sem seus vereditos, em casosem que tivessem a opção de impor prisão perpétua ou morte. Recentemente, depois detê-la sancionado durante anos, a Corte Suprema da Califórnia fulminou a prática dejuízes prolatores, de instruir os jurados nos casos de assassínio, dizendo-lhes que umapena de morte teria de ser pronunciada, a menos que o júri encontrasse “atenuantes”e “circunstâncias de justificação”.

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CAPÍTULO 19ÂNSIAS DE FAZER O BEM

A GENTE NÃO METE uma folha de papel de ofício na máquina [de escrever] e diz para amais alta corte da Nação: “Hei, vejam! Fui apanhado. Socorro!”

Se se acredita que bons advogados constitucionais são bandidos disfarçados,ambiciosos camaradas que exigem honorários despropositados só para puxar o pigarro,parecerem importantes e acrescentarem “considerando” a documentos legais, umaleitura superficial dos Regulamentos Revisados da Corte Suprema dos Estados Unidosfar-nos-ia mudar de pensar.

Nosso primeiro choque viria ao saber que esse tribunal de última instância nãose pode reunir para o benefício de litigantes individuais. As “Considerações Governandoa Revisão de Remessa de Autos” dizem que: “A revisão de um processo de remessa deautos não é uma questão de direito, mas de sadia discreção judicial, e só será concedidaquando houver razões especiais e importantes.”

Se a gente ler as páginas de regulamentos e referências que se seguem, acaba-sepor concordar que um advogado constitucional competente ganha seu dinheiro nopesado.

Tínhamos de preparar uma petição de ordem de remessa de autos em um prazoapertado. George confidenciou comigo e cuidou dos incontáveis pontos processuais ejurisdicionais. Eu pus de lado o preparo deste livro e tudo o mais, e trabalheivirtualmente sem parar, como o fizera tantas vezes no passado. Ambos os meus

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advogados sabiam de como eu dava importância àquela petição e assim, sujeita apenasà sua correção, deixaram-me com o que poderia ser, nos tribunais, as últimasdeclarações.

Comecei mesmo a 1.º de dezembro e, com os olhos fatigados, e caindo decansaço, completei as provas de meu rascunho final datilografado, de 89 páginas, às4:55 da madrugada de 24 de dezembro. Mais tarde, naquela manhã de segunda-feira,do escritório do diretor, onde eu os tinha enviado, George apanhou os onze volumes deautos, que tinham de ser devolvidos à Corte de Apelação até o meio-dia, e meurascunho da petição, no qual ele e Rosalie iriam trabalhar.

Da Corte de Apelação George obteve uma nova suspensão de mandado,prorrogando a data de apresentação da petição da Corte Suprema de 2 de janeiro para10 de fevereiro de 1957.

Entre o Natal e o Ano Novo, George e Rosalie estudaram o meu rascunho,cortando aqui e sublinhando ali. Eles literalmente cortaram a petição em pedaços ejuntaram-nos de doze maneiras diferentes. Seria mais efetiva desta ou daquelamaneira?

Rosalie conferenciou comigo no domingo, 30 de dezembro, e transmitiu meuspontos de vista para George. Eu salientara que, uma vez que não haveria uma formasegura de avaliar o que devia ser dito ou salientado, eu assumira plenaresponsabilidade pela forma final da petição.

George veio ver-me na segunda-feira, 7 de janeiro e de novo no dia seguinte. Deum dia para o outro, sem dormir, eu havia preparado a petição para o impressor,usando uma cópia clara de carbono de meu rascunho original, e incorporando as idéiasde todos nós. George apressou-se em trazer as provas de escova para mim, e nós asrevisamos. Aquilo, concordamos, deveria servir.

Ali, na forma e ordem requeridas, sem pesados legalismos, estavam as referênciasàs numerosas opiniões reportadas no caso e todas outras considerações, incluindo asrazões para concessão do pedido de remessa.

Desta Petição para Concessão de Remessa de Autos dependia minha vida oumorte. Uma seção – “Razões para Conceder a Remessa” – era de particular interesse emuito faria para ajudar o leitor a julgar se Caryl Chessman havia caçoado da Justiça,ou se fora objeto de mofa pelos servidores, por demais enraivecidos, dessa deusa.

Nessa seção eu citei o ministro Black, divergindo no caso de Beauharnais contra

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Illinois, “que as ânsias de fazer o bem têm levado à queima de livros e mesmo à queimade ‘feiticeiras’.”

Salientei que essas mesmas ânsias levaram à “ameaça pública de queima” de umde meus livros (A Lei Quer Que Eu Morra) por um assistente-chefe do ProcuradorGeral da Califórnia. Da mesma forma, à apreensão, pelo diretor da penitenciária, deoutros manuscritos meus, incluindo um possivelmente valendo milhares de dólares(The Kid Was a Killer). Disse que o estatuto de indigente me fora forçado porque eunão era autorizado a escrever uma palavra que fosse, para publicação. Fiz referência aoclamor pela “justiça de câmara de gás” para “esse conhecido monstro”, “fera semconsciência”, “Houdini legal” e “gênio criminoso”.

Disse que um imperativo “moral” (isto é, Chessman deve ser executado) haviasubstituído o julgamento legal (isto é, estará Chessman sendo mantido em custódia emviolação à Constituição Federal?)

Ao longo de observações gerais desse teor, eu alinhei numerosas razõesespecíficas pelas quais meu caso deveria ser revisto pela Corte Suprema. Entre elas: “Alei da Califórnia requer imperativamente um recurso automático à sua Corte Suprema,em casos de pena capital”. Esse apelo, prossegui, é uma “precaução extraordinária”,tomada pelo Legislativo, “para salvaguardar os direitos daqueles contra os quais a penade morte foi imposta pelo tribunal do julgamento.” Na Califórnia, também, “O direitode apelação à Corte Suprema é garantido pela Constituição ao prisioneiro e é tãosagrado como o direito de ser julgado pelo júri”. Acrescentei que os Regulamentos doConselho Judiciário da Califórnia declaram que, no caso de uma pena de morte, todosos autos do julgamento devem ser preparados e certificados como verdadeiros ecorretos pelo escrivão da corte que registrou estenograficamente os trabalhos dejulgamento.

“No entanto, no caso, com a morte do taquígrafo forense,” afirmava minhapetição, “os autos não foram e não podiam ter sido, preparados de acordo comqualquer lei ou regulamento existente e relativo aos recursos e em particular, esserecurso imperativo. Todo o devido processo, estabelecido pelo Estado, teve de serlançado fora, e um processo ad hoc teve de ser inventado, se é que os autos deviam serpreparados. Um deles foi o de “engenhosidade humana”, sob vigorosas objeções doSuplicante. O Suplicante nunca foi autorizado a se defender contra essa transcrição, oua estar presente quando ela foi criada, resolvida e ‘aprovada’. Seus pedidos de

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audiência, na qual pudesse contestar sua validade e adequabilidade, foram ignoradosou denegados. Não obstante... ele foi usado como base para confirmar os julgamentosde condenação impondo duas sentenças de morte e quinze sentenças de prisão.”

Ressaltei que o promotor, no caso, recebera autoridade de escolher um escrivãosubstituto para preparar os autos do trabalho do julgamento e que, tendo escolhidoseu próprio tio por afinidade, manteve esse fato cuidadosamente oculto do juiz dotribunal, de mim próprio e do tribunal de apelação. Também que o promotor e esseescrivão substituto haviam sido autorizados a se consultarem sobre a transcrição, forado recinto do tribunal. O escrivão tivera um prazo ilimitado para preparar os autos eusara suas conversas com investigadores e testemunhas vitais do julgamento,apresentadas pela acusação, como base para reconstruir seus depoimentos, sobsugestão do próprio promotor. O escrivão, fora do tribunal, deixara o promotorexaminar o rascunho de sua transcrição antes que ela fosse copiada em forma final, erecebeu três vezes mais os emolumentos estabelecidos para seu trabalho.

Alinhei outros abusos específicos nesta conexão.Comentando a declaração do juiz Lemmon, de que “Em parte alguma Chessman

alega ser inocente”, esclareci em minha petição que tinha consistente e veementementesustentado minha inocência.

Pouco antes de ter sido condenado à morte, quando indagado se havia qualquercausa legal pela qual o julgamento não deveria ser pronunciado, eu respondera:

“O acusado está absolutamente inocente dessas acusações.” Em minha declaraçãojuramentada, visando a desqualificar o juiz Goodman, eu jurei que: “o Declarante éinocente dos crimes do Bandido da Luz Vermelha, pelos quais foi condenado.”

“De qualquer forma,” afirmava um parágrafo em “Razões para Concessão deRemessa”, “a culpa ou inocência não é o fator legal determinante, pois que esse EgrégioTribunal tem sábia e justamente repudiado a perigosa doutrina segundo a qual elepode suspender a proteção das salvaguardas constitucionais meramente como podejulgar o litigante culpado ou inocente.”

Continuei dizendo que:“Os autores demonstram, como questão de lei, uma prevenção pessoal, contínua

e fixa, da parte do juiz Goodman contra o suplicante e em favor do Estado daCalifórnia”...

Os parágrafos seguintes, em linguagem não técnica, apareceram na seção de

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minha Petição de Concessão de Remessa sob o título “Razões para Conceder aRemessa”:

Além do que, o Suplicante havia declarado em público: “Desde a minha detenção,tenho pedido um teste com um detetor de mentiras, para apurar a questão da minhaculpabilidade ou da minha inocência, mas nunca fui atendido, por isso, desejo fazeroutra proposta. Quando me submeterem à pesquisa sobre o modo como fui tratado naprisão, quero também que procurem saber se sou ou não o bandido da luz vermelha.Se o teste revelar que estou mentindo, quando eu negar firmemente e sem equívocoque não sou esse bandido e que não cometi os crimes pelos quais me acho à espera damorte, então abandonarei toda a minha luta pela sobrevivência.”

(2455, Cela da Morte, por Caryl Chessman. São Paulo, Distribuidora Paulista deJornais, Revistas, Livros e Impressos Ltda., 1957, pg. 273.) Por todo aquele livro e nosubsequentemente publicado A Lei Quer Que Eu Morra (a mesma editora, 1957), lidona forma de livro ou publicação periódica, por literalmente milhões de pessoas nestePaís e em todo o mundo ocidental, o Suplicante tem salientado sua inocência e seusesforços ignorados de ser submetido a um exame com o polígrafo.

No artigo principal do número de março de 1955 da revista Saga, intitulado “OQue Eu Faria Com Minha Vida” e de autoria do Suplicante, o mesmo Suplicanteafirmava:

“...embora, admito, eu tivesse estado a assaltar “bookies” (recebedores de apostasde corridas de cavalos) e “limpando” coletores de um grande sindicato de“bookmarking” na área, eu não era o notório Bandido da Luz Vermelha, da Califórniameridional.” (pgs. 10-11)

Nem esses apelos constituem meramente as alegações costumeiras de“inocência”, de um vilão desesperado. O fato é que existe uma controvérsia em escalanacional sobre a culpa ou inocência do Suplicante. (Vide, por exemplo, na revista True,número de outubro de 1956, o artigo documentado “A Verdade Sobre o Homem naCela 2455, do Corredor da Morte”, de Wenzell Brown, pg. 46: “Não acredito que CarylChessman seja culpado dos crimes pelos quais foi condenado à morte. Estouconvencido de que ele foi vítima de fraude.”) Além do mais, uma vez que os tribunaisfederais não podem examinar a questão de culpa ou inocência como tais, o Suplicante,seu conselho de defesa e outros estão fazendo contínuos esforços para estabelecer ainocência do Suplicante independentemente de medidas judiciárias.

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Então, na seção final “Conclusão e pedido de concessão”, da petição,especificávamos o mandado determinado que pedíamos:

O Suplicante vem, respeitosamente, pedir deste Egrégio Tribunal:“...que a decisão do tribunal estadual que julgou o Suplicante, aprovando esses

autos contestados, seja anulada, assim como a conformação, pela Corte Suprema daCalifórnia, dos julgamentos de condenação neles baseados, e que uma novadeterminação de sua validade e adequabilidade seja realizada na Corte Superior de LosAngeles, sendo o Suplicante autorizado a dela participar, pessoal e efetivamente;... (e)que o tribunal distrital federal é competente para estudar a petição para mandado desegurança, nos termos dos parágrafos 2201 e 2202 de 28 U. S. C., e que, se oSuplicante sustenta suas alegações na forma estabelecida nos papéis de petição earrazoado, ele tem um direito constitucional ao mandado que ali solicita; isto é,liberação de seu romance inédito e o direito de usar os produtos de seu espírito paracobrir as despesas da demanda e para honorários de advogado.

Desta maneira, de uma vez por todas o caso poderá ser resolvido decisiva ejustamente.

Para tornar possível uma decisão nesse termo do Tribunal e ainda dar à Corteamplo prazo para deliberação, e Suplicante e seu advogado aqui estipulam que estapetição pode ser tratada como arrazoado do Suplicante, normalmente apresentado emseguida à concessão do pedido de remessa de autos, e que o caso possa ser decididocom base nele, no contra-arrazoado do Suplicado e em um arrazoado final doSuplicante, utilizando os autos datilografados. O procurador do Suplicante está prontoa sustentar o caso imediatamente.

Datada de 24 de janeiro de 1957, a Petição estava assinada:

P. E. Deferimento,

George T. Davispp. Suplicante.

Caryl ChessmanSuplicante pro se.

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Rosalie S. Asherdo Conselho da Defesa

E pronto. A Corte Suprema se pronunciaria ou favorável ou desfavoravelmente.Se não o fizesse, eu estaria terminado com minha busca de justiça judiciária, de noveanos. Não haveria posterior litigação em qualquer tribunal inferior. Eu tinha outro usopara o caso Chessman.

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CAPÍTULO 20UM SERVIÇO TERMINADO:UMA PROMESSA CUMPRIDA

AGORA EU NÃO OUSAVA FRACASSAR. As estafantes horas passadas a escrever um livroque eu considerava tão importante quanto minha própria vida não deviam ser em vão.Atrás de mim havia meses de esforço interminável.

Agora a Assembléia Legislativa da Califórnia estava em sessão. Mais do que cincomil projetos de lei seriam propostos aos legisladores antes que esses entrassem emférias e, ao se reunirem novamente, pusessem mãos à obra para promulgar ou rejeitarprojetos.

Entre esses haveria vários tratando da pena capital. Se, em conseqüência dasmedidas legislativas, a câmara de gás de San Quentin seria posta abaixo, ou trancada,por cinco anos, ou mais usada do que nunca, permanecia uma questão aberta. Seriauma luta dura, e já havia evidência de que certos proponentes da “justiça da câmara degás” novamente tencionavam usar o caso Chessman como um cassetete para manter ocarrasco no emprego. Minha própria existência seria uma caçoada final, se elesvencessem. Embora pudesse me custar a vida, eu acreditava ter encontrado umamaneira válida de detê-los...

Fui até minhas cinco caixas de papel carbono e escolhi uma delas. Ali A FaceCruel da Justiça estava “escondida” todo o tempo – nesta e em uma segunda caixa, nopróprio papel carbono!

Talvez não fosse um lugar dramaticamente original, nem um lugar cuja revelação

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motivasse um grito deleitado de, “Oh, que perfeição!” – mas, por essa mesma razão, umlugar funcional.

Vezes sem conta os revistadores haviam olhado não só as caixas como o papeldentro delas, e nada haviam visto de suspeito. Só algum papel carbono “usado”, quepudesse ainda dar para mais algumas páginas.

Meses antes eu havia decidido que o livro não deveria ser escondido. Nem elepoderia ser preparado em papel regular ou, qualquer fosse a forma no qual sepreparasse, poderia ele despertar a menor atenção.

Finalmente eu dei com a idéia de usar papel carbono. Tivera caixas dele emminha cela há anos. Eu o usava, como todos sabiam, em meu trabalho legal. Guardavaas folhas usadas só uma vez para fazer cópias limpas de papéis legais e para cópias decorrespondência, e era conhecido por não jogar carbono fora até que já não fosse maisaproveitável para qualquer propósito. Daí o carbono atendia idealmente orequerimento básico.

Fazendo experiências, eu descobri que usando folhas grossas, de frente e deapoio, que pudessem ser destruídas imediatamente, e sem bater com muita força asteclas, nenhuma impressão legível era deixada na superfície do papel carbono. Para serdescoberta, uma das folhas certas do papel carbono (entre as quais estavam espalhadasnumerosas folhas inofensivas), tinha de ser selecionada e levada à luz. Meu quebra-luztinha de ser removido e a folha segurada contra a luz da maneira certa. A pessoa que ofizesse teria de evitar ser enganada por outros assuntos deliberadamente mais legíveisna folha, especialmente na parte de cima, no centro e na parte de baixo.

Eu encontrara a resposta! E havia muitos refinamentos que poderia acrescentara fim de aumentar a eficiência da camuflagem. Nessa forma tão arriscada, o livro haviasido escrito. Agora, em tempo recorde, tinha de ser datilografado em papel comum.Isto apresentava uma legião de novos problemas e perigos quase insuperáveis.

Tirei o quebra-luz sob o pretexto de que ele precisava de conserto.Instalei-me com mais aparelhos e uma estranha engenhoca para segurar o papel

carbono e refletir a luz por detrás dele. Minha máquina de escrever despertou com umalarido.

A fim de reduzir o volume do manuscrito, de aproximadamente 160.000palavras, o máximo possível, e assim facilitar a sua saída do Corredor da Morte, eu useium espaço em cada folha, de papel bem fino. Cada página levava minha assinatura naparte inferior, e atrás de cada folha eu imprimi as impressões digitais da mão direita, atinta.

Freqüentemente eu permanecia em minha cela durante o período de exercícios,enquanto os outros condenados estavam fora, no corredor defronte às celas. Osalcagüetes tinham a impressão de que eu estava empenhado na preparação dearrazoados legais, como era o caso na maior parte do tempo. Um punhado dos

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condenados, de confiança, porém, sabia o que eu estava fazendo no resto do tempo.Leram o manuscrito do começo ao fim e forneceram declarações escritas à mão paraesse efeito. Essas declarações, devo acrescentar, não estão mais na prisão. Nem, para opresente, a menos que se torne necessário, tenciono identificar os autores dasdeclarações embora eles me tenham dado sua permissão sem restrições para fazê-lo aqualquer tempo.

Finalmente, entorpecido e meio cego com o esforço de copiar o conteúdodaquelas folhas embaçadas e malucas, eu terminei o serviço.

Todas as salvaguardas concebíveis foram adotadas, sem mencionar algumasfantásticas, para garantir a rígida obediência à proibição de escrever. Qualquerinvestigação minuciosa, de lançamento certo, revelaria não haver qualquer quebra nacustódia, ou negligência da parte dos encarregados do Corredor.

Não só eu estava sob quase que constante supervisão, como os guardas que mevigiavam eram vigiados por outros guardas. Minha cela era revistada vezes sem conta,nunca em intervalos regulares, por uma turma treinada. O presidiário que faz alimpeza no Corredor, fui informado, era revistado ao entrar e sair, e ficava sob aatenta supervisão do guarda do andar. Sua cesta de lixo também era revistada antes deser removida. Como medida de proteção e de custódia, todo o pessoal da instituiçãoque tivesse algo a fazer no Corredor era mantido à vista pelo guarda armado nopassadiço de vigia, cruzando as celas. Sempre que eu ia atender uma visita, minhapessoa era revistada, e bem revistada. Quando um advogado vinha me ver, o conteúdode cada página de cada documento que eu precisasse levar para a conferência com ele,eram estudados cuidadosamente. Havia até uma ordem para que o sargentoencarregado da unidade contasse o número de folhas individuais levadas e entãoverificar para ter certeza de que o mesmo número retornara.

Não obstante, eu descobri uma maneira de escrever o manuscrito.A turma da revista visitou a Cela 2455 e nada encontrou. Nada havia para

encontrar. O manuscrito havia encontrado refúgio temporário na cela de meu amigo evizinho, Eugene B.

Gene e eu tínhamos estudado os hábitos da turma de revista. Às vezes elesrevistavam o Corredor todo. Mais freqüentemente, em uma base de sete dias porsemana, revistaram apenas duas ou três celas. A dor de cabeça era decidir quais celasseriam revistadas em quais dias, por quais membros da turma.

Não havia modo de se dizer ao certo, pois eles evitavam, deliberadamente, seguirqualquer plano evidente. Um palpite ou uma sugestão poderiam levá-los a uma cela,mas eles iam a todas as celas pelo menos uma vez a cada duas semanas.

Um arguto estudante de probabilidades matemáticas, Gene havia inserido todosos farrapos de informações que reuníramos sobre a turma, em uma fórmula deaparência estranha. A questão era: qual, na base de probabilidades, seria o lugar mais

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seguro para pôr o manuscrito durante um dado período? A régua de calcular nos disseque nenhum lugar era seguro, mas nossa melhor chance era a cela de Gene. Assim arégua de cálculo e o manuscrito por um breve espaço de tempo se fizeram companhia.Então, passada a crise e justificadas as leis de probabilidade, uma consulta à régua decálculo me aconselhou a tirar o manuscrito do Corredor da Morte, enquanto as“chances” ainda nos eram favoráveis.

Provavelmente ninguém jamais saberá como ele saiu de San Quentin. Como saiué quase tão importante como porque saiu.

Com o manuscrito tinha de seguir uma carta para Joseph E. Longstreth, meuagente literário. Não era preciso muita imaginação para visualizar a surpresa de Joequando um certo pacote de aparência inocente fosse aberto. Então, incredulamente, eleteria pegado minha carta dirigida a ele. É a que segue.

Caryl ChessmanCaixa Postal 66565

San Quentin, Califórnia

Joseph E. LongstrethCritics Associated16 East 8th StreetNew York 3, N.Y.

Caro Joe:Mais uma vez devo recorrer a você e aos demais de Critics Associated para

auxílio, e ao fazê-lo confio em que estou comunicando a essa carta apressada o sensode urgência que tenho.

Anexo está o original de A Face Cruel da Justiça. Este livro, o final de minhatrilogia planejada, foi escrito e lhe está sendo enviado em condições estranhas emaravilhosas, sem a permissão de meus guardadores ou o conhecimento de meusamigos conhecidos.

O livro deve ser publicado tão logo quanto possível. De outra maneira seupropósito, e minhas horas de agoniado trabalho, terão sido em vão.

Escrito como foi – durante horas noturnas, em uma cela de morte, numa corridacontra o relógio, em condições que fariam seu coração disparar e seu cabelo ficar em

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pé, freqüentemente enquanto meu corpo e meu espírito cambaleavam e estavamentorpecidos de exaustão – reconheço que o manuscrito precisa de uma revisão. Masnada de reescrevê-lo. Nada de revisão literária; nada de polir o que eu disse. Deixe acrueza, e a raiva, o humor e o horror, até mesmo as contradições – pois tudo isto é oque, a meu ver, ajudará a história a se tornar viva para o leitor. É o que torna o livrohonesto e real. É o que, em suma, faz o meu livro.

Nem George Davis nem Rosalie Asher tiveram qualquer conhecimento de minhadecisão de escrever esse livro, ou qualquer participação no “contrabandeamento” domanuscrito para fora do Corredor da Morte. Nem terão eles qualquer informação deminha parte concernente a como o manuscrito ou qualquer outra parte do material deque ele trata deixaram a prisão.

Uma vez que, por ironia, fui forçado a levar o manuscrito a um fim de forma, adeixar o leitor em suspenso, ficaria extremamente grato se você escrevesse um brevePosfácio em seu nome, narrando o que ocorreu desde a época em que você recebeu omanuscrito e a ocasião em que as provas paginadas do livro estiveram prontas para atipografia. Naturalmente que você estará autorizado a incluir quaisquer observaçõespessoais que creia serem apropriadas.

Não preciso dizer-lhe que não escrevi o livro e arranjei um jeito de enviá-lo àssuas mãos apenas para provar a minha esperteza, ou para conseguir mais cabeçalhos,ou para embaraçar aqueles que têm procurado me silenciar e destruir. Escrevi-oporque tinha que fazê-lo, como o leitor saberá: porque, nas circunstâncias, não poderiapermanecer em silêncio quando divisei como poderia desfechar o que poderá constituirum golpe de morte na pena capital.

Agora, Joe, meu serviço está terminado – e o seu começa.

Como sempre (quase)

(a) Caryl.

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CAPÍTULO 21ARÍETE: UM FATO CONSUMADO

O MANUSCRITO SAÍRA!Ele e a minha carta para Joe seriam guardados até que eu enviasse novas

instruções para os amigos, do outro lado dos muros, que estavam conservando-os paramim. Isto, esperava eu, seria logo. Na verdade, tinha de ser logo – ou nunca. Tenso, euainda não conseguia acalmar-me. Estava correndo através de uma terra-de-ninguém,onde um passo em falso significaria Bum! Disparara uma das minas anti-escritor doCorredor da Morte, da Autoridade, ou Crash! Embaraçara-me inapelavelmente noarame farpado da Autoridade, ou “Alto!” Fora descoberto por uma das sentinelas ouespiões da Autoridade. O fogo que eu atrairia então seria provavelmente fatal. Nãopodia haver solução conciliatória. Agora, ou tinha êxito, ou fracassava.

A Assembléia Legislativa anunciou planos experimentais para levantar sua sessãode apresentação de projetos de lei na sexta-feira, 25 de janeiro de 1957. A subcomissãojudiciária da Assembléia havia dado entrada em seu relatório sobre a pena capital,atacando sua utilização e administração deficiente, como uma mancha nas “esplêndidasconquistas sociais” da Califórnia. Advogava-se energicamente legislações suspendendo apena de morte por um período experimental de cinco anos. Não havia risco envolvidona aprovação de uma moratória, notava o relatório. Além disso, “se por qualquerrazão, o experimento comprovar sua inoportunidade, a pena capital poderá serrestaurada.”

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Pessoalmente convencido de que a pena de morte não podia justificar-se comfundamentos morais ou científicos, mas reconhecendo haver uma “vasta diferença deopinião” entre legisladores, juízes, promotores públicos, “sheriffs”, advogados e o povoquanto ao uso, pelo Estado, de sua câmara de gás, o presidente dos trabalhos, Lester A.McMillan, introduziu três projetos ao mesmo tempo em que apresentava o relatório, osquais visavam: (1) a abolição completa da pena capital; (2) o estabelecimento de umamoratória de cinco anos em sentenças de morte; ou (3) exigir que os jurados fixassem,especificamente, a pena em seus vereditos em casos em que a pena de morte fosseaplicável. Seriam realizadas audiências sobre esses projetos depois que o Legislativoreiniciasse seus trabalhos, a 4 de março.

O News, de São Francisco, passou em revista algumas opiniões sobre o assunto, a18 de janeiro:

Se o temor da morte evitasse que os homens cometessem assassínios, a Califórniadeveria estar livre de crimes. Nós lideramos a Nação na execução de homicidas. Mas nãoestamos livres do crime.

A pena de morte não é o elemento dissuasor.Se a igualdade da justiça fosse aplicada em todos os nossos tribunais, todos os

criminosos seriam executados. Mas condenamos mais de cem criminosos por ano, eimpomos a pena de morte apenas a um punhado deles.

A justiça não é sempre igual.Este jornal acredita firmemente na punição rápida e certa para os criminosos. Mas

não podemos aceitar a pretensão de que a pena de morte vá deter a mão de um assassino– ou que a administração da justiça tenha sido igual em todo o Estado. Nem nós nem umagrande maioria de nossos peritos penais. Talvez seja cedo demais para a Califórnia abolir apena de morte. Mas nunca é cedo demais para se fazer uma experiência.

Entre as propostas submetidas à apreciação da Assembléia Legislativa há uma emprol de uma moratória de cinco anos para a pena capital.

O News registra o seu apoio àquele plano. Cremos que ele estabeleceria o que osperitos pensam ser verdade – que a pena de morte não impede o crime, e serve apenas aopropósito arcaico de vingança.

Assim o povo, através de seus representantes eleitos, agora tinha uma escolhabem definida a fazer.

Sim, isto poderia ser o último ano do carrasco da Califórnia, mas tambémoferecia a nauseante promessa de ser, para aquele formidável matador de homens que

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tinham matado, um ano recorde. Em 1955, nosso carrasco se havia distinguido pelaexecução de mais condenados do que quaisquer dos seus irmãos em Estadosconcorrentes. Então, 1956 fora um ano desanimador para ele. Só pudera pingar suaspílulas de cianureto em cinco desgraçados indivíduos e talvez tivesse até começado a seperguntar se o seu negócio tinha futuro. Afinal, o povo estava começando a olhar paraele com negras suspeitas. Ora, poder-se-ia quase pensar que seu trabalho não visavaaos melhores interesses da humanidade e não era agradável aos olhos do Deus-Todo-Poderoso.Mas agora, dia feliz, havia cinco fregueses com encontro marcado com ele em fevereiro.Pense um pouco nisso! Dois programas duplos, e depois um individual, em sextas-feirassucessivas – além de dois mais em março, sendo que um deles era uma atração bemespecial e altamente anunciada, e vários esperando para se marcarem datas, tão logo,quase que parecia, quando seu apinhado calendário o permitisse. Assim, se ele fosse,deixaria à Califórnia uma folha de serviço que o tornaria lembrado.

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CAPÍTULO 22UM JULGAMENTO HISTÓRICO

EM SUA COLUNA “ARQUIVO CONFIDENCIAL”, no Mirror News de Los Angeles, datadade 18 de janeiro, Paul Coates escreveu:

A pena de morte, segundo alguns supõem, age como elemento dissuasor doassassínio... mas ninguém jamais apresentou qualquer prova disso. E os fatos apontampara a direção exatamente contrária.

Seis estados norte-americanos e 24 nações aboliram a pena de morte. Em nenhumcaso houve um acentuado aumento no índice de homicídios. Em numerosos casos, as áreasde abolição mantiveram uma taxa de homicídios inferior à de territórios vizinhos. Osestados do nosso sul encontram-se entre os mais freqüentes utilizadores da pena demorte. No entanto suas estatísticas criminais continuam a ser as mais sangrentas domundo.

A existência da pena de morte, acredita-se, serviria como advertência aos assassinosem potencial. Assim, todos os anos, nos Estados Unidos, nós enforcamos, fuzilamos,eletrocutamos e gaseamos cerca de 70 assassinos. Nós nos entregamos a essa orgia deolho por olho, afirmamos, porque devemos dar um exemplo com esses criminosos. Masestaremos dando um exemplo de lei e de ordem? De respeito pela vida humana? Os fatosdão, claramente, a resposta. Por toda morte que nós, como a sociedade, infligimos, aspersonalidades homicidas em nosso meio matam uma centena de vezes.

Supomos que a existência da pena capital fará que nossos vizinhos homicidaspensem duas vezes antes de apertar o gatilho ou enfiar a faca em suas vítimas. Mas,entrevistas com milhares de condenados por assassínio revelaram que um homem queestá para matar não se encontra no estado de espírito de ligar para as conseqüências.

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“Não estava pensando em nada quando o fiz, estava apenas agindo”, contou-me,recentemente, um assassino de primeiro grau.

A pena capital não nos protege. Ela nos causa prejuízos.Ela nos impede de jamais corrigir erros grosseiros da Justiça. Sei que tais erros

existem. Tenho falado com pessoas cuja inocência foi provada depois de terem sidoenviadas para o Corredor da Morte. Elas me lembraram que a gente não pode pedirdesculpas a um homem morto.

Ela impede o trabalho de apreensão e acusação daqueles que são culpados deassassino. A polícia, os funcionários forenses e advogados de várias partes do País meinformaram que a gente pode conseguir maior cooperação de testemunhas – e dosjurados – em estados onde a pena de morte não está mais em uso.

E a pena de morte nos ilude ao fazer que pensemos que resolvemos de algumaforma o problema do crime violento, quando acabamos com o criminoso, depois que oprejuízo é causado. Deveria ser evidente que nossa única proteção está em pesquisas quepossam levar a uma prevenção da violência. E até que encontremos essa evasiva chavepara o problema, nosso único recurso prático é redobrarmos esforços na detenção deassassínios e no reforço das sanções em nosso sistema penal, de maneira que nenhumvilão seja devolvido à sociedade até que seja absolutamente seguro deixá-lo ir-se. Istosignificaria um intensivo programa de diagnosticar do ponto de vista psicológico aspessoas que cometem todas as formas de crimes violentos.

Muitos dos líderes das entidades penais e de cumprimento da lei da Califórnia,disseram-me, em particular, que sabem que a pena capital é um fracasso. Dizem que opúblico não tem a compreensão necessária para apreciar uma honestidade tão franca, eafirmam que não é bom, do ponto de vista político, falar dessa maneira, publicamente.

Mas eu não sou político. De modo que posso dizê-lo. Posso dizer que não nos vamostornar adultos e compreender que a pena capital é um fracasso. Um fiasco.

É puro assassínio de vingança. E a vingança é uma palavra suja e inútil.

O colunista Coates não é nenhuma jovem soluçante, nenhum sentimental. Nopassado ele não ficava atrás de ninguém no ataque verbal que dirigia contra mim.

Mas Coates, embora não me tope, é um homem de espírito inquiridor epenetrante, de consciência social e com a habilidade de admitir que sua abordagem deum problema social tem sido confusa. Ele assistiu a uma execução e ficou nauseadocom ela. Então, questionando a validade de seus próprios pontos de vista favoráveis àpena de morte e energicamente sustentados, ele começou a escavar à procura de todosos dados sobre a pena capital, e o que aprendeu lhe abriu os olhos. Em conseqüência,fez um dramático documentário em duas partes, sobre a pena de morte, para seu

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programa de televisão de alto índice de audiência, “Arquivo Confidencial”. Deixou que opúblico visse exatamente como é uma execução, levando o telespectador até a porta dacâmara de gás. Descobriu que as execuções legais não fazem sentido, e assim começouuma campanha para pôr o público a par dos fatos.

Por ter realizado um serviço público crucialmente necessário em uma épocacrucial, foi bombardeado com correspondência “que se refere a mim como um idiotatotal e sem esperança”. Ele esperava tal reação. “Por alguma razão,” escreveu, em suacoluna, “há uma parcela da sociedade que pode sempre ser levada a uma violentareação verbal pela mera sugestão de que a pena capital é uma ferramenta inútil einsensata de prevenção criminal”. Acrescentou. “Aliás, a execução legalizada estabeleceuma atmosfera legal que torna o assassínio aceitável, enquanto se possa racionalizaruma razão vitoriosa para ele.

“De forma que não adianta. E no entanto nós continuamos a praticá-lo.“Nós devemos fazê-lo de novo bem logo.”Então ele falou do jovem Billy Rupp, o rapaz de cérebro danificado, a quem eu

devotei tanto espaço em A Lei Quer Que Eu Morra, e que, incontestavelmente, comoCoates notara, era louco, embora não no antiquado sentido legal, mas com certeza deacordo com todas as definições médicas atuais. Isso, é claro, nada significou para ostribunais deste Estado, ou para nosso governador.

A coluna concluía:“Eis um estudo resumido do rapaz insano que vamos matar a 1.º de fevereiro.

Talvez sua morte faça você sentir-se melhor. Mas a mim, não.”Nem a mim, especialmente quando Billy trouxe um livro de bolso à minha cela,

durante o período de exercício. Eu permanecera na cela para trabalhar neste livro. Billygostava de carros; adorava falar sobre eles, mas poucos no Corredor estavam dispostosa dar ouvidos a um “garoto abobado” e gordo, com um cérebro que nem semprefuncionava direito. E assim fora a maior parte de sua vida. De maneira que ele nãoconfiava nas pessoas. Não acreditava que elas gostassem dele. Mas eu gostava, assimcomo Gene e Rod, os facínoras números dois e três do Corredor da Morte. Sempretínhamos tempo para ouvi-lo, e não nos surpreendíamos por podermos aprendermuito dele. A gente era capaz de perceber sua gratidão sem palavras, quando algumespírito-de-porco tentava gozá-lo, e Gene, Rod ou eu atacássemos o sabidão com suaspróprias armas.

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“Você leu a coluna que Coates escreveu a seu respeito, Bill?” perguntei.Ele meneou a cabeça. “O que dizia?”Eu deixei que ele a lesse. “Ele está procurando ajudá-lo, Bill, como sua irmã, seu

pai, seu advogado e uma porção de outras pessoas.”“Acho que eles vão me matar, de qualquer jeito”, disse Billy.Era uma declaração, e não uma queixa. Ele não odiava um mundo que lhe era

estranho e hostil. Mas seu advogado, Al Zirpoli, recusava-se a desistir. Tentara trazerum psiquiatra para entrevistar Billy, mas o diretor recusara permissão.

“Billy, quando você vir seu pai, diga-lhe que declarações juramentadas dequalquer um de nós daqui, ajudariam. Peça para que o sr. Zirpoli nos informe, e nóslhe daremos as declarações, quer o diretor queira, quer não.”

Eu estava mais convencido do que nunca de que sabia por que as boas almas e ostribunais desse estado demandavam vidas como as de Billy. Coates e pessoas como eleestavam em uma posição desvantajosa. Eram razoáveis, e assim tinham de depender defatos e do despertar da consciência social de seus concidadãos, enquanto seusoponentes não eram prejudicados por tal handicap. Os advogados do matem-nos-a-todos se consideravam livres para arengar e apelar para os temores, ódios, prevençõese suspeitas de seus semelhantes. Isto é o que havia conservado o embate tão unilateralaté a época.

De maneira que cresceu minha consideração de que eu estava fazendo a coisacerta – a única coisa possível, por mais “irracional” e grosseira pudesse parecer. Semeus motivos fossem compreendidos, não importaria que eu o fosse, ou não. Porémnão era fácil ser tão irracional ao ponto de ter nas mãos o poder absoluto de me salvar– pagando um preço – e, sem hesitações, recusar-me a fazê-lo. A parte ficava a me dizerque eu era um tolo, em especial durante uma entrevista com Rosalie, a 26 de janeiro.

Pouco antes de falar com ela, recebi uma mensagem que dizia: “O material quevocê queria está disponível. Quando apanhamos o resto?”

“George está ocupado?” perguntei a Rosalie. Sabia que ele estava lutando umaderradeira batalha para salvar o pequeno Bart Caritativo, o empregadinho filipino queestava programado para morrer junto com Billy Rupp no primeiro dia de fevereiro eque, embora de maneira diversa, era tão tragicamente desarranjado mentalmentequanto Billy. Bart ainda procurava desesperadamente entregar em pessoa suamensagem confidencial de Deus para o presidente dos Estados Unidos, a fim de salvar a

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Nação de seus “inimigos”. Mas é claro que, pela ridícula definição de insanidade legal,da Califórnia, Bart era um perfeito candidato à câmara de gás. A maioria dos juízesministros da Corte Suprema da Califórnia afirmava que estaria certo matá-lo; e se,como o fez, o diretor dissesse que ele era “legalmente são”, os tribunais não poderiaminterferir.

“Se puder, Rosalie, diga a George que é extremamente importante para mimfalar com ele o mais depressa possível.”

“Certo.”“E quero que você arranje uma lista dos nomes de todos os legisladores do

Sacramento nesta sessão da Assembléia, assim como determine quando a comissãojudiciária da Assembléia realizará audiências públicas sobre a lei da moratória da penade morte, depois de os legisladores voltarem ao trabalho, a 4 de março. Mais umacoisa: por favor, examine seus arquivos e as caixas de documentos que está guardandopara mim. Eis o que eu quero que você ponha em uma caixa separada.”

Ela tomava notas enquanto eu lhe falava. “Agora, srta. Rosalie Sue Asher, éevidente que a senhorita tem algo a dizer.”

“Sim – o caso. Você sabe que a Corte poderá denegar a remessa dos autos poruma razão que nada tem a ver com os méritos do caso.”

“Si,” disse eu, “Sei disso.”“George e eu tivemos várias conferências sobre o que deveria ser feito depois e

concordamos, considerando as provas de que dispomos, na Corte Suprema daCalifórnia, que a melhor medida seria renovar o ataque contra a constitucionalidade dalei de rapto como ela foi aplicada, ou talvez devesse dizer, mal aplicada, a fim de obtersuas duas condenações à morte, ou invocar o mandado de segurança do tribunalfederal distrital, nos termos do Título 28 do Código dos Estados Unidos.

“Achamos, também, que poderá valer a pena tentar conseguir novamente que ogovernador intervenha e insista em que você seja submetido a um exame compolígrafo e...”

“Pare!”, disse eu, calmamente. “Rosalie, se a Corte Suprema denegar o mandadode segurança, eu acabei com os tribunais. E nós nunca pediremos nada ao governadornovamente. Não lhe perguntaremos nem que horas são.”

“Mas isto é...”“Irracional? Você tem razão. Mas, ser irracional é uma forma das prerrogativas

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dos psicopatas. Mais ainda, eu nunca farei outro apelo por clemência do Executivo. Vouaté retirar meu pedido de teste com um detetor de mentiras. Por fim se a moratóriada pena de morte for jamais transformada em lei, eu me excluirei de qualquer pedidode clemência Executiva.”

“Você não estará desistindo?” Havia uma nota de desafio em sua voz.“Não, estou apenas começando a lutar mas, novamente, tenho de lutar da minha

própria maneira. Só que agora há uma diferença. Uma vez li algo que dizia que umhomem faz o que sabe que deve fazer, ou então não é um homem. Bem, sei o que devofazer. E se não o fizer, nunca mais me sentirei limpo. Nunca mais seria capaz de olharpara você sem sentir vergonha.

“Mas, Caryl, será que você não me pode contar? Acho que você confia em mim obastante.”

Eu tive uma risada áspera. “Vou lhe mostrar o quanto confio em você. Masprimeiro eu lhe pedirei somente que você me dê a sua palavra de honra que nuncarevelará o que eu lhe contar.”

Ela se mostrou cautelosa. “É algo que eu deva saber?”“É o nome, identidade e parte da história do Bandido da Luz Vermelha. O

principal, e um palhaço que esteve metido com ele, e também comigo, em umtrabalhinho diferente.”

Rosalie ficou tensa. Durante anos ela tentava me convencer de que eu deveriafalar e me salvar. Sua própria investigação havia levado bem perto da verdade. Mas,irritantemente, não conseguia alcançar a verdade. E a resposta era tão evidente queninguém a havia imaginado.

“Você nunca me contará isso se eu não a der?”“Nunca. E nunca me oferecerei para lhe contar isso, de novo. A oferta é válida

apenas enquanto durar essa nossa entrevista.”Ela me deu sua palavra. Em troca, em sentenças incisivas e uniformes, dei-lhe o

nome e expliquei-lhe os fatos de importância. Também lhe contei do documentário eoutras provas que eu tinha e, de maneira geral como, não por acidente, eu o tinhaconseguido. Através de amigos eu tinha estado ocupado. Arriscara-me muito, masvencera.

Rosalie manteve a voz baixa e normal com um tremendo esforço.“Caryl – por Deus – você compreende a posição em que isso me coloca?”

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“Naturalmente.”Estava fechando todas as portas de saída...

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POST SCRIPTUM

10 de maio de 1957

Sr. Caryl ChessmanPO Box 66565San Quentin, Califórnia

Prezado Caryl:

“Escrever um post-scriptum para A Face Cruel da Justiça é inconcebível;qualquer tentativa de minha parte para terminar seu livro com esforços literáriospróprios somente serviria como o anticlímax do ano. Mas seus leitores gostarão desaber, como você próprio poderá muito bem sabê-lo, exatamente o que tem acontecidodesde que os guardas revistaram sua cela e encontraram a cópia deste manuscrito,uma ação que você previra (com exatidão) muito antes, neste livro.

Uma vez que eu soube de seu pedido para que eu preparasse um “Post-Scriptum”através da carta incluída neste livro, o original da qual não cheguei a receber, confioem que você aprovará o meu empréstimo da mesma forma para cumprir suadeterminação. Assim, vou escrever-lhe essa carta e esperar que as autoridadeseventualmente lhe permitam tê-la.

Como você sabe, a turma regular de revista rotineiramente revistou sua cela namanhã de quarta-feira, 13 de fevereiro de 1957, e nada encontrou da natureza de“contrabando”. E, no entanto, naquela mesma tarde, pouco depois da uma e meia,

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enquanto o Corredor da Morte recebia sua segunda refeição do dia, dois guardasapareceram subitamente e o transferiram para outra cela adjacente e vazia. Depoisdisso, durante três horas, os guardas procederam a uma busca em sua cela eexaminaram tudo com microscópica atenção aos pormenores.

Eram dez para as quatro quando você foi levado de volta à agora mundialmentefamosa Cela 2455. Você rapidamente verificou que uma cópia de carbono quasecompleta de A Face Cruel da Justiça havia sido descoberta e removida, juntamentecom cópias de cartas para o governador Goodwin Knight, o sr. McGee, e eu próprio.

Você sabe também, que na manhã seguinte, quinta-feira, 14 de fevereiro, às09:30 horas aproximadamente, o oficial encarregado do Corredor da Morte lhe disse:“Apronte-se. Você vai lá embaixo no escritório do Capitão.”

Você terminou de barbear-se, tomou o café de um gole, e dois guardas oescoltearam ao escritório do Diretor Associado, onde você compareceu perante umtribunal disciplinar, composto de vários dos funcionários da penitenciária.

A acusação feita sob os termos do regulamento D-1206, “contrabando”, foi lida:estar de posse de um manuscrito não autorizado.

Perguntaram-lhe se você queria apresentar uma defesa, mas você declinou. Vocêadmitiu prontamente, porém, que o manuscrito fora encontrado em sua cela, e quevocê era o seu autor. Então o Diretor disse que tinha apenas duas perguntas.

“Onde está o original deste manuscrito?”“Fora da penitenciária,” replicou você.“Onde estão os originais das três cartas?”“Fora da penitenciária.”Você foi então informado que era recomendação da Comissão Disciplinar que

você fosse confinado na Unidade de Isolamento durante 29 dias, e que sua máquina deescrever fosse confiscada. Também se deu a entender que sua cela talvez fosse mudada.

Voltando ao Corredor da Morte, você recebeu um conjunto de roupa marcadapara a solitária, e um par de chinelas de solitária (feitas de cobertores velhos) e entãofoi confinado em uma das celas da Unidade de Isolamento, atrás do Corredor da Morte.Foi colocado na cela 2489. A cela era equipada, mas de maneira simples: vaso sanitário,pia, e prancha de cimento à guisa de catre. Mais à tarde, um colchão e dois cobertoreslhe eram entregues, e toda manhã, às 08:05 ou 08:10 horas, eles tinham de serempilhados no lado mais distante do chão do corredor, junto ao passadiço de vigia,

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entelado e gradeado.Você soube que trinta guardas, ainda naquela tarde, fizeram, no Corredor da

Morte, incluindo a Cela 2455, a revista mais minuciosa na história de San Quentin.A 15 de fevereiro, sexta-feira, um dos condenados que o ajudara a ocultar o

manuscrito (como você indicara anteriormente neste livro) também foi trazido para aUnidade de Isolamento, acusado de ajudá-lo e encorajá-lo. Na terça-feira seguinte, elecompareceu perante a Comissão Disciplinar, foi julgado e considerado culpado daacusação, e também recebeu uma sentença de vinte e nove dias na solitária.

Você fez certos pedidos: poderia escrever ou telegrafar para seus advogados? Equanto a seus papéis legais? Suas propriedades pessoais? O arquivo tratando daadministração dos bens de seu falecido pai? Além disso, você solicitou, ainda usando asbases legais com as quais estava tão familiarizado, o direito de dirigir uma petição aostribunais requisitando suas propriedades e o direito de tratar dos problemas essenciaisà sua situaçào – no caso, uma questão de vida ou morte.

Você recebeu uma resposta rápida. Faça todos os seus pedidos por escrito, aoDiretor. Ele os estudará.

Foi o que você fez, imediatamente.Naquela noite, a carta com os pedidos, escrita com o toco de um lápis em uma

única folha de papel que lhe fora fornecida para aquele propósito, foi-lhe devolvida porum tenente da penitenciária. A carta, conforme disse que fora instruído a lhe informar,não estava suficientemente “respeitosa”. Ele não lhe podia fornecer mais pormenores.E ah, sim, o escritório do Diretor estaria fechado agora durante o fim-de-semana e,sim, só o Diretor, pessoalmente, tinha autoridade para passar adiante os seus“pedidos”. Você soube posteriormente que o Diretor iria deixar o serviço durante duassemanas, só reassumindo o cargo a 3 de março, domingo.

Você percorreu a cela de lá para cá, e chegou à conclusão a que tantas vezes temchegado: tornava-se aconselhável a adoção de medidas judiciais. A validade de suaconclusão foi acentuada no dia seguinte, quando você soube que todos os seus papéis epropriedades pessoais haviams sido tirados, em um carrinho, da Cela 2455 doCorredor da Morte. O sargento confirmou isso, e lhe dissera que “eles” osconservariam até a ocasião em que “eles” estivessem dispostos a devolvê-los, e seestivessem.

Também lhe contaram, então, que “eles” tinham estado em contato comigo, e

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que eu dissera que nenhum manuscrito havia chegado às minhas mãos e que eu odevolveria à prisão no momento em que chegasse. Você concordou com um aceno decabeça e sorriu.

Você soube, através de Bernice Freeman, no domingo, 17 de fevereiro, quenenhuma medida legal havia dado entrada na Corte Superior do Condado de Marin,relativa ao livro. E você lhe disse que ela, sendo boa jornalista, deveria aguardar talação; pois que ela seria apresentada. Ela duvidou. Como poderia dar entrada? Quem aapresentaria se você estava momentaneamente sem contato com seus advogados? MasBernice aguardou.

Foi na quarta-feira de manhã, 20 de fevereiro, que seu pedido de habeas corpus,de onze “páginas”, foi apresentado perante o meritíssimo Thomas F. Keating. Foraescrito com um toco de lápis de “contrabando”, em papel higiênico! E ele, também,tinha sido contrabandeado para fora – da solitária!

Na tarde daquela mesma quarta-feira, o juiz Keating denegou sua petição, e umaturma de revista veio à Unidade de Isolamento. Todas as celas foram revistadas, e vocêfoi completamente despido; seu corpo e sua cela foram revistados polegada a polegada.Nada foi encontrado.

Uma nova acusação e um novo julgamento vieram, em resultado daquelaextraordinária petição, e você foi acusado de violar o Regulamento n.o Q. 2401. Você“abusara” do privilégio da correspondência. O que você alegou? Nada. As leis do Estadoda Califórnia lhe davam o direito de pedir um habeas corpus à sua vontade, afirmavavocê, e você o fizera.

Considerado culpado, foi sentenciado a mais vinte dias no isolamento.Como você conseguira fazer a petição sair? Você se recusou a responder, e

tornou claro que nada o induziria a revelar como.“Você gostaria que nós usássemos de violência, não?” disse um dos funcionários.Você deu de ombros.O preço da liberdade de palavra e de petições de habeas corpus é alto, pois você

então perdeu todos os seus direitos de visitas pessoais, e o direito a correspondênciaextra-legal.

Ainda a 18 de março, você estava tentando escrever para seus advogados, enaquele dia você apresentou ao escritório do Diretor, para ser posta no correio, umapetição de habeas corpus, depois de ter reconhecido sua firma. Era dirigida ao

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Tribunal Superior do Condado de Marin. Solicitava um mandado que lhe permitisseescrever para seus advogados relativamente à sua situação. Você não podia fazê-lo, e ascartas para seus advogados lhe eram devolvidas.

Os fatos acima, Caryl, você conhecia; seus leitores, não. Há alguns fatos quetalvez você não conheça, os quais exporei brevemente.

A primeira coisa que soubemos em Critics Associated, de A Face Cruel da Justiça,foi um telegrama do diretor Teets, perguntando se havíamos recebido o manuscrito e,caso o tivéssemos, por favor poderíamos devolvê-lo.

Pouco depois, um representante do Coletor Federal de Imposto de Renda nosvisitou para tentar requisitar o manuscrito sob a transparente alegação de pagamentode impostos vencidos e não saldados. Dois fatos frustraram essa tentativa: um, que nãotínhamos o manuscrito; o outro, que os impostos haviam sido pagos dois dias antes.Nenhum plano, como você sabe, motivou isso. Foi simplesmente que chegaram as“royalties” e, em virtude disso, houve fundos para pagar os impostos. Segundo suasinstruções, os impostos foram pagos imediatamente.

As agências noticiosas, colunistas e repórteres de muitos jornais de todo omundo queriam saber do seu novo livro e da história de como ele saíra da prisão. Nós,e nosso editor, fomos inundados com telefonemas e pedidos de informação.

Quando o Procurador Geral assistente da Califórnia, Clarence Linn, esteve emNova York, conversamos sobre seu livro e a situação relativa a seu envio para nós.Novamente fomos solicitados a devolver sua propriedade às autoridades.

Você estava presente quando o manuscrito, plenamente autenticado, cada páginacom sua assinatura e cada página com suas impressões digitais, deixou a Cela 2455, doCorredor da Morte. Eu estava presente quando, cerca de 10:30 horas de uma manhã,quase três semanas depois do telegrama do diretor Teets, um menininho entregou umpacote, em papel de embrulho comum, sem marcas, contendo A Face Cruel da Justiça.

Depois que eu próprio li o manuscrito, naquele mesmo dia, entreguei-o a MonroeStearns, nosso editor, que me notificou, dentro de quarenta e oito horas, que PrenticeHall exerceria sua opção para publicar o livro. Então seguiu-se um frenético mês denegociações entre ele, o representante legal de George Davis em Nova York, e eu,incluindo uma viagem de Monroe Stearns a San Francisco para obter de você, atravésde George Davis, a essência dos capítulos e páginas que você tivera de destruir, emvirtude de uma súbita revista do Corredor da Morte. Monroe então se encarregou do

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trabalho editorial necessário para preencher ou cobrir essas lacunas, e pôs omanuscrito em um programa de publicação urgente.

Enquanto escrevo esta, não sabemos do resultado de sua precária posição.O grande júri que está tentando descobrir o porquê do contrabandeamento do

manuscrito para fora do Corredor da Morte ainda não completou sua investigação.Não podemos imaginar quais serão as suas conclusões. Mas agora, a Corte Suprema dosEstados Unidos lhe concedeu uma audiência, a ser realizada a 13 de maio, segundafeira: e não sabemos quanto tempo levará antes que sua decisão seja anunciada.

É minha mais sincera esperança que essse Post Scriptum obtenha sua aprovação,e atualize seus leitores nos acontecimentos que tiveram lugar mas que você não pôdeincorporar em seu manuscrito. Você tem, literalmente, milhões de leitores, em muitaslinguagens, e seu destino está sendo acompanhado em grande parte do mundo.

Qualquer que seja o resultado, Caryl, sua luta pela sobrevivência, que começouquando você não tinha amigos ou dinheiro, e que tem sido constantemente suportadapor sua tenacidade pessoal e espírito infatigável, servirá como um exemplo, para todosnós, e a incontáveis milhares que estudarem seu extraordinário caso durante gerações,da vontade de luta de um homem, contra obstáculos insondáveis.

Cordialmente,

Joseph E. LohgstrethCritics AssociatedR. R. 1., PO Box 209Richmond, Indiana

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CONTRACAPA

Opiniões da Imprensa norte-americana sobre

2455 – CELA DA MORTE

“Notável adição aos anais do crime... livro dramático e interessanOrville Prescott, “The New York Times”

“Um dos melhores livros sobre o assunto... tem uma significação pScoot O’Dell, “Los Angeles Daily News”

“Impressionante documento, notavelmente escrito... absorvente equestões que a sociedade nunca respondeu satisfatoriamente.”“Washington Star”

“Esta história tenebrosamente fascinante... contribuiu paracriminoso psicopata.”John Hutchens, “The New York Herald Tribune”

“Um dos livros mais invulgares jamais escritos. Mais do que umliterária excelentemente escrita... Uma voz que precisa ser ouvidasobreviver.Rita I. Smith, “Buffalo New York Courier-Express”

n

Caryl Chessma

te.”

ara todos nós.”

inquietante... levanta

a compreensão do

a prestação de contas se a sociedade deseja

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“Um dos mais pujantes livros que este crítico já leu.”Robert K. Kushner, “Paterson N. J. Morning Call”

“Documento liberalmente enriquecido e de leitura atraente... com notáveiscontribuições no campo do pensamento criminológico.”Frank O’Leary, “New York Times”

“Chessman adicionou valioso capítulo aos volumes sobre tratamento de criminosos, apena de morte e sobre todo o sistema penal.”Barbara Wolfe, “Indianapolis Star”

“Extraordinária autobiografia... Absorvente, inquietante, levanta questões que asociedade nunca respondeu completamente... Fascinante, minucioso relatório deaventuras criminais.”Harry S. Watson, “Milwaukee Journal”

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Do mesmo autor:

2455 – CELA DA MORTEOS PRIMEIROS SEIS ANOS NO CUBÍCULO FATAL

Que é que se pode dizer sobre este notável livro? Os superlativos já foramexaustivamente empregados pelos mais sombrios e respeitáveis críticos literários dosEstados Unidos, mas nada do que eles ou outras pessoas possam ter dito faz justiça aoimpacto que a obra de Chessman causa no leitor. Aqui está um homem condenado àmorte em 1948, acusado de crimes vis. Ele é, ou confessou ter sido, um desordeiromaluco, sem pretensões de ser educado ou refinado. Entretanto, enquanto estas linhasestão sendo escritas, ele ainda vive (embora possa ser executado antes que este livrotenha sido impresso). E vive como resultado de um esforço quase sobre-humano paradominar o labirinto das leis e suspender indefinidamente sua execução. Durante oitoanos Chessman tem feito, brilhantemente, sua própria defesa. Dominou mais do que asprofundezas da lei: encontrou tempo para ler profusamente e provou ser um escritornato, com um estilo que possui atração hipnótica. E em sua própria vida Chessman temassunto para o exercício de seus geniais dotes literários.

Não importa que Caryl Chessman morra dentro de alguns dias, algumas semanas oumeses: “2455 – Cela da Morte” continuará sendo inimitável, terrificante auto-retratode um criminoso e do novo homem que se moldou à beira da câmara de gás.

A LEI QUER QUE EU MORRA (Trial by Ordeal)

Este livro é a história do sentenciado à pena capital, dos homens que o cercam e oterror que inspira a atmosfera em San Quentin.

Chessman – já não mais o psicopata retratado em “2455 – Cela da Morte” – não pedeperdão para ele. Trabalhou 18 horas por dia na prisão para completar essa tremendarevelação de um mundo que a sociedade precisa conhecer para não perder aconsciência.