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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
MESTRADO
A DIMENSÃO DIONISÍACA DO UNO-PRIMORDIAL NOS PRIMEIROS ESCRITOS DE NIETZSCHE
CURITIBA 2006
HAROLDO OSMAR DE PAULA JÚNIOR
A DIMENSÃO DIONISÍACA DO UNO-PRIMORDIAL NOS PRIMEIROS ESCRITOS DE NIETZSCHE
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Filosofia, na linha de pesquisa Ética, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Antonio Edmilson Paschoal
CURITIBA 2006
ii
DEDICATÓRIA
Em especial e sem ressalvas ou palavras prolongadas, as quais jamais
reproduziriam o sentimento que esta menção representa, à Angelita Lombarde
Divino, minha esposa e à Aline Candido de Paula, minha filha.
iii
AGRADECIMENTOS
À minha família e aos amigos, que souberam reconhecer em minha ausência
um intercurso necessário ao crescimento e aperfeiçoamento que está longe de ser
uma conquista pessoal, mas antes coletiva, e que é merecedora de comemoração
de uma história de vida.
Ao meu orientador Prof. Dr. Antonio Edmilson Paschoal, que desde a
graduação exercita a paciência/sabedoria e a dedicação desmedida para que o
mínimo êxito pudesse ser alcançado por este procrastinador aluno/discípulo.
Aos colegas do exercício de docência na Pontifícia Universidade Católica do
Paraná, PUCPR, que sempre contribuíram para sanar as necessidades
invariavelmente urgentes impostas pela nossa incompletude originária. O
companheirismo faz dar um sentido especial a cada conquista pessoal, que é, em
última instância, gregária.
Aos amigos que, fora do convívio profissional e oriundos de áreas distintas à
filosofia, tiveram pela sua solidariedade uma contribuição indelével na realização
deste trabalho.
iv
Bem-aventurado o povo dos helenos! Quão grande deve ter
sido entre vós Dionísio, se o deus de Delos considera
necessárias tais magias para curar vossa folia ditirâmbica!
(Nietzsche, na última página de
O nascimento da tragédia)
v
SUMÁRIO
RESUMO............................................................................................................... vii
ABSTRACT........................................................................................................... viii
INTRODUÇÃO....................................................................................................... 1
1 OS PRIMEIROS ESCRITOS DE NIETZSCHE E A TEORIA DO UNO-PRIMORDIAL...............................................................................................
6
1.1 Contextualização filosófica: influências...................................................... 6
1.2 A tragédia grega e a filosofia nietzschiana.................................................. 18
1.3 A teoria do Uno-primordial............................................................................... 32
2 A VONTADE EM SCHOPENHAUER E O UNO-PRIMORDIAL EM NIETZSCHE...........................................................................................................
46
2.1 A diferença entre a vontade em Schopenhauer e o Uno-primordial em Nietzsche.............................................................................................
46
2.2 Nietzsche e a superação do pessimismo em Schopenhauer.................
54
3 A MÚSICA DIONISÍACA E O PAPEL DO CORO NA TRAGÉDIA GREGA – UMA MANIFESTAÇÃO DO UNO-PRIMORDIAL................................................
68 3.1 As pulsões artísticas apolínea e dionisíaca e a música trágica...........
69
3.2 O coro como manifestação do Uno-primordial na tragédia grega.......
75
vi
4 O MÚLTIPLO E O DEVIR EM HERÁCLITO – A INTUIÇÃO COMO ACESSO AO UNO-PRIMORDIAL........................................................................................
88
4.1 Heráclito, o filósofo intuitivo........................................................................... 88
4.2 O múltiplo e o devir ........................................................................................... 97
CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................
108
REFERÊNCIAS................................................................................................................ 117
vii
RESUMO
O presente trabalho é uma investigação sobre a dimensão dionisíaca na tragédia
grega, encontrada na produção filosófica do jovem Nietzsche, no período entre 1870
e 1876. Tem como ponto de partida uma reflexão sobre a Teoria do Uno-primordial e
sua natureza dionisíaca, apresentada especialmente em O nascimento da tragédia
(1872). A arte trágica é apontada pelo filósofo como fundamento de uma experiência
autêntica, vivida pelos gregos da Antiguidade, e que configura uma atitude afirmativa
da vida, frente à inexorável experiência de dor e contradição originários. A metafísica
de artista tem na coexistência das duas pulsões da vida, representadas pelos deuses
Apolo e Dionísio, em constante oposição, a dinâmica que corresponde à construção
e à destruição, à dor e ao prazer, à consciência e à embriaguez, que caracteriza o
Uno-primordial. Ao analisarem-se os pressupostos que sustentam os escritos do
primeiro Nietzsche, em relação a este tema, constatou-se a interface necessária
entre a temática em torno do nascimento e da morte da tragédia grega, em especial
à expulsão da música do palco trágico e a crítica à racionalidade conceitual
instaurada por Sócrates. Nietzsche sustenta que a intuição é o instrumento do
filósofo para conceber a dimensão estética e primitiva do Uno-primordial, em sua
irracionalidade e tragicidade, assumindo a aparência como mais importante que a
essência, justificando o mundo como fenômeno estético e apresentando Dionísio,
deus da embriaguez, do inconsciente e da desmesura, como força plasmadora do
universo. Nesta pesquisa, o diálogo entre Nietzsche e a civilização grega pré-
socrática aponta para um filósofo que avalia a cultura e a própria existência a partir
da ótica da arte. Percebeu-se seu esforço em justificar a vida a partir da perspectiva
estética encontrada na arte trágica e a ênfase dada à dimensão dionisíaca do Uno-
primordial.
viii
ABSTRACT
The present work is an investigation about the Dionysian dimension in Greek tragedy,
found in Nietzsche's youth's philosophical production, written between 1870 and
1876. Has as a starting point a reflection on the Ur-Ein Theorie and its Dionysian
nature, especially presented in Die Geburt der Tragödie oder Griechentum und
Pessimismus (1872). The tragic art is pointed by the philosopher as the foundation of
an authentic experience, lived by the Greeks of the Antiquity, which configures an
affirmative attitude of life, in opposite to the inexorable pain experience and original
contradiction. The artist's metaphysics has in the coexistence of the two impulses of
life, represented by the gods Apollo and Dionysius, in constant opposition, the
dynamics that corresponds to construction and destruction, pain and pleasure,
conscience and ecstasy, which characterize the Ur-Ein. By analysing the
presuppositions which sustain the writings of first Nietzsche concerning this theme,
the necessary interface was verified among the thematic around the birth and the
death of the Greek tragedy, especially the expulsion of the music of the tragic stage,
and the critic to the conceptual rationality established by Socrates. Nietzsche sustains
that the intuition is the philosopher's instrument to conceive the aesthetic and
primitive dimension of the Ur-Ein, in its irrationality and tragicity, assuming
appearance as more important than essence, justifying the world as an aesthetic
phenomenon and presenting Dionysius, god of ecstasy, unconscious and excess, as
a universe's shaping force. In this research, the dialogue between Nietzsche and the
Greek pre-socratic civilization points to a philosopher that evaluates culture and
existence from the optics of the art. His effort in justifying life starting from the
aesthetic perspective found in the tragic art was noticed, as well as the emphasis
given to the Dionysian dimension of the Ur-Ein.
INTRODUÇÃO
A problemática concernente aos primeiros escritos de Friedrich Wilhelm
Nietzsche (1844-1900) ocupa lugar central neste trabalho, tendo como foco especial
a obra O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Nesse escrito, são
abordados a apresentação da arte trágica como expressão das pulsões artísticas
figuradas pelos deuses gregos Apolo e Dionísio; a crítica à racionalidade conceitual,
instaurada por Sócrates e Platão; e a proposição de Nietzsche em ler o seu tempo
histórico a partir da enaltecida fase da cultura grega. No presente trabalho, serão
examinadas as duas primeiras, tendo como foco de pesquisa a recorrente noção do
termo Uno-primordial no livro em questão e em algumas outras obras de sua
primeira fase.
Dentre os assuntos fundamentais explorados pelo autor no conjunto de sua
obra e, mais especificamente, na sua primeira fase, serão estudados, nesta
investigação: a conformidade da música e das artes representativas com a vida; a
questão do pessimismo e a justificativa da existência; a tragédia grega e a teoria do
Uno-primordial em relação à sua filosofia. Todos esses elementos imbuídos da
dimensão dionisíaca.
A pergunta à qual esta investigação pretende responder e que constitui o
problema da pesquisa é: se Nietzsche enfatiza, em sua metafísica de artista, o
equilíbrio e a coexistência das pulsões apolínea e dionisíaca como base para a
compreensão da existência, por que acentua o caráter dionisíaco em sua obra?
A hipótese a ser examinada é a de que na relação entre Apolo e Dionísio há
uma oposição, mas não excludente e sim complementar. Não obstante, é a
2
dimensão dionisíaca que permite a compreensão desta oposição, pelo caráter
transformador que implica, e que conduz à intuição de um fundo originário ou a uma
essência indizível e racionalmente inacessível, que em Nietzsche aparece como
Uno-primordial.
Sobre a teoria do Uno-primordial, o propósito da presente pesquisa não tem
como base uma especulação sobre uma provável contradição do autor ao recorrer a
uma “noção metafísica” sobre a qual teceu tão violentamente várias críticas ao longo
de sua produção filosófica. É, porém, entender o papel desta teoria nos escritos do
filósofo, uma vez que aparece apenas no início da sua produção. Outrossim,
constatou-se ao longo desta pesquisa, que Nietzsche relaciona o nascimento da
tragédia com a música, a partir da metafísica de artista. Ou, em outras palavras, a
tese do Uno-primordial é apresentada como fundamento de uma reflexão sobre a
cultura a partir da arte.
O filósofo constrói uma cosmovisão na qual o conceito Uno-primordial tem
recorrência, configurando uma teoria. Esta abrange o entrelaçamento de diversos
temas, entre eles a oposição entre os princípios apolíneo e dionisíaco, a intuição
como instrumento de investigação da filosofia, a crítica à racionalidade e a primazia
da arte sobre a ciência, a idéia de permanente transformação ou devir e a dimensão
dionisíaca como cerne dessa transformação.
Nesse contexto, o próprio Nietzsche afirma, na Seção 21 da sua obra O
nascimento da tragédia, a música dionisíaca como uma das manifestações artísticas
de mais alta expressão da vida e em consonância com essa dimensão primordial.
Não se pode ignorar o fato de que a música, a palavra e a representação formavam
um todo expressivo indivisível na cultura grega. Ao contrário, para Nietzsche e para
o seu contexto histórico-cultural, e em especial nos países germânicos, a música,
3
em si, era tida como a mais nobre manifestação artística. Deve-se considerar, por
fim, a importância que a música tinha no pensamento do filósofo.
A teoria do Uno-primordial, em Nietzsche, está intimamente ligada à tragédia
grega e ao papel do coro no palco da representação, à intuição como instrumento de
investigação intelectual sobre a realidade, à natureza, tida como “mãe do ser” e à
metafísica de artista, vista como a dimensão dionisíaca reabilitada. O fio condutor
desta pesquisa é a reflexão sobre a tensão e o equilíbrio entre Apolo e Dionísio,
como apontado pelo filósofo, e o possível desequilíbrio entre esses deuses, visto
que, com a socratização, a música dionisíaca foi expulsa do palco da tragédia.
Ao termo Uno-primordial, o filósofo confere uma noção de ordem ontológica,
essencial repleta de dor e contradição, concomitantemente a um supremo prazer e
inconsciência. Ou seja, um plano originário, que tem suas manifestações no mundo
das aparências e, nele, cumpre o papel de redenção e cura para o sofrimento.
Nesse contexto, a música é uma manifestação deste plano originário no mundo
fenomênico, traduzindo-o e corporificando-o. Essa concepção só pode ser percebida
de forma intuitiva e não lógica ou racional.
O primeiro capítulo da presente pesquisa tem como função situar Nietzsche
nas suas influências filosóficas fundamentais, bem como os principais autores
presentes em suas reflexões: Arthur Schopenhauer, os poetas e pensadores gregos
trágicos, como Ésquilo, Sófocles e Eurípides, Anaximandro, Heráclito e Sócrates, no
campo da filosofia, e Richard Wagner e a tragédia ática, no campo da música. Não
tem como alvo a discussão sobre a originalidade ou não de determinados preceitos
ou mesmo a linguagem nietzschiana. Serão abordados o legado do pessimismo
schopenhaueriano e o romantismo da época, bem como a crítica de Nietzsche à sua
primeira obra, O nascimento da tragédia, publicada em 1872. Essa crítica foi
4
publicada somente em 1886, no prefácio que escreveu para a segunda edição do
livro, prefácio este intitulado Tentativa de auto-crítica. O próprio autor, por tê-lo
escrito bem mais tarde e à luz de um amadurecimento filosófico, não o chama de
prefácio, mas de posfácio, referindo-se ao seu primeiro livro de forma um tanto
severa, porém, reeditando-o, o que demonstra que, apesar da sua crítica e auto-
crítica, reiterava o seu conteúdo.
O segundo capítulo desta investigação trata de esclarecer as diferenças entre
o conceito de vontade em Schopenhauer e a noção do Uno-primordial em Nietzsche.
Isso, tendo em vista que tal distinção faz-se necessária para compreender o tema
proposto, para entender o conceito de metafísica de artista e, assim, aproximar-se
da arte como ela é vista por Nietzsche: oposta à ciência e à moral.
O terceiro capítulo tem a dimensão musical como preocupação central,
partindo da metafísica de artista e de sua relação com as dimensões apolíneo-
dionisíacas na tragédia grega e, em especial, no papel do coro no palco trágico. Ou
seja, como Nietzsche entende e elege a arte como critério de avaliação da vida. A
morte da tragédia grega configurou-se como que fundamental na pesquisa para
compreender o que se perdeu, quando, a partir de Eurípides e Sócrates, a tradição
filosófica se nega a conceber a dimensão dionisíaca e a escolha da racionalidade
passa a ter ordem no cenário do pensamento ocidental.
O quarto capítulo apresenta a herança do homem intuitivo, de Heráclito, e sua
noção do devir e do múltiplo, enquanto integrados ao conceito do Uno-primordial e
sua natureza inconsciente, dinâmica e transformadora. Nietzsche, ao resgatar a
intuição como instrumento de investigação filosófica, aponta o caminho para a
percepção do Uno-primordial. Ao não recorrer à razão e à ciência, características da
socratização, conduz para a inocência da criança no jogo da construção e da
5
destruição da existência, sem recair na culpa protagonizada pela cultura do mundo
ocidental.
Por fim, nas Considerações Finais, buscou-se estabelecer relações entre os
objetivos propostos e os resultados obtidos no decorrer da pesquisa, em que se
recorreu, excepcionalmente, a um livro escrito em 1888, Ecce Homo: como se torna
o que é. Nesta obra, a autobiografia filosófica de Nietzsche, à luz de uma distância
ímpar de seu primeiro livro, mais uma vez o autor se auto-avalia e distingue os
elementos que caracterizam uma originalidade em sua produção filosófica.
De maneira geral, pôde-se observar a ambigüidade e a coexistência das
dimensões apolínea e dionisíaca, sempre em constante oposição e reconciliação,
caracterizando ao mesmo tempo a tragédia grega, a metafísica de artista, a música
dionisíaca e a intuição heraclitiana como acesso ao Uno-primordial.
6
1 OS PRIMEIROS ESCRITOS DE NIETZSCHE E A
TEORIA DO UNO-PRIMORDIAL
São abordados neste capítulo, inicialmente, alguns aspectos pertinentes às
influências que o autor recebeu de sua época, com as suas características ligadas
ao pessimismo filosófico schopenhaueriano e ao romantismo wagneriano, bem como
a sua contribuição mediante a produção intelectual filosófica, em especial de sua
primeira fase.
Em seguida, são apresentadas a tragédia grega e sua relevância naquilo que
Nietzsche denomina filosofia trágica. Suas características ligadas à ambigüidade e à
contradição retratam a própria natureza humana e são apresentadas pelo filósofo na
personificação dos deuses Apolo e Dionísio.
Ao finalizar o primeiro capítulo, é realizada uma exposição sobre a teoria do
Uno-primordial no primeiro Nietzsche, relacionada à dor originária, que tem na
projeção da aparência a sua manifestação como processo artístico. Daí a natureza
da tragédia grega, intimamente ligada à tragicidade da existência.
1.1 Contextualização filosófica: influências
Certamente, existem outros meios de se
encontrar a si mesmo, de escapar do
aturdimento no qual nos colocamos
habitualmente, como envoltos numa nuvem
sombria, mas não conheço coisa melhor do
que lembrar dos nossos mestres educadores.
7
É por isso que vou lembrar hoje o nome do
único professor, único mestre de quem eu posso
me orgulhar, Arthur Schopenhauer. (Nietzsche)1
Apesar de proximidades e semelhanças temáticas no decorrer de toda a sua
trajetória filosófica, Nietzsche se submete a autocríticas e re-interpretações de suas
próprias obras. As mudanças decorrentes dessas avaliações do seu próprio
pensamento permitem aos seus estudiosos identificar fases ou períodos distintos.
Porém, a idéia de periodização dos seus escritos, enquanto compartimentos, não é
aceita por todos os seus leitores,2 pois o próprio filósofo não compreendia seus
trabalhos de forma fragmentada e, em especial, não os tomava como frutos de
etapas evolutivas.3
A discussão sobre como ler Nietzsche, apresentada por Scarlett Marton no
livro: Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos, elucida a polêmica sobre
a periodização dos escritos filosóficos do filósofo. Nele, a autora apresenta as
posições de Klossowski, Deleuze, Lyotard, Löwith, Andler, Jaspers, Kaufmann,
Hartmann, Granier, Fink, Strong e Heidegger, entre outros.
No estudo de Marton, que traz uma demarcação dos comentaristas acerca da
obra nietzschiana, destaca-se Karl Löwith, que sugere uma leitura pontual sobre
Nietzsche e alerta para o fato de que o mesmo reexaminou seus próprios escritos
nos prefácios de seus livros publicados e em sua autobiografia Ecce homo, fazendo,
assim, um balanço de seu próprio pensamento. Este estudioso de Nietzsche
1 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. III Consideração intempestiva: Schopenhauer educador. In: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Escritos sobre Educação. Trad., apres. e notas: Noéli Correia de Melo Sobrinho. São Paulo: Loyola, 2003. p. 142. 2 O texto aqui apresentado com a exposição sobre a periodização e as primeiras influências sofridas pelo autor tem como objetivo discernir didaticamente o campo de pesquisa, pois os conceitos habituais nos estudos de Nietzsche, quando abrangem o todo de sua obra, não estão presentes na primeira fase. Nem tampouco há concordância quanto às datas de periodização. 3 MARTON, Scarlett. Nietzsche: a transvaloração dos valores. São Paulo: Moderna, 1993. p. 48.
8
descarta as posições de ir além do texto, buscando a sua “força exterior”, como
sugere Deleuze; ou mesmo a partir dos textos do filósofo, produzir “novas e
diferentes intensidades” como interpretação, na compreensão de Lyotard. Ainda
defende Löwith a importância de se perceber a produção aforismática de Nietzsche
como um sistema.
Destaca-se também, da revisão de Marton, a posição de Charles Andler, que
considera Nietzsche como um pensador assistemático e mesmo anti-sistemático.
Não obstante, Andler assume que a obra de Nietzsche abriga pelo menos dois
sistemas, estes originários de duas “intuições”: o do pessimismo estético, entre 1869
e 1881 e o do transformismo intelectualista, que compreende o período entre 1881 e
1888. Para Andler os dois períodos são parcialmente incoerentes entre si, mas têm
uma unidade em si mesmos.
Jaspers, Kaufmann e Granier apontam contradições nos textos de Nietzsche,
enfocando ora a forma da escrita, ora o tema. Além destes elementos, consideram
os fragmentos póstumos como importantes contribuições que devem ser
consideradas e hierarquizadas para se pensar os processos do pensamento de
Nietzsche e sua lógica interna.
O perspectivismo e o experimentalismo adotados na produção filosófica
nietzschiana contribuem com a noção de Nicolai Hartmann de que “Nietzsche não é
um pensador-de-sistemas, mas um pensador-de-problemas”.4
Para o interesse de distinguir fases relacionadas à produção filosófica de
Nietzsche nesta pesquisa, interessa a periodização que também é reconhecida por
Charles Andler, bem como a nomenclatura adotada por ele para três períodos
distintos: o do pessimismo romântico, o do positivismo cético e o da reconstrução da
4 HARTMANN, Nicolai apud MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. São Paulo: Annablume, 1997. p. 38.
9
obra, lembrando que Andler admite pelo menos mais duas periodizações válidas. As
datas sugeridas por ele não são coincidentes com as que aqui serão adotadas.
Marton aproxima esta distinção dos três períodos, daquela leitura que o
próprio Nietzsche fez de sua vida, na carta de 11 de fevereiro de 1883 a Overbeck,
em que discorre sobre sua oscilação entre inquietação e recolhimento e sobre seu
avanço a cada seis anos. O próprio Nietzsche afirmou: “toda a minha vida
decompôs-se diante de meus olhos: esta vida inteira de inquietação e recolhimento,
que a cada seis anos dá um passo e nada quer além disso.5 Assim, Marton e
Paschoal, sem fazer uma interpretação estanque de unidades pretensamente
fechadas ou rígidas, apresentam didaticamente a periodização apresentada a
seguir.
O primeiro período compreende os anos de 1870 a 1876 e dele são os
escritos que constituirão as fontes de pesquisa no presente trabalho; o segundo
refere-se à produção entre os anos 1876 e 1882; a última fase de sua obra foi
escrita entre 1882 e 1888. Em janeiro de 1889, Nietzsche sofreu um colapso em
Turim, que o privaria da razão até a sua morte em 1900. Usualmente, estes períodos
são denominados de Pessimismo Romântico, Positivismo Cético e Reconstrução da
Obra, respectivamente.6
Contribuindo com a polêmica acerca deste assunto, Jean Lefranc também
recorre a Andler para sustentar a presente periodização.
Bem cedo foram distinguidos três períodos da filosofia de
Nietzsche, ou até três “filosofias”, às quais foram atribuídos
títulos diversos. Esta divisão, na opinião de muitos comentaristas, 5 NIETZSCHE apud MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2000. p. 35. Carta de Nietzsche a Overbeck, em 11 de fevereiro de 1883. Uma das referências dadas pelo próprio Nietzsche para demarcar as fases de sua produção filosófica. 6 PASCHOAL, Antonio Edmilson. A genealogia de Nietzsche. Curitiba: Champagnat, 2003. p. 29.
10
é tão evidente que eles nem se dão o trabalho de justificá-la,
como se a filosofia devesse ceder à evidência da cronologia.
Em sua importante obra (1920), Charles Andler dá como títulos
a essas três filosofias: “o pessimismo estético” (O nascimento
da tragédia, as Considerações intempestivas); “o transformismo
intelectualista” (Humano, demasiado humano, Aurora, Gaia
ciência) e enfim “a última filosofia” (a partir de Assim falava
Zaratustra). Este último título mostra perfeitamente que a
divisão em períodos encontra seu sentido num acabamento em
que o pensamento de Nietzsche seria enfim ele mesmo, o que
de fato supõe Andler [...]. Três fases do nietzschismo, eis o que
é sedutor e seríamos tentados a dialetizar (como o fizeram
alguns). Mas o próprio Charles Andler admite que poderiam ser
duas (antes e depois de Zaratustra) ou até quatro.7
Desta forma, aceita-se tal divisão, por tratar-se de uma análise que permite
localizar o aparecimento de conceitos fundamentais e observar o amadurecimento
de determinados temas ao longo de sua trajetória filosófica.
A primeira fase dos escritos nietzschianos, isto é, o chamado período do
Pessimismo Romântico, com obras escritas entre 1870 e 1876 e sobre o qual
repousa esta pesquisa, compreende os seguintes textos: A visão dionisíaca do
mundo, O drama musical grego e Sócrates e a tragédia, de 1870; O nascimento da
tragédia, de 1871 [livro que teve sua conclusão em 1871 e foi publicado no ano
seguinte]; Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, e Cinco prefácios
para cinco livros não escritos, de 1872; A filosofia na época trágica dos gregos,
Sobre a verdade e mentira no sentido extra moral e Primeira consideração
extemporânea: David Strauss, o devoto e o escritor, de 1873; Segunda consideração
extemporânea: da utilidade e desvantagem da história para a vida e Terceira
7 LEFRANK, Jean. Compreender Nietzsche. Trad.: Lúcia Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 33.
11
consideração extemporânea: Schopenhauer como educador, de 1874; Quarta
consideração extemporânea: Richard Wagner em Bayreuth, de 1876;8 além de
fragmentos póstumos.9
Entre as características do primeiro Nietzsche, a preocupação em relação à
renovação da cultura alemã, segundo Paschoal, “não é suficiente para diferenciá-lo
dos demais, pois essa preocupação aparece também em seus escritos até 1888”.10
O que marca mais decisivamente esses primeiros escritos é que esta renovação,
segundo Nietzsche, está ligada à filosofia de Schopenhauer e à música de Wagner.
Em O nascimento da tragédia, primeiro livro do autor, estas influências estão
evidentes e claramente assumidas, assim como os primeiros passos para uma
ruptura com seus mestres. Esta obra foi criticada e incompreendida principalmente
pelos filólogos da sua época, que acompanhavam a trajetória acadêmica do jovem e
promissor catedrático de filologia.
Vale observar três idéias centrais que norteiam O nascimento da tragédia, no
que se refere aos seus objetivos. Segundo Roberto Machado, no livro Nietzsche e a
polêmica sobre o nascimento da tragédia, a primeira idéia é uma abordagem sobre a
origem, a composição e a própria finalidade da arte trágica grega. É a expressão das
pulsões artísticas apolínea e dionisíaca, apresentadas como alternativa à
racionalidade conceitual instaurada a partir de Sócrates (470-399 a.C.) e Platão
(427-347 a.C.) ou a partir das categorias metafísicas de essência e aparência na
dualidade schopenhaueriana de vontade e representação.
A segunda idéia fundamental de O nascimento da tragédia é a denúncia à
estética racionalista que passou a vigorar com a morte da arte trágica e cujo mentor
8 MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2000. p. 34, 35 e 36. 9 Os fragmentos póstumos aqui referenciados encontram-se no seguinte livro de Nietzsche: Sabedoria para depois de amanhã. Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 10 PASCHOAL, Antonio Edmilson. A genealogia de Nietzsche. Curitiba: Champagnat, 2003. p. 30.
12
foi Eurípides, o poeta que subordinou a beleza à razão e, com isso, promoveu a
expulsão da música do palco trágico. Passagem esta chamada por Nietzsche de
socratismo de Eurípides ou socratismo estético, pois o poeta foi apenas uma
máscara, no sentido de que quem falava por ele não era Dionísio nem Apolo, mais
antes Sócrates, subordinando assim o poeta ao homem teórico e a beleza à razão.
A terceira idéia ou objetivo do livro é que a análise do nascimento e da morte
da tragédia foi realizada com o propósito também de diagnosticar a época em que o
autor vivia, isto é, de encontrar na concepção trágica do mundo algumas
manifestações culturais da modernidade.11
A antinomia apresentada por Nietzsche entre a arte trágica e a metafísica
racional abordadas em seu primeiro livro enaltece a dimensão dionisíaca na tragédia
grega, dando acesso às questões fundamentais da existência e servindo, mesmo,
como antídoto à racionalidade. Em outra obra de Roberto Machado, Zaratustra,
tragédia nietzschiana, este autor explica que “enquanto a metafísica é incapaz de
expressar o mundo, em sua tragicidade, pela prevalência que concede à verdade
em detrimento da ilusão, ou pela oposição que estabelece entre a essência e a
aparência, na arte a experiência da verdade se faz indissoluvelmente ligada à
beleza, que é uma ilusão, uma aparência”.12
Nietzsche opõe sua perspectiva sobre a arte trágica grega à cultura de seu
tempo e em especial à cultura alemã, criticada como sendo o triunfo histórico da
razão, desprovida de compromisso com a vida. Segundo Paschoal,
trata-se, portanto, de procurar na história uma unidade que
possibilite pensar, com todas as suas conseqüências, a
11 MACHADO, Roberto (Org. e Trad.). Nietzsche e a polêmica sobre o nascimento da tragédia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 7-13. 12 MACHADO, Roberto. Zaratustra tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 12.
13
solução para a oposição entre o ‘saber artístico’ e a
‘onipotência da razão’. A concepção de Nietzsche de história,
nesse período, tem a ver com sua compreensão da tragédia
ática, como a síntese entre Apolo e Dionísio, que pode revelar
o quanto é trágica a existência humana, mas que nunca dirá
não à vida.13
O tema dionisíaco e a sua relação com o apolíneo foram abordados por
Nietzsche especialmente em sua primeira obra de 1871. Porém, Rosa Maria Dias
alerta que, embora ainda não existisse a antítese entre Apolo e Dionísio, quanto aos
dois impulsos artísticos da natureza, ela estava presente nas suas primeiras
conferências de 1870, nos textos preparatórios para O nascimento da tragédia.
Segundo a autora, “Nietzsche não faz nenhuma referência ao Deus Apolo e o nome
de Dioniso14 quase não é mencionado, mas o fenômeno do dionisíaco está presente,
[...] relacionado a um fenômeno da natureza, ao impulso primaveril, que se
manifesta de súbito e intensifica as forças vitais”.15
De fato, em A visão dionisíaca do mundo, O drama musical grego e Sócrates
e a tragédia, textos de 1870, mencionados por Rosa Maria Dias, Nietzsche
apresenta as suas concepções sobre o teatro grego, as quais foram expostas mais
detalhadamente nas seções 7, 8 e 9 de O nascimento da tragédia. A forças
orgiásticas, os cortejos dionisíacos, o coro trágico e o seu envolvimento com o
público na tragédia grega foram apresentados por Nietzsche nestes textos
preparatórios. Observa-se, nas palavras do próprio filósofo, o seu enfoque sobre o
povo grego trágico: “na consciência do despertar da embriaguez, ele [o grego] vê por
toda a parte o horrível ou absurdo do ser humano: esse o repugna. Afora ele 13 PASCHOAL, Antonio Edmilson. A genealogia de Nietzsche. Curitiba: Champagnat, 2003. p. 31. 14 Alguns autores adotam a escrita de Dioniso, ao invés de Dionísio. 15 DIAS, Rosa Maria. Um Dionísio bárbaro e um Dionísio civilizado no pensamento do jovem Nietzsche. Apud: AZEVEDO, Vânia Dutra de (Org.). Encontros Nietzsche: Ijuí: Unijuí, 2003. p. 180-181.
14
entende a sabedoria do deus silvestre”.16 Essas forças vitais mencionadas, a
embriaguez e o impulso primaveril serão chamados posteriormente de Uno-
primordial em O nascimento da tragédia. Este livro trouxe ao debate a relação entre
a ciência, a arte e a filosofia.
Nietzsche, em seu primeiro livro, foi além de um simples exercício estético,
elaborando, antes, uma concepção ontológica da arte ou, em outras palavras, uma
metafísica de artista. “A arte dionisíaca quer nos convencer do eterno prazer da
existência, não nas aparências, mas por traz delas”.17 Para Nietzsche, a história da
arte trágica dos helenos brotou do espírito da música e não da palavra falada.
A originalidade de Nietzsche em O nascimento da tragédia foi,
inspirada na idéia wagneriana de drama musical, valorizar a
música para pensar a tragédia grega como sendo uma arte
fundamentalmente musical, ou como tendo origem no espírito
da música, concebida como única força capaz de expressar o
dionisíaco. Mas também articular a filosofia de Schopenhauer
[...] para pensar a cultura alemã através do espírito trágico,
idéia que não existe em Schopenhauer.18
A reflexão sobre o valor da Grécia arcaica para a Alemanha, que perpassa
um dos temas de O nascimento da tragédia, insere seu primeiro livro na discussão
de um projeto de política cultural alemã, da época do filósofo.
O fato é que Nietzsche escreveu seus livros e propôs uma filosofia dionisíaca
durante a época da Alemanha de Bismarck, o chanceler que chegou ao poder
16 NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude / Friedrich Nietzsche. Trad.: Marcos Sinésio Pereira Fernandes, Maria Cristina dos Santos de Souza; Rev. da Trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. § 3, p. 25. 17 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 17, p. 102. 18 MACHADO, Roberto (Org. e Trad.). Nietzsche e a polêmica sobre o nascimento da tragédia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 34.
15
anunciando a imposição de uma política de ferro e sangue.19 A formação de
Nietzsche em meio a professores clássico-liberais, a herança da educação religiosa
familiar e o nacionalismo prussiano da metade do século favoreciam uma
diversidade de fatores que amadureceram o jovem filósofo, promovendo re-
interpretações acerca da vida, da política, da ciência, da filosofia e da arte.
Sua principal preocupação, em 1870, foi usar o novo clima político como
ocasião para exigir um renascimento da cultura trágica e do pessimismo, inspirados
pela música de Wagner e por Schopenhauer, os quais Nietzsche acreditava serem
capazes de dar uma nova profundidade aos ideais clássicos da educação, da
política e da cultura alemãs.20
Em seus primeiros escritos sobre a educação, como na III Consideração
intempestiva: Schopenhauer educador (1874), o filósofo já apontava criticamente a
inconformidade da própria universidade para desempenhar a base para uma cultura
superior. Condenava a pobreza pedagógica e os educadores, que, para ele, não
estavam comprometidos com a autêntica emancipação da vida. Da mesma maneira,
condenava os governantes, sobre os quais afirmava: “qual não seria a aversão das
gerações futuras, quando tiverem de se ocupar com a herança deste período, em
que não são os homens vigorosos que governam, mas os arremedos de homem, os
intérpretes da opinião”.21
O jovem Nietzsche da década de 1870 mostrou-se diferente do filósofo das
décadas seguintes quanto à sua participação e envolvimento nas questões políticas.
Mostrou-se um crítico sagaz da política moderna alemã.
19 ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 37-38. 20 ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 39. 21 NIETZSCHE, Friedrich. III Consideração intempestiva: Schopenhauer educador. In: NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre Educação. Trad., apres. e notas: Noéli Correia de Melo Sobrinho. São Paulo: Loyola, 2003. p. 139.
16
O objetivo da ciência é aniquilar o mundo. Todavia, seu efeito
imediato acaba sendo o mesmo de pequenas doses de ópio: o
aumento da afirmação do mundo. Sendo assim, em política nos
encontramos atualmente nesse estágio. Há de se provar que,
na Grécia, esse processo já se realizou em pequena escala,
embora essa ciência grega seja pouco significativa. A arte tem
a tarefa de aniquilar o Estado. Isso também aconteceu na
Grécia. Depois, a ciência também dissolve a arte. (Logo
aparece uma época em que o Estado e a ciência caminham
juntos, a idade dos sofistas – nossa época). As guerras não
devem ocorrer, para que finalmente o sentimento de Estado
sempre avivado adormeça.22
Observa-se nesta passagem dos fragmentos póstumos que, desde muito
cedo, 1869-1870, os elementos inovadores da sua filosofia já se mostravam
contundentes, tendo a Grécia antiga e a filosofia trágica como modelos para
contrapor e avaliar a cultura de sua época. Sua postura diante da cultura e da
religião, bem como a sua opção pela dimensão dionisíaca e embriagante (menção
ao ópio), orientada pela sua reflexão sobre a Grécia antiga, também se mostram
claras no próximo fragmento de 1871, em que afirma: “como artistas, devemos estar
acima da religião e manejar seus mitos tão livremente como o fazia o trágico
ateniense em suas produções, sem nenhuma participação patológica”.23
Nietzsche preocupa-se com o problema da finalidade, ou sentido da
existência. E, como resposta à civilização moderna européia, propõe “cultivar a
única atitude que ele acredita ser capaz de redimir o mundo na ausência de um
22 NIETZSCHE, Friedrich. Sabedoria para depois de amanhã. Seleção dos fragmentos póstumos por Heinz Friedrich. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Inverno de 1869-70 e primavera de 1870, 3 [11]. p. 5. 23 NIETZSCHE, Friedrich. Sabedoria para depois de amanhã. Seleção dos fragmentos póstumos por Heinz Friedrich. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Setembro 1870 e janeiro de 1871, 5 [47]. p. 8.
17
ponto central ou um Deus, e restabelecer a inocência no fluxo da vida: ‘um trágico
pessimismo da força’. O que é trágico é o fato de que a vida tem de ser vista como
desprovida de propósitos finais ou objetivos morais”.24
Daí o papel importante também da sua II Consideração intempestiva sobre a
utilidade e os inconvenientes da História para a vida (1873-1874), como estudo
crítico da cultura do século XIX e, antes de tudo, uma crítica ao historicismo, em
especial, ao historicismo que recaía em uma teleologia idealista. Aos seus
propagadores hegelianos, Nietzsche conjectura sobre os riscos e males desta
história monumental utilizada por malfeitores egoístas, causando estragos e
destruindo ao que a Antigüidade produziu.
Tomemos o exemplo mais simples e mais freqüente.
Imaginemos as personalidades totalmente ou parcialmente
indefesas à arte, armadas e paramentadas pela história
monumental dos grandes criadores: contra quem voltariam elas
as suas armas? Contra os seus inimigos hereditários, contra as
fortes naturezas artísticas, quer dizer, contra os únicos que
sabem tirar desta história um verdadeiro ensinamento, um
ensinamento orientado para a vida, para em seguida
transformá-lo numa prática superior.25
Pode-se observar, diante dos fragmentos póstumos e dos textos anteriores a
O nascimento da tragédia, que Nietzsche iniciava um embate com o seu contexto
histórico e filosófico. Ao apresentar Dionísio, e em especial a arte dionisíaca, como
expressão da vida, opunha-se veementemente ao otimismo vigente no século XIX,
24 ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 57. 25 NIETZSCHE, Friedrich. II Consideração intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da História para a vida. In: Escritos sobre História. Apres., trad. e notas: Noéli Correia de Melo Sobrinho. São Paulo: Loyola, 2005.
18
marcado pela crença na ciência e pela influência do positivismo, embora também
tenha sido influenciado por este. Notam-se nas obras da sua primeira fase o ímpeto
e a força de um jovem filósofo que desde cedo se mostra além do seu tempo,
intempestivo. Assume um pessimismo ativo, ou pessimismo da fortitude, como
escreve na Tentativa de autocrítica, diante da sua visão sobre a tragédia grega,
entendendo com ela a implacável necessidade de assumir a vida em sua
transbordante saúde e superabundância, plenitude.26
A seguir, será examinada a filosofia que Nietzsche desenvolve a partir de
uma perspectiva particular sobre a tragédia grega.
1.2 A tragédia grega e a filosofia nietzschiana
Encontrou-se [na tragédia grega] o sentido
profundo e ingênuo, divino e infantil ao
mesmo tempo dos velhos mitos surgidos da
imaginação primitiva. (Paul de Saint-Victor)27
A arte trágica, surgida em inícios do século VI a.C., é uma representação que
vai além de uma história fictícia. Constitui, antes, a própria experiência humana em
sua ambivalência e contradição. A tragédia, sob a ótica nietzschiana, não pretende
promover ensinamentos morais ao final, nem se destina à mera diversão. Ela tem
um papel, tem uma função, mas não é moralizadora. O público era acometido por
um clima de tensão e dúvida, no qual a realidade do homem era problematizada,
26 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 1, p. 14. 27 SAINT-VICTOR, Paul de. As duas máscaras – a cultura da Grécia em seu teatro. Trad.: Gilson César Cardoso de Sousa. São Paulo: Germape, 2003. p. 9-10.
19
mas jamais resolvida. Convivem na tragédia o aspecto enigmático e as suas duas
faces: a da reflexão, ligada ao pensar consigo mesmo, e a outra, ligada ao
desconhecido e ao imprevisível.
A base da teoria nietzschiana sobre a filosofia trágica está na interpretação da
tragédia ática, um espetáculo dramático, musical e religioso que, para Nietzsche,
representa um dos períodos mais relevantes de um povo na história. Nela o “gênio”
grego conseguiu promover a coexistência das pulsões artísticas apolínea e
dionisíaca, que estão em permanente inter-relação no interior da vida do povo grego.
Uma concepção única que ousou conciliar dor e prazer, criação e destruição,
consciência e inconsciência, em uma afirmação extasiada da vida como totalidade.
Superabundância de poder e medida convergindo em uma elevada afirmação da
vida, partindo exatamente da dualidade entre Apolo e Dionísio.
A perspectiva de Nietzsche sobre a Grécia antiga e sobre o cenário trágico28
é oriunda da sua leitura sobre do gênio helênico, que deu um salto decisivo frente ao
pressentimento de que o devir e a dor são o sentido último de todas as coisas e, ao
invés de condenar a vida perante a intuição do uno-originário, soube afirmá-la em
sua natureza mais trágica. Para ele, a alegria é a essência da tragédia, agindo como
prodigioso antídoto frente à angústia, à dor e ao sofrimento do mundo ou da vida.
“Assim, a tragédia, com seu consolo metafísico, aponta para a vida perene, daquele
cerne da existência, apesar da incessante destruição das aparências. Do mesmo
modo, o simbolismo do coro satírico já exprime em um símile a relação primordial
entre coisa e fenômeno”.29 Sua crítica a esta forma de entender a existência como
28 É importante salientar que a abordagem de Nietzsche sobre a tragédia grega é resultado de uma reflexão ou de uma ótica muito particular do filósofo, não se encontrando concordância geral, uma vez analisada a revisão bibliográfica e mesmo filosófica sobre o assunto, como será apresentado nos conceitos de Goethe e de Aristóteles sobre a tragédia grega. 29 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 8, p. 57-58.
20
martírio inexorável é a contribuição nietzschiana para transvalorar os valores que
permearam a formação do pensamento ocidental, desde a filosofia de Platão,
passando pelo cristianismo, até chegar ao seu mestre, Schopenhauer.
Nietzsche proclama a alegria trágica de viver a partir da sabedoria dionisíaca
como afirmação da vida e contra o otimismo racional. ”Invertendo o platonismo,
Nietzsche transmuta o trágico em verdade e divindade. Afirma o todo, aliás, aquilo
que caracteriza um todo não-totalizável. Nietzsche abençoa a ‘vida trágica’, seja ela
decepcionante ou não, tentando amá-la como tal e não fugir dela”.30 Para ele, a
verdadeira tragédia funciona como um consolo metafísico, fazendo entender que a
vida, “no fundo das coisas”, e apesar de toda a mudança das aparências
fenomenais, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria.31
O trágico para Nietzsche não existe enquanto dicotomia indissolúvel, como no
conceito de Goethe,32 nem é a perspectiva de renúncia da vida, ou pessimismo
diante da supressão do homem perante o destino, da culpa ou da vontade cega. Daí
pode-se destacar o papel do herói trágico, quase sempre perecendo no espetáculo
trágico em um percurso curto de tempo, mas com toda a intensidade. “O universo
trágico pode ser concebido como uma crise cujo ponto central é a ambigüidade. Isso
porque a tragédia é o resultado de um mundo que se apresenta como o choque
entre forças opostas: o mítico e o racional. Deste modo, a função primordial da
tragédia é a palavra poética que responde à situação do século V a.C.”.33 Assim, no
presente trabalho, entende-se tal ambigüidade em Nietzsche como a coexistência
30 GILES, Thomas Ransom. Nietzsche: no limiar do século XXI. São Paulo: EPU, 2003. p. 148. 31 NIETZSCHE. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 7, p. 55. 32 Conceito de Goethe sobre a essência do trágico em 6 de junho de 1824: “Todo o trágico se baseia numa contradição inconciliável. Tão logo aparece ou se torna possível uma acomodação desaparece o trágico”. (GOETHE apud LESKY, Albin. A tragédia grega. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 31) 33 COSTA, Lígia Militz da; REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel. A tragédia estrutura e história. São Paulo: Ática, 1988. p. 8.
21
das duas pulsões artísticas: a apolínea e a dionisíaca. Esse enfoque é importante
para perceber a perspectiva nietzschiana sobre a tragédia grega.
Em A tragédia grega, de Albin Lesky, encontra-se uma exposição sobre os
conceitos e a origem da tragédia. Lesky faz alusão a épocas, a culturas e a autores
diferentes, porém, sucintamente, é possível apontar a ênfase que dá a Aristóteles
para conceituar a tragédia. Descreve-a como a catástrofe do destino de um herói,
atentando para a dignidade da queda ou entendendo o elemento trágico como uma
contradição inconciliável. Em Nietzsche, esta visão de “queda” do herói não existe,
nem a contradição é inconciliável. Antes, tem-se pelo herói trágico a experiência
profunda da intuição de uma dimensão inconsciente que o faz um gênio
transfigurador.34 Apolo e Dionísio, em Nietzsche, são pulsões da vida necessárias e
co-existentes, embora haja entre elas a tensão constante e transformadora, que ao
mesmo tempo gera e destrói. Em suma, o fundo originário ou o Uno-primordial
apresenta-se como um problema de ordem estética e metafísica. E, neste mesmo
conceito, de forma paradoxal, a metafísica de artista mostra a oposição e a
reconciliação na relação de forças entre as duas pulsões artísticas.
A Seção 24 de O nascimento da tragédia traz uma reflexão sobre o papel do
herói trágico glorificado como “lutador” e representado repetidamente na idade mais
viçosa e juvenil de um povo, como um prazer superior sob a imagem do herói
sofredor.35
De acordo com as concepções gregas, os termos trágicos derivam dos mitos,
mas também é possível encontrar neles a dimensão de delimitação de ordem social.
Na sua encenação, isto é, na manifestação desta dramaticidade, que corresponde
ao âmago da alma da Grécia antiga, observam-se o uso da máscara enquanto 34 Sobre o herói trágico e o papel da intuição em Heráclito, ver página 86 e ss. da presente pesquisa. 35 NIETZSCHE. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 24, p. 140.
22
metamorfose, que é a essência da representação teatral, bem como o coro que
muitas vezes personifica a multidão e o herói trágicos;36 e, como se examinará no
Capítulo 3, também personifica o deus Dionísio. Lesky faz uma referência a esse
conceito aristotélico mencionando Nietzsche:
Aristóteles reconheceu claramente quando, na Poética (Cap.
6), caracterizou a tragédia não como imitação de pessoas, mas
de ações e da vida. Com isto, compreendeu a tragédia clássica
de seu povo melhor que seus intérpretes modernos, [... contra
os quais] Nietzsche tantas vezes nos acautela.37
De fato, ao observarem-se as palavras do próprio Aristóteles a esse respeito,
em Poética, na comparação entre a tragédia e a comédia, o filósofo aponta que a
primeira é a representação de uma ação elevada, com linguagem adornada, com
atores que encenam e não narram, fazem uso do canto e das falas, despertam a
piedade e o temor, resultado de uma catarse38 de emoções.
O mais importante é a maneira como se dispõem as ações,
uma vez que a tragédia não é imitação de pessoas e sim de
ações, da vida, da felicidade, da desventura; mas felicidade e
desventura estão presentes na ação, e a finalidade da vida é
uma ação, não uma qualidade. Os homens possuem diferentes
qualidades, de acordo com o caráter, mas são felizes ou
infelizes de acordo com as ações que praticam. Assim, segue-
se que as personagens, na tragédia, não agem para imitar os
caracteres, mas adquirem os caracteres para realizar as ações.39
36 LESKY, Albin. A tragédia grega. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 27-32. 37 LESKY, Albin. A tragédia grega. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 33. 38 Catarse é um termo aristotélico, não nietzschiano. 39 ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Os Pensadores) p. 44.
23
Nesse aspecto, não se percebe distinção entre Aristóteles e Nietzsche, porém,
este supõe que a arte não seja apenas imitação da realidade natural, mas um
suplemento metafísico desta realidade que, colocada junto dela, pode superá-la.40
No fragmento apresentado a seguir, escrito por Nietzsche em 1871 e
publicado postumamente no livro Sabedoria para depois de amanhã, o filósofo
ilustra como em um ensaio, o que vai desenvolver mais extensamente em O
nascimento da tragédia. Observa-se que o indivíduo, neste aforismo, ocupa o lugar
do herói trágico.
Aquilo que chamamos de “trágico” é justamente essa
elucidação apolínea do dionisíaco: quando separamos e
dispomos numa série de imagens essas sensações tecidas
entre si, que a embriaguez de Dioniso produz em conjunto,
essa série de imagens expressa o “trágico” [...]. A forma mais
universal do destino trágico é a derrota vitoriosa ou o fato de
alcançar a vitória na derrota. A cada vez, o indivíduo é
derrotado e, apesar disso, percebemos seu aniquilamento
como uma vitória. Para o herói trágico, é necessário sucumbir
por aquilo que ele deve vencer. Nesse grave confronto, intuímos
algo da já aludida estima suprema da individuação: aquela de
que um originário precisa para alcançar seu último objetivo de
prazer. De modo que o perecer se revela tão digno e respeitável
quanto o nascer, e de modo que o nascimento deve cumprir, ao
perecer, a missão que lhe é imposta como indivíduo.41
40 NIETZSCHE. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 24, p. 140. A imitação é um ponto em comum entre Aristóteles e Nietzsche, mencionado aqui apenas como referência para compreensão do conceito da tragédia. 41 NIETZSCHE, Friedrich. Sabedoria para depois de amanhã. Seleção dos Fragmentos Póstumos por Heinz Friedrich. Trad.: Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Final de 1870 - abril de 1871. 7 [128]. p. 12.
24
Como foi apresentado no início deste fragmento, sobre o papel do herói
trágico Nietzsche aponta para a necessidade ou para a coexistência das duas
pulsões ou fenômenos da natureza, representados pelos deuses Dionísio e Apolo, o
último elucidando o deus da embriaguez. O filósofo expõe, ainda, uma noção de
movimento ao abordar a dignidade tanto do nascer como do perecer. A relação
conflitante, desta forma, não está entre as polaridades divinas que compõem a
tragédia grega. A oposição criticada por Nietzsche está entre o instinto e a natureza
lógica, levada a cabo por Sócrates. Nietzsche aborda este tema em especial na
Seção 13 de O nascimento da tragédia, mostrando que o Daimon de Sócrates, a voz
divina, sempre esteve presente em situações especiais, atuando quando sua
descomunal inteligência vacilava, apesar de sua excessiva e super-valorização da
natureza lógica.42 Daí Sócrates assumir a sua condenação à morte, de acordo com
Nietzsche, de forma caricata. A oposição desta forma é entre Sócrates e a interação
das pulsões artísticas (Apólo-Dionísio) na tragédia grega.
A função de Dionísio, ou do instinto, em Nietzsche, não obstante, é sempre
referenciada com ênfase, justamente porque o filósofo observa na história da
filosofia e na própria derrocada da tragédia, a negação da embriaguez do deus do
êxtase e da inconsciência, em nome daquilo que é equilíbrio, medida, sobriedade ou
racionalidade dialética. Elementos estes, referentes e responsáveis pela morte da
tragédia na Grécia antiga.
Aqui interessa, portanto, sintonizar o argumento com a peculiaridade da
leitura nietzschiana sobre a tragédia e a sua distância do conceito clássico e literário
da tragédia ática, mencionado em Lesky.
42 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 13, p. 85-86.
25
Para Platão, a virtude é sinônimo do saber racional. Felicidade e justiça
derivam dessa capacidade filosófica de superar ou ultrapassar a pseudo-realidade
das aparências, pois são reflexos do mundo empírico, ou a esfera inferior ao mundo
das Idéias.
A busca para ir além das aparências, em Platão, é a tentativa de
compreender o Bem em si por meio da razão. A principal objeção que Platão tinha a
fazer contra a arte mais antiga era a de ser imitação43 de uma imagem da aparência,
de permanecer, portanto, em uma esfera ainda mais baixa que a do mundo
empírico.44
Para Nietzsche, no entanto, Platão simboliza junto a seu mestre o papel dos
“homens teóricos”, socráticos, satisfeitos em tornar a existência compreensível e
justificada, em verdade, curada. “A partir desse único ponto, julgou Sócrates que
devia corrigir a existência”.45 O otimismo socrático manifesta-se abominando a arte
trágico-dionisíaca e iniciando uma luta particular contra a tragédia do poeta Ésquilo.
A arte e a dimensão dionisíaca encontradas na tragédia grega é que dão os
fundamentos para Nietzsche compreender e traçar novas metas para transpor o
ideal socrático em uma outra perspectiva, superando essa pretensão lógica em uma
cosmovisão aberta ao vir a ser. Um Dionísio que jaz despedaçado é ressuscitado e,
assim, cria-se a possibilidade de um mergulho em uma unidade primogênia, que é 43 JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. Trad.: Artur M. Pereira. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 982-983. O ataque de Platão é dirigido principalmente contra a poesia imitativa. Mas o que é a imitação? Platão esclarece a questão pelo processo habitual, partindo da hipótese das idéias, que designam a unidade na pluralidade, operada no pensamento. As coisas que os sentidos transmitem ao indivíduo são reflexos das idéias, isto é, as cadeiras ou as mesas são reflexos ou imitações da idéia de cadeira ou de mesa, que é sempre única. O carpinteiro cria os seus produtos, tendo presente a idéia como modelo. O que ele produz é a mesa ou a cadeira, não a sua idéia. Uma terceira fase da realidade, além das da idéia e da coisa transmitida pelos sentidos, é a que representa o produto da arte pictórica, quando um artista representa um objeto. É precisamente com esta fase que Platão compara a relação que existe entre a poesia e a verdade e entre a poesia e o ser. 44 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 14, p. 88. 45 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 13, p. 85.
26
diferente da vontade irascível schopenhaueriana, mas está em sintonia com a vida
e, mais especificamente, com o Uno-primordial.
Ainda com referência a Platão, quando este conheceu Sócrates, rasgou seus
primeiros ensaios de poesia ditirâmbica46 e tragédias e não mais as escreveu,
permanecendo com os conhecidos Diálogos, ou seja, as conversas e os debates
com seu mestre e com seus interlocutores.47
Platão tinha começado por fazer tragédias. Era de facto
maravilhosamente dotado para a arte dramática, não só para a
tragédia, mas também para a comédia e a sátira dos ridículos.
Não admira pois que tenha escolhido a forma do diálogo para
expor suas idéias. Aliás, nisto imitava o seu mestre Sócrates,
incansável questionador, que nunca praticava outro método
que não fosse a investigação por perguntas e respostas.48
Para Platão, o trágico é a representação de um mundo “baixo”, no qual
vigoram mitos e mentiras; é a separação entre o que é ideal e o que é perfeito. Para
seu mestre Sócrates, aponta Nietzsche,
parecia que a arte trágica nunca ‘diz a verdade’ [...]. Como
Platão, ele a incluía nas artes aduladoras, que não
representam o útil, mas apenas o agradável, e por isso exigia
de seus discípulos a abstinência e o rigoroso afastamento de
tais atrações, tão pouco filosóficas; e o fez com tanto êxito que
46 Ditirambo: "canção do culto dionisíaco, com acompanhamento de aulos (instrumento de palheta dupla)”, instrumento que evocava sensualidade e liberdade [MICHAEL, Ulrich. Atlas de Música. Madrid: Alianza, 1989. p. 173 (Aquém do título Atlas de Música, esta obra, cujo original foi escrito em alemão, figura entre as mais importantes e respeitáveis sobre o assunto)]. 47 PLATÃO. O banquete, ou, Do amor. Trad., intr. e notas: J. Cavalcante de Souza. 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003. p. 13. 48 PLATÃO. A república. Diálogos – I. 2. ed. Notas e trad.: Sampaio Marinho. Portugal: Europa-América, s.d. p. 23.
27
o jovem poeta trágico chamado Platão queimou, antes de tudo,
os seus poemas, a fim de poder tornar-se discípulo de Sócrates.49
Na perspectiva de Nietzsche, a tragédia ática apresenta a inseparabilidade
daquilo que se entende por bem e mal, verdadeiro e falso, êxtase e sofrimento. É
este paradoxo que apresenta a unidade originária ou o Uno-primordial.
Mas, em um mundo cindido pela racionalidade socrática, que nega a
aparência, a tragédia tem uma vida curta e cede lugar ao drama, à comédia e,
filosoficamente, dá lugar à retórica, ao discurso e aos diálogos socráticos dialéticos.
Nos diálogos A República e O Banquete, de Platão, percebe-se que Sócrates,
cujo pensamento Nietzsche tanto critica, fala pela voz do seu discípulo. Platão
descreve, em seu texto O Banquete, um jantar na casa do poeta Agatão, que
comemorava sua vitória em um concurso de tragédias e, entre seus convidados
presentes, resolve instituir outro concurso, oratório desta vez, no qual o tema do
discurso deveria ser o Amor (Eros, divindade, servo e companheiro de Afrodite). No
entanto, o maior elogio ao amor é feito no campo da teoria das idéias, traçando o
destino do homem numa linha de ascensão espiritual e de abstenção dos prazeres
sensuais,50 perturbadores da virtude da reflexão e da pretensa capacidade de
administrar os desígnios da vida.
Os elementos que poderiam caracterizar a tragédia, como a embriaguez de
Alcebíades, são sobrepujados pela lógica dialética de Sócrates. E o amor, assim, é
exaltado sob a luz e a vigilância da razão, como se observa no diálogo:
49 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 14, p. 87-88. 50 PLATÃO. O Banquete, ou, Do amor. Trad., intr. e notas: J. Cavalcante de Souza. 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003. p. 9-13.
28
Depois disso, continuou Aristodemo, reclinou-se Sócrates e
jantou com os outros; fizeram então libações e, depois dos
hinos ao deus e dos ritos de costume, voltaram-se à bebida.
Pausânias então começou a falar mais ou menos assim: Bem,
senhores, qual modo mais cômodo de bebermos? Eu por mim
digo-vos que estou muito indisposto com a bebedeira de ontem
e preciso tomar fôlego — e creio que também a maioria dos
senhores, pois estáveis lá; vede então de que modo
poderíamos beber o mais comodamente possível.
[...] quanto a Sócrates, eu excetuo do que digo, que é ele
capaz de ambas as coisas e se contentará com o que quer que
fizermos. Ora, como nenhum dos presentes parece disposto a
beber muito vinho, talvez, se a respeito do que é a embriaguez
eu dissesse o que ela é, seria menos desagradável.
[...] Como, então, continuou Erixímaco, é isso que se decide,
beber cada um o que quiser, sem que nada seja forçado, o que
sugiro então é que mandemos embora a flautista e que ela vá
flautear para si mesma ou para as mulheres lá dentro; quanto a
nós, com discursos devemos fazer nossa reunião hoje; e que
discursos — eis o que, se vos apraz, desejo propor-vos.51
Observa-se no curto diálogo a prática socrática no domínio racional dos
apetites e dos sentidos do corpo, pelos personagens da cena, resistindo tanto à
fadiga e à dor como ao prazer, tal como queria Platão ao conduzir o diálogo. Nota-se
que, junto da abdicação da bebida farta, foram dispensadas a música e a flautista.
Apenas com o intuito de referenciar a negativa socrático-platônica à dimensão
do inconsciente e da embriaguez e também de evidenciar a reticência para com a
própria música e a esfera feminina, acrescentou-se este diálogo do Banquete de
Platão, cujos elementos são valorizados na leitura da Grécia nietzschiana. É
51 PLATÃO. O banquete, ou, Do amor. Trad., intr. e notas: J. Cavalcante de Souza. 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003. § 176 a, b, c, d, e. p. 94.
29
evidente o intuito moralizante nos diálogos platônicos, levando os interlocutores e o
leitor a conclusões conduzidas pelo seu autor e pelo seu mestre.
Nietzsche, no texto O drama musical grego, faz menção às Dionisíacas
Urbanas,52 associadas às forças vitais e aos estados coletivos de deleite. Da mesma
forma, em O nascimento da tragédia, Nietzsche apresenta um argumento sobre as
festas dionisíacas como comemorações de redenção universal, celebrações que
consistiam em desenfreada licença sexual, sobrepassando todas as convenções
familiares e sociais. Estas celebrações estão associadas ao rompimento do
principium individuationis como um fenômeno artístico trágico.53 Novamente a
relação Apolo e Dionísio está presente: o primeiro, responsável pelo princípio
individualizador; e o segundo, pelo seu rompimento, o que aqui se associa ao
conceito de catarse apresentado na visão de Aristóteles.
Aristóteles estabeleceu que o sentido do termo [catarse,
associada à tragédia] é um alívio, combinado ao prazer, dos
mencionados afetos. [...] A catarse deste tipo não está ligada,
para Aristóteles, a nenhum efeito moral. Por outro lado, ela lhe
parece totalmente inofensiva, e aqui ele entra em contradição
clara, ainda que não declarada, com Platão. Que baniu
rigorosamente a tragédia de sua República ideal, por
considerá-la perigosa à moral dos cidadãos.54
52 As Grandes Dionisíacas ou Dionisíacas Urbanas eram festas em homenagem a Dionísio, celebradas em Atenas no mês de Efabolion, que corresponde ao período que vai da segunda metade de março até meados de abril (n. do t.). Nietzsche aponta também manifestações desse tipo de permissão social em festas da Idade Média e no carnaval. (NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude / Friedrich Nietzsche. Trad.: Marcos Sinésio Pereira Fernandes, Maria Cristina dos Santos de Souza; rev. da trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 54) 53 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 2, p. 34-35. 54 LESKY, Albin. A tragédia grega. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 28-29.
30
No Livro III de A República, encontra-se este traço de contestação à tragédia
e à imitação, em prol da epopéia, bem como a um certo tipo de música e à harmonia
de determinados instrumentos que não servem à educação ou ao Estado enquanto
formadores de cidadãos, pois podem remeter à experiência dionisíaca. A citação
seguinte traz um diálogo de longa argumentação que tenta descartar a imitação da
arte como caminho pedagógico, artístico ou filosófico:
— Há uma espécie de narrativa oposta a esta [imitação],
quando se suprime o que diz o poeta entre os discursos e se
deixa ficar unicamente o diálogo.
— [...] É a forma própria da tragédia.
— [...] Há uma primeira espécie de poesia e de ficção inteiramente
imitativa que compreende [...] a tragédia e a comédia; uma
segunda em que os factos são relatados pelo próprio poeta —
encontra-las-ás sobretudo nos ditirambos — e, finalmente, uma
terceira formação da combinação das duas precedentes em
uso na epopéia e em muitos outros gêneros.
— [...] tínhamos de decidir se permitiríamos aos poetas compor
narrativas meramente imitativas ou imitar uma coisa, e não
outra, e quais de uma e outra parte, ou se lhes proibiríamos a
imitação.
— Adivinho que vais analisar se devemos admitir ou não a
tragédia e a comédia na nossa cidade.55
Por intermédio do diálogo entre Sócrates com Gláucon e Simónides, e
também mediante uma argumentação lógica, o texto de A República segue em
confronto claro com os elementos dissonantes que compõe a música e a tragédia grega:
55 PLATÃO. A república. Diálogos – I. 2. ed. Notas e trad.: Sampaio Marinho. Portugal: Europa-América, s.d. p. 109.
31
— E a harmonia e o ritmo devem adequar-se às palavras?
— Como não?
— Mas nós dissemos que não devia haver queixas e
lamentações nos nossos discursos.
— Quais são, então, as harmonias plangentes? Diz-nos, visto
que és músico.
— São [...] a lídia mista, a lídia aguda e outras semelhantes.
— Por conseguinte, essas harmonias devem ser suprimidas,
não é verdade?, porque são inúteis para mulheres honradas e,
com mais forte razão, para homens.
— Certamente. [...]
— Sendo assim — repliquei —, não teremos necessidade, para
os nossos cantos e as nossas melodias, de instrumentos com
muitas cordas, que reproduzem todas as harmonias.56
Observa-se nos dois textos de Platão mencionados a abordagem negativa à
embriaguez, à música e à sensualidade. Isso é essencial, também, para a
compreensão posterior dos conceitos nietzschianos, principalmente no tocante à
morte da tragédia grega, com a expulsão da música do palco do espetáculo trágico.
A nova arte proporcionada por Platão a partir da severa lei antiga da unidade
da forma lingüística é o protótipo do romance, em que a poesia vive com a filosofia
dialética, como escrava.
Ao tratar da arte do herói trágico e do mito trágico, Nietzsche assume que só
pela música é possível acessar a universalidade dionisíaca. “Com essa harmonia
pré-estabelecida que impera entre o drama perfeito e a sua música, alcança o drama
um grau supremo de visualidade, de outro modo inacessível ao drama falado”.57
56 PLATÃO. A república. Diálogos – I. 2. ed. Portugal: Europa-América, s.d. Notas e trad.: Sampaio Marinho. p. 115-116. 57 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 21, p. 126, 128.
32
A fim de se compreender esta universalidade dionisíaca e o seu acesso pela
música trágica, apresentar-se-ão em seguida os fundamentos do Uno-primordial.
1.3 A teoria do Uno-primordial
O Uno-primordial como ‘uno vivente’
representa a totalidade da força vital da
natureza concebida como um único ser
vivo não individualizado. (Benchimol)58
É no início dos seus escritos, que Friedrich Nietzsche concebeu, ou intuiu,
uma série de elementos que proverão sua original produção filosófica posterior. Ou,
por que não dizer, desenvolveu os preceitos que justificam sua ruptura com a
tradição filosófica platônica.
Para se entender o conceito do Uno-primordial na perspectiva de Nietzsche, é
necessário encontrar na dimensão dionisíaca, excluída do cenário socrático, a via de
acesso mais autêntica para a compreensão da existência, sem deixar de considerar
a dimensão apolínea, necessária à consciência, à harmonia e ao processo de
individuação.
Os primeiros escritos da obra de Friedrich Nietzsche têm, entre outras
peculiaridades, a relevância dada à filosofia da Grécia antiga ou, mais
apropriadamente, à tragédia grega e aos filósofos pré-socráticos. Porém, a tese do
Uno-primordial passa pela noção romântica de sua época, em que se concebe a
imagem do mundo como um único organismo vivo que gera a si mesmo.
58 BENCHIMOL, Márcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 32.
33
É a partir da dimensão dionisíaca, presente na tese do Uno-primordial, que
Nietzsche desfere um ataque aos pressupostos do racionalismo da tradição
filosófica ocidental. Esse ataque está presente em seus primeiros escritos e conjuga
um esforço intelectual para superar a bipartição metafísica do mundo, estabelecida
pela racionalidade e compreendida até então entre o “real” e o “aparente”, ou seja,
entre a realidade do mundo físico e a do mundo metafísico. A idéia do mundo como
organismo vivo só pode ser concebida a partir desta superação da bipartição
metafísica.
Para tornar possível tal superação, Nietzsche analisa o momento em que
ocorre a supremacia da razão, que passa a ser entendida como princípio constitutivo
do Ser, concomitantemente à morte da tragédia grega. O filósofo pressupõe uma
incongruência entre o conceito e a realidade e, inspirado em Heráclito de Éfeso,
valoriza uma “percepção intuitiva” da existência, traço fundamental da filosofia
trágica, como um instrumento superior à racionalidade, para investigar a existência.
Daí a retomada da Grécia antiga como modelo para verificar e valorizar uma outra
forma de interpretação da vida e da existência e elaborar a metafísica de artista,
diferente da tradição ocidental, racionalista, e, assim, diagnosticar seu próprio
tempo.
Ao propor a superação da identidade entre conceito e realidade, questão que
se inicia em Sócrates,59 Nietzsche pretende subordinar a razão e a própria ciência a
uma instância de investigação anterior e mais essencial, qual seja, a interpretação
estética, artística e intuitiva da vida.
59 A leitura particular nietzschiana sobre Sócrates o aponta como responsável pela Decadence, mas esta terminologia não é usada por Nietzsche em seus primeiros escritos.
34
A vida, para Nietzsche, tem como fonte original uma natureza obscura,
irracional, cega e selvagem, dolorosa e atuante. É a perspectiva dionisíaca em
questão, ou o Uno-primordial.
Para elucidar o que significa essa natureza irracional, faz-se necessário
entender a oposição Apolo-Dionísio na tragédia grega, vista pela perspectiva de
Nietzsche, a fim de diferenciá-la da vontade (sua fonte inspiradora) em
Schopenhauer,60 que já havia constatado esta natureza irracional, em O mundo
como vontade e representação:
A Vontade também é o Em-si da coisa particular e do indivíduo
que a conhece, os quais a objetivam imperfeitamente. Vontade
que, alheia à representação e a todas as suas formas, é uma
única e mesma tanto no objeto contemplado quanto no
indivíduo que se eleva à contemplação e se torna consciente
de si como puro sujeito. Esses dois, por conseguinte, não são
em si diferentes, pois em si são a Vontade que aqui se
conhece a si mesma. Pluralidade e diferença existem apenas
devido à maneira como esse conhecimento chega à Vontade,
ou seja, apenas no fenômeno, e em virtude de sua forma, o
princípio da razão. Assim como eu, sem o objeto, sem a
representação, não sou sujeito que conhece, mas pura
Vontade cega, assim também sem mim, como sujeito do
conhecer, o objeto não é coisa conhecida, mas pura Vontade,
ímpeto cego.61
60 Ver o Capítulo 2.1 da presente investigação. 61 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Trad., apres., notas e índice: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005. § 34, p. 248-249.
35
A teoria do Uno-primordial é relevante para compreender a filosofia afirmativa
e dionisíaca de Nietzsche, diante da qual razão e consciência são apenas suas
manifestações superficiais.
Segundo Nietzsche, é a vida em seu transbordamento e não a vontade cega,
como descrita por Schopenhauer, que existe “no fundo das coisas”. Aponta
Benchimol que,
de fato, Nietzsche, através da idéia do Uno-primordial,
procurou compreender, assim com os filósofos pré-socráticos,
o surgimento dos entes individuais a partir da diferenciação de
um Ser primordial, afirmando, ao mesmo tempo, a necessária
dissolução destes entes novamente no seio daquele Ser. Com
isto, novamente à semelhança da filosofia pré-socrática,
procurou explicar o surgimento da pluralidade a partir da
unidade e do determinado a partir do indeterminado, bem como
dar conta da relação entre o Ser e o devir.62
Em Schopenhauer, a vontade como coisa em si sugere uma nostalgia pelo
nada. Para Nietzsche, esta vontade schopenhaueriana é aparência, fenômeno. O
prazer, em Nietzsche, é mais originário que a dor. A dor é considerada como
fenômeno decorrente da vontade de prazer, ou vontade de vir a ser.
Anna Hartmann Cavalcanti, esclarece sobre este distanciamento entre
Schopenhauer e Nietzsche:
A concepção da vontade como aparência representa [...] o
distanciamento de Nietzsche em relação à metafísica da
vontade de Schopenhauer e o desenvolvimento de uma
62 BENCHIMOL, Márcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 36.
36
concepção artística do Uno-primordial, descrito como um
processo de criação e produção ativa da aparência [...]. Esse
tema é apresentado na tese, desenvolvida no fragmento 12 (1),
de que a vontade é a forma mais universal da aparência. A
vontade é diferenciada do ser originário e descrita tanto como
forma da aparência quanto como alternância de dor e prazer.
Nietzsche caracteriza o sofrimento como fonte originária das
coisas, o ser verdadeiro, caracterizado como ‘a sensação de
si’. Esse sofrer e sentir projetam a vontade como um processo
artístico originário, através do qual é engendrada a forma e a
visão, a libertação da dor na aparência. A vontade,
compreendida como a forma mais geral da aparência e
associada ao devir.63
Assim, observa-se que existe um elemento essencial no Uno-primordial, que
é a necessidade de libertação do ser verdadeiro, em sua eterna dor e contradição,
por meio da visão extática e da aparência prazerosa, conclui Cavalcanti.
A dimensão dionisíaca que se pode perceber a seguir diz respeito à
dissolução do princípio individualizador apolíneo:
Vejo Apolo diante de mim como gênio transfigurador do
principium individuationis, único através do qual se pode
alcançar de verdade a redenção na aparência, ao passo que,
sob o grito de júbilo místico de Dionísio, é rompido o feitiço da
individuação e fica franqueado o caminho para as Mães do Ser,
para o cerne mais íntimo das coisas.64
63 CAVALCANTI, Anna Hartmann. Símbolos e alegoria: a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche. São Paulo: Annablume; Fapesp. Rio de Janeiro: DAAD, 2005. p. 188. 64 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 16, p. 97.
37
É evidente a importância das duas forças na sustentação nietzschiana de que
a tragédia grega, pela metafísica do artista, enaltece a aparência como necessária à
vida e como única via de acesso “à essência”, ou ao Uno Primordial.
Ao evidenciar a filosofia socrática que privilegia, lega, uma visão racional e
lógica da realidade, Nietzsche evidencia a fonte moral intencional do instinto do
conhecimento. O que o filósofo propõe é uma perspectiva alternativa que implica
uma apologia à arte trágica em que, em Dionísio, reside a afirmação da vida pela
aparência, porque a própria vida é aparência.
Anna Hartmann Cavalcanti apresenta em seu livro Símbolos e alegoria: a
gênese da concepção de linguagem em Nietzsche, um estudo sobre O nascimento
da tragédia e os Fragmentos póstumos, os pressupostos metafísicos que dão
origem à teoria estética nietzschiana e ao conceito do Uno-primordial.
O filósofo observa que as pulsões artísticas da natureza, em
sua aspiração à aparência, revelam um elemento essencial do
Uno Primordial, a saber, a necessidade de libertação do ser
verdadeiro, em sua eterna dor e contradição, por meio da visão
extática e prazerosa.65
Cavalcanti ainda acrescenta uma importante observação quanto a um duplo
movimento de Nietzsche, que, ao conceber o conceito ontológico do Uno-primordial,
desenvolve, assim, uma metafísica da arte, ao mesmo tempo que tece uma crítica à
metafísica e os seus pressupostos clássicos.
Segundo Nietzsche, há uma oposição entre um instinto estético e um instinto
de conhecimento. Ele aponta Apolo como gênio transfigurador do principium
65 CAVALCANTI, Anna Hartmann. Símbolos e alegoria: a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche. São Paulo: Annablume; Fapesp. Rio de Janeiro: DAAD, 2005. p. 187.
38
individuationis, proposto como único veio de alcance da verdade (instinto de
conhecimento). Porém, apesar deste afã socrático, é pelo júbilo dionisíaco (aquela
“isca” perigosa do instinto estético, que aturdiu o filósofo na hora da morte),66 que tal
feitiço da individuação se dissolve dando acesso ao caminho para as “Mães do Ser”,
ou “cerne mais íntimo das coisas”, ou seja, o Uno-primordial.
A essência do Uno-primordial é a contradição, caracterizando-se tanto pela
dor suprema quanto pelo prazer supremo.
O êxtase do estado dionisíaco, com sua aniquilação das usuais
barreiras e limites da existência, contém, enquanto dura, um
elemento letárgico no qual imerge toda vivência pessoal do
passado. Assim se separam um do outro, através desse
abismo do esquecimento, o mundo da realidade cotidiana e o
da dionisíaca. Mas tão logo a realidade cotidiana torna a
ingressar na consciência, ela é sentida como tal com náusea;
uma disposição ascética, negadora da vontade, é o fruto de
tais estados.67
Por “limites da existência” e “usuais barreiras”, entendem-se a dimensão
moral criticada por Nietzsche, ou a opção pelo conteúdo luminoso da razão, ou
ainda o princípio individualizador próprio do deus Apolo que proporciona a
capacidade de tolerar o absurdo da existência.
O elemento letárgico, que Nietzsche descreve como oriundo das vivências
pessoais do passado, é o que impede de alcançar uma perspectiva sobre o
movimento e sobre a transformação da existência que a arte trágica, a música
66 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 12, p. 78. 67 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 7, p. 55-56.
39
ditirâmbica ou o instinto estético proporcionam. Segundo Leon Kossovitch, em
Signos e poderes em Nietzsche, a figura, ou arte plástica apolínea, é passiva, é a
ignorância de movimento – as intensidades móveis estão do
lado de Dionísio. Supressão das distâncias e da visão: o
movimento dionisíaco suscita as reações musicais – canto e
dança. Mas não menos essencial – que só a música e a
mística fornecem – é o estabelecimento de uma comunicação
que unifica as singularidades, abolindo-as como indivíduos,
como consciência.68
Desta forma, pode-se compreender a validação dos dois movimentos: o de
dissolução das consciências e das individualidades pela dimensão dionisíaca; e a de
tomada de consciência e de individuação proporcionada pela dimensão apolínea.
Contudo, na composição da tragédia grega, a partir do coro, há uma ênfase
na música dionisíaca, vista como apta a conduzir o homem ao “coração da natureza”
e, assim, promover a sua reconciliação com a existência. Esta é a justificativa de
Nietzsche ao interpretar a civilização grega como referência, ao ser capaz de
conjugar a arte trágica como curativa e redentora da vida.
Aqui, neste supremo perigo da vontade, aproxima-se, qual
feiticeira da salvação e da cura, a “arte”; só ela tem o poder de
transformar aqueles pensamentos enojados sobre o horror e o
absurdo da existência em apresentações com as quais é
possível viver: são elas o “sublime”, enquanto domesticação
artística do horrível, e o “cômico”, enquanto descarga artística
da náusea do absurdo. O coro satírico do ditirambo é o ato
salvador da arte grega; no mundo intermédio desses
68 KOSSOVITCH, Leon. Signos e poderes em Nietzsche. Rio de Janeiro: Azougue, 2004. p. 169-170.
40
acompanhantes dionisíacos esgotam-se aqueles acessos há
pouco descritos.69
Esta é a relação da tensão entre os opostos que se complementam e não se
aniquilam. Esta luta oferece, ora em Apolo, ora em Dionísio, os determinantes para a
afirmação da vida, pois conferem a dinâmica da tragédia grega.
Para lograr o êxito proposto de encontrar na dimensão dionisíaca a via mais
autêntica para compreender a existência, faz-se necessário entender o sentido da
vontade e sua distinção da concepção schopenhaueriana do que Nietzsche chama
de “fundo originário” desta própria vontade, ou sentido primordial de todas as coisas
– o Uno-primordial, fonte da suprema dor e do intenso prazer.
A dor, compreendida como fundo originário da vontade e como é concebida
por Schopenhauer, é absorvida como influência pessimista por Nietzsche. Não
obstante, em O nascimento da tragédia e, novamente, na Tentativa de Autocrítica,
encontra-se também uma revisão de sua posição frente ao seu mestre, marcada
pela presença mais pujante de Dionísio. Esta se mostra na interpretação deste fundo
originário, também como prazer e sensualidade. E deste prazer evoca a força de
redenção diante da obliteração, socrática e cristã. Para os dois filósofos, a vontade é
a contradição e a dor. Não obstante, para Schopenhauer, a arte possibilita um
apaziguamento diante da vontade, enquanto em Nietzsche, a própria vontade é
aparência e, portanto, a possibilidade artística de redenção nela mesma. Em última
instância, esta dimensão dionisíaca é o elemento adotado por Nietzsche para a
superação do pessimismo schopenhaueriano.
69 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 7, p. 56.
41
O ódio ao “mundo”, a maldição dos afetos, o medo à beleza e à
sensualidade, um lado-de-lá inventado para difamar melhor o
lado-de-cá, no fundo um anseio pelo nada, pelo fim, pelo
repouso. [...] A moral mesma – como? A moral não seria uma
“vontade de negação da vida”, um instinto secreto de
aniquilamento, um princípio de decadência, apequenamento,
difamação, um começo do fim? E, em conseqüência, o perigo
dos perigos? [...] Contra a moral, portanto, voltou-se então,
com este livro problemático, o meu instinto, como um instinto
em prol da vida, e inventou para si, fundamentalmente, uma
contradoutrina e uma contra-valoração da vida, puramente
artística, anticristã. Como denominá-la? Na qualidade de
filólogo e homem das palavras eu a batizei, não sem alguma
liberdade – pois quem conheceria o verdadeiro nome do
Anticristo? – com o nome de um deus grego: eu a chamei
“dionisíaca”.70
Esta força dionisíaca mostra-se em duas facetas do mesmo deus. Uma, do
deus da desmesura, do caos, do êxtase; e outra, do deus da fecundidade da terra.
Esta diferenciação torna-se cada vez mais clara diante da recorrência que Nietzsche
faz das forças dionisíacas e marca a retomada deste “impulso” ou “instinto” estético,
que apareceu na segunda fase dos seus escritos. Daí, estar na Tentativa de
Autocrítica, quatorze anos depois da primeira edição de O nascimento da tragédia, e
em Assim Falou Zaratustra, permanecendo até os últimos escritos da terceira fase.
Deleuze aponta tal distinção, distinguindo as características das duas faces do deus
Dionísio mencionadas. Afirma que “estamos longe do primeiro Dionísio, aquele que
70 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 5, p. 19-20.
42
Nietzsche concebia sob a influência de Schopenhauer, como reabsorvendo a vida
num Fundo original, como aliando-se a Apolo para produzir a tragédia”.71
É a este Dionísio da afirmação da vida que Nietzsche faz o seu elogio. E lhe
dá a importância de “antídoto”, contra a socratização da cultura apolínea. No texto
de As Bacantes, de Eurípides, ficam claras as duas aparições dionisíacas: uma
personificada, outra impessoal, uma interpretação que impregna medo, outra que
seduz e inebria.
Em Diálogo, Penteu que já se referia aos atributos físicos de Dionísio,
descreve-o deste modo:
A verdade é que não és desgracioso de corpo, ó estrangeiro,
pelo menos para o gosto das mulheres, por quem vieste a
Tebas. Os teus cabelos compridos, porque não lutas nas
palestras, caem-te pelas faces, plenos de desejo. Graças aos
teus cuidados, possuis uma tez branca, conservada, não aos
raios do Sol, mas no recanto da sombra, e com a tua beleza
consegues captar as graças de Afrodite. 72
A exemplo destas duas aparições, nas notas da tradutora de As bacantes,
Maria Helena da Rocha Pereira, são expressos os conteúdos ligados ao uso das
máscaras na tragédia grega, bem como a afirmação do coro como representações
dionisíacas.
Pereira comenta, ainda, que o uso dessa máscara por Dionísio traz um
sorriso ambíguo: ora um sorriso de mártir, ora um sorriso destruidor.73 No coro de As
bacantes, no épodo, são referidas as formas animalescas que Dionísio pode
assumir, invocando um enigmático sorriso bizarro: “aparece com a forma de touro ou
71 DELEUZE, Gilles. Nietzsche. Edições 70: Lisboa Portugal, 1965. p. 29-30. 72 EURÍPIDES. As bacantes. Lisboa: Edições 70, 1998. § 455, p. 57. 73 EURÍPIDES. As bacantes. Lisboa: Edições 70, 1998. p. 22, 49, 57, 86 passim.
43
serpente multifauce ou leão ignispirante. Vai, ó Baco, com teu rosto sorridente, e ao
caçador das Ménades rodeia-o com teu laço mortífero, quando ele tomba na
manada das Bacantes”.74
Na citação a seguir, Roberto Machado traz uma passagem que ilustra a força
Dionisíaca retomada pelo próprio Eurípides, autor de As Bacantes, como
arrependimento pela morte da tragédia. O culto dionisíaco das bacantes – cortejos
orgiásticos de mulheres que, em transe coletivo, dançando, cantando e tocando
tamborins em honra de Dionísio, à noite, nas montanhas, invadiram a Grécia, vindos
da Ásia – é a negação dos valores principais da cultura apolínea. Em vez de um
processo de individuação, é uma experiência de reconciliação do homem com os
outros homens e com a natureza, uma harmonia universal e um sentimento místico
de unidade:
Sob a magia do dionisíaco, torna a selar-se não apenas o laço
de pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada,
inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa da
reconciliação com seu filho perdido, o homem. [...] A
experiência dionisíaca é a possibilidade de escapar da divisão,
da multiplicidade individual e se fundir ao uno, ao ser; é a
possibilidade de integração da parte na totalidade.75
A arte trágica é caracterizada pela complementaridade entre Apolo e Dionísio,
e não por uma suposta oposição entre estes deuses. E esta peculiaridade é a nova
estratégia artística nietzschiana de integrar, e não mais de obliterar, o elemento
74 EURÍPIDES. As bacantes. Lisboa: Edições 70, 1998. Coro § 1020, p. 87. 75 MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia nietzschiana. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 88-89.
44
dionisíaco que outrora fora transformado no próprio desgosto e horror pelo “absurdo”
da dor da existência.76
A complementaridade parte de uma diferença essencial entre as divindades.
Sem esta compreensão, não se pode entender a tese do Uno-primordial. Kossovitch
faz um esclarecimento desta diferença, no âmbito da dinâmica de movimento,
transformação e afirmação do devir, inerentes a esta tese.
A diferença Apolo/Dionísio é a da arte passiva e da ativa. A
experiência dionisíaca é a dor do criador: é aqui que a alegria
disseminadora de signos se exibe, mas é aqui também que se
exprime o sim. Afirmar o devir no seu duplo movimento de
criação e destruição das distribuições; não mais a visão, por
essência recuo, separação, variedade, mas a experiência da
inclusão numa totalidade subterrânea, em todos os pontos
ativa: o amor fati.77
Assim, o Uno-primordial adquire status ontológico de coisa-em-si e também
de origem de todo o mundo fenomenal, desempenhando o papel da vontade em
Schopenhauer, porém distinguindo-se em sua formulação. A vida é tomada como
tese fundadora e anterior a qualquer forma fenomênica.
Para compreender melhor a tese do Uno-primordial e as suas implicações
com relação à vontade e à representação ou ao mundo fenomênico e ao mundo
aparente, faz-se necessário identificar nas perspectivas de Schopenhauer as
distinções e categorias nietzschianas. Para tal, serão abordadas a seguir a vontade
76 MACHADO, Roberto, Nietzsche e a verdade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 22 ss. 77 KOSSOVITCH, Leon. Signos e poderes em Nietzsche. Rio de Janeiro: Azougue, 2004. p. 170. As questões do devir e da criação e destruição serão abordadas no Capítulo 4, Item 4.2 do presente trabalho.
45
em Schopenhauer e a teoria do Uno-primordial em Nietzsche, bem como os
diferentes significados do pessimismo em cada um destes filósofos.
46
2 A VONTADE EM SCHOPENHAUER E O UNO-PRIMORDIAL EM
NIETZSCHE
O propósito deste capítulo é estudar o pensamento de Friedrich Nietzsche,
examinando-o a partir das suas principais influências filosóficas, qual sejam, a
interpretação do mundo como vontade e representação, e o pessimismo metafísico
de Schopenhauer. É, também, apresentar a tentativa de superação deste
pessimismo, por parte de Nietzsche.
A partir da diferença entre a vontade em Schopenhauer e o Uno-primordial
em Nietzsche, burcar-se-á retomar as questões apolíneas e dionisíacas presentes
no pensamento destes dois filósofos. Assim, pretende-se contrapor o pessimismo
schopenhaueriano ao encontrado em O nascimento da tragédia, e examinar o
esforço do jovem filósofo para superar tal legado em uma proposição afirmativa da
vida, a qual é fruto de uma ênfase nietzschiana a Dionísio.
2.1 A diferença entre a vontade em Schopenhauer e o Uno-primordial em
Nietzsche
Também para Schopenhauer o homem deve
ser superado; mas em Schopenhauer o
homem é o superado e para Nietzsche aquele
que supera. (Georg Simmel)1
1 SIMMEL, Georg. Schopenhauer y Nietzsche. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2005. p. 157. Tradução livre.
47
O distanciamento entre a filosofia de Schopenhauer e a de Nietzsche ocorre
antes mesmo deste último concluir seu livro O nascimento da tragédia, embora a
influência schopenhaueriana esteja presente na obra de Nietzsche.
Esta ruptura já se mostrava na mudança de interpretação sobre a arte e em
especial sobre a música. No texto A visão dionisíaca do mundo, de 1870, observa-se
uma leitura mais fiel de O mundo como vontade e representação sob o aspecto
musical, do que em O nascimento da tragédia, no qual já se percebem indícios de
um afastamento em relação à metafísica de Schopenhauer.
Anna Hartmann Cavalcanti, em um estudo sobre o fragmento póstumo 12 (1)
no livro Símbolo e alegoria: a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche,
aponta tal distinção:
Nietzsche introduz, no fragmento 12 (1), importantes
modificações na teoria do sentimento desenvolvida em A visão
dionisíaca do mundo, na qual afirma, em concordância com a
filosofia de Schopenhauer, que a música simboliza todas as
nuances do sentimento, sendo capaz de expressar a própria
essência da vontade.2
Trata-se de uma mudança em relação à filosofia da arte schopenhaueriana e
sua interpretação sobre a música. Esta forma de arte era considerada por
Schopenhauer como a mais elevada em função de manifestar a vontade. Para
Nietzsche, por sua vez, ela é a própria expressão direta de um “fundo originário”.
2 CAVALCANTI, Anna Hartmann. Símbolo e alegoria: a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche. São Paulo: Annablume; Fapesp. Rio de Janeiro: DAAD, 2005. p. 149.
48
Mudou, então e por conseqüência, em Nietzsche, a noção schopenhaueriana em
relação à vontade.
Nietzsche aponta uma contradição em seu mestre, pois, para ele, a música
não pode ser a manifestação de algo que não pode ser representado. Para
Schopenhauer, a música é a reprodução direta da vontade mesma, porém,
contraditoriamente, elas não são idênticas, pois a vontade, enquanto coisa em si, é
irrepresentável.
José Thomaz Brum faz um estudo sobre a diferença entre os dois filósofos no
que concerne ao pessimismo e concorda neste ponto com Nietzsche:
se a música designa a essência do mundo e da vontade e
engendra prazer violento, ela não pode convidar à resignação
como vimos no caso da tragédia. Schopenhauer, que rejeita as
manifestações dolorosas da vontade no mundo, extasia-se
com o prazer musical. Ele experimenta uma satisfação estética
nesse mundo à parte nessa ‘língua do sentimento e da paixão’.
A filosofia schopenhaueriana da música, que representa a
coisa em si efetivamente a cantar, revela um pessimista que
se submete ao poder efêmero da consolação pelo som.3
O mundo é para Schopenhauer sobretudo vontade. E é com o corpo que se
tem acesso à realidade originária e dolorosa. A vontade, enquanto impulso cego e
visceral, ávido de vida, se objetiva em idéias e fenômenos, e é percebida pelo
princípio de individuação no mundo dos fenômenos, dentro do espaço e do tempo. A
vida se consome a si mesma e isto é a causa da dor e do sofrimento. “Aquele tipo
3 BRUM, José Thomaz. O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 94.
49
mais suave, mais rápido, mais sutil de ação dos corpos uns sobre os outros, ao qual
agradecemos a de longe mais perfeita e pura das nossas percepções”.4
Georg Simmel, ao considerar as diferenças entre Nietzsche e Schopenhauer,
apresenta a seguinte distinção:
A diferença de posição entre ambos os filósofos, apesar da
concordância quanto ao ponto de partida – negação do fim
absoluto como ser –, acentua-se naqueles valores aos quais
se dirige principalmente a desvalorização schopenhaueriana
do mundo. Quando num dado momento não existe nem um
fim absoluto, como no cristianismo, nem um relativo, como na
teoria da superação de Nietzsche, o valor se traslada
indefectivelmente e as emoções são determinadas pelo
próprio momento, em dor e em prazer.5
Schopenhauer aponta, na música, a capacidade de causar alívio
momentâneo a esta dor que é sentida pelo corpo.
Em Nietzsche, a noção de vontade – o princípio originário – é,
simultaneamente, dor e prazer supremos. Em A visão dionisíaca do mundo, ele
escreve que “nos gregos a vontade queria se contemplar transfigurada em obra de
arte: para se magnificar, as suas criaturas precisavam se sentir como dignas de
magnificação, elas precisavam se rever em uma esfera mais alta”.6
A tragédia grega está assentada em meio a um transbordamento de vida,
enaltecido por Nietzsche, aceitando sofrimento e prazer em um êxtase sublime e
4 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Trad., apres., notas e índices: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005. § 38, p. 272-273. 5 SIMMEL, Georg. Schopenhauer y Nietzsche. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2005. p. 20. Tradução livre. 6 NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude / Friedrich Nietzsche. Trad.: Marcos Sinésio Pereira Fernandes; Maria Cristina dos Santos de Souza. Rev. da trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 18.
50
dionisíaco. A tragédia escuta um cantar distante – o cantar que fala das Mães do
Ser, cujos nomes são ilusão, vontade e dor da vida em abundância.7 O termo Mães
do Ser, em Nietzsche, é usado como recorrência ao Uno-primordial, assim como as
expressões Fundo Originário e Fonte Primaveril e, mesmo Vontade. Todos esses
termos, apesar dos diferentes significados e símbolos que carregam, remetem à
mesma tese do Uno-Primordial, que os engloba. A natureza do Uno-primordial,
marcada por dor e sofrimento, neste filósofo, é também supremo prazer e embriaguez.
Anna Cavalcanti salienta que a tese nietzschiana do Uno-primordial tem uma
natureza conflituosa e que o sofrimento originário, cuja essência é a contradição,
procura sua superação na aparência. Ainda referenciando o fragmento 12 (1), neste
âmbito, ela explica que:
O principal aspecto que diferencia o fragmento 12 (1) de O
nascimento da tragédia é justamente o de formular a
existência de dois diferentes domínios da experiência, o
âmbito fenomênico e um âmbito que escapa às
representações, a partir do questionamento do caráter
metafísico da vontade, assim como da caracterização da
linguagem como uma atividade simbólica, sem relação com a
essência das coisas. Diferentemente de O nascimento da
tragédia, onde esse distanciamento em relação a
Schopenhauer não é explicitado, nesse fragmento a vontade,
assim como o conjunto do mundo pulsional, só podem ser
conhecidos enquanto representação, não segundo a essência.
E o fundamento originário, não mais associado ao conceito de
vontade de Schopenhauer, passa a ser descrito de modo
7 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 20, p. 123.
51
indireto, a fim de enfatizar o caráter inacessível às nossas
representações, indecifrável desse domínio originário.8
Em contraposição, para Nietzsche, a vontade é uma forma de fenômeno, ou
ainda, ela pertence ao mundo da aparência. Assim, a arte, para Schopenhauer e
Platão, é pura imitação das idéias. Já para Nietzsche ela é a própria “aparição” de
uma instância originária que, na tragédia grega, pela música trágica, ocorre no coro
a figura do deus Dionísio.
A estética de Schopenhauer é um elogio ao homem contemplativo que foge
do mundo. Já a estética de Nietzsche se mostra como um elogio às aparências e
promove a reconciliação das pulsões artísticas com a existência.9 O que resulta em
dizer que a arte, para Schopenhauer, é apenas um consolo, um sedativo
momentâneo, enquanto, para Nietzsche, ela se mostra como a via de acesso para a
essência do mundo.
Anna Hartmann Cavalcanti aponta, ainda sobre o Uno-primordial, que o
substancial é a sensação, o aparente é o corpo ou a matéria. Em seu estudo, a
distinção entre sensação e a forma é um elemento essencial para reflexão sobre a
teoria do Uno-primordial.10 A autora observa que a sensação não é produto do
corpo, mas ele é o resultado da sensação, ou seja, é uma projeção artística, uma
imagem.11
Para Rosa Maria Dias, em conformidade com esta idéia, Nietzsche percebe
esta vontade diferentemente de Schopenhauer, por ultrapassar as barreiras usuais
8 CAVALCANTI, Anna Hartmann. Símbolo e alegoria: a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche. São Paulo: Annablume; Fapesp. Rio de Janeiro: DAAD, 2005. p. 54-55. 9 BRUM, José Thomaz. O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 115-116. 10 CAVALCANTI, Anna Hartmann. Símbolos e alegoria: a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche. São Paulo: Annablume; Fapesp. Rio de Janeiro: Daad, 2005. p. 189. 11 A autora usa em seu texto a palavra célula para o que aqui foi apresentado como corpo.
52
dos postulados da racionalidade. Obtém-se, assim, a compreensão por intermédio
da intuição12 poética.13
Por fim, o que diferencia o pensamento de Schopenhauer do de Nietzsche é o
seu posicionamento diante da vida.
Schopenhauer carece de compreensão para com o sentimento
que perpassa Nietzsche plenamente, quanto ao sentimento da
solenidade da vida. Nietzsche, em oposição a Schopenhauer,
extraiu do pensamento da evolução um conceito completamente
novo de vida: o de que a vida é, no seu ser mais íntimo e
próprio, intensificação, aumento, concentração cada vez maior
das forças ambientes no sujeito.14
O que Simmel reconhece em Nietzsche é o sentimento de solenidade perante
a vida. A idéia de dor, medo e sofrimento schopenhaueriana é substituída, em
Nietzsche, por um regozijo diante da vida. A visão do terror diante da vontade, em
Schopenhauer, é transfigurada em louvor à vida, em Nietzsche, que fala em dádiva
já na Seção 1 de O nascimento da tragédia, quando descreve a transfiguração
dionisíaca proporcionada não pela tristeza, mas, antes, pela alegria.
Agora, graças ao evangelho da harmonia universal, cada qual
se sente não só unificado, conciliado, fundido com o seu
próximo, mas um só, como se o véu de Maia tivesse sido
rasgado e reduzido a tiras, esvoaçasse diante do misterioso
Uno-primordial. Cantando e dançando, manifesta-se o homem
12 A intuição é o instrumento de investigação que Nietzsche observa, por exemplo, na filosofia heraclitiana. A intuição, em Heráclito, será apresentada no item 4.1. da presente investigação. 13 DIAS, Rosa Maria. Nietzsche e Schopenhauer: uma primeira ruptura. In: FEITOSA, Charles et al. A fidelidade à terra: arte, natureza e política. Assim falou Nietzsche IV. Rio de Janeiro: DPA, 2003. p. 240. 14 SIMMEL, Georg. Schopenhauer y Nietzsche. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2005. p. 15-16. Tradução livre.
53
como membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu
a andar e a falar, e está a ponto de, dançando, sair voando
pelos ares.15
A arte trágica permite afirmar o sofrimento universal como que inerente à vida
e sua expansão inexorável, ou, como salienta Rogério Miranda de Almeida em
Nietzsche e o paradoxo: “o heleno profundo lança seu olhar sobre as forças
destruidoras da história e da natureza, corre sempre o risco ‘de aspirar a uma
negação budística da vontade’. Mas a arte vem em seu socorro, ela o salva...
transfigurando-o [o sofrimento universal] pela afirmação ou pelo sim à vida”.16
A influência de Schopenhauer está presente em todo O nascimento da
tragédia e, com ela, as idéias de Kant e as implicações entre o que é acessível e o
que é incognoscível. Porém, por meio da arte trágica, mediante a ilusão apolínea e a
música dionisíaca, é revelado o fundo mais íntimo das coisas, da vontade ou do
Uno-primordial, apesar do caráter mutável do mundo fenomênico.
Ainda no texto de Rogério Almeida, se assevera o distanciamento de
Nietzsche em relação à doutrina schopenhaueriana da resignação.
Nos últimos capítulos [de O nascimento da tragédia], Nietzsche
não se contentará mais em se interrogar sobre as relações
entre o apolíneo e o dionisíaco, nem em somente constatar que
a tragédia reproduz a vontade universal, onde o artista e o
espectador dionisíaco mergulham o olhar no Uno originário e,
assim, transfiguram o sofrimento por meio da arte. Não! Ele
dará um passo a mais na tentativa de captar este fenômeno
15 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Seção 1, p. 31. 16 ALMEIDA, Rogério Miranda de. Nietzsche e o paradoxo. São Paulo: Loyola, 2005. p. 29.
54
original que é a arte dionisíaca e de compreender em que
propriamente consiste o gozo que nela experimentamos.17
Sem recorrer a uma justificativa moral sobre o prazer, Nietzsche contesta a
interpretação do mito trágico, quando visto como catarse ou efeito de alívio. O mito
é, segundo o filósofo, uma forma superior de arte e não uma descarga de tensões
sociais. Para entender esta forma de arte e a sua pulsão e sua alegria dionisíacas,
faz-se necessário apresentar a perspectiva do pessimismo em Schopenhauer e em
Nietzsche. Isso, além de observar a tentativa de superação por parte do discípulo
em relação à postura schopenhaueriana de resignação frente à vida.
No próximo item da presente pesquisa, após identificar as diferenças entre a
vontade em Schopenhauer e o Uno-primordial em Nietzsche, abordar-se-á a
superação do pessimismo na filosofia que se pretendia afirmativa da vida.
2.2 Nietzsche e a superação do pessimismo em Schopenhauer
Todo o querer nasce de uma necessidade,
portanto de uma carência, logo, de um
sofrimento. A satisfação põe um fim ao
sofrimento; todavia, contra cada desejo
satisfeito, permanecem pelo menos dez
que não o são. (Schopenhauer)18
Ainda hoje, as discussões acerca da “superação” do pessimismo
schopenhaueriano nos primeiros escritos de Nietzsche ter sido alcançada ou não,
17 ALMEIDA, Rogério Miranda de. Nietzsche e o paradoxo. São Paulo: Loyola, 2005. p. 29-30. 18 SCHOPENHAUER, Artur. O mundo como vontade e como representação. Trad., apres., notas e índices: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005. § 38, p. 266.
55
divide a opinião de seus comentadores. A proposta afirmativa da vida baseada na
dimensão dionisíaca manifestada especialmente na arte, e não na transcendência,
já se mostrava vigorosa nesta sua primeira obra e define um referencial para tal
superação. Para o filósofo, não é o otimismo que substitui o pessimismo, mas antes
uma outra forma de entender o pessimismo pela via trágica.
O próprio Nietzsche, na sua auto-crítica a O nascimento da tragédia,
reconheceu a “dificuldade” de sua compreensão. Apesar de afirmar que o livro
estava destinado “para iniciados”, apontando a sua “inconveniência”, tanto quanto à
sua forma, quanto ao seu conteúdo. Considerou-a
edificada a partir de puras vivências próprias prematuras e
demasiado verdes, que afloravam todas à soleira do
comunicável, colocado sobre o terreno da arte [...]. Um livro
talvez para artistas [...]. Ainda assim não quero encobrir de todo
o quanto ele me parece agora desagradável, quão estranho se
me apresenta agora [...]. Este livro temerário ousou pela
primeira vez aproximar-se – ver a ciência com a óptica do
artista, mas a arte, com a da vida...19 [grifo presente no original]
Afirma também, na mesma auto-crítica:
Um livro talvez para artistas dotados também de capacidades
analíticas e retrospectivas (quer dizer, um tipo excepcional de
artistas, que é preciso buscar e que às vezes nem sequer se
gostaria de procurar...), cheio de inovações psicológicas e de
segredos de artistas, com uma metafísica de artista no plano
de fundo, uma obra de juventude, cheia de coragem juvenil e
de melancolia juvenil, independente, obstinadamente autônoma, 19 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Seção 2, p. 15.
56
mesmo lá onde parece dobrar-se a uma autoridade e a uma
devoção própria, em suma, uma obra das primícias, inclusive
no mau sentido da palavra.20
Com esta perspectiva, faz uma crítica ao contexto de sua época,
reafirmando a dimensão dionisíaca ou artística como antídoto ou cura às
conseqüências da metafísica tradicional. Reedita o que ele chamou de “livro
impossível”,21 sem modificações, apenas com o acréscimo do posfácio Tentativa de
autocrítica. Nele, apresenta sua preocupação quanto ao pessimismo e sua interface
com o dionisíaco.
Como pressuposto fundamental desta pesquisa, aceitam-se a importância e
a deferência da obra primeira de Nietzsche como intuição e origem, suporte e
“húmus filosófico” da sua construção teórico-filosófica. Nela, reconhecem-se a arte
trágica e a dimensão dionisíaca como critérios básicos para a realização de toda a
sua produção.
Quanto ao contraste entre o pessimismo de Schopenhauer e a afirmação da
vida na obra de Nietzsche, cabe observar que, quando Nietzsche escolhe o autor de
O mundo como vontade e como representação como inspiração do seu primeiro
livro, foi porque este lhe ofereceu todo um arcabouço de reflexões impregnadas de
inovações no campo crítico de superação do que estava instituído como válido e
vigente na filosofia do século XIX.
Schopenhauer foi um dos primeiros pensadores a criticar o idealismo, que
teve como ponto de partida os pressupostos filosóficos de Platão e de Kant,
passando também por Hegel. Esses pressupostos delineavam um pensamento
20 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Seção 2, p. 15. 21 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Seção 2, p. 15.
57
otimista, confiante na capacidade de a ciência e a lógica responderem aos anseios
da civilização. Mas, para Nietzsche, as idéias modernas e a crença na ciência
banalizavam o que havia de mais sublime: a vida
Segundo Paschoal, em Notas preliminares à leitura da I Consideração
extemporânea [ou intempestiva] de Friedrich Nietzsche (1873),
em oposição a esse mundo desencantado das idéias
modernas, Nietzsche propõe uma renovação da cultura alemã,
por meio da filosofia de Schopenhauer, de alguns aspectos da
cultura grega antiga e da música de Wagner. Frente à
banalização do sublime, propõe a arte como representação da
tensão que caracteriza a existência da força mítica da vida,
como expressa a figura de Dionísio.22
A filosofia de Schopenhauer é fruto de uma “intuição” de mundo, em que o
filósofo estabeleceu uma distinção entre os fenômenos e a coisa-em-si (noumenon),
ou seja, entre o aparente e o que existe em si mesmo. Deve-se lembrar que, para
Kant, a coisa-em-si não pode ser objeto de conhecimento científico como até então
pretendeu a metafísica clássica. Assim, a ciência restringir-se-ia ao mundo dos
fenômenos e seria consolidada pelas formas a priori da sensibilidade (espaço e
tempo) e pelas categorias do entendimento.
Em sua metafísica, Schopenhauer introduz algo que não existia no
pensamento kantiano. Conclui que o mundo não seria mais do que representações,
ou seja, intui que “o mundo”, num primeiro momento, seria uma síntese entre o
subjetivo e o objetivo ou entre a consciência humana e a realidade exterior. Assim,
22 PASCHOAL, Antonio Edmilson. Notas preliminares à leitura da I Consideração extemporânea de Friedrich Nietzsche. 2006. Inédito. Segundo Paschoal, este texto compreende a preocupação do autor em ler a cultura de seu tempo.
58
contrariando Kant, Schopenhauer pretendeu apreender a coisa-em-si, que para
aquele é inacessível ao conhecimento humano.
Para o autor de O mundo como vontade e representação, a experiência
interna revela ao “indivíduo” que ele é um ser que move a si mesmo. É pela
experiência interna do indivíduo, que ele se percebe mais do que um objeto entre
outros. Ainda, a coisa-em-si, conclui o autor, a raiz metafísica de toda a realidade,
seria a vontade.
O mundo para Schopenhauer é, em essência, vontade. Ao pensar a vontade
e a representação, o filósofo, em sua obra principal, esclarece que o mundo aparece
ao homem em sua multiplicidade e em suas numerosas particularidades. Ele, o
mundo, tem duas faces inseparáveis e necessárias: uma é o objeto – suas formas
são o espaço e o tempo –, daí a pluralidade; a outra metade é o sujeito, que não se
coloca no espaço e no tempo, no momento em que percebe ou que tem consciência
da realidade.
Porém, como perceber essa realidade que se encontra “oculta” por detrás
das aparências? Para Schopenhauer é por meio do corpo que se tem acesso a esta
realidade, ou se toma consciência interna de que ela é vontade – um em si.
Também, o corpo humano é apenas objetivação da vontade, tal como aparece sob
as condições da percepção externa.
A vontade é, de acordo com Schopenhauer, o princípio fundamental da
natureza, uma espécie de vontade única, superior, de caráter metafísico, presente
no mundo vegetal, animal, assim como nas relações humanas.
O real é para este filósofo, cego e irracional enquanto vontade.
Aqui ele vai diametralmente contra Hegel, que afirma que a realidade
suprema é o pensamento e que todas as coisas constituem um universo racional. Ou
59
seja, o real é racionalizável. Para Schopenhauer as formas racionais da consciência
não passariam de ilusórias aparências, contrariando a prepotência idealista de
“abarcar” toda a realidade pela razão. Schopenhauer observa que a experiência
mostra o contrário de um mundo bom e idealizado, evidenciando antes a dor e o
sofrimento, as maldades, as fatalidades, as perversões e os horrores, fundamentando
que esta vontade cega define a realidade suprema, origem de todas as coisas, e isto
explica o seu caráter irracional.
Evidenciar a arbitrariedade tirânica e visceral da vontade sobre a realidade é
o que caracteriza a concepção schopenhaueriana, abrindo espaço para a
construção nietzschiana.
Repensando a caracterização de Schopenhauer como pensador pessimista,
este filósofo é também reconhecido como filósofo da vontade. Não obstante a
vontade entendida como fundo originário, ela é concebida por ele como a fonte de
todo o sofrimento e de toda a dor. Assim, pode-se ressaltar para posterior
comparação com Nietzsche, que vontade e sofrimento, em Schopenhauer, não se
diferenciam. O egoísmo (individuação) é natural na relação com o outro e com o
meio em que se vive (natureza), uma vez que o corpo é habitado pela vontade, daí a
sua susceptibilidade ao prazer e à dor, oriundos do desejo e da frustração, e a
conseqüente luta de todos contra todos. Para Schopenhauer, a dor é perene e o
prazer, momentâneo. Nietzsche inverte esta visão, como se pôde observar.
A vontade irracional, fonte de horror e sofrimento, é a imagem do suplício da
humanidade e de um ciclo permanente dada a perversidade da natureza, vista pela
perspectiva da vontade como cerne da realidade ou do mundo. Os parágrafos a
seguir, do livro Crítica da filosofia kantiana, de Schopenhauer, descrevem esta
concepção da doutrina do sofrimento do mundo:
60
Parecemos carneiros a brincar sobre a relva, enquanto o
açougueiro já está a escolher um ou outro com os olhos, pois
em nossos bons tempos não sabemos que infelicidade
justamente agora o destino nos prepara –, doença, perseguição,
empobrecimento, mutilação, cegueira, loucura, morte etc. A
história nos mostra a vida dos povos, e nada encontra a não
ser guerras e rebeliões para nos relatar; os anos de paz nos
parecem apenas curtas pausas, entreatos, uma vez aqui e ali.
E de igual maneira a vida do indivíduo é uma luta contínua,
porém não somente metafórica, com a necessidade ou o tédio;
mas também realmente com outros. Por toda parte ele encontra
opositor, vive em constante luta, e morre de armas em punho.23
Para esta leitura preliminar e que se fundamenta na afirmação da superação
do pessimismo herdado por Nietzsche, parece que o pessimismo deriva da noção de
vontade como conseqüência ética no pensamento do “Cavaleiro Solitário” como
Nietzsche denomina seu mestre. Nietzsche não nega a realidade da guerra e da luta
constante, mas as vê, como Heráclito (Capítulo 4), aceitando-as como inerentes à
existência.
Todavia, no sistema schopenhaueriano, como mencionado, a vontade é a
raiz metafísica do mundo e define a moral e a conduta humanas. Porém, é também
sua fonte inesgotável de sofrimento. A vontade não tem meta ou finalidade, é um
querer inconsciente que gera, em última instância, sempre dor e infelicidade. Na sua
filosofia pessimista, o mal e o egoísmo são inerentes ao homem.
Em Schopenhauer, o prazer é apenas um momento fugaz de ausência da
dor e a felicidade uma interrupção momentânea, temporária, de um processo de
23 SCHOPENHAUER, Arthur. Crítica da filosofia kantiana. In: SCHOPENHAUER. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Os Pensadores). § 150 e 151, p. 278.
61
infelicidade que permeia o mundo, pois viver é sofrer. Ainda assim, observa-se que,
apesar do seu pessimismo, o filósofo aponta para algumas vias de superação da
dor. A citar: a contemplação artística – foco deste diálogo; a superação ou o
desaparecimento da individualidade, que podem tornar o homem bom, como diz a
máxima: não prejudiques pessoa alguma, sê bom com todos; e a mortificação dos
instintos, o caminho do Nirvana, ou seja, a fuga para o Nada.24
O que se percebe é uma tentativa de libertação do homem, mesmo que
fugaz, diante da vontade. Porém, essa questão serve como ponto de partida para
referenciar o estudo da influência do pessimismo de Schopenhauer na obra de
Nietzsche e ressaltar a proposição afirmativa e dionisíaca deste, superando o legado
de seu mestre.
Em Schopenhauer, é necessário também resgatar os elementos ou as vias
de superação desta dor, que são a arte; a superação do egoísmo – a compaixão; e a
auto-anulação da vontade – o Nirvana.
Schopenhauer não entende que a libertação proporcionada pela arte seja
completa. No entanto, a atividade artística para ele revelaria as idéias eternas em
diversos graus, passando pela arquitetura, escultura, pintura, poesia e em especial
pela música. O mérito de colocar a música ocupando a primazia entre as artes é de
Schopenhauer.25
Outra noção importante é a de superação da individualidade ou do egoísmo
em um grau superior de conduta ética. Schopenhauer rejeita a ética kantiana, presa
à noção de “dever”, acusando-a de ser coercitiva e ancorada em mandamentos
24 TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. Vida e obra. In: SCHOPENHAUER. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Os Pensadores). p. 11. 25 TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. Vida e obra. In: SCHOPENHAUER. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Os Pensadores). p. 10-11.
62
(imperativos), mas aceita a noção de que a contemplação da verdade é o caminho
de acesso ao Bem, que é uma noção platônica.
O indivíduo não é mais do que objetivação da vontade. Tal individualidade,
na proposta schopenhaueriana, é pura ilusão gerada pela razão para conseguir seus
fins (egóicos); servindo a razão, em última instância, à irracionalidade da vontade universal.
A vida moral, portanto, consiste na renúncia à individualidade e em
reconhecer-se como pura expressão da vontade universal. A arte aqui seria, pela
contemplação estética, um exercício de desapego do egoísmo às coisas. É este
egoísmo que faz do homem inimigo do próprio homem; e tal problema só pode ser
superado pelo conhecimento da natureza única e universal da vontade.
A transição possível – embora, como dito, só como exceção –
do conhecimento comum das coisas particulares para o
conhecimento das Idéias ocorre subitamente, quando o
conhecimento se liberta do serviço da vontade e, por aí, o
sujeito cessa de ser meramente individual e, agora, é puro
sujeito do conhecimento destituído de vontade, sem mais
seguir as relações conforme o princípio de razão, mas concebe
em fixa contemplação o objeto que lhe é oferecido, exterior à
conexão com outros objetos, repousando e absorvendo-se
nessa contemplação.26
Ainda assim, o filósofo não entende que seja suficiente esta ética da
comiseração, compaixão ou compadecimento, e que ela venha a constituir,
efetivamente, um princípio de conduta para o homem.
Para Schopenhauer, a salvação do homem só pode ser encontrada na
renúncia ao mundo. O homem pode tornar-se inerte, cessar o seu centro ambicioso
26 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Trad., apres., notas e índice: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005. § 34, p. 245.
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de vida, livrando-se do tumulto de aspirações sem fim, desejos e busca de alegria
em meio ao “mar de sofrimento”, ou seja, a salvação está na mortificação dos
instintos, na auto-anulação da vontade e na fuga para o nada:
Com isso, quem é atormentado por paixões, ou necessidades e
preocupações, torna-se, mediante um único e livre olhar da
natureza, subitamente aliviado, sereno, reconfortado. A
tempestade das paixões, o ímpeto dos desejos e todos os
tormentos do querer são, de imediato, de uma maneira
maravilhosa, acalmados. Pois no instante em que, libertos do
querer, entregamo-nos ao puro conhecimento destituído de
vontade, como que entramos num outro mundo, onde tudo o
que excita a nossa vontade e assim, tão veementemente nos
abala, não mais existe. Tal libertação do conhecimento eleva-
nos tão completamente sobre tudo isso quanto o sono e o sonho.
Felicidade e infelicidade desaparecem. Não somos mais indivíduo,
este foi esquecido, mas puro sujeito do conhecimento.27
Se em Schopenhauer a busca de superação da dor na arte se mostra
provisória, na moral, enquanto compaixão, essa busca de superação é definitiva. É
uma consolação ou uma resignação, pois a vontade continua a fazer imperar a dor e
o sofrimento. Na busca da superação da dor, Schopenhauer mostra-se talvez mais
como um filósofo da vontade que propriamente do pessimismo, apontando que o
mundo é a vontade e nada mais.
Uma observação do caminho que Nietzsche percorreu nos passos do mestre:
ambos viam na música uma expressão artística superior e a relacionavam à tragédia
grega. Enquanto para Schopenhauer ela apenas atenua o sofrimento diante da
27 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Trad., apres., notas e índice: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005. § 38, p. 268-269.
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vontade, perante o momento de contemplação, para Nietzsche ela configura o
próprio mergulho e acesso à dimensão dionisíaca em uma afirmação da vida.
A tragédia, para Schopenhauer, é o retrato da dor. Este espetáculo trágico
mostra quão angustiante é o mundo real, ou o mundo da vontade. Enquanto para ele
a arte significava apenas um distanciamento passageiro e não a supressão da
vontade, ao contrário, na obra de Nietzsche, a arte aparece como critério básico
para a interpretação da vida.28 Nesse contexto, a tragédia grega é a possibilidade de
afirmação desta mesma vida.
Em sua juventude, ao ler O mundo como vontade e representação, Nietzsche
se deparou com a seguinte interrogação: uma vida absurda, sem razão, da vontade,
merece ser aprovada? Na sua obra O nascimento da tragédia, o autor assume esse
desafio, optando pela tragédia grega como uma resposta afirmativa e alegre diante
do sombrio pessimismo schopenhaueriano.
Nietzsche, em lugar de anular a individualidade, ressalta a importância de
fazer surgir o herói trágico, personagem este, que revigora exatamente aquelas
forças instintivas, dionisíacas, oprimidas e rejeitadas pela racionalidade. Afirma,
assim, a vida em sua tragicidade e o fundo originário, carregado de dor e sofrimento.
Nesse sentido, ele se opõe ao seu mestre, que escolhe anular os instintos e opta
pela fuga para o Nada, o Nirvana.
Nietzsche não tenta resolver a questão da metafísica clássica no campo
racional. Ele aborda a metafísica junto à questão da verdade no campo da moral.
Tenta desvencilhar-se da metafísica e afirma o homem no mundo e não fora dele –
metafisicamente – como fez Schopenhauer.
28 MACHADO, Roberto Cabral de Melo. Nietzsche e a verdade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 8.
65
Apesar de Nietzsche apontar em O nascimento da tragédia, os dois impulsos
artísticos da natureza, o apolíneo e o dionisíaco, ambos já estavam presentes na
filosofia de Schopenhauer. É, no entanto, na interpretação de Dionísio por
Nietzsche, que se encontra a diferença essencial entre os dois filósofos.
Apolo é o deus da luz, da medida ordenadora do mundo, dos contornos
precisos, é o princípio da lei e da individuação. Deus da verdade, da interpretação
dos sonhos (Oráculo de Delphos), da música e da poesia, era “claramente luminoso
e ordenadamente belo”.29 Medida, proporção, equilíbrio eram cânones próprios do
princípio apolíneo.
Dionísio, por sua vez, é para os gregos o deus “das forças primitivas da
natureza que embriagam os sentidos, deus do vinho, da dança e do teatro,
sensualmente extático e ebriamente mítico, da música grega”.30 É o deus do fluxo da
vida e também da sexualidade, em certo sentido, da desmesura e do êxtase;
representa a fecundidade da terra. Também é o deus da música enquanto força
primitiva da natureza que embriaga os sentidos.
Os opostos complementares expressos pelos deuses Apolo e Dionísio, na
filosofia de Nietzsche, permitem um paralelo com a oposição entre representação e
vontade, no pensamento de Schopenhauer. Como ressalta Roberto Machado, o
mérito de Nietzsche, na oposição clara que faz a Kant e a Schopenhauer, embora
influenciado por eles, é optar pela aparência como necessária à vida e como via de
acesso à “essência”, à coisa-em-si ou, ainda, ao fundo originário. Faz, enfim, uma
apologia à arte, pois, para ele, a arte lida com a aparência de forma autêntica. Em
última análise, a aparência, para Nietzsche, é a representação. De outro lado, a
vontade de Schopenhauer é o Uno-primordial de Nietzsche.
29 MICHAEL, Ulrich. Atlas de Música. v. 1. Madrid: Alianza, 1989. p. 171. 30 MICHAEL, Ulrich. Atlas de Música. v. 1. Madrid: Alianza, 1989. p. 171.
66
Assim, o primeiro importante resultado da análise nietzschiana,
ao mostrar como os gregos ultrapassaram, encobriram ou
afastaram um saber que ameaçava destruí-los, graças a uma
concepção apolínea da vida, é o elogio da aparência. A
apologia da arte já significa, como sempre significará para
Nietzsche, uma apologia da aparência como necessária não
apenas à manutenção, mas à intensificação da vida.31
Mas, ao ressaltar a importância da aparência no desfecho de O nascimento
da tragédia, Nietzsche, em sua oposição apolíneo-dionisíaca aponta a embriaguez
trazida “do estrangeiro”.32 É na embriaguez que acontece a morte ou o
aniquilamento das individualidades e que o homem, retornando a um estado natural,
reconcilia-se com a natureza, identifica-se com o Uno-primordial ou fundo originário.
Do exposto pode-se inferir que a ênfase de Dionísio no pensamento
nietzschiano tem o efeito análogo às festas dionisíacas da antiga Grécia,33 por conta
de que o pretenso equilíbrio entre as pulsões deve ser rompido pela força extasiante
da embriaguez, da fecundidade e da inconsciência. É o desequilíbrio entre Apolo e
Dionísio que leva o filósofo, assim como o poeta trágico, à percepção do indizível, do
fundo originário, que Nietzsche chama de Uno-primordial.
O principium individuationis, por força do deus Apolo, é o oposto à dimensão
dionisíaca, na qual as individualidades são dissolvidas na embriaguez da
inconsciência. O herói trágico relaciona-se com as duas pulsões, cumprindo, na
tragédia grega, seu papel de redenção e de cura, diante da dor e do sofrimento
31 MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 20. 32 Dionísio é um deus estrangeiro vindo do Oriente, não pertencente ao Olimpo. É o próprio Nietzsche, em O nascimento da tragédia, que aponta o deus do vinho como estrangeiro. No livro As bacantes, de Eurípides, há evidências de que Dionísio é um deus estrangeiro. § 780-785, p. 73. 33 Essas festas realizadas em homenagem ao deus Dionísio eram chamadas de Grandes Dionisíacas ou de Dionisíacas Urbanas. Ver citação 49, à p. 28 da presente investigação.
67
revelados pela percepção do Uno-primordial e trazendo o indivíduo à consciência
depois do mergulho na inconsciência.
Assim como o poeta trágico se posiciona frente ao mundo e à representação
do espetáculo, assumindo o elemento enigmático, o filósofo trágico percebe a
contradição da existência e pode afirmá-la em sua ambivalência. Sofrimento e dor,
prazer e êxtase convivem paradoxalmente em Nietzsche.
A dimensão dionisíaca aproximada ao Uno-primordial tem na música, para
Nietzsche, a sua manifestação imediata; e, na tragédia grega, o coro tem a função
de incluir os espectadores dentro da dramaticidade, problematizando e envolvendo-
os neste mergulho extático, além de representar a própria voz de Dionísio. Isto será
analisado mais pontualmente no capítulo a seguir.
68
3 A MÚSICA DIONISÍACA E O PAPEL DO CORO NA TRAGÉDIA GREGA – UMA MANIFESTAÇÃO DO UNO-PRIMORDIAL
O presente capítulo apresenta a coexistência das pulsões apolínea e
dionisíaca como base para a compreensão da existência a partir da metafísica de
artista. Essas pulsões artísticas são manifestações fenomênicas expressas nas
características dos dois deuses, Apolo e Dionísio, apresentadas anteriormente.
A poiesis, a manifestação artística que constituía uma unidade e que envolvia
a música, a encenação e a poesia, como os gregos entendiam a arte, era o cerne da
tragédia grega. O papel em especial do coro trágico, era o de envolver os
espectadores, trazendo-os para dentro da representação cênica, expressando a
dimensão dionisíaca. No entanto, com a morte da tragédia pelo socratismo, essa
divindade foi expulsa do palco trágico. Com esse argumento, ressalta-se a
importância da tensão entre as duas pulsões artísticas e à sua complementariedade,
problema da presente pesquisa.
É pela expulsão da embriaguez e da inconsciência dionisíacas do cenário
trágico, que Nietzsche percebe a ausência da dimensão trágica no equilíbrio das
pulsões. Foi a racionalização socrática que deu origem à morte da tragédia; e é ao
mesmo tempo, a origem do racionalismo da modernidade, questionado por
Nietzsche. É na busca da coexistência dos opostos representados por estes dois
deuses gregos, que Nietzsche resgata a força de Dionísio.
69
3.1 As pulsões artísticas apolínea e dionisíaca e a música trágica
A dialética otimista, com o chicote dos
seus silogismos, expulsa a música da
tragédia: destrói a essência da tragédia.
(Nietzsche)1
A oposição arte-ciência tem seu ápice, segundo Nietzsche, em Sócrates, visto
como o “divisor de águas” entre a arte trágica e a racionalidade científica. Para ele, a
arte trágica e a dimensão dionisíaca são elementos emancipadores do modelo
socrático, isto é, do espírito científico (crença na penetrabilidade da natureza e na
virtude do saber). Constitui, nesta pesquisa, o ponto de reflexão para reencontrar na
arte grega a força originária do pensamento de Nietzsche.
Para ele, a arte é mais importante que a ciência, porque está ligada à
afirmação da vida. O filósofo percebeu que na modernidade não há oposição entre a
moral e a ciência, mas antes, que estas são conseqüentes. Em sua crítica, aponta a
arte como princípio avaliador da vida.
Na presente pesquisa, ressaltam-se duas das três proposições contidas no
livro O nascimento da tragédia. A primeira é uma explicação da origem, da
composição e da finalidade da arte trágica grega; e a segunda, a denúncia da morte
dessa arte perpetrada por Eurípides.2 Não será abordada a terceira, que é a idéia de
avaliar a modernidade e encontrar nela manifestações da Idade Ática.3 Em outras
palavras, as proposições que serão aqui investigadas, distintas e complementares
1 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 12, p. 83; § 14, p. 90. 2 MACHADO, Roberto. Nietzsche e a polêmica sobre O nascimento da tragédia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 7, 9 e 11. 3 Ver Capítulo 1.
70
são: a apresentação da arte trágica como expressão da natureza, nos princípios
apolíneo e dionisíaco; e uma crítica à racionalidade conceitual “inaugurada” com a
morte da tragédia grega, oriunda do socratismo. Com esta antinomia entre a arte
trágica e a metafísica racional inaugurada por Sócrates, Nietzsche denuncia também
a oposição que se manifesta entre a arte e a ciência.
O espírito científico que se desenvolve a partir da opção pela razão socrática
pretende alcançar uma validade universal, ilimitada, capaz de penetrar na essência
das coisas, separando a “verdade” da “aparência”.
A discussão sobre a morte da tragédia grega, apresentada por Nietzsche,
descreve também a confrontação entre verdade e aparência. Nesta exposição, o
poeta “embriagado” e inconsciente, Ésquilo, condenado por Sófocles e posteriormente
criticado por Eurípides, este é o poeta sóbrio, enaltecido por Sócrates. Estes dois
últimos, condenam a aparência em nome da verdade. Os três poetas trágicos,
Ésquilo, Sófocles e Eurípides constituem o que Nietzsche chamou de “os três
sapiens de seu tempo”.4 O julgamento de Sócrates sobre a obra destes poetas e a
sua predileção pela de Eurípides, de acordo com Nietzsche, levou à morte da
tragédia. Para ele, Sócrates falava pela voz de Eurípides. Trata-se de uma
racionalização da obra de arte. Há, porém, uma pista deixada por Sócrates e
Eurípides e, ao mesmo tempo, uma dúvida quanto à opção de ambos pela razão e
pela consciência. Nietzsche a descreve como
Aquela palavra da socrática aparição onírica é o único sinal de
uma dúvida de sua parte sobre os limites da natureza lógica:
será – assim devia ele perguntar-se – que o não compreensível
para mim não é também, desde logo, o incompreensível? Será
4 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 12, p. 83; § 13, p. 84.
71
que não existe um reino da sabedoria, do qual a lógica está
proscrita? Será que a arte não é até um correlativo necessário
e um complemento da ciência?5
Mas a dúvida e a intuição socráticas não foram ouvidas e a razão dialética
ocupou o lugar da arte. Por sua vez, a ciência e a lógica são condenadas, por
Nietzsche, como um fenômeno de superfície. Para ele, a arte trágica é profunda, é
oriunda da desproporção e da intensidade das pulsões dionisíacas. A vida da
diferença6 é, ao mesmo tempo, a criação e a dissolução das formas planejadas pela
razão científica ou socrática, desejosa da verdade.
O excesso dionisíaco e sua música ditirâmbica encontram prazer na
embriaguez, na qual a superfície da consciência só encontra sofrimento e dor. A
crueldade e a tragicidade da vontade, ou do fundo originário, em Nietzsche, superam
a contemplação da superfície. A tragédia tem na expressão musical, em especial no
coro trágico, a manifestação do elemento indizível e inacessível à razão.
Essa importância do musical é rebatida num outro plano: a
tragédia apaga-se no momento em que a música é suprimida.
O fim para Eurípides, ou melhor, para o par Eurípides-Sócrates
são a razão e o consciente que se colocam como senhores do
teatro. Figura híbrida, Eurípides não é apenas a sombra do
socratismo ou um duplo de Sócrates: mais que isso Eurípides é
ele próprio um duplo; misto de poeta e homem teórico, elimina
da tragédia o essencial: o ilimitado, o excessivo. Suprimir a
música é suprimir o trágico: com Eurípides, Dionísio se apaga.
O homem teórico “expulsa a música da tragédia, isto é, destrói
5 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 14, p. 91. 6 A vida da diferença é um termo que Kossovitch usa para descrever o efeito de Dionísio na experiência humana. KOSSOVITCH, Leon. Signos e poderes em Nietzsche. Rio de Janeiro: Azougue, 2004. p. 170.
72
a essência da tragédia, que só é compreensível como uma
manifestação e uma representação simbólicas de estados
dionisíacos, uma encarnação visível da música, o mundo de
sonho que se desprende da embriaguez dionisíaca”.7
Não obstante, a convicção com que Sócrates assumiu a morte faz este
homem teórico, assumido também em vida, transfigurar-se em modelo. O instinto de
ciência, o otimismo dialético, se alargou sobre a posteridade e o homem teórico
assumiu a significação de meta, de protótipo; isto, inclusive para acessar a própria
arte e para perscrutar a natureza das coisas.8 A arte dá lugar à ciência e o belo
passa a ser racionalizado fora da embriaguez.
Agora, junto a esse conhecimento isolado ergue-se por certo,
com excesso de honradez, se não de petulância, uma profunda
representação ilusória, que veio ao mundo pela primeira vez na
pessoa de Sócrates – aquela inabalável fé de que o pensar, pelo
fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais
profundos do ser e que o pensar está em condições, não só de
conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo. Essa sublime ilusão
metafísica é aditada como instinto à ciência, e a conduz sempre
de novo a seus limites, onde ela tem de transmutar-se em arte,
que é objetivo propriamente visado por esse mecanismo.9
A luta contra a tragédia grega, e em especial contra a visão esquiliana,
inaugura o socratismo. A tragédia euripidiana exclui a dimensão dionisíaca que,
como se pretende demonstrar na leitura nietzschiana, é a via de acesso mais
7 KOSSOVITCH, Leon. Signos e poderes em Nietzsche. Rio de Janeiro: Azougue, 2004. p. 174-175. 8 Assim como Eurípides após ver o “Templo de Dionísio” em ruínas e a derrota de Ésquilo, o poeta embriagado, se interroga. Sócrates também desconfia, se indaga, mas por último, opta pela cicuta e pela morte! 9 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 15, p. 93.
73
autêntica para a compreensão da existência. Daí a afirmação de Nietzsche, que a
arte é mais importante que a ciência.
Em A visão dionisíaca do mundo, o jovem Nietzsche aponta o papel dos
poetas trágicos. O primeiro é Ésquilo, o sublime pensador da justiça grandiosa, que
vê deus e homem entrelaçados pelo daimon que leva o homem ao delito, cega o
indivíduo, mas apregoa que é possível escapar da necessidade do crime. O
segundo é Sófocles, que vê na sublimidade o impenetrável da justiça; ele reduz em
todos os elementos o ponto de vista do povo e o caráter imerecível de um horrível
destino, que antes pareceu-lhe sublime. Os enigmas insondáveis eram as suas
musas trágicas, solicitava resignação. “Assim não há culpa e sim piedade”.10
Eurípides, por sua vez, foi o poeta que condenou seus contemporâneos pelas
suas características inconscientes e embriagadas11 e tornou a tragédia mais
discursiva e racional. Isto, pela vertente socrática de que só é belo o que pode ser
compreensível. Com ele temos o que Nietzsche chamou de “a morte da tragédia”.12
Se antes, na tragédia grega, a “aparente oposição” era entre Apolo e Dionísio,
com a morte da tragédia, o confronto passa a ser entre o dionisíaco e o socrático.
Para Sócrates, a arte trágica nunca diz a verdade.13 Desta forma, só pode ser
desvelada pela racionalidade e pela consciência. Trata-se de um confronto entre as
forças instintivas e a pensamento lógico. É o otimismo dialético expulsando a música
(dionisíaca) da tragédia grega.
10 NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude / Friedrich Nietzsche. Trad.: Marcos Sinésio Pereira Fernandes; Maria Cristina dos Santos de Souza. Rev. da trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 28-29. 11 MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade: São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 30. 12 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 12, p. 79. 13 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 14, p. 87.
74
Excisar da tragédia aquele elemento dionisíaco originário e
onipotente e voltar a construí-la de novo puramente sobre uma
arte, uma moral e uma visão do mundo não-dionisíacos – tal é
a tendência de Eurípides que agora se nos revela em luz
meridiana.14
A luz meridiana acusa, à guisa da morte da tragédia, a luz do meio-dia, isto é,
da razão que tudo ilumina e que torna tudo claro, consciente e racional. Funda-se,
assim, uma moral não conformada com a presença dionisíaca.
Ainda em O nascimento da tragédia, na crítica a Sócrates, Nietzsche afirma a
dimensão artística como mais importante que a dimensão racional:
Imaginemos agora o grande e único olho ciclópico de Sócrates,
voltado para a tragédia, aquele olho em que nunca ardeu o
gracioso delírio de entusiasmo artístico – e pensemos quão
interdito lhe estava mirar com agrado para os abismos
dionisíacos: o que devia ele realmente divisar na “sublime e
exaltada” arte trágica, como Platão a denomina? Algo
verdadeiramente irracional, com causas sem efeitos e com
efeitos que pareciam não ter causas; e, no todo, um conjunto tão
variegado e multiforme que teria de repugnar a uma índole
ponderada, constituindo, entretanto, para as almas sensíveis e
suscetíveis uma perigosa isca.15
O próprio Eurípides, no final de sua vida, indaga sobre se realmente Dionísio
deveria subsistir. Foi uma tentativa de retratação do poeta, segundo Nietzsche, uma
consolação frente à dúvida, sobre o que não pode mais voltar atrás. Afinal, o mais
14 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 12, p. 78. 15 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 14, p. 87.
75
belo dos templos jazia em ruínas. A tragédia esquiliana foi vencida por Sócrates e
por Euripides.
É assim que Dionísio foi afugentado do palco trágico.16 Todavia, este deus
tentador parece, segundo Nietzsche, ter “seduzido” Sócrates, na hora da morte e
dentro da prisão, a repensar sobre a arte e a música. Era uma voz em sonhos (o
daimon), que dizia repetidamente “Sócrates, faz música, Sócrates, faz música”.17
O orgiástico sentimento de liberdade depende do engano da aparência. O
herói trágico prescinde da derrota e não da vitória, morre mais cedo. A música,
então, é vista como a única e a mais elevada forma de representação para vivificar o
mundo material. Confiando desta forma na nobre ilusão, entregando-se ao orgiástico
sentimento de liberdade, na dança ditirâmbica.18
Esse mergulho orgiástico no Uno-primordial é experimentado ou vivido por
meio do coro, na tragédia grega, como se apresentará no texto a seguir.
3.2 O coro como manifestação do Uno-primordial na tragédia grega
Essa tradição [antiga] nos diz com inteira
nitidez que a tragédia surgiu do coro
trágico e que originalmente ela era só coro
e nada mais que coro... (Nietzsche)19
16 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 12, p. 78-79. 17 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 12, p. 78 e 85. 18 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia. das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 21, p. 125. 19 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 7, p. 52.
76
Dentro do propósito desta pesquisa, observa-se na leitura de O nascimento
da tragédia o coro como um elemento fundamental na arte ática, associado à origem
ou à fonte primordial e à sua natureza dionisíaca. Intenciona-se nesta etapa da
investigação, observar a relevância dada por Nietzsche para o papel do coro na
tragédia grega. A hipótese aqui defendida é a de que, segundo Nietzsche, o coro
trágico é a própria expressão da voz do deus Dionísio, associado, por sua vez, à
dimensão originária e primordial.
Nietzsche compreende o desenvolvimento da arte, ou da tragédia grega,
como uma natureza inconsciente ligada aos mais obscuros instintos vitais. Daí a
concepção valorizada pelo autor, da experiência estética como ponto de partida para
a reflexão sobre a cultura, e a sua investigação filosófica orientada para a dimensão
dionisíaca.
Para Nietzsche, existe uma estreita relação entre a pulsão artística e a
própria vida. Quem teria percebido e vivido com intensidade e autenticidade esta
estreiteza, fora os gregos trágicos? Neles “a vontade queria, na transfiguração do
gênio e do mundo artístico, contemplar-se a si mesma. [...] Tal é a esfera da beleza,
em que eles viam as suas imagens especulares, os Olímpicos”.20
Para examinar o papel do coro trágico, faz-se necessário retomar a idéia da
tensão entre as pulsões apolínea e dionisíaca, bem como a descrição da música
propriamente dita nesse contexto.
Os constantes conflito e reconciliação gerados pelas duas divindades do
mundo helênico configuram o desenvolvimento da arte trágica. De um lado, tem-se
Apolo, o deus da forma. De outro, Dionísio, o deus da arte não figurada, o deus da
20 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 3, p. 38.
77
música dissonante21 e da embriaguez. Nesse sentido, Nietzsche inicia seu primeiro
livro com este esclarecimento:
A seus dois deuses da arte, Apolo e Dionísio [...] ambos os
impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das
vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a
produções sempre novas, para perpetuar nelas a luta daquela
contraposição sobre a qual a palavra comum “arte” lançava
apenas aparentemente a ponte; até que por fim, através de um
miraculoso ato metafísico da “vontade” helênica, aparecem
emparelhados um com o outro, e nesse emparelhamento tanto
a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea geraram a tragédia
ática!22
Apolo e Dionísio coexistem de forma ambivalente. Não obstante, a arte
grega e, em especial, a música trágica tacitamente aparecem como diagnóstico
contra o racionalismo socrático. E sobre os gregos e suas obras de arte, Nietzsche
os define como
a mais bem sucedida, a mais bela, e mais invejada espécie de
gente até agora, [...] a que mais seduziu para o viver, [...] os
gregos. [...] Adivinha-se em que lugar era colocado, com isso,
o grande ponto de interrogação sobre o valor da existência. 21 Dissonância: no decorrer da história, as sonoridades tidas como dissonâncias ou consonâncias variaram sobremaneira. São considerados consonâncias os sons “agradáveis ao ouvido” e dissonâncias, os “desagradáveis”. Ora, o que é agradável para uma certa sociedade não o é necessariamente para outra. Como exemplo, pode-se citar o caso da Música Medieval, em que a terça não era apreciada, sendo que no Classicismo e no Romantismo, ela passa a ser a essência da harmonia. Outro exemplo é a música védica indiana, na qual as consonâncias eram a quarta e a quinta, as dissonâncias as segundas e as sétimas, e as assonâncias as terças e as sextas. A dissonância a que Nietzsche se refere é aquela de finais do Romantismo, que ele relaciona com Dionísio, isto é, às emoções intensas, extasiantes e até sufocantes, angustiantes ou doloridas. Para ele, estes elementos caracterizam a tragédia grega (MICHAEL, Ulrich. Atlas de Música. Madrid: Alianza, 1989. p. 21, 167 e 85). 22 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 1, p. 27.
78
Será o pessimismo necessariamente o signo do declínio, da
ruína, do fracasso, dos instintos cansados e debilitados –
como ele o foi entre os indianos, como ele o é, segundo todas
as aparências entre nós, homens e europeus “modernos”? Há
um pessimismo da fortitude? [...] O que significa, justamente
entre os gregos da melhor época, da mais forte, da mais
valorosa, o mito trágico? E o descomunal fenômeno do
dionisíaco? O que significa, dele nascida, a tragédia?23
Ao se examinar com mais detalhes a Tentativa de autocrítica, percebe-se
que, já no seu parágrafo primeiro, faz uma crítica à ciência, ao socratismo e à moral.
Este prefácio está marcado, do início ao fim, por uma ênfase ao reconhecimento de
Dionísio como necessário contraponto à racionalidade, intimamente relacionado à
música e, portanto, ao coro trágico. Daí a justificativa do problema da presente
pesquisa.
É relevante assinalar que todo o texto constitui uma autocrítica quase que
condenatória a O nascimento da tragédia, pelas adjetivações deletérias das quais
faz uso, designando-o como um “livro bizarro”, “livro temerário”, “defeitos da
mocidade”, “livro impossível”, “desagradável”, entre outras. Não obstante, pela
centralidade dos significados de Dionísio na construção do seu pensamento, mesmo
considerando essa obra “temerária”, ao reeditá-la reafirma sua importância no
cenário filosófico. Enaltece a particularidade do deus da desmesura na trama da
experiência trágica, bem como sua manifestação existencial no plano artístico, isto é,
no plano da vida. Arte e vida se confundem por terem um fundo originário comum,
sintonizadas, então, com a tensão entre as pulsões representadas pelos dois deuses
e manifestadas no coro trágico.
23 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 1, p. 13-14.
79
Nietzsche, com maior contensão, também faz um elogio à própria obra,
reconhecendo-a como um livro para artistas especiais, com uma metafísica de
artista no plano de fundo: “este livro temerário ousou pela primeira vez aproximar-se
– ver a ciência com a óptica do artista, mas a arte, com a da vida”.24 Neste ponto,
encontra-se a confirmação do elemento musical e dionisíaco pertinente à
argumentação sobre o coro na tragédia grega.
Nietzsche discorre sobre a dificuldade de expressão de um conteúdo
reservado a “iniciados”, ou “batizados em música”, um livro que se fecha ao
profanum vulgus [vulgo profano] dos homens ditos cultos, mais ainda do que ao
“povo”. E finaliza a seção cinco perguntando: “O que é dionisíaco?”.25
Para responder a esta pergunta contida na Tentativa de auto-crítica, pode-
se tomar as palavras do próprio filósofo, que, na Seção 5 do livro em questão,
aborda Dionísio, o Uno-primordial e a música. Baseado em sua metafísica de artista,
Nietzsche expõe o caso do poeta lírico, intuitivo e “embriagado”:
Ele se fez primeiro, enquanto artista dionisíaco totalmente um
só com o Uno-primordial, com sua dor e contradição, e produz
a réplica desse Uno-primordial em forma de música, ainda que
esta seja de outro modo, denominada com justiça de repetição
de mundo e de segunda moldagem deste: agora, porém esta
música se lhe torna visível, como numa imagem similiforme do
sonho, sob a influência apolínea do sonho.26
24 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 2, p.15. 25 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 4, p. 17. 26 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 5, p. 44.
80
Neste contexto, Nietzsche faz alusão em especial ao poeta trágico Ésquilo,
ao dar primazia a um modo não conceitual e imediato de expressão, encontrado no
canto do coral trágico. O filósofo remete a uma realidade inacessível à palavra ou ao
conceito. A dramaturgia grega introduz na narrativa e principalmente no discurso do
herói épico, esta redenção na aparência, ou a cura para a insuportável experiência
de dor e contradição propiciadas por Dionísio.
A partir desta constatação, Nietzsche propõe que existe um “equilíbrio” entre
a realidade não mediada pela palavra e pela narrativa. Observa-se então uma
reflexão sobre o inconsciente e a passagem desta dimensão dionisíaca invisível e
indizível, para uma dimensão apolínea – principium individuationis –, que é visível,
narrada e conceitual, constituindo, assim, o que Nietzsche descreve como o
nascimento da tragédia a partir do espírito da música. Em suas palavras, no livro de
1872, o autor afirma: “o sentimento se me apresenta no começo sem um objeto claro
e determinado, este só se forma mais tarde. Uma certa disposição musical de
espírito vem primeiro e somente depois é que se segue em mim a idéia poética”.27
Trata-se de uma relação entre o Uno-primordial, enquanto força
inconsciente dionisíaca e o mundo apolíneo fenomênico, ambos retratados de forma
exemplar, curativa28 e única no âmbito da tragédia grega. A dor é oriunda da
percepção de um fundo originário repleto de sofrimento e prazer extremos,
insuportáveis à consciência. Daí a cura dar-se na aparência e no sonho apolíneo.
27 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 7, p. 44. 28 Os termos curativo ou beberagem curativa, associados à tragédia grega (Seção 21), são explorados por Nietzsche, em O nascimento da tragédia, contrapondo-se à idéia de cura pela razão em Sócrates (Seção 13). O filósofo alemão adota a perspectiva dos poetas trágicos, enaltecendo-a e assumindo-a como sua própria filosofia. Toma a razão como doença e tem, no mergulho da dissolução do indivíduo no Uno-primordial, a noção de reconciliação com a natureza (Seção 16). Nietzsche aponta que a tragédia e a arte são adotadas pelos gregos como proteção e remédio (Seção 15). Nos seus escritos, percebe-se que ele assume essa concepção.
81
Aquele reflexo afigural e aconceitual da dor primordial na
música, com sua redenção na aparência gera agora um
segundo espelhamento, como símile ou exemplo isolado.
O artista já renunciou à sua subjetividade no processo
dionisíaco: a imagem, que lhe mostra a sua unidade com o
coração do mundo, é uma cena de sonho, que torna sensível
aquela dor primordial juntamente com o prazer primogênio da
aparência.29
A tensão entre as pulsões artísticas é fundamental na dinâmica para a
transformação na existência. Na trama trágica, a música do coro é uma das
manifestações desta tensão, que ocorre especialmente na voz da multidão
“embriagada” e identificada com o poeta lírico que, enquanto artista dionisíaco, é um
só com o Uno-primordial. Este é o papel do coro na tragédia grega: a personificação
do deus Dionísio.
É com freqüência que Nietzsche menciona diretamente As Bacantes, de
Eurípides, para fazer referência à dimensão dionisíaca ou primaveril, relacionando-a
com a música, como segue na Seção 5, de O nascimento da tragédia.
O encantamento dionisíaco-musical do dormente lança agora
à sua volta como que centelhas de imagens, poemas líricos,
que em seu mais elevado desdobramento se chamam
tragédias e ditirambos dramáticos. [...] O músico dionisíaco,
inteiramente isento de toda imagem, é ele próprio dor
primordial e eco primordial desta.30
29 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 5, p. 44. 30 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 5, p. 44.
82
É em nota de tradução de As Bacantes, que Maria Helena da Rocha Pereira
explica a facilidade que os gregos tinham em passar da personificação à
representação da divindade, ou seja, passar da condição de ser humano à de um
deus. Isso ocorre, por exemplo, no intervalo entre o diálogo de Penteu e Tirésias,
estrofes 370 e 385, no trecho do coro que diz:
Reverência, senhora dos deuses,
Reverência, que sobre a Terra
passas tua asa dourada,
ouves de Penteu as palavras?
ouves a irreverente
insolência para com Brómio,
de Sémele o filho, ele que nos festins
de belas coroas está à frente
dos bem aventurados? ele a quem pertence
fazer cessar os cuidados
dançar no tíaso,
rir ao som da flauta,
fazer cessar os cuidados,
quando ao banquete dos deuses
chega o brilho dos cachos,
e nos festins de hera engrinaldados,
o krater31 derrama o sono
sobre os homens.32
A transformação dos personagens em divindades para que estas falem e
intervenham na vida dos gregos também é observada na voz do coro, que, da
mesma forma, cumpre com o papel de expressar a tragicidade imposta pela vida ou, 31 Krater: vaso de grandes dimensões, destinado à mistura de água com vinho, que era de regra nos banquetes (Nota 18 do livro As Bacantes, de Eurípides. Lisboa: Ed. 70, 1998. p. 54). 32 EURÍPIDES. As Bacantes. Lisboa: Edições 70, 1998. p. 54, estrofes 370 a 385. Nota-se que Brómio é também um nome de Dionísio.
83
como os gregos viam, imposta pelos deuses. A música dionisíaca, por acessar a
fonte originária, ou até por ser a sua própria manifestação, é considerada, na
perspectiva de Nietzsche, como o melhor instrumento para carregar esta tensão e
envolver, também pelas suas características inebriantes e imitativas, o espectador
dentro da trama do espetáculo, da representação, da tragédia.
Nietzsche, na Seção 6 de O nascimento da tragédia, faz uma relação da
música com a poesia lírica, esta justificada como “fulguração imitadora da música
em imagens e conceitos”33 ou representação da vontade no sentido
schopenhaueriano. Não obstante, acrescenta que o espírito da música, em sua
ilimitação, não precisa da imagem e do conceito; ou seja, dispensa a linguagem para
alcançar por completo o simbolismo universal referente à contradição e à dor
primordial no coração do Uno-primordial. Na poesia da canção popular, a linguagem
empenha-se para “imitar” a música e o coro é a representação do povo, que na cena
trágica, mostra-se como um extrato da multidão, ou “espectador ideal”.34
Para Schiller, de acordo com Nietzsche,35 o coro trágico se mostra como uma
muralha viva contra a realidade, ou seja, como uma esfera da poesia que não se
encontra fora do mundo ou da dimensão do mundo fenomenal, mas sim da coisa em
si, o Uno-primordial, tornando-se o consolo metafísico. Esse consolo metafísico,
essa forma de o homem se posicionar frente à vida, essa é a essência da tragédia
grega. O grego dionisíaco quer a verdade da natureza em sua força máxima, com
toda a sua dor e com o seu prazer.
33 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 6, p. 50. 34 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 7, p. 52-53. 35 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 8, p. 57-59.
84
A excitação dionisíaca é “capaz de comunicar a toda uma multidão essa
aptidão artística de ver-se cercada por uma tal hoste de espíritos com a qual ela,
multidão, sabe interiormente que é uma só coisa”.36 Isto significa, no coro trágico, o
processo de ver-se transformado diante de si como se estivesse entrando em outro
corpo ou outra personagem. Nietzsche usa o termo transe para falar de tal
fenômeno, ou de epidemia que toma conta da multidão, que se sente enfeitiçada.
Talvez se pudesse chamá-lo de catarse37 ou metamorfose: um processo em que o
coro ditirâmbico é um coro de transformados. O coro, aqui, assumindo o próprio
papel do espectador, do público, da platéia. Porém, observa-se que esta catarse não
é uma descarga patológica da moral.
E mais: o autor afirma que “o encantamento é o pressuposto de toda a arte
dramática [...] é a sua metamorfose. [...] Nos termos desse entendimento devemos
compreender a tragédia grega como sendo o coro dionisíaco a descarregar-se
sempre de novo em um mundo de imagens apolíneo”.38
Dionísio, efetivo herói cênico, não está presente, mas representado. É o
princípio mais antigo da tragédia. O coro é a tragédia, não o drama. O coro
contempla em sua visão o seu senhor mestre Dionísio – o coro é a mais alta
contemplação da natureza e da sabedoria. Quando Dionísio aparece (se objetiva),
não é mais o mar perene, ou viver ardente. Agora Dionísio fala como herói épico.39
A arte dionisíaca repousa no jogo com a embriaguez, com o arrebatamento.
São dois os poderes que principalmente elevam o homem natural, ingênuo, até o
esquecimento de si, característico da embriaguez, a pulsão primavera e a bebida
36 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 8, p. 59-60. 37 Catarse é um termo aristotélico associado ao descarrego e à liberação de tensões sociais. 38 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 8, p. 60. 39 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 8, p. 61-63.
85
narcótica.40 Esse arrebatamento pode ser compreendido como a catarse, a
experiência da embriaguez dionisíaca, a muralha citada por Schiller, ou ainda o
aniquilamento da perspectiva do indivíduo: o principium individuationis é rompido. O
princípio da individuação é a dimensão apolínea. O escravo e o homem livre deixam
de existir frente à experiência do coro báquico.41
Aquele cantar e dançar não é mais a instintiva embriaguez da
natureza: a massa do coro em agitação dionisíaca já não é a
massa do povo inconscientemente arrebatada pela pulsão
primavera. A verdade é, agora, simbolizada, ela se serve da
aparência, ela pode e precisa por isso também, usar as artes
da aparência.42
Aqui se infere a importância de Apolo nas artes da aparência. Porém, se, em
A visão dionisíaca do mundo, o autor se mostra mais schopenhaueriano, ao publicar
pela primeira vez O nascimento da tragédia, ele busca um distanciamento e faz uma
crítica ao seu mestre. No posfácio mencionado ele assume definitivamente um
posicionamento dionisíaco enquanto elemento de afirmação da vida. Coloca em
questão o pessimismo de Schopenhauer, bem como a filosofia de sua época.
Por vezes, a vivência da música é tão intensa, que tememos
pelo nosso pobre eu, ameaçado de sucumbir no orgiasmo
musical, de tão excitado com a música. Por isso, é necessário
40 NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude / Friedrich Nietzsche. Trad.: Marcos Sinésio Pereira Fernandes, Maria Cristina dos Santos de Souza; Rev. da trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 8. 41 NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude / Friedrich Nietzsche. Trad.: Marcos Sinésio Pereira Fernandes, Maria Cristina dos Santos de Souza; Rev. da trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 9. 42 NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude / Friedrich Nietzsche. Trad.: Marcos Sinésio Pereira Fernandes, Maria Cristina dos Santos de Souza; Rev. da trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 31.
86
que entre a música e o ouvinte dionisiacamente receptivo, seja
interposto um meio distanciador: um mito de palavra, imagem e
ação cênica.43
Essa é a explicação de Rüdiger Safranski, em seu livro Nietzsche, biografia
de uma tragédia, no qual afirma a importância das duas dimensões, ligadas à
consciência e à inconsciência. Aponta como Nietzsche entende a música, a qual
leva ao estado de arrebatamento dionisíaco, com a anulação dos limites e fronteiras
comuns da existência. “A música leva ao coração do mundo”.44 Apolo, por sua vez,
propicia a consciência do indivíduo.
No jogo ritualístico encontrado na tragédia grega, o espectador do teatro
ático, enquanto povo, multidão, muralha, está sentado nas pedras do anfiteatro,
disposto para a festa. Ele se dilui junto ao coro e é representado pelo herói trágico,
na mais intensa representação. A tragédia grega leva para o palco a relação de
poder entre a palavra e a música. O protagonista domina a palavra, mas é a música
do coro que domina o que as palavras produzem.
Uma importante ressalva para se compreender este discurso ou esta falsa
dualidade é a compreensão da poiesis, que via todas as linguagens artísticas
(música, poesia, literatura, dança, representação e artes visuais) como integrantes
de uma mesma manifestação da vida.
Sócrates quebra o poder da música e, em seu lugar, coloca a dialética. O
logos vence o pathos. E assim, ser e consciência não se harmonizam mais.45
43 SAFRANSKI, Rüdigger. Ecce Homo: Nietzsche, biografia de uma tragédia. Trad.: Lya Left. São Paulo: Geração Editorial, 2001. p. 15. 44 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 8, p. 61. 45 SAFRANSKI, Rüdigger. Ecce Homo: Nietzsche, biografia de uma tragédia. Trad.: Lya Left. São Paulo: Geração Editorial, 2001. p. 54-55.
87
Com a morte da tragédia, Sócrates inaugura o pensamento dialético-racional.
Se, na tragédia, o coro era a voz da multidão, a partir de Sócrates, esta mesma
multidão se torna um mero espectador aprendiz. Se a tragédia grega personificava
no seu coro o deus Dionísio e a força da natureza que ele representava, com o
socratismo também a arte sucumbiria aos desígnios da lógica socrática.
A dimensão dionisíaca, traduzida na música trágica, no coro e na metafísica
de artista é o elemento que Nietzsche aponta como via de acesso ao Uno-primordial
ou fonte originária, mediante a percepção intuitiva. Nesse sentido, este filósofo
busca na Antigüidade grega, em especial na discussão de Heráclito sobre o devir, o
fundamento para a constante transformação do mundo, a partir da coexistência de
Apolo e Dionísio.
A intuição heraclitiana, como instrumento de investigação da existência e
acesso ao Uno-primordial, será apresentada no capítulo que finaliza esta pesquisa.
88
4 O MÚLTIPLO E O DEVIR EM HERÁCLITO – A INTUIÇÃO COMO ACESSO
AO UNO-PRIMORDIAL
Nietzsche busca em Heráclito e seu devir a coexistência dos opostos, a
eterna guerra, a luta constante na construção e desconstrução do mundo. O fio
condutor da presente pesquisa passa pela necessidade de analisar a coexistência
das duas pulsões da natureza: a apolínea e a dionisíaca. Uma vez demonstrado no
capítulo anterior como se dá essa coexistência e como ela deixa de existir pela
morte da tragédia, é no devir de Heráclito que se alcança tal possibilidade. Heráclito,
o Filósofo da Intuição, possibilita a Nietzsche, por este instrumento, conceber o
caminho de acesso, no mundo fenomênico, ao fundo originário ou Uno-primordial.
4.1 Heráclito, o filósofo intuitivo
Há épocas em que o homem racional e o
homem intuitivo ficam lado a lado, um com
medo da intuição, o outro escarnecendo da
abstração; este último é tão irracional
quanto o primeiro é inartístico. (Nietzsche)1
1 NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral / Nietzsche. Obras Incompletas. Seleção de textos: Gérard Lebrun. Trad. e notas: Rubens Rodrigues Torres Filho. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores). p. 51.
89
Ao se estudar a obra de Nietzsche, percebe-se a construção de uma nova
cosmologia.2 Retomam-se a descrição da metafísica de artista e as doutrinas pré-
socráticas como justificação da tese do Uno-primordial, com especial destaque ao
estudo de Nietzsche sobre Heráclito (535-475 a.C.).
Esse pensador da Grécia antiga contribuiu significativamente para a tese de
Nietzsche sobre o Uno-primordial e sua natureza última no devir e no múltiplo
indizível. Heráclito, o filósofo que também fez da suspeita seu instrumento de
investigação, deu sustentação para Nietzsche questionar a premissa básica,
implantada na tradição por Sócrates e Platão, qual seja, que o conceito esteja em
condições de captar adequadamente a realidade ou a essência do existente.
Marcio Benchimol, no livro Apolo e Dionísio, arte, filosofia e crítica da cultura
no primeiro Nietzsche, chama a atenção para o fato de que, até a atualidade, não
tenha sido feita a devida justiça quanto à influência do filósofo Heráclito na primeira
fase do pensamento de Nietzsche.3 Em verdade, não seria de todo inapropriado
afirmar que havia uma grande identificação de Nietzsche com o pensamento do
filósofo de Éfeso.
Extrai-se para este paralelo, do livro de Nietzsche A filosofia na idade trágica
dos gregos, a seguinte menção ao filósofo:
Heráclito era orgulhoso, e quando o orgulho entra num filósofo,
então, é um grande orgulho. A sua acção nunca o remete para
um ‘público’, para o aplauso das massas e para o coro 2 A idéia de Nietzsche ter construído em sua obra uma nova cosmologia, ou uma Filosofia da Natureza, está expressa por Scarlett Marton em seu livro Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos (São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 13, 23-24). Para tal elaboração, a autora, mencionando a sua interação com estudos do filósofo alemão Wolfgang Müller-Lauter, aponta a necessidade de recorrer a conceitos nietzschianos da segunda e da terceira fases para viabilizar esta reorganização cosmológica. Porém, perceberam-se no trabalho da autora importantes recorrências aos textos da primeira fase nietzschiana, em especial à idéia do múltiplo e do devir em Heráclito. 3 BENCHIMOL, Marcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 42.
90
entusiasta de seus contemporâneos. Seguir um caminho
solitário pertence à essência do filósofo. O seu dom é o mais
raro e, de certa maneira, o menos natural, excluindo e
ameaçando todos os outros dons. [...] O desprezo pelo
presente e pelo momentâneo é parte integrante da grande
natureza filosófica.4
Nietzsche acentua em Heráclito uma disposição em adotar a intuição como
instrumento fundamental à investigação filosófica, o que o distingue dos outros
filósofos. Pode-se recorrer ao fragmento LXV de Heráclito sobre as multidões: “O
que é então o saber deles senão diafragma? Enternecem-se com os cantores dos
Demos e têm a multidão por mestre, não sabendo que a maioria é má e minoria é
boa”.5
Como mencionado, Heráclito era também conhecido na Antigüidade como
filósofo intuitivo. Nietzsche aponta esta caracterização como uma faculdade sublime
de “representação intuitiva”, revelando, como se percebe nas palavras do próprio
Nietzsche em A filosofia na idade trágica dos gregos, um Heráclito insensível e hostil
ao modo lógico e estritamente racional de pensar e avesso às multidões.
Nietzsche enaltece esta característica heraclitiana em toda a sua obra, ao
criticar a tradição filosófica ocidental racionalista, como se observa nas seguintes
palavras sobre Heráclito:
Heráclito tem algo de inacreditável; e se é verdade que foi visto
ao observar os jogos de crianças barulhentas, ao menos nessa
altura repassou naquilo que jamais alguém considerará numa
ocasião dessas: o jogo da grande criança universal, o jogo de
4 NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na idade trágica dos gregos. Lisboa: Edições 70, 1987. § 8, p. 53. 5 COSTA, Alexandre. Heráclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro: Difel, 2002. Fragmentos de Heráclito. (LXV), p. 207.
91
Zeus. Ele não precisava dos homens nem sequer para o seu
conhecimento; todas as informações que deles se podiam
obter ao interrogá-los e tudo o que os outros sábios antes dele
tinham tentado pesquisar não lhe interessavam. Fala com
desprezo desses homens interrogadores, coleccionadores, em
suma, ”históricos”.6
O jogo da grande criança universal é o jogo aqui pesquisado nas pulsões
artísticas do Uno-primordial. Alguns dos fragmentos que se tem de Heráclito
justificariam a importância que Nietzsche dá à sua habilidade intuitiva. Dois
fragmentos revelam a intuição no pensamento do filósofo de Éfeso e mostram-se
interessantes para o tema deste trabalho: “Harmonia inaparente mais forte que a do
aparente”.7 “Diante do daímon, o homem ouve, infantil, como, diante do homem, a
criança”.8
Para Nietzsche, Heráclito, o filósofo da intuição como instrumento de
conhecimento, lançou um passo definitivo e corajoso, com a afirmação do devir
como essência última do existente, que Nietzsche passa a chamar de Uno-
primordial. Ele concebeu o devir em sua radicalidade, ao ponto de sequer reservar à
razão autoridade suficiente como suporte da linguagem. “Heráclito concebeu a
unidade como unidade do devir, e não do ser, e por isso não precisou pensá-la
como oposta ao mundo da multiplicidade, mas sim como imanente a ele”.9 Nesse
ponto, mostra-se uma dúvida em relação às posturas de Nietzsche e Heráclito
quanto às suas visões do devir e do múltiplo.
6 NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na idade trágica dos gregos. Lisboa: Edições 70, 1987. § 8, p. 54. 7 COSTA, Alexandre. Heráclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro: Difel, 2002. Fragmentos de Heráclito, (VII), p. 198. 8 COSTA, Alexandre. Heráclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro: Difel, 2002. Fragmentos de Heráclito, (X), p. 198. 9 BENCHIMOL, Marcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 48.
92
Heráclito é o homem estético por excelência, contemplou o mundo como o
artista contempla a obra de arte. A metafísica de artista nietzschiana e a concepção
heraclitiana do devir permitem refletir sobre o Uno-primordial como origem das
formas particulares manifestadas na vida.
Para se abordar o termo Uno-primordial, ligado aos nomes de Dionísio e de
Heráclito, quando se trata de entender e justificar o mundo como fenômeno estético,
principalmente na música e no mito,10 Nietzsche se refere à força plasmadora do
universo, a exemplo da citação a seguir; que deixa transparecer esta preocupação,
presente em obras anteriores a O nascimento da tragédia:
Esse aspirar ao infinito, o bater de asas do anelo, no máximo
prazer ante a realidade claramente percebida, lembram que,
em ambos os estados, nos cumpre reconhecer um fenômeno
dionisíaco que torna a nos revelar sempre de novo o lúdico
construir e desconstruir do mundo individual como eflúvio de
um arquiprazer, de maneira parecida à comparação que é
efetuada por Heráclito, o Obscuro, entre a força plasmadora do
universo e uma criança que, brincando, assenta pedras aqui e
ali e constrói montes de areia e volta a derrubá-los.11
Giorgio Colli aponta uma possível falha deste filósofo ao retirar do deus Apolo
sua conformidade enquanto divindade da arte.
Todavia, é verdade que Apolo é também o deus da arte. O que
escapou de Nietzsche foi a duplicidade da natureza de Apolo,
sugerida pelos caracteres já recordados de violência diferida,
10 É preciso lembrar que, na cultura grega, a música e a palavra eram uma unidade indivisível e estavam intimamente ligadas ao mito. 11 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 24, p. 142.
93
do deus que fere de longe. Assim como o mito de Dionísio
dilacerado pelos titãs é uma alusão à separação da natureza, à
heterogeneidade metafísica, entre o mundo da multiplicidade e
da individuação, que é o mundo da laceração e da
insuficiência, e o mundo da unidade divina, assim a duplicidade
intrínseca à natureza de Apolo testemunha paralelamente, e
numa representação mais envolvente, uma fractura metafísica
entre o mundo dos homens e o dos deuses. A palavra é o
intermediário.12
O que se defende na presente investigação, é que Nietzsche não retira do
deus Apolo as suas características também de deus da arte nem a sua importância,
mas oblitera esta característica em função da necessidade de se retomar o equilíbrio
das duas pulsões no mundo socrático-platônico, que destensionou a oposição entre
Apolo e Dionísio, condenando o último ao exílio.
Heráclito, por sua vez, aborda o deus Apolo como apto a acessar uma
dimensão irracional e mágica da arte. “E a ruptura metafísica que está na base do
mito grego é comentada pelos sábios: o nosso mundo é a aparência de um mundo
oculto, do mundo onde vivem os deuses”.13
Apolo é também um deus que simboliza a vida, a palavra, porém, é o seu
intermediário. Talvez por ser o deus da medida, da forma e da harmonia, Heráclito
evoque neste deus o conceito de harmonia necessária à intuição unificadora.
De acordo com Colli, Heráclito acrescenta à natureza de Apolo a sua
ambigüidade; a esfera da loucura diz respeito à arbitrariedade, ora promovendo uma
ação hostil, ora benigna, instigando o esclarecimento diante da necessidade. Isto se
mostra em sua resposta oracular – Delfos, saindo da obscuridade da terra, mas a
12 COLLI, Giorgio. O nascimento da filosofia. Lisboa: Edições 70, 1975, p. 36. 13 COLLI, Giorgio. O nascimento da filosofia. Lisboa: Edições 70, 1975. p. 36.
94
palavra traz consigo o ensinamento apolíneo, enaltecida por Sócrates nos preceitos
“nada em excesso” e em “conhece-te a ti mesmo”.
Uma passagem que justifica a crítica de Colli a Nietzsche está na Seção 21
de O nascimento da tragédia. Nela, mesmo depois de apresentar a necessidade da
coexistência das duas divindades que estão em constante oposição e que
configuram a dinâmica do processo de transformação, o filósofo eleva a força de
Dionísio como caráter transfigurador da realidade.
No efeito conjunto da tragédia, o dionisíaco recupera a
preponderância; ela se encerra com um tom que jamais
poderia soar a partir do reino da arte apolínea. E com isso, o
engano apolíneo se mostra como o que ele é, como o véu que,
enquanto dura a tragédia, envolve o autêntico efeito dionisíaco,
o qual, todavia, é tão poderoso que, ao final impele o próprio
drama apolíneo a uma esfera onde ele começa a falar com
sabedoria dionisíaca e onde nega a si mesmo e à sua
visibilidade apolínea.14
A intuição é, sobremaneira, o elemento valorizado por Nietzsche em Heráclito,
porque é ela que dá acesso à suspeita de um fundo originário que não se mostra à
luz da razão. Este, por sua vez, tem as características da embriaguez, da
inconsciência, da irracionalidade, da violência e do prazer, elementos estes,
essencialmente dionisíacos. E o filósofo deixa isto claro em seus textos da
juventude.
Para a presente pesquisa, A filosofia na idade trágica dos gregos implica uma
fonte para o fortalecimento do argumento de que Heráclito é o filósofo trágico por
14 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 21, p. 129.
95
excelência. No texto de 1873, Sobre a verdade e mentira no sentido extra-moral,
também se encontra o fundamento juvenil, para alicerçar o argumento de Nietzsche
de que na arte grega trágica estão os elementos necessários para romper a
dicotomia metafísica dos dois mundos.
É verdade que somente pela teia rígida e regular do conceito
[ou seja, da palavra] o homem acordado [intuitivo, dionisíaco]
tem certeza clara de estar acordado, e justamente por isso,
chega às vezes à crença de que sonha, se alguma vez aquela
teia conceitual é rasgada pela arte.15
Observa-se que a palavra, o conceito, em Nietzsche, está sempre sob
suspeita.
O intelecto, esse mestre do disfarce [...] Aquele descomunal
arcabouço e travejamento dos conceitos, ao qual o homem
indigente se agarra [...] ele revela que não precisa daquela
tábua de salvação da indigência e que agora não é guiado por
conceitos, mas por intuições.16
A arte, na tragédia grega, é o lugar singular de manifestação desta intuição e,
como foi apresentado no Capítulo 2 da presente investigação, é nela que, segundo
Nietzsche, é superada a dicotomia entre verdade e aparência.
15 NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral / Nietzsche. Obras Incompletas. Seleção de textos: Gérard Lebrun. Trad. e notas: Rubens Rodrigues Torres Filho. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores). § 1, p. 50. 16 NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral / Nietzsche. Obras incompletas. Seleção de textos: Gérard Lebrun; trad. e notas: Rubens Rodrigues Torres Filho. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores). § 2, p. 51.
96
O homem intuitivo, artístico e embriagado é o gênio helênico. Este alcança
um domínio sobre a vida, que o homem teórico racional e socrático só pode alcançar
por uma ilusão, um engano, tendo antes a necessidade de negar a vida, corrigi-la,
não vendo aquelas necessidades e tomando somente a vida
disfarçada em aparência e em beleza como real. Onde alguma
vez o homem intuitivo, digamos como na Grécia antiga, conduz
suas armas mais poderosamente e mais vitoriosamente do que
seu reverso, pode configurar-se, em caso favorável, uma
civilização e fundar-se o domínio da arte sobre a vida.17
O mito, a arte e a música trágicos, uma vez não dissolvidos em conceitos, são
capazes de exprimir o Uno-primordial. O coro, como foi visto, cumpre este papel na
tragédia grega. Tal é a experiência do poeta e do herói trágicos que, no estado de
embriaguez dionisíaca, cita Nietzsche,
graças a esse mesmo mito, sabe libertar-nos da pessoa do
herói trágico, da ávida impulsão para esta existência e, com
mão admoestadora, nos lembra de um outro ser e de um outro
prazer superior, para o qual o herói combatente, cheio de
premonições, se prepara com sua derrota e não com suas
vitórias.18
É desta maneira que na metafísica de artista, por intermédio da intuição do
gênio, dionisiacamente, realiza-se o processo transfigurador do Uno-primordial.
17 NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral / Nietzsche. Obras incompletas Seleção de textos: Gérard Lebrun; trad. e notas: Rubens Rodrigues Torres Filho. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores). § 2, p. 51- 52. 18 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 21, p. 125.
97
O estado de embriaguez ou de irracionalidade de Ésquilo ao tratar da tragédia
grega, ou a dimensão intuitiva do filósofo trágico, é que propiciam o “aspirar ao
infinito”, citado por Nietzsche na Seção 24 de O nascimento da tragédia. É o
processo pelo qual a vontade, ou o fundo primordial, satisfaz seus impulsos
artísticos e o homem reconcilia-se com a natureza primavera, ou mães do ser,
termos estes, como mencionado, usados por Nietzsche para referenciar o Uno-
originário, ou Uno-primordial.
Para a arte dionisíaca, diz Nietzsche: “sede como eu sou! Sob a troca
incessante das aparências, a mãe primordial eternamente criativa, eternamente a
obrigar à existência, eternamente a satisfazer-se com essa mudança das
aparências!”19
O jogo da criança brincando na areia, a idéia de mudança e de constante
transformação, ou seja, a doutrina do devir heraclitiana, é apropriada por Nietzsche
que a reconhece inerente ao movimento de criação e destruição do Uno-primordial,
como se observará a seguir.
4.2 O múltiplo e o devir
O cosmo, o mesmo para todos, não o fez
nenhum dos deuses nem nenhum dos homens,
mas sempre foi, é e será fogo sempre vivo,
acendendo-se segundo medidas e segundo
medidas apagando-se. (Heráclito)20
19 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 16, p. 102. 20 COSTA, Alexandre. Heráclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro: Difel, 2002. Fragmentos de Heráclito (XXIX), p. 201.
98
A percepção intuitiva da vida, para Nietzsche, também é fruto de sua leitura
muito particular sobre a doutrina do devir, em Heráclito, da multiplicidade e da guerra
dos opostos. A partir deles é possível conhecer o fundo originário, ou o Uno-
primordial. Este conceito e a sua natureza dionisíaca constituem conteúdos pouco
explorados pelos estudiosos, nos primeiros escritos de Nietzsche.
Por sua vez, atesta Marcio Benchimol que a noção de unidade e
multiplicidade se enraíza em outro problema mais fundamental: o problema da
relação entre o ser e o devir.21
Em Nietzsche, para pensar a unidade, antes deve-se passar pela perspectiva
de Anaximandro e de Heráclito para então se compreender a impermanência de
toda a individualidade. Tudo o que é determinado é fruto de um processo de
transformação permanente e inexorável, um movimento de geração e de destruição,
o devir.
Nietzsche comenta em A filosofia na idade trágica dos gregos, as palavras de
Heráclito:
Contemplo o devir, diz ele, e nunca alguém contemplou com
tanta atenção o fluxo e o ritmo eterno das coisas. [...] Heráclito
tirou desta intuição duas negações entre si solidárias, que só
vêm completamente à luz pela comparação com os
ensinamentos de seu precursor [Anaximandro]. Em primeiro
lugar negou a dualidade de dois mundos totalmente diferentes,
que Anaximandro se vira obrigado a admitir; já não distingue
um mundo físico e um mundo metafísico, um domínio de
qualidades definidas e um domínio da indeterminação
indefinível. Após este primeiro passo, também já não pôde
coibir-se de uma maior audácia da negação: negou o ser em 21 BENCHIMOL, Marcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 42.
99
geral [...]. Heráclito exclamou mais alto do que Anaximandro:
só vejo o devir.22
Nietzsche aponta que Anaximandro refugia-se na noção do indefinido
metafísico, porque aquelas qualidades de nascimento e morte, criação e destruição,
haviam-lhes negado a existência verdadeira e essencial.23
Nietzsche sustenta a perspectiva naturalista de Heráclito objetando sobre a
necessidade de voltar a atenção para a fraqueza peculiar do conhecimento dos
homens, quando se fala em devir; uma vez que, na essência das coisas talvez, não
haja devir algum, mas unicamente a coexistência das múltiplas realidades tidas
como verdadeiras, que se subtraem ao devir e à destruição – “Heráclito grita mais
uma vez: O uno é o múltiplo”.24 Compreende-se, nesta afirmação, a idéia da
coexistência das pulsões artísticas Apolo e Dionísio.
Nietzsche ao examinar o enredo dos pré-socráticos em torno da origem de
todas as coisas, indica que o devir, em Heráclito, começa quando aquelas
qualidades originárias se separam do ser primordial, ou do Indefinido.
Nietzsche conclui sobre Heráclito: “É assim que o fogo segue duas vias de
metamorfose que sobem e descem incessantemente, vão e vêm, lado a lado, do
fogo à água, daí à terra, da terra de novo à água e da água ao fogo”.25 Daí Heráclito
afirmar que o cosmo é o movimento do fogo sempre vivo, que se acende e se apaga
segundo certas medidas, compondo o que lá ele chamou de cosmos ou o
indeterminado.26
22 NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na idade trágica dos gregos. Lisboa: Edições 70, 1987. § 5, p. 40. 23 NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na idade trágica dos gregos. Lisboa: Edições 70, 1987. § 6, p. 45-46. 24 NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na idade trágica dos gregos. Lisboa: Edições 70, 1987. § 6, p. 45-46. 25 NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na idade trágica dos gregos. Lisboa: Edições 70, 1987. § 6, p. 47. 26 Ver citação da epígrafe do item 4.2, do presente trabalho.
100
Márcio Benchimol sobre o devir heraclitiano em Nietzsche, explica que os
escritos desta fase de produção, concomitantes à concepção de sua primeira obra,
O nascimento da tragédia, são caracterizados por um pensar intuitivo, sem, contudo,
abster-se do elemento científico.
Observa-se aqui sua verve filológica:
Ocorre apenas que na filosofia trágica o pensamento científico
é sobrepujado pela força da representação intuitiva. [...] O
pensamento científico passa então a valer, não como meio de
conhecimento da realidade, mas sim como meio de expressão
de conhecimentos alcançados através da intuição.27
A afirmação corajosa de Heráclito diante de seus contemporâneos foi a de
conceber o devir como essência última do existente. Além disso, baseado na força
da intuição, pôde compreender o devir em toda a sua radicalidade. Desta forma,
afirma Benchimol, Nietzsche o elege como o filósofo que com maior profundidade
percebeu a incongruência entre o pensamento científico causal e o pensamento que
é fruto do filosofar intuitivo.
Daí a sua liberdade ou desprendimento frente a uma pretensa “necessidade”
de justificar o seu pensamento, mediante a lógica científica e a argumentação
dialética, tão características de sua época.28
Alexandre Costa comenta os fragmentos LII a LV, mencionando os quatro
elementos, terra, ar, água e fogo. Aponta que o cosmo constitui um espaço que
contempla a contínua transformação de tudo, a fluência de todas as coisas, notório
27 BENCHIMOL, Marcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 45. 28 BENCHIMOL, Marcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 44-47.
101
aspecto da cosmologia de Heráclito e alvo relevante da perspicácia de Nietzsche,
destacando o fato de que a alteração e a preservação servem uma à outra no
acender-apagar.
A lógica do movimento instala-se em todas as coisas, elas em
processo contínuo de alteração: o úmido seca, o quente esfria.
[...] Heráclito toma as mudanças entre os estados físicos como
exemplo do movimento e transformação de tudo. É o que se vê
também no fragmento LIII. Porém, a grande novidade que esse
fragmento traz consiste em nomear essas mudanças de
‘morte’. Do sólido para o líquido, o sólido morreu e o líquido
surgiu. [...] Com isso Heráclito demonstra como a morte vem a
ser um momento necessário à manutenção da vida e à
dinâmica do cosmo.29
Com essa referência, extrínseca à filosofia de Nietzsche, mas fiel a um estudo
de Heráclito, pode-se retornar ao final da Seção VI e início da Seção VII de A
filosofia na idade trágica dos gregos, para acordar um paralelo da noção de morte,
apontada por Costa, e a idéia do fogo como propiciador da metamorfose do que é.
Heráclito parece ter dito com mais precisão: do mar só se
elevam os vapores mais puros, que servem de alimento ao
fogo celeste dos astros; da terra só se elevam os vapores
escuros e nebulosos, que servem de alimento ao húmido. Os
vapores puros são a transição do mar para o fogo, os vapores
impuros são a transição da terra para a água.30
29 COSTA, Alexandre. Heráclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro: Difel, 2002. p. 241-242. 30 NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na idade trágica dos gregos. Lisboa: Edições 70, 1987. § 6, p. 47.
102
Nietzsche sublinha a crença de Heráclito, de que o frio é só uma forma ou um
grau diferente do quente. Porém, mais importante que este afastamento da doutrina
de Anaximandro, é sim uma coincidência: ambos acreditam num colapso do mundo,
que obedece a um ciclo cósmico periódico que sempre se aniquila e ressurge. Em
Heráclito, o fogo puro, como um desejo e uma necessidade de consumação, é o
responsável por tal saciedade. A ambivalência das pulsões apolínea e dionisíaca faz
essa relação do ciclo cósmico.
Nietzsche conjectura, como discípulo de Heráclito, nesta reflexão, sobre a
culpa surgida da transformação do puro no impuro. E também sobre a multiplicidade
surgida do novo impulso de formação do mundo (hybris).
Será que este mundo está cheio de culpa, de injustiça, de
contradições e de sofrimento?
Sim, grita Heráclito, mas só para o homem limitado que vê as
coisas separadas umas das outras e não no seu conjunto, não
para o seu contuitivo; para este, todos os contrários confluem
numa harmonia, invisível, é verdade, ao olhar humano comum,
mas inteligível para quem, como Heráclito, se assemelha ao
deus contemplativo. Perante o seu olhar de fogo, não subsiste
nenhuma gota de injustiça no mundo derramado em seu redor;
e chega mesmo a superar, mediante uma comparação sublime,
a dificuldade principal em explicar como é possível que o fogo
puro possa assumir formas tão impuras. Nesse mundo, só o
jogo do artista e da criança tem um vir à existência e um
perecer, um construir e um destruir sem qualquer imputação
moral em inocência eternamente igual. E, assim como brincam
o artista e a criança, assim brinca também o fogo eternamente
activo, constrói e destrói com inocência. 31
31 NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na idade trágica dos gregos. Lisboa: Edições 70, 1987. § 7, p. 49.
103
Heráclito oportuniza a redenção na inocência. E em virtude de sua negação
da bipartição metafísica do mundo, uma perspectiva teleológica da existência lhe era
inacessível. Por conta disso, Nietzsche lhe atribui a condição de um filósofo trágico
por excelência. Sua filosofia é fruto de uma perspectiva estética de um jogo do
mundo. Marcio Benchimol sugere que o valor da existência [reforçando a visão de
Nietzsche] é problemático somente para aquele que é limitado e enxerga tudo
fragmentado e não enquanto conjunto; mas não para quem, como Heráclito, pode
compartilhar da perspectiva estética do criador.32
Existe apenas uma vida, que se manifesta necessariamente
em indivíduos, e que é a mesma em cada um. A multiplicidade
dos indivíduos é um fenômeno de superficialidade sob o qual
subsiste a unidade primordial de tudo que vive.33
Esta afirmação está ligada às noções de multiplicidade e de devir como
manifestação da afirmação do poder da vontade e do Uno-vivente. Aqui identifica-se
uma clara influência, já apontada no início da pesquisa, do romantismo da época,
pois este Uno-vivente representa a totalidade da força vital da natureza, concebida a
partir de uma visão organicista do mundo. Esta noção de organismo como ser único
permitirá a Nietzsche conciliar a multiplicidade dos indivíduos com a unidade do
Uno-vivente, ou com o “formidável organismo que gera a si mesmo”.34
A hipótese de um organismo único, visto como um todo, é contrariada pela
visão de Müller-Lauter, quando este estuda a doutrina da vontade de poder
32 BENCHIMOL, Marcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 50. 33 BENCHIMOL, Marcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 32. 34 NIETZSCHE, Friedrich, apud BENCHIMOL, Marcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 32.
104
nietzschiana. O tema está orientado a partir de textos de Nietzsche aqui não
estudados, mas a reflexão é recorrente.
Müller-Lauter refuta a idéia, antes apresentada por Benchimol, de um ser
vivente ou de um organismo que gera a si mesmo. Para Müller-Lauter, a unidade só
é unidade como organização, daí a impossibilidade de falar da unidade como um
todo do mundo.
Ainda mais sugestiva é a fundamentação de que ele
[Nietzsche] dá para isso. A essa unidade teria de permanecer
‘alguma força, um incondicionado’ [...]. Para a constituição da
unidade do todo, seria necessário um fundante originário, que
organizaria a multiplicidade total. Recairíamos, com isso,
porém, no preconceito metafísico combatido por Nietzsche.35
Müller-Lauter defende que a visão de Nietzsche é de que o mundo é caos e
que não existe uma unidade organizada. Conjectura-se aqui, que o jovem Nietzsche
concebia o incondicionado como o Uno-primordial e, por influência do romantismo,
percebeu, sim, como apontam Benchimol e Marton, o todo como unidade, mas
unidade em profunda e constante transformação e luta.36
Quando Deleuze aborda “a transmutação de todos os valores”, assunto aqui
não explorado, define-a como um “devir ativo das forças, um triunfo da afirmação na
vontade de poder”.37 Parece estar aludindo a uma perspectiva do devir e do múltiplo
35 MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Trad.: Oswaldo Giacoia. São Paulo: Annablume, 1997. p. 103. 36 Na Introdução do presente trabalho, foi salientada a intenção de não fazer desta pesquisa uma investigação que visasse encontrar uma provável contradição em Nietzsche sobre a teoria do Uno-primordial ter origem metafísica ou não. Mas, antes, interpretar esta teoria como o fundamento de uma cosmovisão que sustentou posteriormente o desenvolvimento de sua filosofia. Observa-se, no entanto, que a teoria do Uno-primordial não volta a aparecer em seus escritos. 37 DELEUZE, Gilles. Nietzsche. Edições 70: Lisboa Portugal, 1965. p. 28.
105
que definem um filósofo dionisíaco, ou intuitivo, aberto à compreensão deste ser
primordial.
O múltiplo já não é justificável do Uno nem o devir, do Ser. Mas
o Ser e o Uno fazem melhor do que perder o seu sentido;
tomam um novo sentido. Porque, agora, o Uno diz-se do
múltiplo enquanto múltiplo (pedaços ou fragmentos); o Ser diz-
se do devir enquanto devir. Tal é a inversão nietzschiana, ou a
terceira figura da transmutação. Já não se opõe o devir ao Ser,
o múltiplo ao Uno [...]. Pelo contrário, afirma-se o Uno do
múltiplo, o Ser do devir. Ou então, como diz Nietzsche, afirma-
se a necessidade do acaso. Dionísio é jogador. O verdadeiro
jogador faz do acaso um objeto de afirmação.38
O acaso é abordado por Deleuze como solução à pretensa necessidade de
não recorrer a uma instância metafísica (o ser) ou a uma categoria do
incondicionado. Retorna-se, aqui, à conseqüente exposição de Müller-Lauter que, a
partir da idéia de caos, em Nietzsche, ou da inexistência de um todo organizado,
também não se pode conceber a idéia de vontade de poder como um constituinte do
mundo. Deriva, então, em Müller-Lauter, o conceito de que existem vontades de
poder;39 multiplicidades destas vontades. É a inversão nietzschiana, a transmutação
que Deleuze aponta como possibilidade de coexistência do múltiplo no uno e o devir
do uno.
Ainda pretendendo encontrar as bases, ou influências, que marcaram os
primeiros escritos de Nietzsche, observa-se no estudo de Scarlett Marton, a
38 DELEUZE, Gilles. Nietzsche. Edições 70: Lisboa Portugal, 1965. p. 30. 39 O conceito de vontade de poder foi mencionado apenas com o intuito de explicar as idéias de multiplicidade e de devir no argumento de Deleuze e Müller-Lauter, recorrentes a fases posteriores à que aqui se estuda, mas se mostram úteis à compreensão do capítulo que encerra a presente pesquisa.
106
proposição de que o filósofo constrói uma cosmologia, ou uma filosofia da natureza.
A luta dos opostos, ou o “jogo de forças” está presente em todo o organismo.
A tensão entre os opostos se apresenta na multiplicidade, não como uma
noção de evolução ou de auto-conservação, outrossim, como voracidade nas mais
ínfimas partículas;40 o que, aqui, se interpreta como força dionisíaca atuando como
afirmação da vida, a exemplo de As bacantes, de Eurípides, em passagens que
mostram o transe das mulheres nos ritos dionisíacos, buscando a saciedade dos
sentidos: “pequeno é o esforço de ver que aí reside a força [...], por lei perene, na
natureza fundada”.41
Tal percepção de uma lei perene ou natureza primeira, remete à questão da
intuição. Ainda em As bacantes, há uma menção ao “transe báquico e seu delírio
trazendo poderes divinatórios”42 oportunizado por Dionísio durante o estado extático
e de inconsciência que aquelas concessões festivas oportunizavam. Nesse sentido,
a intuição seria percebida como esse poder divinatório de elucidação e de
esclarecimento para uma dimensão que se encontra além da razão ou da
racionalidade.
O culto dionisíaco ocorria durante o inverno, com o templo de Apolo fechado
como solução para a colaboração entre o culto às duas divindades opostas, no
entanto, como se pode observar, complementares.
A importância de Heráclito para a filosofia de Nietzsche gira em torno da
justificação da estética da existência. Em função da negação heraclitiana de uma
bipartição metafísica do mundo, adotada também pelo filósofo alemão, uma resposta
teleológica ou moral desta perspectiva é impossível. Ambos assumem, então, o jogo
do mundo, o acaso, a existência trágica e a sua dimensão dionisíaca. 40 MARTON, Scarlett. Das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 13-30. 41 EURÍPIDES. As bacantes. Lisboa: LDA, 1998. § 895, p. 80. 42 EURÍPIDES. As bacantes. Lisboa: LDA, 1998. § 315, p. 51.
107
Heráclito, filósofo trágico. Inserido no mesmo universo que
inventa a tragédia, é o criador da interpretação trágica em
filosofia. Mas a comunidade do pensamento e da arte não é
fruto do acaso. Arte e pensamento fazem parte de uma unidade
que, evento único, é a cultura pré-socrática. Esta unidade é
definida como comunidade de estilo: arte e pensamento não só
se comunicam – a arte dirige o pensamento.43
A filosofia nietzschiana “se dá ao leitor enquanto reflexão incessante, em
permanente mudança. Como o rio de Heráclito, ela afirma a inocência do vir-a-ser;
mais ainda, ela se põe enquanto vir-a-ser”.44
Dionísio traduz a tensão por ser o deus da desmesura; sua função é
evidenciar a oposição entre a sua dimensão e a apolínea. Esse é o papel do deus
Dionísio, em sua desproporção e excesso. Ele é o desejo da diferença, o duplo
sentido de criação e destruição, intensidade e afirmação do trágico. Para Nietzsche,
Heráclito é o filósofo que intui essa perspectiva do devir e do acaso na unidade. E é
por essa característica que o deus da fertilidade, da embriaguez e da inconsciência
propicia a mais intensa das experiências, as quais os gregos pré-socráticos
reconheceram e valorizaram, integrando essa sabedoria à concepção da tragédia
grega.
43 KOSSOVITCH, Leon. Signos e poderes em Nietzsche. Rio de Janeiro: Azougue, 2004. p. 177. 44 MARTON, Scarlett. A terceira margem da interpretação. In: MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Trad.: Oswaldo Giacoia. São Paulo: Annablume, 1997. p. 48.
108
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Divinizado por uma super abundância de vida, onde
a vontade de aparência, de mentira, de ficção, de
erro e ilusão se desdobra como um sim afirmativo,
um sim transfigurador, o único verdadeiro sim, o sim
supremo de um estado de aquiescência à vida da
qual ‘mesmo a dor, toda espécie de dor’, faz parte
essencialmente como um meio de intensificação, de
elevação, de tensão e gozo. É este o estado trágico
dionisíaco por excelência. (Almeida)1
A sabedoria trágica concebida por Nietzsche e enaltecida pelo filósofo como
parâmetro e fundamento para tecer sua crítica ao otimismo teórico, que perdura
desde Sócrates até a modernidade, firma-se como importante marco e referencial
teórico para se compreender, na contemporaneidade, os limites da própria razão. As
interrogações e proposições instauradas no século XX a partir da obra de Nietzsche
estão longe de ser exauridas, transfigurando-se sempre em desdobramentos
inquietantes. Nas mais diversas áreas do saber, suas obras são consultadas, sendo
incluídas nas pesquisas sobre estética, política, história, psicanálise, teologia, além
da ética e da filosofia.
Observou-se, durante esta pesquisa, no contexto da publicação brasileira
atual, a relevância que os primeiros escritos de Nietzsche vêm recebendo dos seus
estudiosos e quanto ainda há para se compreender quando analisados os
fragmentos póstumos, muitos dos quais ainda não se encontram traduzidos para a
língua portuguesa. 1 ALMEIDA, Rogério Miranda de. Nietzsche e o paradoxo. São Paulo: Loyola, 2005. p. 66.
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Para a presente investigação, constatou-se a complexidade que envolve a
noção ontológica do Uno-primordial, especialmente porque este conceito não é
abordado nas obras posteriores do filósofo, permanecendo, antes e com maior
intensidade, na terceira fase da sua produção, a recorrente alusão ao fenômeno
dionisíaco. Daí esta pesquisa, que faz uma aproximação da divindade grega
dionisíaca ao conceito do Uno-primordial.
Um dos aspectos mais importantes encontrados na filosofia da primeira fase
da produção de Nietzsche está em sua intuição de que a arte, a representação ou a
aparência são fundamentais para a vida.
Assim, o filósofo analisa a sabedoria trágica dos gregos da Antigüidade, que
renderam-se a uma compreensão estética da existência, conferindo à arte ática uma
via de acesso que é perpassada pela aceitação da tragicidade da vida, sem
resignação ou culpa, ao contrário, sustentando uma experiência de afirmação da
vida com toda a sua exaltação característica.
Esta sabedoria permitiu aos gregos trágicos encontrar, na duplicidade do
apolíneo e do dionisíaco, um consolo metafísico só visto no mundo helênico,
conjugando “ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das
vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente em produções sempre novas
[...] até que, por fim, através de um miraculoso ato metafísico da ‘vontade’ aparecem
emparelhados um com o outro, e nesse emparelhamento, tanto a obra de arte
dionisíaca quanto a apolínea geram a tragédia ática”.2
As pulsões apolínea e dionisíaca são o esteio que orienta o conhecimento
estético de Nietzsche e sustenta o que ele chama de metafísica de artista.
2 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 1, p. 27.
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A hipótese inicial desta pesquisa foi gerada a partir da interrogação sobre a
preponderância do fenômeno dionisíaco na perspectiva nietzschiana, em
contraposição a todo o esforço do filósofo em sustentar a metafísica de artista pela
coexistência das duas pulsões artísticas, sempre gerando oposição e reconciliação;
ou seja, a tensão entre as duas polaridades não é excludente, mas antes
complementar.
Mesmo se o nome de Apolo se esfuma à medida que sua
obra avança para apagar-se quase completamente diante de
Dionísio, isso não indica de modo algum uma determinação da
parte de Nietzsche em mostrar as mudanças dessas duas
forças como uma marcha do Saber Absoluto, onde Dionísio
seria a síntese quer teria superado Apolo como um de seus
momentos.3
O princípio apolíneo gera a individuação (principium individuationis) e por
conseqüência a possibilidade do povo grego suportar a dor e o horror revelados
diante do mergulho na esfera dionisíaca, que é indizível, irracional e inconsciente. A
tragédia grega tem esta função de consolo e revelação. Porém, o que aqui se
pretendeu abordar foi exatamente a dimensão dionisíaca em suas faces reveladoras
da natureza originária ou primaveril, selvagem e contraditória do Uno-primordial. “No
fundo, Nietzsche não tentou outra coisa senão adivinhar por que justamente o
apolinismo grego devia nascer de um subsolo dionisíaco: por que o grego dionisíaco
necessitava tornar-se apolíneo”.4
3 ALMEIDA, Rogério Miranda de. Nietzsche e o paradoxo. São Paulo: Loyola, 2005. p . 32. É comum e inoportuna a tendência de alguns intérpretes em insistir em uma pretensa síntese ocasionada pela noção dialética, ao abordar a dualidade metafísica de Nietzsche. 4 ALMEIDA, Rogério Miranda de. Nietzsche e o paradoxo. São Paulo: Loyola, 2005. p. 34.
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Estas faces do deus da desmesura, da embriaguez e da inconsciência se
revelam em suas expressões na tragédia grega e são concebidas apenas pela
intuição, não pela razão retórica e lógica.
A música, o ditirambo e o coro são expressões artísticas que revelam a
preponderância da natureza dionisíaca do Uno-primordial. Porém, Nietzsche se
recusa a tomar partido de uma das forças originárias, no entanto é a dimensão
representada por Dionísio que permite a compreensão da própria oposição entre as
duas divindades. “Nietzsche tenta explicar essa aporia a partir do próprio caráter
ambíguo e paradoxal que marca essencialmente a figura de Dionísio”.5
O entrelaçamento entre os temas que envolvem a filosofia nietzschiana em
seus primeiros escritos foi apresentado neste trabalho partindo-se da necessidade
de identificar a influência schopenhaueriana no pensamento do jovem Nietzsche e
distinguí-la na filosofia que se iniciava. Apesar da influência do seu mestre, uma
originalidade se mostrava presente no jovem Nietzsche, em especial na sua primeira
obra, em que foi concebida a teoria do Uno-primordial, da qual derivaram a
metafísica de artista e a intuição como manifestação do pensamento trágico e
dionisíaco.
A demarcação apresentada no primeiro capítulo, teve como função não mais
do que esclarecer tal influência em Nietzsche, demonstrar em que consiste sua
inspiração na filosofia trágica e apresentar os fundamentos da teoria do Uno-
primordial. Ao abordar um plano originário de ordem essencial, que tem sua
manifestação no mundo das aparências, ou fenomênico, entendeu-se a influência de
Schopenhauer e sua descrição desta dicotomia entre essência e fenômeno, na
leitura de seu mestre em O mundo como vontade e como representação.
5 ALMEIDA, Rogério Miranda de. Nietzsche e o paradoxo. São Paulo: Loyola, 2005. p. 35.
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Neste capítulo a apresentação das fases ou periodização da trajetória do
filósofo, além da delimitação do campo do trabalho da presente investigação, teve
por função justificar a ausência da apresentação de terminologia e de conceitos, que
só posteriormente à primeira fase foram apresentados ou “amadurecidos” pelo
filósofo, elementos estes usuais nos estudos de seu pensamento.
Este intercurso apresentou-se como uma séria dificuldade inicial e que
acabou por configurar uma apreciação afirmativa de um filósofo perspicaz e atento
ao seu tempo; ou de uma filosofia completa em sua primeira manifestação. Este fato
foi constatado ao se estudar as fases posteriores e observar a permanente
recorrência aos seus primeiros escritos e em especial ao fenômeno dionisíaco no
nascimento e morte da tragédia.
Aquém de toda a autocrítica apresentada no posfácio de O nascimento da
tragédia, em 1886, o filósofo o reedita. Em Ecce homo, sua autobiografia filosófica
de 1888, ainda tem palavras duras sobre seu primeiro livro e, concomitantemente,
encontra relevância nesta obra para sustentar sua filosofia “amadurecida”, bem
como criticar a moral cristã e o racionalismo moderno.
As duas decisivas novidades do livro são, primeiro, a
compreensão do fenômeno dionisíaco nos gregos – oferece a
primeira psicologia dele, enxerga nele a raiz única de toda a
arte grega. Segundo, a compreensão do socratismo: Sócrates
pela primeira vez reconhecido como instrumento da dissolução
grega, como típico décadent. ‘Racionalidade’ contra instinto. A
‘racionalidade’ a todo preço como força perigosa, solapadora
da vida! 6
6 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad., notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Reimpr.: 2001. § 1, p. 62.
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Ainda no primeiro capítulo desta investigação buscou-se definir em que
particularidade a leitura de Nietzsche se distingue da visão clássica, aristotélica, da
tragédia grega, visto que abordar o termo sem uma devida distinção implicaria uma
“devoção” acrítica ao filósofo estudado.
Constatou-se, assim, uma perspectiva não conflitante, no que tange à
descrição geral da tragédia por Aristóteles e Goethe, mas sim uma interpretação
sobre os elementos estruturais da tragédia (coro, herói trágico, platéia, máscaras,
palco entre outros). Nesses elementos, Nietzsche “introduz uma nova perspectiva
quanto às origens da tragédia, mas também repensa, com intuições
verdadeiramente originais, as relações entre a arte e a ciência, a civilização grega e
a modernidade, e sabedoria trágica e o conhecimento teórico”.7
O filósofo não percebe a trama trágica enquanto dicotomia indissolúvel ou
contradição inconciliável. Antes, a vê como uma tensão ou crise, cuja centralidade é
a ambigüidade das pulsões artísticas que, na transfiguração dos elementos trágicos,
cumpre mediante a embriaguez do poeta dionisíaco, o papel mais universal do
destino trágico, qual seja, a derrota vitoriosa, ou o alcançar a vitória na derrota. Para
o herói trágico é necessário sucumbir por aquilo que ele deve vencer, o perecer é
tão digno quanto o nascer.8 O herói surge durante a trama, representando o princípio
de individuação apolíneo. Em seguida, cede lugar, no movimento cênico, ao
fenômeno dionisíaco, quando perece ou sucumbe tragicamente, transfigurado,
muitas vezes, em coro trágico ou no envolvimento catársico da platéia. Esta
experimenta a dor e o sofrimento do herói e é envolvida no espetáculo, acessando
diretamente, através do deus Dionísio, a dimensão da fonte primaveril, ou originária.
7 ALMEIDA, Rogério Miranda de. Nietzsche e o paradoxo. São Paulo: Loyola, 2005. p. 24. 8 NIETZSCHE, Friedrich. Sabedoria para depois de amanhã. Seleção de fragmentos póstumos por Heinz Friedrich. Trad.: Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Seção 7 [128], p. 12.
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A teoria do Uno-primordial, proporciona a compreensão de dois movimentos
simultâneos do jovem Nietzsche. Ao conceber, desenvolver e apresentar a sua
metafísica de artista em O nascimento da tragédia, o filósofo faz também uma crítica
à ontologia clássica, ou seja, busca uma justificação estética para a existência e,
para tal, ataca a metafísica a partir da arte. Daí sua preponderância em valorizar a
arte mais do que a ciência e a própria filosofia. Segundo Rogério Miranda,
o que está em jogo no mundo da arte e da ciência são as
forças e as relações de forças no seu desdobrar infinito de
acerto e desacerto, de êxito e de malogro. A arte é para
Nietzsche o meio pelo qual a vida é afirmada, aceita,
metamorfoseada e transfigurada no seu excesso, na sua
fecundidade e na sua superabundância. Inversamente, a
ciência, a dialética, o conhecimento teórico e, em suma, o
socratismo se apresentam como sintomas de lassidão, de
decadência e crepúsculo. Estes revelam e disfarçam ao
mesmo tempo, as forças que negam a vida, que a condenam,
a julgam e a depreciam. 9
O Uno-primordial é, sim, uma noção ontológica, concebida a partir da
elaboração metafísica da arte e alcançada pela intuição.
O segundo capítulo teve como função analisar mais pontualmente as
semelhanças e as diferenças encontradas no principal mestre e mais influente
filósofo do primeiro Nietzsche. As aproximações da noção de vontade em
Schopenhauer para compreender o conceito do Uno-primordial em Nietzsche,
passaram pela investigação sobre a superação de um pessimismo como resignação
e negação da vida, para um pessimismo reinterpretado pelo viés trágico que resultou
9 ALMEIDA, Rogério Miranda de. Nietzsche e o paradoxo. São Paulo: Loyola, 2005. p. 64.
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em uma filosofia afirmativa da vida e oposta ao otimismo teórico encontrado na
modernidade. O otimismo teórico da ciência é considerado por Nietzsche como
decadente e incapaz de justificar a vida em sua plenitude, um erro de percurso
histórico-filosófico que Nietzsche promete corrigir de forma inaudita em Ecce homo:
Lancemos um olhar um século adiante, suponhamos que meu
atentado contra dois milênios de antinatureza e violação do
homem tenha êxito. Aquele novo partido da vida, toma em
mãos a maior das tarefas, o cultivo superior da humanidade,
incluindo a destruição implacável de todos os degenerados e
parasitários, tornará novamente possível aquela vida em
demasia sobre a Terra, da qual a condição dionisíaca
novamente surgirá. Eu prometo uma era trágica: a arte
suprema do dizer Sim à vida, a tragédia, renascerá quando a
humanidade tiver atrás de si a consciência das mais duras
porém necessárias guerras, sem sofrer com isso...10
No terceiro capítulo, à luz do esclarecimento obtido na própria pesquisa, e
assumindo a proposição de Schopenhauer e Nietzsche de que a música constitui a
mais nobre manifestação entre as artes, fez-se desta perspectiva, o escopo para
apresentar o confronto entre a metafísica de artista e a sua derrocada, personificada
na morte da tragédia associada ao socratismo teórico. A morte da tragédia grega foi
examinada a partir da expulsão da música do palco trágico, retirando da cena
dramática o deus estrangeiro, e por conseqüência, o coro. Assim o envolvimento da
multidão que outrora participava do espetáculo de forma transfigurada, passou a se
portar como mero espectador e aprendiz, consciente e socratizado.
10 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad., notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Reimpr.: 2001. p. 64-65. Grifos presentes no original.
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Por fim, no último capítulo, apresentou-se a intuição heraclitiana como
instrumento de investigação filosófica e o próprio acesso à dimensão originária e
dionisíaca. O múltiplo e o devir são apresentados neste texto como característicos
da inocência da criança ou do jogo das pulsões, que caracteriza o Uno-primordial e
o qual Nietsche propõe como restaurador da intensidade e da autenticidade perante
a vida e a existência.
No decorrer de toda a pesquisa, percebeu-se que a tensão entre as
dimensões artísticas apolínea e dionisíaca, presentes no interior da trama da
tragédia grega, em constante oposição e reconciliação, tem paralelo com a alegoria
heraclitiana da criança construindo e destruindo castelos de areia, inocentemente,
tal como deve ser o acesso intuitivo à dimensão do Uno-primordial.
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