a desobediencia civil - henry david thoreau

90

Upload: jose-pires

Post on 08-Nov-2015

46 views

Category:

Documents


8 download

DESCRIPTION

Henry David Thoreau (1817-62) foi um homem de múltiplos interesses, mas era nas letras e na oratória que se manifestava sua verdadeira vocação: a de corajoso crítico do ideal americano de viver para o trabalho e para o consumo, o nascente American Way of Life. O alvo principal de suas análises era a formação da nação americana: calcado no sistema escravista e afeito às guerras, o país ia, aos poucos, aprofundando as bases políticas e sociais que, para Thoreau, eram contrárias justamente ao baluarte mais defendido: a liberdade individual. Formada por cinco textos, a edição traz, em sua abertura, aquele que dá nome ao livro: “A desobediência civil”, de 1849, responsável por inserir o pensamento político de Thoreau na históriamundial.

TRANSCRIPT

  • A desobedincia civil

    henry david thoreau nasceu em 1817, no estado norte-americano de Massachusetts. Graduou-se em Harvard aosvinte anos. Apreciava os clssicos gregos e latinos, a literatura inglesa do sculo xvii e as escrituras orientais. Suapostura retirada e solitria o impediu de engajar-se numa prosso: foi professor primrio, tutor, jardineiro,palestrante, fabricante de lpis e agrimensor. Essas tarefas eram desenvolvidas apenas como forma de subsistncia, jque sua principal atividade era a escrita. Iniciou um jornal em 1837 e o manteve at o m da vida. Em 22 anosacumulou 39 volumes manuscritos, a partir dos quais foi extrada sua principal obra, , na qual descreve suasexperincias em dois anos de recluso na oresta. Durante seu retiro, foi preso por negar-se a pagar impostos, episdioque culminou no ensaio Seu gosto pela liberdade o fez tomar partido na luta contra a escravido. Morreu em 1862, aos44 anos, vtima de tuberculose.

    jos geraldo couto nasceu em Ja, interior de So Paulo, em 1957. jornalista e crtico de cinema. Trabalhoudurante mais de vinte anos para a. tradutor do ingls e do espanhol. Do ingls traduziu, entre outros autores, HenryJames, Saul Bellow, Norman Mailer, Truman Capote, Michael Cunningham e Martin Scorsese. Do espanhol, AdolfoBioy Casares e Enrique Vila-Matas.

  • SumrioA desobedincia civilOnde vivi, e para quA escravido em MassachusettsCaminharVida sem princpios

  • A desobedincia civil1[1849]

    Aceito de bom grado a divisa O melhor governo o que menos governa,2 e gostariade v-la aplicada de modo mais rpido e sistemtico. Levada a cabo, ela resulta por mnisto, em que tambm acredito: O melhor governo o que absolutamente nogoverna, e quando os homens estiverem preparados para tanto, esse ser o tipo deregncia que tero. Na melhor das hipteses, o governo no mais que umaconvenincia; mas a maioria deles , em geral (e alguns o so s vezes), inconveniente.As objees levantadas contra um exrcito permanente e elas so muitas econvincentes, e merecem se impor podem tambm ser levantadas anal contra umgoverno permanente. O exrcito permanente somente um brao do governopermanente. O governo em si, que apenas o modo que o povo escolheu para executarsua vontade, est igualmente sujeito ao abuso e perverso antes que o povo possa agirpor meio dele. Prova disso a atual guerra mexicana, obra de relativamente poucosindivduos que usam o governo permanente como seu instrumento, pois, desde oprincpio, o povo no teria consentido semelhante iniciativa.3

    O que este governo americano seno uma tradio, ainda que recente, empenhadaem se transmitir intacta posteridade, mas a cada instante perdendo um pouco de suaintegridade? No tem a vitalidade e a fora de um nico homem vivo, pois um nicohomem pode dobr-lo sua vontade. uma espcie de revlver de brinquedo para oprprio povo.4 Mas nem por isso menos necessrio; pois o povo precisa dispor de umou outro maquinrio complicado, e ouvir seu estrondo, para satisfazer sua ideia degoverno. Os governos nos mostram, desta maneira, com que xito os homens podemser subjugados, inclusive por si mesmos, em proveito prprio. timo, devemos todosadmitir. No entanto, esse governo nunca levou a cabo empreendimento algum, a noser pela presteza com que deixa livre o caminho. No ele que mantm o pas livre.No ele que coloniza o Oeste. No ele que educa. O carter inerente ao povoamericano que fez tudo o que se conseguiu at agora, e teria feito ainda pouco mais,se o governo s vezes no atrapalhasse. Pois o governo um expediente mediante oqual os homens, de bom grado, deixariam uns aos outros em paz; e, como foi dito,quanto mais conveniente ele for, mais os governados sero deixados em paz. Ocomrcio e os negcios, se no fossem feitos de borracha da ndia, nunca conseguiriamsaltar os obstculos que os legisladores esto pondo o tempo todo em seu caminho. Sejulgssemos esses homens apenas pelos resultados de suas aes, e no por suas

  • intenes, eles mereceriam ser enquadrados e punidos junto com as pessoas malvolasque obstruem as estradas de ferro.

    Mas, para falar em termos prticos e me expressar como cidado, diferenadaqueles que se dizem antigovernistas, eu no peo a imediata abolio do governo,mas um que seja melhor agora mesmo. Que cada homem faa saber qual o tipo degoverno capaz de conquistar seu respeito, e isso j ser um passo na direo de alcan-lo.

    Anal, quando o poder est nas mos do povo, a razo prtica pela qual uma maioriatem permisso para governar (e assim o faz por um longo perodo) no o fato de essamaioria provavelmente estar certa, nem tampouco que isso possa parecer mais justo minoria, mas sim porque ela sicamente mais forte. Mas um governo no qual adeciso da maioria se impe em todas as questes no pode ser baseado na justia,mesmo no entendimento limitado que os homens tm desta. No poderia existir umgoverno em que no so as maiorias que decidem virtualmente tudo o que certo eerrado, e sim a conscincia? No qual as maiorias decidissem apenas as questes em quefosse aplicvel a regra da convenincia? Ser que o cidado deve, ainda que por ummomento e em grau mnimo, abrir mo de sua conscincia em prol do legislador?Nesse caso, por que cada homem dispe de uma conscincia? Penso que devemos serprimeiro homens, e s depois sditos. No desejvel cultivar tanto respeito pela leiquanto pelo que direito. A nica obrigao que tenho o direito de assumir a de fazerem qualquer tempo o que julgo ser correto. J se disse, com muita razo, que umacorporao no tem conscincia alguma; mas uma corporao de homensconscienciosos uma corporao com uma conscincia. A lei nunca tornou os homenssequer um pouquinho mais justos; e, por fora de seu respeito por ela, at mesmo osmais bem-intencionados so convertidos diariamente em agentes da injustia. Umresultado comum e natural do respeito indevido pela lei que se pode ver uma la desoldados, coronel, capito, cabo, recrutas, carregadores de explosivos e tudo o mais,marchando em ordem admirvel pelos caminhos mais tortuosos para a guerra, contrasua vontade, pior ainda, contra sua sensatez e sua conscincia, o que torna a marcharealmente muito dura e faz o corao palpitar. Eles no tm dvida de que estoenvolvidos numa atividade execrvel; so todos de inclinao pacfica. Ento, o que elesso? Homens, na acepo do termo? Ou casamatas e paiis ambulantes, a servio dealgum homem inescrupuloso no poder? Basta visitar o estaleiro da Marinha econtemplar um fuzileiro naval, assim um homem que um governo norte-americano capaz de produzir, ou transformar com sua magia negra uma mera sombra oureminiscncia de humanidade, um homem deixado vivo e em p, mas j, poderamosdizer, enterrado sob armas com acompanhamento fnebre, embora talvez seja o caso deque:

    Nenhum tambor se ouviu, nem nota fnebre,Enquanto para a vala seu corpo foi levado;Nenhum soldado disparou seu tiro de adeus

  • Sobre a cova onde nosso heri foi enterrado.5 Assim, a massa de homens serve ao Estado no na qualidade de homens, mas como

    mquinas, com seus corpos. So o exrcito permanente, as milcias, os carcereiros, ospoliciais, os membros de destacamentos6 etc. Na maioria dos casos, no h, emabsoluto, o livre exerccio do julgamento ou do senso moral; ao contrrio, eles serebaixam ao nvel da madeira, da terra e das pedras; e homens de madeira talvezpudessem ser manufaturados para servir aos mesmos propsitos. No suscitam maisrespeito que espantalhos ou bonecos de lama. Tm valor comparvel ao de cavalos ouces. No entanto, homens assim so geralmente estimados como bons cidados. Outros como a maioria dos legisladores, polticos, advogados, ministros e funcionriospblicos servem ao Estado sobretudo com a cabea; e, como raramente fazemqualquer distino moral, podem tanto servir ao Diabo, sem ter a inteno, como aDeus. Pouqussimos tais como os heris, patriotas, mrtires, reformadores emsentido amplo e homens servem ao Estado tambm com sua conscincia, e portantonecessariamente resistem a ele a maior parte do tempo; e costumam ser tratados por elecomo inimigos. Um homem sbio s ser til na condio de homem, e no serebaixar a ser barro e tapar um buraco para deter o vento, 7 mas deixar estatarefa, quando muito, para suas cinzas:

    Tenho origem nobre demais para me submeter a outro,Para ser subordinado no comando,Ou servial e instrumento tilA qualquer estado soberano mundo afora.8 Aquele que se entrega inteiramente a seus semelhantes visto por estes como intil e

    egosta; mas aquele que se entrega parcialmente considerado um benfeitor efilantropo.

    Qual o comportamento que convm a um homem com relao ao governo norte-americano atual? Respondo que ele no pode, sem se desonrar, associar-se a ele. Noposso, nem por um instante, reconhecer como meu governo essa organizao polticaque tambm o governo do escravo.

    Todos os homens reconhecem o direito de revoluo; isto , o direito de recusarobedincia ao governo, e de resistir a ele, quando sua tirania ou sua inecincia sograndes e intolerveis. Mas quase todos dizem que no esse o caso agora. No entanto,tal era o caso, julgam eles, na Revoluo de 75.9 Se algum me dissesse que aquele eraum mau governo porque taxava certos bens estrangeiros trazidos a seus portos, muitoprovvel que eu no me importasse, j que posso passar sem eles. Todas as mquinastm sua frico, e possivelmente isso tem um efeito sucientemente bom paracontrabalanar o ruim. De qualquer modo, um grande mal fazer alvoroo em tornodisso. Mas quando a frico passa a comandar a mquina, e a opresso e a ladroagemso organizadas, eu digo: No vamos mais manter essa mquina. Em outras palavras,

  • quando um sexto da populao do pas que se apresenta como refgio da liberdade composto de escravos, e uma nao inteira injustamente atacada, conquistada por umexrcito estrangeiro e submetido lei militar, penso que no cedo demais para oshomens honestos se rebelarem e fazerem a revoluo. O que torna ainda mais urgenteesse dever o fato de que o pas assim atacado no o nosso, pois nosso o exrcitoinvasor.

    Paley, uma notria autoridade em questes morais, em seu captulo sobre o Dever desubmisso ao governo civil, reduz toda a obrigao civil convenincia; e prosseguedizendo que

    s enquanto o interesse de toda a sociedade assim o exigir, isto , s enquanto no sepuder resistir ao governo estabelecido ou mud-lo sem inconvenincia pblica, vontade de Deus que o governo estabelecido seja obedecido. Admitido esse princpio,a justeza de cada caso particular de resistncia se reduz ao clculo, por um lado, daquantidade de perigo e calamidade que ele encerra, e, por outro, da probabilidade edo custo de remedi-la.10 Quanto a isso, diz ele, cada homem deve julgar por conta prpria. Mas Paley parece

    no ter jamais contemplado aqueles casos aos quais a regra da convenincia no seaplica, nos quais um povo, bem como um indivduo, precisa fazer justia, custe o quecustar. Se eu, injustamente, arranquei fora a tbua de salvao de um homem queestava se afogando, devo devolv-la mesmo que eu me afogue. Isso, de acordo comPaley, seria inconveniente. Mas aquele que quer salvar sua vida dessa maneira deveperd-la.11 Este povo deve parar de manter escravos, e de guerrear contra o Mxico,ainda que isso custe a ele sua existncia como povo.

    Em sua prtica, as naes concordam com Paley; mas ser que algum julga queMassachusetts faz exatamente o que certo na crise atual?

    Uma meretriz de classe, uma rameira com roupa de prataErgue a cauda do vestido, e arrasta a alma na lama.12 Falando em termos prticos, os adversrios de uma reforma em Massachusetts no

    so 100 mil polticos do Sul, mas 100 mil comerciantes e fazendeiros daqui, que estomais interessados no comrcio e na agricultura do que na humanidade, e no estopreparados para fazer justia aos escravos e ao Mxico, custe o que custar. No discutocom inimigos distantes, mas com aqueles que, perto da minha casa, obedecem ecooperam com os que esto longe, e que sem eles seriam inofensivos. Estamoshabituados a dizer que as massas so despreparadas; mas o aprimoramento lento,porque a minoria no essencialmente mais sbia ou melhor que a maioria. Maisimportante do que haver muitos que sejam bons como voc haver em algum lugar aexcelncia absoluta, pois isso far fermentar a massa como um todo.13 H milhares quese opem em tese escravido e guerra, mas que nada fazem efetivamente para prm a elas. H muitos que, considerando-se lhos de Washington e Franklin, cam

  • sentados de braos cruzados e dizem no saber o que fazer, e nada fazem; muitos queat mesmo subordinam a questo da liberdade questo do livre-comrcio, e que leemtranquilamente, depois do jantar, as cotaes do dia junto com as ltimas notciasvindas do Mxico, e possivelmente adormecem sobre ambas. Quanto vale um homemhonesto e patriota nos dias de hoje? Eles hesitam, lamentam e s vezes reivindicam;mas no fazem nada a srio e para valer. Esperaro, com boa vontade, que outroscurem o mal, para que eles no mais tenham que lastim-lo. Na melhor das hipteses,eles se limitaro a dar um voto fcil, um dbil apoio e um desejo de boa sorte aoscorretos, quando a ocasio se apresentar. H 999 arautos da virtude para cada homemvirtuoso. Porm mais fcil lidar com o real possuidor de uma coisa do que com seuguardio temporrio.

    Toda votao uma espcie de jogo, como damas ou gamo, com um leve matizmoral, uma brincadeira em que existem questes morais, o certo e o errado, eevidentemente acompanhada de apostas. O carter dos votantes no entra em jogo.Deposito meu voto, talvez, de acordo com o que julgo correto; mas no estouvitalmente preocupado com a vitria do certo. Estou disposto a deixar isso para amaioria. A obrigao do voto, portanto, nunca vai alm do que conveniente. Mesmovotar pelo que correto no o mesmo que fazer alguma coisa por ele. apenasexpressar debilmente aos outros o desejo de que o certo prevalea. Um homem sbiono deixar o que correto merc da sorte, nem desejar que ele prevalea medianteo poder da maioria. H pouca virtude na ao das massas. Quando a maiorianalmente votar pela abolio da escravido, isso se dar porque a escravido lhe indiferente, ou porque ter restado pouca escravido a ser abolida por seu voto. A essaaltura sero eles, os da maioria, os nicos escravos. S pode apressar a abolio o votodaquele que afirma sua prpria liberdade por meio do voto.

    Ouo dizer que ser realizada em Baltimore, ou alhures, uma conveno para aescolha de um candidato presidncia, com a participao predominante de editores epolticos prossionais; mas me pergunto: Para qualquer homem independente,inteligente e respeitvel, que importncia pode ter a deciso tomada pela conveno?

    No usufruiremos, de todo modo, do privilgio da sabedoria e da honestidade dessehomem? No podemos contar com alguns votos independentes? No existem neste pasmuitos indivduos que no participam de convenes? Mas no: descubro que o homemrespeitvel, ou assim chamado, abandonou prontamente sua posio e no espera maisnada de seu pas, quando o seu pas que tem mais motivos para nada mais esperardele. Ele mais que depressa adota um dos candidatos assim escolhidos como o nicodisponvel, provando desse modo que ele prprio est disponvel para todos ospropsitos do demagogo. Seu voto no tem mais valor do que o de qualquer forasteirosem princpios ou nativo mercenrio, que pode muito bem ter sido comprado. Oh, masum homem que de fato um homem, como diz meu vizinho, tem uma coluna dorsalque no se verga! Nossas estatsticas esto incorretas: gente demais foi computada.Quantos verdadeiros homens existem em cada quilmetro quadrado neste pas?Quando muito, um. Ser que a Amrica no oferece atrativos para que os homens aqui

  • se estabeleam? O homem norte-americano foi denhando at virar um Odd Fellow14 algum conhecido pela hipertroa de seu carter gregrio, por uma manifesta faltade intelecto e de animada autoconana; algum cuja principal preocupao, ao virpara este mundo, saber se os abrigos de pobres esto em boas condies; e que, antesmesmo de vestir a tnica viril,15 angaria donativos para o sustento de vivas e rfos;algum, em suma, que s ousa viver com a ajuda da companhia de Auxlio Mtuo, quelhe prometeu um enterro decente.

    No obrigao de um homem, evidentemente, dedicar-se erradicao de um malqualquer, nem mesmo do maior que exista; ele pode muito bem ter outraspreocupaes que o absorvam. Mas seu dever, pelo menos, manter as mos limpas e,mesmo sem pensar no assunto, recusar o apoio prtico ao que errado. Se eu mededico a outros planos e atividades, devo antes de mais nada garantir, no mnimo, quepara realiz-los no estarei pisando nos ombros de outro homem. Devo sair de cimadele para que tambm ele possa perseguir seus objetivos.

    Vejam como uma incoerncia das mais graves tolerada. Ouvi alguns de meusconterrneos dizerem: Queria ver se me convocassem para ajudar a reprimir umainsurreio dos escravos ou para marchar contra o Mxico: eu no iria de jeitonenhum. No entanto, cada um desses mesmos homens, seja diretamente, com suaconivncia, seja indiretamente, com seu dinheiro, propicia o envio de um substituto. Osoldado que se recusa a lutar numa guerra injusta aplaudido por aqueles que no serecusam a apoiar o governo injusto que faz a guerra; aplaudido por aqueles cujos atose cuja autoridade ele despreza; como se o Estado fosse penitente a ponto de contrataralgum para aoit-lo enquanto ele peca, mas no a ponto de deixar de pecar por uminstante sequer. Assim, em nome da Ordem e do Governo Civil, somos todos levados,em ltima instncia, a prestar homenagem e apoio a nossa prpria torpeza. Depois doenrubescimento inicial de vergonha pelo pecado vem a indiferena; e de imoral, opecado se torna, por assim dizer, amoral, e no totalmente desnecessrio vida queedificamos.

    O erro mais amplo e frequente requer a virtude mais desinteressada para se sustentar. o homem nobre o mais propenso a fazer as leves ressalvas a que geralmente estsujeita a virtude do patriotismo. Aqueles que, embora desaprovando o carter e asmedidas de um governo, empenham a ele sua obedincia e seu apoio so sem dvidaseus defensores mais conscienciosos, e por conta disso, com muita frequncia, os maissrios opositores das reformas. Alguns esto reivindicando ao estado que dissolva aUnio, desprezando as determinaes do presidente.16 Por que eles prprios nodissolvem a unio entre eles e o estado, recusando-se a pagar sua cota ao tesouronacional? Acaso eles no mantm uma relao com o estado semelhante quela que estemantm com a Unio? E as razes que impedem o estado de resistir Unio no so asmesmas que os impedem de resistir ao estado?

    Como pode um homem se satisfazer em ter uma opinio e se deleitar com ela? Quedeleite pode haver nisso, se sua opinio for a de que ele est sendo lesado? Se seuvizinho lhe subtrai por artimanhas um simples dlar, voc no car satisfeito apenas

  • em saber que foi ludibriado, ou em proclamar o fato, ou mesmo em reivindicar a eleque pague o que lhe devido; imediatamente voc tomar medidas efetivas para reavera quantia completa e assegurar-se de que nunca mais seja tapeado. A ao baseada emprincpios, a percepo e a prtica do que certo, isso muda as coisas e as relaes; algo necessariamente revolucionrio, e no condiz de forma integral com qualquercoisa preexistente. Uma ao assim no divide apenas estados e igrejas, ela dividefamlias; mais que isso, divide o indivduo, separando o que h de diablico nele do queh de divino.

    Leis injustas existem: devemos nos contentar em obedec-las? Ou nos empenhar emaperfeio-las, obedecendo-as at obtermos xito? Ou devemos transgredi-lasimediatamente? Em geral, sob um governo como o nosso, os homens julgam que devemesperar at que tenham convencido a maioria a alterar as leis. Pensam que, seresistissem, o remdio seria pior que os males. Mas culpa do prprio governo que oremdio seja de fato pior que os males. ele, o governo, que o torna pior. Por que eleno se mostra mais inclinado a se antecipar e a providenciar as reformas? Por que novaloriza suas minorias sensatas? Por que ele chora e resiste antes mesmo de ser ferido?Por que no encoraja seus cidados a estar alertas para apontar suas falhas, e assimmelhorar sua atuao para com eles? Por que ele sempre crucica Cristo, excomungaCoprnico e Lutero17 e declara Washington e Franklin rebeldes?

    Poder-se-ia pensar que a nica transgresso nunca cogitada pelo governo a dadeliberada negao prtica da sua autoridade; se assim no fosse, por que ele no teriadeterminado para ela uma penalidade denida, adequada e proporcional? Se umhomem sem propriedades se recusa uma nica vez a pagar nove xelins de tributo aoEstado, colocado na priso por um perodo no limitado por nenhuma lei conhecida,mas determinado unicamente pelo arbtrio daqueles que o puseram l; mas se eleroubar noventa vezes a mesma quantia do Estado, logo ter permisso para car livrede novo.

    Se a injustia faz parte da necessria frico da mquina de governo, deixe estar:talvez ela acabe por suavizar-se certamente a mquina se desgastar. Se a injustiativer uma mola prpria e exclusiva, ou uma polia, ou uma corda, ou uma manivela,talvez seja o caso de avaliar se o remdio no seria pior que o mal; mas se ela for dotipo que requer que voc seja o agente da injustia contra outra pessoa, ento, eu digo:Viole a lei. Deixe que sua vida seja uma contrafrico que pare a mquina. O que eutenho a fazer cuidar, de todo modo, para no participar das mazelas que condeno.

    Quanto a adotar os mtodos que o Estado propicia para remediar o mal, no sei nadasobre eles. Levam muito tempo, e a vida de um homem pode acabar antes de elesvingarem. Tenho outros afazeres aos quais me dedicar. No vim a este mundopredominantemente para fazer dele um bom lugar, mas para viver nele, seja bom ouruim. Um homem no tem obrigao de fazer tudo, mas alguma coisa; e o fato de nopoder fazer tudo no o obriga a fazer alguma coisa errada. No minha tarefareivindicar ao governador ou ao Legislativo, assim como no tarefa deles me fazerreivindicaes; e, se eles no ouvirem a minha reivindicao, o que devo fazer? Mas,

  • neste caso, o Estado no deixa sada: o mal est em sua prpria constituio. Isto podeparecer demasiado duro, obstinado e intransigente; mas para tratar com a maisextrema bondade e a mais extrema considerao os nicos espritos capazes de apreci-la e merec-la. Assim toda mudana para melhor, como o parto e a morte, queconvulsionam o corpo.

    No hesito em dizer que aqueles que se autodenominam abolicionistas deveriamretirar imediatamente seu apoio, pessoal e material, ao governo de Massachusetts, emvez de esperar at constituir uma apertada maioria para fazer o bem prevalecer pormeio dela. Penso que basta que tenham Deus ao seu lado, sem precisar esperar pelovoto que lhe d maioria. Alm do mais, qualquer homem mais direito que seus vizinhosconstitui em si uma maioria de um.

    Uma vez por ano, no mais, me avisto diretamente, cara a cara, com este governonorte-americano, ou com seu representante, o governo do estado, na pessoa de seucobrador de impostos. a nica ocasio em que um homem da minha situao temnecessidade de se deparar com este governo; e ento que ele, o governo, dizclaramente: Reconhea-me. E a maneira mais simples, mais efetiva e, na atualconjuntura, mais indispensvel de tratar com ele, de expressar-lhe nosso escassocontentamento e apreo, simplesmente neg-lo. Meu vizinho e concidado, ocobrador de impostos,18 o mesmo homem com quem tenho de lidar pois, anal decontas, com homens que eu discuto, no com papis e ele escolheu por vontadeprpria ser um agente do governo. De que modo ele saber discernir o que e o que fazcomo funcionrio do governo, ou como homem, enquanto no for obrigado a avaliar sedeve tratar a mim, seu vizinho, pelo qual tem respeito, como um vizinho e um homemde boa ndole, ou como um manaco perturbador da paz? Como saber se pode superaresse obstculo sua sociabilidade sem um pensamento mais impetuoso ou uma palavramais rude condizentes com sua atividade? De uma coisa estou certo: se mil homens, secem homens, se dez homens que pudessem ser assim chamados se apenas dezhomens honestos ah, se um nico homem honesto, neste estado de Massachusetts,deixasse de ter escravos, abandonando assim sua coparticipao, e por isso fosse presona cadeia local, isso seria a abolio da escravido na Amrica. Pois no importa quopequeno possa parecer o ponto de partida: o que bem-feito para sempre. Masgostamos mais de falar sobre o assunto: dizemos ser essa a nossa misso. As reformastm um grande nmero de jornais a seu servio, mas nem sequer um nico homem. Se,em vez de ser ameaado de priso na Carolina, meu estimado concidado, oembaixador do estado de Massachusetts,19 que dedica seus dias resoluo da questodos direitos humanos na Cmara do Conselho, fosse prisioneiro de Massachusetts, oestado que to ansioso em imputar o pecado da escravido ao estado irmo embora, hoje, s possa apontar um ato de inospitalidade como causa de desavena comele , a Legislatura no deixaria inteiramente de lado o assunto no prximo inverno.

    Em um governo que aprisiona qualquer um injustamente, o verdadeiro lugar para umhomem justo tambm a priso. O local apropriado hoje, o nico que Massachusettspropicia para seus espritos mais livres e menos desesperanados, so as prises, nas

  • quais sero enados e excludos do estado por ao deste, os mesmos homens que seretiraram a si mesmos por seus prprios princpios. ali que deveriam encontr-los oescravo fugitivo, o prisioneiro mexicano em liberdade condicional e o ndio queprotesta contra as injustias sofridas por sua raa; naquele terreno recluso, porm maislivre e honrado, onde o Estado coloca os que no esto com ele, mas contra ele anica casa num estado escravo na qual um homem livre pode viver honradamente. Sealgum julga que sua inuncia ali se perder, que sua voz no atingir mais os ouvidosdo Estado, e que no ser um inimigo efetivo dentro de suas muralhas, porque nosabe o quanto a verdade mais forte do que o erro, nem o quanto pode combater ainjustia com mais eloquncia e eccia quem experimentou um pouco dela em suaprpria pessoa. Expresse seu voto por inteiro, no por meio de uma simples folha depapel, mas por toda a sua inuncia. Uma minoria impotente enquanto se conforma maioria; no chega nem a ser uma minoria, ento; mas irresistvel quando intervmcom todo o seu peso. Se a alternativa for entre colocar todos os homens justos napriso ou desistir da guerra e da escravido, o Estado no hesitar em sua escolha. Semil homens deixassem de pagar seus impostos este ano, isso no seria uma atitudeviolenta e sangrenta; violento e sangrento seria pag-los, capacitando o Estado acometer violncia e derramar sangue inocente. Esta , com efeito, a denio de umarevoluo pacca, se tal coisa possvel. Se o coletor de impostos, ou qualquer outroservidor pblico, perguntar-me, como j fez uma vez, Mas ento o que devo fazer?,minha resposta ser: Se quer mesmo fazer alguma coisa, demita-se de seu cargo.Quando o sdito recusa sua submisso e o funcionrio se demite do cargo, a revoluose consuma. Mas suponhamos, at, que se chegue a derramar sangue. J no h umaespcie de derramamento de sangue quando a conscincia ferida? Por esse ferimentoescorrem a verdadeira hombridade e a imortalidade de um homem, e ele sangra at amorte definitiva. Vejo agora mesmo esse sangue correr.

    Reeti sobre o encarceramento do infrator, e no sobre a apreenso de seus bens embora ambos os atos sirvam ao mesmo propsito , porque os que se batem pelamais pura justia, e consequentemente so mais perigosos para um Estado corrupto,no costumam dedicar muito tempo a acumular propriedades. A esses o Estado prestacomparativamente poucos servios, e um pequeno imposto costuma ser consideradoexorbitante, sobretudo se eles so obrigados a pag-lo com dinheiro obtido comtrabalho braal. Se houvesse algum que vivesse inteiramente sem o uso do dinheiro, oprprio Estado hesitaria em exigir-lhe algum. Mas o homem rico sem querer fazeruma comparao invejosa est sempre vendido instituio que o torna rico.Falando em termos gerais, quanto mais dinheiro, menos virtude, pois o dinheiro seinterpe entre um homem e seus objetivos, e os alcana para ele, e certamente no hgrande mrito em alcan-los dessa maneira. Agindo assim, ele deixa de lado muitasquestes que, de outro modo, seria obrigado a responder; ao passo que a nica novaquesto que ele se coloca a difcil e suprua de saber como gastar o dinheiro. Assim,seu terreno moral tirado de sob seus ps. As oportunidades de viver diminuem namesma proporo em que se acumulam os chamados meios. Quando ca rico, o

  • melhor que um homem tem a fazer por sua cultura tentar levar a cabo os planos quecogitava quando era pobre. Cristo respondeu aos sditos de Herodes de acordo com asituao deles. Mostrai-me o dinheiro dos tributos, disse; e um dos homens tirou dobolso uma moeda. Se vocs usam dinheiro com a imagem de Csar gravada, e que setornou corrente e vlido, isto , se vocs so homens do Estado, e com alegria usufruemas vantagens do governo de Csar, ento restituam-lhe um pouco do que dele quandoele o exige: Dai pois a Csar o que de Csar, e a Deus o que de Deus, 20 disse,deixando-os sem saber mais do que antes sobre qual era qual, pois eles mesmos noqueriam saber.

    Quando converso com os mais livres dos meus concidados, percebo que, noimporta o que eles possam dizer sobre a magnitude e a seriedade da questo, e qualquerque seja seu apreo pela tranquilidade pblica, o fato que eles no podem abrir moda proteo do governo atual e temem as consequncias da desobedincia sobre suaspropriedades e suas famlias. De minha parte, no gosto de pensar que um dia venha adepender da proteo do Estado. Mas, se eu nego sua autoridade quando ele impe seustributos, ele logo tomar e devastar todas as minhas propriedades, e importunar amim e a meus lhos para sempre. Isso duro. Isso torna impossvel a um homem viverhonestamente, e ao mesmo tempo com conforto, no que diz respeito ao aspectoexterior. No valer a pena acumular bens; com certeza seriam tomados de novo. Oque se deve fazer arrendar ou tomar posse de uma terra qualquer e no cultivar senouma pequena lavoura, se alimentando logo de sua produo. Viver para a prpriasubsistncia e no depender seno de si prprio, sempre com uma muda de roupa mo e pronto para recomear, sem se prender a muitos negcios. Um homem pode ficarrico at mesmo na Turquia, se for, sob todos os aspectos, um bom sdito do governoturco. Confcio disse: Se um Estado governado pelos princpios da razo, pobreza edesgraa so objetos de vergonha; se um Estado no governado pelos princpios darazo, as riquezas e honrarias so objetos de vergonha.21 No: at eu precisar que aproteo de Massachusetts me seja proporcionada em algum distante porto do Sul,onde minha liberdade esteja em perigo, ou at que eu me dedique exclusivamente aconstruir um patrimnio na minha terra por meio de um empreendimento pacco,estou em condies de recusar minha lealdade a Massachusetts, e o direito deste estadosobre minha propriedade e minha vida. Custa-me menos, em todos os sentidos, sofreras penas decorrentes da desobedincia ao Estado do que me custaria obedec-lo. Nestecaso, eu me sentiria diminudo em meu valor.

    H alguns anos, o Estado me procurou em nome da Igreja, e me intimou a pagar umacerta quantia para o sustento de um sacerdote a cuja pregao meu pai comparecia,mas qual eu mesmo nunca assisti. Pague, eles me disseram, ou ser trancaado nacadeia. Recusei-me a pagar. Mas, infelizmente, outro homem achou conveniente pagarpor mim. Eu no via por que o mestre-escola deveria pagar tributo para sustentar osacerdote, e no o contrrio; pois eu no era o mestre-escola do estado, mas memantinha por meio de subscrio voluntria. Eu no via por que a escola no poderiaapresentar sua conta de impostos e fazer com que o estado atendesse s suas demandas,

  • assim como a Igreja. No entanto, a pedido dos conselheiros municipais, concordei emprestar a seguinte declarao por escrito: Saibam todos, pela presente, que eu, HenryThoreau, no desejo ser visto como membro de nenhuma sociedade constituda qualno tenha me associado. Entreguei essa declarao ao escrivo municipal, que amantm com ele. O estado, sabendo deste modo que eu no desejava ser visto comomembro daquela igreja, nunca voltou a me fazer uma exigncia parecida; mas declarouque precisava se manter el a seus pressupostos originais. Se eu tivesse como nome-las, teria ento me desligado minuciosamente de todas as sociedades s quais nunca meassociara; mas eu no sabia onde encontrar uma lista completa delas.

    No pago h seis anos o imposto individual, pr-requisito para votar. Por causa disso,certa vez fui colocado na priso, onde passei uma noite.22 E, enquanto contemplava asparedes de rocha slida, com dois ou trs ps de espessura, a porta de madeira e ferrode um p de espessura e a grade de ferro que ltrava a luz, no pude deixar de meespantar com a insensatez daquela instituio que me tratava como mero amontoado decarne, sangue e ossos a ser trancaado. Fiquei pensando que ela decerto conclura porm que aquele era o melhor uso que poderia me dar, e que jamais pensara em se valerdos meus servios de alguma maneira. Percebi que, se havia uma parede de pedra entremim e meus concidados, havia um muro ainda mais difcil de transpor ou atravessarpara que eles fossem to livres quanto eu. Nem por um momento me senti connado, eas paredes me pareciam um grande desperdcio de pedras e argamassa. Sentia-me comose somente eu, entre meus concidados, tivesse pago meu imposto. Eles claramente nosabiam como me tratar, mas se comportavam como pessoas de pouca educao. Emcada ameaa e em cada cumprimento havia um erro grosseiro, pois eles pensavam quemeu principal desejo era estar do outro lado daquela parede de pedra. Eu no podiadeixar de sorrir ao constatar o modo laborioso como trancavam a porta s minhasreexes, que no entanto os seguiam sem qualquer obstculo ou diculdade, sendo queeram elas tudo o que havia de perigoso. Como no podiam me alcanar, eles tinhamresolvido punir meu corpo, como meninos que, por no ter como atingir algum aquem odeiam, maltratam-lhe o co. Percebi que o Estado era tolo, medroso como umamulher solitria com seus talheres de prata, e que no sabia distinguir seus amigos deseus inimigos, e perdi todo o resto de respeito que ainda tinha por ele, passando asentir somente pena.

    Desse modo, o Estado nunca confronta intencionalmente a conscincia, intelectual oumoral, de um homem, mas apenas seu corpo, seus sentidos. No dispe de intelignciaou honestidade superiores, mas s de fora fsica maior. No nasci para ser coagido.Respirarei minha prpria maneira. Vamos ver quem mais forte. Que fora tem umamultido? S podem me coagir aqueles que obedecem a uma lei mais elevada que aminha.23 Eles me obrigam a ser como eles. Nunca ouvi falar de homens que tenhamsido obrigados pelas massas a viver desta ou daquela maneira. Que espcie de vida seriaessa? Quando me deparo com um governo que me diz A bolsa ou a vida, por que eudeveria me apressar em lhe dar meu dinheiro? Ele pode estar atravessando um grandeaperto, e no saber como agir: nada posso fazer para ajud-lo. Ele deve ajudar a si

  • prprio; fazer como eu. No vale a pena se lamuriar a respeito. No sou responsvelpelo bom funcionamento da mquina da sociedade. No sou o lho do maquinista.Observo que, quando uma bolota de carvalho e uma castanha caem lado a lado, umadelas no ca inerte para dar espao outra, mas ambas obedecem a suas prprias leis,brotando, crescendo e orescendo o melhor que podem, at que uma, talvez, eclipse edestrua a outra. Se uma planta no pode viver de acordo com sua natureza, ela morre.O mesmo ocorre com um homem.

    A noite na priso foi bastante inusitada e interessante. Quando entrei, os prisioneiros,em mangas de camisa, conversavam e desfrutavam o ar da noite perto da porta. Maso carcereiro disse: Vamos, rapazes, est na hora de trancar; e ento eles sedispersaram, e ouvi o som de seus passos retornando s celas vazias. Meucompanheiro de cela me foi apresentado pelo carcereiro como um camarada deprimeira e um homem esperto. Quando a porta foi trancada, ele me mostrou ondependurar o chapu e contou como lidava com as coisas por ali. As celas eram caiadasuma vez por ms, e pelo menos aquele em que estvamos era o aposento mais branco,de mobilirio mais simples e, provavelmente, o mais limpo da cidade. Elenaturalmente quis saber de onde eu vinha, e o que me trouxera at ali. E, depois delhe contar, perguntei-lhe igualmente como ele fora parar ali, presumindo que fosseum homem honesto, evidentemente; e, pelo modo como anda o mundo, acho que defato era. Ora, disse ele, eles me acusam de incendiar um celeiro, mas nunca zisso. At onde pude perceber, ele provavelmente tinha ido dormir num celeiroquando estava bbado, e fumara seu cachimbo ali, e assim o celeiro pegara fogo.Tinha a reputao de ser um homem inteligente, estava ali havia trs meses esperade seu julgamento, e teria de esperar outro tanto. Mas estava plenamente manso esatisfeito, j que tinha pouso e comida de graa, e julgava estar sendo bem tratado.

    Ele ocupava uma janela e eu a outra. Percebi que, se algum cava muito tempo alitrancado, sua principal ocupao era olhar pela janela. Em pouco tempo eu havia lidotodos os folhetos deixados ali, e examinado por onde antigos presos haviam fugido eonde uma grade havia sido serrada, e ouvido a histria de vrios ocupantes daquelacela. Descobri que mesmo ali havia histrias e rumores que nunca circulavam forados muros da priso. Provavelmente aquela a nica residncia na cidade em queversos so compostos e impressos em seguida em forma de circular, mas jamaispublicados. Mostraram-me uma lista bem longa de versos compostos por algunsjovens detidos numa tentativa de fuga, e que se vingavam cantando-os.

    Extra tudo o que pude do meu companheiro de cela, por receio de no voltar jamaisa v-lo; mas por m ele me mostrou qual era minha cama e me deixou a tarefa deapagar a lamparina.

    Passar uma noite ali foi como viajar por um pas distante, que eu nunca houvessecogitado visitar. Pareceu-me nunca ter ouvido antes o relgio da cidade dar as horas,nem os rudos noturnos do povoado, pois dormimos com as janelas abertas,gradeadas por fora. Foi como enxergar minha aldeia natal luz da Idade Mdia, e

  • nosso Concord transformado num auente do Reno, 24 e vises de cavaleiros e castelosdeslaram diante dos meus olhos. Eram as vozes dos antigos moradores dos burgosque eu ouvia nas ruas. Fui um involuntrio espectador e ouvinte de tudo o que erafeito e dito na cozinha da estalagem adjacente uma experincia completamentenova e extraordinria para mim. Era uma viso mais detida de minha cidade natal. Euestava bem no fundo dela. Nunca antes enxergara suas instituies. Aquela era umade suas instituies peculiares, pois a cidade era sede do condado.25 Comecei acompreender o que interessava a seus habitantes.

    Pela manh, nosso desjejum foi enado cela adentro por um buraco na porta, empequenas vasilhas retangulares de lata, feitas sob medida para a fresta, que continhammeio litro de chocolate, po de centeio e uma colher de ferro. Quando pediram asvasilhas de volta, fui ingnuo o suciente para devolver todo o po que no haviacomido, mas meu companheiro o apanhou e disse que eu deveria guard-lo para oalmoo ou o jantar. Logo depois, deixaram-no sair para trabalhar num campo de fenonas vizinhanas, para onde ele ia todos os dias, e no voltava antes do meio-dia.Ento ele se despediu de mim, dizendo duvidar que ainda voltaria a me ver.

    Quando sa da priso pois algum interveio e pagou o imposto , no percebigrandes mudanas nas coisas cotidianas, tais como as que observa algum que entraali jovem e sai j velho, grisalho e cambaleante. No entanto, apresentou-se diante dosmeus olhos uma mudana no cenrio a cidade, o estado e o pas , uma mudanamaior do que a que poderia ter produzido aquela passagem de tempo to exgua. Vicom nitidez ainda maior o estado em que vivia. Vi at que ponto poderia conar,como concidados e amigos, nas pessoas entre as quais eu vivia. Constatei que suaamizade era s para os bons momentos; que eles no se dedicavam muito a praticar obem; que eram uma raa to distinta da minha, por seus preconceitos e supersties,quanto so os chineses e os malaios; que, em seus sacrifcios pela humanidade, noarriscavam coisa alguma, nem mesmo suas propriedades; que, anal de contas, elesno eram nada nobres, pois tratavam o ladro da mesma forma que este os tratara, eesperavam salvar suas almas ao cumprir certos ritos exteriores e proferir algumasoraes, e ao trilhar de quando em quando um determinado caminho reto, emboraintil. Este talvez seja um julgamento demasiado severo de meus concidados, poisacredito que muitos deles no estejam cientes de que tm uma instituio como ocrcere em seu povoado.

    Antigamente, quando um devedor pobre saa da priso, era costume em nossa aldeiaque seus conhecidos o cumprimentassem olhando atravs dos dedos, cruzados demaneira a representar as grades de uma cela, e dissessem Como vai?. Meusconcidados no me saudavam dessa maneira, mas olhavam primeiro para mim,depois uns para os outros, como se eu houvesse retornado de uma longa viagem. Fuipreso quando ia ao sapateiro buscar um sapato que estava no conserto. Quando fuisolto, na manh seguinte, resolvi completar minha pequena tarefa e, tendo caladomeu sapato consertado, fui me juntar a um grupo empenhado em colher mirtilos eque esperava impaciente que eu lhes servisse de guia. Em meia hora pois o cavalo

  • foi arreado prontamente eu estava no centro de um campo de mirtilos, em uma dascolinas mais altas, a quatro quilmetros de distncia, e dali o Estado no podia servisto em parte alguma.

    Essa toda a histria das Minhas prises.26 Nunca deixei de pagar o imposto das estradas, porque tenho tanto desejo de ser um

    bom concidado quanto de ser um mau sdito; e no que diz respeito sustentao dasescolas, estou fazendo minha parte pela educao de meus compatriotas. No pornenhum item particular da relao de impostos que me recuso a pag-los. Eusimplesmente desejo recusar a sujeio ao Estado, afastar-me dele e car fora de seualcance. No me interessaria rastrear o percurso do meu dlar, mesmo que pudesse,para ver se ele compra um homem ou um mosquete para matar um o dlar inocente , mas me preocupo em rastrear os efeitos de minha sujeio. Na verdade,declaro silenciosamente guerra ao Estado, minha maneira, embora eu ainda sigafazendo uso dele e obtendo as vantagens que ele pode me dar, como comum nessescasos.

    Se outros, por solidariedade ao Estado, pagam o imposto que exigido de mim, nofazem mais do que j zeram em seus prprios casos, ou melhor, encorajam a injustianum grau maior do que o requerido pelo Estado. Se eles pagam o imposto por conta deum interesse equivocado pelo indivduo tributado, para salvar seu patrimnio ou evitarque ele v para a cadeia, isso ocorre porque eles no avaliaram devidamente at queponto deixam que seus sentimentos particulares interfiram no bem pblico.

    Esta , portanto, minha posio no momento. Mas no se pode car demasiado emguarda num caso assim, sob pena de que sua ao seja rotulada de teimosia, ou deexcessiva preocupao com as opinies alheias. Que cada um trate de fazer apenas oque lhe cabe, e no tempo certo.

    Penso que s vezes, anal, essas pessoas tm boas intenes, s que so ignorantes.Agiriam melhor se soubessem como faz-lo: por que dar a meus semelhantes o trabalhode me tratar de um modo que foge sua inclinao? Mas, pensando melhor, isso no razo para que eu devesse fazer como eles fazem, ou permitir que outros sofram umtormento muito maior de outra espcie. E digo ainda algumas vezes a mim mesmo:quando milhes de homens, sem ardor, sem malevolncia, sem qualquer tipo deressentimento pessoal, exigem de voc apenas alguns xelins, sem a possibilidade poisassim a constituio deles de retirar ou alterar sua demanda atual, e voc, por suavez, no tem a possibilidade de apelar a outros milhes, por que se expor a essaesmagadora fora bruta? Voc no resiste com a mesma obstinao ao frio e fome,aos ventos e mars, mas se submete pacicamente a mil injunes semelhantes. Vocno mete a cabea na fogueira. Mas, na mesma medida em que no considero estafora inteiramente bruta, mas sim parcialmente humana, e mantenho relaes comesses milhes de homens e com outros tantos milhes, e no simplesmente com coisasbrutas ou inanimadas, vejo que lhes possvel apelar, primeiro e de imediato, ao seuCriador e, em segundo lugar, a eles mesmos. Mas, se eu coloco deliberadamente minha

  • cabea no fogo, no h apelo possvel ao fogo ou ao Criador do fogo, e s posso culpara mim mesmo. Se eu pudesse me convencer de que tenho algum direito a estar satisfeitocom os homens tais como so, e a trat-los de modo correspondente, e no de acordocom as minhas exigncias e expectativas de como eles e eu, em alguns aspectos,deveramos ser, ento, como um bom muulmano 27 e fatalista, eu teria de meempenhar para car satisfeito com as coisas tais como elas so, e dizer que assim avontade de Deus. E, acima de tudo, h uma diferena entre resistir a essa fora e aoutra puramente bruta ou natural, que a que posso resistir com alguma eccia, masno posso ter a pretenso de, a exemplo de Orfeu,28 mudar a natureza das rochas,rvores e animais.

    No desejo brigar com nenhum homem ou nao. No desejo me perder em mincias,fazer distines sutis ou me colocar acima de meus semelhantes. Ao contrrio, possodizer que at procuro uma desculpa para acatar as leis do pas. Estou mesmo muitodisposto a acat-las. De fato, tenho razes para desconar de mim mesmo quanto aeste tpico; e a cada ano, quando o coletor de impostos aparece, eu me vejo resolvido apassar em revista os atos e posies dos governos geral e estadual, bem como o espritodo povo, a fim de descobrir um pretexto para a obedincia.

    Devemos ter afeto por nosso pas como temos por

    [nossos pais;E se em algum momento deixarmos de honr-loCom o nosso amor ou com nossa dedicao,Devemos respeitar as aparncias e ensinar almaAs coisas da conscincia e da religio,E no o desejo de poder ou benefcio.29 Acredito que o Estado logo ser capaz de me tirar das mos todo trabalho desse tipo,

    e ento no serei mais patriota que o restante de meus patrcios. Contemplada de umponto de vista menos elevado, a Constituio, com todas as suas falhas, muito boa; alei e os tribunais so muito respeitveis; at mesmo este estado e este governoamericano so, em vrios aspectos, bastante admirveis e extraordinrios, e devemosser gratos a eles, como muitos j disseram. Mas, de um ponto de vista um poucosuperior, so como os descrevi; e vistos de mais acima ainda, do alto de tudo, quempoderia dizer o que so essas instituies, ou o quanto vale a pena examin-las e refletirsobre elas?

    No entanto, o governo no me preocupa muito, e dedicarei a ele a menor quantidadepossvel de pensamentos. No so muitos os momentos da vida nos quais vivo sob umgoverno, mesmo neste mundo tal como ele . Se um homem tem pensamento, fantasia eimaginao livres, de tal modo que o que no jamais lhe parea ser por muito tempo,governantes insensatos no podem interromp-lo definitivamente.

    Sei que a maioria dos homens pensa de modo diferente do meu, mas aqueles cujasvidas so, por ofcio, dedicadas ao estudo de semelhantes assuntos satisfazem-me to

  • pouco quanto os demais. Estadistas e legisladores, estando to completamenteentranhados na instituio, nunca conseguem observ-la de modo distinto e franco.Falam da sociedade em movimento, mas no tm nenhum lugar de repouso fora dela.Podem ser homens de certo discernimento e experincia, e sem dvida inventaramsistemas engenhosos e mesmo teis, pelos quais lhes somos sinceramente gratos; mastoda a sua perspiccia e sua utilidade situam-se dentro de limites no muito amplos.Tm o hbito de esquecer que o mundo no governado por diretrizes e convenincias.Webster30 nunca chega aos bastidores do governo, e portanto no pode falar comautoridade a seu respeito. Suas palavras so sinnimo de sabedoria para os legisladoresque no cogitam fazer nenhuma reforma essencial no governo vigente. Mas, para ospensadores, e para aqueles que legislam para todos os tempos, ele nem chega avislumbrar o assunto. Sei de alguns cujas especulaes serenas e sbias sobre o temalogo revelariam os limites do alcance e da receptividade da mente dele. No entanto,comparadas com a atuao reles da maioria dos reformistas, e com a ainda mais relessabedoria e eloquncia dos polticos em geral, as palavras de Webster so quase asnicas sensveis e valiosas, e damos graas aos cus por sua existncia.Comparativamente, ele sempre vigoroso, original e, acima de tudo, prtico. Aindaassim, sua virtude no a da sabedoria, mas a da prudncia. A verdade de umadvogado no a Verdade, mas a coerncia, ou uma convenincia coerente. A Verdadeest sempre em harmonia consigo mesma, e no est preocupada primordialmente emrevelar a justia que possa porventura ser compatvel com o mal. Webster bem mereceser chamado, como foi, de Defensor da Constituio. De fato, no h golpes que eledesra que no sejam de defesa. Ele no um lder, mas sim um seguidor. Seus lderesso os homens de 87.31 Nunca empreendi iniciativa alguma, diz ele, e nunca mepropus a isso; nunca apoiei iniciativa alguma, nem pretendo, no sentido de perturbar oacordo original pelo qual os vrios estados constituram a Unio. No entanto,pensando na chancela que a Constituio concede escravido, ele diz: Por fazer partedo pacto original, que continue. No obstante sua notvel argcia e habilidade, ele incapaz de separar um fato de seu contexto meramente poltico e de contempl-lo demodo absoluto, tal como se apresenta ao intelecto por exemplo, o que cabe a umhomem fazer, na Amrica atual, no tocante escravido. Porm, se aventura a fazer(ou levado a isso) armaes desesperadas como as que se seguem, embora admitindoestar falando em termos absolutos, e como homem particular; que novo e singularcdigo de deveres sociais pode ser inferido disso? O modo como, diz ele, osgovernos dos estados onde existe a escravido devem regulament-la de seu prprioarbtrio, levando em considerao sua responsabilidade perante seus eleitores, peranteas leis gerais da propriedade, humanidade e justia, e perante Deus. Associaesformadas alhures, nascidas de um sentimento humanitrio, ou de outra causa qualquer,nada tm a ver com isso. Elas nunca receberam qualquer encorajamento de minhaparte, e nunca recebero.a

    Aqueles que no conhecem fontes mais puras da verdade, que no foram mais longecorrenteza acima, apegam-se, prudentemente, Bblia e Constituio, e delas bebem

  • com reverncia e humildade. Mas aqueles que avistam de onde ela vem para desaguarneste lago ou naquela lagoa, aprumam o corpo mais uma vez e continuam suaperegrinao at a nascente.

    Nenhum homem dotado de gnio para legislar apareceu at hoje na Amrica. Eles soraros na histria do mundo. H oradores, polticos e homens eloquentes aos milhares,no entanto ainda no tomou a palavra o orador capaz de esclarecer as questes maiscontroversas do momento. Amamos a eloquncia pela eloquncia, e no por algumaverdade que ela possa expressar, ou algum herosmo que possa inspirar. Nossoslegisladores ainda no aprenderam o valor comparativo que tm, para uma nao, olivre-mercado e a liberdade, a unio e a retido. Eles no tm gnio ou talento sequerpara questes relativamente modestas de tributao e nana, comrcio, manufatura eagricultura. Se contssemos apenas com a verborrgica esperteza dos legisladores doCongresso para nos guiar, sem que ela fosse corrigida pela devida experincia e pelasqueixas vlidas do povo, a Amrica deixaria de ocupar sua posio entre as naes. H1800 anos, embora talvez eu no tenha o direito de diz-lo, foi escrito o NovoTestamento; no entanto, onde est o legislador com suciente sabedoria e talentoprtico para se valer da luz que essas escrituras lanam sobre a cincia da legislao?

    A autoridade do governo, mesmo aquela a que estou disposto a me submeter poisobedecerei satisfeito queles que sabem mais e fazem melhor do que eu, e em muitoscasos mesmo queles que nem sabem tanto e nem fazem to bem , ainda umaautoridade impura: para ser rigorosamente justa, ela deve ter a aprovao e oconsentimento dos governados. Ele no pode ter sobre minha pessoa e meu patrimnioseno o direito que eu lhe concedo. O progresso de uma monarquia absoluta para umamonarquia limitada, de uma monarquia limitada para uma democracia, um progressoem direo a um verdadeiro respeito pelo indivduo. Mesmo o lsofo chins era sbioo bastante para ver no indivduo a base do Imprio.32 Ser a democracia, tal como aconhecemos, o ltimo aperfeioamento possvel em matria de governo? No serpossvel dar um passo adiante em direo ao reconhecimento e organizao dosdireitos do homem? Jamais um Estado ser verdadeiramente livre e esclarecido se noreconhecer o indivduo como um poder mais elevado e independente, do qual derivatodo o seu prprio poder e autoridade, e no o tratar de modo apropriado. Agrada-meimaginar um Estado que enm possa se permitir ser justo com todos os homens, etratar o indivduo respeitosamente como semelhante; que nem mesmo considere umaameaa sua prpria tranquilidade o fato de alguns indivduos se apartarem dele,deixando de imiscuir-se nele ou de ser por ele abarcados, desde que cumpram todos osseus deveres de cidados e seres humanos. Um Estado que gerasse esse tipo de fruto, e odeixasse cair to logo amadurecesse, prepararia o caminho para um Estado ainda maisperfeito e glorioso, que tambm j imaginei, mas ainda no avistei em nenhuma parte.

    Notas dos editores

    1 Este ensaio foi publicado pela primeira vez nos Aesthetic Papers (Boston, 1849) de Elizabeth Peabody, sob o ttulo

  • Resistance to Civil Government [Resistncia ao Governo Civil]. A segunda edio apareceu quatro anos depoisda morte de Thoreau em A Yankee in Canada, with Anti-S lavery and Reform Papers [Um ianque no Canad, comescritos reformistas e antiescravido] (Boston, 1866), com Civil Desobedience como ttulo. As opinies sedividem quanto ao ttulo pretendido realmente por Thoreau. Para uma discusso detalhada das questes ligadas escolha do texto de 1849 ou de 1866, ver Thomas Woodson, The Title and Text of Throeaus CivilDesobedience, Bulletin of Research in the Humanities, 81 (1978), pp. 103-12; e Wendell Glick, Scholarly Editingand Dealing with Uncertainties: Thoreaus Resistance to Civil Government , Analytical & EnumerativeBibliography, 2 (1978), pp. 103-15.

    2 Uma verso bem parecida dessa divisa aparece como cabealho da United States Magazine and Democratic Reviewe no ensaio de Emerson, Poltica.

    3 Os Estados Unidos e o Mxico estiveram em guerra entre 1846 e 1848. Antes da publicao deste ensaio, Thoreau oapresentou como conferncia em 26 de janeiro de 1848, cerca de uma semana antes do m da guerra. Uma dasquestes importantes vinculadas ao conflito era a extenso dos territrios que mantinham escravos.

    4 Na edio de 1849 de Aesthetic Papers, a palavra povo seguida por um ponto e vrgula e pelo perodo e, se umdia os indivduos o usarem uns contra os outros como arma de verdade, certamente ele se espatifar.

    5 Em traduo livre. De Burial of Sir John Moore at Corunna [Enterro de Sir John Moore em Corunna], de CharlesWolfe (1791-1823). Eis a estrofe original: Not a drum was heard, not a funeral note ,/ As his corse to the rampartwe hurried;/ Not a soldier discharged his farewell shot/ Oer the grave where our hero we buried.

    6 Membros de destacamentos: no original em ingls, posse comitatus, pessoas convocadas para preservar a paz,grupo armado de um xerife de condado.

    7 Em traduo livre. Shakespeare, Hamlet, v, ii, 236-37.8 Em traduo livre. Shakespeare, King John, v, ii, 78-82.9 A Batalha de Lexington e Concord, que deu incio Revoluo Americana, foi travada em 19 de abril de 1775.10 William Paley (1743-1805), filsofo ingls; a citao de The Principles of Moral and Political Philosophy.11 Ver Mateus, 10:39.12 Em traduo livre. Cyril Tourneur (1575?-1626), The Revengers Tragedy, iv, iv, 71-2.13 Ver 1 Corntios, 5:6.14 The Independent Order of the Odd Fellows [Ordem Independente dos Camaradas Singulares] era uma organizao

    fraterna secreta.15 Vestimenta usada pelos meninos romanos a partir dos catorze anos.16 Abolicionistas radicais como William Lloyd Garrison pleiteavam que no houvesse unio alguma com

    proprietrios de escravos.17 Nicolau Coprnico (1473-1543), astrnomo polons que introduziu vises revolucionrias do sistema solar;

    Martinho Lutero (1483-1546), telogo alemo e lder da Reforma Protestante.18 Sam Staples, que ocasionalmente ajudou Thoreau com seu levantamento de dados.19 Samuel Hoar (1778-1856), advogado e congressista de Concord, enviado pelo estado de Massachusetts a

    Charleston, Carolina do Sul, para protestar contra a deteno de marinheiros negros de Massachusetts; oLegislativo da Carolina do Sul obrigou-o a deixar o estado.

    20 Ver Mateus 22:15-22.21 Ver Analectos, viii, xiii.22 Thoreau descreve brevemente esse episdio no pargrafo final de A aldeia, captulo de Walden.23 A lei mais elevada era espiritual a conscincia do sujeito e no o direito civil.24 Rio da Europa Central.25 Concord era a sede administrativa do condado de Middlesex.26 Referncia irnica a Le mie prigioni (1832), do poeta italiano Silvio Pellico (1788-1854); essas memrias do crcere

    foram populares nos anos 1840.27 Um maometano.28 Na mitologia grega, Orfeu era o lho da musa Calope; a msica de sua lira tinha poderes mgicos sobre o mundo

    natural.29 De George Peele, The Battle of Alcazar (1594). Esses versos no apareceram na verso de 1849 do ensaio nos

    Aesthetic Papers ; apareceram pela primeira vez na verso de 1866, em A Yankee in Canada, with Anti-Slaveryand Reform Papers.

    30 Daniel Webster (1782-1852), um destacado senador de Massachusetts.31 A Conveno Constitucional foi realizada na Filadlfia em 1787.

  • 32 Esta frase no aparece na verso dos Aesthetic Papers.

    a- Esses excertos foram inseridos depois que a palestra foi lida. (n. a.)

  • Onde vivi, e para qu[Segundo captulo de Walden, 1854]

    A certa altura da vida nos habituamos a considerar cada lugar como a possvellocalizao de uma casa. Por conta disso, vasculhei por todos os lados, num raio de120 quilmetros, a regio onde moro. Na minha imaginao, comprei todas asfazendas em sequncia, pois todas estavam venda, e eu sabia o preo de cada uma.Caminhei pelas terras de cada proprietrio, provei suas mas silvestres, converseisobre agricultura, comprei sua fazenda pelo preo estabelecido, por qualquer preo,hipotecando-a mentalmente; cheguei a elevar o seu preo quei com tudo, menos aescritura ; a palavra do dono valeu pela escritura, pois gosto demais de conversar cultivei as terras, e at certo ponto cultivei a ele tambm, acredito, e retirei-me depoisde ter desfrutado o bastante da propriedade, deixando-a a seu encargo. Essa experinciame credenciou a ser visto como uma espcie de corretor imobilirio por meus amigos.Onde quer que eu me sentasse, era ali que poderia viver, e a paisagem, por isso mesmo,irradiava a partir de mim. O que uma casa seno uma sedes, um assento? melhorainda se for um assento no campo. Descobri muitos locais para uma casa sem grandespossibilidades de aproveitamento a curto prazo, alguns dos quais talvez consideradosdistantes demais do vilarejo, mas a meus olhos o vilarejo que era distante demaisdeles. Bem, ali eu poderia viver, dizia a mim mesmo; e ali vivia de fato, por uma hora,todo um vero e um inverno, imaginava como poderia deixar os anos escoarem,atravessar o inverno, ver a primavera chegar. Os futuros habitantes desta regio, ondequer que instalem suas casas, podem estar certos de que tiveram um precursor. Umatarde era suciente para converter a terra em pomar, bosque e pasto, e decidir quebelos carvalhos ou pinheiros cariam diante da porta, e de que ngulo cada rvoreressequida seria vista melhor, e ento eu deixava tudo do jeito que estava, sem cultivartalvez, pois a riqueza do homem proporcional quantidade de coisas de que podeabrir mo.

    Minha imaginao me levou to longe que cheguei a ver vrias fazendas seremrecusadas a mim a recusa era tudo o que eu queria , mas nunca arquei com o nusda posse verdadeira. O mais perto que cheguei disso foi quando comprei o stio deHollowell, e comecei a selecionar minhas sementes e juntei material para fazer umcarrinho de mo que as transportasse de um lado para outro. Mas antes que oproprietrio me passasse a escritura, sua esposa todo homem tem uma esposa assim mudou de ideia e quis manter a propriedade, e ento ele me ofereceu dez dlares

  • para desistir do negcio. Bem, para falar a verdade, eu no tinha mais que dez centavosneste mundo, e ultrapassava meu domnio da aritmtica dizer se eu era aquele homemque tinha dez centavos, ou o que tinha uma fazenda, ou dez dlares, ou tudo isso junto.No entanto, deixei que ele casse com os dez dlares e a fazenda tambm, pois eu jhavia ido longe o bastante; ou antes, para ser generoso, vendi-lhe a fazenda exatamentepelo que dei por ela, e como ele no era um homem rico, presenteei-o com dez dlares,e ainda quei com meus dez centavos, minhas sementes e o material para um carrinhode mo. Descobri assim que tinha sido um homem rico sem prejuzo algum minhapobreza. Mas retive a paisagem, e desde ento carrego sem carrinho de mo o que elaproduz. A propsito de paisagens,

    Sou o monarca de tudo o que observo,Meu direito quanto a isso incontestvel.1 Vi com frequncia um poeta se retirar de uma fazenda depois de ter usufrudo o que

    ela continha de mais valioso, enquanto o rstico fazendeiro julgava que ele houvessecolhido apenas um punhado de mas silvestres. Ora, o proprietrio passa muitos anossem saber que o poeta colocou sua fazenda em poemas (a espcie mais admirvel decerca invisvel), que a cingiu, ordenhou, decantou e cou com toda a nata, deixando aofazendeiro apenas o leite desnatado.

    As verdadeiras atraes da fazenda de Hollowell, para mim, eram: seu completoisolamento, a uns quatro quilmetros do vilarejo e separada da estrada por cerca de umquilmetro de campo aberto; sua proximidade com o rio, que o proprietrio dizia quena primavera o protegia, com suas brumas, da geada, embora isso nada signicassepara mim; a cor cinzenta e o estado periclitante da casa e do celeiro, e as cercasdeterioradas, que abriam um espao enorme entre mim e o ltimo ocupante; asmacieiras ocas e cobertas de lquen, rodas por coelhos, mostrando o tipo de vizinhosque eu teria; mas, acima de tudo, a recordao que eu guardara de minhas primeirasviagens rio acima, quando a casa estava escondida por trs de um denso bosque debordos, atravs do qual eu ouvia os latidos do co de guarda. Estava com pressa decompr-la antes que o proprietrio acabasse de se livrar de algumas pedras, de derrubaras macieiras ocas e de arrancar algumas btulas que tinham brotado no pasto, emsuma, antes que ele zesse qualquer outro de seus melhoramentos. Para desfrutar todasessas vantagens eu estava disposto a ir em frente, a carregar como Atlas2 o mundosobre meus ombros eu nunca soube que recompensa ele teve por isso e a fazertodas aquelas coisas que no tinham outra razo ou desculpa seno o fato de eu poderpagar pela propriedade e no ser molestado por sua posse; pois eu soube o tempo todoque ela produziria a mais abundante colheita do tipo que eu desejasse, desde que eu mepermitisse simplesmente deix-la em paz. Mas aconteceu como eu disse.

    Tudo o que posso dizer, portanto, com respeito ao cultivo em larga escala (semprecultivei um jardim), que eu tinha minhas sementes prontas. Muitos julgam que assementes melhoram com o tempo. No tenho dvidas de que o tempo separa as boas

  • das ruins, e quando eu nalmente plantar, terei menos probabilidade de medecepcionar. Mas eu diria a meus camaradas, de uma vez por todas: Enquanto forpossvel, vivam livres e sem compromissos. No faz muita diferena se voc est presoa uma fazenda ou cadeia do municpio.

    O velho Cato,3 cujo De Re Rustica o meu arado,a diz o seguinte (e a nicatraduo que conheo deixa totalmente sem sentido a passagem): Quando pensares emadquirir uma fazenda, revolve a ideia na cabea, para no comprares com avidez; nopoupes o trabalho de examin-la, e no julgues suciente percorr-la s uma vez.Quanto mais amide fores l, mais ela te agradar, se for boa. Penso que nocomprarei com avidez, mas darei voltas e mais voltas ao seu redor at o m da vida, el serei enterrado antes que ela possa, finalmente, me agradar ainda mais.

    Meu experimento seguinte, dessa mesma espcie, foi o atual, que pretendo descrevermais detidamente, condensando, por convenincia, a experincia de dois anos em ums. Como j disse, no me proponho a escrever uma ode ao desnimo, mas me gabarcom o vigor de um galo cantando ao amanhecer, de p em seu poleiro, nem que seja spara acordar meus vizinhos.4

    Quando estabeleci residncia pela primeira vez nos bosques, isto , quando comecei apassar tanto minhas noites como meus dias ali o que ocorreu, por acaso, no dia daIndependncia, 4 de julho de 1845 , minha casa no estava pronta para o inverno.No passava de um mero abrigo contra a chuva, sem emboo e sem chamin, comparedes de tbuas speras castigadas pelas intempries e cheias de rachaduras, quedeixavam o interior frio noite. Os caibros verticais brancos e lisos e as esquadriasrecm-aplainadas das portas e janelas davam-lhe um aspecto limpo e arejado,especialmente pela manh, quando o madeiramento estava encharcado de orvalho, detal maneira que eu fantasiava que por volta do meio-dia brotaria da madeira algumaresina doce. Na minha imaginao ela retinha ao longo do dia um tanto desse carterauroreal, fazendo-me lembrar de uma certa casa na montanha que eu visitara no anoanterior. Esta ltima era uma cabana fresca e sem reboco, adequada para hospedar umdeus viajante, e na qual uma deusa poderia arrastar seus vestidos. Os ventos quepassavam sobre minha morada eram dos que varrem as cristas das montanhas,trazendo as melodias interrompidas, ou apenas as partes celestiais, de msica terrena.O vento matinal sopra eternamente, o poema da criao ininterrupto; mas poucos soos ouvidos que o escutam. O Olimpo5 no seno o que est sobre a terra, em todaparte.

    A nica casa de que fui proprietrio antes, se excetuarmos um barco, foi uma tenda,que eu usava ocasionalmente quando fazia excurses no vero e que ainda est enroladano meu sto. Mas o barco, depois de passar de mo em mo, perdeu-se na correntezado tempo. Com aquele abrigo mais substancial minha volta, eu tinha feito algumprogresso no sentido de me assentar no mundo. Aquele arcabouo, to levementerevestido, era uma espcie de cristalizao ao meu redor, e inua sobre o construtor.Era at certo ponto sugestivo como um quadro em esboo. Eu no precisava sair portaafora para tomar ar, pois a atmosfera interior no tinha perdido nada do seu frescor.

  • No era bem dentro de casa que eu me sentava, mas atrs de uma porta, mesmo noclima mais chuvoso. O Harivansa5 diz: Uma morada sem pssaros como uma carnesem tempero. No era o caso da minha, pois eu me vi subitamente vizinho dospssaros, no por ter aprisionado um, mas por ter engaiolado a mim mesmo pertodeles. Eu estava no apenas mais prximo daqueles que geralmente frequentam ojardim e o pomar, como tambm dos mais selvagens e penetrantes cantores da oresta,que nunca, ou raramente, fazem serenata para um aldeo o tordo, o sabi norte-americano, o sanhao escarlate, o pardal do campo, o bacurau e muitos outros.

    Eu estava instalado s margens de um pequeno lago, cerca de trs quilmetros ao suldo vilarejo de Concord, e um pouco acima dele, no meio de um extenso bosque entreaquela cidade e Lincoln, e uns quatro quilmetros ao sul do nico de nossos camposque obteve fama, o Campo de Batalha de Concord.6 Mas eu estava to baixo emrelao ao bosque que a margem oposta do lago, a um quilmetro de distncia, cobertade rvores como todo o resto, era meu horizonte mais distante. Durante a primeirasemana, toda vez que olhava para o lago, ele me impressionava como se fosse umalagoa no anco de uma montanha, com seu fundo muito acima da superfcie de outroslagos, e, medida que o sol se elevava, eu o via ir se despindo de sua coberta noturnade nvoa, e aqui e ali, aos poucos, revelavam-se suas suaves ondinhas ou sua superfcielisa como um espelho, enquanto as brumas, como fantasmas, retiravam-se furtivamenteem todas as direes, metendo-se nos bosques, como no encerramento de uma secretareunio noturna. O prprio orvalho parecia pender das rvores por mais tempo do queo normal ao longo do dia, como nas encostas das montanhas.

    Aquele pequeno lago era o mais valioso dos vizinhos nos intervalos de uma pequenatempestade em agosto, quando, estando o ar e a gua perfeitamente imveis, mas o cucarregado de nuvens, o meio da tarde tinha toda a serenidade da noite, e o tordosoltava seu canto, ouvido de uma margem outra. Um lago como aquele nunca ca toplcido como num momento assim, com a clara poro de ar acima dele tornando-sebaixa e escurecida pelas nuvens; a gua, cheia de luz e reexos, converte-se ela prprianum cu tanto mais imponente. Do alto de uma colina prxima, onde as rvorestinham sido cortadas recentemente, descortinava-se uma vista aprazvel em direo aosul, sobre o lago, atravs do denteado dos morros que formam a margem do outrolado, onde as encostas que se inclinam uma contra a outra sugerem um rio uindonaquela direo por um vale arborizado. Mas no havia rio algum. Desse modo euolhava por entre e por sobre as verdes colinas prximas para contemplar as maisdistantes e maiores, no horizonte, tingidas de azul. Com efeito, cando na ponta dosps eu podia vislumbrar os cumes de algumas cordilheiras ainda mais distantes e maisazuis a noroeste, aquelas moedas legtimas cunhadas pelo prprio cu, e tambm umpedao do vilarejo. Mas em outras direes, mesmo a partir daquele ponto, eu noconseguia ver alm dos bosques que me rodeavam. bom ter alguma gua nasproximidades, para dar leveza de esprito e irrigar a terra. Um valor que mesmo omenor dos poos possui que, quando a pessoa o contempla, v que a terra no continental, mas insular. A gua to importante por isso quanto por manter fresca a

  • manteiga. Quando, daquele topo, eu olhava por cima do lago em direo aos prados deSudbury que na poca das cheias me pareciam suspensos, talvez por uma miragem,sobre seu vale fervilhante, como uma moeda numa poa toda a terra do outro ladodo lago parecia uma na crosta isolada utuando naquele pequeno lenol de guainterposta, e isso me fazia lembrar que o lugar onde eu morava no passava de terrafirme.

    Embora a vista a partir da minha porta fosse bem mais restrita, eu no me sentia nemum pouco espremido ou connado. Havia pasto suciente para minha imaginao. Oplat coberto de arbustos de carvalho que se erguia na outra margem estendia-se rumos pradarias do oeste e s estepes da Tartria, concedendo amplo espao para todas asfamlias de homens errantes. No h seres felizes no mundo seno aqueles quedesfrutam livremente um vasto horizonte, disse Damodara,7 quando seus rebanhosdemandaram novas e mais amplas pastagens.

    Tanto o lugar como o tempo se modicaram, e eu morava mais perto das partes douniverso e das eras da histria que mais me haviam atrado. O lugar onde eu vivia erato longnquo quanto muitas regies observadas noite pelos astrnomos. Temos ohbito de imaginar lugares raros e aprazveis em algum canto remoto e mais celestialdo cosmo, atrs da constelao Cassiopeia, longe do alarido e da perturbao. Descobrique minha casa tinha de fato sua localizao numa parte assim do universo, retirada,mas eternamente nova e nunca profanada. Se valia a pena se estabelecer naquelesrecantos perto das Pliades ou das Hades, de Aldebar ou Altair, 8 ento era ali que euestava de verdade, ou num ponto igualmente distante da vida que eu deixara para trs,de tal modo encolhido que tremeluzia como uma pequena centelha aos olhos de meuvizinho mais prximo, e s era visto por ele nas noites sem luar. Assim era o pedao douniverso que eu tinha ocupado:

    Existiu um pastor que viviaCom o pensamento to elevadoQuanto os montes onde seus rebanhosAlimentavam-no de hora em hora.9 O que pensaramos da vida do pastor se seus rebanhos sempre escapassem para pastos

    mais elevados que seus pensamentos?Cada manh era um alegre convite para que eu conferisse minha vida a mesma

    simplicidade, diria at inocncia, da prpria Natureza. Tenho sido um adorador daAurora to sincero quanto os gregos. Levantava-me cedo e banhava-me no lago; era umexerccio religioso, e uma das melhores coisas que eu fazia. Dizem que na banheira dorei Tching-Thang 10 estavam gravados caracteres que diziam: Renova-tecompletamente a cada dia, e de novo e de novo, para sempre de novo. Sou capaz deentender isso. A manh traz de volta as eras heroicas. O leve zumbido de um mosquitofazendo sua excurso invisvel e inimaginvel pelo meu aposento ao romper daalvorada, quando eu estava sentado diante da porta e das janelas abertas, me atingia

  • tanto quanto qualquer trombeta proclamando a glria. Era o rquiem de Homero; umaverdadeira Ilada e Odisseia pelo ar, bradando sua fria e seus delrios. Havia algo decsmico naquilo, um anncio permanente, enquanto no o proibissem, do perptuovigor e fertilidade do mundo. A manh, o mais memorvel perodo do dia, a hora dodespertar. quando existe menos sonolncia em ns, e por uma hora, pelo menos, cadesperta uma parte de ns que cochila durante o resto do dia e da noite. Muito poucose pode esperar do dia, se que se pode chamar de dia aquele em que no somosacordados por nosso Esprito, mas pelos cutuces mecnicos de um criado, em que nosomos despertados por nossa prpria fora recm-adquirida e por aspiraes vindas dedentro, acompanhadas pelas vibraes da msica celestial, em vez dos alarmes dasfbricas, e por uma fragrncia que preenche o ar, para uma vida mais elevada do queaquela que deixamos ao cair no sono, e assim a escurido gera seu fruto e se mostra toboa quanto a luz. O homem que no cr que cada dia contm uma hora anterior, maissagrada e inaugural do que as que ele j profanou, perdeu a esperana na vida e esttrilhando um caminho escuro e declinante. Depois de uma interrupo temporria desua vida sensorial, a alma do homem, ou antes seus rgos, revigoram-se a cada dia, eseu Esprito volta a buscar a vida mais nobre a seu alcance. Todos os eventosmemorveis, eu diria, transpiram no perodo da manh, em sua atmosfera. Os Vedas11dizem: Todas as inteligncias despertam com a manh. A poesia e a arte, bem comotodas as mais belas e memorveis aes humanas, datam de uma hora matinal. Todosos poetas e heris so, como Mmnon, lhos da Aurora, e emitem sua msica aoalvorecer. Para aqueles cujo pensamento elstico e vigoroso acompanha o passo do sol,o dia uma perptua manh. No importa o que dizem o relgio ou as atitudes elabutas dos homens. A manh quando estou desperto e existe uma alvorada em mim.A reforma moral o esforo para se livrar do sono. Por que os homens lidam to malcom seu dia quando no desfrutam o seu sono? No que eles sejam to ruins declculo. Se no tivessem sido subjugados pelo torpor, teriam realizado alguma coisa.Os milhes esto despertos o bastante para o trabalho fsico; mas apenas um em 1milho est desperto o bastante para o esforo intelectual efetivo; apenas um em 100milhes est desperto para uma vida potica ou divina. Ainda no conheci um homemque estivesse plenamente desperto. Como eu poderia encar-lo frente a frente?

    Temos que aprender a redespertar e a nos manter acordados, no com ajudamecnica, mas por uma innita expectativa da alvorada, que no nos abandona sequerem nosso sono mais profundo. No conheo fato mais animador do que ainquestionvel faculdade humana de elevar sua existncia por meio de um empenhoconsciente. Ser capaz de pintar um quadro especco, ou esculpir uma esttua, e assimtornar belos alguns objetos, tem sua importncia; mas muito mais glorioso esculpir epintar a prpria atmosfera e o modo como observamos as coisas, e isso algo quemoralmente podemos fazer. Inuir sobre a qualidade do dia, eis a mais sublime dasartes. Todo homem est incumbido de tornar sua vida, mesmo nos menores detalhes,digna de ser contemplada em sua hora mais elevada e crtica. Se recusssemos, ou antesse esgotssemos, as informaes to irrisrias que recebemos, os orculos nos

  • informariam claramente como isso poderia ser feito.Fui para os bosques porque desejava viver deliberadamente, encarar apenas os fatos

    essenciais da vida, e ver se no seria capaz de aprender o que ela tinha a me ensinar,para que, quando eu viesse a morrer, no descobrisse que tinha deixado de viver. Euno queria viver o que no era vida, pois viver to precioso; tampouco queria meresignar, a menos que fosse totalmente necessrio. Queria viver profundamente e sugartoda a polpa da vida, viver de modo to vigoroso e espartano a ponto de desbaratartudo o que no fosse vida, abrindo e limpando uma larga clareira, para encurralar avida num canto e reduzi-la aos termos mais bsicos, e se ela se mostrasse vil, ora, entoeu enfrentaria toda a sua genuna vileza, e a denunciaria ao mundo. Ou, se ela fossesublime, eu o saberia por experincia prpria e seria capaz de fazer um relatoverdadeiro disso em minha prxima dissertao. Pois, ao que me parece, os homens emsua maioria sentem uma estranha incerteza quanto vida, se ela obra do diabo ou deDeus, e concluem de modo um tanto afoito que o principal objetivo do homem aqui glorificar a Deus e desfrut-lo para todo o sempre.12

    Entretanto vivemos mediocremente, como formigas, embora a fbula nos diga que hmuito tempo fomos transformados em homens;13 como pigmeus, lutamos com gruas; erro atrs de erro, remendo sobre remendo, e nossa melhor virtude tem como causauma infelicidade suprua e evitvel. Nossa vida se dissipa em ninharias. Um homemhonesto no precisa contar alm dos dez dedos das mos; em casos extremos, poderecorrer tambm aos dos ps, e que se dane o resto. Simplicidade, simplicidade,simplicidade! Eu digo: reduza suas atividades a duas ou trs, e no a cem ou mil; emvez de 1 milho, conte meia dzia, e registre sua contabilidade na unha do polegar. Emmeio ao mar agitado da vida civilizada, so tantas e tamanhas as nuvens, tormentas,areias movedias e os mil e um contratempos a levar em conta que, se no quisernaufragar e ir ao fundo sem chegar a porto algum, o homem tem que agir de acordocom sua bssola e ser um grande calculista para ter xito. Simplique, simplique. Emvez de trs refeies por dia, se for necessrio faa uma s; em vez de cem pratos,cinco; e reduza as outras coisas na mesma proporo. Nossa vida como umaConfederao Germnica,14 feita de pequenos estados, com suas fronteiras sempreutuantes, de tal maneira que nem mesmo um alemo sabe dizer onde esto traadasem cada momento. A nao em si, com todos os seus assim chamados melhoramentosinternos que, diga-se de passagem, so todos externos e superciais , no passa deuma instituio desajeitada e desmedida, atulhada de moblia e tropeando em suasprprias armadilhas, arruinada pelo luxo e pelas despesas imprudentes, pela ausnciade previso e de um objetivo meritrio, como os milhes de lares pas afora. E a nicacura para isso tudo uma economia rgida, uma austera e mais que espartanasimplicidade de vida e elevao de propsitos. Vive-se com demasiada pressa. Oshomens julgam que essencial que a Nao tenha comrcio, e exporte gelo, e secomunique pelo telgrafo, e se locomova a sessenta quilmetros por hora, poucoimportando se eles prprios o fazem; mas quanto a vivermos como babunos ou comohomens, ainda resta alguma dvida. Se no providenciarmos os dormentes, 15 se no

  • forjarmos os trilhos, se no dedicarmos dias e noites ao trabalho, cuidando em vezdisso de remendar nossas vidas com o intuito de aprimor-las, quem ir construir asferrovias? E se as ferrovias no forem construdas, como haveremos de chegar emtempo ao paraso? Mas, se carmos em casa cuidando dos nossos assuntos, quem vaiquerer ferrovias? No andamos sobre a ferrovia; ela que anda sobre ns. Voc algumavez j pensou no que so aqueles dormentes sobre os quais repousam os trilhos? Cadaum deles um homem, um irlands ou um ianque. Os trilhos assentam sobre eles, eeles se cobrem de areia, e os vages deslizam suavemente em cima deles. So dormentesprofundos, posso lhe garantir. E a cada poucos anos um novo lote assentado e sobreele passam novos trens, de tal modo que, se alguns tm o prazer de viajar sobre trilhos,outros tm o infortnio de servir-lhes de suporte. E quando acontece de atropelaremum homem sonmbulo, um dormente avulso na posio errada, e de o acordarem, elessubitamente freiam os carros e fazem um grande alvoroo em torno disso, como sefosse uma exceo. Fico contente em saber que preciso uma equipe de homens a cadacinco milhas para manter os dormentes assentados em seus leitos, por assim dizer, poisisso um sinal de que eles em algum momento podero levantar de novo.

    Por que teramos de viver com tanta pressa e desperdcio de vida? Parecemosdecididos a morrer de fome antes mesmo de ter apetite. Os homens dizem que umponto de costura dado em tempo economiza outros nove, ento eles do mil pontoshoje para economizar nove amanh. Quanto ao trabalho, no temos nenhum queproduza resultado. Sofremos da dana de So Vito, 16 e no conseguimos manter acabea imvel. Se eu simplesmente desse alguns puxes na corda do sino da parquia,como ocorre em casos de incndio, isto , sem chegar a fazer o sino repenicarfestivamente, dicilmente um homem em sua fazenda nos arredores de Concord, noobstante as presses de compromissos e afazeres que ele pudesse usar como desculpanesta manh, tampouco um menino, ou uma mulher, deixaria de abandonar tudo eseguir aquele som, no tanto para salvar das chamas alguma propriedade, mas, vamosconfessar, muito mais para v-la queimar, j que vai queimar de qualquer jeito (e nofomos ns, bom que se diga, que ateamos fogo) ou ento para ver o incndio serextinto, e dar nossa contribuio, se for conveniente. Sim, mesmo que se tratasse daprpria igreja da parquia. raro o homem que, depois de dormir sua sesta de meiahora aps a refeio, no levante a cabea e pergunte ao acordar: Quais so asnovidades?, como se o resto da humanidade tivesse se mantido em viglia, feito suassentinelas. Alguns, com o mesmo intuito, do instrues para serem acordados a cadameia hora; e ento, guisa de retribuio, contam o que sonharam. Depois de umanoite de sono as notcias so to indispensveis quanto o caf da manh. Por favor,diga-me qualquer novidade acontecida a um homem em qualquer parte do globo eenquanto toma seu caf e come seu pozinho, ele l que um homem teve os olhosarrancados nesta manh no Rio Wachito. 17 Sem sequer sonhar que, enquanto isso, elevive na escura, imensa e insondvel caverna deste mundo, e no tem, ele prprio, maisdo que um rudimento de olho.

    De minha parte, eu poderia passar facilmente sem o correio. Penso que so muito

  • poucas as comunicaes importantes feitas por meio dele. Falando honestamente, norecebi em toda a vida mais do que uma ou duas cartas escrevi isto alguns anos atrs dignas de serem postadas. O servio postal pago , em geral, uma instituiomediante a qual voc oferece seriamente a um homem, por seus pensamentos, umtosto que, com muita frequncia, oferecido de brincadeira. E estou certo de nuncater lido nenhuma notcia memorvel num jornal. Se lemos uma vez que um homem foiroubado, ou assassinado, ou morreu num acidente, ou que uma casa pegou fogo, ouque um navio naufragou, um barco a vapor explodiu ou uma vaca foi atropelada porum trem da Western Railroad, ou que um cachorro louco foi sacricado, ou que oinverno trouxe uma praga de gafanhotos no precisamos voltar a ler uma notciaparecida. Uma s basta. Se voc est familiarizado com o princpio, o que importa amirade de exemplos e casos? Para um lsofo, todas as notcias, como so chamadas,no passam de mexerico, e aqueles que as editam e as leem no so mais que mulherestagarelando em torno de seu ch. No entanto, no so poucos os que buscamavidamente esses mexericos. Houve um dia desses, pelo que me contam, um tamanhoauxo de gente a uma agncia para saber das notcias estrangeiras de ltima hora quevrias vidraas pertencentes ao estabelecimento foram estilhaadas pela presso notcias que julgo seriamente que um esprito inteligente seria capaz de escrever demodo bastante preciso com doze meses ou doze anos de antecedncia. Quanto Espanha, por exemplo, se voc souber inserir de tempos em tempos, e na proporocerta, os nomes de Don Carlos e da Infanta, Don Pedro e Sevilha e Granada osnomes podem ter mudado um pouco desde a ltima vez que li os jornais , e recorrera uma tourada na falta de outras distraes, a notcia ser el ao p da letra e nos daruma ideia to boa do ruinoso estado de coisas na Espanha quanto os relatos maissucintos e lcidos encontrveis sob essa manchete nos jornais; quanto Inglaterra,quase se pode dizer que a ltima novidade daquele pedao do mundo foi a revoluo de1649; e se voc se informou sobre a safra daquele pas num ano mediano, nunca maisprecisa dar ateno ao assunto, a menos que suas especulaes sejam de cartermeramente pecunirio. Se algum que raramente l os jornais pode emitir seujulgamento, nada de novo acontece em terras estrangeiras, e uma revoluo francesano exceo.

    Novidades! to mais importante saber aquilo que nunca fica velho! Kieou-he-yu (grande dignitrio do estado de Wei) mandou um homem a Khoung-tseupara saber notcias deste. Khoung-tseu fez o mensageiro sentar perto de si einterrogou-o nos seguintes termos: O que o seu senhor tem feito? O mensageirorespondeu respeitosamente: Meu senhor deseja diminuir a quantidade de seusdefeitos, mas no consegue dar m a eles. Depois que o mensageiro se foi, o lsofoobservou: Que mensageiro precioso! Que mensageiro precioso!18 O sacerdote, em vez de fustigar com mais um sermo desmazelado os ouvidos de

    lavradores sonolentos em seu dia de descanso ao nal da semana pois o domingo a

  • justa concluso de uma semana mal aproveitada, e no o fresco e vioso incio de umanova , deveria bradar com voz de trovo: Parem! Faam uma pausa! Por que essaaparncia de rapidez, se sua lentido mortal?.

    Embustes e tapeaes so tomados por verdades profundas, enquanto a realidade vista como ctcia. Se os homens observassem permanentemente apenas o que real, eno se permitissem ser iludidos, a vida, para fazer uma comparao com coisas queconhecemos, seria como um conto de fadas ou como os relatos de As mil e uma noites.Se respeitssemos apenas o que inevitvel e tem o direito de existir, a msica e apoesia ressoariam pelas ruas. Quando pensamos com sensatez e sem pressa, percebemosque apenas as coisas grandes e valiosas tm existncia permanente e absoluta quepequenos medos e pequenos prazeres no so mais do que sombras da realidade. Esta sempre exultante e sublime. Ao fechar os olhos e dormitar, e ao consentir ser iludidospelas aparncias, os homens estabelecem e conrmam por toda parte sua vida cotidianade rotina e hbito, ainda que ela seja construda sobre bases puramente ilusrias. Ascrianas, que brincam de viver, discernem as verdadeiras leis e relaes da vida maisclaramente que os adultos, que so incapazes de viv-la dignamente, mas julgam-semais sbios devido experincia, isto , ao fracasso. Li num livro hindu que

    houve uma vez o lho de um rei que, tendo sido expulso na infncia de sua cidadenatal, foi criado por um silvcola, e, chegando maturidade nesse estado selvagem,imaginou que pertencia raa brbara com a qual vivia. Descoberto por um dosministros de seu pai, ouviu a revelao de quem de fato era; o engano sobre suaidentidade foi dirimido e ele soube que era um prncipe. Do mesmo modo a alma,prossegue o lsofo hindu, de acordo com as circunstncias em que colocada,engana-se quanto a seu prprio carter, at que a verdade lhe seja revelada por algummestre sagrado, e ela ento venha a saber que Brahma.19 Percebo que ns, habitantes da Nova Inglaterra, vivemos esta nossa vida mesquinha

    porque nossa viso no penetra alm da superfcie das coisas. Tomamos pelo que aquilo que parece ser. Se um homem caminhasse por esta cidade e visse apenas arealidade, onde iria parar, eu pergunto, o Mill-dam? 20 Se ele pudesse nos dar um relatodas realidades que observou ali, no reconheceramos o lugar em sua descrio. Olhempara um templo, ou um tribunal, uma cadeia, uma loja, uma residncia, e digam o que o lugar em questo sob o escrutnio de um verdadeiro olhar; todos eles vo sedespedaar no relato que vocs zerem deles. Os homens consideram remota a verdade,s margens do sistema, atrs da estrela mais distante, anterior a Ado e posterior aoltimo homem. Na eternidade h de fato algo de verdadeiro e sublime. Mas todos essestempos, lugares e ocasies esto aqui e agora. O prprio Deus culmina no momentopresente, e nunca ser mais divino no decorrer de todas as eras. E estamos habilitados aapreender tudo o que sublime e nobre simplesmente ao nos deixar instilar e encharcarpela realidade que nos cerca. O universo responde de modo constante e obediente anossas concepes; quer viajemos depressa ou devagar, a estrada est aberta para ns.

  • Sendo assim, passemos a vida imaginando. O poeta e o artista nunca conceberam umprojeto to belo e to nobre que pelo menos alguns de seus psteros no pudessemrealizar.

    Passemos um dia de modo to esmerado quanto a Natureza, e no saiamos da estradaa cada noz ou asa de mosquito que caia nos trilhos. Vamos levantar cedo e jejuar, outomar o caf da manh suavemente e sem inquietao; que os companheiros venham epartam, que os sinos toquem e as crianas gritem estejamos decididos a viverplenamente o dia. Por que deveramos sucumbir e ser levados pela corrente? No nosdeixemos derrubar e submergir no terrvel redemoinho chamado almoo, situado nosbaixios do meio-dia. Atravesse esse perigo e voc estar salvo, pois o r