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29 A cura e o discurso 1 Alfredo Jerusalinsky A clínica da linguagem, retomando de um modo muito esquemático e geral nosso último encontro, vai se deslocando de uma posição molecular para o campo do discurso. Se a clínica da linguagem é concebida no início fundamentalmente como clínica da relação entre o som (fonação) e o signo lingüístico – e nesse sentido toma um viés educativo ou reeducativo, tentando configurar a imagem sonora à convenção do signo lingüístico –, então, inicialmente pelo menos, é uma clínica fundamentalmente baseada na imitação. O uso que a fonoaudiologia fazia do espelho estava muito longe do espelho lacaniano. Hoje em dia, na clínica da linguagem, adquire cada vez mais importância isso que se chama de psicolingüística. Como todo mundo sabe, não há uma única versão da psicolingüística. Há um leque de versões que vão adquirindo extremos de variabilidade, a começar pela neuropsicologia, que tem como uma de suas expressões a neurolingüística. Estou me referindo a versões sérias da neurolingüística e não à neurolingüística destinada ao marketing, ou à neurolingüística aplicada como uma panacéia universal da

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A cura e o discurso1

Alfredo Jerusalinsky

A clínica da linguagem, retomando de um modo muitoesquemático e geral nosso último encontro, vai se deslocando deuma posição molecular para o campo do discurso. Se a clínica dalinguagem é concebida no início fundamentalmente como clínicada relação entre o som (fonação) e o signo lingüístico – e nessesentido toma um viés educativo ou reeducativo, tentando configurara imagem sonora à convenção do signo lingüístico –, então,inicialmente pelo menos, é uma clínica fundamentalmente baseadana imitação. O uso que a fonoaudiologia fazia do espelho estavamuito longe do espelho lacaniano.

Hoje em dia, na clínica da linguagem, adquire cada vez maisimportância isso que se chama de psicolingüística. Como todomundo sabe, não há uma única versão da psicolingüística. Há umleque de versões que vão adquirindo extremos de variabilidade, acomeçar pela neuropsicologia, que tem como uma de suasexpressões a neurolingüística. Estou me referindo a versões sériasda neurolingüística e não à neurolingüística destinada ao marketing,ou à neurolingüística aplicada como uma panacéia universal da

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problemática psíquica, que teria sua resolução pela via de umaimagem lingüística. Essa é uma simplificação absurda que temsurgido no campo da neurolingüística e que tomou conta dela.Embora já esteja hoje em plena queda, na Espanha ainda persisteum certo predicamento.

Célia Klouri – Aqui em São Paulo há um grupo trabalhandono Hospital Albert Einstein. Havia grupos isolados de trabalho empsicologia, que iniciaram ligados ao grupo de neurologia, masrecentemente foi aberto um serviço de psicologia em que todos osque trabalham são da neurolingüística.

Alfredo Jerusalinsky – Bem, em outras coisas da vida vãoter mais sorte. Ninguém sofre desgraças em todos os âmbitos davida. Essa é a posição deles. No México e nos EUA há tambémalguns grupos. Não é que estejam totalmente liquidados, mas têmmuito menos predicamento do que quando despertaram há quatroou cinco anos atrás. Até que suas teses de cura se demonstraramfalsas e que eles mesmos não conseguiram mais sustentar muitascoisas que diziam. Então, é preciso saber que versão daneurolingüística.

Célia Klouri – Há muitas versões? Eu achava que apredominante era aquela ligada ao cognitivismo.

Alfredo Jerusalinsky – Por isso eu dizia que num extremotemos a psicolingüística como neurolingüística na sua vertente maisséria, que é a cognitivista, embora esteja fortemente em questãodo ponto de vista neurológico, porque a teoria das localizações foiposta em xeque pelas novas descobertas em neurociências. Então,o que se está propondo é uma formulação que se vê cada vezmais questionada.

No extremo oposto temos, então, uma concepçãopsicolingüística, a de Vigotsky, por exemplo, passando porChomsky. Uma concepção que tem mais apoio, que encontra maisdeterminações do lado da configuração discursiva ou daconfiguração gramatical do que do lado da configuração

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neurológica. Entre os psicolingüistas há grandes discussões. Vocêssabem que as relações entre eles não são nada pacíficas.

Angela Vorcaro – Parece-me que a dificuldade napsicolingüística, até no IEL, na UNICAMP, em que se trabalhamuito com psicolingüística, a grande dificuldade é fazer essetrabalho de confronto e reorganização conceitual a partir de outrasteorias. Fazer esse movimento que Lacan fez em relação àlingüística, à antropologia e à matemática. Então o que eles fazem?A lingüística vai tendo que formar a psicolingüística, asociolingüística, neurolingüística, etc. Como os debates não sãosuficientes, vão se fazendo mosaicos.

Alfredo Jerusalinsky – Sim, acaba sendo uma justaposição.Quem sabe um pouco de sensatez e pensarem: “Bom, quem sabea interdisciplinaridade, nem tudo pode estar contido nessesenunciados neurolingüísticos ou psicolingüísticos. Então, tem osaspectos sociais, os aspectos culturais”.

Angela Vorcaro – Aí é preciso inventar uma lingüística paracada vertente.

Alfredo Jerusalinsky – Ou uma mera justaposição. Seriainteressante se pensassem “Isto influencia; aquilo, também”. Oque não dizem é como são as mediações que operam entre umacoisa e outra, porque isso levaria a um questionamento, a umareformulação que é a que Lacan faz com a lingüística mesmo.Por isso a sua coexistência com outros campos é mais simpáticado que entre eles mesmos. É mais fácil para eles quando se juntamcom sociólogos, antropólogos, ecologistas, etc.

Existe toda a corrente naturalista – quase glossolálica –que é a corrente rousseauniana, uma espécie de darwinismopsicolingüístico que diz: a lingüística evolui junto com a espécie e ouso natural da língua. Coincide com a natureza do ser humano;então, as patologias da lingüística são formas de desacomodaçãodo natural. A via da cura seria inserir novamente o homem nanatureza, uma vez que aí ele iria recuperar o verdadeiro sentidoda linguagem. Por isso é que digo que são quase glossolálicos.

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São eles que fazem os trabalhos com golfinhos; relacionam ascrianças com os golfinhos porque estes são os que têm a linguagemmais elaborada entre os animais. Então, a comunicação com osgolfinhos recolocaria as crianças, no que diz respeito à linguagem,no seu devido lugar. São eles que fazem essa estimulação que sechama ecoterapia – no sentido ecológico – e também eqüoterapia– com os cavalos. A “linguagem” das abelhas, das plantas, dosgolfinhos. Toda uma corrente ecológica é muito simpática do pontode vista dos ideais românticos naturalistas, mas supõe que o humanose “cura” restabelecendo sua inclusão na natureza, quando, muitopelo contrário, sua inscrição na cultura implica justamente umdistanciamento do natural para entrar no simbólico.

Sandra Pavone – Tenho recebido casos de crianças queestão em terapia fonoaudiológica em reorganização neurológica,que me parece ser uma dessas versões também.

Alfredo Jerusalinsky – Há duas: a reorganizaçãoneurológica e a reorganização neurolingüística. A reorganizaçãoneurológica é relativa a uma reabilitação mais geral, global. É umareabilitação para crianças que têm problemas de desenvolvimento:paralisias cerebrais, síndrome de Down, enfim, crianças comproblemas físicos constitucionais.

Sandra Pavone – Mas o que tenho visto é que isso seaplica a qualquer falha constitucional.

Alfredo Jerusalinsky – Sim, eles aplicam uma concepçãogeral. Na verdade, essa concepção geral não é nova. Ela se originana década 50-60 na Alemanha. Na Argentina há um neurologistaespecialmente representado, ele se chama Castillo Morales, como qual eu tenho tido discussões homéricas. É interessante, pois elese formou na Alemanha, que era representante dessa corrente, eque partiu do seguinte: eles tomaram o tema lamarckiano de que aontogênese repete a filogênese.

Todo mundo sabe que, de um ponto de vista muito global, aembriogênese do humano atravessa etapas de formação queconfiguram momentos da evolução das espécies através de uma

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analogia um pouco forçada, ou seja, uma analogia suposta. Essa éuma tese lamarckiana que tem sido alvo de muitas críticas, porqueatualmente se conhecem passos da evolução que sãocompletamente excêntricos em relação a esses passos que odarwinismo considerou de um modo linear. Hoje em dia, sabe-seque não é bem assim. Isso alcança até mesmo uma das tesesfundamentais da biologia em termos de evolução, que é a do relógiogenético. Trata-se de uma descoberta recentíssima, dos últimostrês meses, que coloca em questão os modos de aferição daantiguidade de uma espécie. O que se supunha era que a mutaçãode um gene levava um tempo determinado avaliado em centenasde milhares de anos. Então, o aparecimento de um traço fenotípicodiferente numa espécie dependia de modo direto da mutação deum conjunto ou de um único gene. Portanto, para se estabeleceressa mudança evolutiva, era necessário o tempo que do ponto devista genético biológico era exigido para que esse gene mudasse.A partir dessa premissa podia-se medir a antiguidade de umaespécie em função dos traços diferenciais que se acumulavamnessa nova espécie a partir do elo anterior. Ou seja, era possíveldeterminar em que momento tinha se produzido uma bifurcaçãoque tinha dado como resultado que uma espécie continuasse sendoa que era, mas desse lugar ao nascimento de uma nova. Isto parafrente. Para trás, haveria como saber qual era o parentesco entreas espécies. Tomando todas as espécies atuais e o banco genéticode cada uma, era possível saber quais eram os segmentos dasséries de genes que tinham mudado. As que tinham séries emcomum e as que não tinham e, como estas correspondiam a traçosfenotípicos divergentes. Essas divergências acontecem em todasas espécies, até produzindo diferenças que são completamentebanais, por exemplo, a mudança da cor do cabelo e dos olhos, quesão mudanças fenotípicas, mas que não dão lugar a uma novaespécie. Melhor dizendo, não dão lugar a um novo gênero. Dãolugar a uma variação dentro da espécie ou a uma nova espécie,mas dentro do mesmo gênero.

Isto foi então um grande achado da biologia, que permitiu, apartir da análise do estado atual da genética, deduzir ou formular

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hipóteses sobre espécies que eram primas entre elas e em quemomentos da antiguidade tinham se produzido, seja a bifurcaçãoseja a extinção de uma espécie. Isto que se chamou o relógiogenético biológico de todas as teses biológicas evolutiva atuais é oque organiza as concepções biológico-evolutivas atuais.

Entretanto, acaba de se descobrir que os genes não têm umritmo constante de variabilidade. Eis aí que, então, se produz umaimplosão, um escândalo. O que foi encontrado por acaso naspesquisas é que a variabilidade não é constante, e que há tal nívelde variabilidade no ritmo que destrói as teses do relógio biológicogenético. Não somente se descobriu que há uma diferença entrediferentes tipos de genes, o que permitiria aí recompor o relógiobiológico, mas também que o mesmo tipo de gene pode, emcircunstâncias diferentes, ter um ritmo de variabilidade diferente.Então começaram a medir espécies de diferentes procedênciastomando o banco genético que tem nos EUA. Um banco genéticode todas as espécies; uma fonte que permite a comparação detodas as espécies existentes. Há também um banco genético naInglaterra, em Bath, que é um importantíssimo centro de todo tipode pesquisas, mas fundamentalmente biológicas. É lá, inclusive,que se encontra sediado o conselho internacional acadêmico maisimportante do mundo, que julga sobre a verdade das descobertas.É uma cidadezinha que fica ao sul de Londres e que foi fundadapelos romanos. Foi uma das conquistas do império romano. Láainda estão as construções romanas que foram restauradas noséculo XVIII. Era como uma cidade de banhos, como Caracallas,perto de Roma.

É aí então que entra até o relógio genético. Imaginem emque medida entra em questão a tese da repetição; a tese de que aontogênese repete a filogênese! O nível de aleatoriedade! Talvezhaja um princípio que organize tudo isso, mas digamos que, porenquanto, é tomado no campo da aleatoriedade, porque não sesabe qual é o princípio, nem mesmo se há um. Tal princípio lógicoera essa cronologia uniforme da variabilidade genética – uniformena cronologia não nas outras coisas. Se isso é posto em questão,

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imaginem o nível de aleatoriedade da reprodução ontogênica efilogênica? Trata-se de uma escola alemã. Não somente propõe atese de que a embriogênese repetia a evolução das espécies, mastambém de que após o nascimento a evolução psicomotorareproduzia também a evolução das espécies. Então, umareabilitação que seguisse um caminho natural deveria seguir aevolução das espécies; portanto, deveria induzir a criança a passarpor estas etapas: a etapa do batráquio, do réptil – a reptação, aetapa do quadrúpede – durante a qual a criança deveria andar emquatro patas, e assim sucessivamente.

Angela Vorcaro – O próprio Freud tinha essas idéias.

Alfredo Jerusalinsky – Sim. O princípio lamarckiano estavaem pleno vigor e naquele momento era o ponto de vista maisavançado da ciência. Até Piaget, considerando o ponto de vista daevolução cognitiva. O princípio que está em Biologia eConhecimento e está por todo lado. Em Sabedoria e Ilusões daFilosofia também. Isso é uma coisa que até os nossos dias temseu valor.

Angela Vorcaro – O que se vê em Freud é uma busca deexplicar a transmissão entre gerações.

Alfredo Jerusalinsky – Claro! Porém, ao invés de tomá-lano campo do real, como esse alemão, Freud a utiliza em forma demetáfora.

O que hoje em dia toma outra perspectiva é TerrenceDeacon, em seu livro The Symbolic Species, de 1999. É um livroimportante porque está numa dobradiça entre as concepçõesbiológicas e psíquicas ou psicológicas. A Espécie Simbólica seriao nome em português. Nesse livro ele sustenta que astransformações cerebrais da espécie humana se devem àlinguagem, que o sistema nervoso central se reconfiguraevolutivamente. Ou seja, que a nossa saída da posição de macacosestá determinada pela linguagem e por nenhuma outra coisa, ouque as outras coisas são banais. Em outros termos, o que ele dizque é que a linguagem reconfigura o fenótipo da espécie, inclusive

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do ponto de vista do sistema nervoso central, fisicamente. Eleretoma todas as últimas descobertas científicas, fazendo-asconvergir na demonstração disso que ele diz. Um livro muitointeligente e de grande excelência científica.

A Reabilitação Evolutiva, que é como se chama essa práticaaqui no Brasil, se misturou com as concepções de um neurologistabrasileiro de sobrenome Veras. Ele misturou idéias próprias, sádicas,com as idéias da escola de Reabilitação Evolutiva. Aqui no Brasilteve e ainda tem uma representação, e entrou pela via dosecologistas que desenvolveram concepções que dão lugar a issoque se chama ecoterapia, por exemplo, terapia com golfinhos. Naverdade, esta última é muito cara e acontece mais nos EUA. Lá,o que tem de criança conversando com golfinho! Até as escolasde natação para bebês entraram muito nessa vertente. As abelhase os golfinhos são gente tão boa! Há toda uma lógica dentro dessasconcepções.

Sandra Pavone – Mas além de responder a uma lógicaintrínseca bastante convincente, no que se refere aos pais, elasservem a uma não responsabilização, e na nossa clínica, quandorecebemos a criança que já passou por trabalhos dessa natureza,podemos ver que nesse momento, ali conosco, os pais se deramconta de que o efeito não era bem o que buscavam.

Alfredo Jerusalinsky – Sim. O eixo da terapêutica passa aser a reconciliação da criança com a natureza. Então, o que têm aver os pais com isso? Por isso o que se tem de providenciar são osmeios para que a criança se reconcilie com a natureza. Houveuma ruptura entre a natureza e a criança; então, é só recomporisso. Os pais não têm nada a ver! A subjetividade ali não temlugar.

Daniel Revah – Há um mês eu dei uma palestra naAssociação Brasileira de Dislexia, e lá pode se ver que eles têmbem essa visão para diagnosticar os problemas de leitura e escrita.Lembro-me de que perguntei a eles, pois têm grupo de controle namesma família, e eles me responderam – saindo pela tangente –

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que havia um médico que dissecara uns seis cérebros e que tinhavisto ali e comprovado... Bem, ficou por isso mesmo!

Alfredo Jerusalinsky – Segundo Rapin, os cérebrosdissecados para realizar essa pesquisa foram 50. Levando emconta a estatística – que é o que eles levam em conta como fontede verdade – isso é completamente insignificante. Não é umaamostra, pois não permitiria afirmar absolutamente nada.

Daniel Revah – E tem mais! Após eu ter dito isso, duasmães da platéia, quase chorando, apoiaram as pessoas daassociação. Elas fizeram uma fala em defesa do que essas pessoasda ABD estavam falando.

Alfredo Jerusalinsky – Sim. “Se vocês psicanalistasquerem jogar a culpa em nós...”. Essa é a reação dos pais. “Vocêsnão permitem que as novas descobertas científicas avancem! Queavancem na direção de nos desembaraçar de qualquerresponsabilidade”.

Isso é feito na mesma situação que estamos vivendo agora,pois o que estamos assistindo é uma contraposição entre a ciência,sob a sua forma de tecnologia, e o teologismo, que engendrateocracia do outro lado. Então, é um enfrentamento entre ostecnocratas e os teocratas. Os dois completamente convencidosde que são a representação total da verdade e, assim, nossubmetem a isso que está acontecendo agora. Isso se reproduzem todos os âmbitos sociais e até na terapêutica mínima de umacriança com problemas de linguagem. Essa é a questão. São duasformas da inquisição. É só levar em conta os fatos históricos maisbanais. A reunião dos neoliberais em Davos, há dezessete anosconsecutivos, sem faltar um, tem como conclusão que o quedemonstram os números é que o neoliberalismo não favorece odesenvolvimento dos países pobres. Dezessete anos, um atrás dooutro, verificando isso. Vocês acham que a política econômicaque eles seguem tem modificado uma vírgula? Não. Eles chegama essa conclusão; no ano seguinte, chegam à mesma conclusão, eo que é que eles dizem? Nós somos a verdade, o caminho e a

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luz. Ou seja, a mesma coisa que do outro lado. Em todos os campossociais se reproduz isso. É terrível! Ali temos depois o caos: Bush.Esse cara que ocupa de modo ridículo uma posição de presidentequando ainda não deixou de ser um filho; um filho do pai. Ora, seele chegou a ser presidente sendo filho, não tem por que mudar.

Célia Klouri – Aqueles que estamos do lado dosubdesenvolvimento e estamos submetidos a essa tecnocracia, quesó dá para pensar que é um Taleban desenvolvido, ficamos numasituação difícil, mas tem que ter uma saída. Porque não são astrevas.

Alfredo Jerusalinsky – Eu penso que há formulações nopensamento atual que permitiriam sair disso. A própria psicanálisetem feito contribuições decisivas. Por exemplo, permitindo verificaro quanto, no humano, o acesso à verdade está condicionado peloenunciado do qual ela parte, que não é uma concepção cínica. Ouseja, que não é a concepção dos cínicos, segundo a qual se legitimaque qualquer coisa possa ser verdade a partir de qualquer enunciadode partida. Pelo contrário, ela introduz uma nova ética que levaem conta as conseqüências que têm sobre o outro o enunciadoque se profere. Essa não é a postura dos cínicos. Então, digamos,quando se utiliza a linguagem hoje em dia, a tendência é cair norelativismo científico: qualquer coisa pode ser verdade. Então, sequalquer coisa pode ser verdade, eu defendo a minha, você defendea sua, todos contra todos ou cada um por si e Deus contra todos.

Célia Klouri – É o discurso em que não há impossível.

Alfredo Jerusalinsky – Exatamente, não há impossível.Eu escrevi um artigo que vai sair agora no Correio da APPOA,que se chama O gozo de Deus: a estética do bem e do mal, queé sobre essa questão. É ali que os princípios estão jogados todosna mesma direção: a verdade é total.

Essa escola de reabilitação evolutiva, que parte da décadade 50, estava baseada em estudos embriológicos e supunha que aevolução nos quatro primeiros anos de vida reproduzia astransformações embriológicas. Tais transformações, por sua vez,

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reproduziam as modificações da evolução das espécies. Essaconcepção vai se atualizando com as novas descobertasneurológicas, adaptando essas teses a novas descobertas, masconservando as teses fundamentais. Então, no campo da linguagem,aparece sob a forma dessas correntes que eu chamaria de, nofundo, glossolálicas – como se houvesse uma língua natural com aqual a criança teria que se reconciliar. Na verdade, é uma dascorrentes da neurolingüística, muito mais cientificizada e menosmitologizada, ou menos apoiada na mera analogia figurativa daevolução embriológica e mais apoiada numa teoria de funçõesnaturais, que corresponderiam a funções da linguagem. TerrenceDeacon também sustenta a idéia de que as funções naturaiscorrespondem a funções na linguagem, só que coloca isso de ponta-cabeça: a determinação não estaria na evolução natural, senãoque estaria na linguagem mesma, a partir da qual se reconfigurariao próprio ser, tanto do ponto de vista filogenético quanto do pontode vista ontogenético. Ou seja, que na gênese das transformaçõescerebrais do bebê viria a linguagem a determinar essasconfigurações. Isto tem um ponto de contato com o anterior, masque o coloca do avesso em termos de determinação. Adeterminação não seria natural, mas cultural. E ele diz quejustamente isso é o que se inverte nos humanos; que o quecaracteriza a espécie humana é essa inversão da determinação.

Sandra Pavone – E o que em outras se vê é que buscammostrar uma analogia e não essa inversão.

Alfredo Jerusalinsky – Exatamente. E então essascorrentes vão falar de uma linguagem dos golfinhos, de umalinguagem animal. É claro, então, que as concepções dafonoaudiologia como terapêutica vão mudando de acordo com essesconceitos. E estamos aqui para que teses psicanalíticas possamter seu lugar nessa terapêutica. O que não quer dizer fazerpsicanálise em lugar de terapêutica da linguagem.

Sandra Pavone – Era essa questão que eu havia colocado,ou seja, qual seria essa diferença entre fazer psicanálise e umaterapêutica de linguagem guiada pelos conceitos psicanalíticos?

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Principalmente nos casos de crianças muito pequenas, em que,por vezes, vemos que as duas caminham em direções muitopróximas.

Alfredo Jerusalinsky – É que quanto menor é a criança,maior a extensão e a variabilidade dos campos sobre os quais seproduz um efeito do ato clínico. Ou seja, quanto menor é a criança,maior a extensão do ato clínico nas suas conseqüências, porquejustamente não há uma diferenciação de funções na criança quepermita uma diferenciação de conseqüências do ato clínico. Comoo recalque não está estabelecido, a compartimentalização dasfunções imaginárias do eu não estão estabelecidas; portanto, arepercussão que tem um ato clínico qualquer é como um rastilhode pólvora: vai explodindo em todos os lugares.

Angela Vorcaro – É que na clínica das patologias gravescomo autismo e psicose é preciso jogar a criança no campodiscursivo e, de toda maneira, seja a analista ou não, o que vaiacontecer é que é preciso interpretar e supor ali um sujeito;interpretar a ação da criança como um ato, supondo ali um ato.Ao jogar a criança no discurso, inserindo-a na linguagem, muitasvezes o fonoaudiólogo está fazendo a função de Outro, que é oque o analista, nesses casos, também faz. Então, eu acho que oproblema e a diferença parece ser o fato de que o fonoaudiólogofaz isso com a sua fantasia. Ou seja, a posição da criança para ofonoaudiólogo é estar submetida à sua rede fantasística, de talmaneira que ele pode estar gozando às custas da criança oudeixando a criança gozar às suas custas. Essa interrogação sobrea especificidade do laço que está sendo estabelecido é o que apsicanálise pode permitir, e aí sim fazer a diferença. A minha dúvida,quando eu vejo Melanie Klein no caso Dick – e em muitos outroscasos que dão super certo no atendimento fonoaudiológico – é sea colocação em jogo da fantasia não é necessária.

Na verdade, eu estou afirmando que parece ser necessárioque ao jogar a criança na linguagem esteja em funcionamentouma posição fantasística dessa criança para o outro.

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Alfredo Jerusalinsky – Sim, claro!

Angela Vorcaro – Uma função imaginária que o analistatalvez não tenha como exercer. O analista empresta um imaginário,mas ele faz isso a partir da lógica, e não do próprio imaginário. Opsicanalista não acredita no imaginário, enquanto o fonoaudiólogo,por acreditar, talvez possa até ter mais sucesso. Fico pensando seMelanie Klein não teria uma certa razão ao constituir uma teoriatão imaginária.

Alfredo Jerusalinsky – Sim. Entendo o que você diz.Estamos nesse caso falando de um analista que não está preparadopara intervir nisso aí, ou seja, um analista que não é de bebês, nãoé de crianças pequenas.

Angela Vorcaro – Há como um analista exercer a funçãomaterna com uma criança, exercer a loucura necessária às mães?

Alfredo Jerusalinsky – É uma boa pergunta.

Sandra Pavone – Eu também tenho me interrogado sobreisso, e tem algo que eu sempre me pergunto que é: se a alienaçãoé um tempo necessário da estruturação do sujeito, por que umanalista não poderia trabalhar aí? Aliás, é nesse ponto que o trabalhocom algumas crianças pequenas precisa incidir. Por outro lado, eume pergunto como isso se dá sem que a criança fique numa posiçãode objeto da fantasia desse analista. É nesse ponto que eu vejo aimportância de incluir os pais no trabalho com crianças pequenas– na tentativa de que o trabalho de imaginarização e antecipaçãode um sujeito possa também ser retomado do lado deles. Achoque isso é próprio da função de analista. Vejo por aí umapossibilidade. Por outro lado, não me faz abandonar a primeiraquestão, uma vez que também a criança está ali.

Alfredo Jerusalinsky – Claro. Essa questão me levou agoraa evocar uma leitura recente que eu não completei, mas que estoufazendo, da história da pediatria no México. Salvaram-sedocumentos no México que permitem a reconstrução de comoera a prática de algo que não se chamava pediatria, mas medicina

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com as crianças pequenas. É muito interessante e se chamaHistória da Pediatria no México. Um conjunto de pesquisadores,médicos, antropólogos e historiadores, um livro que acabou de saire com edição limitada. O organizador é um pediatra.

A primeira coisa que sua questão me fez pensar foi algoque se passou entre os OLMECAS. Os Olmecas eram o grupo, acivilização mais antiga; que deu lugar à civilização Maia e àcivilização Asteca. Os Olmecas formaram parte da civilizaçãoMaia. Quando os espanhóis chegaram, já estava extinta. É umacivilização de 2000 anos, anterior à chegada dos colonizadores,não tiveram essa sorte de encontrar com Hernan Cortês. A casade Hernan Cortês está em Cuernavaca. Ele mandou construir umgrande palácio, evidentemente por suas fantasias de ser o novoimperador. Atualmente sua casa está transformada num museudas civilizações pré-colombianas. Os Olmecas, segundo ali contam,tinham como princípio que qualquer ato médico que se cumprissecom uma criança devia ser executado pelo criador, pelo cuidadorda criança e não pelo médico, ou seja, o médico guiava aintervenção medicamentosa, mas quem deveria administrar era ocuidador. Isto está na mesma direção que vocês colocam aqui: adificuldade de como, sendo um analista, sustentar um imaginárioadequado a essa criança.

O que me ocorre agora como uma resposta possível a umapergunta que merece uma reflexão mais cuidadosa, mais extensa,é o seguinte:

Melanie Klein tem a virtude de ser perversa. Não me refiroà sua personalidade, acerca da qual também caberia fazer essasconsiderações, pelo menos à luz da biografia que escreve PhyllisGrosskurth (autora canadense) sobre ela. A arbitrariedade dainterpretação kleiniana com as crianças – que inclusive FrançoiseDolto retoma – a arbitrariedade não é por referente imaginário,mas, em todo caso, arbitrariedade; reproduz na transferência aposição perversa que a mãe tem necessariamente com a criança,ou seja, a posição de mestre. Perversa no sentido em que Lacanutiliza a palavra perversão, quando produz essa escansão: père-

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version. Ou seja, dar uma versão do pai, mas dar uma. Não háoutra, senão a que ela dá. Que coloca o analista na transferêncianuma posição semelhante, no sentido de semblante – a palavrasemblant em francês é tanto máscara quanto semelhante, parecido.É aí que o imaginário próprio joga como versão paterna.

A dificuldade que há em Françoise Dolto, a meu ver, é queela introduz interpretativamente esse imaginário sob a forma deuma literalidade lingüística, o que leva o analista a exercer suainterpretação a uma distância excessiva com respeito à possibilidadeda criança de entrar em contato com esse traço no seu valor designo lingüístico. Na Maison Vert, a Casa Verde, concepçãoterapêutica “geral” de Dolto, a proposição é a de que a meraimersão da criança num âmbito em que se exerce a língua éespontânea e naturalmente terapêutica. Na Maison Vert, vem quemquer, quando quer, é um processo espontâneo durante o qual aspessoas, pais e crianças entram em relação. As intervenções dosanalistas são, digamos, de pontuação, assinalamento, sublinhar ouproduzir eventualmente alguma interpretação das situações quevão se produzindo. As interpretações se dão sob a forma verbal,respeitando o imaginário que espontaneamente se coloca em jogo.Parte-se para isso do imaginário doltosiano das castraçõessucessivas, das questões dos cortes, ou seja, de como vão seproduzindo as identificações, os cortes entre a criança e a família,ou entre a criança e os médicos. Claro que há várias versões doque ali se pratica. Os que trabalham ali têm diferentes concepçõesdo que fazem. Mas, de um modo genérico, me parece ser esse oprincípio organizador desse trabalho. É um trabalho muito bonito,muito interessante, mas que tem como articulador esse conceito,que a meu ver estabelece uma distância excessiva entre ascondições que criança tem e o exercício da língua. Coisa quesabemos que toda mãe produz de outro modo. No livro Psicanálisedo Autismo trabalho justamente essa questão, dizendo que umdos termos fundamentais da função materna – ali sim podemosfalar de uma função – é justamente traduzir a linguagem em ação.Nem sempre em ato, mas, sim, sempre em ação. É o que coloca

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então o traço ao alcance da criança, para a criança poder percebere incorporar esse traço como uma marca com valor lingüístico.

Angela Vorcaro – Quer dizer, considerar o jogo lúdico-motorcomo um discurso.

Alfredo Jerusalinsky – Exatamente. Faz com que entãoesse traço adquira o valor de signo lingüístico.

Em Melanie Klein o problema é parecido, justamente porqueela coloca a interpretação partindo de um imaginário que é o dela,o que ela formula como teoria, sob uma forma verbalizada, supondouma aplicação direta desse imaginário sob uma forma verbal.

Porém, encontramos isso em alguns seguidores de MelanieKlein, sobretudo nos trabalhos de observação de bebês; porexemplo, nos trabalhos de Jacques Elliot, que é um dos seguidoresdela. Há um artigo dele de 1936 (data aproximada) que é muitointeressante a esse respeito, no qual ele trabalha essa aproximaçãoda linguagem ao bebê. Jacques Elliot e não Elliot Jacques. Oprimeiro é um dos fundadores da Tavistock Clinic, um analista quetambém trata as relações da psicanálise com o discurso social deum modo surpreendente. Se puderem leiam e verão que muitascoisas que se dizem hoje em dia a respeito da psicanálise emextensão ele já dizia em 1930. E foi esquecido.

A questão é que Melanie Klein tem esse mesmoinconveniente, com outras versões lingüisticas e outro imaginário.O imaginário de Melanie Klein é o imaginário da origem do objeto,da origem da representação baseada na clivagem do objeto. Aorigem da representação estaria na divisão instintiva ou pulsional.Entretanto, para Françoise Dolto a origem da representação estarianos cortes das castrações sucessivas que são articuladas de acordocom certas variáveis culturais e sociais do discurso.

A pergunta é: quem é que estaria em condições, do pontode vista de sua formação inconsciente, de colocar em jogo afantasia na posição materna necessária? Posição maternanecessária quer dizer: em referência a uma posição paterna no

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imaginário, de um modo tal que o signo lingüístico chegasse àcriança sob uma forma tal que a criança pudesse participar dessarede lingüística na qual ela é inserida.

Do lado do analista, o obstáculo que aparece é que a quedade sua subjetividade – e como a afirmação de um analista nãoestá por conta da sua fantasia, mas da fantasia que o discursoanalítico introduz na sua filiação – implica uma queda do imaginário,uma queda do sentido. Do outro lado, a intervenção de umfonoaudiólogo, de um terapeuta qualquer que não tenha passadopela análise pessoal – não estou falando de formação analíticamas de análise pessoal – ele vai introduzir a criança a um imaginárioque é divorciado do imaginário da família na qual ela encontra aidentificação que a represente. Porque, ou bem a refere ao discursotécnico, em que há uma variabilidade de versão paterna (père-version) que esse terapeuta coloca em jogo, ou a uma intuiçãopessoal do que pode estar faltando nessa criança no terreno dainscrição. Essa versão pessoal é divorciada das formas derepresentação que a criança tem nessa família.

Célia Klouri – Ou seja, não leva em conta o lugar que acriança ocupa no discurso dos pais.

Alfredo Jerusalinsky – Sim. Com o qual corre o perigo dedescentrar, ou seja, de quebrar a articulação do Nome-do-Pai.

Angela Vorcaro – E entrar num desejo anônimo.

Alfredo Jerusalinsky – Exatamente.

Angela Vorcaro – Lembro de uma situação discutida essesdias, quando o aluno falava:

– Bom, a criança pega a lata de biscoito, põe um panodentro e fica tchec,tchec,tchec, simulando uma máquina de lavarroupas. Como eu posso interpretar isso?

Aí eu disse:

– Você não tem que interpretar isso, você tem que ir lábrincar de máquina de lavar roupa e introduzir um jogo, um outro

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elemento, introduzir um outro significante nesse jogo de lavar aroupa, para permitir um desdobramento, pois aí não há umsignificante suficiente para fazer disso uma linguagem. Ou seja,você tem de fazer um jogo que inclua o jogo da criança. Como dizJean Bergès “sem o real da criança, que de alguma maneirasublinhe que a interpretação tem um sentido, nada acontece”. Vocênão pode interpretar qualquer coisa. É preciso estender esse jogode acordo com o jogo que a criança está fazendo.

Alfredo Jerusalinsky – Claro!

Angela Vorcaro – Mas a questão que fica é: na posição emque o analista fica aí, ele faz funcionar a linguagem, mas de ummodo anônimo tal como na medicina, quando filia a criança a umasíndrome. A criança perde o nome próprio para ter o nome dasíndrome. No caso do analista, talvez a gente possa fazer funcionara linguagem, mas a referência tem que estar muito ligada ao jogoda criança para a gente não perder exatamente a posição dela.Talvez em seu jogo, essa posição compareça mais do que emqualquer interpretação. Então, a função seria fazer vigorar alinguagem e talvez assim se consiga preservar o Nome-do-Pai.

Aqui temos então outra questão: será que o fonoaudiólogo,ao introduzir o seu imaginário, ele também não permite uma quebranecessária para constituir um sujeito?

Alfredo Jerusalinsky – O problema é o seguinte:

Nós temos o signo. Do traço para o signo há uma operaçãode transformação. Para que um toque, que é um traço, seja signo,ele precisa adquirir um valor representacional desse toque. Ouseja, esse toque tem que ser representação de outra coisa. Isso éum signo. Agora, de que coisa esse traço será representação paraadquirir o valor de signo? Porque, que se transforme um traço emsigno, não garante que ele entre na dimensão da linguagem . Essesigno pode ou não ser lingüístico. Pode se transformar, como nósvimos, em imago ou em significante.

Angela Vorcaro – Mesmo que se sirva de significante, masque numa outra função que não da linguagem.

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Alfredo Jerusalinsky – Exatamente. Agora que esse traçose transforme em signo por uma operação produzida por umaconcepção, um conceito patológico, faz com que esse signo adquiramuito mais o valor de imago, como signo patognomônico.Patognomônico quer dizer como nome de uma doença. Então,quem está do lado da terapêutica vai tender a tomar o traço econstituí-lo em signo patognomônico, com o qual vai se constituiruma imago designativa desse sujeito. Ou seja, ele vai se subjetivarmuito mais do lado da imago patognomônica do que do lado dapolivalência semântica do significante no campo da linguagem,isto é, a partir de uma pére-version. A père-version se situa muitomais do lado do discurso, e não da terapêutica, que é atransformação desse traço em signo, e dele para um valorsignificante, colocando-o na série da linguagem.

Então, que terapêutica é essa que desconhece esse ângulo?Porque aqui a fantasia – vamos escrevê-la assim (Ph) – é uma, eaqui é outra (ph)2

.

TERAPÊUTICA DISCURSOconceito patológico pére-version

TRAÇO

signo patognomônico linguagemImago Significante

Grande Outro( )ϕ

numa única versão

negatividade da interdição positividade dacadeia significante cadeia significante

Isso sim que sim isso sim que nãoforma da negação

( )Φ

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Eu escreveria aqui fantasia com maiúscula, porque desselado ele incluiria a função do Outro na posição de uma père-version. Desse outro lado, ele foracluiria, para a criança, a funçãodo Outro, colocando o Outro numa única versão, que é a versãotécnica. Por que digo que foracluiria? Bem, porque a foraclusão,no meu modo de entendê-la, ela se aplica sobre um significante, edependendo desse significante, vai ter conseqüências diversas.Todos temos significantes foracluídos, ou seja, significantes quecolocados em jogo nos enlouquecem, sobre os quais não temosversão se não passagem ao ato, do qual nos defendemos atravésdo acting-out, isto é, de uma forma suavizada. É um esforçoenorme que fazemos para resistir ao ato na sua substituição comacting-out. Porém, devemos admitir que o acting-out é contrárioao desejo do sujeito.

A operação que chamamos de castração, ou seja, deintrodução de uma interdição, é o que permite essa interdição. É afunção de positividade de toda a extensão da cadeia significante:isso sim que não. Todo o outro pode ser sim. A mãe não, todas asoutras mulheres podem ser sim. Há algo interditado e todo o outropode ser sim.

Sandra Pavone – O que você está tentando nos dizer éque qualquer objeto pode cumprir essa função isso sim que não?Então, qual a relação disso com a foraclusão?

Alfredo Jerusalinsky – A foraclusão é ao contrário: issosim que sim. Ela estende uma negatividade de toda a cadeiasignificante. Se isso sim que sim todo o outro é não, não importa,não tem valor. Então, qualquer uma coisa que eu fizer a não seressa, isto é, tudo que não responde ao signo patognômonico é“fora de”.

Angela Vorcaro – É ilegível.

Alfredo Jerusalinsky – Exatamente. É legível somente emtermos desse signo patognomônico. “Este é assim porque é Down”,ou ainda, “Este é assim porque é paralítico cerebral”. Tudo o quefaz está em função desse signo patognomônico. Ele fala assim,

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faz assim, pensa assim, gosta disso porque ele é louco, ou porqueele é paralítico. Como se isso fosse uma explicação.

Sandra Pavone – Toda a significação fica resumida a essesigno.

Alfredo Jerusalinsky – Exatamente. Toda a extensão dacadeia significante entra numa posição de negatividade. Ele nãopode se firmar em qualquer significante se representando nele. Aúnica representação que dele há é aquela que está no campo dessainterdição que é foraclusiva. Então, a forma da interdição é decisiva,ou seja, a forma da negação que se introduz é decisiva.

Yone Rafaelli – É a partir do signo que tudo o que o sujeitofaz é interpretado.

Alfredo Jerusalinsky – Esse é o problema de viver comosurdo, por exemplo. Por que alguém que é surdo tem que vivercomo surdo? Ou viver como cego. Por exemplo, o fotógrafo EgvenBavcar, que é cego. Eu fui ver a exposição dele. É fantástica! Elevê coisas que a gente não vê. Ele vê muito mais do que nós. Éalgo inacreditável. Ele ficou cego com onze ou doze anos e fazfotografias com alguém que o ajuda. Ele diz o que é que tem quese ver na fotografia. Ou seja, ele está vendo, sem ver materialmentequal é a imagem que ele vai fotografar e a constrói: qual é o ângulo,qual é a luz, qual é a posição. Uma fotografia fantástica! Nunca vifotografias melhores artisticamente. São arrepiantes. Ele é umcara que diz “Eu não vivo como cego. Por que teria que vivercomo cego? Está bem, eu sou cego, mas...não é o único que eusou.”

Isso é o que justamente está na contra cara da foraclusão.

O que principalmente enlouquece um adolescente com umapatologia constitucional é que ele vem a tropeçar com essapatognomonia do signo lingüístico ao qual ele fica identificado.Então, tudo o que ele faz acaba caindo no mesmo funil. Então,como ele pode escapar dessa versão única do Outro? A funçãofundamental do adolescente é escapar à versão paterna única.

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Isso é a passagem à vida adulta, ou seja, poder ter outro pai quenão aquele que a gente teve; não ter sempre o mesmo.

Ontem supervisionamos o caso de um rapaz de 28 anos,filho de uma família de advogados fracassados. Não sem dinheiro,porque do ponto de vista econômico são de grande sucesso, masporque em lugar de advogar tinham se transformado em donos decartórios. Cartório dá muita grana. Então, com 28 anos já formadoadvogado ele estava vacilando, entre ser de cartório – ou seja,advogado fracassado – ou advogado, e então entrar na repetiçãoda filiação da versão paterna única. A isto ele dizia “Eu não suportofazer isso, mas eu não tenho condições de ser outra coisa.”

Marli Vianna – Era a única maneira de se fazer filho.

Alfredo Jerusalinsky – Claro! Havia ali um imperativopaterno de não sobrepassar o pai. Em outras palavras, o pai nãosuportaria que seu fracasso fosse colocado em evidência se suadescendência o superasse. São três filhos, os três advogados. Émais que uma casualidade! Sendo que esse pai era filho de umadvogado de grande sucesso na advocacia. Como ele fracassou,impôs a seus filhos a imago do fracasso.

O problema com que tropeça o fonoaudiólogo é que eleestá referido a uma certa patognomonia diagnóstica da identificaçãodo seu paciente. Então, em nome de que ele vai operar? Em nomedessa patognomonia ou em nome do discurso?

Sandra Pavone – Ainda que ele não esteja nessa posiçãoe que opere em referência a uma extensão discursiva, essediscurso pode estar desamarrado desse laço com o discurso dospais, e pode ser que o efeito não seja a constituição do sujeito.Ainda que ele trabalhe com uma extensão significante, pode serque fique muito distante da cadeia discursiva na qual essa criançapossa estar referida a uma filiação, o que também é umcomplicador.

Alfredo Jerusalinsky – Sim. Mas ainda um pouquinho maissobre a pergunta que você formulou sobre qual é a diferença entre

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um analista e um fonoaudiólogo. Essa pergunta – não me refiro avocê pessoalmente – é uma pergunta perversa. E não no sentidoda père-version. É induzida em nós essa pergunta pelo interessecorporativo, e não pela natureza do problema que temos pela frente.Poderíamos dizer num primeiro momento “E que importância tema diferença?”

O que eu tenho que definir não é o que eu vou definir comopatologia ou como intervenção clínica em função do dispositivoque eu inventei, senão que eu tenho que fazer variar o meudispositivo em função da natureza mesma do sofrimento que estáem curso. Caso contrário, eu estaria operando igual aos laboratóriosque inventam a doença de acordo com o remédio que elesinventaram. É a mesma perversão.

É então uma pergunta perversa introduzida pela prevalênciacientificista dessa tecnocracia que nos governa e que prevaleceno discurso social enuviando a verdade.

Sandra Pavone – Acabo de recordar de uma mãe queintroduziu essa questão no tratamento “Qual é a diferença entretrazer meu filho aqui e levá-lo à fono?” O que me parecia era queessa questão encobria o que ela não podia dizer ainda, ou seja, “Oque o traz aqui?”.

Alfredo Jerusalinsky – A essa mãe deveremos responder:“E o que interessa isso? Interessa que seu filho se recupere? Entãovamos trabalhar esse problema”. E se ela pergunta: “E quem vaitrabalhar, a fono ou a psicanalista?”. Respondemos: “Aquela queesteja em condições de trabalhar esse problema”. A prática clínicanão é acadêmica.

Célia Klouri – A questão estaria colocada assim: “Comquem está a verdade?”

Alfredo Jerusalinsky – É por isso que em minha práticaclínica me importo muito pouco com o título acadêmico que umsujeito tem e muito com a inclinação clínica. Sabemos que estácheio de títulos acadêmicos habilitantes que, na verdade, não

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habilitam para coisa nenhuma. As pessoas ficam convencidas poresse discurso acadêmico corporativo. Qualquer um, de qualquerformação acadêmica pode estar de um lado ou de outro: daterapêutica ou do discurso.

Angela Vorcaro – Ali onde você colocou signo poderíamoscolocar significante mestre ou uma constelação?

Alfredo Jerusalinsky – Parece-me excessivo consideraresse estatuto do signo com valor de significante ainda que fossesignificante mestre. É ali que justamente se opera a razão damestria e, então, se os significantes vão pender mais para o ladoda imago ou os significantes vão pender mais para o lado dodiscurso. Não gosto muito da idéia de considerá-lo nesse nível dascoisas, como um significante mestre. Evidentemente aqui se operaalgo da ordem de uma mestria, seja de um lado ou de outro.

Sandra Pavone – Se o signo vai pela via do discurso, esseque agora é um significante, poderíamos dizer no só-depois (après-coup) que ali operou algo da ordem do significante mestre?

Alfredo Jerusalinsky – Sim , exatamente, no só-depois(après-coup) poderíamos considerá-lo.

Notas

1 Seminário proferido na DERDIC PUC-SP em 22-10-01Transcrição e Revisão Sandra Pavone

2 Reservamos PH – com maiúscula – para referir à fantasiafundamental Φ. E ph – com minúscula – para referir àextensão imaginária da fantasia ϕ.

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Sobre o Autor

Psicanalista, membro da APPOA, da AssociationLacanienne Internationale. É diretor do Centro Lídia Coriat,autor dos livros: Psicanálise do autismo (Artes Médicas),Psicanálise e desenvolvimento infantil (Artes e Ofícios) eSeminários I e II (USP-Lugar de Vida).