a crise da ditadura militar e o processo de abertura política
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A presente resenha do texto de Francisco Carlos Teixeira da Silva, fornece um panorama das questões presentes entorno do processo de abertura política no Brasil entre 1974-1985, colocando e dimensionando os interesses e ações dos diversos atores político-sociais que interagiam ao longo desse processo nada linear de distensão do regime militar brasileiro.TRANSCRIPT
DITADURAS E ABERTURAS POLÍTICAS
Objetivo do texto do autor se imbrica a um objetivo político de luta contra
o esquecimento da história do tempo presente: a história dos processos de
redemocratização. Ele se posiciona claramente contra o esquecimento pregado
por aqueles que foram responsáveis pela implantação e manutenção da
ditadura e também por aqueles que conduziram a transição para a democracia.
Com isso ele afirma a importância de se preservar a memória da crise das
ditaduras e do tempo presente: verificando “o lugar da violência e do arbítrio na
história recente”, indo além dos interesses políticos imediatos daqueles que
articularam a abertura política; assegurando a multiplicidade dos lugares da
fala e dos atores político-sociais envolvidos na trama do período dos anos de
chumbo; assegurando também a legitimidade deste objeto histórico (processo
de redemocratização), e junto a isso, engajarmo-nos na luta por preservar
acervos documentais, depoimentos, arquivos e lugares de memória, estes que
são alvos de serem destruídos por aqueles que os acham um inconveniente,
tanto por militares (aqueles atuantes nos governos militares) como por aqueles
políticos que pregam o esquecimento do passado recente.
Francisco Carlos Teixeira da Silva, em seu texto, ressalta que os anos
60 e 70 (parte dele) foram marcados pela implantação de ditaduras militares na
América-Latina, incluindo o Brasil, e que nos anos 80 ocorreram os processos
de crise das ditaduras, os processos de abertura e redemocratização nesses
países. Com relação ao Brasil, o autor ainda ressalta que mesmo este estando
inserido em uma conjuntura mais ampla de processos de transição democrática
pela América Latina, o país também guarda suas especificidades no seu processo de redemocratização.
O autor coloca que é necessário “reviver as condições que permitiram a
implantação das ditaduras, bem como a natureza e o alcance da sua obra
política e econômica”, para que então se possa analisar o processo de crise, os
atores envolvidos e os condicionantes principais desse processo.
A CRISE DAS DITADURAS
Silva traça brevemente as condições que levaram a implantação das
ditaduras na América Latina, incluindo aqui o Brasil. Ele ainda faz questão de
distinguir as ditaduras caudilhescas do século XIX e as ditaduras militares da
segunda metade do século XX, dizendo que não há uma continuidade secular
entre esses dois momentos, onde cada um deles tem características próprias.
Assim, o contexto da sociedade do século XIX em nada se relaciona com o
contexto das ditaduras no pós-guerra, momento de um acelerado processo de
modernização.
Sobre o período pós-segunda guerra, o autor menciona o
condicionamento do contexto internacional da Guerra Fria como um importante
elemento para os golpes de Estado e as ditaduras que se instalaram. No
ocidente o clima de anticomunismo será um fator muito forte para a ação de
tomada do poder pela direita civil-militar.
O autor coloca ainda que, os militares representavam para o
empresariado moderno um meio para estabelecer e desenvolver com
segurança seus projetos econômicos, o que explica o apoio destes aos golpes
de Estado.
Silva destaca o papel da Escola Superior de Guerra (ESG) na
construção da ideologia (trata-se da Ideologia de Segurança Nacional, que se
manifestava tanto nos meios militares [parte deles] como em uma parcela da
sociedade civil) de um regime militar salvacionista que colocaria a ordem e
regeneraria a nação, e que atuou quando do golpe de 1964 e a implantação da
ditadura.
A ESG formulou, ainda, uma ideia de Estado forte (autoritário) de viés
desenvolvimentista, autonomista e nacionalista (um nacionalismo à direita
nesse caso), ideia essa que gerava tensão nos interior dos círculos militares,
visto que estes eram heterogêneos. Essa heterogeneidade e as tensões dela
decorrentes se mostrarão ao longo do processo de abertura.
Os países latino-americanos ao final da década de 1970 e nos anos
1980 passaram por transformações importantes, principalmente (mas não
apenas por isso) depois da ascensão de Jimmy Carter à presidência dos
Estados Unidos. Essas transformações consistiam em: “crítica ao predomínio
de um partido oficial (...); recuo do controle do Estado sobre a economia;
estabelecimento da liberdade de expressão e de organização e denúncia da
atuação de polícias políticas responsáveis pela repressão das dissidências”.
Com Jimmy Carter à frente da presidência dos Estados Unidos (1976) e
sua ação política em favor dos direitos humanos, a oposição às ditaduras dos
países do continente vão ganhar maior espaço de atuação na luta pela volta à
democracia.
No Brasil, coloca o autor, o processo de luta pela redemocratização do
país e a crise da ditadura iniciou-se já em 1974, por meio de dois pontos de
ação distintos: de um lado o Projeto Geisel-Golbery (militares “moderados”)
visando inserir o Brasil num Estado de Direito, de outro a atuação mais
fervorosa do MDB (único partido de oposição ao regime) na esfera institucional
após a vitória eleitoral do partido em 1974 no Congresso, aumentando
consideravelmente sua bancada e sua influência política.
O autor enfatiza a existência de atores internos e externos que foram
fundamentais, mas não únicos, para o processo de abertura política do Brasil.
Os internos: projeto de abertura de Geisel/Golbery (militares "moderados"); e
oposição civil junto ao MDB. Os atores externos: pressão do governo Carter e
sua defesa pelo Estado de Direito e dos direitos humanos, se colocando contra
as ditaduras; e ainda os condicionantes da economia mundial (crise econômica
que afeta o Brasil). São esses os principais atores, e em suas relações uns
com os outros que irão condicionar a forma, os objetivos e o ritmo da abertura
e transição da ditadura a um Estado de Direito.
O ATOR EXTERNO E SEUS CONDICIONANTES
Nas palavras do autor, “o conjunto de ditaduras militares no continente
seria fortemente abalado quando da mudança da política externa americana no
pós-Guerra do Vietnã”. Após a derrota dos Estados Unidos na guerra do
Vietnã, com a divisão da sociedade americana e o escândalo de Watergate, o
país perdeu sua credibilidade no cenário internacional. Diante dessa perda de
credibilidade surge um nome à presidência dos Estados Unidos: Jimmy Carter.
A campanha eleitoral de Carter apontava para dois objetivos a serem
atingidos: “recuperação do prestígio mundial americano, com sua nítida
associação entre política externa americana e direitos humanos; criar
condições suficientes para retornar ao enfrentamento com a União Soviética,
de forma a projetar eficazmente a hegemonia global americana” dentro do
contexto da Guerra Fria. Tais objetivos podem ser sintetizados em poucas
palavras: recuperar a credibilidade dos Estados Unidos como nação modelo de
valores éticos e morais.
Com isso, a crítica ao desrespeito aos direitos humanos e à liberdade de
expressão (ações essas promovidas pelas ditaduras que os próprios
governantes estadunidenses anteriores apoiaram) serviu como um meio de
recuperar seu prestígio no cenário internacional, e influenciar a crise das
ditaduras militares na América-Latina, incluindo o Brasil.
Embora encoberto por outras questões de interesse dos Estados
Unidos, o governo Carter se posiciona criticamente contra as violações dos
direitos humanos que ocorriam no Brasil, atacando assim o governo Geisel.
Geisel com seu nacionalismo militar enfrenta os Estados Unidos, o que levou o
governo Carter a apoiar o partido de oposição ao governo militar, o MDB.
Essa mudança de postura dos Estados Unidos na gestão Carter, porém,
não explica, isoladamente, o processo de abertura política na América-Latina,
além de não ser o único ator externo.
Outro condicionante externo importante para o entendimento dos
processos de abertura será a crise e recessão econômica mundial. A crise do
petróleo de 1973 trouxe consequências para a economia brasileira (embora
esta não tenha se dado de forma imediata). Mas, o autor coloca, que a crise
econômica do Brasil só sairá do controle quando somado os impactos da crise
do petróleo de 1973 (que apesar de não ter efeitos imediatos, acabou por
sangrar a economia brasileira com sua continuidade em meados dos anos
1970) com a crise dos juros externos de 1982.
Com relação à crise do petróleo e sua influência sobre o Brasil, nas
palavras do autor: “embora o choque dos preços do petróleo tenha sido
importante, em 1973, a abundância de capitais existentes no mercado
internacional permitiu uma certa navegação sem turbulências por pelo menos
um ano, entre 1973 e 1974 – exatamente na passagem do governo Médici para
o governo Geisel -, o que nos faz crer que a crise petrolífera não desempenha
um papel fundamental nas origens da crise política da dominação militar no
país”.
Em 1973 encerra-se o chamado "milagre econômico" (1969-1973,
governo Médici), ano em que também ocorre a crise do petróleo, mas o autor
deixa claro que a abertura política iniciada em 1974 não foi facilitada por conta
dessa crise, mas foi facilitada justamente por conta de o país estar
economicamente estável em 1974 (por enquanto). Ou seja, a crise do petróleo
não foi fator determinante para que se fizesse a abertura política no país, já
que a situação econômica do país ia razoavelmente bem por conta do "milagre
econômico" (este que gerou grandes prejuízos financeiros em longo prazo).
Como já foi destacado, o impacto da crise do petróleo vai ser sentida
posteriormente, somando-se ai a crise dos juros externos em 1982, esta ultima
que, de acordo com o ministro Delfim Netto, atingiu mais profundamente o país
do que a crise do petróleo em 1973.
O autor destaca que a dívida externa brasileira elevada e o aumento dos
juros americanos foram bastante impactantes na economia brasileira, assim
chegando a uma devastadora crise e recessão.
Em 1982 o Brasil se encontra incapaz de pagar suas dividas tamanha a
crise econômica no país. Assim todo um ciclo de crescimento econômico se
esgotara, e a crise do "milagre brasileiro", que foi baseado no arrocho salarial,
repressão sindical e política, coloca em cheque a credibilidade dos militares na
direção do país.
Com isso vemos que a abertura política no Brasil não é condicionada
pela crise econômica, já que durante a troca do governo Médici (linha dura)
para Geisel (“moderado”), (este último lançando o projeto Geisel-Golbery de
abertura política), a situação do país esta relativamente estável, tendendo a
facilitar a transição.
Nas palavras do autor: “não é a crise que condiciona a abertura: ao
contrário, foi a eficiência econômica do governo Médici que favoreceu a
sucessão Geisel-Golbery e , portanto, o projeto de abertura do regime.
Assim, a crise econômica, portanto, não foi o motivo pelo qual se propôs
a abertura política no projeto Geisel/Golbery em 1974, mas sem dúvida tal crise
condicionou o ritmo da abertura, “levando a opinião pública a voltar-se em sua
maioria contra o regime militar”.
O ESTADO E A OPOSIÇÃO: OS ATORES INTERNOS
Silva coloca que os dois principais atores internos que influenciaram o
processo de abertura política no Brasil foram, de um lado, o grupo militar
favorável ao projeto Geisel-Golbery (militares “moderados”), “herdeiros da linha
política denominada castelista e interessados numa imediata
reconstitucionalização do regime militar”, e, do outro lado, as forças políticas do
MDB (Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Fernando Henrique Cardoso, etc),
amparadas por “uma sociedade civil extremamente organizada, com os
sindicatos, a Igreja, a imprensa, os artistas e a universidade desempenhando
um ativo papel de crítica ao regime e, mesmo, ao seu projeto de abertura
política”.
Embora a influência da sociedade civil junto ao MDB seja clara no
processo de abertura política, os militares tendem a negar a influência desses
nesse processo. Os militares sustentam a tese “de que a abertura foi um
projeto do poder – o esquema Geisel – conduzindo conforme seus
formuladores e sem alterações de rumo”. Assim, assumem uma postura
conservadora, que recusa considerar o exercício da cidadania de outros atores
no processo de abertura. Com isso estes se veem como os únicos
responsáveis pelo processo de transição para a democracia no Brasil, postura
essa que exclui outros atores políticos desse processo.
Esses atores, o grupo Geisel-Golbery e o MDB, este apoiado na
sociedade civil, e até mesmo a Arena/PDS, tiveram que dividir seus espaços de
atuação ao longo do processo de abertura, além de “ampliar o elenco de
participantes e negociadores, a ponto de, no seu auge – durante a campanha
das Diretas Já – incorporar toda a rua, ocupada por cidadãos exigindo
democracia, ao processo de negociação política”.
A ABERTURA COMO PROCESSO POLÍTICO: ABERTURA OU ABERTURAS?
Silva nos coloca que: “Nas sucessões de Castelo Branco, em 1967, e de
Médici, entre 1973 e 1974, esboçaram-se propostas de abertura política que
foram rapidamente descartadas. Tais insucessos condicionaram fortemente o
projeto que afinal seria adotado por Geisel e Golbery, com seu caráter lento,
gradual e seguro, visando a evitar os recuos antes vividos”.
Após um período inicial de aceitação, a ditadura militar viu crescer uma
forte oposição sobre si. Uma parcela das classes médias, que apoiou o golpe
civil-militar em 1964, começou a afastar-se do governo “quando este mostra
sua verdadeira face, com amplas cassações e a profunda repressão aos
sindicatos e demais órgãos de representação trabalhista”.
Os órgãos da ditadura (como o SNI) não conseguiram melhorar a
imagem do governo, tornando a “ditadura desacreditada, causando especial
mal estar a dureza da política econômica”. Ao mesmo tempo, a oposição
atuava constantemente através de estudantes, lideres trabalhistas e
intelectuais, que ocuparam as ruas entre 1966 e 1968, desgastando a imagem
do regime militar, acentuando sua crise. Artistas também atuaram através de
uma cultura de resistência contra o regime.
Nesse contexto de constante ação da oposição, em diversos campos de
atuação contra o regime, ocorre a derrota da linha defensora do retorno aos
quartéis (estes que pretendiam uma intervenção cirúrgica contra a subversão e
o comunismo [militares da linha castelista]) pela chamada linha dura dos
militares. Embora já atuasse antes como um grupo de pressão dentro da
instituição militar, a linha dura dos militares produziram o chamado golpe dentro
do golpe em 1968, ação essa que mais tarde (final de 1968) acabou
culminando com o decreto do Ato Institucional n° 5 (decreto que ampliou o
aparato repressor da ditadura).
Assim, diz o autor, “a complexidade da vida política nacional” e “a busca
de um novo modelo político” acabou por gerar uma série de dificuldades que
inviabilizou uma abertura sob o governo Castelo Branco e seus seguidores
“moderados” ou castelistas.
As condições de abertura na sucessão do governo Médici serão
apresentados no tópico seguinte.
EUFORIA ECONÔMICA, REPRESSÃO E ABERTURA POLÍTICA
Quando do golpe dentro do golpe (1968) uma Junta Militar assume
durante um curto período de tempo o governo do país, tendo como sucessor o
general Emílio Garrastazu Médici (figura considerada uma ponte entre a linha
dura e os castelistas).
Sob a vigência do AI5, Médici terá uma enorme concentração de
poderes para si, e com isso iniciará um grande projeto econômico, que
posteriormente será denominado pelos seus simpatizantes de “milagre
econômico”.
Nas palavras do autor, “restauradas as condições de crescimento
econômico e as linhas de financiamento internacionais, tranquilizadas pela
consolidação do poder militar e o controle das forças sindicais no país, inicia-se
um amplo projeto de desenvolvimento nacional - a verdadeira doutrina da ESG
-, voltado para a construção do Brasil Grande”. Projeto esse que se estende até
o governo Geisel.
Tal projeto atuava por meio da política de concentração de renda, “a
teoria do bolo (segundo a qual é preciso fazer o bolo crescer para depois dividi-
lo), o arrocho salarial e sindical”. Isso somado a continuidade do fechamento
político acabaram por acelerar a reação política da oposição ao regime,
aprofundando as ações de guerrilha urbana e rural. As ações da oposição, no
dizer do militares, impediram um segundo projeto de abertura no governo
Médici, que se encontrava em alta pelo sucesso econômico do “Milagre
Brasileiro”, e que possibilitaria a transição para um regime democrático.
Esse pretenso projeto de abertura dos militares tem um caráter limitado,
que visa uma condução pelo alto (Estado), excluindo assim as forças de
oposição, que através de suas ações críticas ao regime buscavam seu próprio
projeto de abertura com um viés mais democrático.
Com a atuação das oposições ao regime, o governo usa de seu aparato
repressor para praticar sequestros, torturas e assassinatos contra aqueles
considerados “subversivos” (criação e atuação dos DOI-Codis, tendo como
modelo a Operação Oban). Junto a isso, tem-se a intervenção sindical, o
arrocho salarial (meio pelo qual se geriu o chamado Milagre Brasileiro),
perseguição política à oposição emedebista (com cassação de mandatos,
prisões e desaparecimento de parlamentares), e censura prévia aos órgãos de
imprensa. Para encobrir essas ações há uma importante atuação dos meios de
comunicação (sob controle do governo) que visam criar a imagem de um Brasil
Grande.
A ABERTURA LENTA, GRADUAL E SEGURA
Silva coloca que em torno da sucessão de Médici, em 1973, ocorrera o
primeiro ato de enfrentamento da oposição ao projeto oficial de abertura
política. A oposição, desacreditada de uma democratização via derrubada do
regime e com a crise das ações de guerrilha, resolve apostar no espaço
político, ainda que restrito, para buscar através das ações parlamentares a
transição para a democracia.
Os militares, por sua vez, contando “com amplo controle sobre o pais em
termos de segurança interna” e “com índices de crescimento (econômico)
acima de 10% - que a crise do petróleo logo tragaria – Médici e a cúpula militar
sentiam-se suficientemente fortes para operar a transição para um regime
constitucional”.
Orlando Geisel (irmão de Ernesto Geisel) e Golbery foram os
responsáveis pela construção da ponte entre a linha dura e os castelistas para
empreender a constitucionalização do regime. A pessoa que julgaram ser a
mais apta para a sucessão e realização da abertura política foi o general
Ernesto Geisel.
Geisel e Golbery deveriam, entre 1974 e 1979, organizar a
constitucionalização do regime, que deveria atuar de forma lenta, gradual e
segura, no dizer dos militares. O projeto visava a volta dos militares aos
quartéis enquanto esses ainda tinham algum prestígio perante a sociedade civil
(parcela dela ao menos).
Segundo os militares do Projeto Geisel-Golbery, a abertura deveria ser
lenta para evitar um confronto com a linha-dura dos militares. Assim ela deveria
ser gradual, aos poucos. Além disso, deveria ser segura para impedir a volta a
um regime de exceção.
Tal projeto visava, então, evitar tanto o retorno da linha-dura como a
volta das pessoas, partidos e instituições anteriores a 1964. Deveria ocorrer
num longo espaço de tempo (caráter lento), garantir a escolha do sucessor (à
presidência) de forma segura e formular uma nova constituição (ironicamente
sem uma assembleia constituinte) que asseguraria para o futuro uma ordem,
visando romper com o recurso de quebra de constitucionalidade.
Na verdade, enfatiza o autor, o projeto de abertura dos militares
representava o retorno ao Estado de Direito, a reconstitucionalização do
regime, mas não propriamente a redemocratização do país. O projeto era uma
transição pela ação única do Estado, sem envolvimento da oposição e
sociedade civil. Esses dois últimos eram críticos ao modelo do projeto de
abertura dos militares, estando muito distante do que a oposição desejava.
Assim os militares do projeto viam a oposição como um “estorvo aos seus
objetivos” o que os levou a manobrar gradualmente entre os militares radicais
(contrários à abertura do regime) e a oposição (desejosa de uma abertura
acelerada e mais ampla).
A eleição de Geisel (via Colégio Eleitoral), “com a clara promessa de
liberalização, desencadeou o primeiro ato da nova oposição no Brasil”, que
através da anticandidatura de Ulysses Guimarães (MDB) abriu espaço para o
“debate e manifestações de descontentamento público”, ainda que “num
contexto de severa censura aos meios de comunicação”. Geisel venceu,
“confirmando a supremacia da Arena” sobre o MDB, mas isso não duraria
muito tempo.
Pensando estar com boa aceitação pela opinião pública, “a ditadura
realiza eleições para o Parlamento em 1974”. O governo se surpreende com a
estrondosa vitória da oposição, “com a eleição de 16 senadores e 187
deputados do MDB”.
A vitória do MDB nas eleições demonstra a insatisfação da população
para com o regime. Além disso, o fato desencadeou uma divisão no poder
militar, abalando o projeto original de abertura. Assim, a vitória do MDB trouxe
à tona a rearticulação do aparelho repressivo da linha-dura dos militares,
aumentando os atos de violência (como o caso do assassinato do jornalista
Vladimir Herzog, entre outros).
A DINÂMICA PRÓPRIA DO PROCESSO DE ABERTURA
Os militares favoráveis à abertura pensavam (e pensam) que esta
esteve somente sobre o controle militar, e que a oposição e a sociedade civil
em nada contribuíram para esse processo. Pelo contrário, eles teriam
atrapalhado, segundo os militares. Silva coloca: “o projeto Geisel-Golbery
supunha, para seu completo êxito, a subordinação completa da sociedade civil
aos objetivos e prazos estabelecidos pelo poder”.
Geisel afirmou haver grupos contrários à abertura, e que, portanto, era
preciso manter o projeto com seu caráter lento, gradual e seguro de forma a
evitar conflitos com os militares da linha-dura. Assim, esse último grupo que
condicionaria o ritmo da abertura. Para tal, oposição e sociedade civil deveriam
conformar-se com o ritmo proposto pelos próprios militares, sem propor um
projeto próprio de redemocratização.
A já ressaltada vitória do MDB nas eleições parlamentares fez com que
a chamada “comunidade de informações” do regime intensificasse o combate
contra o PCB (este considerado pelos mesmos como o responsável pelas
vitórias do MDB). Com isso realizaram uma ação organizada visando
contrapor-se a oposição comunista que estaria desestabilizando o projeto de
abertura.
Com as mortes geradas por meio dessas ações, a revolta da sociedade
continuou a crescer, esta que já se encontrava com desgosto do imobilismo
das reformas e da impunidade com relação aos agentes da “comunidade de
informações”. Assim, aumentava-se a oposição da população ao regime militar.
Diante de tais acontecimentos Geisel interveio, como maneira de se
reafirmar perante o militares e a sociedade, “demitindo o comandante do II
Exército, o general Ednardo d’Ávila Melo”, embora este não estivesse ligado
diretamente às ações de tortura. Os reais responsáveis nunca foram
investigados.
O afastamento do comandante não fez cessar a repressão política. Em
1976 militantes do PCdo B foram mortos em ação da polícia militar, porém
nesse caso não houve represálias. Ataques com bomba a sedes de instituições
civis de opositores do regime também passaram a fazer parte do contexto
turbulento do regime.
Além da questão da lentidão da abertura política, a população também
passa a se descontentar com a situação econômica do país (efeito da crise do
petróleo de dois anos antes, em 1973), levando o governo a buscar soluções
para o problema com a criação do II Plano Nacional de Desenvolvimento, que
possibilitaria pela última vez uma face desenvolvimentista ao país (mas que tal
medida em longo prazo será sentida negativamente do ponto de vista
econômico [junto ao social], principalmente na década de 1980).
“Visando a evitar novas vitórias da oposição”, Armando Falcão (ministro
da Justiça de Geisel) “elabora uma nova legislação eleitoral – Lei Falcão” essa
que evitaria o acesso da oposição (MDB) aos meios de comunicação, em
especial a televisão. De acordo com Silva, “enquanto a extrema direita militar,
os radicais, porém sinceros, avançam e procuram limitar ainda mais o projeto
inicial de abertura, o próprio governo se esforça para dividir e inviabilizar a vida
da oposição”.
Assim, no dizer do autor, havia um problemático impasse, “em que a
oposição, fortalecida pelas vitórias nas urnas, exige maiores concessões, e o
poder militar, pressionado na sua retaguarda pela linha-dura, procura manter o
controle do processo de abertura, bem como seus objetivos iniciais”. Esse
impasse leva a uma crise em 1977 com um “desentendimento entre o MDB e
os projetos do governo”, este último que desejava realizar alterações na
Constituição (visando seus próprios interesses). A oposição negou-se a votar
favoravelmente a tais alterações, e o resultado disso nos leva ao fechamento
do Congresso por Geisel, que edita uma série de alterações na Constituição.
Trata-se do chamado Pacote de Abril (ocorrência do ato em abril de 1977).
Quem vai realizar um enfrentamento ao projeto oficial de abertura e aos
mandos e desmandos de Geisel será o líder da oposição (MDB) Ulysses
Guimarães. Sua ação de chamar para si a responsabilidade de enfrentamento
visava evitar que outros deputados da oposição se tornassem alvo de
cassação ao enfrentarem o governo. No dizer do autor, “entre Geisel e Ulysses
desenvolver-se-ia uma intensa, profunda e insuperada inimizade”.
Ulysses “considerava sua tarefa de vida restabelecer a democracia no
país”. Porém seus posicionamentos e atitudes em relação a Geisel “acabariam
por afastá-lo de qualquer negociação possível com o poder, que se voltaria
para uma liderança considerada mais construtiva e moderada – Tancredo
Neves”.
Além de uma complicada relação com a oposição, Geisel contava com
problemas no interior da corporação e entre os membros de seu próprio
governo, que ameaçavam o seu projeto de abertura. O seu ministro do
Exército, general Sílvio Frota, visava uma “estratégia de reorganizar as forças
militares na sua periferia e desestabilizar Geisel, criando condições para sua
indicação como sucessor do presidente”. Geisel mais tarde o demitiu. Assim
uma crise institucional se instalara na corporação militar, paralisando o projeto
de abertura. Isso somado à crise financeira e econômica (que avolumava-se) e
com as denuncias de endividamento do país e das ações da comunidade de
informações (com a nova liberdade de expressão dos órgãos de impressa de
oposição ao regime), tornava delicada a situação do governo.
Em 1979, João Baptista Figueiredo sucede Geisel na presidência.
Segundo Silva, “um dos principais pontos da agenda de Figueiredo era a
anistia”, que seria um item importante para a “retomada do processo político de
abertura, cada vez mais sob o risco de ultrapassagem do governo pelo
movimento popular”. As ruas foram mobilizadas por diversos grupos da
população em torno da campanha pela Anistia. Porém, a lei da anistia se deu
por decreto do governo “sem negociação com a oposição”. A preocupação dos
militares com o dispositivo da anistia era evitar os “revanchismos”, assim os
militares envolvidos com a repressão não seriam julgados ou condenados por
praticarem tais atos em nome do governo.
Sob o governo Figueiredo surge um novo personagem no cenário
político: as lideranças sindicais. Com o cenário econômico em estado crítico
ocorrem inúmeras greves exigindo aumentos salariais, ampliando a crise que já
pairava sobre o governo.
Segundo Silva: “A anistia deveria ter devolvido ao governo a iniciativa do
processo de abertura política, retirando da oposição sua bandeira de
mobilização popular. Contudo, partirá da oposição militar, de direita, centrada
na própria corporação, o mais contundente ataque à autoridade do general
Figueiredo. Em face da ameaça de a oposição definitivamente tomar a
liderança do processo de abertura, e em face da perda dos privilégios de que
gozava sob o regime militar, a ‘comunidade de informações’ retomou seu
projeto de desestabilizar a abertura”. Com isso, “grandes espaços públicos são
alvo de atentados”, sendo o mais terrível o atentado no Riocentro (embora este
tenha falhado, sabe-se de sua organização). Em decorrência do ato, tem-se
uma grande pressão para apuração do acontecimento por parte da sociedade
civil, gerando um intenso conflito no interior do governo, este já bem
desgastado tanto do ponto de vista político-institucional como pela situação
econômica vivida pelo país.
A abertura que deveria ser realizada sob a tutela militar em todo seu
processo, com seu ritmo lento, acabou sucumbindo. Mesmo com certa primazia
do governo “numa primeira fase do processo de abertura política”, apesar da
atuação forte da oposição, “como no caso da campanha da anistia”, o projeto
iniciado por Geisel-Golbery estava órfão. É nesse momento que a atuação da
oposição (MDB) (que ampliou suas vitórias eleitorais entre 1976 e 1979) e
sociedade civil irá constituir-se “numa segunda fase do processo de abertura”,
com grandes mobilizações de massa – como na campanha das Diretas Já!, ou
as eleições de Tancredo Neves -, “com o governo perdendo a iniciativa das
reformas”.
A FASE FINAL DA ABERTURA: OPOSIÇÃO POPULAR E PARTIDOS
POLÍTICOS ASSUMEM A INICIATIVA!
Com a crise da ditadura, o movimento popular cresce e ocupa as ruas
(campanha pela anistia; Diretas Já). Os militares, que diante desse contexto
temiam saírem do poder e ir direto para julgamento e prisão, simpatizaram com
o modelo de solução pactuada, como ocorrera na Espanha. Porém, tal solução
não era tão fácil, devido os partidos de direita, inclusive o dos militares (PDS,
antiga Arena) serem frágeis “e não oferecerem garantias estáveis de
funcionamento democrático”.
O governo Figueiredo é “marcado pela inépcia econômica, com a
declaração de moratória brasileira (1983), e a continuada impunidade da
chamada ‘comunidade de informações’ (conjunto de militares engajados nos
órgãos de repressão e espionagem política), que organizava inúmeros
atentados contra personalidades e instituições da oposição”.
Por outro lado, com uma intensa mobilização popular crítica do regime,
“um milhão de pessoas exigem eleições Diretas Já!”. Conforme Silva, “a
proposta de Diretas Já! Representava um rompimento radical com a abertura
limitada e pactuada que o regime vinha implantando e levaria, através da
eleição de um presidente pelo voto direto, com uma Constituinte, a uma ruptura
constitucional extremamente desfavorável para as forças que implantaram a
ditadura militar no país”. Assim, “o regime militar não tinha nem recursos nem
projetos para a crise do seu projeto de abertura, e recolhia-se (...) ao
imobilismo, enquanto manifestações de massa ocupavam as ruas”.
O final da transição para um regime democrático-representativo passaria
a ser gerido pelos partidos políticos e a oposição popular, com a perda da
iniciativa do governo, estes agora ditariam o ritmo da abertura. A questão se
dava agora em torno da forma, dos riscos e consequências da transição.
Entre os dois modelos clássicos de transição se destacam: a transição
por colapso, com uma forte e clara ruptura com o regime autoritário vigente,
levando-se a julgamento e prisão os responsáveis pela implantação e
manutenção da ditadura; e a transição acordada ou pactuada, encaminhada de
forma, lenta, gradual e segura “para as forças até então no poder, fruto de
acordo entre setores conservadores no poder e as forças moderadas na
oposição”. No Brasil ocorrerá a segunda opção, uma transição pactuada.
No final dos anos 1970, e no início da década de 1980, já com o fim do
bipartidarismo, surgem novos partidos políticos, e os já existentes mudam de
nome. Têm-se, então, o surgimento do PT, do PDT, além da volta do PTB,
embora não mais como um partido de esquerda. Os antigos partidos Arena e
MDB, tornaram-se respectivamente o PDS e o PMDB. Além desses, em 1978,
Tancredo Neves funda o PP, reunindo a ala conservadora do ex-MDB e
setores do PDS, ex Arena, que se encontravam deslocados no partido, embora
sua existência tenha sido curta.
“É nesse momento, diante do vazio de ação, com o presidente fechado
no Planalto e sem iniciativas, que os partidos tomam a direção do processo de
abertura. Não era mais a abertura Geisel-Golbery, mas a abertura dirigida por
um colegiado de cardeais, com anos de política, de vários partidos”. Claro, com
os partidos no comando desse processo, as pressões populares também
imprimem seus interesses sobre esse.
Assim, vamos verificar as atuações dos principais partidos desse
processo e como se deu a relação entre eles.
Como já mencionado, Tancredo Neves fundou o PP em 1978. O partido
constituía, no dizer dos oposicionistas, em uma “linha auxiliar do projeto
governista” (PDS, ex-Arena). Porém, o partido foi desfeito em 1981, tendo seus
quadros aglutinados no PMDB, junção mal vista por vários setores deste
partido.
Em outra frente encontrava-se o PMDB, partido que terá importante
atuação no processo de transição pactuada para a redemocratização. A
pessoa escolhida para levar a transição seria Tancredo Neves, já que Ulysses
Guimarães se mostrara intransigente aos olhos dos militares governistas.
Assim, Tancredo representava um papel-chave na estratégia dos militares
aderentes da abertura lenta, gradual e segura.
O PDS, agora sem a tutela dos militares, toma a “iniciativa política,
diante do processo de abertura, criando uma crise” em seu interior, essa que
mais tarde levaria à emergência da chapa Tancredo-Sarney. Quando da
convecção partidária, o PDS se dividia entre aqueles favoráveis à candidatura
de Sarney, e aqueles favoráveis a Paulo Maluf à presidência da República.
Sarney representava “uma transição controlada para um regime constitucional
e representativo, de cunho conservador, ‘sem os militares’!”. Maluf
representava a aliança com a linha-dura dos militares, contrários à abertura
política. Esse último, Maluf, é o escolhido para disputar a presidência com
Tancredo Neves.
Nesse momento ocorre uma dissidência no interior do PDS. Com isso,
Aureliano Chaves, um dos dissidentes, vai aconselhar Sarney para que este
rompa com o PDS e se alie ao PMDB e a Tancredo.
Tal medida tinha por objetivo evitar que Maluf vencesse as eleições,
assim evitando que a transição acabasse por se realizar no seu modelo por
colapso, o que levaria os responsáveis pela ditadura a julgamento e prisão.
Assim, “tornava-se (...) imprescindível uma ampla negociação entre a oposição
e a base governista quanto aos termos e alcance da transição”.
A já mencionada dissidência do PDS se encontrava em difícil situação
de se manter no partido. Porém, “a solução foi habilmente negociada. Embora
permanecessem no PDS, votariam no candidato do PMDB, Tancredo Neves,
caso fosse garantida pela oposição uma transição sob controle. A garantia de
uma transição que não escapasse ao controle das elites políticas do regime
agonizante seria feita através da incorporação do próprio José Sarney como
vice-presidente, na chapa do PMDB, além da indicação de alguns dos
principais políticos do PDS para o futuro ministério (...) – era o Acordo de
Minas”.
O grupo dissidente do PDS formará a Frente Liberal, mais tarde se
retirando do PDS e fundando o Partido da Frente Liberal (PFL). “A aliança
partidária entre o PMDB de Tancredo e os dissidentes liberais do PDS”
constituíram a chamada Aliança Democrática.
Outro partido que atua em meio ao processo de transição democrática é
o recém-fundado PT. Este, segundo o autor, “fora um dos elementos centrais
da mobilização popular na campanha das Diretas Já!, sendo o responsável, em
boa medida, pela incorporação ao debate político de amplos segmentos de
trabalhadores”. O partido, que foi ferrenho apoiador da campanha das diretas e
das mobilizações de rua, se recusava a apoiar outra campanha que vigora
quase ao mesmo tempo no Congresso, aquela destinada a apoiar Tancredo
Neves nas eleições. Eles viam na candidatura de Tancredo “uma transição
conservadora e pactuada com o autoritarismo”. E suas desconfianças
aumentaram ainda mais quando da aceitação de Sarney no PMDB (sendo este
antes o ex-presidente da Arena e do PDS) e como candidato a vice na chapa
de Tancredo. Assim, “o PT não só nega a compor uma frente com as
oposições (oposições ao regime militar), como ainda acusa a frente
oposicionista de capitulação diante dos interesses conservadores”. Por
conseguinte, esse não pôde conter a ação daqueles que levaram a cabo a
transição pactuada.
A campanha das Diretas Já!, embora tenha sido um grande evento de
mobilização popular, não conseguiu atingir seu objetivo de conquistar as
eleições diretas. As eleições foram realizadas via Colégio Eleitoral, tendo o
dispositivo da Aliança Democrática (PMDB + FL) alcançado seu objetivo de
transição pactuada, conseguindo a vitória eleitoral de Tancredo e Sarney em
janeiro de 1985.
* Todas as citações do texto do autor resenhado se encontram entre aspas.
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Crise da ditadura militar e o processo de
abertura política no Brasil, 1974-1985. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO,
Lucília de Almeida Neves (orgs). O Brasil Republicano - O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, p. 243-282, 2003.