a cosmogonia de inauguração do templo de jerusalem
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Osvaldo Luiz Ribeiro
A Cosmogonia de Inaugurao do Templo de
Jerusalm
o Sitz im Leben de Gn 1,1-3 como prlogo de Gn 1,1-2,4a
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao programa de Ps-Graduao em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial
para obteno do ttulo de Doutor em Teologia Bblica
Orientador
Prof. Dr. Isidoro Mazzarolo
Rio de Janeiro Julho de 2008
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Osvalo Luiz Ribeiro
A Cosmogonia de Inaugurao do Templo de Jerusalm o Sitz im Leben de Gn 1,1-3 como prlogo de Gn 1,1-2,4a
Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre pelo Programa de Ps-graduao em Informtica da PUC-Rio. Aprovada pela Comisso Examinadora abaixo assinada.
Prof. Isidoro Mazzarolo
Orientador Departamento de Teologia PUC-Rio
Prof. Ludovico Garmus
Departamento de Teologia PUC-Rio
Prof. Leonardo Agostini Fernandes Departamento de Teologia PUC-Rio
Prof. Haroldo Reimer
Universidade Catlica de Gois
Prof. Carlos Frederico Schlaepfer Instituto Paulo VI
Prof. Paulo Fernando Carneirode Andrade Coordenador Setorialde Ps-Graduao e Pesquisa do
Centro de Teologia e Cincias Humanas PUC-Rio
Rio de Janeiro, 08 de agosto de 2008
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Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total ou parcial do trabalho sem autorizao da universidade, da autora e do
orientador.
Osvaldo Luiz Ribeiro
Graduou-se em Teologia (Seminrio Teolgico Batista do Sul do Brasil/STBSB Faculdade Batista do Rio de Janeiro/FABAT) em 1992, e cursou o Mestrado em Teologia (STBSB/FABAT) em 2002. professor de Epistemologia, Hermenutica e Exegese do Antigo Testamento na FABAT. Foi Coordenador do Curso de Ps-Graduao em Teologia do STBSB/FABAT. Pesquisa os textos da Bblia Hebraica relacionados aos sculos VI e V.
Ficha Catalogrfica
CDD:200
Ribeiro, Osvaldo Luiz A cosmogonia de inaugurao do templo de Jerusalm o Sitz im Leben de Gn 1,1-3 como prlogo de Gn 1,1-2,4a / Osvaldo Luiz Ribeiro; orientador: Isidoro Mazzarolo. 2008. 346 f. : il. ; 30 cm Tese (Doutorado em Teologia) Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. Inclui bibliografia 1. Teologia Teses. 2. Cosmogonia. 3. Criao. 4. Templo. 5. Jud. 6. Jerusalm. 7. Gn 1,1-3. 8. Gn 1,1-2,4a. 9. Fenomenologia da religio. I. Mazzarolo, Isidoro. II. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Ttulo.
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Para Izabel Cristina Castro Veloso Ribeiro Bel amantssimo amor da minha vida
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AGRADECIMENTOS
Muito, muito obrigado de corao:
ao Prof. Dr. Emanuel Bouzon, pela sua confiana, pela bondade, pela
liberalidade, pela ateno;
ao Prof. Dr. Isidoro Mazzarolo, pela disposio em orientar um trabalho j
encaminhado, pela compreenso, pela confiana
ao Prof. Dr. Haroldo Reimer, pelos aprofundamentos na caminhada com a
Bblia Hebraica, pela comunho, pela amizade
ao Prof. Ms. lcio Santana, pelo encaminhamento em direo Bblia Hebraica
Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, pela acolhida, pelo
respeito, pela igualdade de tratamento, pela oportunidade mpar
ao Seminrio Teolgico Batista do Sul do Brasil Faculdade Teolgica Batista,
pela acolhida, pelo respeito, pela reciprocidade
ao CNPq, pelo apoio seguro e estvel
famlia, Bel, Israel e Jordo,
pela compreenso dos momentos furtados,
porque, nosso lar nossa pequena cosmogonia
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Resumo
Osvaldo Luiz RIBEIRO, A Cosmogonia de Inaugurao do Templo de Jerusalm o Sitz im Leben de Gn 1,1-3 como prlogo de Gn 1,1-2,4a. Rio de Janeiro, 2008, 346 p. Tese de Doutorado, Departamento de Teologia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.
Gn 1,1-3, na condio de prlogo de Gn 1,1-2,4a, consiste numa
cosmogonia tpica da cultura semita e prximo-oriental, com modelos
abundantes nas tradies cosmognicas mesopotmicas, ugarticas e
egpcias. Enquanto cosmogonia, consiste na (trans)significao mtica,
fenomenolgico-religiosa, da construo do Templo de Jerusalm como
criao do mundo, e marco da reorganizao poltico-social de Jud,
sob o domnio persa, em 515 a.C. Criao dos cus e da terra, na
cosmogonia prximo-oriental, significa, para todos os efeitos, a
emergncia programtica da oivkoume,nh territrio particular de um
grupamento humano geopoliticamente organizado e instalado, legitimado
mtico-simpaticamente e poltico-religiosamente pela repetio ritual do
gesto cosmognico da divindade in illo tempore.
Palavras-chave
Cosmogonia; criao; cus; terra; templo; Jud; Jerusalm; Gn 1,1-
3; Gn 1,1-2,4a; Fenomenologia da Religio.
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Abstract
Osvaldo Luiz RIBEIRO, The Cosmogony of Inauguration of the Temple of Jerusalem the Sitz im Leben of Gn 1,1-3 as prologue of Gn 1,1-2,4a. Rio de Janeiro, 2008, 346 p. Doctoral Thesis, Department of Theology, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.
Gn 1,1-3, on condition of prologue of Gn 1,1-2,4a, is a typical
cosmogony of the Semitic and Near-east culture, with abundant models in
Mesopotamic, Ugaritic and Egyptian cosmogonic traditions. While
cosmogony, it consist in mythical and phenomenological-religious
(trans)signification to construction of the Temple of Jerusalem as
creation of the of heaven and earth, under Persian domination, at 515
BC. Creation of heaven and earth, in Near-east cosmogony, means, for
all purposes, the programmatic emergence of oivkoume,nh territory of a
particular human group, geopolitically organized and installed, and
mythical-sympathetically and political-religiously legitimate by ritual
repetition of the cosmogonic divinitys gesture in illo tempore.
Keywords
Cosmogony; creation; heaven; earth; temple; Judah; Jerusalem; Gn
1,1-3; Gn 1,1-2,4a; Fenomenology of Religion.
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Sumrio
1 Introduo 14
1.1 Histrico 14
1.2 Status Quaestionis 21
1.3 Metodologia 28
2 Fenomenologia da Religio e o Sitz im Leben da Cosmogonia Prximo-oriental
33
2.1 Cosmogonia e Construo em Mircea Eliade 35
2.2 Gwendolyn Leick e Eridu um estudo de caso 48
2.3 Cosmogonia Semita e Criao no Antigo Oriente Prximo
58
2.4 Enuma eli ascenso da Babilnia ao poder na Mesopotmia
63
2.5 Cosmogonia e construo de templo na Mesopotmia 69
2.6 Cosmogonia e o Ciclo de Baal 75
2.7 Cosmogonia egpcia 90
2.8 Cosmogonia prximo-oriental e clusula temporal discursivo-narrativa
94
2.9 Concluso 97
3 Anlise crtico-literria de Gn 1,1-3 99
3.1 Anlise crtico-textual de Gn 1,1-3 99
3.2 Anlise da estrutura de Gn 1,1-3 101
3.3 Do escopo literrio assumido Gn 1,1-3 106
3.4 Anlise lxico-morfolgica dos termos hebraicos de Gn 1,1-3
110
3.5 Anlise sinttica de Gn 1,1-3 112
3.5.1 Anlise sinttica da estrutura de Gn 1,1-3 112
3.5.2 Anlise sinttica dos termos de Gn 1,1-3 116
3.5.3 Anlise sinttica de Brt na Bblia Hebraica 118
3.5.3.1 Brt em Jeremias: construto e clusula temporal 119
3.5.3.2 Brt em Gn 1,1: construto e clusula temporal 121
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3.5.4 Aspectos propriamente sintticos de Br em Gn 1,1 123
3.5.5 Concluso 127
3.6 Da autoria de Gn 1,1-3 130
3.7 Da datao de Gn 1,1-3 135
3.8 Anlise retrico-literria de Gn 1,1-3 137
3.9 Concluso 143
4 Anlise semntico-fenomenolgica de termos de Gn 1,1-3
145
4.1 Aspectos propriamente semnticos de Br na Bblia Hebraica
146
4.1.1 O piel de Br cortar [como] destruir [para] construir
147
4.1.2 Br como criar construir 155
4.1.3 Is 48,7 fronteira entre duas criaes 183
4.1.4 Concluso sobre Br na Bblia Hebraica 192
4.2 th wbh na Bblia Hebraica 194
4.2.1 Ocorrncias apenas de Wh to (th) 194
4.2.1.1 Ocorrncias de th como regio desrtica e desabitada
195
4.2.1.2 Ocorrncias de th como (o) vazio 198
4.2.2 Ocorrncias conjuntas de th e bh 200
4.2.2.1 Articulao sinttico-semntica entre th e bh 200
4.2.2.2 Hendade constituda pelos termos th e bh 201
4.3 Hek na Bblia Hebraica 203
4.4 thm na Bblia Hebraica 221
4.5 rH na Bblia Hebraica 239
4.5.1 lhm como superlativo em rH lhm 242
4.5.2 mraHepet na Bblia Hebraica 243
4.6 myim na Bblia Hebraica 246
4.7 r na Bblia Hebraica 257
4.8 Concluso 268
5 Gn 1,1-3 como prlogo da Cosmogonia de Inaugurao do Templo de Jerusalm
270
5.1 A retrica discursivo-narrativa de Gn 1,1-3 270
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5.2 Mito como projeo hermenutica da realidade 274
5.3 Gn 1,1-3 como projeo poltico-hermenutica da realidade
281
5.4 A Criao como hipstase da reconstruo do Templo de Jerusalm
284
5.5 O orculo de Jr 4,5-31 286
5.6 Crtica proftica e contra-crtica da golah 292
6 Concluso 304
Referncias Bibliogrficas 309
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SIGLAS
ARC BBLIA SAGRADA contendo o Velho e o Novo Testamentos. Traduzido em portugus por Joo Ferreira de Almeida. Edio Revista e Corrigida. Edio 1995. So Paulo: Sociedade Bblica do Brasil, 1999.
BHS BIBLIA SACRA. Utriusque Testamenti Editio Hebraica et Graeca. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1994. [Biblia Hebraica Stuttgartensia. Editio funditus renovata, editio quarta emendata. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1990. 1.574 p. Novum Testamentum Graece. Editione vicesima septima revista. Deutsche Bibelgesellschaft, 1993. 810 p.
BJ A BBLIA DE JERUSALM. Nova edio, revista. So Paulo: Paulinas, 1989.
HALOT KOEHLER, Ludwig e BAUMGARTNER, Walter. The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament HALOT. Revisado por Walter Baumgartner e Johann Jakob Stamm, com a assistncia de Benedikt Hartmann, Ze'ev Ben-Hayyim, Eduard Yechezkel Kutscher e Philippe Reymond. Traduzido e editado sob a superviso de M. E. J. Richardson. Leiden: Brill, 2000 (1953-19581).
PASTORAL Ivo STORNIOLO, Euclides Martins BALANCIN e Jos Luiz Gonzaga DO PRADO. Biblia Sagrada Edio Pastoral. 5 impresso, revista. So Paulo: Paulinas, 1992.
TEB BBLIA TRADUO ECUMNICA (TEB). Trad. de Traduction Oecumnique de la Bible (TOB 3 ed). 2 ed. So Paulo : Loyola, 1995.
VOZES Ludovico GARMUS (coord). Bblia Sagrada. 12 ed. Petrpolis: Vozes, 1991.
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FIGURAS
Figura 1 Interior trevoso do templo de Edfu, Egito. V-se, ao fundo, a pequena capela de Hrus (cf. Ragnhild Bjerre FINNESTAD, Temples of the Ptolemaic and Roman Periods: Ancient Traditions in new context, in: Byron E. SHAFER [ed], Temples of Ancient Egypt. London/New York: I. B. Tauris, 1997, p. 208). p. 32
Figura 2 Conceito bblico de cosmos, de acordo com Alexandra Schober, reproduzido de T. Schwegler, Probleme der biblischen Urgeschichte, Munique, 1960, quadro 1, apud J. Edward WRIGHT, The Early History of Heaven. New York/Oxford: Oxford University Press, 2000, p. 91. p. 202
Figura 3 Concepo bblica do cosmos de acordo com Nahum Sarna, Understanding Genesis: The Heritage of Biblical Israel. New York: Schoken Books, 1966, p. 5, apud J. Edward WRIGHT, The Early History of Heaven. New York/Oxford: Oxford University Press, 2000, p. 90. p. 218
Figura 4 Concepo bblica do cosmos de cordo com Othmar Keel, em Othmar KEEL e Christoph UEHLINGER, Altorientalische Miniaturkunst. Mainz am Rhein: Verlag Philipp von Zabern, 1990, p. 15, figura 6, apud J. Edward WRIGHT, The Early History of Heaven. New York/Oxford: Oxford University Press, 2000, 93. p. 224
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Pois desde outrora existia um cu e
uma terra emergindo da gua e que no meio da gua estava firme.
2 Pd 3,5*
O prprio Estado no conhece lei no escrita mais poderosa do que o
fundamento mtico. Nietzsche, A Origem da Tragdia
(...). A construo de um santurio ou altar de sacrifcios repete a
cosmogonia. Mircea Eliade, O Mito do Eterno Retorno
Gn 2 , ento, uma cosmogonia poltico-religiosa que pretende englobar uma certa rea como
criada por Yahweh e conseqentemente governada por
ele. Magnus Ottossom, Eden and the Land of Promise
13E tu, Yahweh, (...) 4Tu (mesmo) te levantars, ters compaixo de
Sio. Porque tempo de ter piedade dela. Sim, chegou a hora. 15Porque amam os teus servos as
pedras dela, e do p dela (eles) tm piedade. 16Ento temero as
naes o nome de Yahweh, e todos os reinos da terra a tua
glria. 17Porque construiu Yahweh Sio revelou-se na sua glria. (...)
19Isto ser escrito para a gerao futura, e o povo criado louvar Yah.
Salmo 102,13-19
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Introduo
1.1 Histrico
A presente proposta de pesquisa foi apresentada PUC-Rio em uma
formulao bastante mais ambiciosa. Fora sua pretenso situar histrico-
socialmente o que ento considerava os dois complexos criaodilvio da Bblia
Hebraica. Deveria, ento, primeiro, situar o complexo sacerdotal, e, depois, o
complexo ps-sacerdotal, j que defenderia a anterioridade de P em relao s
narrativas do complexo criaodilvio, tradicionalmente classificadas como
javistas (mesmo depois da superao da hiptese documental do Pentateuco), e
que se classificavam, ento, como ps-sacerdotais. Estava-se interessado em
demonstrar a seqncia PJ, pressuposta, bem como em situar ambos os
complexos em seus respectivos contextos instrumentais e funcionais.
Aprovado o Projeto, depois de uma srie de discusses entre o ento
orientador, Prof. Dr. Emanuel Bouzon e o pesquisador, chegou-se concluso de
que seria mais conveniente delimitar o tema. Chegou-se, portanto, formulao
intermediria da Tese: uma tentativa de instalao da pea narrativa Gn 1,1-2,4a
em seu contexto histrico-social (enquanto cosmogonia, o que de fato era Gn 1,1-
2,4a?) e funcional-instrumental (enquanto cosmogonia, para que servia Gn 1,1-
2,4a?).
O falecimento do Prof. Dr. Emanuel Bouzon implicou na substituio do
orientador. Assumiu a orientao o Prof. Dr. Isidoro Mazzarolo. Uma nova rodada
de discusses e negociaes teve curso, e culminou numa segunda delimitao. A
Tese manteria seus objetivos previamente estabelecidos desde o Projeto aprovado,
mas reduziria o escopo literrio da pesquisa a Gn 1,1-3. luz e nos termos dessa
negociao que a presente Tese se conclui.
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Ao pesquisador, os motivos de escolha do tema da instalao histrico-
social dos complexos criaodilvio da Bblia Hebraica em seus respectivos
contextos instrumentais e funcionais apresentaram-se depois de uma srie de
aproximaes s quatro narrativas.
Inicialmente, o pesquisador foi dirigido ao tema aps uma srie de leituras
em Fenomenologia da Religio, nos captulos destinados discusso sobre o
papel funcional e instrumental das cosmogonias prximo-orientais. O resumo das
leituras dava a saber que, nas sociedades tradicionais, as cosmogonias
consistiriam em discursos culturais (trans)significantes, atravs dos quais se
descreveria, em registro mtico-potico, e sob ideologia poltico-religiosa, a
construo de cidades, templos, casas, e isso, sempre, em contexto de organizao
poltica. No que cabia Fenomenologia da Religio, dizer cosmogonia era, ali e
ento, dizer construo e instrumento de poder poltico. Perguntou-se, ento,
se essa compreenso fenomenolgico-religiosa poderia ser aplicada cosmogonia
clssica da Bblia Hebraica Gn 1,1-2,4a1. Sim, podia. Identificou-se literatura
que perpassava o tema, algumas, at, que tocavam especificamente nele. Mas,
inesperadamente, paravam porta de Gn 1,1-2,4a. Antes de entrarem nessa
narrativa, recuperavam o j clssico acesso teolgico-ontolgico ao tema da
criao na Bblia Hebraica, e reproduziam as leituras mais propriamente
teolgico-traditivas disponveis. O pesquisador, contudo, tinha uma percepo
diferente: a narrativa de Gn 1,1-2,4a podia ser lida em seu ambiente funcional e
instrumental, justamente porque, semelhana das demais cosmogonias prximo-
orientais, devia sua expresso ao seu prprio Sitz im Leben.
Tal percepo redundou na preparao e apresentao de uma srie de
Colquios no Curso (livre) de Doutorado em Teologia, no Seminrio Teolgico
Batista do Sul do Brasil (trancado para e desde a matrcula na PUC-Rio).
Entreviam-se dois complexos criaodilvio na Bblia Hebraica: o primeiro,
sacerdotal, elaborado durante os trabalhos de reconstruo de Jerusalm; e o
segundo, posterior, ps-sacerdotal, em algum momento do sculo V a.C. O
primeiro, sacerdotal, atenderia necessidade cultural e poltico-teolgica de
1 Tanto a abordagem quanto a hiptese fenomenolgico-religiosas j haviam sido integralmente aplicadas por Magnus Ottossom (Gn 2,4b-3,24 cf. M. OTTOSSOM, Eden and the Land of Promise, in: J. A. EMERTON [ed], Congress Volume: Jerusalem, 1986, p. 177-188) e John Sailhamer (parcialmente ensaiada para Gn 1,2 cf. J. SAILHAMER, Old Testament History, 1998).
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legitimar a reconstruo das instalaes poltico-materiais de Jerusalm, de modo
que o aspecto mais propriamente organizacional do empreendimento se deixaria
capturar no respectivo complexo criaodilvio. O abrupto e dramtico
desenvolvimento poltico-scio-religioso de Jud altera significativamente o
contexto histrico-social, de forma que uma nova cosmogonia precisa ser
elaborada para dar conta da nova criao ainda atendendo ao Sitz im Leben
das cosmogonias, o complexo ps-sacerdotal acentua, contudo, muito mais os
aspectos mais propriamente poltico-teolgicos, com nfase significativa sobre a
individualizao da culpa. A idia era apresentar os complexos criaodilvio
prximo-orientais como grades instrumentais, de carter poltico-teolgico,
operadas e manipuladas desde o centro do poder poltico para legitimar o Estado2.
Enquanto grade, as histrias constavam, sempre, dos mesmos elementos mas
enquanto instrumentos polticos, as amarraes e os detalhes sintticos das
narrativas eram organizados de modo a reproduzir a ideologia sob demanda3.
Depois desses dois primeiros momentos metodolgicos, publicou-se, entre
2002 e 2004, uma srie de artigos em revistas especializadas, srie interrompida a
pedido do Prof. Dr. Emanuel Bouzon, por conta da apresentao do Projeto de
Tese PUC-Rio. Delineava-se, j, ali, a hiptese central do presente relatrio de
investigao: Gn 1,1-2,4a consiste na Cosmogonia de Inaugurao do Templo de
Jerusalm. Assumida pela presente Tese, tal hiptese central respondia a pergunta
feita quanto ao problema da funo instrumental de Gn 1,1-2,4a em seu contexto
cultural e histrico-social: qual a funo cultural-instrumental de Gn 1,1-2,4a
respectivamente Gn 1,1-3, seu prlogo em seu contexto funcional-instrumental
de origem? Os primeiros esforos de investigao faziam ver que a histria da
recepo de Gn 1,1-2,4a exercia efeitos ressignificantes na compreenso da
narrativa, de modo que releituras mais propriamente vlidas para momentos da
histria dessa recepo retroagiam sobre a forma por meio da qual a pea era
interpretada como que tendo sido assim desde a sua origem. O quadro que se
apresentava permitia suspeitar-se da perda do Sitz im Leben que caracterizaria
originalmente Gn 1,1-2,4a, respectivamente, Gn 1,1-3, o que resultava tanto na
substituio do contexto funcional original pelos contextos homilticos prprios
2 Cf. nota 714 e contexto da seo 5.2 da presente Tese. 3 O modelo terico foi posteriormente identificado na leitura que Marcel Detienne faz de A Repblica, de Plato (cf. M. DETIENNE, A Inveno da Mitologia, 1998, especialmente o captulo A Cidade Defendida por seus Mitlogos, p. 151-184).
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da histria da recepo da narrativa, quanto na retroprojeo desse novo contexto
funcional para o momento da redao da pea cosmognica4. Era necessrio,
portanto, reavaliar o modelo de recepo de Gn 1,1-2,4a, o que deveria ser feito
tanto internamente (a narrativa), quanto externamente (a cultura).
Em funo do problema central da pesquisa, uma srie de perguntas
secundrias se deixava desdobrar: 1) Qual a compreenso que se podia extrair de
cada um dos termos fundamentais de Gn 1,1-3, considerando-se o conjunto das
ocorrncias da Bblia Hebraica? 2) De que forma, quando em contexto direta ou
indiretamente cosmognico, a Bblia Hebraica se servia da relao discursivo-
narrativa terraguas? 3) Quais outras passagens da Bblia Hebraica poderiam
justificar a hiptese de que Gn 1,1-2,4a consistiria numa pea de carter poltico-
cultural redigida para a inaugurao do Templo de Jerusalm? As respectivas
hipteses apresentavam-se historicamente plausveis e metodologicamente
sustentveis. Ao problema central da pesquisa, respondia-se com a hiptese
central de que Gn 1,1-3 consistia no prlogo da pea litrgica para leitura durante
as celebraes de inaugurao do Templo de Jerusalm. Aqui se somariam as
informaes fornecidas pela Fenomenologia da Religio (que sustenta a mesma
hiptese para as cosmogonias prximo-orientais persas, mesopotmicas,
ugarticas, egpcias etc.) e pelas anlises exegticas aplicadas, de um lado,
prpria narrativa, e, de outro, a uma srie de termos e narrativas afins da Bblia
Hebraica.
Analisando-se cada um dos termos fundamentais de Gn 1,1-3, podia-se
chegar mesma concluso. Os termos terra (erec), cus (mayim), guas
(myim), desolao e deserto (th wbh), treva (Hek), abismo (thm) e
vento (rH) podiam ser identificados em uma srie de narrativas da Bblia
4 Em suas anotaes crticas sobre a Tese, o Prof. Dr. Ludovico Garmus pergunta: depois das descobertas e concluses sobre o sentido originrio da cosmogonia de Gn 1,1-2,4a de sua tese, como voc exlicaria em homilias/pregaes dirigidas ao povo em geral este texto, considerado uma narrativa da criao do mundo? Precisando a pergunta: na pregao devemos levar em considerao como foi recebida esta narrativa pela tradio posterior, bblica e subseqente?. Responderia afirmando que cada momnento deveria estar claro para o povo em geral tanto o sentido original da passagem, quanto a histria da sua recepo (dos seus efeitos), o que proporcionaria ao povo em geral o a meu ver necessrio esprito crtico para apreender as questes implicadas na pregao. A rigor, trata-se de uma questes de Teoria Literria, o que se resolve, quanto ao valor de cada um desses momentos, pela deciso terico-metodolgica quanto ao lcus prioritrio: intentio auctoris? (sentido original), intentio lectoris? (sentidos construdos ideologicamente elos leitores). A rigor, a deciso cabe a cada um ao pregador, caberia a tarefa de prover o povo em geral da necessria informao.
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Hebraica que, no seu conjunto, apontavam para a funcionalidade
(trans)significante dos termos cosmognicos, no sentido de que serviam para a
descrio da emergncia histrica de centros civilizatrios poltico-socialmente
organizados cidades habitadas sob respectivos governos centrais e espaos
poltico-teologicamente significativos templos. O que a Fenomenologia da
Religio afirmava para as narrativas cosmognicas prximo-orientais, e o que a
Tese entrevia para a funcionalidade instrumental de Gn 1,1-2,4a, igualmente se
podia dizer para toda uma considervel srie de termos fundamentais de Gn 1,1-3
na Bblia Hebraica, cosmogonia consiste em criao de epaos e equipamentos
poltico-sociais organizados a oivkoume,nh particular de cada grupo social,
manejador e mantenedor de uma tambm por isso particular cosmogonia. Apenas
o distanciamento funcional e instrumental das peas cosmognicas originais,
recebidas em contexto teolgico tardio, sob releituras diversas, levava-as a
interpretaes de carter literrio e cada vez mais metafsico-ontolgicas, as quais,
sobredeterminando sua funcionalidade original, promoviam o cada vez maior
desenraizamento instrumental da cosmogonia judaica, em geral, e de Gn 1,1-2,4a,
em particular e especial.
Verificava-se, alm disso, que, na Bblia Hebraica, as descries de invases
militares de cidades eram elaboradas por meio de um duplo registro discursivo-
narrativo. De um lado, o registro histrico-descritivo, em que o cerco e a invaso
so detalhados na sua forma mais literal. De outro, um registro mtico-descritivo,
em que a mesma catstrofe blico-militar descrita (transignificada) na forma de
inundao, dilvio, imerso, ou qualquer outra forma que descreva que a terra
acabava de ser engolida pelas guas. Podia-se afirmar que a Bblia Hebraica
conhecia um trato cultural mtico-potico para a descrio de cercos e invases
militares: aplicar cena a descrio (trans)significante do tema cosmognico e
isso podia ser explicado pelo correlato inverso da hiptese central da Tese: se
criao construo (criao da terra [re]construo da cidade), desconstruo
descriao (destruio da cidade descriao da terra). Essa pista investigativa
permitia assumir que o estado de desolao e deserto (th wbh) da terra de
Gn 1,2 hipostasiava mitoplasticamente a cidade de Jerusalm, ento e enquanto
destruda pela Babilnia, e que a criao narrada em Gn 1,1-3 corresponde
reconstruo de Jerusalm.
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O objetivo geral da Tese, portanto, consiste em demonstrar a seguinte
hiptese de trabalho: a narrativa sacerdotal da criao doravante, Cosmogonia
de Inaugurao do Templo de Jerusalm pode ser melhor compreendida
quando lida luz da hiptese da funcionalidade instrumental da cosmogonia
prximo-oriental como descrio (trans)significante de construo de espaos
humanos poltico-socialmente organizados. Os cus e a terra em Gn 1,1 no
significam j o que cus e terra chegariam a significar nas cosmologias de
inclinao helnico-filosficas, muito menos o que significam na moderna
astrofsica. Os cus e a terra, ali e nas cosmogonias prximo-orientais, significam
os espaos humanos organizados politicamente, habitados scio-culturalmente,
controlados ideologicamente a oivkoume,nh5 , e sempre sob a perspectiva
narrativo-discursiva no de um povo hipostasiado, mas de um Estado soberano,
responsvel, a um tempo, pela reconstruo, pelo repovoamento e pelo controle
poltico-teolgico da terra. Em termos especficos, significa dizer que: a) Gn
1,1-3 consiste no prlogo de uma narrativa imediatamente ps-exlica, b)
formulada, sob a autoridade persa, pelo ento governo monrquico de Jud, c)
com o objetivo de legitimar, pela via mitoplstica traditivo-cultural e discursivo-
narrativa, a emergncia do poder central organizado, d) que reconstri a terra
Jud, Jerusalm, o Templo de Jerusalm , e) depois de sua destruio militar, f)
para o que, agora, apresenta-se um modelo poltico-teolgico sobre e a partir do
qual se deve (re)construir a nao.
A Tese oferece contribuies para a pesquisa em diversas instncias.
Primeiro, propondo uma leitura de Gn 1,1-2,4a que, malgrado preservar a sua
especificidade judaica, a toma a partir do conjunto cultural prximo-oriental. Em
lugar de apenas repisar a abordagem Chaoskampf com que se tem tentado explicar
Gn 1,1-2,4a na condio de narrativa exlica6, oferece uma possibilidade de
atualizar a abordagem, mas, agora, em ambiente imediatamente ps-exlico. No
5 particularmente difcil, se possvel, encontrar uma palavra equivalente em Lngua Portuguesa para a expresso grega oivkoume,nh tal qual ela se atualiza no ambiente pertinente cosmogonia. Trata-se do conjunto do espao civilizatrio de um determinado povo, organizado em cidade(s) e respectivas vilas circunvizinhas, sob o governo de um rei, para alm de cujas fronteiras terminam seus limites, e abre-se o deserto o caos cosmognico. Na presente Tese, optou-se por no traduzir o termo, a despeito de que a formulao de um termo no vernculo surtiria melhor efeito comunicativo. 6 Como, por exemplo, H. GUNKEL, Creation and Chaos in the primeval er and the escaton, 1895 (cf. Idem, Genesis, 1901), e K. LNING e E. ZENGER, To Begin With, God Created...: Biblical Theologies of Creation, 2000 (19971).
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se trataria, portanto, de um conflito golah x Babilnia, mas de um recurso cultural
para a legitimao de espaos organizados em torno do e pelo poder, nos quais os
temas da destruio fsica da cidade e sua reconstruo so encenados mtico-
traditivamente. No se trata de conflito de dentro (Jud) para fora (Babilnia),
mas de presso poltico-ideolgica de dentro (Jud) para ainda mais dentro (as
populaes remanescentes).
Em lugar de contornar a suspeita das guas pr-existentes, ou de tentar uma
explicao ainda ontolgica para a questo, prope-se explicar o tema da criao a
partir das guas como trato propriamente cultural do uso mtico-descritivo das
guas como descrio de invases militares de resto, provavelmente ele mesmo
derivado da transferncia metafrica do resultado das vases sazonais dos grandes
rios, somente a altssimo custo controladas, ou, de resto, dos regimes plvio-
fluviais prximo-orientais e orientais. Somados os dois pressupostos terico-
metodolgicos, de um lado a (trans)significao cosmognica, e, de outro, a
descrio mtico-traditiva de cercos militares, a presena teologicamente
constrangedora das guas pr-criacionais pode ser mais simplesmente explicada
como caso de descrio tambm (trans)significativa da construo de uma cidade
depois de sua destruio. Essa contribuio ajudaria a resolver o problema da
tentativa de impor s cosmogonias originais judaicas, por exemplo, o tema da
criao ex nihilo, pelo fato de concluir-se que tais cosmogonias no falam da
criao do Universo (como ns hoje o concebemos), mas apenas descrevem
mtico-traditivamente a criao de espaos humanos organizados poltico-
socialmente: e tais espaos no nascem do nada, antes, so sempre intervenes
humanas contra as foras de desolao e de desabitao que imperam nos espaos
geogrficos sobre os quais a comunidade humana, sob o poder central, se erguer
na condio de rei, cidade e povo.
Poderia, ainda, contribuir para a compreenso interna da prpria narrativa.
Uma vez que se deveria ler Gn 1,1-3 como pea poltico-social de
responsabilidade do governo central de Jud, os elementos discursivos internos da
narrativa sofreriam sobredeterminao semntica com base nessa instncia
poltica. O programa previsto e proposto pela cosmogonia no consistiria nas
prerrogativas de Israel, na qualidade de hipstase harmnica de um povo, mas,
antes, no programa poltico-teolgico do governo conforme pretendido
monrquico de Jud. Temas como a criao de dm como imagem e forma de
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21
lhm, a caracterizao sexual macho e fmea e a idia de dominao
sobre toda a terra poderiam ser melhor compreendidos contextualmente sob a
hiptese de que quem organiza o discurso o poder monrquico da golah. O
programa poltico-ideolgico de Gn 1,1-3 no consiste no programa de Jud, mas
no programa que a golah o poder central, monrquico, autorizado pela Prsia
elabora para Jud.
O tema ultrapassa Gn 1,1-3. Ler a percope sozinha justifica-se apenas num
exerccio acadmico especfico. A rigor, impe-se a sua leitura paralelamente
narrativa sacerdotal do dilvio. Nesse caso, o dilvio sacerdotal representaria,
sob a leitura poltico-social do governo central emergente de Jud, o seu juzo
teolgico concernente catstrofe da destruio de Jerusalm, com repercusses
evidentes No a golah, preservada na arca, que a Babilnia. O povo
remanescente na terra, esse, sim, foi castigado pelas guas do dilvio. Agora,
tendo lhm tomado as providncias, impem-se a necessidade de cortar a
aliana. Justamente essa aliana entre lhm e No (a golah) expe mais
nitidamente o carter poltico do pronunciamento. Mais uma vez, como
acontecera com a narrativa sacerdotal da criao, a narrativa sacerdotal do
dilvio ganhou leituras mais relacionadas histria da sua recepo, a tal ponto
que praticamente perdeu-se a sua compreenso mais histrico-social, que, na
hiptese de estar correta a intuio em defesa nesta Tese, ter-se-ia recuperado.
1.2
Status quaestionis
O sculo XIX viu nascer as duas foras que marcam o que de importante se
deve acentuar a respeito da pesquisa relacionada ao tema da criao na Bblia
Hebraica, particularmente aquela diretamente aplicada a Gn 1,1-3. Deve-se ter em
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22
mente, por exemplo, que to cedo quanto 18447, F. H. W. Gesenius tratava a raiz
Br sob uma nica rubrica, dando a ela o sentido de cortar e, da desdobrados, os
de criar e engordar. O verbete arb Br no Lexicon de Gesenius no reserva
qualquer sentido teolgico privilegiado para a raiz, explicando o sentido de
criar rigorosamente da mesma maneira como a presente Tese o faz criar tem
o sentido plstico de esculpir, isto , criar, cortando, desbastando. Logo,
sentido derivado. No sculo XX, contudo, os dicionrios, lxicos e gramticas
tornaram lugar comum a classificao de Br sob trs entradas, cada uma ligada a
uma raiz homloga s demais Br I criar (que passa a ser o sentido
primrio), Br II cortar, e Br III engordar8.
Derivado de uma tal transformao no trato lxico-semntico de Br, as
aproximaes exegtico-teolgicas a Gn 1,1-3 dispuseram de um argumento ali
se descrevia uma ao absolutamente diferente de todas as outras, uma vez que o
verbo que ali se articula constitui exclusividade subjetiva de Deus. Bem, no
sculo XX, sim, mas no XIX, no.
O que teria acontecido entre meados do sculo XIX e o sculo XX, para que
a informao lxico-morfolgica disponvel sofresse uma radical transformao?
Ora, esse o perodo do conflito entre o mais acentuado processo de secularizao
e liberalizao europia e a tradio teolgico-eclesistica da(s) Igreja(s)
Crist(s). o sculo de ningum mais do que Schopenhauer, Feuerbach,
Nietzsche o sculo da supresso romntica dos fundamentos metafsicos. E
a(s) Igreja(s) Crist(s) reagiram. No front catlico, com o Vaticano I e o dogma da
infalibilidade papal. No protestantismo reformado europeu, com Karl Barth. No
front protestante-evanglico estadonidense, com o movimento The Fundamentals.
O que h de comum aos trs movimentos seu carter reacionrio frente s
presses emancipadoras da sociedade civil.
No campo bblico-teolgico, com sua tese de disjuno entre, de um lado, a
f crist dom metafsico e a religio humana prtica e costume social , a
influncia de Karl Barth foi decisiva. H, a, um ntido programa de separao
entre teologia e cultura, uma atualizao do neoplatonismo latente na histria
7 Cf. F. H. W. GESENIUS, A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament: Including the Biblical Chaldee. 8 Assim, por exemplo, HALOT; Alonso-Schkel, Dicionrio Hebraico-Portugus; M. Chvez, Diccionario de Hebreo Bblico.
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23
do(s) Cristianismo(s). Barth acabaria por assentar, na prtica, um conflito entre a
vontade de Deus e a vontade da Natureza9. O conflito barthiano encontrou
desdobramentos poltico-sociais (por exemplo, Dietrich Bonhoeffer e o
Cristianismo sem Religio) e exegtico-teolgicos (por exemplo, Rudolf
Bultmann e sua averso teologia natural), bem como estabeleceu um
paradigma no-expltico de distino entre f e religio nas aproximaes
acadmicas Bblia Hebraica, pressuposto que estava, a, a procedncia da f
israelita/judaica em face da religio dos povos vizinhos. Israel/Jud eram
excees, porque constituam o prlogo para a excepcionalidade da f crist em
relao s demais expresses religiosas do planeta. No recorte mais
especificamente exegtico-teolgico, finalmente, Gerhard von Rad ratifica o
postulado barthiano, quando afirma que, em Israel, criao constitua um
elemento secundrio no conjunto das tradies10.
Aqui, do outro lado do Atlntico, ao norte, o movimento The Fundamentals
teve gerou repercusses igualmente disjuntivas, diretas e indiretas, entre f e
cultura, e sobredeterminou pesquisas no campo da arqueologia bblica, cuja
9 Cf. W. BRUEGGEMANN, The Loss and Recovery of Creation in Old Testament Theology, p. 178. 10 Cf. G. VON RAD, The Theological Problem of the Old Testament Doctrine of Creation, in: G. VON RAD, The Problem of the Hexateuch and Other Essays, p. 131-142 e G. VON RAD, The Form-Critical Problem of the Hexateuch, in: G. VON RAD, The Problem of the Hexateuch and Other Essays, p. 1-78 (cf. T. STORDALEN, Echoes of Eden: Genesis 2-3 and Symbolism of the Eden Garden in Biblical Hebrew Literature, p. 23-24). Assim explicou Norbert Lohfink os pressupostos teolgico-metodolgicos de von Rad: Since its origin in the year 1935, when Gerhard von Rad proposed this theme for the first time at a meeting in Gttingen, it has been far too closely connected with the narrowing of the question necessitated by the conflict of the Confessing Church with the tendencies of the churches to accommodate themselves to the ideology of the Third Reich, an accommodation that sought legitimation in a theology of creation, even though this is scarcely evident in the subsequent literature (cf. N. LOHFINK, God the Creator and the Stability of Heaven and Earth: The Old Testament on the Connection Between Creation and Salvation, in: N. LOHFINK, Theology of the Pentateuch: Themes of the Priestly Narrative and Deuteronomy, p. 118. Interessante estratgia fugir da instrumentalizao poltica do tema da criao relegando-o aos pores da teologia. Pergunte-se se essa tentativa vertical de enfrentar processos de instrumentalizao poltica de temas bblicos no responderia, mais recentemente, pela tese de Frank Crsemann do caminho da Torah para o Sinai (cf. F. Crsemann, A Tor. Teologia e histria social da lei do Antigo Testamento). A tese da Torah rumo ao Sinai parece muitssimo pertinente, porque, afinal, o templo hierocrtico jerosolimitado assumiu a Lei. O que, contudo, parece revelar a influncia de Crsemann do tipo de estratgia inconsciente? adotada por von Rad a sua afirmao de que, assim, subindo o Sinai, a Torah estava livre de toda injuno humana, assumida que estava, ento, por Yahweh, porque, afinal o Sinai um lugar utpico, temporal e espacialmente fora do poder estatal (...). Na medida em que o culto e o direito so situados no lugar de onde sempre saiu a libertao atravs deste Deus, a prpria Tor torna-se uma forma decisiva de liberdade. A sobrevivncia real de Israel, apesar da subjugao atravs de grandes imprios, tem a ver com um lugar fictcio de um passado fictcio, o qual est fora de todo espao de domnio de qualquer poder e por isso tambm est pr-ordenado a todo tipo de poder (cf. F. CRSEMANN, op. cit., p. 92).
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24
inteno de fundo e fluxo de investimentos convergiam para a prova da verdade
escriturstica e a demonstrao da absoluta insolubilidade da f israelita e judaica
em face de seu contexto geocultural. Como resultado de um paradigma de
insolubilidade da f israelita/judata na cultura circundante onde ela se instalara,
dado que o entorno cananeu, politesta, naturalista, elaborara narrativas de
profunda vinculao teolgico-religiosa entre os deuses e a natureza,
especificamente no campo da fertilidade agrria, G. Ernest Wright estabeleceu
pressupostos de um programa de articulao entre Bblia Hebraica e Histria de
Israel, no sentido de evidenciar que Israel no estava interessado na natureza, e
que a relao de seu prprio lhm era de majestosa distncia. Israel e Jud no
eram Cana eram diferentes. Estavam ali, mas eram de outro lugar11.
O trabalho de Gerhard von Rad e G. Ernest Wright, retomado,
desenvolvido e ecoado por numerosos pesquisadores, articulava um radical ou
isso, ou aquilo entre histria versus natureza, monotesmo versus politesmo e
tica versus categorias clticas12, e, num cenrio de fundo to nitidamente
poltico-teolgico, programtico, resulta compreensvel como, contra a posio de
Gesenius, a raiz Br, de espectro semntico marcadamente tradicional e cultural
cortar, desbastar, criar, engordar tenha sido fragmentada para dar lugar
a uma disjuno teolgica entre o sentido, nesse caso, propriamente
veterotestamentrio f judata/israelita e os demais sentidos, ento,
propriamente prximo-orientais. De uma raiz alicerada inclusive nas prticas
agrcolas arroteamento , Br se transforma num terminus tecnicus cujo nico
agente operador a divindade da Bblia Hebraica.
Toda essa fase da abordagem revela-se na condio de um autntico
paradigma13, que contudo, d sinais de encontrar-se em processo de
reformulao. Um dos primeiros vestgios de que o paradigma estava sendo
reformulado teria surgido em 1971. Claus Westermann, que estivera intimamente
ligado a von Rad em Heidelberg, prossegue seu programa, mas, segundo Walter
11 Cf. G. E. WRIGHT, The Challenge of Israel's Faith, 1944; G. E. WRIGHT, The Old Testament Against Its Environment, 1950; e G. E. WRIGHT, God Who Acts: Biblical Theology as Recital, 1952. 12 Cf. W. BRUEGGEMANN, The Loss and Recovery of Creation in Old Testament Theology, p. 179. 13 Para a noo de paradigma em pesquisa, cf. T. S. KUHN, A Estrutura das Revolues Cientficas.
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25
Brueggemann14, avana para dizer que, sim, a criao exerce um papel
perifrico nas tradies de Israel, mas, a, onde articulada, ela recebe
significativa importncia, porque Israel no poderia desenvolver uma teologia
da histria do povo de Deus sem lig-la ao tema da criao15. Com efeito, von Rad
j havia dito que: por mais pretensioso que parea, devemos afirmar que a
criao pertence etiologia de Israel16. Para Claus Westermann, agora, mais do
que isso porque, em Israel, a criao estaria, ab ovo, ligada idia de
bno17 a ao de Deus no se esgotaria na histria, mas, igualmente, na
criao (= natureza), de modo que no se pode desenvolver uma Teologia do
Antigo Testamento que privilegie uma em detrimento da outra18. Consciente que
era, portanto, do acesso s bnos do alto por meio da natureza (=
criao), Israel/Jud no podia mais ser encarado como uma excentricidade em
meio a uma cultura circundante to enfronhada na teologia da fertilidade (=
beno simptico-divina)19.
Os vestgios do novo paradigma que se desenha(va) podiam ser
observados tambm no centro de influncia de G. Ernest Wright. Em 1973, Frank
M. Croos publica Canaanite Myth and Hebrew Epic: Essays in the History of the
Religion of Israel, onde questiona gravemente o paradigma de disjuno entre
mito e histria nas abordagens da pesquisa veterotestamentria. Em todo o
regime prximo-oriental incluindo-se, a, Israel e Jud a distino moderna
entre mito e histria revela-se improcedente, sem que se possa reduzir um ao
outro. Histria e mito cosmogonia! esto inextricavelmente entrelaados.
Nesse sentido, convm observar a emergncia de um recorte muito
especfico na pesquisa veterotestamentrio. Trata-se das publicaes de Hans
Heinrich Schmid, inicialmente numa obra que chama a ateno para a relao
entre o conceito egpcio de maat e o conceito de criao como construo de 14 Cf. W. BRUEGGEMANN, The Loss and Recovery of Creation in Old Testament Theology, p. 180. 15 Cf. C. WESTERMANN, Creation and History in the Old Testament, in: V. VAJTA, The Gospel and Human Destiny, p. 11-38. 16 G. VON RAD, Teologia do Antigo Testamento teologia das tradies histricas de Israel, v. 1, p. 146. 17 Cf. C. WESTERMANN, Creation and History in the Old Testament, in: V. VAJTA, The Gospel and Human Destiny, p. 24 e 34; W. BRUEGGEMANN, The Loss and Recovery of Creation in Old Testament Theology, p. 180. 18 Cf. C.WESTERMANN, Creation and History in the Old Testament, in: V. VAJTA, The Gospel and Human Destiny, p. 32. 19 Cf. W. BRUEGGEMANN, The Loss and Recovery of Creation in Old Testament Theology, Theology Today, p. 180.
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26
ordem 20, e, em seguida, numa outra que relaciona os conceitos de cdq (direito)
e ordem (= criao)21. Finalmente, o tema criao revela-se em toda a sua
pujana em seu trabalho de 1973, Schpfung, Gerechtigkeit, and Heil22 a
teologia da criao constituiria o amplo horizonte da teologia bblica.
O novo paradigma que eclodira com Westermann traz consigo o velho
capito von Rad que publica, tambm ele, um trabalho em que relaciona,
como H. H. Schmid, sabedoria e criao23, concluso essa a que Walter
Zimmerli j havia chegado em 196424. A, von Rad no mais descreve de forma
pejorativa a religio canaanita, e, referindo-se s prticas rituais de fertilidade que
a caracterizariam, fala, agora, de auto-revelao da criao25.
O novo paradigma consolida-se. Em 1988, Jon D. Levenson publica
Creation and the Persistence of Evil obra fundamental da nova abordagem.
Levenson no apenas assume categoricamente a funo superestruturante e infra-
estruturante da criao na teologia veterotestamentria e no apenas nos
ambientes sapienciais , quanto leva a srio o fato de que o elemento residual
politesta presente na Bblia Hebraica deixa transparecer que o Deus de Israel
exerce domnio somente por meio do consenso dos outros deuses, de modo que a
ordem da criao ainda um empreendimento frgil e precrio. Formado na
tradio de Frank Moore Cross, e admitindo, por conseguinte, o entrosamento
cultural de Israel/Jud com a cultura circundante, Levenson afirma que
impossvel dissociar a teologia da criao judata/israelita do contexto prximo-
oriental. A criao a e em Israel constitui uma contnua e ininterrupta luta
contra as foras contra-criativas do caos.
No se pode deixar de perceber que, nesse sentido, as abordagens
20 Trata-se de H. H. SCHMID, Wesen und Geschichte der Weisheit: Eine Untersuchung zur altorientalischen und israelitischen Weisheitsliteratur, Berlin: A. Tpelmann, 1966. Cf. J. ROGERSON, Genesis 1-11, p. 61-63. 21 Trata-se de H. H. SCHMID, Gerechtigkeit als Weltordnung: Hintergrund and Geschichte des alttestamentlichen Gerechtigkeitsbegriffes, Tbingen: J. C. B. Mohr [Paul Siebeck], 1968. 22 Cf. H. H. SCHMID, Creation, Righteousness, and Salvation: Creation Theology as the Broad Horizon of Biblical Theology, in: Bernhard W. ANDERSON, Creation in the Old Testament, p. 102-117. Importante assinalar que Bernhard W. Anderson foi aluno de Frank Moore Cross. Evidencia-se, aqui, o entrelace entre o novo paradigma europeu com o novo paradigma estadonidense, assim como, anteriormente, o antigo paradigma disjuntivo/dissociativo trabalhara articulando as abodagens do Velho e do Novo Continentes. 23 Cf. G VON RAD, Wisdom in Israel, 1972. 24 Cf. W. ZIMMERLI, The Place and Limit of the Wisdom Framework of the Old Testament Theology, p. 148. 25 Cf. G. VON RAD, Wisdom in Israel, p. 144.
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27
contemporneas a uma teologia da ecologia respondem perfeitamente a essa
virada de jogo nas abordagens veterotestamentrias. Contra a tendncia
barthiana de uma teologia do e no exlio no estamos em casa! , a tendncia
contempornea a de a teologia pensar a criao como oi=koj ns estamos em
nossa casa, e o mundo nossa oivkoume,nh!
Ao modo de um captulo especial do drama paradigmtico, a pesquisa de Gn
1,1-3 teve seus lances marcantes. O lance inaugural, porque mais marcante,
representado pelo trabalho de Hermann Gunkel e sua preocupao para alm do
literalismo exegtico, concentrando-se na questo fundamental do Sitz im Leben
das narrativas incluindo-se, a, as cosmogonias. Isso fez com que Gunkel
posicionasse-se na contra-mo da teologia europia e alem da poca,
afirmando que Gn 1,1-3 dependia diretamente da tradio babilnica26.
Cem anos depois, agora, em 2005, David Tsumura responde-lhe
expressamente27, porque incomodado justamente com a declarao categrica de
que, por exemplo, thm derivaria de Tiamat o drago aquoso mesopotmico do
Enuma eli. David Tsumura rev o sentido e o contexto de termos-chave de Gn
1,1-3 th wbh, thm, erec, rH , concluindo pela improcedncia de sua
dependncia da tradio babilnica, asseverando como ltima afirmao do
livro que as histrias do Gnesis so nicas28.
De Gunkel a Tsumura, Gn 1,1-2,4a passou por severas investigaes mas,
conluiu-se, o trabalho ainda no logrou chegar a um porto seguro. De Gunkel, a
maior conquista da pesquisa sua insistncia em dever-se a aproximao
metodolgica a Gn 1,1-3 submeter-se ao contexto vital de sua redao e
instrumentalizao mas Gunkel estava excitado demais com as repercusses dos
achados arqueolgicos mesopotmicos, e compreensvel que sua ateno tenha
sido dirigida para a possibilidade, legtima de ser aventada, de uma dependncia
direta de Jud em relao Babilnia. De Tsumura, a maior conquista sua
insistncia em analisar cada termo da cosmogonia de Jud luz do conjunto das
expresses da prpria Bblia Hebraica antes de submet-las ao vovabulrio
26 Cf. H. GUNKEL, Creation and Chaos in the primeval er and the escaton a religio-historical study of Genesis 1 and revelation, 1895, e H. GUNKEL, Genesis, 1901. 27 Cf. D. TSUMURA, Creation and Destruction a reappraisal of the Chaoskampf Theory in the Old Testament, 2005. 28 Nesse caso, especificamente, pela no referncia a deusas envoldidas na criao (cf. David TSUMURA, Creation and Destruction a reappraisal of the Chaoskampf Theory in the Old Testament, p. 197.
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28
semntico-semitico prximo oriental. Sua maior fraqueza, contudo e agravada
por seu mais tranqilo contexto acadmico e histrico-social relativamente a
Gunkel desconsiderar completamente as intenes de fundo da mo que redige
e opera a cosmogonia de Jud justamente o ponto forte de Gunkel.
Nesse sentido, a Tese acredita contribuir positivamente para o debate,
porque ela atende s duas reivindicaes a j secular, de Hermann Gunkel,
quando tenta, metodologicamente, descobrir o Sitz im Leben de Gn 1,1-3, e a de
hoje, a de David Tsumura, que postula uma anlise semntico-fenomenolgica
dos termos-chave de Gn 1,1-3 na Bblia Hebraica como meio de se investigar a
agenda por meio da qual o seu sentido deve ser, a, esclarecido. No que diz
respeito investigao pelo Sitz im Leben de Gn 1,1-3, a Tese deve a deciso a
Hermann Gunkel. Quanto ao levantamento semntico-fenomenolgico dos termos
de Gn 1,1-3 na Bblia Hebraica, levado a termo por David Tsumura, o pesquisador
chegou a ele por meios de reflexo pessoal, e ter sido publicado o livro de
Tsumura em 2005, quando a Tese j se encontrava assentada, apenas, a seu ver,
ratifica a procedncia da metodologia.
Assim, a aplicao conjunta das duas orientaes metodolgicas Gunkel e
Tsumura permitiu Tese concluir que Gn 1,1-3 constitui o prlogo da
Cosmogonia de Inaugurao do Templo de Jerusalm Gn 1,1-2,4a, tendo sido
esta composta por volta de 515 a.C. com a inteno traditivo-cultural de, sob o
regime cosmognico, hipostasiar mtico-simpaticamente o templo de Jerusalm
como fundamento da criao cf. Sl 102,17.19, Is 65,18 e Is 44,27-28.
1.3
Fundamentos metodolgicos
A metodologia utilizada na investigao poderia ser descrita da seguinte
forma: uma aproximao histrico-social, com ferramental histrico-crtico, e
quadro terico-metodolgico duplamente fenomenolgico. Caso a caso, a
metodologia desdobra-se nos seguintes passos.
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29
Trata-se, sobretudo, de uma investigao histrico-social: proponho, pois,
uma leitura scio-histrica, a ser exercitada com insistncia junto aos textos29. O
que se tem em mira a funo histrico-social de Gn 1,1-3 ler a cosmogonia em
seu Sitz im Leben. O que se quer saber em que tipo de instrumento consistia essa
cosmogonia: para que ela teria sido redigida. A agenda de investigao dever ser
elaborada, conseqentemente, tambm por meio da investigao acerca da funo
instrumental das cosmogonias no entorno cultural de Jud. H de se recusar,
metodologicamente, qualquer agenda de interpretao que caracterize presso
decorrente de releitura sob efeito de mudana de perfil funcional sofrida pela
narrativa em sua histria de recepo. Deve-se compreender que o
desenraizamento da passagem de seu contexto original permitir que outros
pontos de sobredeterminao semntica cheguem a dirigir as releituras que a
histria da recepo de Gn 1,1-2,4a conhece bem. Cada uma dessas releituras
seguir sua prpria agenda: a agenda mais propriamente ontolgica, helnica, a
agenda mais propriamente teolgica, crist, e, recentemente, a agenda ecolgica.
Tais agendas so particularmente teis para a descrio da histria da recepo ou
histria dos efeitos de Gn 1,1-2,4a, mas tornam-se empecilho importante para a
sua compreenso desde seu ambiente contextual de origem.
Vale dizer, ainda no campo da abordagem histrico-social, que no se
considerar Gn 1,1-3 como pea narrativa de responsabilidade de um Israel
ideal, hiposttico e harmnico, uma nao refletindo sobre o poder criador de
seu Deus. Em termos histrico-sociais, difcil demonstrar a existncia de um Israel
desses, seno sob a condio de idealizar um espao histrico-social livre de
conflitos, e distante das relaes conflituosas do poder. Um Israel? Na Bblia
Hebraica? Justo nela, to preocupada em demonstrar uma interminvel srie de
conflitos poltico-teolgicos? No. A Cosmogonia de Inaugurao do Templo de
Jerusalm no equivale a uma narrativa judaica de criao equivale
expresso mitoplstica de um grupo social em Jud o poder monrquico em vias
de assim cuidava assumir o trono do vice-reinado. Sob o estilo cltico-
litrgico, reflete a ideologia da realeza. Sob a teologia do Estado, reflete seu
projeto de poder: dominar sobre toda a terra (bem entendido, de Jud).
Uma investigao histrico-social impossvel sem um ferramental
29 Cf. M. SCHWANTES, Teologia do Antigo Testamento, p. 49.
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30
histrico-crtico. o ferramental da crtica literria e da crtica histrica que
permite com que a pesquisa salte do nvel literrio para o histrico-social, sem
embargo, naturalmente, das abordagens sociolgicas30, que lhe devem fazer par.
Contudo, sem o cho firme da abordagem histrico-crtica, sequer uma
abordagem histrico-social pode soerguer-se, porque, caso contrrio, sob qual
cho ela postula construir-se?
A aproximao metodolgica histrico-social pretende ir alm da narrativa.
Pretende saltar dela, para seu ambiente gentico. Dela, para seus formuladores.
Dela, para sua funo instrumental. Isso consciente de todos os riscos, bem como
da crise de verificao que acompanha o resultado do esforo propriamente
exegtico. Sob risco de reduzir-se a um esforo apenas literrio, quando o
acento principal deve ser a preocupao histrica, o uso do ferramental histrico-
crtico, no contexto de uma proposta de trabalho histrico-social, no pode
prescindir do levantamento das questes culturais relacionadas ao tema sob
investigao, e que esto disponveis em trabalhos de carter mais
fenomenolgico-religioso. E, aqui, ento, impe-se introduzir uma bifurcao.
No campo externo, a Fenomenologia da Religio j iniciada com Hermann
Gunkel contribui de modo significativo para o esclarecimento de cosmoviso e
cultura, prticas e costumes, smbolos e rituais prprios dos povos de um
determinado contexto geopoltico. No que diz respeito cosmogonia, a
Fenomenologia da Religio particularmente relevante, porque d conta do
resultado de pesquisas especficas no campo antropocultural. O que, no entorno
cultural judaico, mostra-se melhor disponvel a um recorte propriamente antropo-
cultural, pode vir a esclarecer o que, a um recorte apenas literrio, encontra-se
estampado nas narrativas veterotestamentrias. A Fenomenologia da Religio,
portanto, no constitui um outro mtodo, seno que se alia aos objetivos de
fundo das abordagens histrico-sociais, logo, histrico-crticas, na tarefa de,
entrando no mundo do passado por meio dos vestgios literrios sobrevividos,
situar tais vestgios, enquanto narrativas, em seu preciso, funcional e instrumental
Sitz im Leben31.
Da mesma forma, mas no campo interno, o conjunto das narrativas da Bblia
30 Para o que valeria apontar para A. J. DA SILVA, Leitura scio-antropolgica, in: C. M. D. DA SILVA, Metodologia de Exegese Bblica, p. 355-450. 31 Para o que aponta-se para o ensaio de Carlo GINZBURG, Razes de um Paradigma Indicirio, in: Carlo GINZBURG, Mitos, Emblemas, Sinais Morfologia e Histria, p. 143-180.
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31
Hebraica compe uma atualizao lxico-semitica incontornvel para a
determinao da agenda antropo-cultural dos termos que a compem. Nesse
sentido, um levantamento semntico-fenomenolgico em toda a Bblia Hebraica
dos termos fundamentais de uma determinada passagem pode lanar luz sobre a
compreenso dessa passagem. No se trata de uma unificao dos sentidos de
cada termo, como se fosse correto dizer que o sentido de uma palavra em um texto
deve ser a soma do sentido dessa palavra em todas as suas ocorrncias na Bblia
Hebraica. No se trata disso! Trata-se da determinao de uma agenda lxico-
fenomenolgica veterotestamentria, na qual, uma determinada palavra pode
aparecer frente de mais de um sentido possvel, cabendo-se, agora, depois de
discernido o lxico semntico-fenomenolgico potencial da palavra, determinar-se
aquele preciso sentido com que, desde a, ela intencionalmente empregada.
A raiz Br est no centro desse empreendimento metodolgico histrico-
social e lxico-fenomenolgico. Depois de o sculo XIX ter discernido a agenda
antropo-cultural sob cujo regime a raiz se atualizava na Bblia Hebraica32, graas a
questes de ordem poltico-teolgica, alheias, decerto, ao esprito da heurstica
indiciria acadmica, perdeu-se recalcou-se tal agenda, articulando-se a raiz
desde fora de seu lxico-fenomenolgico. A inteno determinada de recuperar
no apenas a agenda antropo-cultural veterotestamentria de Br tambm isso ,
mas, sobretudo, o seu sentido em Gn 1,1, guiou toda a pesquisa.
O presente relatrio apresenta-se organizado em quatro sees. Em cada
uma, pretende-se, sempre, assentar a hiptese de trabalho defendida pela Tese
Gn 1,1-3 constitui o prlogo da Cosmogonia de Inaugurao do Templo de
Jerusalm. No primeiro captulo, investiga-se a funo instrumental das
cosmogonias prximo-orientais. A isso se prende o objetivo de situar
contextualmente o Sitz im Leben das cosmogonias do Crescente Frtil para, por
meio de analogia, considerar-se a possibilidade de que Gn 1,1-3 tenha sido
redigido luz dessa funcionalidade comum ao entorno de Jud.
No segundo captulo, aproxima-se histrico-criticamente do texto de Gn
1,1-3. Discutem-se sua delimitao, sintaxe e traduo. Justifica-se, a, uma
ateno especial sintaxe, uma vez que as interpretaes consignadas na literatura
da rea caminham paralelamente ao modo com que os estquios e versos de Gn
32 Cf. nota 385.
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32
1,1-3 so sintaticamnete definidos. A traduo e a sintaxe assumidas pelo relatrio
convergem para afirmar o carter prximo-oriental do prlogo de Gn 1,1-2,4a o
que significa dizer que a aboragem fenomenolgico-religiosa e a anlise histrico-
crtica de Gn 1,1-3 coincidem na corroborao da Tese.
O terceiro captulo dedica-se a verificar se o comportamento dos termos-
chave de Gn 1,1-3 no conjunto da Bblia Hebraica ratificam o sentido com que so
assumidos pela Tese. O resultado dificilmente contestvel. No apenas conclui-
se, com folga, que o conjunto dos termos-chave de Gn 1,1-3 deixam-se apreender
na Bblia Hebraica carregados de todos os sentidos e relaes prprios dos
constituintes semnticos das cosmogonias prximo-orientais (o que, por si s,
justifica a investigao fenomenolgico-religiosa levada a termo no captulo um),
quanto testemunham inequivocamente que, no conjunto da Bblia Hebraica, pode-
se, para o tema da cosmogonia, relacionar explicita e diretamente os motivos
criao e construo por exemplo, Sl 102,17-19: a (re)construo de
Jerusalm equivale criao (Br) do povo.
Finalmente, no quarto captulo, ensaia-se uma explicao de carter
histrico-sociolgico para o argumento presente em Gn 1,1-3, uma vez que a Tese
concluir pela responsabilidade redacional da golah, a elite judata retornante do
cativeiro babilnico, e que, agora, sob a autoridade persa, (re)assume o poder
em Jud. Gn 1,1-3 o prlogo. Gn 1,1-2,4a, a cosmogonia. Jerusalm/Jud, a
criao.
Em face da observao do orientador quanto a no ser necessria a
apresentao dos textos da Bblia Hebraica tanto em hebraico quanto nos
caracteres de transliterao ocidentais, devendo-se optar por um dos dois
sistemas, optou-se pela transliterao, que segue o padro estabelecido pelo
software BibleWorks33. Dada a sua maior facilidade de leitura, palavras em
lngua grega, pouco usadas na Tese, foram mantidas na lngua original.
33 BibleWorks for Windows. BibleWorks, LLC, 2003, verso 6.0.05y, com licena adquirida pelo pesquisador.
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33
2
Fenomenologia da Religio e o Sitz im Leben da
Cosmogonia Prximo-oriental A cosmogonia uma das duas foras que
moldam a sensibilidade cultural e intelectual do Ocidente. A cosmogonia provm de Jerusalm, enquanto que a segunda tradio logos deriva de Atenas34.
O objetivo do presente captulo situar a relao entre cosmogonia e templo
em seu imediato contexto (imagtico, simblico, instrumental e poltico) prximo-
oriental, para, de posse das informaes reunidas, investigar a pertinncia de ler-
se Gn 1,1-3 sob a luz da tese de sua dependncia mtico-noolgica, antropo-scio-
cultural e poltico-religiosa do motivo cosmognico que (e em que se) expressa. O
primeiro passo constitui-se do acesso fenomenolgico-religioso ao motivo
cosmognico das sociedades tradicionais, com base no roteiro estabelecido por
Mircea Eliade (1.1). O que a se conclui, aplica-se, na forma de estudo de caso,
relao entre o Templo de Eridu e a cosmogonia mesopotmica, conforme o
script elaborado pela antroploga Gwendolyn Leick (1.2). O passo seguinte
ampliar o foco para as sociedades do Crescente Frtil, observando-as em suas
articulaes poltico-religiosas e noolgico-simblicas do mito cosmognico
(1.3), quando se justifica uma anlise mais pausada do, porque mais difundido,
Enuma eli (1.4). A essa altura, a relao entre cosmogonia e templo estar
suficientemente assentada para justificar uma aproximao mais direta ao tema
em ambiente mesopotmico (1.5), ugartico (1.6) e egpcio (1.7), finalizando o
percurso com uma antecipao indiciria em face do marcado conjunto das
clusulas subordinadas adverbiais temporais na abertura de um (suficiente para
mostrar-se tpico) grande nmero de cosmogonias do Antigo Oriente Prximo.
A cada passo, em cada parada no se duvide est-se procurando evidncias de
que a cosmogonia de Jud a cosmogonia do Templo da Jerusalm ps-exlica,
34 Cf. D. M. GABBAY e J. WOODS, A Practical Logic of Cognitive Systems, v. 2, p. 95.
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34
Gn 1,1-2,4a no apenas est relacionada ao Templo, mas dele que fala o tempo
inteiro.
f1
Interior do Templo de Edfu. No fundo trevoso, centrado na perspectiva das colunatas, que como
que sustentam o cosmos que saiu dela e que ela sustenta, a capela de Hrus. A capela templo no templo que cosmos no cosmos.
(cf. nota 242)
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35
2.1
Cosmogonia e Construo em Mircea Eliade
Se nos limitssemos (...) a uma recusa preconcebida de ordem ideolgica em relao s pesquisas que explicam longussimas continuidades em termos (...) arquetpicos (Eliade), estaramos cometendo um grave erro35
Como introduo anlise do Sitz im Leben das cosmogonias prximo-
orientais, necessrio preparar o terreno sobre o qual os argumentos apresentados
sero organizados. Para tanto, a Tese recorre ao fenomenlogo36 e historiador das
religies, Mircea Eliade, a partir de cujas pressuposies metodolgicas37
constri-se a plataforma de aproximao cientfico-humanstica ao tema da
35 Cf. C. GINZBURG, Mitologia Germnica e Nazismo sobre um velho livro de Georges Dumzil, in: Mitos, Emblemas, Sinais Morfologia e Histria, p. 206. 36 Em termos antropolgico-etnolgicos, vale dizer: preciso tambm comear situando o fenmeno religioso em si mesmo (cf. P. LABURTHE-TOLRA e J.-P. WARNIER, Etnologia-Antropologia, p. 196). A Tese pretende acompanhar o significado que o tema cosmognico tinha para os povos envolvidos com as rotinas mitoplsticas e templrio-ritualistas envolvidas: aqui, especificamente, a conscincia israelita/judaica, conforme registrada em Gn 1,1-3 e em outras passagens direta ou indiretamente relacionadas aos contedos e motivos especficos da cosmogonia. Sob a perspectiva de um doutor em teologia, eminente representante da Fenomenologia da Religio, cf. G. VAN DER LEEUW, Religion in Essence and Manifestation study in phenomenology, 1938. No se trata de afirmar que a Fenomenologia da Religio constitua ou pretenda constituir forma privilegiada de acesso unilateral e auto-suficiente ao fenmeno religioso. Trata-se, apenas, de utilizar-se da abordagem fenomenolgico-religiosa para, por meio dela, clarear, atravs dos conceitos que ela maneja, o quadro histrico-social depreensvel das narrativas cosmognicas e quase-cosmognicas da Bblia Hebraica. Para isso, a fenomenologia da religio particularmente til. Para uma aproximao aos mtodos de aproximao ao tema do sagrado, cf. T. A. IDINOPULUS e E. A. YONAN, The Sacred and Its Scholars: Comparative Methodologies for the Study of Primary Religious Data, 1996. Para uma aproximao fenomenolgica a Gn 1 e 2, cf. F. K. FLINN, The Phenomenology of Symbol Genesis I and II, in: W. S. HAMRICK (ed), Phenomenology in Practice and Theory, p. 223-250. 37 Para o recurso Fenomenologia da Religio como instrumento heurstico-metodologico, cf. o programa de Religiones Comparadas sugerido por Raimon Panikkar (cf. R. PANIKKAR, Religiones Comparadas, Boletn de la Sociedad Espaola de Ciencias de las Religiones, n. 2, 1994), segundo o qual a Fenomenologia da Religio constitui uma das vertentes metodolgicas de acesso ao fenmeno religioso historicamente investigado. Recomenda-se firmemente, ainda, a leitura do captulo O Pensamento Duplo: Mito Logos, em E. MORIN, O Mtodo 3. O conhecimento do conhecimento, p. 168-194.
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36
cosmogonia como construo de sociedades histrico-socialmente instaladas38.
O Espao Sagrado e a Sacralizao do Mundo, primeiro captulo de O
Sagrado e o Profano, de Mircea Eliade, constitui-se em base para os argumentos
do presente captulo, posto que lana significativa luz sobre grande parte da
dinmica de articulao dos termos cosmognicos prprios de Gn 1,1-3, e, de
resto, da Bblia Hebraica.
Em que pese a aproximao crtica cosmogonia judaica de Gn 1,1-3 que a
Tese opera, procedimento heurstico conscientemente distante da experincia
scio-antropolgica que pressupe a funcionalidade poltico-religiosa dessa e das
cosmogonias poca institucionalmente instrumentalizadas, reconhece-se, com
Mircea Eliade39, que, por trs da instrumentalizao poltica das cosmogonias,
transparece a experincia religiosa profunda dos homens e das mulheres da
sociedade prximo-oriental40, fator segundo o qual , inclusive, a razo do sucesso
poltico da manipulao estatal-oficial do discurso mtico-cosmognico.
Mircea Eliade assume como pressuposto terico-metodolgico da pesquisa
38 Parece haver um conceito que subjaz maioria das narrativas cosmognicas. a noo de que h uma tenso dinmica entre caos e ordem. Caos informe, inominado, inerte. Ainda assim, ele encontra-se carregado da possibilidade de dar luz um sistema sucessivamente mais diferenciado que finalmente constitui civilizao (cf. G. LEICK, A Dictionary of Ancient Near Eastern Mythology, p. 26). Gwendolyn Leick acrescenta definio o conceito de temporalidade cclica da cultura prximo-oriental, o que empretaria noo de cosmogonia a sua recursiva necessidade de renovao ritual. Cf., ainda, W. P. BROWN, The Ethos of the Cosmos: The Genesis of Moral Imagination in the Bible, p. 39, segundo o qual, por isso, o tema cosmognico conforme manejado na cultura israelita e judaica deve ser investigado sob a luz da articulao do mesmo tema nas culturas circundantes Mesopotmia, Canna, Egito. 39 Cf. M. ELIADE, Aspectos do Mito, p. 39-50. 40 Para o dizer pela boca de um historiador: a lgica mtica da Criao assim perceptvel no mundo dos fenmenos visveis, tornando todo ato imbudo de movimento criador, ou seja, todo movimento vital, uma experincia religiosa essencial. O plano fundamental ritualstico da criao do cosmos est presente em todo ato transformador (...) (cf. E. LEITE, Cosmogonias Vdica e Judaica, p. 101). Edgar Leite afirma que a aproximao ao tema [das cosmogonias] , portanto, declaradamente difcil, abstrata e imprecisa (op. cit., p. 100). Difcil sim, e a Tese reconhece os limites de plausibilidade em que opera. Abstrata no, porque as cosmogonias prximo-orientais, bem como as suas tributrias ainda mais orientais, so, todas elas, absolutamente concretas em sua expresso histrico-cultural: a emergncia concreta de sistemas/equipamentos civilizatrios (somente aps o perodo helnico que se passa a testemunhar a abstrao espiritualizao do tema cosmognico, mas nem por isso os indcios da dimenso concreta original esto perdidos, antes, podem ser recuperados inclusive exegeticamente. Para uma abordagem do tema criao e Torah pressuposto a, j, todo o processo de abstrao do tema cosmognico israelita/judaico, cf. B. A. HOLDREGE, Veda and Torah: Transcending the Textuality of Scripture, p. 131-213). Imprecisa no necessariamente, porque, o que a Tese pretende demonstrar, os discursos/textos e os ritos/as liturgias preservados desses povos e culturas permitem, feitas as perguntas pertinentes, revelar os traos precisos da semntica cosmognica segundo a qual operavam e nos termos da qual os textos direta ou indiretamente cosmognicos foram compostos. Para o acesso metodolgico, cf. a seo 1.4 Metodologia e 1.5 Procedimentos metodolgicos adotados em S. GALLAZZI, a Teocracia Sadocita. Sua Histria e Ideologia, p. 8-10.
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37
fenomenolgico-religiosa algo como uma experincia do sagrado, segundo e
por meio da qual revela-se a heterogeneidade do espao: para o homem
religioso, o espao no homogneo41. Dito de outro modo:
Toda a cratofania e toda a hierofania, sem distino alguma, transfiguram o lugar que lhes serviu de teatro: de espao profano que ele era at ento, tal lugar ascende categoria de espao sagrado (...) Dir-se-ia mais exatamente que, devido s cratofanias e s hierofanias, a natureza sofre uma transfigurao de que sai carregada de mito42.
Em termos hermenuticos e psicolgicos, a experincia antropolgico-
religiosa da heterogeneidade do espao corresponde fundao do mundo,
porque ela , doravante, explicada internamente por meio dos mecanismos
culturais, e mediante a articulao dos elementos pragmticos da cultura.
Emergiria da experincia do sagrado a percepo intuitiva, culturalmente
desdobrvel, da fragilidade do espao da vida a terra sob a qual se pisa, na
qual se vive, e sob a qual se tomba, quando a vida acaba. Essa fragilidade
intuitivamente dissolvida, quando da experincia religiosa da heterogenizao do
espao. que, segundo Mircea Eliade, a experincia do sagrado promoveria a
contaminao do espao no qual a experincia se d, marcando-o profundamente,
em oposio quela regio, fora desse espao, onde o fluxo da vida permanece
contnuo e natural. Esse espao sagrado, revelado na e pela experincia do
sagrado, empresta da prpria experincia o seu carter absoluto. Nas palavras de
Mircea Eliade, a manifestao do sagrado funda ontologicamente o mundo43.
Por conta desse contgio do lugar pelo sagrado tomado como manifesto na
experincia hierofnica, esse preciso lugar revela-se como ponto fixo, absoluto
41 M. ELIADE, O Sagrado e o Profano, p. 35. Cf. M. ELIADE, The World, The City, The House, in: S. B. TWISS e W. H. CONSER Jr., Experience of the Sacred: Readings in the Phenomenology of Religion, p. 188-199, S. BERGMANN, Theology in its Spatial Turn: Space, Place and Built Environments Challenging and Changing the Images of God, Religion Compass, v. 1, p. 353379 (com aprofundamentos em S. BERGMANN [ed], Architecture, Aesth/Ethics and Religion, 2005), e J. K. HOFFMEIER, Sacred in the Vocabulary of Ancient Egypt: The Term DSR with special Reference to Dynasties I-XX, p. 173-174. Para o tema, aplicado, agora, religio de Israel, cf. R. E. TAPPY, Recent Interpretations of Ancient Israelite Religion, p. 159-168. 42 M. ELIADE, Tratado de Histria das Religies, p. 435. Para um abordagem ao mito, com anlise das teses/definies de Ernst Cassier, Bronislaw Malinowski, Mircea Eliade, Claude Lvi-Strauss e James Frazer, cf. Cf. R. M. SHIPP, Of Dead Kings and Dirges: Myth and Meaning in Isaiah 14:4b-21, p. 1-32. 43 M. ELIADE, O Sagrado e o Profano, p. 36. Para um resumo das aproximaes metodolgicas ao tema da manifestao do sagrado, cf. J. S. Croatto, As Linguagens da Experincia Religiosa, p. 50-72.
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38
um centro44.
Hermenutica e psicolgica ao mesmo tempo, uma tal experincia recobrir-
se-ia, ainda, de um valor existencial significativo, uma vez que aquele centro
tanto marcaria a vida, quanto seria marcado por ela, contagiando-a com a
emergncia do absoluto, e sendo contagiado pela traduo cultural incontornvel
que se lhe impe. O centro aparece, assim, como centro absoluto de
orientao existencial, e isso para todos os fins, j que ele constitui, ao mesmo
tempo, eixo fundamental da cultura que se passa a articular em torno dele e ponto
de acesso ao sagrado. Doravante, sagrado e cultura estaro alinhados em torno
do centro45.
Formulado de maneira muito pertinente, Mircea Eliade expressa o conceito
fundamental da cosmogonia:
Para viver no mundo, preciso fund-lo e nenhum mundo pode nascer no caos da homogeneidade e da relatividade do espao profano. A descoberta ou a projeo de um ponto fixo o Centro equivale criao do Mundo46.
Para Mircea Eliade, trata-se de um fenmeno antropolgico to
fundamental, que mesmo o homem no-religioso, segundo ele, no consegue
44 Cf. o captulo Symbolism of the Center em M. ELIADE, Images and Symbols: Studies in Religious Symbolism, p. 27-56. Tambm, A. GREEN, Sabbath as Temple: Some Thoughts on Space and Time in Judaism, in: Jacob NEUSNER (ed), Judaism Transcends Catastrophe: God, Torah, and Israel Beyond the Holocaust, p. 163-164. 45 Segundo Mircea Eliade, no se trata de uma especulao terica (a experincia de heterogeneidade do espao), mas de uma experincia religiosa primria, que precede toda a reflexo sobre o mundo. a rotura no espao que permite a constituio do mundo, porque ela que descobre o ponto fixo, o eixo central de toda a orientao futura (M. ELIADE, O Sagrado e o Profano, p. 35-36). O homem no s produz um mundo como tambm se produz a si mesmo. Mais precisamente ele se produz a si mesmo num mundo (P. BERGER, O Dossel Sagrado elementos para uma teoria sociolgica da religio, p. 19). Para a expresso religiosa situada de israelita e judatas, cf. E. ERSTENBERGER, Teologias no Antigo Testamento pluralidade e sincretismo da f em Deus no Antigo Testamento, p. 196-248. Para a defesa da hiptese de constituir-se a noo de criao como base do conceito matriz da religiosidade judaico/israelita, cf. J. D. LEVENSON, Creation and the Persistence of Evil: The Jewish Drama of Divine Omnipotence, p. 3-13 (sua ratificao [p. 3-4] da tese de Yehezkel Kaufamann [Y. KAUFMANN, A Religio de Israel do incio ao exlio babilnico, 1989] da radical diferena entre as noes de criao israelita/judaica, de um lado, e prximo-oriental de outro, diferena esta justificada pela teologia do Deus Supremo daqueles, poderia eventualmente ser considerada apenas para o perodo ps-exlico mais recente. Mas no, absolutamente, para o perodo pr e imediatamente ps-exlico). 46 M. ELIADE, O Sagrado e o Profano, p. 36. A Segunda Narrativa da Criao, constante do Enuma eli (IV.135-V.122) conclui com a construo/instalao de Babilnia, por Marduk, no centro do cosmos (cf. B. JANOWSKI, Der Himmel auf Erden zur kosmologischen Bedeutung des Tempels in der Unwel Israels, in: B. JANOWSKI, B. EGO e A. KRGER, Das biblische Weltbild und seine altorientalischen Kontexte. p. 240.
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39
alcanar uma forma de vivncia no mundo que seja absolutamente livre de
pressupostos, em ltima anlise, religiosos. Tal situao seria decorrente, a seu
ver, do fato de que o espao profano homogneo, e destitudo de qualquer
possibilidade de orientao existencial. Sendo, como assume, a experincia
religiosa primria a experincia de heterogeneidade do espao cindindo-o em
profano e sagrado, e propiciando, assim, um eixo fixo de orientao existencial, a
que corresponderia a fundao de um mundo , faltaria ao homem que assume
unicamente uma existncia profana, purificada de toda pressuposio
religiosa, a possibilidade de movimentao segura47.
A necessidade primria de um ponto fixo, decorrente da experincia
religiosa do sagrado, seria to concreta, que, havendo necessidade de
deslocamento territorial, e, conseqentemente, da imerso do grupo em territrio
profano48, no ocorrendo espontaneamente a manifestao do centro no qual e a
partir do qual o grupo deve, agora, instalar-se, o homem provoca-o, por meio de
evocatio. Passa-se a observar as circunstncias e os lugares em busca de sinais
para pr fim tenso provocada pela relatividade e ansiedade alimentada pela
desorientao, em suma, para encontrar um ponto de apoio absoluto49. De facto,
o lugar nunca escolhido pelo homem; ele , simplesmente, descoberto por
ele, ou por outras palavras, o espao sagrado revela-se-lhe50.
O indispensvel a revelao de um espao sagrado, seja espontaneamente,
em circunstncias tomadas como irrupes hierofnicas, seja tecnicamente,
ritualisticamente, mtico-religiosamente, mgico-simpaticamente, depois de
assumida a incontornabilidade da exigncia do centro, e desenvolvidas as
47 M. ELIADE, O Sagrado e o Profano, p. 36-37. Talvez deva-se a isso o fato de que sistemas filosficos e polticos tenham a tendncia de assumir uma estrutura ideolgico-discursiva que rivaliza com a religio, confundindo-se, muitas vezes, com ela, ou assumindo seu lugar. Mircea Eliade fala, a, de comportamento cripto-religioso do homem profano (p. 38). Para uma aproximao ao tema da constituinte tambm mtica do pensamento moderno, cf. E. MORIN, O Mtodo 5 a humanidade da humanidade: a identidade humana, p. 129-141, por exemplo: o sentimento do sagrado, transe que transborda alm da esfera religiosa, um elemento da estrutura da conscincia (p. 136). Cf., ainda, P. BERGER, O Dossel Sagrado elementos para uma teoria sociolgica da religio. 48 Para uma aproximao cientfico-religiosa ao conceito de territrio, cf. S. GILL, Territory, in: M. C. TAYLOR (ed), Critical Terms for Religious Studies, p. 298-313. 49 M. ELIADE, O Sagrado e o Profano, p. 41. Em registro antropolgico-etnolgico: os homens no podem apreender a totalidade do real; algo lhes escapa, talvez at o essencial. O verdadeiro sentido est em outro lugar. O sagrado ser assim oposto ao profano (P. LABURTHE-TOLRA e J.-P. WARNIER, Etnologia-Antropologia, p. 196). 50 M. ELIADE, Tratado de Histria das Religies, p. 438. A religio o empreendimento humano pelo qual se estabelece um cosmos sagrado (P. BERGER, O Dossel Sagrado elementos para uma teoria sociolgica da religio, p. 38).
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40
tecnologias de discernimento para a sua determinao e fundao. Toma-se como
fundamental e imprescindvel que o espao de vida do homem religioso seja
contaminado pelo sagrado, porque o sagrado o real por excelncia e saber
mover-se no real constituiria, assim, o trunfo da cultura, que, logrando xito em
dominar as tcnicas de determinao dos espaos sagrados do real pode
estabelecer-se com segurana e orientao verdadeiras. por essa razo que se
elaboram tcnicas de orientao, que so, propriamente falando, tcnicas de
construo do espao sagrado51.
O modo como Mircea Eliade o diz fundamental para a presente Tese:
tcnicas de construo do espao sagrado. Prepara-se o terreno para a relao
entre cosmogonia e construo:
Mas guardemo-nos de crer que se trata de um trabalho humano, que graas ao seu esforo que o homem consegue consagrar um espao. Na realidade, o ritual pelo qual o homem constri um espao sagrado eficiente na medida em que ele reproduz a obra dos Deuses52.
A construo do espao sagrado torna-se, assim, duplamente significativa.
Primeiro, consistiria na irrupo do absoluto real na relatividade profana da
vida, abrindo uma clareira de referncia e orientao em meio homogeneidade
inerte da vida comum. Segundo, constituiria a reproduo eficiente e simptica
dos atos criativos da(s) divindade(s), evocados como encantamento mtico da obra
humana, sem o que ela no logra transignificar a relatividade cotidiana em
absoluto sagrado.
Mircea Eliade est pronto para apresentar, ento, uma srie de afirmaes
heuristicamente relevantes para esta Tese. Inicialmente, trata de dizer, na seo
Caos e Cosmos do captulo sob anlise, que
o que caracteriza as sociedades tradicionais a oposio que elas subentendem entre o seu territrio habitado e o espao desconhecido e indeterminado que o cerca: o primeiro o mundo (mais precisamente: o nosso mundo), o Cosmos; o resto j no um Cosmos53.
51 M. ELIADE, O Sagrado e o Profano, p. 42. Cf. V. CROSBY, New Approaches to Sacred Space, p. 463-472. 52 M. ELIADE, O Sagrado e o Profano, p. 43. 53 Idem, p. 43. Essa oposio entre o cosmos e o caos freqentemente expressa por vrios mitos cosmognicos (P. BERGER, O Dossel Sagrado elementos para uma teoria sociolgica da religio, p. 38).
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41
O prprio Mircea Eliade extrai as implicaes de uma tal afirmao. No se
pode considerar que a distino entre cosmo e caos para usar seus termos
seja tributria do fato prosaico de que, afinal, o cosmo habitado, e o caos, no.
Essa seria apenas uma constatao de superfcie, mas deixaria de captar o
fundamental, que, segundo Mircea Eliade, significa dizer que
se todo o territrio habitado um Cosmos, justamente porque foi consagrado previamente, porque, de um modo ou de outro, tal territrio obra dos Deuses ou est em comunicao com o mundo dos Deuses54.
A consagrao do territrio mais do que uma evocao das divindades.
Trata-se da ereo de equipamentos litrgicos, os quais tm a funo de marcar o
ponto em que o territrio ocupado confunde-se com o mundo real e absoluto das
divindades55. Mircea Eliade ilustra o fato com a cerimnia de elevao de um
altar do fogo na tradio vdica. Diz-se ser erigindo um altar que se pode instalar
em um territrio como espao de habitao. O espao do altar torna-se num
espao sagrado, e no simplesmente porque esse altar simbolize ou represente o
sagrado, mas, muito mais profundamente do que uma simples analogia abstrata:
a ereco de um altar a Agni outra coisa no seno a reproduo a escala microscpica da Criao. A gua onde se amassa a argila assimilada gua primordial; a argila que serve de base ao altar, simboliza a Terra; as paredes laterais representam a atmosfera etc. E a construo acompanhada de estrofes explcitas que proclamam qual a regio csmica que acaba de ser criada56.
54 M. ELIADE, O Sagrado e o Profano, p. 43. Espaos sagrados podem ser encontrados na natureza ou podem ser construdos (N. S. SLADE. An Investigation of Sacred Space The Grove, p. 2). Um lugar sagrado um lugar que representa simbolicamente o mundo; em ltima anlise, ele reflecte a ordem e a integridade, e como um rede mstica do cosmos: a sua prpria configurao inclui um mundo, e, para o homem, torna-se, em um nvel profundamente sensual, o cosmos (R. P. B. SINGH, Introduction: The Layout of Sacred Places, p. 162). Cf., ainda, L. GUENTHER, Towards a Phenomenology of Dwelling, p. 38-46. 55 Desde o ponto central da cidade, os quatro horizontes so projetados para fora dos limites do espao nas quatro direes, assim delimitando e orientando a ambiente circundante, assimilando-a como territrio sagrado dentro do continuum do espao profano, submetendo-o ordem csmica, sacralizando-a, tornando-a apta para habitao e cultura humanas (cf. A. SNODGRASS, The Symbolism of the Stupa, p. 69). Cf. S. GILL, Territory, in: M. C. TAYLOR (ed), Critical Terms for Religious Studies, p. 298-313; J. Z. SMITH, To Take Place: Toward Theory in Ritual, p. 1-23; H. W. TURNER, From Temple to Meeting House: The Phenomenology and Theology of Places of Worship, p. 2-12; e A. VAN GENNEP, The Rites of Passage, p. 15-25. 56 M. ELIADE, O Sagrado e o Profano, p. 44. Cf. M. Eliade, Tratado de Histria das Religies, p. 441. Para Agni, o altar vdico do fogo, cf. F. STALL, Agni: The Vedic Ritual of the Fire Alter, v. 2, 1983. Para a relao entre altar, cosmogonia e cremao ritual, cf. T. OESTIGAARD, Cremation and Cosmogony Karma and Soteriology, p. 164-175. Mas no apenas o lugar sagrado est a simpaticamente reconstrudo: tambm, e com ele, o tempo sagrado, conforme
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como se os territrios desocupados, desconhecidos, estrangeiros (isto
quer dizer muitas vezes: desocupado pelos nossos) participassem ainda das
condies existenciais das terras profanas. No constituiriam, por isso, um
mundo o mundo do grupo, nosso mundo. Seria por isso, ento, que,
ocupando-