a construção do sentido na arquitetura-coelho neto

90
8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 1/90 Próximo lançamento A Gramática do Decameron Tzvetan Todorov ! eEtes e ates e tes arquitetura Uma edifica ção nflOtem ap enlls um sll:nifi clldo formlll , estético , e outro funcion al: há nela se ntidos 1i1 :'l< los tanto ao po<'ticoquanto ao soc iológi- co, mo vidos por va l:0s Impu lsos inconscien les ou por um ní tido projeto ideológi co. No entanto , hOIl p"r'" dll arqu itelur ll contemp0rl,nea tem dei xado escapar esses ne xos ou , pio r all ulll, manlpulll-os d e man eira in- consc iente, cr iando uni n . · luírio ond. " u unlui lclllrn ni ,o fu lu nu.is. apenas balbu cia coisas q ue niio rum Ch"I:"111 110 irls,'nsato, ,, 'sulllmdo d llí o pro- gressiv o esmaganlcnto d ( '" st·u d•• ~U n u l{ . rio (' " !'oM " lIt ' tul , () hU I11C Il •. É da cr ítica des ta soh", ;i1O .1•• · Â ( 'o'''lrll,,,o do Senlid o na Âr'l"ilel"r a parte p ara a sua procuru b J ts i 4:ll: n « I r ' 1111111 Ihl~lInJ .:.:nl nu un lll itt " 'uru cu- ja ade q u ada op eruc iOIlU lilJ " ' UU pw u tnu •. .. ronnu l '" o utuul unll.itcto -t éc. nico no p ro posítor de (,sl"',os j{' vlslu lllhrndos 1 '111 olllms I•. -ríodos mllis perdido s na es t eir a du R("vo lu \,uo hl4llJ~lrlnl t O no d(· t· III· ~() d• . U I I I U i l '0 , . a em que o p ro d uto arquih·tuntl ~III-J.:t· ,ohl( " .u cl o 4 , ' 4)1I1U \' ulor dt o (runl ,. nflo de uso. j . teixeira coelho netto A CONSTRUCÃO DO SENTIDO NA ARQUITETURA

Upload: carla-barros

Post on 04-Jun-2018

221 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 1/90

Próximo lançamentoA Gramática do DecameronTzvetan Todorov ! eEtese ates

e tes arquitetura

Uma edifica ção nf lOtem ap enlls um sll:nifi clldo formlll , estético , e outrofuncion al: há nela se ntidos 1i1 :'l< lostanto ao po<'ticoquanto ao soc iológi-co, mo vid os por va l:0s Impu lsos inconscien les ou por um ní tido projetoideológi co. No entanto , hOIl p"r'" dll arqu itelur ll contemp0rl,nea temdei xado escapar esses ne xos ou , pior allulll, manlpulll-os d e maneira in-consc iente, cr iando uni n .· luírio ond. " u unlui lclllrn ni ,o fu lu nu.is. apenas balbu cia coisas q ue niio rum Ch"I:"111 110 irls,'nsato, ,, 'sulllmdo d llí o pro-gressiv o esmaganlcnto d ('" st·u d••~U n ul{ . rio (' " !'oM " lIt ' tul , () hUI11CIl •.

É da cr ítica des ta soh", ;i1O.1•••· Â ('o'''lrll,,,o d o Senlid o na Âr'l"ilel"r aparte p ar a a sua procuru bJtsi4:ll: n «Ir ' 1111111Ihl~lInJ .:.:nl nu un lllitt " 'uru cu-

ja ade quada operuc iOIlU lilJ " 'UU pw u tnu •. ..ronnu l'" o utuul unll.itcto -téc.nico no p ro posítor de (,sl"',os j{' vlslu lllhrndos 1 '111olllms I•. -ríodos mllisperdido s na es teir a du R("vo lu \ ,uo hl4llJ~lrlnl t O no d(· t· III·~() d• . UI I IU i l' 0, .. a

em que o p ro duto arquih·tuntl ~III-J.:t· ,ohl( " .u clo 4 , ' 4)1I1U \ ' ulor dt o

(runl ,. nflode uso.

j. teixeira coelho netto

A CONSTRUCÃODO SENTIDO

NA ARQUITETURA

Page 2: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 2/90

Coleção DebatesDir igida por J.Guinsburg

j. teixeira coelho netto A CONSTRUCÃO

DO SENTIDONA ARQUITETURA

Equipe de realização - Revisão: Jost: Bonifáeio Caldas; Pr odução: RicardoW. Neves e Adr iana Garcia.

~\\,/~~ ~ EDITORA PERSPECTIVA

~I\\~

Page 3: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 3/90

Por uma Linguagem da Arquitetura .I. O SENTIDO DO ESPAÇO .

1.1. Uma defini ção de arquitetura .1.2. Semiologia da arquitetura? .1.3. Eix os organizadores do sentido do

espaço . . .1.3.1. 1.° Eixo do espaço arquitetural: Es-

paço Interior X Espaço Exterior ..1.3.2. 2.° Eixo: Espaço Privado X Espa-

ço. Comum .1.3.3. 3.° Eixo: Espaço Construído X Es-

paço Não-Construído .1.3.4. 4.° Eixo: Espaço Artificial X Espa-

ço Natural : .

Direitos reser vados 1 1

EDITORA PERSPECfIVA S.A.Av. Br igadeiro Luís Antônio. 302501401-000 - São Paulo - SP - BrasilFone: (011) 885-8388Fax: (011) 885-68781997

Page 4: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 4/90

1.3.5. 5.° Eixo: Espaço Amplo X EspaçoRestrito 62

1.3.6. 6.° Eixo: Espaço Vertical X Es- paço Horizontal 70

1.3.7. 7.° Eixo: Espaço Geométrico X Es- paço Não-Geométrico 80

1 . O Imaginário e o Ideológico .2 . Tr ês Casos Particulares do Ideológico

na Arquitetura .2. 1 . O mito " forma e funçã o" .2.2. Teoria d e produ ção do espaço:

uma formula ção .2 .3 . Semanti zação e dessemanti za-

zação do espa ço .

lI. O DISCURSO ESTÉTICO DA ARQUITE-TUR A .lI.L Discurso estético? .lI.2. O ritmo .lI.3. Um eixo estético englobante .

IlI. DESCONSTRUÇÁO DO SENTIDO: AN-TIARQUITETURA? .III .L Arquitetura perecível como antiar-

quitetura .Il1.2. Ar quit et ur a não-ra cional , ar quitetu-

ra irra cional , arq uit etura r ad ica l ..

·103103

129129

. 133142

167

177Os arquitetos não falam mais: apenas balbuciam

coisas sem sentido. Quantas vezes esta advertênciatem sido feita recentemente, com estas ou com palavrassemelhantes, nesta ou naquela língua? Seria inútil ecansativo proceder a uma contagem: o que parece ter sido também totalmente inútil foi essa mesma ad-moestação, pois o panorama à nossa volta continuauma algaravia deprimente e insensata.

Se os arquitetos não falam mais , supõe-se que

alguma vez devam ter-se expr imido de modo não ape-nas coerente como adequado e atraente. Quando foiisso? Por certo, mesmo na atualidade alguns arquite-tos continuam falando conscientemente, continuam a propor um discurso arquitetônico - mas não se cOn-

Page 5: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 5/90

segue citar mais que um Lloyd Wr ight aqui, um ou-tr o mais além (e isto, cOm reservas). Não parece res-tar dúvidas, no entanto, que os momentos em que aarquitetura constituiu, globalmente considerada, umdiscurso significativo pertencem ao passado. O ar qui-teto grego (o da Antigüidade, bem entendido, pois aarquitetura comum das cidades gregas atuais não pas-sa, lamentavelmente, do nível tristemente baixo de umestilo internacional bastardo de nítidas influências ame-ricanas) sabia o que falava, conhecia aquilo com quef ~lava, e o mesmo se pode dizer do arquiteto do gó-tIco, da renascença - mas não, obviamente. dosarquitetos de todos os neos, o neogótico, o neodás-sico, etc. Que se pretende dizer cOm isso? Que esses homens tinham formulado, ou formulavam, umestoque preciso de conceitos e de signos do qual reti-ravam os elementos para propor uma arquitetura ondecada elemento se define por si só e, ao mesmo tem-

po, em relação aos demais, num discurso que res- ponde a determinadas necessidades do homem da épo-ca e que este compreende.

:b fácil prever, aqui, uma objeção: em suma, osgrandes monumentos da história da arquitetur a, osgr andes nomes, estes têm uma linguagem específ ica,estes dominam um discurso: mas em volta de cada

Notr e-Dame de Paris, de cada palácio dos Doges háuma centena de ha bitações menOs ou mais po br es q ueo cr onista não r egistr ou e de cuja linguagem não sefala porque simplesmente não existe. E neste caso se

poderia dizer q ue também nos tem pos modernos osar quitetos "f "lam", pois Mendelsohn tem uma lingua-gem, Loos tem uma linguagem, etc.

Esta objeção, em par te, tem sua razão de ser:sem dúvida, o ca pital sempre favor eceu o desenvol-vimento das ar tes, e a arquitetur a não faz exceção.Por certo é mais f ácil criar um código ou falar à perf eição uma certa língua quando o "cliente" tem todoo dinheir o necessár io a tais exerckios. Dinheiro e tem- po: uma catedral gótica é assunto de gerações. Tudoisto é fato. No entanto, a história da arquitetura não

se limita às catedrais ou aos palácios - ou pelo me-nos nã~ deveria se limitar , embor a montanhas e mon-tanhas de volumes sobre história da arquitetura r e pi-tam sempre, incansavelmente, os mesmos nomes, asmesmas obr as, e estas são sempre Notre-Dame, São

Pedro, ea' d'Oro, etc. E se de fato, quando se falada arquitetura grega, é preciso ressaltar que se estáfalando da arquitetura dos templos e deixando demencionar a grande maioria de construções inqualifi-cáveis habitadas pelo povo; que quando se elogia acasa pompeana não se diz, freqüentemente, ter sido ela privilégio de bem poucos, por outro lado não é me-nos verdade que também não se menciona uma sériede fatos (de forma alguma exceções ou em minoria)não relacionados com as "grandes obras" e os "grandesarquitetos" e que não deixam de apresentar-se comoexemplos de domínio per feito de uma linguagem precisa,clara e conveniente de arquitetura e ur banismo. Pense-seno discurso produzido por um hábil jogo entre ruas e praças que marca a maioria das cidades italianas, desdeuma minúscula San Gimignano que chega até hoje pra-ticamente tal como era nos séculos XIV e XV, atéuma moderna Turim (que mal ou bem, e por umasérie de razões das quais nem todas são a simples cla-r ividência urbanística, ainda conserva, pelo menos emseu centro, essa rede antiga). Quem assinou essasobras, essas concepções? Michelângelo e Borromini seocuparam de Roma, mas quem " planejou" San Gimig-nano? O nome não ficou. E no entanto, muitas dessascidades não são simples proposições espontâneas: fo-ram até certo ponto planejadas. E não o foram a penns

para as gr andes famílias, para os doges e papas: o povo er a e é seu grande usuár io. E uma linguagemestá pr esente nessas obr as, uma linguagem ur ba-nística onde o fechado e o a ber to se completam, e o

previsível cOm o ines per ado, o protegido e o ex posto,o privado e o comum, o geométrico e o or gânico, emsuma: a unidade e a var iedade. Essa é uma lingua-gem completa, onde o indivíduo faz par te da cidadee a cidade, par te f undamental do indivíduo. O homemvive na cidade e da cidade, e a cidade não deixa deviver do homem. R ecentemente falar am mais uma vez,absurdo risível não fosse trágico, em transfor mar Ve-

neza numa espécie de museu a ser visitado: custouconvencer tais "planejadores" que sem os ha bitan-tes "normais" da cidade, Veneza se transformar ia numsimples amontoado de pedr as que morreria r a pidamentecomo qualquer ser vivo.

Page 6: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 6/90

Onde se encontra, hoje, essa linguagem que não éessencialmente vista e apontada -como "grande obra daarquitetura ou da urbanística" mas que é sentida fisi-camente, emocionalmente, por aqueles que ainda n:'íose deixaram entorpecer totalmente pelo vazio signifi-cativo das "cidades" modernas? Em lugar nenhum.Somente naquelas cidades o homem ainda dialoga cOmo espaço que o circunda: ao final de uma ruela som-

bria, a enorme surpresa sensorial de um espaço aber-to; aqui, uma escada que separa duas paisagens intei-ramente distintas - mas identifica-se o todo como umconjunto unitário que o indivíduo nunca conhece intei-ramente mas que ele não deixa de reconhe:::er . E nãoum conjunto (na verdade, Um aglomerado) como osde hoje onde o espaço é inteiramente hostil ao indiví-duo (que não pertence a ele), não lhe dando nenhu-ma informação além do mínimo exigido pelo utilita-rismo (o funcionalismo, esse deus da opressão), eque o homem não conhece nem em parte nem no

todo, que o homem sempre estranha porque a cidade,a intervalos cada vez menores, é constante e li~eral-mente destruída para abrigar o novo e todo- pode-roso hóspede, o automóvel, em novas e luzentes ave-nidas que levam do nada a lugar nenhum em termosde espaço humano.

Uma linguagem arquitetural não é portanto privi-légio das grandes obras ou dos grandes nomes: na ver-dade mesmo, ela é ainda mais rica quando se mani-festa nas obras que passam despercebidas, naquelas para as quais os guias turísticos não apontam porqueestão se servindo delas e nem pensam nisso: na ma-lha viária, no jogo dos espaços, das cores. E tam- pouco essa linguagem é pr ivilégio dos "tempos pas-sados". Se é verdade que a con:::epção norte-america-na de arquitetura e urbanística (que deixou boquia- berto o Le Corbuster de Quand les cathédrales étaient blanches, esse selvagem suíço prostrado diante dotemplo ilusionista de Nova York) é um real cancroextremamente árduo de se combater, tampouco é im- possível propor uma verdadeira linguagem para as

atuais "áglomerações". Na verdade, aquilo de que es-tas cidades carecem tremendamente é justamente deuma verdadeira linguagem que substitua o amontoadode frases e signos arquitetõnicos sem sentido (porquetanto quem os propõe quanto quem os recebe e utili-

za não 'Sabem o que significam, embora sintam seusefeitos) a contribuir unicamente para o caos total.

Uma linguagem precisa. Se a arquitetura é umaarte (e é, efetivamente), é uma arte específica quenecessita não de uma linguagem mais ou menOs intui-tiva com a qual o sujeito da criação artística lida e propõe sua obra, porém cujo significado real ele sóvem a descobrir freqüentem ente finda a obra, massim de uma linguagem definida tanto quanto possívelde antemão (pelo menos num de seus elementos, oespacial como se verá a seguir) e que esteja ao al-cance simultâneo do criador e do re:::eptor (enquantonas outras artes, a linguagem produtora é praticamen-te um segredo do criador, e a ela o receptor só temacesso mais tarde - e eventualmente).

Quais os elementos dessa linguagem? As duasgrandes unidades sintagmáticas em que se pode ini-cialmente decompor a linguagem da arquitetura (e da

urbanística) são o discurso primeiro do espaço emsi mesmo (o discurso do arranjo espacial) e o discursoestéti:::o do espaço (o arranjo espacial sob uma formaartística) .

Que se deve considerar como aquilo que cons-titui o objeto de estudo referente ao primeiro discurso?Em poucas palavras, esse campo será constituído pe-las respostas possíveis à indagação básica: afinal, queê o espaço? De fato, o que é o espaço? Isso deve-ria ser um conceito básico, muitos dirão que se tratade noção fundamental, praticamente um postuladoindefinível. Uma das respostas mais comuns que seobtém a essa indagação é: espaço é isso que nos cer-ca. Mas o que é isso? E por que esse "nos cerca"?Por que esse conceito do homem ilhado no meio deum espaço, que aliás a arquitetura só faz perpetuar? Não seria simplesmen~e porque não se dispõe aindade uma noção adequada de espaço, o qual, neste caso,é visto como mais um mistério cuja função básica(como a de todos os mistérios) é de alguma formaoprimir o homem, isolá-Io dentro de si mesmo (como o

medo do desconhecido), ilhá-Io? Efetivamente, nãoexiste ainda um corpo de ·coahecimentos orgânicoscapaz de reunir uma série de noções fragmentadas so- bre o espaço de modo a fornecer-nos um conceitooperacional, manipulável. E isto é tanto mais grave

Page 7: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 7/90

para o arquiteto uma vez que _se supõe que a arqui-tetura trabalha o espaço - e grave porque o arqui-teto trabalha sobre uma coisa que ele simplesmentenão sabe o que é, cujos significados (dos superfi-ciais aos mais profundos) ele desconhece inteira-mente! E se chega ao absurdo de se ter uma sériede teorias altamente elaboradas sobre o modo de tra-tar algo que não se sabe definir! Aliás, é necessário

mesmo frisar que durante um tempo consideravelmen-te longo a própria arquitetura não sabia nem mesmo propor-se seu verdadeiro objeto, o espaço, recalcando-o sob fórmulas vazias que partiam justamente do pressuposto de que se sabia, obviamente, o que era oespaço. Os exemplos disto são mais de um. ComoVitrúvio conceituava a arquitetura? Dizendo que ar·quitetura é ordenamento, disposição, proporção, dis-tribuição. Do quê? Do espaço, por certo - mas istoera dado como algo já estabelecido. Alberti: arquite-Itura é voluptas, jirmitas, c .omfl1QdiJas. .-E -.o _.espaço?

esposta- possível: Está implícito. Não: está escamo-teado. VioIlet-Le-Duc: arquitetura é a arte de cons-truir. Fórmula até poética, se se quiser, _ mas nova-mente se parte do pressuposto de que já se conheceaquilo sobre o que se vai construir ou que se vai COns-truir . Já Perret propunha que a arquitetura é a artede organizar o espaço: vê-se aqui, pelo menos, a no-ção de espaço aflorar nitidamente à superfície do pen-samento arquitetural, mas o arquiteto ainda vai con-tinuar se preocupando apenas com as noções tradi-cionais de material, forma, função e com as noçõesmais recentes produzidas pela sociologia e pela eco-nomia política. Naturalmente se poderia dizer que atémeados do. século xx não se tinha nem mesmo como que pensar o espaço a não ser em termos tradicio-nais de geometria, o que efetivamente é verdade, poisalgumas disciplinas fundamentais para a abordagem doespaço só irão se firmar nas primeiras décadas de1900 (como a psicanálise), enquanto outras só irãocomeçar a . se estruturar bem mais tarde (como a pro-xêmica). Já é tempo, no entanto, de trazer a pesqui-

sa do espaço em si para o primeiro plano dos estu-dos de arquitetura; este estudo não tem a pretensão,ainda que remota, de nem ao menos expor o proble-ma em toda sua extensão (quanto mais resolvê-Io),mas pelo menos tratará de levantar aqueles elemen-

tos que são absolutamente indispensáveis para a práti-ca do espaço.

O outro dos discursos a ser aqui abordado é oelaborado pela estéüca do espaço (de acordo cOm afórmula de Perret, o sentido da "organização do es- paço" constitui o corpo do primeiro discurso, e o pro- blema da "arte da", o corpo deste discurso segundo).Estética: a simples menção deste termo talvez já seja

suficiente para abrir um enorme claro entre os even-tuais arquitetos leitores deste trabalho. De fato, os pro- blemas de estética têm a peculiar propriedade de aglu-tinar contra si adeptos de duas correntes perfeitamenteopostas em arquitetura: os tecnocratas e os huma-nistas (ou a arquitetura do status quo e a arquiteturade vanguarda em seu sentido mais amplo, formal e político). Os tecnocratas não vêem nenhuma utilida-de para a estética ou para a arte; para estes, res- ponsáveis por uma arquitetura bastarda e de pacoti-lha (os grandes edifícios, as habitações coletivas, asmonstruosas avenidas, as vias expressas, etc.), arqui-tetura se resume na "arte" de equacionar adequada-mente forças, material, tempo e dinheiro, especial-mente estes dois últimos elementos. Para muitos dosque se colocam sob a bandeira da vanguarda (simplesrótulo vazio, na maioria das vezes), Estética é igual-mente detestável como signo de um ensino arcaicoe cIassista. Com que orgulho de "revolucionário" umestudante de arquitetura de Veneza lhe contará "aslutas que tivemos para acabar com a questão da Esté-tica em arquitetura" - sem se dar a menor conta doespaço, do ambiente e da arquitetura que o cerca emsua própria cidade, por certo um dos arquétipos ar-quiteturais do homem moderno!

Por um lado, é extremamente fácil saber a causade tanto ódio à estética por parte destes "vanguar-deiros~': para eles, os problemas de estética estão in-dissoluvelmente ligados, senão racionalmente, pelo me-nos ao nível do sentimento e da "impressão", à cul-tura clássica, especificamente à cultura renascentistaà qual ainda estamos incrivelmente associados, e da

qual a esmagadora maioria da arquitetura atual aindaé um exemplo. Para eles (e com razão, pois estes problemas ainda continuam a ser freqüentemente co-locados em tais termos) Estética diz respeito às ca-tegorias do belo e do feio, e às questões de forma e

Page 8: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 8/90

conteúd~, harmonia, composição, equilíbrio, ritmo, etc.Mas não percebem uma série âe coisas. Primeiro, quese -conseguem esquivar-se ao estudo de Estética e daArte enquanto disciplinas universitárias (e, de fato, .aesmagadora maioria das faculdades não concede maisdo que 2 ou 3 semestres a tais estudos, e isto quando5 anos seriam claramente insuficientes), não se furtamaos efeitos dessa estética tradicional porque em ou-tras disciplinas (Composição, etc.) ou nos mais "im- portantes" e conhecidos manuais de história. da ar-quitetura ou estética da arquitetura eles contmuam aser dirigidos como cordeiros na direção dos problemasde ritmo, harmonia e composição que não passam derebentos diretos dessa estética. E ainda que por mi-lagre escapem desta influência indireta e disfarçadada estética clássica, não escapam às influências do próprio meio que nos envolve e que é um meio querecende a classicismo, e revelam todas essas influên-cias em seus eventuais trabalhos. O que não é clás-sico (no sentido de ritmo, harmonia, etc.)? Brasíliaé La Défense em Paris é. A arquitetura dita "mo-derna" o é, de modo esmagador. E os poucos que nãosão ou que não foram continuam a ser encarado.scomo visionários (entenda-se: loucos ou mesmo pen-gosos - como Mendelsohn, por exemplo).

Segundo, que renegando Estética e Arte renegama própria essência de sua profissão, dando e~tremarazão a seus opositores, os engenheiros, dos qUals.c~~-seguiram arrancar , há não muito tempo, um pnvile-

gio realmente indevido. O que foram os grandes ar-quitetos cujas obras continuam como p~rad~gma~? An-tes de mais nada, artistas: o que fOl Mlchelangelo,esse genial urbanista? Essa renegação em si só nãoteria maiores conseqüências (renegar, "matar" psico-logicamente "o pai", o modelo, é mesn-:o a. ala~ancada afirmação e da renovação) se nao lm~hcasseuma insuportável separação entre arte e arqUItetura.E o que é preciso que se entenda é que a arquite-tura é a grande (e talvez realmente a única) forma deexpressão artística que se não é conscientemente de-

dicada às grandes massas é, pelo menos, aquela a queestas têm acesso do modo mais imediato possível. Enão se compreende que esses mesmos que mergulhamnuma luta por uma veiculação mais justa da arte ~smassas, como freqüentemente acontece -com o arqUl-

teto, venham negar a arte e a estética em sua própriaatividade primeira. f :. preciso que se diga: o arqui-teto distanciado dos problemas de Estética é um man-co das duas pernas, e a obra por ele proposta, aindaque pare em pé, vale tanto quanto aquela que desa- ba, mal se tira a última escora: nada. Não cheganem mesmo a ser um reacionário, ele não existe. Éfundamental dominar, portanto, também esta lingua-gem estética, de modo especial se se pretende realmentetranscender a linguagem clássica: alguns de seus pon-tos fundamentais serão, pois, dis::utidos.

Este estudo propõe-se, assim, examinar as basesde uma linguagem da arquitetura. Os mais exigentes,como os semiólogos, poderão no entanto dizer quenão é suficiente falar numa linguagem do espaço,sendo antes necessário provar que tal linguagem efe-tivamente existe e existe enquanto real linguagem -uma vez que proliferam os usos indevidos do termoe do conceito de linguagem. Não deixam de ter ra-zão. Contudo, não me interessa demonstrar aqui queessa linguagem do espaço é de fato e rigorosamenteuma linguagem, tal como a definem as teorias dalinguagem, com suas articulações e unidades combi-náveis, mas sim considerar o espaço como uma formagenérica de expressão que efetivamente informa o ho-mem (e COmo qual os homens se infor mam, de modoconsdente ou não) e como detentor de sentidos passí-veis de uma formalização necessária para a operaçãosobre esse mesmo espaço, para a prática arquitetura!.

Page 9: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 9/90

Dê fato, se se passar em revista as diferentese sucessivas definições da arqúitetura, se verifica quesão necessários mais de 2 000 anos, bem mais, paraque se conceitue a arquitetura de, ~odo ~fe~i~amenteadequado com seu objeto espeCifico. VltruvlO tecetodó um discurso sobre arquitetura sem nem ao me-nos e Imitar de modo aceitável seu domínio: "ciên-

. cia que deve ser acompanhad~ por uma gran?e di-

versidade de estudos e conhecimentos por meIO dos-..quais ela avalia as outras artes que lhe pertencem ...O acesso a esta ciência se faz através da prática eda teoria: a prática consiste ... " etc. Mas quaJ dis-ciplina deixa de se encaixar nesse quadro? E mesmoquando Vitrúvio enuncia claraf?ente, err: seus t~rmos,aquilo em que consiste a arqUItetura nao se da nemum passo na direção de um conceito clar.o e ade,quadodessa disciplina e dessa prática: "A arqUItetura e ~om- posta por: o ordenamento. que o~ gre~os deno~ma.m)taxis, a disposição (den.~ml?ada dLQ~he~ls).' ~ eurntmla,a proporção, a convemenCla e a dlstnbUlçao, que emgrego se denomina economia 2".

A pergunta surge de imediato: ordenan;ento, dis- posição, distribuição do quê? A resposta so pod~ ser uma e unicamente uma: do Espaço. Por consegulllte, por que não atribuir a. esta noção o lug.ar, ~ue elaefetivamente ocupa? Os su:.:essores de Vlt~uvlO na?repararam esta lacuna, porém: Alberti defme arqUI-tetura como firmitas, commoditas et voluptas 3 - masnao é este o objeto primeiro da arquitetura! E ~o en-

tanto, a partir de Alberti as definições da arq~ltetur.ase sucedem sempre na mesma trilha do conceIto tn- partido e totalmente secundário para a pre_ocup~çã?arquitetural. Blondel, por exemplo: co~stru.çao, dlstn-buição, decoração. Para a Society of Hlstonans of ~r:chitecture 4: venustas, firmitas, utilitas 5. Para a SocleteCentral e des Architeçtes (no século XIX), arquiteturaé o belo o verdadeiro e o útil. Guimard sugere:sentiment~, lógica, harmonia. Para Nervi, é função,forma e estrutura. E só mais recentemente o esforço dedefinição da arquitetura abandonou essa e outras trin-dades consagradas para adotar um binarismo no en-

2. VITRÚVIO, Les dix livres d'architecture. Paris, 1965 .3. Solidez, comodidade, prazer.4. Ver PH . BOUDON, Sur l.'espace architecturale. Paris, 1971 .5. Beleza, solldez, utllldade.

tanto não menos mistificador, o famoso "forma Xfunção".

Todos esses termos são por certo bastante "poé-ticos" (voluptas, commoditas, venustas, belo, sentimen-to, lógica) mas, simultaneamente, duplamente engano-sos, primeiro porque não definem a arquitetura e, se-gundo, porque não definem a si mesmos (que é sen-timento, ou que é o belo, ou a comodidade?). Esca-moteiam o objeto da discussão e induzem em erro a prática da arquitetura, um erro constante e cada vezmais acentuado, resultante do simples fato que é aignorância em que se mantém o arquiteto em rela-ção a seu próprio trabalho, seu próprio objeto, seu próprio instrumento.

Se uma maior simplicidade e precisão principiacom Viollet-Le-Duc, no século XIX ("arquitetura é aarte de construir"), na verdade o erro só começali ser corrigido por Luçart: em seu Architecture, de1929, Lurçat delimita o campo da arquitetura comosendo o dos volumes que se levantam no espaço, quesão determinados pelas superfícies que se encontram ecujas proporções exatas são indicantes pela luz. Volu-me, superfície, espaço e luz são portanto, para Luçart,Os componentes da arquitetura. Mas um conceito defi-ntdor não pode ser composto por elementos heterogê-neos como esses quatro, alinhados num mesmo planoe sem especificações. E no mesmo ano de 1929, LeCorbusier não colabora, em seu Précisions, para oesclarecimento da função da arquitetura (o que aliásé uma constante em seu trabalho): entre frases in-teiramente gratuitas como "A arquitetura é um atode vontade consciente" (que se aplica tanto a um chu-te numa bola quanto ao ato de abrir uma torneira, passando pela mais variada gama de atividades físi-cas, metafísicas e patafísicas), Le Corbusier roça o pro-

J:>lema apenas quando afirma que arquitetura é "pôr em ordem", faz uma valiosa sugestão quando especi-fica que se trata de "ordenar" objetos, emite uma pro-

J>õrçao ainda mais útil quando diz que se trata de or-denar "funções", mas põe tudo a perder quando afir-

- - - m a que se trata de "ocupar o espaço com edifícios e

estradas. .. criar vasos para abrigar os homens ... ".Aqui, sua terminologia é nitidamente infeliz, para di-zer o mínimo, e uma análise do conteúdo da dimensãoverbal do environment arquitetural mostra claramente ocaráter concentracionário dessa proposição, a ser in-

Page 10: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 10/90

teiramente evitada dentro de uma prática arquitetônicaefetivamente humanista. Não se trata, de fato, de "ocu- par" o espaço: Augusto Perret 6, que não é prop~ia-mente uma estrela da arquitetura como Le Corbusle~, propõe um conceito inteiramente adequado. de, arqm-tetura: "a arte de organizar o espaço (o grifo e meu)que se exprime através da construção". Organiza~ oespaço e, mesmo, mais que isso, criar? espaço: aSSim,

efetivamente, se pode descrever a arqmtetura. E se for necessário ser ainda mais preciso, pode-se ressaltar quearquitetura é simplesmente traba}ho sobre o Espaç~, produção do Espaço 7 - este e o elemento esp~cl-fico da arquitetura, escamoteado em todos estes secu-los e ainda hoje.

Mas por que esta ocultação, esta marginalização doEspaço? Embora toda proposição arquitetural rel~vesempre de uma ideologia, e apesar d.e.toda a arqmte-tura em sua totalidade poder ser deflnida como resul-tante e simultaneamente alimentadora de uma ideologiarepressiva (antes de mais nad~ pela sua ~rópria natu-reza econômica - mas tambem em razao de aspec-tos materiais da construção, como se verá a seguir),será talvez necessário reconhecer que esse abandonodo Espaço reveste-se de ~m carát.e~ "inocente", nãointencional sendo fruto nao especlficamente de umamá consciência mas apenas de uma consciência incons-ciente (claro que não por isso desculpável). Como? possivelmente sob a influência da geometria euclidiana(e o espaço arquitetural costuma aind~ ser. i?ent~fica~ocom o espaço geométrico, embora t~l ldentlficaçao seja

não só desnecessária como não pertmente e mesmo no-civa como se verá), o arquiteto habituou-se a consi-der;r o Espaço como um dado (no sentido primeirodo termo: oferecido) evidente por si só e portanto quenão necessita ser demonstrado); um postulado, enfim.E um postulado não se discute, é posto à margem d.adiscussão: é mesmo recalcado - e tanto que o arqm-teto nem mesmo se dá mais conta dele. Contudo, anoção de Espaço não é e nunca foi uma noção evi-dente por si mesma. O que é afinal o Espaço, qual osentido do elemento sobre o qual a arqmtetura traba-

lha às cegas? Até o século XX o arquiteto não tinhacomo, na verdade, proceder a esse estudo e pouco

mais podia fazer alguém de jogar com o Espaço en-quanto noção absoluta e auto-suficiente (daí, por exemplo, os lamentáveis enganos, hoje chamados kitsch ,que foram e continuam a ser as transplantações de es-tilos ou soluções arquitetônicas: o clássico grego emWashington, um barroco francês no tropical Rio deJaneiro, um vitoriano inglês no árabe Egito, etc.) .Uma série de disciplinas atuais, no entanto, da antro-

pologia à semiologia, passando por pontos de inter-secção como a proxêmica, pôs em realce não ape-nas o caráter totalmente relativo da noção de Espa-ço cama a conseqüente necessidade de estudar e deli-mitar, praticamente caso por caso, os sentidos especí-ficos do Espaço, conforme o lugar e o tempo. E a ar-quitetura cOm isso tem de voltar atrás e repensar (oumesmo pensar pela primeira vez) o elemento que atéaqui foi sua base indiscutida: qual o sentido do Espaço,afinal?

6. M. ZAHAR, Auguste Perret. Paris, 1959 .7. E não "pensamento do Espaço", como sugere Boudon:

arquitetura é ação, não apenas renexão.

1.2. Semiologia da arquitetura?

Definido o objeto da arquitetura cama sendo a produção do Espaço, surge a questão de saber de queEspaço se trata, quais suas espécies, suas delimitações, para a seguir ser possível indagar de seus respectivossentidos (operações estas, aliás, intimamente ligadas).Esta necessidade faz logo pensar num recurso a umasemiologla do espaço arquitetura I ou no estabelecimen-

lacr e tal semiologia. No entanto, embora não reste a- menor dúvida quanto ao Espaço constituir uma se-

miótica (i. e., num sentido mais simples, mais amPJo possível e menos rígido: um conjunto analisável de sig-nos), não se recorrerá nem a nenhuma das "semiolo-gias" do espaço já "estabelecidas", nem se tentará aqui propor uma nova. Por que esta recusa se este mesmotrabalho será, ao final - quer queira ou não -,um trabalho de indagação semiológica? A negativa emrecorrer a modelos de semiologia do Espaço reside naverificação do quão pouco de útil esses estudos trou-xeram até aqui e da previsão probabilística do quasenada que poderão oferecer num futuro imediato ouremoto - pelo menos no que diz respeito ao estabe-lecimento de uma semiologia do espaço arquiteturalde caráter genérico e englobante, passível de ser utili-zada como instrumento de trabalho pela maioria dosarquitetos e não apenas como tema de infindáveis dis-cussões teóricas. Com efeito, é totalmente lícito per -

Page 11: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 11/90

guntar se existe atualmente um conjunto de regras bá-sicas e comuns capaz de fornecer, aos próprios teóricosdo Espaço e aos que dela se servem no trabalho pro-fissional, um campo único de entendimento a respeitodaquilo sobre o que se quer falar. Estas pesquisas "se-miológicas" constituem um verdadeiro circo onde cadaum manipula um conceito p'articular que provocará"modelos" cuja utilidade consiste unicamente em exis-

tir enquanto tais e mais nada. Em 1974, após um con-gresso de semiologia em Milão, a considerada revistade semiologia VS 8 publicou um número especial comuma "Bibliografia semiótica" abrangendo toda a pro-dução sobre semiologia em uma série de países, uma bibliografia que se confessa ao mesmo tempo ampla er igorosa. Mas se os critérios de rigor tivessem sido real-mente aplicados, ao invés das duzentas e tantas pági-nas desse número, e de outras em números seguintes,se teria talvez uma meia dúzia de páginas. Os própriosorganizadores se- dão conta da barafunda conceitualexistente no campo - o que não impede que incluam,em sua relação, obras que se dizem "de semiologia"mas cuja semelhança com esta disciplina é realmentemera coincidência.

O que se entende hoje por semiologia do espaço,semiologia da arquitetura, semiologia do espaço arqui-tetural, o que se admite, mal ou bem (mais mal que bem), como constituintes desses corpos de estudo? Semmuito esforço se consegue enquadrar os trabalhos exis-tentes em alguns poucos tipos bem definidos:

a) trabalhos de inspiração nos métodos lingüísticas eque procuram mostrar as possibilidades de umaanálise semiológica do espaço com (no máximo)uma tentativa de determinar as aparentemente obri-gatórias unidades mínimas significantes e suas cOm- binações em discursos mais amplos;

b) trabalhos sobre sistemas de notação da lingua-gem arquitetural (na verdade só possíveis depoisde se realizar o especificado no item anterior e que,no entanto, freqüentem ente tentam se propor iso-ladamente) ;

c) estudos da "dimensão verbal" da arquitetura(análise do conteúdo da arquitetura através da

identificação de seus análogos verbais, visando es-tabelecer "gramáticas" do espaço ur bano ou ar-quitetura) ou, em ter mos mais gerais, estudos so- bre a "representação" do espaço arquitetural(através de fotos, esquemas, desenhos, quadros,etc) ;

d) análise das relações entre espaço arquitetural e o

espaço gráfico-geométrico (um tipo da espécieapontada acima);

e) análise das relações entre espaço mental e espaçofísko;

f ) estudos sobre modificação do sentido, semantiza-ção ou dessemantização do es paço arquitetural lo-calizado (pr aças, ruas, a posentos, etc.);

g) trabalhos sobre os modos de percepção do am- biente construído;

h) estudo dos espaços físicos e sua utilização social;

i ) análise da obra de arquitetos individualmente COn-siderados, em termos de morfologia e sintaxe (equi-valentes aos antigos "estudos de estilo");

j) e, mesmo, análise dos dicursos sobre a arquitetura(e não da arquitetura).

De imediato se percebe que todos esses itens, me·nos um, relacionam tipos de obras que nada têm aver com uma análise semiológica entendida segundocritérios rigorosos. A maioria se diz (ou é recebidacomo) semiológica simplesmente por tentar uma ma-nipulação do problema do significado em arquiteturaou por falar do espaço arquitetural enquanto signo _ o que obviamente não basta se se encara o empreendi-mento semiológico numa perspectiva rigorosa.

E os trabalhos que seriam mais especificamentesemiológicos são, na maioria, totalmente inexpressivos,

nada trazendo que possa ser aproveitado numa r ealsem~ologia da arquitetura. Vejam-se por exemplo osescntos de Eco e seus discípulos 9: Eco se indaga s'o-

9. Ver, por ex ., A estrutura ausente As formas do con-teúdo, Tratado àe semiótica geral, todos de u. Eco.

Page 12: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 12/90

bre o que é código em arquitetura, se arq uitetura é lín-gua ou fala, se tem uma, duas ou mais articulações,e ter mina sugerindo que os elementos de segunda arti-culação são o ângulo, a linha reta, a cur va, o ponto (!)e q ue os de primeir a articulação são o quadrado, o re-tângulo, as f iguras irregulares, etc. (!!) De que, mas

"realiiiente de que, na mais remota possibilidade, adian-ta ao teórico ou ao profissional saber que um espa-ço arquitetural se for mula através de combinação entrelinhas e pontos formando figuras, e que uns são osf amosos elementos de segunda articulação e outros, osde pr imeira ar ticulação? Não ser ve par a nada, rigor osa-mente para nada a não ser demonstr ar a existência deuma doença inf antil da semiologia! Isso quando nãose tr ata de trabalhos 10 que dizem o que é uma lingua-gem, f azem um resumo das teor ias de um ou dois au-tores que seriam a plicáveis a uma semioJogia da arqui-tetura, dizem que um modelo semiológico da arquitetu-ra ser ia possível por esta ou aquela rápida razão semno entanto chegar, nem de longe, a propor tal mo-delo 11. E mais ainda: é perfeitamente lícito ao arqui-teto dizer que não se interessa minimamente pelas pos-sibilidades de seu discurso ser identificado com o mo-delo proposto pela lingüística, que nada lhe diz a pro- posição segundo a qual uma linha é um fonema ou quetodo o discur so ar quitetur al é realmente um código. Oque deve lhe inter essar é na ver dade o significado deseu modo de or ganizar o Espaço, a maneira pela qu'ala arquitetura é normalmente r ece bida e sentida (ou

manipulada) pelo homem e pela sociedade. E aq ui severifica que os trabalhos encaixados nO~ itens de c a iacabam por r evelar-se na verdade mais úteis para o ar -quiteto embora nada tenham a ver com os pr o ble-mas da semiologia pr o priamente dita. Eqnivale isto aafirmar que para o arquiteto o problema fundamentalestá ainda antes em identificar as significações bási-cas de seu discur so do que em formular modelos deartkulação dessas significações. E com isto todo tra- balho de indagação do sentido em arquitetura será fun-damentalmente pluridisciplinar: a a bordagem psicológi-ca, a sociológica e a histór ica não podem e não devemser evitadas. Ostentar o r ótulo segr egacionista de "Se-miologia" é antes ocultar-se sob um nome (ainda) prestigioso e ocultar uma inoper ância.

Há ainda uma outra r azão para deixar de lado as pesquisas ditas semiológicas, em particular as descritasno item a acima: todo estabelecimento de um modelosemiológico tem por resultado (quase) inelutável a fi-xação do discurso analisado em moldes inelásticos.Apreende-se e imobiliza-se o objeto de estudo. E nãoé necessário ressaltar os inconvenientes dessa solução:

--seé perfeitamente possível admiti-Ia quando se trata de,.analisar uma produção, uma linguagem já imobilizada,. já morta (a arquitetur a barroca, a gótica, a arquitetu--ra de Le Cor busier) - quando é mesmo instrumento

10. Por ex emplo, o livro de Maria Lulsa Scalvlnl sob o

pom poso títul o L'arc h ite ttura com e sem ioti c a co nnotati va (MI-lão, 197 5) e que não propõ e semióti ca alguma da arquitetur a.11. Par a o leitor não esp ecializado e não inter essado nos

prob lema s d e se miol ogia explic a-se r api d amente que o propó sitode mul to semi ólogo (em parti cular os de extração d a Eu r opaOcidenta l) é o d e d emon str ar q ue um determin ad o conjuntode sig nos (c omo os pr oduzidos pelo es paço, ou pela est ória emquadrinhos, pelo c inem a, pelos gesto s hum anos, etc.) constltul-

se numa linguage m (um repertório f ortement e or ganizado de sig-nos que se co mbín am atrav és d e norma s fixas, como n as lin-guas natur ais: portu guês, fr ancês, e tc.) que se estrutura es sen-cialme nte , conf orme a teoria d e HJ elmslev (Prolégom é n e s à unetnéor ie d u lan gag e , Pari s, 1971), através da :

a) existência de dois plan os, Expr essã o e Conteúdo . Ex: o pr efixo " 229" (EXpre ssão) de uma esta ção telefônica d e Londr esequivale ou remete ao Conteúdo "Bayswat er" (uma área lon-drin a) ;

b) existência d e doi s eixo s: Sist ema (o suporte , a Infra-

estrutura do t ext o a ser lido por um rec e ptor: as norm as decombinação) e Processo (o próprio texto que é Imediatamentelido p elo r ece ptor : uma seqü ência de ges tos do corpo humano , asforma s e cor es de uma tela, etc.);

c) propriedade de comutaçã o: relação entre duas unidades deum mesmo plano da lingua gem, que está li gada a uma r elação entreduas unidades do outro plano. Por exemplo , dua s unidades do plano d a ex pressão "687" e "405" (prefixos de estação telefônica) e

duas unid ad es d o plano d a exp r essão "Mus eum" e, "Holborn ". Entr eessas unidad es ex iste um r elacionamento tal que se "6 87" f or sub stituído por "40 5" , "Muse um" ser á substituíd o por "Holborn";

d) as pro pried ad es d a recçã o e com b ina çã o (r elaçôes bemd efinid as en tre as unid ad e lingüísticas) . Há recção quando umauni dad e Im plica a outr a, d e modo t al q ue a unid ad e Im plicada é

condiç ão necessári a par a q ue a unidad e que a Im plica es te ja pre-sen te. P or exe m plo, em latim um a cer ta pre posição Impl ica queo nome a seg uir este ja no a blativo (e se este es tiver no ablatlvo. a propo sição que o pr ecede d eve ser d e d eterminad a espéc ie). Damesma f orma, num d etermin ad o semáforo a pr esença d o amare loImpli ca que o ve rd e ou o ver melho o p r ecede u ou se lhe segui r á(ass im como a pr ese nça de u m ver de oU um v ermelho impl ica queum am ar elo o pr eced eu ou se lhe seg uir á). Há co m bina ção q uand oduas unid ad es se r elacionam se m qu e ha ja r e c ç ã o;

e) a não-conf ormi dade. Num a verdad eir a linguage m, pod eocor rer que d etermin ad as u nid ad es d e um plano n ão enco ntremuma corre s pond ência no outr o plano; numa f alsa lin guage m, essacorr espond ência existe se mpr e: por exe mplo , na ch amad a linguage mdo s emáforo - que não o é - tod a ex pr essão "amar elo" tem umconteúdo "aten ção", b em como todo conteúdo " siga" tem um a ex- pre ssão " verd e", etc .

Di z-se aind a que uma lin guagem é formada por s ign os (ou mo-nemas: as menOr es unidad es com si gnifi cado p ró prio, com o qualq uer

palavr a d as línguas naturais: " gato") e. mai s esp ecialmente, por figuras que ar ticulam os s ignos (ou fonemas , unidades sem signi-ficado espec ífico, como d, m , p ), conh ecid as r es pectiv amente comounidad es d e prim eira arti cula ção e unidade s d e segunda articul açã o,d e modo t al que os monemas s e formam através da artlcul açá o dostonema s (g,a,t ,o = gato) e a articulaçáo dos monemas pr o põeentid ades maior es como o s sint agmas. E ssas suces sivas articulaç õescom põem O di scurso que se of er ece ao receptor .

Page 13: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 13/90

precioso de estudo -, ela é de todo indesejável se setrata de entender uma produção em processo, que sefaz neste instante, que não só atua ainda e efetivamen-te como quer se modificar. Neste caso, embora sejaimpossível deixar de partir do signo (de modo mais particular, do significante), a atenção maior se volta-rá obrigatoriamente para o Inter pretante (noção pro- posta por Pierce e ainda largamente ignorada pela en-saística européia, em especial a francesa), i. e., os re-sultados causados pelo signo na quase-mente que éo Intérprete. Vamos sair portanto do campo estreito dalógica, da lingüística, do formalismo dos modelos pre-determinados, extravasar os limites de uma metodolo-gia imperialista e seguir um método que se elabora cria-tivamente de acordo com as necessidades do conjun-to sígnico a ser abordado. Um processo que retir e deonde for conveniente o material necessário; embora procura de um sentido, escavação numa semiótica (poisos signos do Es paço efetivamente propõem uma semió-tica), a indagação será aqui praticamente, no sen-tido ex pr esso, anti-semiótica.

O que não signif ica que a análise será dis per -siva, inorgânica, "impressionista". Pelo contr ár io: é q ueela parte igualmente de um outro ponto segundo oqual é necessário estabelecer um quadro geral, amplo,quando se fala de espaço arquitetura!. Com efeito, sain-do do campo das abordagens semiológicas ou "semio-lógicas", que ostentam uma excessiva preocupação deordem e um excessivo reducionismo, proliferam as abor-dagens de cunho psicológico, sociológico etc. que estu-

dam cada uma aspectos não pouco im por tantes queno entanto não conseguem se encaixar cOm os prove-nientes de pesq uisas paralelas na formação de um qua-dro unitário; essa articulação nunca se produz, e o ana-lista da arquitetura não consegue jamais formar àsua frente um quadro geral de seu objeto, onde cada parte remeteria organicamente a uma outra. Depara-se apenas com uma SOma imensa de dados importan-tes mas que, pela falta de organicidade, resultam ino- perantes. Por que não se forma esse quadro global?Pelo fato de não se contar ainda com uma espinha dor -

sal do espaço arquitetural ,claramente definida a orien-tar os trabalhos e delimitar o campo de ação. Essecampo está delimitado, por exemplo, na matemática:todo investigador sabe aqui de onde par tir , o q uefoi feito, o que pode ser feito, discerne claramente os

níveis de análise. O mesmo acontece em· disci plinasmenOs rígidas aparentemente, porém de estr utura igual-mente definida, como a pr ó pria lingüística. Mesmo na barafunda que é o campo psicológico, o objeto de estudo já tem seus grandes eixos pelo menos demarcados. Coma arquitetura não é assim. Usando um conceito dateoria da linguagem, o que, afinal, é pert ine nte emarquitetura, o que é efetivamente essenGial e se distin-gue do acessório, o que é básico? Como se viu, Lurçat por exemplo tentou apontar a coluna vertebral, a estru-tura básica, imprescindível e suficiente da arquiteturaquando a definiu comO"volume, superfície, espaço, luz".Se se seguisse sua demonstr ação, seria possível e neces-sário assim estudar , por exemplo, cOmo o homem sen-te tais e tais volumes, como se movimenta em deter-minadas superfícies, como tal luz se combina com talvolume, etc. Mas se sua desGrição é uma das primeirasa tentar essa operação de delimitação do essencial emarq uitetura, ela ainda é, como se viu, inadeq uada, in-completa. Não identificando, erroneamente, a arquite-tura com o espaço, a questão ainda tem de ser colo-cada e respondida: o que é per tinente par a o es paçoarquitetônico?

E~t~trabalho tentará por tanto essa demarcação e a proposlçao de um esquema definidor do Espaço arquite-tural capaz de se apresentar como uma linguagem co-mum de análise e r eflexão. Não será esta uma análiseexaustiva, no entanto: se colocará ao nível do mais am- plo possível de modo a delimitar apenas (e não es-miuçar), em 'Gonformidade com um princípio funda-

mental do procedimento semiológico, um primeiro tex-to de análise que se ja tão extenso quanto possível (nahorizontal), tão a br angente quanto possível, embora permanecendo simples, a partir do qual seja possívelaprofundar na vertical a análise até, eventualmente, es-gotá-Ia. Os princí pios a r eger a teoria exposta nesta se-ção serão dois, como suger e Hjelmslev: a teor ia cons-tituir á um sistema dedutivo puro (no sentido em que éa teoria, e só ela, que permite e determina o cálculodas possibilidades r esultantes das premissas que elacoloca) e, segundo: que as premissas enunciadas nat~ori~ são aquelas das quais o teórico sabe por ex pe-nêncla que preenchem as condições neGessárias para aanálise e que são tão ger ais quanto possível de modoa serem aplicáveis a um grande número de dados daexperiência.

Page 14: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 14/90

Enunciados os princl plOs norteadores, que pontode vista adotar para a formul'ação dessas premissas ge-rais e tão amplas quanto possível? O fornecido pelaTeoria da Informação é o adeq uado. Conf orme pro- põe essa disci plina 12, o pro;;esso mais sim ples do co-nhecimento humano e, simultaneamente, da mani pu-lação da informação é aq uele baseado na oposição bi-nária Sim x Não (1 X O, aceso X apagado, etc.): umacoisa é ela mesma ou seu contrário. Não cabe aqui eagora demonstrar a validade dessa pro posição geral, bastará talvez lembrar q ue efetivamente toda informaçãorecebida por um sujeito é por este entendid.a, (e sóé entendida deste modo) num primeiro instante, em opo-sição com aq uilo q ue essa informação exclui, num pro-cesso freq üentem ente inconsciente. Se digo "Ho je équinta-feir a", o sentido dessa informação é percebidoinicial e automaticamente pelo rece ptor cOmo sendo"Hoje não é nenhum outro dia da semana". O primeiro processo é sempre de exclusão por oposição. A propo-sição "Uma abordagem matemática do objeto estéti-co" signif ica antes de mais nada que "Não se trata deuma análise poé t ica (ou outra que se convencione comooposta à matemática) do su jeito estético", ou mesmo" . " do sujeito funcional " (admitindo-se, apenas par aar gumentar, que "estético" e "funcional" se o põem).A oposição binária é realmente a mais simples, em boraexistam sistemas q ue se desenvolvem a partir de oposi-ções com maior número de elementos (sempre, po-rém, com base em alguma oposição). Por exemplo, osistema lingüístico: uma palavra só é possível, e só éreconhecível, através de um jogo de posições e oposi-ções: a unidade com significado próprio e íntegro, gato,só é reconhecível graças à articulação dos fonemas, g,a, t, o q ue nada significam a não ser q ue g se opõe ad , b, f e qualq uer outro dos demais 22, o mesmo acon-tecendo com a, t, o (eventualmente, também a posiçãoterá algum valor signif icativo: o pr imeiro s de casasé distinto do segundo s, indicando este um valor nu-méü;;o e o pr imeir o a penas uma oposição).

O ponto de vista por tanto será o de proceder deinício a o posições binárias - embora se tenha plenaconsciência das limitações e inconveniências desse mé-todo q ue, no cam po das ciências humanas, conduz ine-vitavelmente a erros e defor mações quando aplicado

sistematicamente e de modo absoluto. Com efeito, aoposição binária (base da lógica aristotélica) é su pe-r ada (especialmente nas di&dplinas humanas, mas nãosó nelas) pela lógica dialética. Aqui, um enuncia-do como "A é A e não B" é inteiramente insuficientee inadequado, pois A nunca é A e nunca é B , A é Aem função de B na direção de um C, e assim por dian-te. Mas para os propósitos declarados deste estudo (ge-ner alidade e simplicidade) esse processo deve bastar :ele só intervirá na determinação dos pares de opostosque f ormarão os eixos organizadores do sentido do Es- paço (na elaboração do modelo final, portanto) que, aoserem analisados, re;;uperarão toda sua complexidadee riqueza. Esse método simplesmente constituirá, cOmoressaltado, o momento inicial da análise.

Como escolher, agora, os elementos q ue f ormarãoas oposições?~-I.3 . Ei xos or ganiza d ore s do sentid o d o espa ço

I .3 . I . 1.o eixo do espaço arquitetural: Espaço Inte-rior X Espaço Exterior

De início, há uma gr ande tentação no sentido deestabelecer esse quadro delimitatório do Espaço na ar -quitetura a partir de um dado "imediato" do pensamen-to ar q uitetural: quando se pensa arqu itet ura, pensa-senas três dimensões. Para Focillon 13, por exemplo, nãohá dúvida alguma que as três dimensões são a própriamatéria da arquitetura, sua substância mesma. E não édif ícil encontrar, desde os autores clássicos da Antigüi-dade até os ensaístas mais modernos, uma colocaçãosegundo a qual o que distingue a arquitetura das ou-tr as artes é exatamente a manipulação das e nas trêsdimensões reais - sem que esse raciocínio pareça sedar çonta de que igualmente a escultura, por exem- plo, é uma operação realizada nas mesmas condições.

Este privilégio das três dimensões não se justificae deve ser evitado, e não apenas por esta última r azão:o que se tem de ressaltar é que ele se baseia num pontode par tida não f undamental par a a arquitetur a (como

se discutir á mais adiante) e que, quando nela apa-r ece, o faz apenas num segundo momento, a saber ,no pensamento geométrico. A geometr ia, a re presenta-

Page 15: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 15/90

ção geométrica será mesmo essencial a todo pensamen-to analítico (e a arquitetura é uma forma desse pen-samento), mas deter-se nela e partir dela para definir o espaço arquitetural e a arquitetura é não descer às bases mesmas do pensamento sobre o Espaço que, ape-nas numa segunda operação, irá requerer ou não a es-quematização geométrica. Esta comporá me~mo um doseixos constituintes da linguagem da arqmtetura, mas por si só é insuficiente para defini-Ia.

O ponto de partida adequado será determinado pelamanipulação dos dados fornecidos pela antropologia, ede imediato se constitui o primeiro eixo de oposiçõesda demar;:.:ação do espaço arquitetural: Interior X Ex-terior. O confronto entre ambos e a passagem de umEspaço Interior para um Espaço Exterior constitui real-mente a noção e a operação de manipulação do Espa-ço mais importante para o homem, desde os primeirostempos pré-históricos em que a sociedade n~m mes-mo existia. Quer no plano estritamente matenal (pro-teção contra o tem po, as feras e os outros homens)

quanto num plano psicológico e social: analisando da-dos fornecidos pela antro pologia e quer endo ex plicar os ta bus em termos de psicanálise, Freud 14 insiste jus-tamente no valor dessa consciência precisa de um Es- paço Exterior e um Espaço Interior para os povos"primitivos", mesmo aqueles que mal se constituíamnum grupo so:.:ial.Há sempre, nessas "sociedades", uma·série de indivíduos que por razões variadas devemmanter-se (por norma impositiva incontornável) em de-terminados Espaços interiores Ou exteriores: em certosgrupos, o jovem de uma certa idade não penetra no

Espaço Interior onde estão a mãe e/ou as irmãs (tabudo incesto: impõe-se o afastamento para evitar p. ten-tação da violação); a mulher menstruada, em outrosgrupos, é tabu e deve permanecer em determinadosEspaços Interiores, a~astada dos outros, e ? mes~oacontece com o guerreiro que mata um adversano: aposo combate o vencedor ou não pode entrar em certosEspaços (às vezes não pode penetrar na área da co-munidade, ficando no mato adjacente) ou sair de cer-tos Espaços. Idem em relação à figura do próprio rei,quase sempre movend~-se em Espaços, ~nteriores!. etc;

E ainda hoje se podena apontar resqmclOs (e nao soresquícios) dessa oposição Interior X Exterior: a burocracia, a religião, a divisão em classe sociais não

faz mais do que manifestar-se constantemente atravésdessa oposição.

Como se coloca a arquitetura com relação a esseeixo? Privilegia ela um ou outro desses dois terminais(i. e., define-se ela por um ou por outro deles) ou, aocontrário, só pode ser entendida como relacionando-se a ambos simultaneamente? De início, é necessáriorechaçar a tendência que ,:.:onsisteem considerar essa

questão como ingênua e já solucionada e, em particu-lar, a tendência para considerar o Espaço Interior comoo domínio da arquitetura e o Espaço Exterior cOmo pertencendo ao urbanismo. Pelo contrário·, essa questãosempre esteve e continua em pé na Teoria da Arqui-tetura.

Existe efetivamente uma tendência acentuada nosentido de atribuir à arquitetura a preocupação primeirae fundamental de lidar com o Interior (falando-se aquinão apenas do Interior e Exterior como dois elemen-tos distintos - ex.: rua = exterior; casa = interior -mas como dois aspectos de um mesmo elemento, ex.:a parte interior e a parte exterior de uma e mesmacasa). Em considerar q ue o interior é a real substânciade uma coisa, de tal modo que quando se pensa emdefinir a substância da arquitetura só se pode dirigir para o Interior. E essa inclinação não é exclusiva do pensamento arquitetural: está por toda parte. Bache-lard 15 analisa longamente essa espécie de valorizaçãointuitiva e onipresente do interior e que seria, s~gundoele, uma das características do espírito pré-científico para o qual o interior de uma coisa é sua essência, suaverdade, sua natureza e seu destino últimos. E tenta-se mesmo justificar esse ponto de vista recorrendo-se por vezes a analogias que se querem, estas, científicas:a verdade do homem não estaria em seu interior, emsua "alma", ou em seu incons:.:iente enfim, em algo queestá lá dentro? Na verdade, a analogia não se susten-ta, e o pensa[ijento "interiorista" é antes um pensa-mento místico, um pensamento mágico, um pensamentodo misterioso: o interior é, desde o surgimento do ho-mem, a sede de mistérios insondáveis, impenetráveis emesmo aterrorizantes. Bachelard fala das formas sob as

quais esse medo do interior (e por conseguinte sua va-lorização, ou vice-versa) continua a persistir e se ma-nifestar: a atração receosa pela gaveta, cofres, armá-

Page 16: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 16/90

rios ou, o que interessa para a arquitetura, pelos porõesdas ,casas (depósito de fantàsmas, alucinações e culpas- a liter atur a policial abunda em "mistérios de porão")e pelos cantos. :É possível mesmo encontrar na colo-cação psicológica de Bachelard a explicação das ra-zões (senão a explicação) do enfoque que consiste emconsiderar a arquitetur a como manipulação do EspaçoInterior:

terior, o que não aconteceu nem no Românico, nemna arquitetura grega e tampouco na constr ução monu-mental egípda, nas· quais impera ou uma acentuada di-ferença entre Exterior e Interior (na primeira) ou mes-mo uma disparidade gr itante (nas outras duas).

Essa tendência, que vem à tona e simultaneamenteatinge o auge no Gótico, ainda se verifica (em graumenor) na Renascença e no Barroco (momentos emque se coloca de maneira nítida o problema da "facha-da"), quando cOmeça a declinar para, salvo momentosisolados (alguma art l1ouveall , produções dos grandesnomes como Le Corbusier ou Lloyd Wright COm seuexemplar Museu Guggenheim de New York, mais umcaso de identidade perfeita entre Exterior e Interior),ser atualmente substituída por uma arquitetura essencial-mente "de Exterior", seja o que for que pretendam di-zer os adeptos da teoria Forma X Função (ver capí-tulo seguinte), ou seja, uma arquitetura q ue se dedicade maneira es pecífica à "fachada" e que coloca em se-gundo plano o pensamento do interior ou onde, de q ual-quer for ma, inexiste a identif icação Exter ior -Interior,rompida em privilégio do primeiro.

Como se coloca afinal a arquitetur a em r elação aoeixo Espaço Exter ior X Espaço Interior, q ual o Es paçoque efetivamente define, aqui, o pensamento arquitetu-r al? :É necessário, de início, repelir as proposições dosque se recusam a tomar conhecimento do problemaafirmando que é impossível determinar-se, situar-se emr elação a esses termos por se tratar de noções relativas,e duplamente relativas. Relativos um em relação aooutro (não pode haver interior sem exterior , diz Bou-don 19, e se a arquitetura é interior, como pode con-tinuar a ser arquitetura sem um exterior?) e relativosconforme o observador se coloque no plano da casa ouda cidade: aqui, com efeito, a fachada (elemento exte-rior da casa) é na verdade elemento interno (inerente)à casa, só podendo ser considerado exterior à casa aqui-lo q ue está afastado dela, i.e., a praça, a rua, o espaçocoletivo.

Essa objeção se supera através da utilização, deinício, dos próprios termos de sua colocação: de fato,não há exterior sem interior e vice-versa. Quando com- parados um em relação ao outro, se deveria falar antesem complementação: são como as duas faces de umamoeda, e se faltar uma a moeda não pode existir . Mas

... todo canto numa casa, todo ç.arito num quarto, todo espa-ço r eduzido onde gostamos de nos agachar, de nos voltarmosso bre nós mesmos é, par a a imaginação, uma solidão, i. e., ogerme de um quarto, o ge rm e de um a casa 16 (o gr ifo é meu).

... o canto é um r efúgio que nos assegur a um primeir o valor do ser : a imobilidade 17.

Conhecemos a seqüência: enquanto refúgio, imo- bilidade, tranqüilidade, o canto (i. e., a casa) é a re- produção do primeiro abrigo humano, o útero mater-no, e por conseguinte a arquitetura, expressão perfeitada imo bilidade, se decidiria por uma das pontas doeixo: o Interior . E assim tem sido efetivamente atravésdos séculos: desde a concepção de uma casa egípcia(não de um templo egípcio) da xx dinastia (aprox.1198 a.C.), passando pela casa pompeana (79 d.C.), atéo período r omânico (séculos XI, XII) obedeceu-se a essaor ientação de manipular por excelência um Espaço' In-ter ior concebido cOmo oposição ao Exterior e com oqual se pr ocur ava uma proteção necessária - quem vêo muro liso e exterior (anônimo, agressivo) de umacasa pompeana é incapaz de imaginar a tranqüilidade, aintimidade (a imobilidade) interior .

Mas, o "misticismo interiorista" já foi identifica-do, combatido e superado pelo menos na filosofia, de- pois do longo período de obscurantismo platônico eescolástico: par af raseando Lenin, por exemplo (que nãoestava fazendo um mero jogo de palavras, embora por certo tinha em mente uma intenção jocosa) é inques-tionável que a aparência é essencial, ao mesmo tempoem que o essencial aparece 18. Fato que começa a semanifestar na arquitetura a partir do Gótico, quando oexterior de uma catedr al é um reflexo fif 'l de seu in-

16. BACHELARD , p. 30.17. Idem, p . 131 .18. Em termos de arquitetura, Le Corbusler diria que "o exte-

rior é sempre um outro Inte r ior".

Page 17: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 17/90

a oposlçao mencionada· continua existindo, e só podeser superada (quer se trate 'de uma casa, quando sef ala em inter ior enquanto oposto à fachada, quer setr ate da oposição casa = inter ior versus não-casa (rua,etc.) = exterior através de um jogo dialético entre essesaspectos. Não uma dialética conce bida enquanto con-f lito simples, mas enquanto jogo combinatório consis-tente em partir simultaneamente de uma e outr a dessas

duas noções para superá-Ias ao mesmo tempo. Na ver -dade, se dirá que, seja como for , a arquitetura é o domÍ-nio da imobilidade real, e que se vê mal como é possí-vel combiná-Ia com o jogo dialético, dinâmico por na-tureza e adequado aos processos humanos: este é um pr oblema de peso, mas pode ser contornado, ou podeter um começo de solução através de uma concepçãoq ue não mais r eceba esses limites (o do Interior e odo Exterior) como barreiras, marcos definitivos 20. Ecom isto se re pele tam bém a segunda par te da ob jeçãolevantada, r efer ente à relatividade do ponto de vista(casa ou cidade): a oposição dialética também aquideve ser , com toda evidência, posta em pr ática e aboli-das as barr eir as definitivas entr e a casa e a cidade. En-tenda-se bem: a bolir muitas das barr eiras, porém nãotodas elas; não há dúvida nenhuma sobre a validadeda afirmação segundo a qual, psicológica e biologica-mente, o homem 21 precisa gozar de uma intimidade, deum isolamento dos outros por um certo númer o de horasdiár ias, e sob esse aspecto a casa enquanto r efúgió éuma necessidade - por outr o lado, igualmente não r esta

dúvida que o estado democr ático (supondo que não ha jaaqui uma contradição nos pr ó pr ios termos) só pode seimplantar quando (não a penas nesse momento, eviden-temente: mas aí as condições para essa im plantaçãoserão am plamente f avoráveis) se abolir o caráter dis-cr icionário com q ue se r eveste o uso dos Es paços Inte-rior es e Exterior es, uso que continua a existir ainda sobmuitas formas idênticas ou assemelhadas às postas em pr ática nas sociedades ditas " pr imitivas" antes men-cionadas.

estudando-se também urbanismo; a seguir transf orma-ram-se em f ac~ldades de arquitetura e urbanismo, f or-mando-se arqUItetos de um lado e urbanistas do outr oi.e., especialistas, per itos. Ora, a especialização não s~admite aqui, pelo que se acabou de dizer mais acima:a.s~par ação d~s conhecimentos só pode conduzir à o po-slçao casa x Cidade que se tem de evitar a todo custo.A solução? Há já alguns anos Bruno Zevi fala numa

nova disciplina (ou, pelo menos, num novo termo), aUr batetur a. O nome é f eio, por certo (seguramentef oi escolhido por exclusão: algo como "ar quibanismo"seria realmente intolerável!), mas a denominação defato pouco importa: o que interessa mesmo é percor -rer todo o caminho de volta até a Renascença e tentar contar de novo com homens que pensem a cidade semse esquecer que ela é feita de casas, e que proponhamcasas integr adas à malha coletiva - tal COmo pr opunhaum nome talvez já desconhecido pelos ar quitetos Mi-chelângelo. '

E a respeito da dialética casa x cidade é necessárioo bser var ainda um ponto: até q uando se suportará adistinção arq uitetura e urbanismo? Conhece-se a histó-r ia: no começo as faculdades eram só de arq uitetura,

Tão ou ainda mais importante do que ser ca pazd.e_ identif i~ar , formular e resolver o problema da opo-s~çao Intenor X Exterior é conhecer o significado pre-CISOdessas noções, sem o que aliás esse equacionamen-to é impossível ou inadequado.. Qual o significado que se atribui ao Espaço Inte.

nor e ao Es paço Exterior ou, em outras palavras, comose percebe um Espaço Inter ior e um Espaço Exter ior?Os pr imeiros ~a~os. vêm outra vez da antropologiacultural e de dISCiplInasq ue dela se alimentam, como

.a pr oxêmica (definida por Hall22 como o conjunto daso bservações e teorias ref er entes ao uso que o homemfaz ~o. es paço enq uanto produto cultural es pecíf ico) ea ek .lstl ~a (ter mo proposto pelo arq uiteto grego C. A.DoxIadls para designar o estudo dos modos de estabe-lecimento humanos).

~ primeira noção da importância f undamental que seextrai desses estudos é a que diz r espeito aos diferentesusos que se f az de um cer to espaço e aos dif erentes senti-dos que se atr ibuem a esses espaços conf orme a cultura(o grupo social em questão) e a época. Uma mesma dis-

20. Algumas possibil id ades d e execução d esta alterna tiva s ãod iscutid as ma is ad iante , na análise dos de mais eixos pr o postos.

21. Par ticularmente o ocid ental méd io.

Page 18: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 18/90

posição espacial, interior , o~ ~xterior, pode ser recebidade modos inteiramente dlStlOtOS (e mesmo opostos) por dois indivíduos de culturas diferentes, noção que se deveter sempre em mente e que ainda uma vez vem lem- brar o fato (pois lamentavelmente parece ser sempre .econtinuamente necessário fazê-Io) de que cabe ao arqUi-teto e ao urbanista a pesquisa precisa dos sentidos doespaço reconhecidos em seu país ou ~ultura. antes d.e propor sugestões arquitetônico-urbanístlcas seJ~m q ua,lsforem. Por mais óbvia que seja esta observaçao (e elao é sob mais de um aspecto), ela não é seguida nemde longe pela maioria dos praticantes de arquitetur a, nãosó os de hoje como os de quase to~os os tempo,s: acultur a itálica propõe uma forma aqUltet~ral no ,seculoXVI e dois séculos mais tar de se tenta Implanta-Ia (ese implanta) na Fr ança ou nos Estados l!nidos; a arq~i-tetur a inglesa é transplantada para o Egito; as soluçoesamer icanas são seguidas ao pé da letra u~ pouco por

toda parte atualmente - sem que o, ar qUIteto nem a.omenos se dê conta das profundas diferenças cultur~ISentr e o modelo que está seguindo ( por moda, comodiS-mo etc.) e a r ealidade so bre .a q ual tentará i~po: ess~modelo (e freq üentemente aSSim age de modo mgenu.oe sem segundas intenções - se existisse isso em S?~lO-logia) pr ovocando normalmente nã? ~penas. modifica-ções espúrias e equívocas em sua propna socled~de (nomodo de comportamento, nas :xpres.sõe~ ~ultur aIs etc.)como inclusive sérias perturbaçoes pSlcologlcas nos .usua-rios desses espaços. Alguns poucos casos compilados por Hall confir mam amplamente esses contrastes cultu-r ais que devem necessariamente ser levados em conta: basta pensar , por exemplo, que na ca~a .ocidental emgeral a dis posição interna das paredes e fIxa, e~quantoque na mor ada ja ponesa ( p.elo menos na tradiCional)as divisões são sempre semlfIxas. Ou q~e nor malmen~enão se ocupa o centro de um aposento mterno no .OCI-dente (salvo simbolicamente, com um pequeno o bjeto, pr eferindo-se dis por os móveis s~bretudo ao :ongo dds par edes), enquanto qu~ no Ja pao a ocupaçao de u.:nespaço inter no começa Justamente pelo .centr o - .raza~ pela qual a um j? ponês u~a sala OCidental ' par eceraessencialmente vazia por maiS atulhada que esteja.

E as dif erenças per sistem mesmo considerando-seuma única cultur a em é pocas distintas: na França até oséculo XVIII os cômodos de uma casa não tinham fun-

ções a bsolutamente fixas (isto, naturalmente, nas casasdas camadas mais abastadas onde a multi plicidade deaposentos er a possível) com a conseqüência f undamen-tal de que os membros de uma família não podiam iso-lar -se individualmente, como hoje. Funções como comer ou d ormir não eram exercidas necessar iamente no mes-mo lugar , continuamente, e as pessoas estranhas à casaatravessavam normalmente "salas de comer " ou "quartosde dormir" (com ou sem ocupantes) sem maiores ce-rimônias. Isso é visível num caso máximo, o Paláciode Versailles, onde os aposentos se sucedem em linhareta sem corredor que leve de um a outro (que, por con-seguinte, isolasse um do outr o): par a passar do aposen-to n. 1 ao de n. 3 não há outro caminho a não ser atra-vés do, pelo meio do n. 2, a menos que se dê a voltano pr édio e se entre pelo outro lado, quando então, parachegar ao mesmo n. 3, é incontornável a travessia don. 4 e tc.! E se é fato q ue rei e rainha possuíam apo-

sentos especiais, separ ados de uma ala mais "pública",não é menos verdade que também estes se dis põem damesma f orma, por um lado, e que por outro lado osa posentos "não-r eais" se sucediam sem or dem f un-cional, de forma que para se chegar a uma ala de re-cepção era necessário atravessar uma biblioteca ou mes-mo um q uarto "de dormir " de algum eventual hóspedereal. Aliás, esse caráter de "publicidade" dos aposen-tos internos de uma morada é magnif icamente bemilustrado por Rosselini em seu f ilme sobr e o Rei-Sol (A

t omada do p od er por Luís X I V) onde se vê (com baseem exaustivas pesquisas históricas), por exemplo, a cria-da d e q uarto dormindo e fet ivamente no quar to do r ei(daí a denominação "criada d e quarto " ) q ue só tinha asepará-Io (e a sua companheir a de cama) da cr iada o

'tecido circundante do leito, à guisa de cor tina; ou o des- pertar das figuras reais sendo presenciado (assistido naextensão do termo, como se assiste a um filme) por pessoas da corte que penetram na câmara e vêem as pr imeiras abluções do rei, etc. Será apenas a partir doséculo XVIII que os cômodos (especialmente os quar -tos) passar ão a se dispor ao longo de um corredor parao qual abrem suas portas, COmo as casas em relação àrua. Nesse momento efetivamente se pode dizer, comBachelar d, q ue o canto é o germe de um q uar to, q ue éo ger me de uma casa: até essa é poca, o imaginário dasolidão e do recolhimento er a essencialmente difer ente, e

Page 19: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 19/90

se poder ia dizer apenas que o çanto era o germe da casa,sem a etapa intermediária. Esse as pecto de "publicida-de" no interior de uma casa pode realmente ser cons-tatado em mais de um caso na histór ia da arquitetura: ascasas pompeanas, por exemplo, têm "quar tos" sem por taalguma, e embor a não se tenha de atravessá-Ios para pas-sar de uma peça a outra (a circulação se faz por uma"ala" exter ior aos q uartos, normalmente contor nando emq uadrilátero o jar dim central), seus ocupantes ficavaminteiramente ex postos à visitação dos estranhos à casae dos outros membros da família.

Estas constatações im põem que se reconheça umoutro eixo f undamental de organização do Espaço naarquitetura, decorr ente do primeir o e que deve ter seussentidos es pecificamente determinados conf orme a cultu-ra e a é poca: o eixo Espaç o Pr ixado X Espa ço Co mum(ou Espaço Individual X Espaço Social, embora a pri-meira denominação seja mais genérica e por tanto devaser a pr efer ida). Para o arquiteto o problema que se colo-ca aq ui, de modo específico, é o de saber como, numa da-da cultur a, se per cebe um Espaço como sendo Privado ecomo se percebe um outr o Espaço como sendo Comum,i.e., quais os limites de um e outro, até que ponto umespaço pode ser estendido sem se ferir os Es paços Pr i-vados, até que ponto estes aceitam e permitem aq ueles.Consider ando-se por um lado que o homem ocidental,de modo particular , valoriza ainda hoje, em termos ge-nér icos, a possibilidade de recolhimento individual, deisolamento ( periódico e delimitado, por ém isolamento)e, por outro lado, os desequilíbrios psíquicos resultantesda convivência for çada e da promiscuidade, é fácil com- pr eender a importância desse eixo para a prática da ar-quitetur a. Os exem plos de Hall poderiam ser r epetidosà exaustão: o alemão valoriza particularmente o cômo-do fechado ( por conseguinte, valoriza a porta fechadae, essencialmente, a existência da porta), enquanto oamericano se sente à vontade num cômodo a berto ou, pelo menos, não se pertur ba por estar nessa situação

(neste caso, admite a porta a ber ta ou, essencialmente, aausência de porta), num conflito que parece ser par-ticular mente sentido nas filiais amer icanas de compa-nhias alemãs ou nas filiais alemãs de companhias ame-r icanas. O alemão necessita da porta fechada para sen-tir -se à vontade, para se concentrar e pr oduzir enquanto para o americano essa não é uma necessidade im perio-

sa, do que resulta para o alemão que se movimenta emam bientes de por tas a ber tas a sensação de uma atmos-fer a " pouco séria" e, para o americano forçado a viver a portas fechadas, a impressão de um alheamento àsua pessoa, de uma esnobação ou mesmo de uma "cons-

piração" contra ele. Não é difícil agora entender osucesso ou a aceitação do famoso edifício de escritórios

de F. Lloyd Wright, o The LarkinBuilding (Bufallo, NewYork, 1904), onde estes "escritórios" não são mais doq ue mesas que se dispõem à volta de um poço inter nona forma de um quadrilátero central, numa sucessão deandares não vedados por paredes, de tal f or ma que todosse vêem não só num mesmo andar (a visão é livre nãosó par a os espaços imediatamente próximos como tam- b~m para as mesas situadas nos outros lados do quadr i-latero) como em todos os andares (três ou q uatro), po-den~o todos serem vistos ao mesmo tem po por um su-

pervI~or , se for o caso. Um pr ojeto desse tipo seriar epelido de modo natural não só na Alemanha comona Inglaterra - re pelido pelo menos pelos usuár ios dosescr itór ios; mas, como é um projeto com uma conotação.ideologicamente lamentável pois nele o princípio queImpera é claramente o da vigilância ("supervisão" é oter mo moderno), r ece ber ia todo o apoio dos interessa-dos num controle absoluto do rendimento do trabalhohumano. Por outro lado, tudo indica que essa dis posi-ção não ser ia em princípio recusada pela cultura italia-na, onde os indivíduos não apenas se expõem mais àapreensão visual dos outros como não se importam queestes se apropriem de suas o piniões e pontos de vista: otom de voz utilizado em qualquer conver sa é considera-velmente .ele':,ado,exatamente o oposto, por exemplo, docostume mgles e de dominar a voz para que ela alcanceapenas e tão-somente o interlocutor específico (o mum-blin g, considerado mesmo, na Inglater ra, indício de boaeducação).

Poder ia igualmente ser r ece bido como pr ojeto a bso-lutamente "normal" na R e pública Popular da China

onde a noção do Espaço Comum predomina am- plamente so br e a de Espaço Privado - e de formamuito mais acentuada ainda. Inter essante ressaltar a r es-

peito da China - par a evidenciar a importância do modode disposição e uso do Es paço na formação de umacultura e uma ideologia - um dado nor malmente nãolevado em consideração pelos analistas políticos e cu ja

i b â i dá é i d í éi l d d d ( d

Page 20: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 20/90

inobservância dá margem a uma série de equívocos sér iose lamentáveis: se uma ideologia como a mar xista pôdeser posta em prática na China foi porque ela já encon-trou nessa cultura um conjunto de elementos de natur e-za semelhante aos por ela defendidos e contra os quaisela não teve de entrar em conflito. E a maior partedesses elementos estão justamente no modo de organi-zação e utilização do Espaço, possivelmente um dos pri-meiros traços a determinar o tom geral de uma cultura.Efetivamente, na China sempre foi comum, em todos ostempos anteriores ao aparecimento de Mao, um modode vida do tipo, em tudo e por tudo, coletivo: desde aorganização do trabalho no campo, passando pelos mo-dos de usufruir o tempo livre nas representações teatraisou nas taver nas, até o costume de dormir em conjunto,membros de uma família ou não, não só no mesmo apo-sento como sob a mesma coberta, a norma (o ".normal")é a vivência num espaço comum (não só na China, aliás,

como no Japão e, de modo geral, em todo o Oriente). Não é de se estr anhar portanto, pelo contrário, que ascomunidades familiares de tra balho ou lazer hoje postasem prática na China tenham sido rapidamente aceitas:elas não se chocavam com a cultura tradicional do povo e, antes, encontraram na prática comunista umreflexo organizado e diretivo desse padrão de compor-tamento. Já o mesmo não parece ter-se verificado naRússia, onde o fracasso mais ou menos profundo ôecertas diretivas comunistas iniciais (como atesta o apare-cimento, em larga escala, dos incentivos ao trabalho, como r essur gimento de distinções econômicas e sociais entreos membros da classe social: um dirigente ganha substan-cialmente mais do que um operário qualificado e pode possuir "seu" carro; um operário que produz mais recebemais do que outro e pode tr aduzir esse mais na possede objetos cuja função é nitidamente a de individualizar seu possuidor , etc., todas elas práticas enfim do chama·do mundo ocidental e burguês) indica claramente que o

papel do "comum" na sociedade russa pré-revolucioná-ria não era nem de longe o mesmo existente na Chinaanterior à década de 40, e que essa sociedade russainclinava-se acentuadamente na direção do "privado".

Estas observações sobre o segundo eixo definidor do Espaço arquitetural coloca o arquiteto-urbanistadiante de um duplo problema: primeiro, o de determinar as signif icações que assumem para os membros de uma

cultur a cada um dos ter minais do eixo (Es paço Privadoe Espaço Comum) e sa ber na direção de qual deles"tende" a pr ática ~ocial desse gr upo. Em segundo lugar,resolver essa opOSição do mesmo modo como se resolvea primeira e todas as que se seguirão, i.e., através deum jogo dialético entre Comum e Privado. Se foi ditomais acima que a manipulação dessa oposição é funda-m~ntal para evitar-se, por exem plo, desequilí brio psí-~ll1?O S resultantes da f alta de espaços íntimos (desequi-hbnos que par ecem aumentar com a sempre maior ex- plosão demográfica e a r esultante diminuição de 4rea evolume para 3S pessoas), não resta a menor dúvida,como já concluíram disciplinas como a sociologi<1e a psicologia ~ocial, de que as possibilidades de uma socie-dade melh~r residem justamente na demolição pelomenos parCial dos redutos de individualismo excessivoque ~in?a regem as relações humanas. Esta modificação~uahtatIv~, no entanto,)amais poderá ser posta em prá-

tlca atraves de concepçoes "abstratas" (como as leis) oununca poderá ser levada às últimas conseqüências se nãofor seguida por uma modificação análoga no modo der elacionamento dos homens entre si e dos homens com oespaço (na verdade, dos homens entre si através do es- paço), o que ca be a pr áticas como a arquitetura-urba-nística. O modo de disposição e de atribuição de signi-ficados ao es paço é na verdade um dos elementos dainfra-estrutura do comportamento humano, e nenhumamodificação efetiva na superestrutur a (ideologia, etc.) pode ocorrer se não contar com mudança equivalente no primeiro nível.

Contraditor iamente à situação cr iada pela ex-I-'los~o demogr áf~ca, as sociedades humanas em geralcontmuam a cammhar para o isolamento cada vez maior ~os h?mens entre si (continuam a as pir ar ao ideal indi-v.ld~ahsta) e, por conseguinte, para uma contínua o po-slçao entre esses homens, em todos os níveis de suasatividades. O arquiteto tem uma r es ponsabilidade enor-~e nessa situação. P7nse-se por exemplo no que signi-fica a passagem da Vida em uma casa par a a vida emapartamento. Para os ingênuos, essa modif icação ser iaacompanhada por uma maior intensidade nas trocashumanas, pois se aboliriam os espaços entre as mor a-das e se aproximariam os indivíduos. Na realidade, noe?t~nto, oc..?rre~ exatamente o contr ário, e por umasene de razoes nao todas elas determinadas: para muitos,

i id d t d i i h (f ü t t prefeituras não o fazem igualmente: rapidamente os re

Page 21: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 21/90

a proximidade apar ente dos vizinhos (f r eq üentementenada apar ente, pois o vizinho penetr a no e~ paço do outr ocom o som de seu aparelho de TV, su~ vitr ola o~ mes-mo sua voz atr avés de paredes excessivamente f mas esem isolam~nto acústico, por indesculpáveis razões derendimento econômico - e o canal sonoro é justamenteaq uele pelo qual mais se sente a }nva~ão de um estranho, pois o homem não pode controla-l~ a sua vontade como

faz com a visão, por exemplo) leva Justamente a proc~r ar um afastamento em relação a eles. Para outros, a Sl~- pIes visão da por ta "do o~tro" já constitui. uma barreiraq ue se estabelece automaticamente: a respeito, ~~chel~r~o bserva que só um indivíduo extremamente loglco dlr aque uma maçaneta ser ve ~an~opara fechar como paraa br ir , e isto porque par a a malOna das pessoas uma ma-çaneta "natur almente" abre muito mais do que fecha, domesmo modo como uma chave fecha muito mais do quea bre; q ue dizer , neste caso, da visão de uma. po.rt.a.com

uma única maçaneta e as várias f echadur as mdlClms demedo, insegur ança, vontade de pr oteção e afastamento?O único pr oblema com esta observação de Bachelar d(justificada sob mais de um as p~cto) é saber as culturas para as quais uma maçaneta mms abr e do qu~ fecha ..E!enão se interroga especificamente so bre o sentldo da .vlsaode uma porta, de interesse particular para .0 a~qUlteto:uma porta fechada normalmente detém um mgles, que arecebe como barreira a não ser transposta salvo se expres-samente convidado a fazê-lo - mas uma porta fe~h~da(sem estar fechada à chave, obviamente) ~ã~ constltUl demodo nenhum um impedimento para um itahano. Q~an~do um italiano deseja isolar -se (o que de resto nao enorma) ele deve girar a chave, ao passo que par a uminglês, entre ingleses, basta fechar a P?rta sem ,cha.ve:ele sabe que outro inglês não se abnr a sem pr e-avlso.

Outras comunidades e cultur as ressentem aindamais - até ao repúdio - a passagem da vida em casas para a vida em apartamentos: por exem~lo, as com~-nidades negras dos bairros po bres em mais de uma. CI-dade americana. Querendo aca bar com os slums, mUltosórgãos administrativos norte-a~ericanos r esolveramconstruir e entr egar a essas comumdades enormes blocosde apar tamentos, q ue no entanto logo se ~~ansf ormaramem novos slums , como em toda parte ahas, po:-qu: osnovOs mor adores simplesmente não tinham (e nao tem)como prover para a manutenção desses prédios, e as

pref eituras não o f azem igualmente: r apidamente os re-vestimentos se deterioram, a iluminação desaparece, asujeir a toma conta de halls e escadas, e cor r edores eelevadores (quando f uncionam) se transformam em lo-cais pr ediletos para crimes ou em latr inas. Os gruposatingidos por essas medidas (e "atingidos" é bem otermo) logo r ecusaram a vida nessas torres inf ernais, por ém não especificamente pela ausência e impossi bili-

dade de manutenção e insegurança dos morador es mas por uma razão mais simples e ainda mais f undamental:recusar am-nos por que tiver am a consciência imediata deq ue a vida em apartamentos (i. e., em caixas ou gaiolasisoladas e mur adas por todos os lados) estava simples-mente matando um modo de vida, suf ocando uma cultu-ra, uma maneir a de sentir o espaço e os outr os, aq uelaque se desenrola em lugares a bertos e na horizontal. Es-cadas, elevador es, paredes, por tas significavam, paraeles, e com r azão, a destr uição de um espírito comunitá-r io, de um sentimento de identificação e de pertencer aum grupo que só poderia se manif estar em es paços comoos f or necidos por casas ou sucessão de casas, onde osespaços abertos se multiplicam escondendo as portas f e-chadas (q uando o estão, pois nor malmente as por tas deentrada da casa ficam aber tas, f echando-se a penas a doscômodos, ao contrário do q ue se tem no apartamento).Evidentemente, trata-se aq ui de um resquício cultur al, damemór ia d e uma realidade na verdade nunca sentida(plenamente, pelo menos) pelos membros dessas comu-nidades mas que ainda se impõe fortemente a eles, amemória de uma aldeia afr icana r emota no tem po ondetodos os abrigos se voltavam par a uma zona centr al co-mum e onde não há nunca portas, f echadas ou a ber tas.

Todos estes sentidos básicos devem ser pesq uisados pelo arq uiteto antes da pro posição de um pr o jeto, com base especificamente nos dados f or necidos pela antropo-logia. No entanto, é necessár io q ue o arquiteto tenhaaqui noção de um problema gr ave e suas conseqüências.A saber : a esmagadora maioria ( para não dizer a q uasetotalidade) dos estudos antropológicos costuma deixar de lado em suas análises (voluntariamente ou por sim- ples desconhecimento) a dimensão sócio-econômica dasculturas abordadas, o que normalmente provoca maisde uma séria distorção. Vejamos um caso em Hall: re-lacionando as culturas americana e árabe, Hall procur amostrar como a norma na cultura árabe é a participação

Page 22: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 22/90

efetiva na vida comum (na vlda "dos outr os"), em opo-sição à cultur a amer icana onde o "não é da minha (ouda sua) conta" é a regr a (o que se conf irma, entr e outros,

por inúmeros casos de estu pro e/ou assassinato, pr ati-cados nos EUA em cor redores ou halls de prédios a quetodos têm acesso físico e auditivo, sem que ninguémacor ra em auxílio da vítima, embora ela gr ite e peça aju-da por longas dezenas de minutos, como num caso cé-le bre tr ansformado em peça de teatro). E dá como signoexterior dessa maior par tici pação o fato de os árabes seamontoarem nas filas (q ue, logicamente, deixam desê-Io) empurrando-se com o corpo e os cotovelos. Par aHnll, assim como os l imites do "ego" de um eur o peuestão na sua pele (e na e piderme, à f lor da pele liter al-mente, de tal forma que tocar na pele é tocar no "eu", éconfirmar - se se trata de estr anhos - uma invasãoindesejada do território privado), para os árabes o egoestá no "interior " do cor po, de modo que tocar a pele

não é invadir o eu. Assim, como a regra é a participa-ção ativa na vida em grupo, nada mais normal do que aexistência de aglomerações e empurrões, que não seriamressentidos como invasões, ao contrário do que acont~ce

. com o europeu, o norte-americano e mesmo muitas cultu-ras sul-americanas par a as quais essas situações são r ela-tiva ou totalmente intoleráveis. No entanto, se é fato quea vida comum é mais intensa no Or iente Médio do quenos EUA, não é verdade que a aglomeração de pess·oasnas filas, a disputa por um lugar etc. sejam fatos "natu-rais" nessa cultura. Uma colocação deste tipo implicaque ou HalI nunca visitou um país do Oriente Médioou Pr óximo ou não soube identificar e interpretar ade-quadamente, pela falta de uma análise de natureza so-ciológica, os f atos pr esenciados - e a primeir a alterna-tiva não é verdadeir a.

De f ato, vejamos um caso concreto: o Egito. Real-mente, desembar car no Egito e passar pela alf ândegaou trocar dinheir o num banco centr al do Cairo é uma proeza na qual sucumbe mais de um ingênuo europeu ouindivíduo de cultura assemelhada. As filas realmentenunca chegam a se formar , substituídas por aglomeraçõesonde todos se es pr emem poderosamente (sem reclama-ções por parte dos árabes, é cer to) para chegar ao gui-chê ou à "autoridade" em questão. Mas antes das " ag lo-merações" há duas outras realidades: a burocracia e os privilégios (pode a primeira existir sem os segundos, e

vice-ver sa?). E a burocracia é, ali, qualq uer coisa dees~antosa: desembarcando de um navio, não é possívelSaIr do por to sem passar por uma média de 7 "autor ida-des", num es paço de tempo não infer ior a tr ês horas' para se trocar dinheiro, um estrangeiro não pode dis pen~sar a passagem por outras tantas sete ou oito pessoas,enquanto se desesper a numa agência bancár ia que éuma ver~ad;ir~ antevisão ~o. caos, com centenas de pes-soas (nao e f Igur a de r etonca) aglomer adas diante detodos os guichês, enquanto outras se sentam em banc0scom~ num hos pital ou consultór io médico (os ban;;osfuncIOnam ~r ês hor as diárias, em média, par a o público).A burocraCIa em parte se explica: ainda em 1975 o Egi-to er a um país pr aticamente em estado de guerra, e todaforn:a. de controle nos portos de desem bar que era ne-cessana; por outro lado, as oper ações de câmbio sãofor~alment~, controladas de modo rígido pelo governo:a fl.m de eVItar as evasões. Mas a bur ocracia se estende

mUito além desses limites e faz surgir um outr o f enôme-no que a r evolução de Nasser (talvez já em vias de es-qU:~I.m~,nto?) nã~ co.nseguiu ~ufocar : os privilégios.A fila. par a a vIstona na aIfandega é continuamentedesres peItada por alguma "autoridade" que acintosa-mente. a pr esenta ao encar r egado alguém que deve ser atendIdo na hora - e tudo é feito às vistas de todos oqu~ é pio.r ainda pois apar entemente não se teme ev~n-tuaIs q ueIxas dos interessados. Da mesma f orma nocâm bi<:, há sem pr e um passa porte extr a tr azido pelo ;hcf eda seçao e q ue deve ser anotado e atendido na hor aantes dos demais. Nestas cir cunstâncias, não é de s~est!anhar que os ~gí pcios se aglomerem diante dos gui-c~es tentando pedIr (não rar o aos ber ros) ao funcioná-no que atenda seu caso em par ticular , seja qual for suaeventual posição. numa f ila q ue, de f ato, não serve paranada. E par a eVItar que o vizinho seja atendido antes ooutr o igual~ente dis puta o lugar COm todo o peso 'deseu cor po, liter almente. Donde, as aglomerações e C('-toveladas mencionadas por HalI.

Estes f at~s não sign"ifi~am, no entanto, um compor -tamento e~ pacIal e p~oxemIco (o suposto "gosto" pelasaglom.er aç.oes) mas SIm o ref lexo de uma situação socialonele mexIste o r es peito pelo direito alheio - o que secumprova da observação de uma série de outros fatos.Por exemplo, o a bsoluto desrespeito dos pedestres por parte dos automobilistas, que investem sobr e eles decidi-

damente sem brecar fora ou dentro das faixas de se fácil observar de resto que esta é uma constante na

Page 23: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 23/90

damente, sem brecar, fora ou dentro das faixas de se-gurança; o contínuo desr espeito ao sinal ver mel~o ~tc.A realidade é q ue, a pesar da q ueda de Far ouk , ha vI~teanos, o Egito continua a ser uma ter r a onde o conf l~tode classes é intensamente sentido e onde o desr espeitoaos direitos do economicamente fr aco (e não raro doseconomicamente "semelhantes") é uma constante, dondeo estado de contínua luta real por um direito q ualquer ,do q ual resultam as aglomerações. Por certo, essa si-tuação se reflete e se implanta na estrutura do com- por tamento social do egí pcio, de tal.for m_a q u~ el~ assimtenderá a agir mesmo q uando a slluaçao nao e, comtoda evidência, a mesma: em "territór io europeu", umegípcio tentar á "normalmente" fur ar uma f ila para com- prar uma ficha de café ainda q ue a sua f r ente esteja~a penas tr ês pessoas e q ue, com toda cer teza, ele senaatendido r a pidamente. Mas será inteir amente inadequa-do, a partir da o bservação deste fato ocorrido em "ter -

ritór io eur opeu", concluir por um compor tamento es pa-cial "natural" do egí pcio: não se tr ata de um compor -tamento der ivado de uma estr utura primeira e fundamen-tal de uma dada cultura, mas sim de um com por tamentooriundo de uma situação eventual (o desrespeito aos di-reito sociais) q ue, mudando, pode mudar aquele com- portamento inicial.

Toda investigação antropológica no sentido do es- paço só pode ser assim efetivamente operacional se'vali-dada e corrigida pela análise histórica do momento so-cial. Mesmo uma afir mação feita mais acima, segundo aqual o comportamento básico e tr adicional do chinês é avida em coletividade, precisa ser corr igida com a anO-tação de que obviamente era comum encontr ar entre asclasses a bastadas uma prática bem mais acentuada do es-

paço privado do que nas classes inferiores, res~ltanteobviamente das possibilidades econômicas e polítIcas de poder gozar de espaços exclusivamente particular es 23. É

fácil observar, de r esto, q ue esta é uma constante nahistór ia de todas as culturas em todos os momentos: ousufruto de um Espaço Privado é conseqüência de umasituação sócio-econômica privilegiada, de tal forma quea pr efer ência pelo Espaço Privado ou pelo Comum nãoé uma determinante absoluta de determinada culturamas, sim, decorrência de outr os fatores - em bora na-quelas sociedades onde inexistem desníveis econômicos

entre seus componentes, como as sociedades primitivas,a tendência seja para uma utilização bem mais acentua-da do Espaço Comum.

E a conseq üência, para o arquiteto, do pr oblemaque é a falta de análises históricas e sociais na deter mi-nação. dos sentido~ da manipulação do espaço pode ser enunciada. da segumte forma: não basta operar a partir de determllladas noções espaciais q ue se propõem comodados primeiros de uma cultura (i.e., como estr uturasfund,a~entais a. serem o bser vadas e r es peitadas); é ne-

cessano, a p a rtlr desses dados, pr op o r or ganizações es- paciais que f uncionem como inf or madoras e f ormador as(educadoras) dos usuár ios na dir eção de uma mudançad~ comportamento qu~ po~sa ser considerada como aper-felçoadora das relaçoes mter-humanas e motr izes do pleno desenvolvimento individual (sendo certo que um

ções pod em ser con sid er ad as como ju stas em sua essência elasdevem se! corrigid as necessa riamente so b pen a d e cair -se e~ ge-ner al1zaçoes amp las d emaIS e a pr essad as. Assim, não se d eve esque-cer , por exe m plo, as Influências exercl d as até hoje, em se us d esd o- bramentos, po r uma obra c omo O cor tesã o , d o r ena scentlsta B altaza r Castl gl10n e (e cód igos d e etiqueta semelhante s). Na R enascença,Castlgllone escreve u esse t ratad o para most r ar aos pr íncipes, no br ese bur gueses c omo se compor tar numa sociedade s egundo ele e duca-d a. De f end eu não só o uso d e roupa s que t ~nd esse m ac e~tuada -mente par a as co res escu ras, se não p r etas (tal como se usava nacor te d e Es papha, c, ?nsld er ad a como mod elo) como inclusiv e, ee.~peclfi ca.ment e,p r o pos o tom mod er ad o na conv er sação e a abol l-çao d as risad as, su bst ituíd as de pr ef er ência pe lo sorriso; gritar ,f alar alto e garga lhar eram manif estações " vul gar es" a ser em evi-tad as p ~los nobre s ( pelos "super ior es"), ca paz es d e autodomínio econ tençao. D a mesma f orma , para o inglês "educad o" fa lar altoé ind lce .d e má ed ucaç ão, d e rom pimento de um códi go d e etiq ueta- mas e pr eciso r essaItar que e ssa pr ática não é assim re ce bida por um. inglês per tencente às classes ec onõmlcas não privil egiad as.O mesmo vale par a qualquer outr a cultur a: o It al1ano "s ofi sticad o"não ~ az do f alar alto um valor posit ivo, pel o con tr ár io; id em emr elaç ao ao ar gentino, ao b rasileiro e I ncl usive ao pró prio ára be decond ição cul tur al e sóci o-eco nõml ca elevada . Ou seja, há d iferençasq ual1ta tlvas e quantitati vas , mar cant es d ent ro d e um m esmo gruposoc ial a resp eito do co m por tamento e s pacial (sono r o, gestua l etc.) ,d as quai s só se pode d ar conta atr avés das análises d e cor r eção decunho histórico, ps lcossoc lal e econômico . Isto não signific a umaInvalld ação d e pr opos ições como "o ár abe fala ma is a lto q ue o ame -ricano ou se ap r oxi ma mai s de se us seme lhant es, corpo r almente"mas apenas q ue este d ado centr al d eve ser nec essariamentecor rigid o.

Ser ia possíve l respo nd er a esta ob jeçã o diz end o que na verd adetod o aque le que foge d as coorden ad as de um modelo básico ( por exemp lo, f alar alto) está mesmo escapand o à pr ópria cu ltur a em

23. U ma análise histórico-socia l é aqui lo que efetiva mentefalta a obr as c omo a de Hall e so b mai s d e um as pecto. Chamama atenç ão, justament e, as ob ~er vações que Ha ll faz sobre a " d imer;-

são audit iva" e os modos de pe r cepçã o do relaciona mento atravesd a voz. Ha ll obs erva, por exemplo , que sob esse aspecto as cu ltur asárabe e amer icana o põ~m- se a bertamente na medi d a em que pa r a oár a be é perfei tamente comum um to m bast ante e levado na conve r-sação enq uanto q ue para o americ ano o que p r eva lece é um t omacentuada mente baixo (e m r elação a o ár abe) , do q ue sur gem. pr o- blemas para I nterlOcuto r es des sas cu ltur as u m~ ,:ez q ue o ara1?etend eria a cons id erar o tom ba ixo co mo a.usencla d e convlCç aodaq uele q ue o empre ga ou mesmo como a utêntico Indício dementira . Da m esma fo rma, um Ing lês f alaria bem mai s baixo d oque u m Italia no, e assi m por d iante. No enta nto, se tais observa-

terior) propõe de imediato e de modo inelutável oobjetivo não pode ser plenamente alcançado sem que

Page 24: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 24/90

que se ori ginou , pertenc end o antes a uma outra cultura de adoçã o. Nest e caso, um ára be que f ala baixo ou que m antém uma d Ist ân-cia corporal ace ntuada em re lação a terceiros é, d e f ato, um europ eu(e neste caso, o pr ivlleglamen to do pr ivad o so br e o com um não émai s do q ue uma va lor izaç ão d o "refú gio", d o "interior", do "cen-tro", que p r ocura esca par a um un ive r so r esse ntid o como hostil, peri goso o u Ind ese jável, o universo d a "ausênci a da boa ed ucação"mas tam bém da misé r ia, d o conf llto et c.) , pod endo ser as sim d es-crito s egundo os mold es desta s egun d a cultura. No entanto, nemmesmo esta objeção p ode ser aceita n esta for mulação porque , deacordo com o que foi observa d o, esse árabe antes d e pertencer àcultura europ éia pe r tence a u ma classe sóci o-econômi ca q ue apre-senta os mesmos t r aços gerais em todas as culturas , sen d o aiden tif icação as sim em termos só cio-econ ômicos e não culturai s. Asclasses sócio -econômic as privi legia d as n ão têm fro ntei r as; s ão, nomundo atual , uma classe Int ernacional com i nter esses e aspiraçô esidên ticos . Sob este aSpecto , tamb ém as clas ses Infer iores, . par-ticularm ente as q ue estão rea lmente na base d a pir âmid e socia .l, podem apresentar um qua dr o d e compo r tamento proxê mico d e

car áter inte r naclo nalista., em bor a se jam ju st" mente , por uma.série d e razões (menor exposição a os me ios d e pr opagan d a. demassa como a TV, etc.), as d e posi tár ias dos traços n aci ona is d lfe-r enciado r es. Não será i nad eq uado con clui r ass im q uê um it allanosubtraldo do mund o da. etiqu eta e da " boa. educ a.çãO" fale tão a .ltoq uanto u m amer ican o ou ár a be nas m esma.s condi ções -- , em bor a,como s e recon hece u, se possa pr opo r q ue o modo ge r a! d e comu ni-cação oral do ára be seja f eito num t om mais ele vad o d o que o d oa.me r icano , igualmente consid er ad o em ter mos genérlc o,s. A penasé f und amenta l não perd er de v ista a análise s6clo-eco nomi ca, evi-tand o-se o privlleg lamento dos dado s antropoló gic os puro s.

terior) propõe de imediato e de modo inelutável oeixo Pr ivado X Comum, da mesma forma este leva àdeterminação do terceiro eixo da estrutur a central dessalinguagem, constituído pelas significações geradas pelaoposição entre o Espa ço Construíd o X Espaço Nã o-C onstruído . Estas implicações são na verdade tão in-timamente relacionadas e se colocam numa f unção tãoestreita que se torna extremamente difícil discorrer sobre

os eixos numa seqüência de tópicos ao invés de falar deles puma única unidade de análise - e, de qualquer forma, abordar um é tratar simultaneamente dos ante-r iores e a eles retomar, sob um outro aspecto.

O fato de a oposição Constr uído X Não-Construídodecorrer do eixo Privado X Comum (e, por conseqüên-cia, do eixo Inter ior X Exter ior ) seria na verdade maisevidente desde logo se tivessem sido abordados os doister mos que se pode constatar aqui e al i nos ensaiossobre arq uitetura e nas traduções para a dimensão verbal

que os indivíduos cóstumam fazer de suas ex periênciascom o es paço arquitetural: Es paço Ocu pado e EspaçoLivre. Par a mais de uma teoria da arquitetur a, comose viu (se é que se pode chamar de teoria as manifesta-ções e reflexões pessoais mais ou menos or ganizadas dosar q uitetos e q ue constituem, até aqui, a base habitual do

pensamento arquitetural), um dos traços definidores daarquitetur a é a "ocupação do espaço": é o caso por exemplo, como citado, de Le Corbusier . Por outro lado,

.é constante e maciça a menção a espaços livres ("enor -me espaço livre", "carência de espaços livres") tantonesses mesmOs estudos quanto nos fragmentos das con-versações q uotidianas. Por que, então, não dar prefer ên-cia a esta terminologia "consagrada"? E q ual seu senti-do, em contraposição aos termos aqui escolhidos?

Uma razão já foi dada para o afastamento do con-ceito de "ocupação": arq uitetura é ordenação, disposi-ção do espaço, que pode ou não implicar uma ocupa-ção. Esta não é necessária e, portanto, não é pertinente para a definição de uma linguagem da arq uitetura. E,em segundo lugar, o conceito de ocupação está dema-siadamente ligado, com toda evidência, ao conceito de

pri vado, de propriedade particular . Ocupa ção, aindaatualmente, implica uma apropriação exclusiva, i.e.,uma posse de exclusão: a ocupação, nesse sentido, éde uns cont r a outros, e o levantamento de paredes (naforma de casas, por exemplo) tem exatamente esse sen-

ob jetivo não pode ser plenamente alcançado sem queo outro tam bém o se ja, ao mesmo tempo), Conhecer o significado pr eciso que uma ordenação espacial assu-me para determinado grupo social é efetivamente funda-mental; porém, fazer dessa observação um molde rigo-roso da prática arquitetural é, via de regra, contribuir para a fixação de modos do comportamento a clamar freqüentemente por radicais transformações. Daí a ne-cessidade de o arquiteto, informado por uma ideologia, propor novas concepções de utilização desse espaçocom base na combinação dialética entre privado e co-mum: nem o privado deve ser o objeto único das pr eocu pações de ar quitetura, nem a imposiçãO do comumdeve erigir-se em programa de ação absoluto. É impor -tante, sim, ter em mente a função de formação que só pode ser exercida através do novo e do confronto bipolar que o instaura. E, de qualq uer modo, o bservar q uetoda modificação geral na sociedade só é efetiva se

acompanhada por essas mudanças (atr ibuição de novossentidos aos relacionamentos espaciais) ao nível dasinf r a-estruturas.

I. 3.3. 3.° eixo: Es paço Constr uído X Espaço Não-Constr uído .

Assim como o primeiro eixo definidor da estruturafundamental da linguagem arquitetural (Interior x Ex-

tido - e em bor a esse ato tenha seus aspectos positivos( t ã lhi t t ã é

tível, mas ao mesmo tempo se deveria r essaltar que ot é i l t á i lib t ã d i di í

Page 25: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 25/90

(proteção, r ecolhimento, e tC.) , sua conotação é essen-cialmente a de privação de outros. E como a ocupação pode ser feita por todos e não apenas por um, o "cons-truído" é, assim, um conceito que supera o "ocu pado",ao mesmo tempo em que é mais genérico do q ue estee o a brange.

Por outro lado, a insistência na utilização de

expressões como "Espaço Livre" pode continuar aref or çar a intuição (amplamente difundida hoje, e comrazão) de que o resultado da ação arquitetural apre-senta sempre aspectos preponderantemente negativos para o homem - intuição aliás que está longe, e muito,de ser inf undada. De fato, por que certos espaços são percebidos como "livres", o que equivale a dizer q ueoutros, os construídos, são recebidos como "espaços presos" ou espaços de prisão? Antes de mais nada, éóbvio que quando se f ala num "espaço livre", o objeto

real desse "livr e" é o pr ó pr io sujeito falante e não odeclarado "espaço". Não há a menor necessidade dedemonstrar a validade dessa colocação, ela é visívelno comportamento das pessoas que se mostram satisfei-tas, despr eocupadas (alegr es?) quando se movimen-tam por espaços a bertos, alvo primeiro dos momen-tos de lazer, dos fins de semana. Não há como negar :o "es paço livre" é o lugar da libertação do homem, umespaço de festa. Por certo há um sentimento de qúe oespaço ocu pado, construído, é um lugar onde tam- bém o pr óprio espaço é aprisionado, mas com o apri-sionamento deste continente o que é ef etivamente atin-gido é seu conteúdo, o homem.

A arq uitetura como pr isão, o espaço constr uídocomo universo concentr acionário? .É indubitável que eleé assim percebido atualmente (mais q ue em outras é po-cas?) e, mesmo, que ele é praticado com esse o b je-tivo, freqüentemente. O conceito de "prisão" iner e~-te à noção de espaço construído é de fato um dos pro- pr ios conceitos institucionais do espaço, o lado oposto,a oposição ao conceito de " proteção, abrigo". O úter omaterno é um a br igo - mas é ao mesmo tempo umacerca a impedir a autonomia, a livre movimentação.(o livr e arbítrio, se se q uiser) do indivíduo em for-mação, que dele tem necessariamente de f ugir . Diz-senor malmente q ue o parto é a primeira violência come-tida contr a o indivíduo, b que pode não ser discu-

par to é igualmente a necessária li ber tação desse indiví-duo. Como todo ato de libertação - f ísica ou psí-quica - o par to é necessar iamente doloroso e trau-mático para o próprio indivíduo, e se ele pudesse ter plena consciência dessa sua "saída" ou "emer gência" poderia por certo oscilar diante do caminho a tomar,como suger e a psicologia: permanecer - mudar, abr i-gar -se - expor-se. O conf lito dialético é manifestoe se reflete inteiramente na concepção da casa, daconstrução do espaço construído: proteção - prisão.Aliás, o isolamento dos que não se submetem às nor-mas da sociedade não é justificado exatamente nessesmesmos termos? A pr isão do indivíduo num espaçoconstruído (e reduzido: nunca se manteve presos osindivíduos em espaços amplos ou abertos) é apresen-tada não apenas como medida necessária à pr oteçãoda sociedade mas igualmente como medida de prote çãodo pr ópr io cr iminoso, protegido de si pr ó pr io e domundo que o chama para o crime! A prisão como pr o-teção: slogan hi pócr ita que custa a mor rer.

Resta o fato de que todo espaço construído, quer o indivíduo se coloque nele contra sua vontade ou pelasua "livre escolha" é recebido como pr isão, opressão.É de estranhar, com as áreas per mitidas aos indivíduos pelas "soluções" arquitetõnicas de ho je? De forma al-guma. E não se pode aceitar, para essas "soluções", asatenuantes da chamada explosão demográf ica, q ueexiste mas ocupa uma posição totalmente secundáriadiante da especulação imobiliár ia e da ignorância "sim- pIes", por par te dos arquitetos, das necessidades espa-ciais do homem. Com conseqüências desastr osas. Diz-se, por exemplo, que o f rancês médio (especialmente o pa-risiense) conduz sua vida social nos "cafés": ele "re-ce be" no café . O es paço de q ue dis põe em sua "casa",mínimo, deve ser com partilhado com os membros dafamília e praticamente não mode ser estendido a ter-ceiros. Atualmente, 1975, um apartamento de apro-ximadamente 50 m2 (um deux-pieces: cozinha, banhei-r o, q uar to e sala) é considerado mor adia de classe mé-dia relativamente folgada (aluguel entre 2.000 e 2.500cruzeiros, fora água, luz, telefone) e deve normalmen-te abrigar uma família de quatro membros, numa áreamédia por indivíduo claramente insatisfatória (aindamais se se considerar que as áreas do banheiro, da

cozinha e de um eventual corredor não podem ser con- À objeção habitual: "é necessano ser realista e

Page 26: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 26/90

sideradas como áreas de vivência). Por conseguinte, ofrancês sai para a r ua e o apartamento é tido comouma espécie de último recurso, como uma necessi-dade imper iosa à qual é for çoso su bmeter -se, e nãocomo um centro de abrigo, proteção e aconchego ondeé possível sentir -se bem.

Se se diz normalmente que o francês "recebe" no

caf é é porque de certa f orma ele tem a "sorte" de, naFr ança, a prática do café ser uma instituição soli-damente f irmada. E se de outros povos não se dizq ue também "r ecebem" nos caf és é simplesmente por-q ue não existem esses lugar es onde é possível conver-sar sentado, com uma xícara de café apenas, por um par de horas - mas nem por isso deixam de sen-tir suas "casas" como gaiolas sufocantes 24.

Como super ar esta situação? A o bser vância do jogo constante entr e espaços constr uídos e espaços não-

construídos é sem dúvida f undamental. Ao nível doEspaço Interior Pr ivado, por exemplo, é f ácil consta-tar , atr avés da histór ia da arquitetura, q ue essa opo-sição é um dos valores mais constantes: a casa egí p-cia da história pr é-cristã, mas também a casa pompea-na e a renascentista etc. assim se organizam. Ao invésda concepção do apartamento (um espaço inteir amentecercado, totalmente construído), um confronto entre oa berto e o fechado, não porém no sentido de casa +quintal (casa na frente e o quintal no espaço poste-r ior , como unidades separadas uma da outra), masno sentido de um espaço construído envolvendo umespaço não-construído (que por conseguinte penetrano espaço construído do q ual não se isola e é antesuma continuação) como na casa pom peana ou nas mo-r adas renascentistas de Veneza - ou mesmo um es- paço não-construído envolvendo um espaço construí-do que por sua vez envolve outro espaço não-cons-truído. Nestas condições, não há prisão: o corpo ea imaginação do homem se expandem elasticamente.

À objeção habitual: é necessano ser realista ea.dmitir que nas condições atuais (densidade demográ-fica, custo etc.) essas estruturas propostas são im pos-síveis", responde-se r e jeitando, primeir amente, a no-ção de realista enquanto sinônimo de conformist a (comoé normalmente entendido) e, em segundo lugar , dizen-do que a construção em andares, onde ela se r evelar ealmente inevitável, não é absolutamente incompatí-vel com essa oposição, como já começam a demonstrar alguns projetos da vanguarda arquitetur al européia 25,

infeli~me~te ainda tímidos e destinados a uma peque-na mmona: a construção na f or ma de pirâmide emdegraus ou patamar es aber tos (formando enormes bal-cões suspensos) não é realmente o sistema que maislucros ofer ece ao construtor , pois o espaço é efetiva-mente "desperdiçado" - mas aceita inteir amente acoexistência de espaços construídos e não-construídosnuma escala admissível par a as necessidades humanas.

E assim como se fala num eixo Espaço Cons-tr uído-Espaço Não-Constr uído ao nível do Es paçoInter ior Privado (o bser vando-se que as mesmas colo-cações acima valem para um Es paço Interior Comum:edif ícios públicos, industr iais, escolares etc.), é pos-sível discorrer so bre a importância dessa oposição parao próprio Espaço Exter ior , o Espaço Comum e, numsegundo momento, para o Espaço Exterior Comum. Eaqui se verificará que o modelo de estrutura do espaçosegundo o eixo Es paço Construído-Es paço Não-Construído varia acentuadamente através dos momen-tos históricos, ao contrário do q ue aconteceu dur antelongo tempo com o nível do Es paço Inter ior Pr ivado:é que neste a orientação é dada essencialmente pelasnecessidades biológicas e psíquicas fundamentais do ho-mem, enq uanto que em relação ao Es paço Comum oq ue se segue são antes diretrizes de or dem sociológica(distinções em virtude do conflito de classes etc.), por conseguinte mais sujeitas a modificações. Por exemplo,nas sociedades egípcias arcaicas e na Gr écia antiga, olugar do povo, do coletivo, é sempre do lado de for a,

o exterior . No interior de um templo egípcio só seadmitiam os membros da cor te (ministr os, oficiais), ossacerdotes e o faraó, e dentr o dos templos há mesmozonas nas quais os nobres não penetram e outr as nas

24. Se é possível afirmar que a situaç ão criada por essa prát i-ca arqu ltetur al (ou. na verd ade . arqui teto-financ eira) não visaespecificamen te a pr isionar e Isolar os indlviduo s, o mesmo não s e pod e dizer a r espe ito d e certas solu ções arquitetõnic as de mas sa, pr aticad as e m es cala Inte r nac ional, atr avés d as q uals se extermi -nam slums, bido nv illes, favelas e se pr opõem a os int er ess ado s (queoutr a esco lha n ão têm) "co njunt os habltacionals" a s e constituir em ó bvios univer sos concentraclon árlos de afasta mento e Isolamen tod esses grupos d as á r eas que ant es ocu pava m e dos nÚGl eossoc iaisem q ue estavam Insta llld os. . 25. Ver, mais adiant e, a seção re serva d a às propos ições de

H; undertwl'Isser (cap . 3).

quais nem mesmo os sacerdotes, reservadas estas aof ó ( d d ' ) l

o, mas o verdadeir o objetivo dessa arq uitetura era aproteção do i i do templo sua ocultação dos olhos

Page 27: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 27/90

f araó (r e presentante do deus' na terra) e eventualmenteao sumo-sacerdote. De igual modo, o povo gr ego per-manecia fora dos ofícios religiosos, praticados den-tro dos templos. a lugar do coletivo era assim o ex-terior não-construído. Já em Roma ocorre uma inversãosignificativa: o lugar do coletivo passa a ser um lu-gar construído. A basílicia era um edifício onde se

reuniam os cidadãos romanos (por certo, nem todosos habitantes da cidade eram cidadãos do império) para discutir , conversar , encontrar-se. Mais tarde areligião cristã irá oficiar seus cultos dentr o dessas ba-sílicas, cujo nome adota par a designar seus templos,e o povo é (ou permanece) admitido dentro do"construído", numa passagem que irá persistir atravésdas épocas seguintes: a catedral românica ( por vol-ta do primeiro milênio d.C.) é por excelência o lugar de reunião pública, e o mesmo se dá na catedral gó-tica, a partir de 1100 d.C. aproximadamente. E aságoras gregas e praças romanas só irão, a rigor , rea- parecer com a Renascença: a Idade Média l essenci~l-mente o domínio do fechado, do cercado, do estreIto(o estado de insegurança constante das populações, ex-

postas a sucessivas invasões, explica essa disposição),numa situação onde espaços como os ocupados pelasfeiras (espaços relativamente amplos dentro da escaladessas cidades-fortalezas) não podem ser considerados,rigorosamente, como abertos: vejam-se ,as cid.a~~s ~eestrutura medieval que ainda se mantem utllIzavels,como San Gimignano na Itália. Só a partir da Renas-cença o espaço aberto será novamente proposto emtoda sua extensão, sendo agora ocupado por um su- jeito coletivo, por um povo que não mais é obrigado aficar de fora (pelo menos os templos lhe são abertos)nem constrangido a se fechar atrás de muros.

Estas constatações interessam na medida em quese indaga da validade, por exemplo, das afirmações deum Giedeon em seu Space , Time and Architectur e( 1947), segundo o qual a arquitetura grega era umaarquitetura concebida a partir do exterior, enquanto aromana o era a partir do interior e a do nosso tempo procuraria um compromisso entre uma e outra. Suas proposições parecem partir de uma ilusão, a mesma quea classe dirigente grega impunha ao povo grego: este defato ficava do lado de fora do templo, contemplando-

proteção do interi or, do templo, sua ocultação dos olhosdo povo e, por conseguinte, a pre ser vação desse es paço,onde S y r efletia o centr o decisór io da cidade (o mitoda democr acia grega já f oi suficientemente demolido par a se insistir nesse ponto). Só se pode falar de umaarquitetura gr ega feit a a par tir do exterior (e do es- paço comum, por conseguinte) se se adota o ponto

de vista dessa ilusão: o exter ior de tem plos, palácios,era a penas a casca, a isca que se entr egava ao povo.a mesmo acontecia com o templo e a ar quitetur a egíp-cia em geral: o far aó se recolhia à parte centr al dotemplo e emer gia para o povo dizendo q ue o deus ohavia confir mado em seus poder es terrestres e que taiseram as palavr as de or dem: mais uma vez o que pre-valece é uma arquitetura de exclusão; o espaço co-mum, o espaço do sujeito coletivo é o do lado d e fora ,o espaço não-construído.

Por outro lado, se se pode aceitar sem maior es o b- jeções a tese de que a arquitetura é efetivamente umaarquitetura elaborada a partir do interior, que se volta para o interior tanto porém quanto para o exterior (como a gótica, que sob este aspecto atinge realmenteum grau de plena identidade entr e os dois planos, Ex-terior e Inter ior - pelo menos na catedral) e quevisa proporcionar não só uma ex periência do EspaçoPrivado Construído como também do Espaço ComumConstruído, não é tão tranqüila a afirmação de quea arquitetura de hoje procura um equilíbrio entre inte-rior e exterior , particularmente no que diz respeito aoeixo construído-n&o-constr uído e ao Espaço Co-mum. De modo cada vez mais acentuado, o que seconstata é uma proposição maciça de Es paços ComunsConstruídos, especialmente sob a forma de estádios ouclubes esportivos. A praça como experiência de livresencontros humanos é de uma inexistência praticamentetotal, especialmente nas cidades "modernas". Ela nãoexiste pelo menos no sentido de praça enquanto lugar aberto ao homem para um momento de tranqüilidade,como a Praça São Marcos em Veneza ou a ágor a gre-ga. E mesmo nas cidades menos modernas a praça estáem desaparecimento. A razão desse procedimento es-tar á sem dúvida não apenas na destruição das cidades para abrir-se caminho ao carro mas, especialmente, natendência cada vez mais acentuada para o confinamento,

criado como um espaço que a e la se oferece comodado inicial e já pronto Que se pense na excepcional

para o constr uído - par a q constr uído enquanto cer ':'t É it ig ifiC ti l q

Page 28: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 28/90

Oposição constante, sempre presente. no p:ns~-mento arquiteural, este eixo assume uma ImportancIaque a esta altur a, com a intensida?e d~s ;r ozes q~ese fazem ouvir em favor da ecologia, nao e necessa-rio evidenciar . A análise se limitará assim a alguns as- pectos sob os quais é esse eix? par ticular m~nte im- portante para o projeto arqUItetural, espeCIalmenteq uando levado em co~sideração sob o _aspecto d~ opo-sição Es paço ConstrUIdo - Espaço N ao-ConstrUIdo.

De início, uma possível objeção deve ser a~as-tada: se Arquitetura é constru ção de um Espaço (l.e.,elaboração e proposição feitas pelo homem, por co~-seguinte um produto não existente na natureza), na?seria por um lado tautológico falar ?um es paço arqUI-tetural artificial e, por outro lado, Inadequado e con-traditório propor a noção de espaço ar q uitetural na-tural?

Não: primeir o porque antes de ser constr ução deum es paço, a arq uitetur a é uma disposição, organizaçãode um es paço, que pode tanto ser um espaço por ela

dado inicial e já pronto. Que se pense na excepcionalCasa da çascata (F allin gwater s) de F. L. Wr ight: pelofat,o de as ~ochas se disporem com as paredes, ou dea agua pratIcamente atravessar a casa deixa esse edif í-cio de ser uma obra, isto é, uma pr d posta, uma cons-~ruçã? de Llo~d AW~ight~Ou são esses f atos tais quelI~vahdam a eXlstencla, aI, de uma operação arquitetô-

nIca? Por cer to não. Lloyd Wright dispôs um espaçoartificialmente criado com um espaço q ue se lhe ofe-recia de imediato, com um dado: fez arquitetura.

Em segundo lugar , porque é inadequado o concei-to que o homem ocidental faz da natur eza e do espaçonatural: par a ~le, só é r ealmente natur al aquilo que per-manece quase Intocado pela mão do homem, algo assimcomo uma floresta virgem onde o q ue prevalece é o de-sordenado, o livre. Esta concepção pode constituir-seefetivamente numa espécie de ideal do espaço natural,de noção per f eita de natur eza - mas como tal, ela sereveste de um caráter de inoperabilidade q ue a torna to-talmente inútil para o homem, que nesse caso ou renun-cia a esse espaço natur al ou tenta submetê-Io a si mesmode tal modo que o desnaturaliza inteiramente (que se pense nos chamados " jar dins franceses"), sendo igualoresultado nas duas operações, isto é, inexistência de es- paço natural para o homem.

A esse r espeito, o oriental, e o japonês em par -ticular , tem uma visão ao mesmo tempo mais prática emais adeq uada à operação arquitetura!. Antes de maisnada, para ele aq uele punhado de cascalho, as duas outr ês pedras em seu jardim e uma ou outra planta nãosão "amostras" da natureza (reduções do natural) comas q uais ele tenta de alguma forma se consolar mas, sim- ". . 'sao a pr o pna nature za , a proporcIOnar -lhe todas as sen-sações de que tem necessidade em relação ao espaçonatural. Para o ocidental, pelo contrário, as plantas eoutros elementos do natural só estão presentes em seu jar dim na qualidade de "lembranças", ou seja, não en-quanto coisas reais mas justamente (por perderem suafunção própr ia) enquanto engenhos artificiais, exata~mente aq uilo a ser evitado q uando ele construiu seu jar dim. Dessa o posição or igina-se uma série de mal-en-tendidos, desde os q ue relevam do simples mau gosto, passando pelas a berrações maiores como os jardins àfrancesa e chegando àq ueles que provocam mesmo per -

ceamento. É muito signifiCativo, por exemplo, queq uando dos tumultos e choques de r ua em Paris, 196.8,se tenha f alado, com um certo horror em nada dIS-f arçado em "tomada das r uas pelo povo", numa ten-tativa de r eedição da Comuna de 1871. Por que "to-mada das r uas pelo povo" se esse povo não esti-vesse justamente sendo afastado das ruas e praças, se

seus momentos de lazer não fossem coordenados eorientados para lugares fechados, delimitados, onde in-clusive não se pode f alar numa atividade comum, massim numa multiplicidade de atividade particulares quenão chegam a unir-se num todo?

Não, não parece haver , em nossa época~ o ade-q uado jogo entre Es paços Comuns e Espaços N ao-Cons-tr uídos; mas sem a profundar a a~álise. do ~ignifica?odesse procedimento (o que se f ara maI~ ~dI~nte), In-teressa aqui, de imediato, ressaltar a eXIstencIa de umquarto eixo de significaçõ~s .referent.e _ à linguage:n es- pacial, proposto pela propna oposIçao ConstrUIdo- Não-Construído: o eixo Es paço A r t ifica l X E spa ço Na-t ural.

turbações psíquicas (ou i~pedem o eq~ilíbrio psicoló num jardim não é signo da f lor de um campo, mas é ela

Page 29: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 29/90

tur bações psíquicas (ou i~pedem o eq~ilí brio psicoló-gico do indivíduo) e que produzem ate esse pesadelodo mundo natural, essa aberração pavor osamente mons-truosa que é a f lor ou a folha de ' plá~tico! É just~mente

por que o homem ocidental (~ o c.ltadmo, em partlcul~r)considera as plantas de seu Jardim ou vaso ~o~o Sl:n- ples signos de uma coisa e não como a propna COIsa(q ue estaria além, num ideal 9-ualq uer), é exatamente por isso que ele é capaz de aceitar sem ?~n~utr .t- es~a?toa inacreditável flor de plástico! Consequencla mevItaveldo comportamento do ocidental em relação ao "natural",a planta de plástico é hoje apenas um dos e~eme~tos doenorme arsenal dos erza t s da natureza que mc1m a gra-ma de plástico, e pedra de plástico e, para os mais "so-fisticados" que exigem não só o mundo vegetal mas ~am- bém o animal, aq uários com falsa água e falsos peixes.Dentro de seu vício básico, q ue é considerar a pequenaquantidade de plantas num pequeno jardim apenas ~o~oamostr a da natur eza e não como um pedaço da pr o pnanatureza, o pensamento desse consu~idor é lógi~o: se aflor que eu tinha antes não era maIS q ue um_ Signo .d.aflor real, se era por isso mesmo falsa, ~or q ue nao a?~ltIr logo o falso elevado à perfeição q~e e a f~or de plastIco,com tantas vantagens: não seca, nao precisa ser tr atada,é definitiva (nada melhor q ue as coisas definitivas, par a

esse homem) etc. etc.?!!!Por outro lado, o plástico é a ex pressão perfeita

do racionalismo humano, do racionalismo imposto aonatural e do qual os jardins à francesa são um dos exem- plos mais aberrantes e notáveis: "o contato com a na-tur eza é f undamental, mas a natureza é desordenada eisto causa problemas, por tanto é necessár io que ela se porte e se comporte assim e assim". E tem-se com?resultado essas construções vegetais, apar adas e condI-

cionadas em formas geométr icas de disposição e cor degosto duvidoso (ou mesmo mau gosto), a se re petir emmonotanamente num espetáculo em tudo e por tudotedioso. Não existe em Ver salhes, o diálogo ar tif icialX natural: tudo ali é ar tificial.

O ponto de vista do or iental é não apenas mais"pr ático" como realmente (est~ sim) mais. r~~io?~l ~mais adequado à operação arq mtetu:?l. Mais pratIco porque é impossível (e mesmo mdeseJavel ) conviver com

a natureza absoluta, em estado selvagem e em grandeextensão. Mais racional por que efetivamente uma flor

mesma e r ealmente uma flor, devendo assim ser encar a-da: o mundo e:l'cessivamente semantizado (mas er r o-neamente semantizado) é talvez um dos responsáveis pelo com portamento inadequado do homem, para quemde tanto uma f lor ser signo do amor, da paz, da esperan-ça e c?isas do ~ênero, ela acaba sendo, mesmo quando

real, SIgno de SI mesma, numa operação mental injusti-ficável. Gertrud Stein precisaria escrever outra vez seu"uma rosa é uma rosa é uma rosa" e talvez acrescentar "e mais nada mesmo" para os que ainda não entenderam.

E m~is adequado à operação arquitetural porq ue para o onental a natureza sem algum arranjo, sem algu-ma disposição do homem (e não uma disposição humanaexcessiva) não tem muito signif icado. Ou, para nãoradicalizar demais a afirmação: esse modo de pensar é

mais adeq uado à arquitetura porque a natur eza admitesem deixar de ser natur eza, alguma intervenção huma~na. Er a justamente este um dos as pectos que inter essavaressaltar aqui: a concepção de um espaço ar quitetural~atural que pod~ constituir -se não apenas pela natur ezahvr e como tambem por elementos da natureza dispostos pela ação do arquiteto - sem os excessos, por exemplodos jardins à f rancesa. '

Um outro as pecto relativo a este eixo é o q ue diz

respeito aos espaços arquiteturais não-construídos sobsuas duas formas possíveis, exatamente a artificial e natural. Exem plo excelente de Espaço Não-ConstruídoArtif icial: a Praça São Marcos, em Veneza. Es paço Não-Construído Natural: Hyde Park , Londres. O espa-ço não-construído f ormado pela Pr aça São Marcos éefetivamente um espaço ar tificial: resulta de uma cons-trução quadriláter a com um dos lados abertos, por émfechado por outr a constr ução independente da pr imeira

(a catedral) e compor tando uma saída lateral, para omar . E o solo é calçado: o es paço é inteiramente arti-ficial. Em relação a Hyde Park, tr ata-se de um naturala penas ligeiramente misturado com algumas poucas obrahumanas (alguns caminhos internos, uma ou outr a casa) .E o q ue interessa ressaltar aq ui é que em princípio nãose pode pr ivilegiar um desses Espaços em detrimento dooutro, como muita ecologia apressada poderia fazer optando pelo es paço natural de Hyáe Park . Se por umlado s e poder ia pensar q ue a solução ideal estaria num projeto de com promisso entre ar tificial e natur al,

Jor outro é preciso reconhece~, por exemplo, que um es- no entanto, os es paços não-construídos ar tif iciais' são

Page 30: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 30/90

p , p p , qJaço simples e totalmente artificial po?e ser de todo sa-~isfatório, na dependência de determmados fatores .. :B) que acontece com a Praça São Marcos, reconhecida:le modo praticamente unânime como ~odelo de p~aça' per f eita", i.e., humana. Impossível deixar de sentir-~eJem em São Marcos, conclusão comum. E emb~ra haJa~ertos aspectos não levados em c~mta pelos anah~tas (oEatode a Praça São Marcos ser um lugar excepclOnal equase fantástico na medida em qu~, tomada por bandosje tur istas e despreocupados praticamente o ano todo(numa realidade com seus aspectos inconvenientes, por certo), se volta ela quase totalment.e para ,0 lazer, numaatividade e num clima realmente Imposslvel de se en-contrar em outro lugar : o trabalho q~e se desenrola ~apraça, por parte dos moradores da cldad~, passa facil-mente despercebido, prevalecendo um ~hma ge~al delazer e ociosidade acentuado pelas correnas de cnançase pombos, pela presença da água e pelas músicas (deca-dentes e mal executadas mas, enfim, músicas .. ,) dosconjuntos q ue se r evezam o dia todo nos bares da pr aça.Tudo isso e mais a pr ó pria dis posição dos elementos ar-quiteturais da praça realmente proporciona esse inusita-do prazer de convivência com a constr ução: o espaço éamplo sem o ser demasiado, a visã? do céu é .abertamas a praça é fechada - não hermeticamente, po~sumagrande saída se abre para a água e para _ u~a paisagemmais além. E, importante, o homem nao e esmagado pela verticilidade das construções, quer por parte dogrande bloco quase quadrilátero" quer por parte ?a c~-tedr al (não mais alta que o PalaclO do~ Doges? Isto e,sem as proporções "normais" das ~atedrais), ou amda pOr parte do campanário, de altura afmal relativamente mo-desta e que, de qualquer forma, se integra totalm~nteno cenário por sua situação ~ conformação. E a PalS!-gem é uniforme sem ser monotona: a grande construçaolateral é por certo rítmica, mas a catedral rompe sua.ve

por ém decididamente o tédio possível. ~ esta ' perfeitaoposição dialética entre os ex~remos (hon~ontahda?e Xverticalidade, abertura X abngo, harmoma X vaneda-de), e levando-se em consideração que a ~ra~a -: c~motoda Veneza - pertence ao homem e nao a maquma,ao carro (materialização moderna da mítica ágora?),ela efetivamente se propõe como espaço notavelmenteagradável. Quando estas circunstâncias não se reúnem,

p çgeralmente uma catástr ofe: que se pense numa Placede Ia Concorde em ,Par is, a não passar mais quase deuma imensidão esmagadora e de uma pista de velocidade para os automóveis, ou numa Trafalgar Square londrinaonde, se o espaço é menor que o de Paris, não é menor a exposição aos car ros acumulados em toda sua voltanum congestionamento contínuo.- Ou na Praça da Li- ber tação, no Cairo, antevisão do caos automobilístico.Ou na ridiculamente pequena Times Square (pequenaem relação a seu tr ânsito humano) .

Nestas circunstâncias, o Espaço Não-Construído Natural apresenta-se normalmente como de mais fácilrealização quando se visa oferecer ao indivíduo um lugar agr adável: Hyde Park , Palermo em Buenos Aires, Cen-tral Park em New York (não fosse, claro, o problemada criminalidade incontrolável) - mas não, por exem- plo, o Bois de Boulogne, transformado nos fins de sema-na, com suas ruas asfaltadas que o cor tam em todos ossentidos e a pouca distância uma das outras, em cópiado inferno citadino parisiense com seus milhares deveículos. "Mais fácil", esse Espaço Não-Constr uído Na-tural, na medida em que se oferece como síntese imediatae pronta do caos urbanístico e arquitetural que esmaga oindivíduo na maior parte do dia, da semana, do mês, doano, de sua vida. Contudo, a solução mais adequadaainda seria aquela onde esse espaço exterior não-cons-truído (artificial ou natural) seja tal que se integr e notecido ur bano , como acontece com São Mar cos, e não sedestaque dele acentuadamente (como acontece com aesmagadora maioria dos parques atuais), tal como se pr o punha nas ideais cidades-jar dim derivadas das teo-rias de Owen e Fourier, no século XIX, ou nas reaisexperiências da vanguardeira Lyon do século XX; esses projetos de integr ação artificial-natural não são, de fato,de todo irrealizáveis: na China Continental, após a r evo-lução comunista, a população, num trabalho lento mas-contínuo, plantou milhões e milhões de árvores nas gran-des cidades, obtendo por resultado prático a diminuiçãode dois graus na temperatura média no verão e umaestabilização dessa mesma temperatura durante o inver -no - resultado sem dúvida notável, ao alcance de qual-quer municipalidade realmente interessada no bem-estar de seus cidadãos. A cidade-jardim não é um ideal risí-vel: é imperiosa necessidade.

de outra parte, ao mundo aberto, ao mundo exter ior -ou simplesmente ao mundo E a questão colocada por1.3.5. 5.° eixo: Espaço Am plo X Espaço Restrito

Page 31: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 31/90

26. BA CHE LA RD ,Po é tique .. . ,

p. 23 . No ori ginal, os versos s ãoest es: A Ia porte de Ia malson qui vlendra frapper? / Une porteouvert on entr e / Une porte fermée un ant re / Le monde bat de

ou, simplesmente, ao mundo. E a q uestão colocada por esses versos, e q ue deve ser colocada quando se abordaeste eixo, é: até q ue ponio se pode identificar a ex periên-cia do Espaço R estrito (especialmente em relação aoEspaço Interior, mas tam bém em relação ao Exterior)como o espaço da intimidade, da proteção (do bem-es-

tar) e, inversamente, a do Es paço Amplo com a does paço comum não protetor e, mesmo, hostil, E: atéque ponto o Espaço Restrito é necessár io? A determi-nação do modo de sentir essa oposição é tão mais im- pr escindível quanto hoje a área e o volume atr ibuídosà esmagadora maioria das populações são extremamentereduzidos e tendem a sê-lo cada vez mais - ao mesmotempo em que se a presenta esses espaços, em todos osti pos de publicações, como traduções de "aconchego"

de "praticidade", etc. A respeito da área/volume deq ue goza (se é que este ter mo cabe) cada indivíduo, é possível mesmo constatar q ue em muitos lugares a pr o- porção se mantém estacionária há já bem uns doisséculos ( pelo menos) enquanto que em outros ela dimi-nui nitidamente. Veneza, por exem plo, considerada por Le Corbusier a única cidade moder na (e q ue o é, de fato,sob mais de um aspecto): nenhuma modificação maisacentuada nos últimos q uatro séculos. Paris: se a área particular de que dispõe cada habitante é, em geral eem média, a mesma de há 200 anos, o volume diminuiuconsideravelmente (rebaixamento do pé-dir eito nas cons-truções modernas, em r elação ao Espaço Interior) e comele todo o es paço em q ue se move o indivíduo (emPar is diminuíram ainda, nitidamente, as áreas verdes eas áreas livres: praças, etc.) Mesmo nas regiões subde-senvolvidas, um suposto avanço nas condições de higienehabitacional (substituição de casebres de pau-a- pique,madeira ou r estos vários de materiais por moradias deti jolo) é via de r egra acompanhado por uma diminuiçãosensível da ár ea/volume real de q ue dis punham os in-divíduos.

Que significação adq uir e enfim par a o homem aoposição Am plo X Restr ito, que valores atr ibuir a umem relação ao outro, ou a um em o posição ao outr o?

Discorrendo livr emente sobr e a poética d a casa,Bachelard of erece uma pista par a essa decifr ação -

porém, uma pista embar alhada, contraditór ia. Bachelar dtorna q uase mater ialmente ver ificável uma constatação

p ç p pç Não será demais re petir a todo instante que o ne-

cessár io, para esta análise, é su perar os simples proble-mas da descrição (como sugere Bachelar d) no q ual seatolam a maioria dos estudos sobre a arq uitetur a, sejamhistor iográficos ou outros. E esta super ação é par ticular -

mente requer ida q uando se tenta uma a bor dagem dassignif icações possíveis o btidas atr avés do es paço enten-dido como área ou volume. Antes de mais nada, umacolocação: é certo não ser pacíf ico que se possa f alar do espaço indiferentemente ou simultaneamente comoár ea e/ou volume. Cada um desses aspectos apresentacar acteres próprios a exigir apreciações e soluções es- pecíficas. Mas aqui se postulará q ue não só o pensa-mento que está na base da colocação desses problemas

é o mesmo para am bos (do lado do manipulador do es- paço) como se conf undem os dois, essencialmente, nummesmo aspecto, para aquele q ue os r ecebe, que os viveenquanto usuár io. E isto se pode intuir facilmente quan-do se per ce be que uma área restrita é compensada por um volume acentuado ou vice-versa - sem se falar nasrelações entre a per cepção de ár eas e volumes em rela-ção a f or mas dif erentes. Para a análise aqui desenvol-vida, portanto (que deixa inteiramente de lado os as pec-

tos da descr ição), não só se justif ica essa fusão entr eesses dois aspectos do es paço como ela é, mesmo, f un-damental.

De início, a constatação primeir a que vem à mente éa de que o Es paço Amplo está intimamente associadocom o Espaço Exter ior (o espaço amplo conduz para oexterior) e q ue o Espaço Restrito r elaciona-se de modo particular com o Es paço Interior (e igualmente com oEspaço Privado e o Comum). Uns versos de Pierre Al- bert-Birot, citados por Bachelard 26, resumem essa eoutras sensações do es paço:

À por ta de casa quem virá bater?Uma por ta a ber ta: entroUma porta f echad a: antroO mund o bate do outro lado de minha porta .

Aqui, de um lado, a noção do es paço f echado comoum espaço íntimo e um espaço de mistér io, a se opor ,

da psicanálise: a imaginação constr ói muros - com asilusões os sonhos as sombras Isto é a imagina~ão ~alão do qual. saem salões menores mas ainda grandes:

" i l" d ibid i

Page 32: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 32/90

ilusões, os sonhos, as som bras. Isto é, a imagina ão pr otege o indivíduo, seu f oro inter no ou sua últimaligação consigo mesmo. Por outro lado, nenhum muroverdadeiro, nenhuma sólida mur alha, por mais gr ossa edur a que se ja, impede a imaginação de tremer de medo,de sus peitar, de sentir-se ao aberto, ex posta, insegur a.

Neste caso, o canto e a casa são não só o primeiroe grande útero a envolver o homem des pois do par~omas tam bém seu universo. Um cosmo. E na ace pçaointegr al do termo, insiste Bachelar d - o q ue in~lu~.0desconhecido, o incer to e o temor . Uma dessas slgm b-cações predomina sobre a outra? Como já foi mencio-nado aqui mesmo, existe toda uma mitologia do fechado,do estreito do escur o a conduzir às categor ias do ínti-mo, do se~r eto e do mistério, e que é possivelmente bem

mais extensa do que uma mitologia do amplo, do vasto,da imensidão. E talvez essa mitologia do restrito sejade qualquer modo bem mais praticada ao nível do realdo q ue a da imensidão. Como vai reconhecer o mesmoBachelard, a imensidão é uma categoria f ilosófica daatividade onírica. Sonha-se com a imensidão, mas pra-tica-se o restrito. E nem sempre por impossi bilidadeseconômicas ou mater iais. É o homem, e especialmenteo homem ocidental, q ue r eceia a imensidão 27 e se r efugia

no pequeno: a gr andeza parece destinada a ser apenascontemplada e não vivida. Realidade que se pode cons-tatar em toda a história da arquitetura. PO( exemplo, aresidência vêneta do Papa Clemente XIII, Ca' Rezonni-co. Passando-se um pequeno átr io de entrada, sobe-seuma escada por tentosa que conduz a um considerável

27. Esta co ndi ção se reflete d e modo claro n a maneir a d eacu pação d os es paços I nternos atr avé3 d a acumul ação d e o bjetos.O ocident al tem horro r às pare d es vaz ias e lisas , r ef lexos do vaz iomaior e un iversa l: por isso e le as oc upa não s6 co m quad r os co mo

procura ocu ltá-Ias so b um acúmul o de m6vels . Por essa razãoJamais have r á um c anto vaz io numa casa -tipo ocidental : umcanto d eve ser se m pre ocupado po r um objeto, e pro lifera m asmeslnhas, vasos, espe lhos, "ca ntoneir as", etc. E, d e mod o gera l,tod o o espaço dis ponível, se ja qual f or, d eve ser sem pr e ocupad o, oq ue provoca uma d ensid ade "obj étlca " incrivelmente alta, r ed uzmd oacent uada mente o espaç o d estinad o Ini cialm ente ao I ndlvíd~o ( r e-dução a 1/3, 1/4 ou aind a men os) . Inver sa mente~ no Japao, por exemplo o que se pr lvllegla é justa me nte a noçao d e mt er valo ,d e vaz l~ entre d ois pontos, d uas ref er ência s esp .acial~ - e Isto ~ever ifica d esd e no famoso "arr an jo f lor al" ja pones ate a d lspos lçaodos elemento s num J ar d im, p ass ado p ela mob ilia d os a pose ntos.Uma "sala" não ter á mais que uma pequena mesa e um ou out r oobj eto (f icand o os demais oc ultos em armãrlo s em butidos) ass imcomo um Jard im se faz co m uma ou d uas ped ras espaça d as e re la-cionadas com não m aior número de pl antas. Pod e-se obj eta .r queest a casa -ti po ja ponesa n ão é mais e ncontr ada hoje , e que as ha bi-taçõe s coletiv as à ame rIcana com In teriores po voad os d e obje tos

e a parte "social", a par te da casa para ser exibida vistacontem plada, par a im pressionar . Mas há uma parte ínti~ma da ~asa, os a posentos pessoais do cavaleiro e pa paR ezonmco, e todos eles evoluem em torno da dimensãodo pequ~no, do f echado. Desde seu quarto de dormir ,c0':l o leIto enc~str .ado numa concavidade apenas poucomaIOr que a pr opna cama, até os outros a posentos se-.cundários, saletas com não mais q ue 6 m2, às vezes nemISSO.O mesmo acontece, para ficar em Veneza no Palá-ci~ dos Doges, uma constr ução " pública" e, p~r conse-gumte, com salas monumentais, de vão livr es imensos.Ou Versalhes e sua galeria dos espelhos - a aumentar ainda mais a sensação de enormidade do es paço e aatr air de preferência o turista (o ccntemplador por ex-celência). Ou ~s templos e pir âmides no Egito, que f ezda monumenta bdade esmagador a um princípio auxiliar do governo político. Ou, vindo par a os tempos atuais,uma Praça Vermelha de Moscou, lugar de demonstra-ções, de exi bições - e por tanto de contemplações masnão de existência. '

. A amplidão exibe o poder de seu possuidor . E ate-morIZa. É o mesmo terror q ue o homem sente diante~o Vazi~ -:- do Universo, do Inf inito. Algo q ue escapaa sua medIa: que ele não domina porque não pode pr e-

encher . <?u que el:, encara como algo preenchido por um conteudo q ue nao entende, não conhece, não mani- pula -: por .co~s~guinte, ~ue ele r eceia (é um es paço deexclusao: ,o mdIvlduo esta realmente po r f o ra) . Na ver-dade.' aSSIm; ~ imensidão é tão misteriosa quanto orestnto (o mtlmo, o fechado); tão habitada por fan-tasmas quanto espaço reduzido ("O mundo bate do outrolado de minha porta"). E sob esse as pecto, não é so-

são ur p.a r ealida d e lá tamb ém. Isto não Im pede to d avia ue aex per lencla d .o mterva lo no Japão (mesmo ainda ne <te s& Isem pr e foi, !a, uma experiência h istórica, en quanto q~e no ~~~d ente a tendencla se m pr e foi, des d e que mate r ial e econ omica mente possíve l, na d Ir eçã o d o acúmul o. Supera d a a Id ad e Médl d ob jetos d e qualquer ti po eram a bso luta mente r ar id ade a~o~ u~~;ocid ental ou pr aticará o acúmul o de ob jetos _ oc'upa ão doesp aço ( pelas c lasses eco nomi camente fo rtes) _ ou terá e '~a pr á-tIc~ com o alvo e va lor Inquestlonávels ( pelas classes não - privl le-gla as), en q uanto no Oriente (e mb or a em deter minados períOdosa esca .ssez matena l coíncl d a com ou provoque uma d eterminada pr ef erenc la es paclal) tem sid o um valor e u ma prática consta nteso es paço vaz io. D eixar d e ver nesse pr eenchim ento fre nético d oes paço (de q Ue o Barroco e a art nouveau for am momentos par -tiCul ar. mente pr ívllegla~os) uma verda d eira f o bia d o vazio paraat.rlbUl-lo ape nas a raz oes de orde m socia l (ostentação, etc.) é se mdUVld~slmpllficar e descaracterizar esse aspecto do comportamentod o oCldental, f ican d o-se na supe r fície d o fenô meno sem d escer às pr Of undId ad es d e suas motIvações psicológIcas .

lente o espaço r estr ito que se . pr opõe como domínio devalores do onirismo" como sugere Bachelard mas tam-

mes~as explicações; e toda esta colocação se baseava,este e o ponto fu~d~I?ental num dado anterior segundo

Page 33: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 33/90

valores do onirismo como suger e Bachelard, mas tam-ér o o espaço .amplo. A imensidão levada às últimasonseqüências é o espaço do Univer so, o Cosmo - eão é exatamente assim que Bachelard conceitua a casa,, íntimo?

este e o ponto f u~d~I?ental, num dado anterior segundoo <;lual para o pnmItIvo a persistência da vida, a imor-talIdade, era .uma coisa inteiramente natur al. ( Não éDe~s .aquele Justamente que nunca teve começo e nãoter ~ fIm?) Tudo/ par ece indicar de fato que a repr esen-ta~a~ ~a mor te so se formou tardiamente no espír ito do p;ImItIvo,. qu~ nunca a aceitou a não ser com conside-r :vel ~esItaçao - de modo ex plicável, por certo. Senao ha m~rt~, _nãohá pr o priamente um começo, as coisass~~pre e~Is~I~aoe como tais são "normais" - e a imen-sIdao, o Inf InIto, o vazio é catalogado como corriqueiro por tanto é afastado. •

Segundo a concepção religiosa, há diferenças entre~ homem e o mundo circundante, a natur eza de um nãoe a mesma do outro e a constatação dessa diferença levaao reconhecimento de uma ignorância do homem. Suge-re-se então que o princípio das coisas está nos espír itos(os deuses) que tudo comandam e tudo sabem: não hácom q ue se preocupar portanto, o cosmo é uma enti-dade perfeitamente clara e inteligível para a mente pelomenos dos espíritos. Afasta-se igualmente o pr oblema?o/.Cosmo. E na terceira concepção, o homem aceita aIdeIa de seu pequeno papel no Universo, renuncia aos prolemas de ex plicação do Cosmo e pr ocur a antes seInteressar pelos modos de oper ar sobr e ele - e a q ues-tão é novamente eludida. De acor do com o exemplo.de Fr eud, na primeira f ase se quero que chova, deve b~star que eu f~ç~ algo que se assemelhe à chuva, ou quea Invoqu~ (arumIsmo). Numa segunda fase, organizouma mamf est~~ã? em f r ente a um ídolo (danças, etc.)ou mando dlflgIr orações (rogos) aos deuses. Numter ceiro momento, enfim, procuro saber que ações so brea/ atmosfer a podem f azer com que chova. Mas se ao

n~vel de um exemplo referente a um fato comum adIf erença entre as três concepções é sensível ao nível datentati.va de explicação do amplo, do Co~mo, a pos-tura dIante desse problema é a mesma: nas tr ês ele é posto de ~ado. Ef etivamente, diante da vertigem doam plo, .do II?enso, o homem se recolhe para trás dos mu-ro~ d~ Imagmaç~o ou tenta preencher esse vazio com os pnmeIros conceItos à mão. S~u fascínio pelo restrito,no entanto, leva-o para o domímo da ação prática, ainda

q ~e assal~ado por temor es. Af inal, é sua dimensão. EdIz-se aSSImq ue o es paço geral proposto por Veneza (um

Haver á por cer to distinções entre o fascínio /temor :xer cido pela imensidão e aquele provocado pelo res-rito - a primeira das q uais consiste justamente emlue o restr ito é de qualquer f orma, e eventualmente, tan-;ível, enq uanto a ver tigem provocada pela imensidão é.bsoluta, definitiva e em nada apreensível. O que con-luz à conclusão da maior pr atica bilidade da mitologiaio restr ito (de que são indícios as mais variadas f ormasIe sua manifestação: casa, canto, cof r e, gaveta, envelo pe- mas também as caixas mágicas, a de Pandor a, e as:ar tolas mágicas - e ainda suas múltiplas aparições10 domínio do sexual, etc.) em comparação com a daIm plidão, for mador a de vagas idéias ger ais logo a ban-fonadas ou revestidas de explicações que o homem facil-nente aceita - para delas se livr ar não menos rapida-nente. Ao mesmo tempo em que nunca conseguelibertar -se inteiramente do mistér io e da atração de um••imples baú f echado. Assim, uma das grandes manif es-tações (ou a maior) do f ascínio da imensidão, mitif ica-da e de imediato posta de lado, é sem dúvida a do Uni-verso, de sua "criação", de seu "fim" e sua finalidadee da situação do homem em r elação a ele. Como é essef ascínio exor cizado pelo homem, e continuamente? Se-gundo uma formulação r etomada por Freud 28 com a f i-nalidade de estabelecer um par alelo entre o compor ta-mento neurótico e o de civilizações primitivas, a humani-dade teria conhecido em sua história, sucessivamente,três sistemas intelectuais, três grandes concepções do

mundo: conce pção animista, concepção r eligiosa e con-cepção científica. Em todas elas se trata por certo deuma tentativa de ex plicação do mundo natur al, masdeve-se subentender uma inquietação pr ofunda cOm o problema primeiro do Universo. A concepção animista(a mais "completa" e "exaustiva" dentro dos limites docír culo vicioso que ela mesma se impõe) partia do pr es-su posto de que tudo era animado tal como o homem,tendo por conseguinte o mesmo comportamento e as

espaço pr edominantemente d~strito, compensado pelasocasionais aberturas das praças e campos que nunca to frenético dos mais variados tipos de desodorantes nos

Page 34: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 34/90

ocasionais aber turas das praças e campos que nuncaultrapassam as f r onteiras do mensurável) faz dela umacidade à dimensão do homem, enquanto que o de LosAngeles (baseado em eixos amplamente rasgados paradar passagem ao automóvel) é sentido como positiva-mente inumano: opressor . Assim como tenta oprimir ,

espantar para dominar , a proposta fascista configuradano Vale dos Caídos, na Espanha, ou os restos da arqui-tetura fascista da Itália, como a Estação Central deMilão. Tal como seria inumano o espaço de Brasília.

Como determinar e medir na prática as dimensõesreais, f ísicas, desse es paço humano que se identifica antescom o espaço reduzido do que com o amplo - mas quenão pode descer abaixo de certos limites sob pena deigualmente tornar-se inumano? Qual é o optimum arqui-tetur al em relação ao eixo área/ volume? Os japonesessempr e considerar am o tatame, essa es pécie de esteirade palha de dimensões fixas, como um módulo de de-terminação senão da área/ volume pelo menos da área,de tal modo que um aposento é uma f unção de deter mi-nado número de tatames. Le Corbusier propôs igual-mente seu discutido e criticado módulo formulado, noentanto, sob a per s pectiva lúcida e praticamente revo-

lucionária para a época segundo a qual cada cultura propõe um módulo de dimensões diferentes. Mas longeestá de bastar o ponto de partida baseado no famosohomem de braços estendidos (por sua vez calcado nafigura, de Leonar do, do homem renascentista inscritono cír culo), o que equivale a consider ar como móduloa altur a do homem. Os japoneses têm uma altura mé-dia, e os suecos outra, mas a difer ença entre uns eoutros não se limita a esse aspecto isolado. 'É necessá-rio partir de noções de módulo bem mais com plexas,como por exemplo uma noção de " bolha" sensor ial hu-mana derivada da " bolha olf ativa" pr oposta por Hallem r elação a uma esfer a de odor própr io q ue cerca oindivíduo e que esta belece uma espécie de fronteir a ademarcar seus limites últimos, respeitados em certascultur as ou normalmente violados em outr as (enquantoo americano procura manter-se for a do raio de açãodos odores pessoais, não se a proximando demasiadode seu interlocutor - não a única, mas segur a-mente uma das grandes causas do desenvolvimen-

pEUA: bucal, para as axilas, etc. etc., - par a o ára beesse contato com o odor é não só indiferente como atémesmo pr ocurado). R ealmente, não há por que limitar ao canal do. olfato ~ .noção de " bolha" humana e comela a do .m,o.dulomInlmo de individualidade. Esse f ato(,as possIbIlIdades de toque inter-humano) deve par-tIcula~en~e ser levado em consideração e Com ele edeter mmaçao de um ti po de "es paço vital" individual ecultural que o homem reser ~a só par a si e cuja violação- salvo, por . certo, em ocasiões es pecíficas - é bastan-te mal r ece bida. (Que se pense nas experiências for-çadas ao ~e ~omar u~ elevador lotado; ef etivamente, ohomem nao e um anImal de acumulação, como as mor-sa~,,e o ~sta belecimento de uma distância interindividualmInlma e realmente de r igor .)

, ~esmo a ampliação e a su plementação do conceitog:nenco. da " bolha': ?U do módulo humano, no entanto,nao ser a nunca ,sufIcIente 29, e isto porque não só as di-~er enç.asse m~nIf estam ao nível dos gr u pos sociais comolllclus.IVeao nIvel de um e mesmo indivíduo ao longo desua Vida, de um ano ou mesmo de um dia. Sob esseaspecto, _ a fixa ç ~o de um módulo, seja qual for , e a~o?struçao a. partIr desse módulo fixo serão sempre insu-f~cI_entes.~eJa qual for o critério que se adote, a propo-slçao da~ areas e volumes de um es paço só pode atender a~~ _ deseJo~do homem se for feito ao r edor de uma dia-letIca contInua entre amplo X r eduzido, a qual é viávele pode mesmo basear -se desde logo, e mais uma vez nom _odu~od~ casa tradicional japonesa, onde as divi~õesnao s~o fixas, pod~n?~-se ter uma salão amplo com or ecolhimento das dlvlsoes entre tr ês ou quatr o aposen-tos modestos, ou um canto particularmente íntimo como e~t~n-quea~en _ tomúltiplo de um mesmo a posento. Eas UnIcas o~Jeçoes a esse projeto, de ordem econômica(ou de rendimento do capital do negociante imobiliário

par .a em~regar a ex pressão adequada) não se sustenta~maIS, se e que.alguma vez se justificaram: as paredes nãosuste~t~m mais a constr ução e podem perfeitamente ser sUbSt[tUld~s (pelo menos as internas) por elementossoltos facIlmente removíveis. E o problema d . I

t . d' 'd o ISO a-men o In IVI ual, em particular sob o as pecto do isola-

aUdf ;l~ o~~~ x~;rii~e, c~mo dete rminar , fixar os llmltes d o cana lhom em itAo o controlá? ex r emame nte amp lo e particu lar , já q ue o

~nto sonoro, pode ser atualmente de todo resol~idom osmateriais que combinam aleveza coma capaclda-

é uma casa na horizontal, e uma casa com dOISou maISandares é uma casa com existência na vertical. Como

Page 35: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 35/90

m os materiais que combinam a leveza c,oma capaclda. de isolação acústica. Mais uma vez, e uma fa~ha daaginação ar quitetural (ou a ausên~ia. p,ura e sImplesssa imaginação) que submete os mdlvlduos a exp~-:ncias desnecessárias e nocivas. Se sempr e s.econstr uIU

termos do f ixo (fixa-se o espaço amplo, flxa-~e:' e~-.ço r estr ito, estabelecendo-se entre eles uma distanciar ans ponível) por que mudar? indaga o bu':.ocr~ta daq uitetur a. O que é bom p~r~ ~ Europa nao e bomra o Brasil, ou para a Nlg~na? . O ~ue val~u noculo XVIII por que não valena hOJe, amda maiS quemodelo vem glorif icado pelo peso do tempo?! E co.m;;0 a arquitetura se revela como. ~ma _das pou,ca~ dIS-plinas que não registram modlf Icaçoes .senslvAelsao.ngo dos tempos - e isto quando p~d~na f az~-lo le-timamente, sem se entregar ao fascmlO gr atUlto dovo pelo novo. Todas as disci plinas h~manas mudamr q ue muda o homem .-:- m~nos a ~r9Ultetura: os con-itos de pr oposição, utlhzaçao e f rUlçao do e~paço ~on-

nuam essencialmente os mesmos 30 . O ar qUIteto aIndauma espécie de ditador ao qual o usuár io se su bmete

f i ter mos absolutos e definitivos: ele nada pode contrao projeto". No entanto, o es paç~ vive, respir a - e i~souer dizer que eXige mudanças ~l:e., ~ homem as eXIge-ara ele e através dele)! A modlflcaçao do espaço deveer uma necessidade; ela é uma possi bilidade e segurá-llente não é um luxo.

30 Atr avés d os séculos a .crescent am- se a pose ntos n ovos (comoo ban heiro) ou modifi cam- se outro s, ma s a estrut ura cen tr al d aconstru ção permanece in alterada .

andares é uma casa com existência na vertical. Comofuncionam as noções de hor izontal e vertical para ohomem, que significam?

Bachelard analisa a q uestão de um ponto de vista bastante par ticular, talvez demasiado su bjetivo. Paraele, a ver tical idade da casa é uma realidade assegur ada pela polar idade entr e o porão e o sótão, a pr opor umaoposição (que ele diz "imediata" e "sem comentár ios")entr e a r acional idade do teto e a ir r acionalidade do porão. O teto dir ia de imediato sua razão de ser : co- br ir , proteger o homem (é, por tanto, racional). Quantoao porão, seria possível descobr ir par a ele uma série deutilidades, mas par a Bachelard ele é fundamentalmenteo "ser obscur o" da casa, um ser que participa dos

poder es, da ir racionalidade das profundezas. Par a ele,o que interessa assim é considerar a casa como um jogoentre racionalidade e misticismo q ue se desenrola naver tical (e na vertical apenas) entre uma parte super ior e outra inferior. Não faltar iam elementos para compro-var essa colocação, segundo Bachelard. As constr uções para o alto, par a a par te superior, são "edif icadas", i.e.,construídas racionalmente, pensadas, elabor adas, en-quanto a parte inferior é sim plesmente cavada, sem plano pr évio, de modo apaixonado, e conforme as inclinaçõesdo cavador (do coveir o?). Além do mais, no sótão tudoé claro, nítido, simples, enquanto no porão tudo é mis-ter ioso, tenebroso: o mal é seu habitante, lá onde nuncahá luz, de noite ou de dia. Onde prevalecem as sombras.Onde se cometem os atos proi bidos na inf ância ou oscr imes dos adultos: os dr amas, as alucinações. A liter a-tur a policial e f antástica confir maria isso: os crimes sãosempr e cometidos nos por ões, os monstros (como o deFrankenstein) lá surgem. Bachelard foi mesmo capazde encontrar em Jung uma passagem que o confirma emsuas colocações (ou q ue as motivou?), segundo a qualo consciente está para o inconsciente assim como o porão para o sótão, na medida em que o consciente se com- porta como o homem que, ouvindo um barulho suspeitovindo do porão, corre para o sótão onde, nada encon-trando, se tranq üiliza - sem ter-se aventurado a descer ao por ão. Quer dizer, no sótão mesmo quando há medoeste se racionaliza facilmente, enq uanto isso ou nãoocorre no porão ou quando ocor r e não é definitivo ouconvincente.

:.3.6. 6.° eixo: Espaço Vertical X Espaço Hor izontal

Nada de mais natural que a ar q uitetura evolu~ aoedor da noção de horizontal e seu oposto, o ver tIcal.Mas o espanto inicial pode ser grande quando Bache-

ard 31 af irma que "a casa é imaginad.a como u.m ser r ertical". Que ela se eleva; se diferenCIa no sentIdo dema verticalidade.

A questão q ue surge desde logo é: e a horizontali-dade da casa? Diante da pr oposição de Bachelard nosjamos conta de q ue: 1) ou não pensamos em termos:ie horizontal e vertical quando pensamos numa casa; ou2) pensamos que uma casa com um só andar , o térreo,

Desta proposição inicial, Bachelard parte para umaanálise da existência nos prédios de apartamentos, onde

ascende à sua própria consciência? ou por q ue não sesente seguro de suas explicações?

Page 36: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 36/90

análise da existência nos prédios de apartamentos, ondea vida é sem encantos porque sem mistérios, já que nãohá porão e a polaridade básica instauradora do homem(e que se reflete na casa) foi rompida. A "casa" assim

pr oposta não tem mais raízes, é um simples buraco con-vencional no meio de caixas superpostas onde a altura ésó e xt erior - onde, enfim, a casa se tornou uma simpleshorizontal idade.

Antes de ver a que podem conduzir estas coloca-ções, há um fato interessante a observar: embora vi-vendo em Paris, Bachelard parece não se dar conta deum aspecto da vida em edifícios que ele poderia ter ex- plicado facilmente, chegando onde chegou, e de modointeiramente or iginal: o fato é que os edifícios em Paristêm porões, cada apartamento tem sua cave! Numa áreacomum, situada normalmente no subsolo, se sucedem,num espaço da mais com pleta escuridão, uma série deminicaves par ticulares. Estes porões de apartamentos poderiam ser facilmente ex plicados por um tecnocratacomo simples medida de economia (de rendimento docapital): ao invés de "desperdiçar" espaço nos andarescom a destinação de uma área em cada apartamento para servir de "despensa", "quarto de despejo", co-locam-se todas elas juntas no subsolo, "racionalizando--se" a construção, economizando espaço e material.Pouco importa se não é muito prático morar num quintoandar e ter de descer e subir (às vezes sem elevador) para apanhar um o bjeto qualquer . De resto, os parisien-ses na verdade pouco se importam com isso; pelo contrá-r io, fazem q uestão de sua cave, de sua cave "lá embai-xo". Por q ue, se não é prático, nem serve para muitacoisa? Bachelard poderia ter explicado, de modo origi-nal e inédito, que a c~v e é colocada nos edifícios não por uma prosaica questão de economia de capital mas porque se trata de um resquício da cave, do por ão verda-deir o, aquele das casas, que o parisiense ainda exige, demodo mais ou menos consciente, e que continua a lheser dado, de modo mais ou menos consciente. Se o porão é, como Bachelard afirma, um elemento funda-mental na vida do francês, seria normal encontrar (comose encontra) uma forma de sobrevivência nas caves dosedifícios. Bachelard nada diz a respeito - e ele não

pode desconhecer, pelo menos, que essas caves existem: por que silencia? Por que o fato é tão comum que não

Seja como for suas observações são interessantes particularmente o conceito de que a vida em apartamen-to é uma existência só exteriormente vertical e essencialmente horizontal. '

Mas e as outras teorias a respeito da verticalidade?

Na história da arquitetura, o conceito de vertica-lidade leva de imediato, e de início, ao Gótico. Góticonão é só verticalidade, por certo, mas não se exagerem demasia ao propor um termo como equivalente doutro. Como é vista essa verticalidade típica do Góticoinspiradora de outras em outras épocas? Ela é encaradf reqüentemente como racionalidade, tal justamente como propõe Bachelard, embora por outros motivos. De fato,essa racional idade da arquitetura gótica está diretamentligada ao conceito de clare za arquitetõnica, tal como estese impôs aos espíritos racionalistas (ou "racionalistas")do século XIX, VioIlet-le-Duc em particular, e deve ser enten~ida ?e modo muito específico como "eq uivalênciaentr e mtenor e exterior ". No Gótico, esta é a tese, seteria finalmente uma forma de composição onde o ex-terior deixa transparecer o interior (donde o conceitode "transparência arquitetônica"); onde o interior nãoé ocultado pelo exterior; onde o indivíduo, contemplan

do a obra do exterior, não é enganado quanto ao que oespera no interior e vice-versa. Em outras palavras, umestilo (conceito escorregadio, mas enfim ... ) onde decerta forma não existe uma fachada, algo que separa umacoisa da outra (inter ior do exterior ), que fecha, quedesune. A arquitetura gótica seria antes um conjuntoorgânico entre interior e exterior , ao contr ár io do quese teve na arquitetura gr ega ou romântica onde, a rigor ,se tratava de dois modos difer entes de plasmar o mate-

rial e dispor o espaço. Mesmo depois do Gótico dif icil-mente se pode constatar a prática dessa transparência:se a arquitetura renascentista não chega a romper sempree totalmente com essa identificação, não é menos certoque nela o problema da f achada se impõe sobremaneira.E de lá aos tempos atuais essa identidade, encarada sobo aspecto particular aqui em discussão, só se verificarána produção (e em alguma produção) de alguns nomesisolados: se a Sagrada Família de Gaudí estivesse term

nada, ela seguramente seria "de transparência" (de fato,o que é esse monumento único e alucinante senão uma

)r oposição baseada no gótico?); a~gumas propostas ~aC lrt nouveau também se enquadr anam nessa colocaçao( l bé li Gói ) d l

pecto, qual arq uitetura ou outra f or ma de ar te não o éigualmente? A arq uitetura neoclássica é expressão do

Page 37: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 37/90

(e el~também se liga ao Gó.tico) e outr ~s de escolas oulomes isolados do Moder nismo (es pecialmente as da"Iinha geométrica", como a de Le Corbusier, ou o' pró- prio Gropius, Mies, etc.). Mas em termos. ger~ls, oGótico teria sido o grande momento dessa raclOnahdade

entendida como tr ans parência inter ior X exterior .Contudo, se se disse em que consiste essa r acio-nalidade específ ica, não se disse como ela se propõe, a partir de que ponto de vista ela é assim conside~ada.Esse conceito de r acionalidade ou de clar eza arqUitetu-ral do Gótico se deve em sua maior par te' às teorias dePanof sky expressas em seu A arquitetura gótica e o pen -sament o escolásti co, título que já revela o conteúdo daanálise. Segundo Panofsky, não só existiria um par ale-lismo entre a arq uitetura gótica e o modo de pensamentoescolástico como inclusive a primeira seria a ex pressãomater ial do segundo, na plena acepção desse termo. As-sim como o pensamento escolástico é um mod~ de ex-

posição e de argumentação, rigidamente orgamzado, a.arquitetura gótica não só seria também fortemente estru-tur ada como se or ganizar ia segundo essas mesmas r egras.E Panofsky encontra na ar quitetur a todos esses elemen-tos de eq uivalência: os mesmos ti pos de relações entre asmesmas partes (no discurso escolástico e no discursoarquitetônico), um ti po de "argumentação" arquitetural baseado nos mesmos princípios desse pensamento, a mes-ma divisão do discurso num certo número de partes.("videtur quod; sed contra; respondeo dicendum" ou"tese, antítese, síntese"). E por seguir todas essas re-gras de uma forma de pensamento estabele~ido, a arq'!i-tetura gótica se manifestaria como arqUItetura raclO-nalista .

Ora, até que ponto essa colocação é válida? Umacr ítica que normalmente se faz a Panofsky 32 .é qu~ aar q uitetura gótica só é racionalista (e tão r aclOnabstaq uanto ele dese ja) na medida em q ue se submete àex plicação, ao modelo, este sim. r acionalista, do pró- prio Panofsky, isto é, a arq uitetura ,g~tica , explicadacomo ex pressão do pensamento escolastlco e uma ar -q uitetur a raciona lizad a e ~ão raci~~alis~a. A questão _ éque para Panofsk y a ar qUitetur a gotlca e uma expr essao perfeita do pensamento que a fez - mas sob este as-

32 Ver Ph . BOUDO N, 011.ci t .

g q pmodo de pensamento da sociedade (entenda-se: dasclasses de onde emanavam as ordens para construir ,das classes dominantes enf im), tal como o Barroco é ex-

pressão do pensamento da Contr a-R eforma. O quePanofsky não leva em consider ação é que toda f or made ar te (e, mais gener icamente, toda produção) é ne-cessariamente ex pressão dos valores da ideologia dasclasses sociais q ue Ihes der am origem - e não podemdeixar de sê-Io. E o fato de uma del;ls ser essa expres-são de modo mais rigidamente organizado que outra,eventualmente (ou que pelo menos assim par ece dadas asexcelências do modelo utilizado na análise, da perspi-cácia do analista) não signif ica q ue ela será racionalistae a outr a não. R e pita-se: todas são manifestações de

um modo de pensar , de uma razão. Por outro lado, sese encar a o termo "racionalista" sob uma per spectivamais r ígida, nem a arquitetura gótica e tampouco o

pensamento escolástico pode ser considerado "raciona-lista" uma vez q ue estão am bos eivados de elementosmísticos (os pro blemas da fé, a argumentação pela per -suasão emocional - que é aq uilo a que especificamentese pro põe uma catedral gótica) a impedi-Ios totalmentese serem como tais considerados.

Mesmo que se deixasse de lado o pro blema de umaar q uitetur a racionalista como expressão de uma f ormade pensamento par a se consider á-Ia r acionalista em razãode sua "clareza" (trans parência exter ior-inter ior, comoem VioIlet-le-Duc), a designação não se justifica dadoq ue, como já f oi visto aq ui, o aspecto interior X exte-r ior é a penas um dos vários envolvidos no pr oblemaarquitetural, e sobr e ele a penas não pode re pousar a possibilidade de consider ar uma arquitetur a como r acio-

nalista ou não.Há outr os modos de se encarar a ver ticalidade, eesta mesma verticalidade do Gótico? Sim, e parecem

bem mais adequados: um deles baseia-se numa con-cepção (defendida por Hauser ) segundo a q ual o verti-calismo gótico é, pelo contr ário, manifestação do mis-ticismo humano. Numa catedral gótica se teria de tudo,menos racionalismo: nessa "nave iluminada a caminhodo paraíso" se misturam a pr etensão irracional de ele-

var-se aos céus, de reverenciar entes irracionais e deafirmar-se um poder irracional (poder que transparece

10 exterior da constr ução) .. Internamente, prevalecelma atmosfera também igualmente mística, onde além

so bre o homem no as pecto horizontal x vertical sob uma perspectiva material, real, f uncional: todas pr ocur am

q i if t õ g d i lí it

Page 38: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 38/90

lo~antos, da música, do incenso, prolifer am (e no~xterior tam bém) as figur as mais irr acionais (monstros,leformações) q ue a humanidade da é poca conhecia.[udo isto formando um con junto que, como já se disse,isava antes convencer pelos sentidos do que atr avés de

lma ver dadeira ar gumentação lógica e racional. Arqui-:etur a mística, por tanto, e não racionalista; antes, talvezI mais ir racionalista de todas, mais mesmo que o pró prio3ar r oco, igualmente destinado à per suasão emocional.

O mesmo ponto de vista é endossado por Zevi 33,

lue compar a o misticismo da arq uitetura gótica com aJfodução do Oitocentos, com uma única dif er ença (no'undo não tão acentuada assim): o misticismo r eligiosoS su bstituído pela f é no dinheir o. A catedral de Stras-

)urgo, o Mont Saint-Michel são exemplos de exaltaçãojo transcendentalismo místico da época em que foram:onstruídos aos quais correspondem, na era moderna,~ntre outr os, a Tor r e Eiffel e o modelo de arranha-céu;urgido nos EUA, culminando no irracionalismo abso-luto que foi a proposta do "The Illinois", o edifício delIma milha de altura pensado por Lloyd Wright! Zevipoderia igualmente ter citado como exemplos de irracio-nalismo as torres absolutamente sem função alguma que

as f amílias italianas abastadas tinham o hábito de man-dar er igir para maior glória pr ó pr ia, glória que var iavasegundo a altura da torre (veja-se a cidade medieval deSan Gimignano, eriçada delas). Ainda irracional é opropósito de um Le Corbusier desembarcando em NewYork pela primeira vez e declarando que lá os edifícioseram ir racionais porque pequenos (nota: o EmpireState já existia) devendo ser bem maiores!

Os as pectos da ver tical idade aqui abordados sãoeminentemente metaf óricos: é metafórico o sentido dapr o posição de Bachelard segundo a qual a casa é umser ver tical e que sua parte superior ("a mais vertical")é o lugar do racionalismo. É metafórica a colocaçãode Panofsk y sobr e o racionalismo da vertical idade gó-tica, assim como é metafórico o sentido através do qualse aponta essa mesma arquitetur a como manifestaçãode um misticismo. Isto é, nenhuma destas análisesprocura apanhar a arquitetura e verificar como ela atua

ver quais as manif estações segundas implícitas nessetipo de configuração. E esse lado do efeito prático daver ticalidade ou da horizontalidade sobr e o homem pr e-cisa com toda evidência ser determinado.

Ser ia possível falar , sob esse aspecto, da insensatezque constituem os edif ícios modernos altíssimos que jáse constroem ho je e q ue continuam a ser pr ogr amados para amanhã; só a r es peito do problema dos incêndios já se ter ia muito o q ue dizer. Mas deixando de ladoaspectos como este e o r efer ente ao conflito sótão x porão = racionalismo x irr acionalismo, bastante poéti-co e inter essante mas de discutível validade, as obser-

. vações de Bachelard sobre o viver em apartamento (q ueele consider a na realidade viver na hor izontal) poderiam

ser vir de base para uma deter mir .:Ição efetiva dos signi-ficados psicológicos e sociais do eixo Espaço Vertical -Espaço Horizontal. Por exemplo, o "ter um espaço àsua volta" mencionado por Bachelard é sem dúvida umaspecto particularmente importante do "morar na vertical" (na casa). Essa dimensão parece ser impossível,nas condições atuais, para o viver no espaço vertical dehoje, nos edif ícios; se é um valor, no entanto, ela indicaque mais do que na simples horizontalidade dos aparta-

mentos, o pr oblema está no f ato de que essa hor izontali-dade é limitada, fechada - e a residência na verticalé assim condenada não apenas porque é ver tical. Algu-mas casas das quais se diz que o mor ar atingiu nelasum ponto ótimo são construções essencialmente na ho-rizontal, como a casa pompeana (se ela tem às vezesum porão ou equivalente, não tem sótão). Embora asdiscussões sobre os signif icados possíveis da verticalida-de e horizontalidade (racionalismo, irr acionalismo, etc.)

sejam necessárias, as o bservações de Bachelard devemser encaradas antes como uma advertência r elativa à paisagem e à "to pogr af ia" excessivamente tediosas que prevalecem nos es paços atuais quer inter nos ou exter-nos: ou hor izontal, ou ver tical. A esse maniqueísmogeométrico, a que esca pam por cer to algumas propostasdestinadas a pequeníssima par cela da população, se deveopor um espaço criativo, combinatório de formas e planos no qual o indivíduo possa movimentar-se livre-

mente e não a penas deslizar ordenadamente, sempre emdireções marcadas e definitivas, como um carr o numa

~rente de trânsito. Os planos do percur so humano) dois e sempre dois em conjunto: horizontal e ver-! E é t é d t d gê q

" promenade architecturale". Or a, isso não existe hoje- mas existia nos bur gos italianos medievais, por exem-

Page 39: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 39/90

a!. E é através de uma proposta desse gênero que sed$ pôr em pr ática um dos elementos programáticosldamentais da arquitetura moderna (mas não só dela),'em porali zação do espaç o. Cr iar um jogo de permu-;ões entre horizontal e vertical, i.e., propor desníveis,

necessidade de subir ou descer para ir de um lugar atro (seja num espaço a berto exter ior ou num espaçoer ior ) é bem um meio - e bastante adequado - denporalizar o espaço: r omper sua monotonia, deixar lado um es paço que se vê para adotar um espaço que

~tivamente se percor re, um espaço onde o movimentolão só possível como exigido, um espaço enfim vivido.

Os espaços atuais não são vividos, são espaços;tos. Se se estivesse no teatro seria possível justificar n es paço a penas visto: o termo "teatro" pr ovém deeasthai que em grego signif icava justamente ver. Éesmo certo q ue gr ande par te da tendência político-so-1 1 de hoje caminha no sentido de tor nar os indivíduoseros es pectadores passivos se ja em que domínio for , date (ou "artes" como a televisão) à decisão política. Eainda correto que as propostas ar quitetur ais atuais pre-ndem tor nar o habitar (uma cidade ou uma casa) umer o ato de visão: eu vejo a cidade mas não a uso; os

l bitantes de um perifer ia se deslocam nos fins de se:-ana para ver o centro da cidade, ou um bairro "bo-to", mas não para vivê-io (são os tur istas r esidentes,como turista sua f unção é essa: ver); o morador dena casa vê sua sala mas não a usa, ela é quase sem-"e um q uadr o q ue ele apenas vê e conserva para osutros verem. Mas a vida não é um teatro - pelo menosio sempre, e o ver precisa ser substituído pelo viver ,~Iosentir , e que em arquitetura se define pelo ex peri-

lentar , tocar, percorrer, modif icar: numa palavr a, ação .o espaço estático deve ser dinamizado. O espaço:m tempo, sempr e igual a si mesmo, exige ser tempo-Llizado,isto é, modificado. Se é possível dizer com jus-:za que o tempo só se def ine pelo es paço (agora é aqui,; foi ontem ou será amanhã), não é muito aceitávellle o es paço seja encarado sem o tem po, mutilado do:mpo. E se esse espaço não pode ser constantementeodificado pela própria natureza do pro jeto ar quitetural,

elo menos se modifique a percepção desse espaço: oajeto pelo espaço. Le Cor busier fala justamente em

pIo: desníveis entre as ruas, pontes múltiplas, passar e-las freqüentes, praças quebrando a monotonia das ruas.Em Veneza isso existia e existe, ela é talvez um doscasos mais per f eitos de temporalização do espaço: a prova disso se tem não só andando pela cidade, por

certo, como - para confirmar esse aspecto, se fossenecessário - relacionando rapidamente, sem pretensõesde exaustividade, os termos utilizados para a designaçãodos espaços: stretto , r amo , calle , rioterà, crosera, sa li- zada, fondamenta, ruga, corte, sottoportego , cam po ,sacca , campiello, pia zza, piazzeta, ponte . Não se tr atade proliferação gratuita de nomes : é que efetivamenteum stretto não é um ramo, nenhum deles é uma cal leembora todos sejam algum tipo de rua. Mas as dif eren~

ças entre u~ tipo e outro, para o veneziano, são im por -tantes e grItantes, e portanto é necessário a pontá-Ias:quando alguém diz para um veneziano a palavra "f on-damenta" a imagem q ue se f orma em sua mente o. ,lOterpr~tante formado é "rua ao longo de um canal",totalmente diferente de um "r amo", viela de uns dezmetros de comprimento por um de largur a. E um cam ponão é uma piazza. Em outras cidades, como São Paulon.ão só.h~ es~a vari~dade de nomes como ela nem pre~cIsa eXIstIr : e tudo Igual, e neste caso três ter mos, basi-camente (rua, avenida e praça) são mais q ue suf iciente.E este caso de monotonia atinge seus limites máximos,os ~a neurose geométrica, na cidade onde o espaço é omaIS a bsolutamente possível atem por al, onde o espaçonem mesmo existe a rigor: New York - Manhattan par ticular mente. Lá, só duas realidades ur banística~existe~: A a ~tr eet e a avenue, e uma st r eet é r igorosa-mente IdentIca a outra, tal como uma avenue vale qual-q uer outra, nas dimensões e aspectos. Nesse tabuleir onão é de espantar que umpr é-embrião de liberdade ur~ banística como li Broadway seja ressentida como verda-deiro monstro louco solto pela malha ordeir a da cidade.Ela não só se propõe como um caminho amplo (a broad wa y) como, horror final, corta obliq uamente o tabuleiroortogonal! Decididamente, alguns milênios serão ne-cessários para que New York atinja o nível de desen-volvimento urbanístico de Veneza - mas tudo indica

que para ela essa é uma missão totalmente impossível.Em. New York se vê, em Veneza se vive. Um rio terà

entr e geometria e pensamento, simplesmente. Aqui é possível perce ber um certo acor do ger al entre os ana-listas quanto ao fato de ser a geometria um dos ins-

~neziano (canal ater r ado) obr ig a a uma eurva aquiconduz a um campo, cujo acesso se faz atr avessando

Page 40: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 40/90

Qual o papel real da geometria no pensamento ena prática da arquitetura? Até que ponto a geometriaé inerente ou mesmo essencial para a arquitetur a?

Esta q uestão ainda é freq üentemente rece bida comum ar de espanto por muitos, aqueles para os quais aligação entre uma e outr a coisa é tão estreita que a pergunta é mesmo impensável e soa ingênua. No en-tanto, esse é justamente o problema: o fato de não se pensar néle.

Ve jamos pr imeir o uma parte da q uestão: o rela-cionamento entre a geometria e o pensamento ar q uite-tural - q ue exige a análise, inicialmente, da relação

listas q uanto ao fato de ser a geometria um dos instrumentos fundamentais do pensamento científico - emesmo do pensamento filosófico, se se pretender umadistinção entre um e outro. Para Bachelard, por exem- plo, a geometrização da análise, isto é, um ordenamen-to seriado dos fatos estudados e mesmo o desenhodeles, é a primeira tarefa exigida do espírito científicoe aquela na qual ele se af irma como tal. A lógica as-sume esse procedimento, e a química, e a semiologia,etc., etc. A razão é óbvia: a esquematização geométri-ca favorece um esclarecimento dos aspectos visados,um tornar mais claro, mais imediato uma determina-da realidade. Sob esse aspecto, na condição em queestamos em termos de pensamento científico é im- possível negar esse papel à geometria.

Mas esta mesma colocação necessária já tor na evi-dente o primeir o tr anstor no que a g eometria ineluta-velmente trás ao pensamento científico em geral e a~lguns de seus ti pos em par ticular: a geometr izaçãonormalmente só é ca paz de dar contas dos as pectosmais superficiais dos fenôlÍlenos - e tanto que em al-guns casos ela não só transfigura o objeto de estudocomo é mesmo de todo impossível de ser aplicada dadaa complexidade do fenômeno. Assim, por exemplo, vê-se mal como pode a representação geométrica dar con-tas de uma realidade dialética. Em suas próprias es-sência!, diaiética e geometria são duas entidades quese opoem e se excluem mutuamente: é possível repr e-sentar geometricamente que "A é A e não é B, ao mes-mo tempo e sob o mesmo aspecto". Mas não é pos-sível a geometrização de· "A é A mas também é Bna tendência para C, ao mesmo tempo e so b o mes-mo aspecto". A r epr esentação geométrica está ligada es-sencialmente ao pensamento q ue se estrutura segundoas ~o~mas da lógica ar istotélica (isto é, a esmagadoramaiOna dos pensamentos em operação - mas quan-tidade não é sinal de validade) e para este pensa-mento a geometrização é mesmo necessária.

~estes termo~ ser ia mais adequado propor um ou-tro tIpo de r elaCiOnamento entre geometria e pensa-mento que fosse em pr incípio aceitável não só enquantoesse mesmo simples relacionamento e enquanto relacio-namento com o pensamento dito científico como tam-

ma PQnte de degrau e subindo uma platafor ma - queJnduz :-Uma miríade de calles, ramos, cro sera s. Numarea global minúscula, as possibilidades de combinaçãoio pr aticamente ilimitadas: é preciso tempo para co-hecer a cidade, enquanto New York se oferece intei-nha ao menor toque de botão num painel luminoso.or ter tempo, Veneza vive ainda - e não morrerá.f ew York é uma ficção e um inferno: já se começouabandoná-Ia há muito tempo.

Temporalizar o espaço: propor um espaço que selOdifica pela possibilidade de vivê-Io realmente, deercorr ê-Io. Quando Zevi fala dessa questão 34, eleublinha o valor do aspecto dinâmico e estático dos es-,aços. Diz, adequadamente aliás, que quem concebefi corredor com paredes par alelas, tal um prisma es-ítico, não entende o a bc da ar q uitetura. Mas nãollostra extensivamente como se pode praticar essa tempo-alização, embor a cite exemplos corretos como o Gug-:enheim Museum e a Casa da Cascata, ambos de Lloyd~right. E não fala nada sobr e a temporalização dos paço ur bano, imperdoável para um italiano que tem/eneza exatamente ao lado. A ação sobre o eixo ver -ical-horizontal, com uma proposta de ambos os planos

,imultaneamente, na casa e na cidade, é um dos instru-nentos básicos contra o tédio e a o pressão arquitetôni-:os. Do outro se f alará a seguir.

[ .3 .7 . 7.o eixo: Es paço Geométrico X Espaço Não-Geométrico

m enq uanto relacionamento ~om o pensamento. dito:ético. Seria possível dizer que, aceitando uma prá-a evidente a geometria pode ser um intermediário

está falando de literatura e menciona mesmo um es-tado de "cancerização geométrica" do tecido lingüístico

Page 41: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 41/90

a evidente, a geometr ia pode ser um intermediárioão necessár io) entre o concr eto e o abstr ato. Ou~ um dado pode ser assimilado pelo pensamento'avés de uma geometr ização (par a ser a seguir even-almente devolvido ao concreto). Mas o bviamente nem pensamento (o abstrato) é geométrico e tampouco oo concr eto, o objeto: geométr ico é apenas o modo: análise, se ja qual for o caso e a hipótese, e nadaais. E ainda assim com as restrições do parágrafoIterior . Sob esse as pecto, o pensamento ar quitetural>de manter relações com a esquematização geométri-I, cr iando assim uma repr esentação de seu objeto, queo Es paço Real.

Agora, a segunda par te da questão: o papel da

:ometria .na prática da arquitetur a. E desde logo se)de fazer uma colocação que elucida amplamente o'Oblema: a prática da ar quitetura e da urbanística temdo tal (não só hoje, porém hoje mais que nunca)Ie os ar q uitetos confundem o concreto com o abs-ato, confundem o pensamento sobre o espaço com oróprio espaço e acabam por impor um es paço de'pr esenta çã o (o resultante da geometria possível do;paço, do pensamento so bre o espaço) ao invés derapor um es paço re al. Esta é a gr ande falha (que nãode todo ingênua, como se verá) da pr ática arquite'-

lral e que se revela es pecialmente nesta disciplina pelar ópria es pecificidade de sua matér ia: um alf aiate (mas1mbém um q uímico, um antr opólogo) pode esq uema-zar geometricamente seu o bjeto (o plano desse o b je-)) mas não imporá essa representação ao objeto final.1m psicólogo pode repr esentar geometricamente umstado mental mas não esper ar á q ue a vida psíquica de~us pacientes se produza na pr ática com o r igor efor ma de seu modelo. Ao contrário, o arquiteto re-

,resenta um es paço ( pensa um es paço) e acha a coisalais natur al do mundo que seu modelo, sua r epre-entação, se com porte e seja aceita na prática talorno ele a re pr esentou. Lamentável e trágico engano.

O próprio Bachelar d enuncia de modo claro: "élecessário que nos livremos de toda intuição de f initiva

e o geometrismo r egistra intuições def initivas - se: que queremos seguir . .. as audácias dos poetas que10S chamam para ... 'escapadas' da imaginação". Ele

- mas podemos falar de arquitetura, da mesma ne-cessidade de nos livrarmos dessas intuições definitivase do mesmo fenômeno de cancerização geométrica dotecido espacial.

Alguma dúvida de q ue as casas e as cidades d~hoje sofrem de geometrice crônica e aguda? Não. Oângulo reto, as paralelas e perpendiculares, as f ormas"regulares" predominam em toda parte - são mesmosinônimos, tidos por pacíficos, de modernidade; pr o-gresso, avanço, desenvolvimento, tudo isso se mede come se eq uivale ao ângulo r eto. Qual o ver dadeir o sig-nif icado dessa situação, n o entanto?

A Teoria da Inf ormação 35 pode r espondê-lo deimediato: resumindo, toda for ma regular (as figurasgeométr icas, mas também a reta, paralelas, ângulos,etc.) são facilmente previsíveis, por conseguinte contêmmenos informação, não mudam compor t amento s.

Nada modificam, não instauram mudanças, servem paramanter apenas, para segurar - como informação, va-lem pouco e mesmo nada.

É o q ue diz Zevi com outras palavras, que mer e-cem ser citadas:

Por centen as de milênios , a comun idade pa leolíti ca ignora ageometri a. Mas assim que se esta bilizam as bases do n eolítiro,e os caçadores -criad ores são sujeitados a um chef e d e tr i bo,sur ge o ta buleiro de xadrez . Todos o s a bsolutismo s políticosgeometri zam, organiz am o cenár io urbano com eixos e depo isoutro s eixos para lelos e or togonais. Todas as case rna s, as pri-sões, llS instalações militar es são rigid amente geométr icas. Nã oé per mitid o a um cid ad &o vir ar à direit a ou à esq uerd a comum mo vime nto orgâ nico, seguindo um a curva: d eve gir ar a 90gr aus, como uma mari onete (os grif os são meu s).

Este cur to trecho resume praticamente toda a pro- blemática que a geometrização do espaço trás consigo ea visão dos que se o põem a ela: o geométrico (a mar io-nete) se impõe à vida (o orgânico), o artificial ao natu-r al, o condicionamento à liber dade. Ilustra também, por exemplo, a diver gência estabelecida entre Frank LloydWright e Le Corbusier: o arquiteto americano propug-nava uma arquitetura "orgânica" em oposição declarada

35. J. Telxelra Coelho Netto . Introdução à teoria da infor m a -ção est é tic a Petrópolls Vozes 1974

geometrismo do suíço, acusado de ar tificialismo com-o (embora, é necessário frisar, Lloyd Wright nãoh1 sido tão informal ou não geométrico assim)

AMERICAN", assim mesmo em inglês, numa demons-tr ação ineq uívoca de, no mínimo, mau gosto) o fun-damental da concepção ortogonal é quea movimen-

Page 42: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 42/90

h 1 sido tão informal ou não-geométrico assim).'Ê o interessante aqui é que justamente Le Corbu-

. foi um dos grandes defensores manifestos e con-,os do geometr ismo, ele tão freqüentemente acusadoser contra a ordem, isto é, acusado de subversão.a-se por exemplo seu catecismo de arquitetura (que

tem estrutura e dimensões para ser mesmo maisisso) Quand les cath é d r ales éta int blanches 36. Sua

ologia dessa época é bem clara cl,~sdeo título do ca-lo q ue ele consagr a a essa questão: "As r uas são

ogonais e o espírito vê-se li ber to" 37 (falando de Newrk ). Sua cr ença no ortogonal, no geometrismo maisdo, é ex pressa em termos definitivos: "Este signo +,

é, uma reta cortando outra reta formando quatroulos retos, este signo que é o próprio gesto da cons-

ncia humana, este signo que traçamos instintivamen-gr áfico simbólico do es pír ito humano: um ordena-" 38. Par a q uem f oi taxado de materialista ím pio, pr eendente o misticismo q ue transcende dessas li-

as: a alusão ao sinal da cr uz cristão, ao gesto dação (que "põe ordem") não pode ser mer a coin-ência. Mas deixando este aspecto de lado, bem comoo a profundando a discussão desse tr açar "instinti-" (nada menos instintivo, na realidade, do que asncepções geométr icas - e toda a história do conhe-ento humano está aí para confir má-lo), vejamos

1 que consiste as supostas excelências, par a Le Cor -sier, do traçado ortogonal. Para Jeanneret, que sempor ta nessa sua pr imeir a viagem aos EUA como

verdadeiro índio maravilhado e deslumbrado quesembar ca na Metró pole Absoluta (deixando deo uma série de aspectos no mínimo discutíveis efendendo a bsurdos de caráter sociológico - comoando elogia a servilidade, a submissão for çada po-

m assumida e a falta de consciência social e de coos-ência dos próprios direitos dos empregados negr os dosns americanos, e que ele confunde escandalosamen-com bonomia, para não citar outros exemplos -ma linguagem ufanista q ue cansa desde a segunda li-a, por q ue a primeira já começa com um "I AM AN

damental da concepção ortogonal é que a movimentação nesse espaço torna-se simples, direta, f ácil. Quer ir a tal lugar? Basta virar três quarteirões à esquerda edepois dois à dir eita - ao que Le Corbusier contr a- põe aquilo que ele chama de caos sufocante, de ro-

mântico e inadequado reino da "desordem" e que sãoos tr açados das cidades européias em sua quase tota-lidade. Para Le Corbusier , o ortogonal é exemplar por -q ue nele ninguém se per de, e o estrangeiro se sente des-de logo tão em casa quanto o morador antigo. Alémdo mais, o traçado geométrico organizado deixa a ci-dade livr e: nada de igre ja numa das portas da ci-dade e um castelo na outra, você atravessa a cidadelivr emente de uma ponta à outra, sem obstáculos: vocêé livre e a cidade também. E se lança numa diatr ibecontra as cidades "torcidas" antigas e a s q ue f oram propositalmente asssim construídas na modernidade,cr ucificando Camillo Sitte pela propagação dessa idéia(por ter Sitte concluído que "o tumulto é o belo, e ar etidão, a infâmia") quando ele pouco ou nada tevea ver com isso.

36. Paris, M éd iat1ons, 1971 .3 7 . Quand l es c athéd r al es .. . , p. 57.38 Ide m p 61

É possível deixar passar sua afir mação de que aor ientação num tabuleiro ortogonal é mais fácil (e comefeito um err o num tr açado tortuoso tende em prin-cí pio a se agr avar cada vez mais), pode-se mesmodeixar de mostrar q ue a Teor ia da Informação con-f irma q ue se o tortuoso, a desordem não são em si todoo belo, são altamente importantes par a sua o bten-ção. O q ue não se deve aceitar é sua tese, freq üente-mente retomada, mesmo atualmente (ou em particular atualmente) de que o ortogonal é o espír ito da li ber-dade, que com o ortogonal a cidade é livre , e o indi-

víduo também. Enorme absurdo, pois é justamente ()contrário! Le Corbusier parece desconhecer o u deixar de lado um fato da história da arquitetura e da urba-nística fr ancesas (que no entanto ele dever ia conhecer perfeitamente) que foi as reformas produzidas por Haussmann no tecido e na fisionomia parisiense. A mo-dif icação fundamental por ele intr oduzida em Paris f oi justamente a de rasgar a cidade de uma extremidade àoutr a com uma série de eixos geometricamente proje-

tados que se ligavam ou cruzavam. Finalidade especí-fica: acabar" pelo menos em parte, com as ruas evie-

; tortas e estr eitas que o povo parisiense conhecia tãom e q ue r e presentaram papel f undamental todas aszes q ue a população da capital francesa resolveu se

da régua "T" para o estudante de arq uitetura a fimde q ue ele não se deixe tentar pela facilidade dogeometrismo e aprenda a deixar já o próprio traçoem

Page 43: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 43/90

q p p ç plor à o pressão monárq uica e ditatorial, como aconte-u na tomada da Bastilha e na Comuna de Par is. Comnovos eixos, amplos e extensos (os boulevar d s, as

andes· avenidas) o conhecimento da cidade tor nava-mais f ácil e com ele o seu domínio, o cerceamento

: sua li berdade, pois as tr opas do poder podiam ser cilmente deslocadas de um lado par a outro da cidadem serem passíveis de detenção pelas eventuais bar ri-Idas, inúteis q uando a largura da via é desmesuradaquando ao mesmo tempo há acentuado desnível nosmamentos de ambos os lados. Ortogonal = li ber da-:? Absur do total! Em todos o s momentos da histó-a da urbanística mesmo antes de Haussmann (no Im-Sr io R omano ou nas colônias da Espanha) a im posi-io de um traçado geométr ico rígido par a a malha viá-a sempre teve por objetivo reduzir ou eliminar a li-~rdade do indivíduo, f acilitando seu contr ole, e nãorotegê-Io do exterior ou mesmo liber tá-Io (pois o outr olme dessa faca é que a cidade ficava simultaneamenteJerta à invasão exterior : seriam necessár ios muitos ho-tens e muito tempo para ocupar def initivamente Ve-;:za caso seus moradores se o pusessem a essa tomada- e essa é uma das razões fundamentais para a "tor -do" das cidades medievais - mas bem poucos paraominar mesmo uma cidade no entanto tão amplauanto New Yor k). Analisando por exemplo a or ga-ização das cidades construídas pelos espanhóis na,mérica Latina, não é outra a conclusão a que chegalenri Lef e bvre 39 : as "Ordenações de descober ta eovoação" de 1573 são es pecíficas q uanto ao ordena-lento da malha da cidade através de lotes quadr adosu retangulares que se dis põem num r elacionamentoeométrico com a f unção específ ica de facilitar , comojz Lefe bvre, a extor são e a p ilhagem em f avor daaetr ó pole euro péia. Tudo é pr evisto, nada é deixado aocaso, o q ue signif ica que as necessidades or gânicas (ai berdade) são eliminadas: o dirigismo é total. Anali-ando todos esses exemplos históricos, só mesmo umanente delirante é capaz de considerar o traçado geomé-rico como ocasião de aber tur a e libertação par a o in-livíduo (Zevi f ala mesmo em acabar com a prática

geometrismo e aprenda a deixar já o próprio traço emliberdade!) .

Isto sem mencionar q ue é justamente o "tortuoso"um dos elementos f undamentais para a animação deum es paço, para sua vitalização, para a eliminação do

tédio do "ha bitar". Se se está num monstro lógico queé uma avenida em linha reta com 15 km de exten-são (e mais ainda quando essas avenidas são dez, cor-tadas por 200 r uas paralelas e igualmente r etas, COmoem Manhattan) não há o q ue esperar da cidade, nãohá surpresas, não há reconhecimentos, não há intimi-dades: tudo já está visto e sabido. Pelo contr ár io, emVeneza, R oma ou mesmo Paris (Haussmann não con-seguiu aca bar com a cidade) há sempr e um quar t ier e ,

um quar tier que é o nosso, que se encaixa harmonio-samente no arrond issemen t ou no sestier e (por conse-guinte, na cidade toda) mas mantendo sua diver sida-de própria gr aças às suas ruas pr óprias e dif ere~tes,às vielas imprevistas q ue defendem esse quarti er 40 dosdesconhecidos, dos "intrusos". E por outro lado, hásempre algo a conhecer , a descobr ir, a viver , porq ueos outr os qua rti er s são igualmenk dif erentes. E s e oestr angeiro, o tur ista não consegue orientar-se nessamalha tão f acilmente como o faz em sua própr ia "ca-sa", nada a estranhar nisso: em primeiro lugar , a sen-sação de "estranhamento" é fundamental para o tu-r ista e, em segundo lugar, é necessário a br ir par a asvisitas boa par te da casa mas não necessar iamente todaa casa. :É pr eciso constatar tam bém q ue o pr incí pio de

propor intencionalmente o "tor tuoso" como modo dedef esa contr a o intruso e COmomarca identificatória edistintiva é ainda atualmente pr ática universal emr ,orareservada a pequena par cela da população, geralmentea pr ivilegiada. Assim, um bair r o como o Pacaer'lhu é pr ojetado so b um traçado tortuoso justamente para di-f icultar o tr ânsito de "estranhos", para im pedir adevassa pelos automóveis, par a garantir a "r esidenciali-dade" do local. Visto como prática de classe esse re-cur so pode ser até detestável; gener alizado, só tem aapr esentar as pectos positivos. R ealmente, por q ue en-

40 . Na vlvê~cla ur baní stica bra slleír a não existe o quarti er,d ond e a inexlste ncia de um t ermo par a tr ad uzi-Ia. Ç u a rti e r éuma das divi sões d o bairr o (do a r ro nd is s e m e nt ) . No Br asll area lld ad e urbaní stíca se d etém na f igura do ba irro. •

~gar a cidade inteira ao tráfego dos car ros, desorde-Ido e tumultuoso? Por que não procurar defender seullor residencial (valor de uso) em detrimento do

Pr ocurou-se determinar e analisar, assim, os eixosem torno dos quais se organiza o discurso arquiteturale que se revelaram em número de sete: Espaço In-

Page 44: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 44/90

llor residencial (valor de uso) em detrimento dollor de passagem, isto é, de consumo?

É realmente impossível aceitar r aciocínios como os~ Corbusier e que continuam a ser defendidos em)me de "ideais" como "aproveitamento do solo", "ren-

mento" etc. Esses são mais um r etrocesso no modo~ vida das populações. Retrocesso porque já na ~e-ascença er a comum na prática dos ~andes .ur b~n~s-lS (como Michelângelo) a observaçao da. dlsp.oslça?r gânica do espaço nas cidades e o r espeito (1st? e,r econhecimento) por esse valor nos novas pr ojetos

_ e com isto se descarta o elemento "desordem" do)rtuoso ou do não-geométrico, pois o torcido, o ines-er ado, o inf ormal era mesmo proj etado nessa época, ou

elo menOs pensado: deixava-se lugar para que elecorresse. O informal é efetivamente elemento funda-lental par a a respiração do espa~o e po~ conse~inteo indivíduo, já que junto com o eixo vertIcal/honzon-aI é um dos motores da temporalização do espaço.)bviamente, o informal absoluto não é praticávelm arquitetura - mas que se o entenda pelo ~enos.omo oposição ao "sempre reto", às paredes contmu"as,10 cor r edor imenso nos cr uzamentos sempre em an-~lo reto. Seja o q ue for , mas sempre em oposição10 geométr ico. .'

Há uma passagem de Le Cor busler antenor ao)uand les cat héd ral es. .. (q ue é de 1937) onde ele;stá bem longe de sua defesa do ortogonal:

Cr iou-se cidades de f or ma geométr ica porque a geometria _ éró pria d os homens. Vo u mostr ar -lhes como surge a sens açaocr q uite tur al: em r eaçã o às coisas geométri cas 41.

Embora insistindo aq ui nessa inadequação que édentif icar o homem com o geométr ico, seu propó-;ito final (q ue evidentemente ele não se~uiu. a não ser ,~m par te, em sua obra tardia como a Igreja .d~ Ron-::hamp) é lúcido e imper ativo, e mer ece ser er!gldo e~ bandeira, como tantas outras de suas colocaçoes efeti-vamente valiosas: A sensação arquitetural surge emreação às coisas geométricas 42-43.

q p çterior X Espaço Exterior , Espaço Privado X Comum,Espaço Construído X Não-Construído, Espaço Artifi-cial X Natural, Espaço Amplo X Restrito, Espaço Ho-rizontal X Vertical, Espaço Geométrico X Informal.

Tal como foram colocados, parecem ser em númeronecessário e suficiente, excluindo quaisquer outrosem que se possa pensar - ou, o que vem a ser omesmo, todos os outros possíveis e imagináveis podeme devem ser reduzidos à forma de um desses sete, quedeste modo se apresentam como o esqueleto simulta-neamente mínimo, essencial e bastante da linguagem eda pr ática arquiteturais.

É necessário ressaltar um ponto, no entanto: se adete~minação dos. eixos foi feita de modo a poder ser considerada a maiS ampla necessária, a leituro. ou aná-lise desses mesmos eixos a que aqui se procedeu nãoquer se apr esentar como e nem pode ser consider adaexaustiva. Naturalmente, ela procurou apreender aque-les aspectos q ue podem ser considerados fundamentaisdentro de cada eixo, mas q ue não se apresentam comoos ú?icos possíveis. É relativamente fácil pensar , paraos eiXOS,em todo um elenco de aspectos possíveis e

41. Se gundO Boudon , Sur L' esp ac e . . .42. Esta confusão que se f az na pr ãtlca da a.rqulte tura entre

um espaço real (aquele que dever ia ser efetivamente trabalhadoe proposto) e um espaço de representaçáo (que é afinal o lm -

post?, e que decorre da preoc u paç ão geometrlz ante e da. n ão dls-tlnçao en tre um simple s Ins trumento d e opera çáo. a geometri a. ea o peraç ão efetiva em s1 me sma) n ão é por certo fen ômeno daatualld ade. Pelo contr ário. ela tem sólldas r aizes hi stóri cas , pr e-cursor es .seris slmos . Sua árvor e geneal óglca remon ta sem dú vidaà Anti guid ade, mas o m omento cruclal para a hist óri a d a ar -q uitetura ocid ental modern a e cont empo rânea, sob ess e as pecto, éo R ena: sclmento com sua mania pela perspectiva. É o estudo d amatem atica e a r edescoberta da geometria (depois de b em maisde um mllênlo de real "treva clent ifiC1lo")que leva ao per s pec-tlvls m, ? dese nfreado do s éculo X VI (e mesmo XVII e XVIII ) oué a sublta de sc oberta do elemen to pr of undamen te lúd lco (p ar auma época soter rada sob o bld lmenslo nallsmo d a pintu r a) d a per s pectiva que pr omove um estudo f ur ioso da geometria? NãoIntere ss a aqui essa discuss ão. mesmo porque se gurament e se

trata de ambas as coi sas ao mesmo tempo . Seja como for , a pers pecto-m anla , a vontade e a neces sidade d e cav ar uma outrad imensão n a pin tur a. e sobr etudo no tea tr o. e de tornar e ssadim ensão realmen te vlsivel na ar q uitetur a se r á de q ual que r modoa respons ável p ela geometrlz açã o do un iverso ren ascentlsta mar-cando espe cificam ente sua arquit etura e, com ela. toda s ~s de-mais dos s éculos seguintes. Incluindo , bem entendido . a nossa .Praticar a .t:qult etura passou a ser es pecificamente pra ticar geo-metria ; g e o metr a se torn ou sinônimo de ar q uit e to e a geometriaecl l psou to talmen te todas as ou tras dlsclpllnas que compõemo corpo da arqu itetur a, numa Inver sã o bru tal de va.lores . Aarquitetura, que era uma a.rte. e apenas uma arte (que se apre-sentava , em v irtud e dessa postura por certo I gualmente ex-trema .. com a s pec tos a. corri gir) pa ssou a ser dlsclpllna exata , ra-cional - donde os mal es que nos afli gem.

Hi storicamente. o mom ento dessa transforma ção pode ser fi-xado por vo!ta da . metade do s éculo XV quando , após . a desco- berta recentl sslma dos manuscrito s de Vltrúvlo, redigidos no ano

Jr ováveis, mas a leitur a de todos é tarefa que este es-:udo intencionalmente não se coloca. E isto resulta doprópr io objetivo d,e início declarado: proceder a uma

Peirce 44 entr e sentido, significado e signifi caçã o. Signi-f icado: aquilo que é inicialmente pretendido com umsigno. Sentido: a impr essão feita ou que normalmente

Page 45: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 45/90

p óp o objetvo d,e c o deca ado: p ocede a u aleitur a do discurso ar quitetural, o que implica de ime-jiato uma semiologia da arquitetura - mas ao in-vés de se seguir o caminho até aqui trilhado por essasemiologia (e que se tem revelado absolutamente in-

rutífera, mer o exercício - muitas vezes inadequadode lógica, mas não de arquitetura) se pr o punha or-ganizar o discurso ar q uitetur al num sistema (os eixos)e investigar as referências (os significados, se se qui-ser - mas, melhor, os interpretantes) livremente, apar tir do ponto de vista exigido mais imediatamentepela natur eza de cada eixo. F: a esse aspecto, queconstitui uma dif iculdade (&e não uma impossibilida-de) para todo trabalho que se pretenda exaustivo deve

ser acrescentado q ue se par tiu igualmente, par a a leituradesses interpr etantes, da distinção esta belecida por

15 a,C" Leon Ba ttista Alberti p u blica seu De r e a e d if ica to ria ,es pécie d e sele ção comentada d os te xtos do gra nde m estr e, Foio come ço d a "cor r ida" , d a nova mod a, Em 1486, pou co mai s d e40 anos de pois da inven ção d a impr ensa, sur ge a prim eir a edi-ção d os textos do pr ó prio Vitrú vio, a car go d e Sulp icio deVero li, e nos ano s seguinte s (a atestar a fom e que se sentiapor esses es cr itos) há pelo menos mai s uma ed içã o impor-tan te de Vitrúvio a cit ar , a d e 1513 , por F r a Gioco nd o. A par tir d ai vem uma verdadeira enxurr ad a de tra tados sobre a r quitetura, per s pec tiva e geometri a, e essas t r ês coi sas se vêe m int imamente

rel acionadas (a Funda ção Cini , em Veneza, é um verdadeiro ar -senal deles) , Os titu10s são os mais var iados possív eis, mas a pre ocupação uma s ó, Há mesmo coisas ext r emamente sabo r osas,num claro indicio da importãnc ia e interesse d o assunt o, como olivro de Giulio T r oill ( por ap elido " U Par ad osso") pu blicado e m167 2 sob o títul o Paradossi per p raticar e la p ros p et tiv a senz a s a -p e r la! E no entanto, é obra sé ria, ond e o auto r ape nas dava mo-d elos, regr as já prontas par a "per spectivar" s em a necessi d ad ede elaborar -se to d o o pr ocesso ,

Mas o que e f etivame nte in teressa aq ui é me ncio nar uma o bra(já impo r tante na época) q ue !l ustra com seu pr ópr io títu loa situaçã o em que se tinh a metid o a arquit etu r a e da qua lela ainda não saiu : trata -se d e um llvro de l"e rd inan d o Galll-Bib iena ( par ticularm ente impo rtante c enógrafo d a época) pub licadoem 1711 , A a r qu ite tura civil elaborada a parti r da g eomet r ia er e du z ida à p e r s p e ctiva. O título é c laro , preciso e e loqüent e: nadamai s pr ecisa ser d ito,

Re sta es per ar que assim como a fi losofia foi po sta a an d ar novamente sobre seus p és por u m cer to sr . Mar x, ela que an-d ava p lantando ba naneir a, tam bém a a r q uitetur a d eixe bre-vemente es sa posição tão pouco cõmoda em que se mantém ,no minimo, d esde o século X VI. Já não é se m tempo : só emr elação à filosof ia ela já. est á. com mais d e um século d e atr aso ,

43. A r eação ao traça d o geomé tr ico não se llmita apenas ao pro jeto urban íst ico. Mesmo no sen tido mais tradi ciona l da prá-tica ar q uitet ural (a proposição d a "casa") e la é igualmente umanecessid ad e, uma possi bil ida d e e uma r eallda d e - tanto em re la-ção ao Es paço Interior quanto E xter ior, Um pr o jeto d e Frede rick John K ies ler é, sob esse aspecto, exem plar . K iesler pro põe um "ar-ran ha-céu" a brigand o esc ritór ios, sa lões, etc, e uma sér ie de pe-

q uenos teat r os d e capac id ade variad a (120 a 330 lu gares) cu ja peculiari dad e r esid e em doi s pontos: a) d e modo p ar ticular,num corp o anexo ao edifício c entrat K iesler propõe al gumas

g p qdeve ser feita por esse signo. Significação: o resultador eal produzido pelo signo 45.

Fica claro agora por q ue esta análise (e análisealguma) não pode pretender a exaustividade. É possí-

vel, eventualmente, analisar de modo exaustivo ossignif icados desses eixos, é mesmo viável traçar um qua-dro geral, e bastante indicativo dos sentidos,' mas seráa bsolutamente im praticável levantar um plano de todasas significações, par ticular mente num trabalho quese pr etende teór ico, isto é, ger al, abrangente. É viávelainda, por exemplo, analisar perfeitamente os signifi-cados, sentidos e significações produzidos por um d adodiscur so arquitetural sobre uma dete rmi nada população,

grupo de indivíduos delimitado ou um indivíduo (um pequeno bairro operário, ou um parque residencial mé-dio-bur guês ou um único indivíduo, isolado). A análisegeral, no entanto, não pode nem pensar em considerar a proposição de objeto semelhante. O q ue ela pode,e este foi o objetivo aqui, é exem plif icar as leituras pos-síveis ( para outros trabalhos de ref lexão so br e ar -q uitetur a) e possíveis linhas de ação ( para a práticade: arquitetura).

sal as. que são e ncer r adas numa const r ução a bsoluta me nte não-g!l 0metnca e qu e se as semelha a uma pera d eitada, c om su per -ficie d esigual e irregu lar; b) t od os os corpo s do con junto deve-riam ser constr uíd os de ta l mo do que o ma terial da constru çãoe o r evest imento deve r iam ser prat icame nte joga dos sobre a es-trut ura e não mode lad os de for ma linear .

Este cas o não é ú nico : basta pe nsa r nos pr o jetos d os ex-

pressioni stas. ATo rre Ein stei n (Mendelsohn, 192 0-1 924)em Pots d amé igualmente um exe r cício em a -geo me tr ismo, tal como su a "Arqui -tetur a d as dunas" 1920 ), um titulo d e tod o eloqüe nte : movi mentovariação . (Ver ilustr ação n. o I, 2 e 3 ). '

44. Ch. S . PEIRCE, C ol lected Pap e r s of Ch . S. P e irc e , Cam- br id ge, 1962 .

45 . Se ntido foi aqui tamb ém co nsíd erado sob uma outr a persp ectiva ( d a qual r esultou o título d a o bra) , a partir de umco~celto mai s genéric o" mais extenso (e q ue não conf llta pro- pnamente ~o m o de PelrCe) tomad o à teo ria de Hj elmsl ev, par aq uem se n t'do des igna aqu ele fa tor comu m existente sob t odosos sistemas lIn güís tlcos. O s ent id o é aqui o "p ensamento mes-mo " subj acent e a várias f or mas de é xpre s~ ão, por mai s difer en-tes que s,!" jam, Por exemp lo, I do no t k n ow, te ne s a is p a s e1e g vé d sao alguma s d as f orm as dif er entes que pode assum ir osentido (Isto é. o f ato r comum) " eu não sei "; é ele qu e está. por baixo dessas var iad as ex pr essões.

Page 46: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 46/90

I !ustra çüo n'! f : Pro jeto de teatro de Frederick John K iesler ,exemplo de reação ao traçado geométrico. Trata-se de umarranha-céu que se ergue so bre um teatro principal, abrigandouma série de outr as pequenas salas com capacIdade entre 120 e330 lugares. Ao lado do corpo pr incipal, uma estrutura irre-gular em for ma de pêra comporta uma outr a sala. Sendo pre-visto um revestimento em cimento aparente, o ar q uiteto propõeque o material seja quase livremente jogado sobre as f ormas,dando por resultado uma superfície irregular e não modeladade acordo com configur ações lineares e geométricas.

I lust ra ção n <! 2: "Ar quitetura das dunas", esboços de ErichMendelsohn. feit?s em 1920: expressionista, o arquiteto pr ocur aobservar e ms prrar -se nas formas constantemente refeitas pelo

vento. É nítida a inf luência da "Arquitetura das dunas" sobreo pr o jeto da Torr e de Einstein, do mesmo Mendelsohn.

Page 47: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 47/90

I

Ilust r ação n 9 3: T orre Eios\ J

em Postdam (1920-1924 ). B'I' jé exem plo de r ecusa elo geoml'~~/outr os, por Gaudí. '~ ~ i

i

~ : j JMm~elsohn, construída\~!~JqU1tetura das dunas",1'l'1ltticadaigualmente, entr e\1'/

Page 48: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 48/90

I lustração n 9 3: Tor re Ei nstein, d e E. Mendel sohn , construí daem Postdam (1920 -1924) . Basead a na "Arquitetura das dunas ",é exemp lo de r ecusa d o geometri smo, prati cada igualm ente, ent reoutros, por Gaudí .

Page 49: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 49/90

Quando se fala na necessidade que sente o homemocidental de ocupar um espaço, de não deixar um es- paço vazio; ou quando se diz que a vertical idade percebida como forma de misticismo; mesmo q uando se propõe que o espaço pode ser temporalizado ou quan-do se apresenta o espaço geométrico como o espaçoda pr isão do espírito (e não só dele), está-se falandonuma dimensão específica da arquitetura: a dimensãod o imaginário (e não uma dimensão imaginár ia).

O q ue se deve entender por imaginário, em arteou arq uitetura? Seguramente não uma for ma de aluci-nação, fantasia ou irrealismo. Num conceito comume vulgar da palavra, imaginár io é sem dúvida tudo isso(além de produto dos sonhos, ficção, etc.), COmum

acresclmo específico: banalidade, coisa desprezível emesmo per niciosa. E o mais gr ave é que esse con-ceito totalmente inadequado de imaginário acaba des-lizando e infiltr ando-se mesmo no campo da teoria daarte e da arq uitetura (onde adq uire condição seme-

ú?ico p~nto de vista par a a análise de seu ob jeto) nãoso permite (e mes~? torna obr igatória) sua presençaem todo est.udo teoflCO sobre arte e arquitetura, recu- perando assim toda urna parte vital da ex periência es-tética humana, corno possi bilita um entendimento da

Page 50: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 50/90

q ( q çlhante à desfrutada pelas sem pr e pr esentes e a bsurdasteorias da "inutilidade" da arte), sendo aq ui usado par a emascular a prática artística do homem, ceifan-do aquilo que ela tem talvez de mais importante. De

fato, se é ver dade que pelo menos em estética o con-ceito de imaginário começa atualmente a ser , pelo menosem parte, r eivindicado (embora confundido e distor-cido, de modo extremo até), da arquitetur a ele foi (eestá) inteiramente afastado - se é que alguma vezfoi, nela, devidamente considerado. A perspectiva que pr evalece aqui é a de que a arquitetura é urna disciplinaque lida com o real e o útil, e nada tem ô ver como imaginário. Monumental engano, e nem sempr e ino-cente. E que se pr ocur ou desfazer aqui atr avés da aná-

lise dos sete eixos em torno dos q uais se organiza aatividade arquitetural: os componentes desses eixos f o-ram q uase sempre vistos, corno se procurou mostrar mais acima, na q ualidade de pertencentes à dimensão doimaginário na arquitetura.

, p?bra de .a~te (entre as q uais a ar q uitetura) em seuJusto pOslclOnamento de topos real onde esse universoima~i~ário se constrói através de elementos reais' (amatena), formando com este universo um objeto novo

diferente ao mesmo tem po daquele mundo de r ela~cionamentos não or ganizados e sub jetivos e do mun-do "objetivo" q ue se mostra ou opaco ao olhar dac~nsc~ência ?u que se revela de modo or denado (masfno, lm passlvel) segundo a apreensão cinetífica.

Este conceito de imaginário assim descrito, no en-tanto, chama atenção para um outro conceito, e umaoutr a atividade, sem a' qual o imaginário, a obra dearte e mesmo toda atividade não-artística do homem'

é inviável: o conceito de ideologia e a pr ática ideoló-g~c~.Inviável por que não há significado, sentido e sig-nIficação, na obra de arte ou na vida "comum", sem a pr esença de ambas essas atividades, simultaneamente.Mas o q ue se deve entender por ideologia?

Ser ia possível utilizar um conceito vulgar e muitoempregado, segundo o qual uma ideologia é um sistemaou mero conjunto (conforme seja r ígida ou frouxa-mente organizado, respectivamente) de valores dos mais~ariados tipos (políticos, religiosos, estéticos, etc.) uti-lIzados para a explicação de uma realidade. Não se pode dizer que est~ descrição da ideologia se ja eq uí-~oca, mas outr as eXIstem q ue são mais adeq uadas. par-ticularmente a um tra balho àesta natureza. Pode-se di-::er , assim, 9ue a ideologia é uma representação (istoe, um relaclOnament~ consciência-o b jeto) pr oduzida pelos homens a res peito das relações por eles mantidascom suas condições reais de existência. Este conceitoestá mui~o próxi~o do conceito de imaginár io, já queambos vem descntos como modos de relacionamentoentre a ~onsciência e seu o bjeto. Qual a dif erença?P~r~ mUltas, ~enhuma. Estes (que entendem o imagi-nar~o_ como ~a~ sendo nada mais q ue alucinação, su- poslçao. f ~ntastlca) ~ons~deram simplesmente que al?~ologla. ~ uma ex pllcaçao destor cida (por razões po-htlco-soclals, normalmente) da realidade que se o põe

Mas, como pode ser então descrito o imagináriode um modo adequado à recuperação que aqui setenta f azer desse conceito, libertando-o de uma sériede detritos intelectuais de sus peita inspir ação? Não comofantasia, alucinação, mas como o universo de um modode r elacionamento da consciência individual com obje-tos reais ou virtuais. Este conceito, que partiu da no-ção sar treana de imagem (modo q ue a consciência temde se dar um o bjeto) tem sua es pecificidade no fato deser um modo não organizado, não ordenado, não r a-cionalizado de relacionamento entre essa consciência eum objeto qualq uer que lhe é interior ou exterior - pelo que o imaginár io se distingue, por exemplo, domodo de relacionamento científico de uma consciênciacom esse objeto (modo ordenado, organizado). Estadescrição do imaginário (que pode e deve ser com- plementada dizendo-se que outra característica funda-mental desse modo de relacionamento é o fato de queele é f eito a par tir de múltiplos pontos de vista utili-zados simultaneamente, enquanto o modo de relacio-namento científico deve usar , a cada vez, apenas um

aos dados "indiscutíveis" f orneGidos pelo entendimen-to "científico". Quando assim f ormulam sua posição,estão q uerendo que se aceite a idéia de que a reali-dade humana é constituída por uma única verdadenatural que tem de ser descober ta e com a qual não

Ao lado dessa primeira concepção de ideologiaaq ui combatida (a de q ue a ideologia difere do co-nhecimento científ ico por ser uma explicação alu::ina-da, falsa, antinatur al) existe uma outra q ue tambémdeve ser posta de lado: aquela segundo a qual a

Page 51: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 51/90

q qse pode discutir . Por exemplo, seria da ordem "natural"das coisas o fato de existir uma entidade supra-hu-mana a que se denomina "deus", tal como se deveriaatribuir a existência, por exemplo, de uma rígida dis-

tinção entre as classes sociais a essa mesma ordem"natural" - contra a q ual nada se poderia. Ora, nãocabe aqui mostrar que não existe nenhuma explica-ção única da r ealidade (humana ou material) q ue se-ria "natural" (isto é, irretorquível) e que gerar ia oconhecimento de tipo "científ ico": vár ios tr a balhos devalor indiscutível já o demonstraram. As teor ias deEinstein, por exem plo, comprovaram que não existeuma ver dade única e imutável, mas que toda noçãotem um valor var iável e relativo. Duzentos e cinqüen-

ta anos antes de Einstein, Newton formulou uma teo-r ia da mecânica celeste que f oi contrariada pela teoriada r elatividade geral proposta pelo irrequieto e poucoconvencional cientista moder no. Isto significa que ateoria de Newton é, portanto, f alsa ou equívoca? Comoaf irmá-Ia, se continua a se r utilizada pelos astrôno-mos e se delas se servem, so b todos os as pectos, osatualíssimos astronautas? Mas se as idéias de Newtonsão usadas ainda, neste caso os trabalhos de Einsteiné que são enganosos. Pro posição igualmente falsa. O

f ato é que sob um -determinado ponto de vista a teo-r ia de Newton é inadequada: ela não é adequadaq uando se trata de analisar o b jetos cuja velocidade sea proxima da velocidade da luz.

Isto significa que tam bém no campo da chama-da "ciência" tudo está na de pendência de um determi-nado relacionamento, de um modo de posicionamentoentre a consciência investigadora e seu objeto. Em ou-tras palavras, tudo de pende de um ponto de vista. Tal

como no imaginár io. Com a dif erença, no entanto, deque a representação que a ideologia fornece aos ho-mens das relações que estes mantêm com suas condi-ções de existência é uma re presentação de alguma for -ma org anizad a e não é su bjetiva, mas, q uase necessaria-mente, tr ansubjetiva, isto é , par tilhada por um gru poou gr u pos.

p q g qideologia é uma ar gumentação q ue, enq uanto escolheuma das possíveis seleções cir cunstanciais de explica-ções possíveis, oculta o fato de que existem outras pr e-missas contr aditórias ou com plementares q ue levam a

uma conclusão diferente ou mesmo contr aditór ia da-q uela por ela sugerida. Assim, se alguém af ir mar quea teoria de Newton explica a mecânica celeste segun-do tais e tais pr incípios, sem revelar que existe ou-tras teor ias (como a de Einstein) q ue so b determi-nados pontos de vista permitem conclusões contraditó-r ias às de Newton, esse alguém estar á utilizando umaar gumentação ideológica e não científica. Esta concep-ção também deve ser corrigida: não é pelo fato deexpor sua par cialidade (isto é, de mostrar que existem

premissas contraditórias àquelas q ue se escolheu) queum discur so q ualquer deixar á de ser ideológico. Elecontinua a ser ideológico na medida em q ue é umarepr esentação da realidade, e uma representação das r e·lações entr e os homens e essa realidade, q ue f oi esco-lhida pelos homens, por uma série de razões, comosendo a mais a d equada e conveniente. Eu afirmo talcoisa, não escondo que existem posições contrárias masdefendo a validade de minha posição: estou executan-do uma atividade ideológica.

Se a esta altura f or perguntado como pode ser situado o conhecimento científico em r elação ao co-nhecimento ideológico, e em que um se distingue dooutro, é possível r esponder que os pontos comuns aambos são muitos, que não existe o posição absolutaentr e um e outr o e que o conhecimento chamado cien-tífico é mesmo uma espécie do conhecimento ideoló-gico, não podendo ser entendido de outr a for ma. Comefeito, basta lem brar q ue ciência só existe enquanto

pode ser negada: a única coisa q ue não pode ser ne-gada é o dogma, e o dogma não é assunto de ciên-cia nem conduz ao conhecimento científico. A grandedif er ença existente entr e a ideologia e o conhecimentocientífico (se é q ue chega a ser diferença) é que umaideologia é f eita também por conhecimentos científicos(neste caso o conhecimento científico é uma parte do

todo que é a ideologia) e, pOl: esta razão, o conhe-cimento científico é um corpo de noções r igidamenteor ganizadas em torno de um único ponto de vista,enquanto a ideologia será composta necessariamente por uma apreensão da realidade baseada numa multipli-

Page 52: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 52/90

cidade de pontos de vista (o aspecto político, o aspec-to religioso, o aspecto estético, etc.) - diferenciando-se do imaginário já que o modo de relacionamentoconsciência/objeto é aqui inteiramente não-organizado,

enquanto na ideologia alguma organização há. Alémdo mais, deve-se entender que a ideologia é uma pr á-tica nor mativa da atividade entre os homens (segun-do cr itérios de justiça, adequação aos objetivos so-ciais, etc.) que se preocupa com o dever-ser do uni-verso humano, enquanto o chamado conhecimento cien-tífico, voltado para o estudo do ser , daquilo que efeti-vamente é, agora, é um instrumento para essa atuação.

Não há, portanto, como separar o imaginário do

ideológico - embora não se deva confundir um como outr o. Fez-se aqui esta resumida introdução a umateoria do imaginário e do ideológico par a melhor situar o leitor q uanto a alguns aspectos dos eixos pro- postos e discutidos. E se por alguma razão deu-se a

. impressão de que o nível mais presente nas discussõesdo primeiro capítulo foi o do imaginário (embora adimensão do ideológico sempre estivesse presente, ain-da que de forma menos evidente) procede-se a seguir a uma análise específica da presença da ideologia na

arquitetura (isto é, da representação que certos ho-mens se fazem - e tentam impor aos outros - dasrelações por eles mantidas com a realidade arquitetu-ral, por razões de variado interesse político-social) emtrês casos particulares. Esta análise deve mostr ar comoatua a ideologia na arquitetura, de que modo a arqui-tetura é ideologizada e ideologizante, qual o signif ica-do' ideológico de certas proposições arquiteturais - eisto em tr ês aspectos da teoria da arquitetura, e dateoria da linguagem e da significação na arquitetura

particularmente, passíveis de verificação em alguns oumesmo todos os sete eixos propostos. Por certo, tr ata-se aqui de análises exemplificativas que se contentamcom serem tais e que não ostentam a mesma ambiçãoe generalidade de que se reveste a primeira parte destetrabalho.

2. TMS CASOS PAR TICULARES DOIDEOLÓGICO NA ARQUITET URA

A partir da segunda metade do século XIX a arqui-tetur a tinha uma nova palavra de ordem: funcionalismo.Que acabou se tornando uma panacéia e uma etiqueta

. em nome da qual se pr ocura desculpar verdadeir os cri-

mes contra a arq uitetura - 'se não fossem, antes, contrao homem. A f órmula mágica F or ma , E strutura e Fun-ção, tal como é proposta por Nervi, surgia para resol-ver os pr oblemas da arquitetura, definindo-a e atribuin-do-lhe um domínio específico para, ao final, justificá-Ia.As razões par a esta nova concepção pareciam múltiplasaos olhos dos teóricos do século XIX: a torre propost

por Eiffel em 1889, por exemplo' (como todas as pontesde f erro; mas ela f oi o signo mais em evidência) levan-tava a q uestão referente à forma q ue se deveria dar àsnovas construções feitas com um novo material, o fer r o

e o ferro aparente A teoria da art impliqué (arte

.1ão cumprem função alguma, são gr atuitos. Onde estáo funcionalismo? E a Torre Eiffel não é um caso hola·do, pelo contr ário: é uma amostr a, a ponta do iceberg .

O que interessa então indagar é: o que está por trásdo conceito de funcionalismo? Que signjfica função e

Page 53: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 53/90

- e o f er r o apar ente. A teoria da ar t impliqué (arteim plícita) estava sendo f or mulada: cada ti po de materialtr az em si (ou exige) uma nova forma que está implícitanele (entenda-se: e q ue não foi usada antes). O ferro,e depois o concreto, tor nar am-se elementos da vida co-mum da ar q uitetura: que fazer com eles, continuar arevesti-l os com as f ormas do Clássico, do Gótico, conti-nuar a propor sopas de r estos arquitetõnicos, delír ios ar -tístico-sociais a que se batizava pomposamente de Ecle-tismo, como a Opér a de Gar nier em Paris? Continuar a pr o por "neos"? Mas neo-o-q uê, a essa altur a? Já haviaum neoclássico, e um neogótico: propor o que agor a,o neobizantino, o neof ar aõnico, ou neo-neo-gótico (co-mo é, de certa f orma, o art noveau)? Evidentemente, háum limite para tudo, mesmo para a desrazão e o péssimogosto. Pr o põe-se então q ue cada novo material deve ter uma nova forma, ditada pela f unção que exerce, nãomais sendo, por tanto, gratuita. Vai-se tentar unir, então,f or ma e f unção (a esses dois termos pode ser reduzida aequação de Ner vi, sem prejuízos) e passar a propor pr o- jetos f unciona is.

Mas q uando se insiste muito sobre a necessidade deunião entre dois elementos e na apresentação de soluçõesonde essa ligação é conseguida, é porque talvez esses ele-

mentos se jam ir r econciliáveis, e a ligação, neste ou na-quele caso, inexistente. As primeiras formas "f uncio-nais" na verdade não o são, mas for am tomadas comotal na é poca e até ho je continuam a sê-lo. São enormesmentir as funcionais. A própria Torre Eiffel, por exem- plo. Os q uatr o enormes, volumosos e maciços arcosq ue se vêem entre seus quatr o pilares funcionam psico-logicamente para o es pectador como os sustentáculosde toda aq uela enor me massa de fer ro, que parece r e- pousar em suas "costas". Nada mais falso, porém. Não

têm nenhuma f unção de sustentação, que fica inteira-mente a cargo dos pr óprios pilar es. Mas f oram postoslá para dar essa impressão: por q uê? Por que f icava"mais estético"? Para assegurar o pú blico quanto àf irmeza da obr a? Impossi bilidade de r omper com atradição hstórica do ar co? Talvez as três coisas ao mes-mo tem po. O q ue inter essa é que nã o são funciona is ,

do conceito de funcionalismo? Que sign jfica f unção eo que significa f or ma? Qual a ideologia que está por trásdesses conceitos? Qual a possi bilidade efetiva de unir um e outro desses elementos?

Um excelente princípio de resposta é f ornecido por Baudrillard 1. Forma e f unção ser iam dois valores anti-téticos e irr econciliáveis por que r ef lexos e por tadoresde duas ideologias em conf lito absoluto: a aristocr ata ea burguesa. Par a a determinação do campo desses con-ceitos r emonta-se à Gr écia: sua aristocr acia f az do não--trabalho pessoal uma nor ma a bsoluta de vida. O traba-lho (particularmente o trabalho manual, por ém todo tra- balho) degrada, e a ele só se entregam as pessoas deextração infer ior, os escr avos, os prisioneiros de guerr a;ao ar istocrata é reservada a oper ação intelectual: a su- per visão, a administração (mesmo na arte o pintor, tra- balhador manual, é um degradado em r elação ao poeta,ao r apsodo). Sua existência é a da ausência de esforços,de excessos, a existência da ostentação, do inútil. Isto é,da forma - da forma pura q ue se pro põe não para cum- pr ir uma necessidade, um tr a balho qualquer mas comooferecimento gratuito, como ocasião de deleite livr e, des- preocupado.

Par a o burguês, que não pode contar com o r ecur so

do parentesco com os deuses ou do sangue azul, a únicamaneira de ascensão (pelo menos de alguma ascensão)está no dinheiro, que ele só obtém num primeir o mo-mento com o esf or ço pr óprio e, apenas a seguir, com otrabalho dos outr os. Mas mesmo enriquecendo e even-tualmente sendo admitido no mundo nobr e, o burguêscontinua marcado por um pecado original: a im possi- bilidade de apreciar algo a não ser por aquilo que essealgo produz, por aquilo que ele vale como instrumento para algo mais - por sua função, enf im. "A ar te é

muito bonita, muito bem, mas sozinha não interessa. Oq ue pode fazer , como pode ser útil? Decorando umataça? Ah, ótimo, neste caso sim, pois a taça é r ealmenteútil." Colocação simplista? É possível. Mas a ideologia

1. J . BEAUDRILLARD , o sist e ma do s obj e tos . São Pau lo.Per spec tiva, 1973.

burguesa, nessa época particularmente, é relativamentesim plista.

Assim, é possível montar uma equação onde à aris-tocracia corresponde a forma e à burguesia, a função.Mas ar istocracia e bur guesia são duas coisas irr econciliá-veis ou de qualquer modo infusíveis Na Europa abur

quando se verifica que não é a função que predominanos projetos mas justamente a forma. Isto é bem visível basta pensar, por exemplo, nos edifícios de vidro a revelar uma forma perfeita, cuidada, mas que, quando ins-talados nos trópicos, demonstram-se de todo inadequa-d f t l i t ( f l bl d

Page 54: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 54/90

veis ou, de qualquer modo, inf usíveis. Na Euro pa, a bur-guesia terá de es perar desde a antiguidade grega até asegunda metade do século XVIII par a ter sua revanche;e nesse tempo todo, nada mais houve entre as duas

classes do que conf lito constante entremeado de ocasio-nais alianças (contra outras classes, contra o perigo ex-ter no). Mas f usão, não. E, correspondentemente, im- possi bilidade de união entre forma e f unção. De talmodo q ue ser ia im possível a existência de um pro jetoque proclame a união per feita entre uma e outr a coisa:a predominância de uma delas será sem pre uma cons-tante.

Não é ar gumento afirmar que essa união, no entan-to, pode ser conseguida e só é conseguida pelos grandesnomes, pelos mestres, enquanto que para os demais, osarquitetos "de serviço", o fracasso é a herança inevitável.De acordo com a argumentação, essa imbricação seria pur a e simplesmente impossível, e neste caso aquilo queestamos ha bituados a chamar de " perfeita união entreforma e f unção" nas gr andes obras será simples ilusão:quando estas são citadas, estamos dando como exemploalgo que não existe.

Será corr eta essa colocação? Se realmente o eq ui-líbr io não é possível, de que lado pende a balança? Seria

. possível pensar que a pró pria denominação da teor ia jános daria uma pista: pende para o lado da função. R eal-mente, par ece que ninguém se deteve para indagar por -que uma teor ia que pretende unir f orma e f unção seapresenta so b o rótulo exclusivo de f unciona lismo . De-veria chamar-se simplesmente "Teoria da For ma-Fun-ção". Mas não: todos a r econhecem so b seu nome der egistr o "funcionalismo", embora def inindo-a es pecif ica-mente como uma pr ática ar q uitetur al q ue pr ocura esta- belecer uma r elação biunívoca entr e uma f unção q ual-quer e uma for ma qualq uer . Mas por q ue chamá-Ia def uncionalismo? Por que não se escolheu formalismo? Não ser á necessária uma psicanálise de seus formulado-res e praticantes para descobrir o motivo oculto, o f an-tasma impulsionador, o desejo inconf essável? Não, por -que o apar ente grande mistér io torna-se bem claro

dos frente ao calor reinante (sem falar no pr o blema dosincêndios) . A denominação de funciona lismo assim teriasido feita apenas para mascarar as for ças às quais sesucumbe, as do formalismo.

O mistério realmente não é tão misterioso assimVejamos de início o momento histórico de f ormaçãodessa teoria: é o período do lançamento das bases da so-ciedade industrial moderna, aquilo que Banham 2 cha-ma de segunda era da máq uina. Uma r ealidade comvários aspectos: sociedade industrial, sociedade de mas-sa, capitalismo avançado, organização financeir a multi-tentacular, im perialismo econômico, concentração da produção e da renda, direção do consumo das massas.Todos fenômenos que por cer to só vão atingir o augeno século XX mas q ue já estão lá quando se começa afalar em funcionalismo. E com eles alguns outros as- pectos que precisam ser a pontados: racionalização da pr odução, pr odução em série, gir o rápido do ca pital comum mínimo de custo e um máximo de r endimento, etc. Énesse momento q ue se começa a falar em funcionalismo.Inicia-se falando por exemplo a respeito de certas má-quinas com formas "inúteis", que não influem na produ-ção, não rendem: máquinas com cilindros exterioressob a forma de colunas gregas, tornos industriais comdecor ação barroca, etc. Em nome do bom gosto, da pu-reza de formas, da forma "moderna", eliminam-se ascolunas e a linha curva, substituindo-as pelas formasretas. A seguir fala-se na funcionalidade do produto,isto é, da funcionalidade para o consumidor: as maçanetas com tais e tais formas são mais funcionais (adap-tam-se melhor à mão) e ao mesmo tem po mais bonitas.Um prédio de apartamentos com sacadas sem grades deferro trabalhadas (ou mesmo sem sacadas) é mais funcional, porque a manutenção é mais barata, e ao mesmtempo mais bonito: suas formas enquadram-se no gosto.É nisso que se pretende fazer o consumidor acreditar .

O problema no entanto é q ue todo esse funciona-lismo, q ue se diz voltado par a as necessidades do con-

Page 55: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 55/90

ponto para chegar a um objetivQ comum: propor umaarquitetura ca paz de of er ecer a melhor existência huma-na possível. O que nos leva ao esclar ecimento de umaquestão levantada mais acima, r eferente a uma possívelilusão de união entre forma e f unção, mesmo nas o br asdos grandes nomes. E se verifica que nesses casos isola-

mento ou é pr o posto pelo próprio inter essado ou pelomenos por ele discutido ponto por ponto. f : necessár ioinsisitir que para a ar quitetur a o que deve inter essar é ousuário (para não re petir consumidor, ter mo carr egadode conotações negativas), e só a par tir dele pode ela ser definida.

Page 56: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 56/90

g qdos a comunhão entre ambas é realmente possível, espe-cialmente (e infelizmente, se deveria dizer ) quando do projeto de casas particulares: não há, aqui, nenhumaoposição entr e produtor e consumidor : aquele que soli-cita o pr ojeto tem os meios para a construção e reúne emsi mesmo produtor e consumidor : neste caso é possívelencontrar uma forma ex pr imindo uma função, umaada ptando-se à outr a (o q ue no entanto recoloca o pro- blema da ar quitetur a, pelo menos a a rquitetura-optimum ,como uma prática de classe ... )

Aliás, essa identidade por um momento parecesur gir em outros casos históricos embora amputada deuma par te: ao invés de forma e f unção ótimas para pro-dutor e consumidor ao mesmo tem po, f orma e f unçãovoltadas ambas par a o mesmo ponto, o do pr odutor .Que se pense na ar q uitetura barr oca, especialmente naarquitetur a religiosa barroca. Produto da Contra-Refor-ma na luta contra o protestantismo, surge quando aIgr e ja Católica encomenda especif icamente uma arqui-tetura com uma forma determinada para uma funçãoespecífica, ambas destinadas a ela mesma, Igreja: tra-tava-se de dar formas de encantamento, de sufocaçãosinestésica calculadas par a fazer r etomar à sede católicaos antigos adeptos desviados pela nova adversária e aomesmo tempo conquistar novos simpatizantes. E sob o ponto de vista da Igreja, do produtor , a combinaçãoexistiu pois deu resultados. Todavia, não é possível acei-tar esse exem plo como demonstr ação de união perfeitade forma e função uma vez que não for am levadas emconsideração as necessidades e os desejos reais e pro-fundos do consumidor dessa arquitetura, q ue se portoudiante dela de modo passivo, guiado. Não foi ele quesolicitou do arquiteto um lugar deste ou daquele tipo para a prática da r eligião, e mesmo que se tenha verifi-cado a hipótese de um verdadeir o contrato de adesão(ao contrato já feito ele adere com sua aquiescência)não é possível considerar a arquitetura religiosa barrocaum caso de união forma-função. Um contrato de ade-são é visceralmente distinto de outro em que cada ele-

O mito da forma X função em arquitetura (pois éexatamente nisso que ele se transformou ou que semprefoi) surge assim na verdade como mais um rebento do

pensamento tecnocrata q ue não se sustenta e não se jus-tifica. Não seria mesmo demais propor seu afastamentodo campo da arq uitetur a e substituiçao por noções quea definam melhor ; qualquer r á pido pasticho das defini-ções históricas da ar q uitetur a é capaz de propor pontosmais sólidos, como espaço/homem, ou mesmo belo/co-modidade/humanidade, etc. etc.

Produzir um es paço, particularmente na ar quitetura"pública" e em urbanística, não é apenas deter minar formas, dispor elementos numa r epresentação desse es- paço par a a seguir executá-Ia numa prática efetiva. Esseé um dos as pectos da produção do espaço, m% está longede def ini-Ia inteiramente, e para conhecer a extensãodesse conceito é necessário indagar de início - coisaque não se costuma f azer na prática da arquitetura _ oque vem a ser efetivamente um sistema d e produ ção.

Essa determinação só pode par tir de uma disciplinafundamental para a ar q uitetur a mas que é, no entanto,desprezada - por razões óbvias - na formação do ar -q uiteto: a Economia Política 6. Dentro da estrutur a

proposta por esta disciplina, um sistema de produçãoapresenta quatro fases necessárias das quais a primeira,chamada de Produção pr opriamente dita, é aquela quenormalmente o define embora seja a penas parte dele enão possa ser levada em consideração sem as tr ês restan-tes sob pena de distorcer-se a visão do sistema em suaglobalidade.

. Produção propr iamente di t a significa apropriar-sedos produtos da natureza e dar -Ihes urna forma adeq ua-da às necessidades humanas. E a pr odução arq uitetura I

6. E as noçõ es a.qul propostas devem servir pa r a a constl-tulçáo de outra d isci plina particu larmente Imp or tante , uma Eco-nomia . Politlca do Espaço .

é a a propr iação do es paço e sua. enf ormação adequadoàs necessidades do homem; os formuladores desses con-ceitos, em particular Marx, obviamente não tinham emmente a arq uitetura quando os propuseram e no entantonada melhor par a uma def inição inteir amente aceitávelda prática arquitetura!

baixos e aos outr os os demais, nessa or dem) dispostosao longo da cavea sob f or ma de U, ferradura ou sino.

O que interessa aqui é: por q ue essa organização,esse tipo de divisão do es paço r eservado ao público ecomo se verifica aí a teor ia da redução do espaço? 7

O tipo de teatro aqui analisado denominado tam

Page 57: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 57/90

da prática ar quitetura!.A segunda fase do sistema é a d istr ibuição, onde se

determina a pro porção em que os indivíduos participamdos resultados dessa produção inicial, de acor do com as

leis sociais, se jam quais f or em. A troca, terceira f ase,configura uma distri buição ulterior ~aquilo. qu.e. já ~oidistri buído de acordo com as necessidades mdlVlduals;é a tr oca que traz aos indivíduos os pr odutos par ticula-res de que carecem. E a q uar ta e última ~ ~ consu mo:os pr odutos tor nam-se objetos de uso e fr Ulçao, de apro- pr iação individual; nesta f ase, .os pr ~dutos saem fo~a domovimento social (donde a aflr maçao de que a socieda-de de consumo, aquela em q ue o único valor é justa-mente esse, é eminentemente anti-social).

Para ver como a teoria da pr odução funciona emar quitetura analisemos uma prática específ ica, a arquite-tura teatr al (e dentro dela um caso par ticular) que per-mita conclusões mais amplas so br e a formulação de umaar quitetur a realmente humana.

A análise se concentr ar á assim num ti po de espaçoteatral (entenda-se por isso a conf igur ação e or ganizaçãointerna do edifício teatr al em sua relação Cena-Pú- blico, e não apenas do palco) configur ado numa série

de salas-padrão atr avés dos séculos. É o espaço doTeatro San Samuele de Veneza (século XVII), DruryLane de Londr es (século XVII), Scala de Milão (séculoXVIII), La Fenice de Veneza (século XVIII), CoventGar den de Londres (século XIX), O péra de Paris(século XIX), Madison Square de New York (séculoXIX) ou mesmo os mais recentes Munici pais do Rio eSão Paulo. Enfim, tr ata-se de um tipo de es paço teatralq ue su bsistiu e subsiste ainda em vários lugares e que semantém com a mesma estrutur a (por r azões que se tor -

narão evidentes mais além). Esta estrutur a obedece aoseguinte esquema: um palco no f undo de uma sala de-frontando uma cavea dividida numa seção horizontal(normalmente designada plat éia: filas de cadeir as indivi-duais) e numa seção ver tical (de dois a seis "andares")comportando "camar otes", f ilas de cadeiras ou simples .ar qui bancadas (cabendo aos primeiros os andares mais

O tipo de teatr o aq ui analisado, denominado tam- bém teatro à loges (teatro de camar otes) vai sur gir quando, com a Renascença, o teatr o passa a ser es pe-táculo senão de massa pelo menos espetáculo público,saindo dos palácios e casas senhoriais - momento emq ue aparece, como os próprios arquitetos da é poca de-claram expressamente em suas obras, a necessidade dedispor a sala de tal modo que as "pessoas de classeelevada não se vejam obrigadas a se misturar com os de baixa extração social". Para aq ueles que podem pagar reservam-se camar otes (lugares mais íntimos, com pol-tronas); para outr os, cadeiras comuns em boa posição(platéia), ou lugar es menos convenientes (nos andaresinfer iores) ou de todo inconvenientes (hoje denomina-dos "galerias" ou "anfiteatr os") colocados na parte maisalta da sala, junto ao teto, e onde· nem a visão, nem aaudição podem ser exercidas plenamente. Esta é a razãohistór ica, es pecífica e declarada do nascimento do ti pode teatro em análise.

Como fica, nele, a teor ia da produção do es paço?Em princí pio, parece não existir nesse tipo d'~ teatro,no Scala, no Madison Sq uare, no Munici pal, uma pr o-dução do .espaço. Por q uê? Porq ue aí não parecem

existir pelo menos duas das fases de um pr ocesso de produção, a tr oca e o consumo. Vejamos: temos um pr oduto já aca bado, o espetáculo teatral, e tem-se um pr o blema de produção (intimamente associado ao ante-rior) q ue consiste em organizar o espaço de modo a queo primeiro produto chegue ao consumidor, ao especta-

7. E sse mod o de or ganização do es paço teatr al não fOI p or certo o úni co na histó ria d O teat ro. Antes d ele exist ir am pelomenos tr ês gran d es tipos, em res umo : a) O teatro de t i po gr egoclássico, onde os especta d or es se dis punham numa arquib ancadaem f or ma d e se mi círcu lo, composta po r filei r as de assentos uni d ose sem d iferenci ação ; b) o teatro d e ti po "informal " da Id ad e Média ,onde não há edi fício teatral p r opriamente d ito (ser vind o, para aação, uma igr eja , um átrio, uma praça p úbll ca) e ond e os espe cta-d or es se mistura m livr emente à ação d os at or es (no máxímo, eeventualmente, um ou outr o palanqu e serv ia para a bríg·ar no br es e"autor id ades" ); c) o teatro pr ivad o e se nhori al da Rena sce nça,ond e num a sala se m d ivisões co loca vam-se a tor es e es pec tad or es,se m palco, e na qual os es pectador es se es palhava m llvr emente,se ntan d o-se e m cadeira s espar sas ou f lcando em pé. Esta d escriç ãoe esta tl pologla foram enormem ente slm pllf lcad as, por certo, massã o o suf iciente par a o que inter essa aquI .

dor , que deverá fruir não só um espaço físico (organi-zado pelo teatro) como o produto-espetáculo. Pode-sedizer assim que nesse tipo de teatro há uma produção(o espetáculo está lá, um espaço foi organizado, apro-

priado) e pode-se eventualmente afirmar que há atémesmo uma distribuição: a determinação da ptoporção

buição ulterior segundo as necessidades individuais euma apropriação desses produtos, pelo menos para aque-las pessoas consideradas 8. Na realidade, em princípionão é possível deixar de çoncordar com esta argumen-tação. O conceito de distribui ção não implica de fatoem que os indivíduos participem da produção de acordo

Page 58: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 58/90

ç ç p p çda participação de cada um nos resultados da produção(de acordo com a posição de cada um: camarote, pol-trona, galeria, etc.). Mas não haveria troca, nem con-

sumo: que significado têm essas duas operações paraquem fica sentado lá em cima no último andar, ~sprimi-do contra o teto, e que não pode sentar se qUIser ver pelo menos parte da ação, já que ver o palco todo é real-mente impossível? Ou, se consegue ver a ação, não po.dedistinguir o jogo facial dos atores, ou mesmo gestos 111-

teiros? É óbvio q ue para estes não há nem consumo does paço teatr al ( pois f icam separados num canto à parte)e muito menos consumo da pr odução teatral: não se

, apropriam daq uilo que se desenrola no palco, não podem

usufr uir, não podem gozar de um gesto, de uma fala,de um r á pido piscar de olhos dirigidos à plat é ia (nosentido específico do ter mo: ao lugar plano, na horizon-tal, diante dos ator es), de um contato mais íntimo comos atores. E se isto não é possível para esses, se não podem consumir mais longamente um ou outro aspectoda produção que desejariam, não há essa poss~bilida~ede distribuição ulterior (a troca) nem a mampulaçaoespecífica pelo indivíduo (o consumo). A rigor, essas pessoas nem ao menos participam, ainda que remota-

mente, da produção teatral de que fruem os esp..:ctaclo-res da platéia e dos camarotes. Vislumbr am apenas al-guma coisa de vago, de indistintCl, de longínquo. Parti-cipam de uma outra experiência: uma pseudo-expcrién-cia de teatro, uma antiexperiência teatral.

Há nesse tipo de teatro a produção de um espaçocompatível com um determinado objetivo, a produçãoe o consumo de um espetáculo teatral? Não, apenasuma falsa produção. Mas não se po~e falar numa pura

e simples inexistência de um processo de produção, poiso que se poderia ob jetar a esta tese é o seguinte: se selevar em consideração apenas os privilegiados, as pessoasda platéia e dos camarotes, existe aí um sistema e um processo de produção perfeito e acabado: há uma pro-dução e uma organização espacial tal que se determina a proporção da participação de cada um, COmuma distri-

q p p p çcom as leis sociais? Ora, se estas estabelecem uma gradação (ou degradação, na verdade) na posição econô-mica de cada um na sociedade, esse tipo de produçãoespacial do teatro não faz mais do que reproduzi-Ia eatender, com isso, aos imperativos dessa lei. E nestecaso, o máximo que se pode dizer é que essa práticaarquitetural é nitidamente uma pr ática ideológica (uma prática defensora de certos valores ligados a determina-das classes) a surgir de modo nítido quando é anali-sada sob os ângulos dessa teoria da produção do espaço.Outra seria essa prática arquitetura I e a ideológica por ela r evestida se se tratasse de um teatro or ganizado, por exemplo, como o teatro gr ego clássico (como, em

par te, o Teatro Olímpico de Vicenza, por Palladio,século XVI - trata-se de teatr o coberto, donde a di-ferença com o modelo antigo) onde todos os es pectado-res têm a mesma possi bilidade de se a pr opriar como bementenderem daq uilo' que é produzido em cena 9. Ou numteatro do tipo arena. Ressalte-se: não é que nestes doistipos a prática arquitetural seja não-ideológica, isto nãoexiste: trata-se apenas (mas não é nada "a penas") deuma produção de espaço (,llde se atende às necessi-'dades de todos que nele penetram. Neste caso, a pro-

dução do espaço é uma autêntica produção, uma pro-dução completa, que se verifica em todas suas fases. Daí poder -se afirmar que embora haja produção do espaçonaqueles teatros não só essa produção espacial é de umtipo ideológico bem definido como na verdade nãochega a ser uma verdadeira produção arquitetural: clau-dica, não perfaz um todo orgânico e coerente, mesmose se leva em conta que desde a fase do projeto ela pre-tendesse realmente, de modo intencional, não atender

8. Do mesmo mo d o, na R enasce nça os cenários em pe ,rspectlvaer am pintados o u con struido s no palco de ta l maneira qu e apenasd e um lugar e s pecífico da p latéia, aque le res ervado para o prín-ci pe, se tinh a uma vi são perfeita da cena persp étlca, que se defor-mava se o obs ervador se colocasse em qualquer outro ponto dasala. A produ ção teatral, nesse caso, tinha um e apena s um con-sumidor.

9. Com a ressa lva do "priv ilégio perspétlco" posto em prática justamente na fase á urea desse tea tro, p r ivi légio no ent1l ,nto resu l-tant\, não da produção d o espaço teatral em si mas do modo de pr odução d o cenário.

todas as necessidades de todos' os espectadores. Como produção es pacial estr uturada ela permanece um fra-casso mesmo assim: há nela espaços mortos, excr ecên-cias, buracos sem nenhuma ligação com a pr ática espa-cial do lugar e com o produto teatral (como os "anf i-teatros" e "galerias") e que são propostos apenas como

partir do ângulo de uma teoria básica da produção doespaço (na verdade, um dos pontos dessa teoria) talcomo foi aqui exposta, é particularmente útil: se toda produção do espaço f osse mer o r eflexo da ideologiasoc.ialnão haver ia necessidade de nenhuma teor ia (ideo-!ogla) ?a produção do espaço bastaria ver qual é essa

Page 59: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 59/90

teatr os e galerias ) e q ue são propostos a penas comoisca, como demonstração de uma " boa consciência"("até o sem recur sos pode assistir, pagando pouco") quenão engana ninguém. Muito mais completa do q ue ela

é a pr odução espacial dos "teatr os" nobres do séculoXV, pois neles só se admite um ti po de pessoa, o "no- br e", e desse modo a par tici pação é a mesma para todos,não havendo "vazios" na produção (a ideologia é aq uimais coer ente com a pr odução r eal do espaço: desde oinício se trata de excluir certas pessoas da pr odução eelas nem são admitidas na sala). Os problemas aqui,no entanto, além da exclusão social que se faz da maior par te dos possíveis espectador es, é q ue a imensa maioriadesses "teatros" não pode na verdade aparecer sob a

rubr ica de pr oduçã o arqui t et ônica teat r al ou produ çãodo es paço t ea tral já q ue não passam de salas comuns de palácios e casas senhor iais mais ou menos ada ptadas para a função teatr o - e não se pode considerar aadap t açã o como um caso de pr odução ar q uitetural ri-gor osamente consider ada: o pro jeto, por mais maleávelq ue seja, deve ser es pecíf ico.

Desta discussão r esulta clar o um ponto q ue é, der esto, evidente: as possibilidades de 'uma pr odução ar -quitetur al estão na dependência direta da ideologia glo- bal q ue orienta o gr u po social em q ue essa prática seinsere. Neste caso, a ideologia desse grupo pode-se re-fletir na prática ar quitetur al determinando a mani pula-ção dos es paços. É, aliás, o elo bem clar o no conceitode dist rib uição, onde já se afir ma que a p ar ticipaçãodos indivíduos no produto inicial é feita de acordo comas leis sociais. E se ja qual for o r egime político, se jaseja q ual f or a ideologia da sociedade essas leis existir ão.Isso não signif ica, no entanto - nem r emotamente -que t od a prática arquitetur al deva ser necessar iamenteum r eflexo da ideologia social em vigor, q ue ela tenha dese conf or mar com esses valor es do gr upo. Em gr ausmaior es o u menOres ela pode af astar-se bastante daideologia da sociedade em q ue se encontr a e pode mes-mo contrariá-Ia a berta e a bsolutamente. É so b esteaspecto que a análise de uma prática ar q uitetural a

!ogla) ?a pr odução do espaço, bastaria ver qual é essaIdeologia para ver automaticamente a ideologia corres- pondente dessa arquitetur a 10. Como não é esse ocaso, esta análise per mite ver ificar não só q ual a ideo-

logia de uma prática arq uitetural como verificar seugrau de plenitude, de realização (i.e., ver ificar se se~r ata d~ uma produção que, mesmo a par tir de suaIdeologia, se completa, per faz um todo orgânico ou nãoem termos estritamente arquiteturais: or ganização d~espaço e seu uso pelo homem.

. Esta teoria da pr odução pode ser aplicada na aná-l~se d~ ,qu~lq uer fato. da pr ática ar quitetur al e urbanís-tIC~"~ O b~lO.:no pro jeto de uma pr aça pública, de um

edIf IclOPUb~IcOe mesmo na análise do projeto de todauma co~umdade (q uando ela se desenvolve a par tir deum pr oJet~) ou de uma situaç ã o ur bana (q uando essedesenvolVImento se processa de modo mais ou menoso~gâ?ico). A ver if icação da tr oca possível nos lugares pu blIcos ( pra~as, ~entros comer ciais e de diversões, etc.)1 . , : . , a deter mmaçao do grau de acesso efetivo e de f rui-çao desses lugar es (c()nsumo) deter mina f acilmente og~a~ de perfeição d? pr odução es pacial em questão sua10gIcae sua ideologia. Surgiriam muitas meras confi~ma-

ções e mesmo muitas surpresas - como uma análise deBrasília, por exemplo.

2.3. S emanti zação e d essema nti zaçã o d o espaço

Como u m es paço ganha ou per de significadossentidos e significações? Como muda seu conteúdo? H áespaços não-significantes?

. 10. Al lás, aq uilo que se denomin a so b o con ceito de id eologi aso ad q uir e r ealme nte uma plena ma terialld ad e ao inter vir no esp a-ço social, ist .<>é, ao inter vir no es paço existente ou ao criar umespa ço es peclf lco . É possive I mesmo ind agar se a q uestão i deol ó-gica ná o se r esume af lnal na que stão d a mani pulação e oc u paçãodo esp~ç o - e uma br eve análiEe d a histór ia d os gr upos so ciaisr eve lar Ia que s e os co nfll tos id eológicos não se r esum em a penas noconfllt o pelo es paço (exclusão d e pes soas d e um d ad o es paçosegreg ação n um d eter mi nado espaço , reservar cer tos espaços par~tais e tais clas ses, afas tá-Ias ou r euni-I as con for me o caso pri var deespa ços, et c.) ela é, no f undo, esse nc1 aIme nte isso. '

Em princlplO é possível encar ar a questão da se-mantização / dessemantização do espaço so b dois ângu-los distintos e f undamentais: o discu r so sobre o espaçoe a pr ática do e spa ço.

De início, um espaço é semantizado, recebe refe-rências através ea partir do corpo humano f: inques-

de Bachelar d, seria possível simplesmente lembrar acarga afetiva "simples" inerente a toda convivência comum espaço - uma carga inerente a toda vivência.

São os dois modos iniciais de semantização doespaço, e por certo dependem de uma ideologia e/ou produzem uma ideologia: sua significação dependerá da

Page 60: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 60/90

rências através e a partir do corpo humano. f :, inques-tionavelmente, a par tir do cor po que se vive um espaço,que se produz um es paço - isto é, q ue um espaço rece-

be uma carga semântica q ualquer . Esta é a operaçãomínima, necessária e i ndispensável para a investidurade um léxico sobr e um tecido es pacial. A pr imeir aatribuição semântica a um es paço se faz assim a partir de uma prát ica do espaço. Mas em conseq üência doque já foi dito so br e os modos de signif icação do espa-ço é necessário bipartir o conceito de pr ática do espaçoem dois ramos bem precisos e delimitados que no entan-to freqüentem ente (senão sempre) se apresentam indis-soluvelmente ligados na quotidianeidade: uma pr ática física do espaço e uma pr ática imaginária . Todo textoso br e o espaço ou so bre arq uitetura se detém na análise(quando chegam a f azê-Ia) dessa prática física, muitoem bor a quase nunca igualmente se preocu pem com de-terminar essa prática a partir da unidade mínima impr es-cindível que é o corpo humano Il . Isso não basta, contu-do, pois se o espaço mantém um r elacionamento diretocom o corpo do indivíduo adquir indo em conseqüênciauma significação pr ecisa, ele alimenta igualmente umar elação não menos dir eta com o imaginár io desse indi-víduo, atr avés do qual esse espaço se semantiza de modofreqüentem ente de todo diverso do que ocorr e no pri-meiro caso, e de modo nem sempr e definido, distinto (jáque neste caso a semantização se opera par ticularmenteao nível do subconsciente ou mesmo do inconsciente) por ém não menos certo e determinável. Como no exem- plo de Bachelard, um " porão" se relacionará de modoimediato com o corpo do indivíduo num nível que se pode dizer utilitar ista ou funcionalista (a pessoa o per -ceberá como "frio", "escur o", " pr ático" ou mesmo "se-gur o") e ao mesmo tempo assumirá para esse indivíduouma carga semântica q ue releva do imaginário (a sen-sação, nem sem pr e clar a, de um "mundo fantástico" oumesmo de um mundus immundu s). Saindl) da poética

relações sociais nele examinadas 12 (das quais se podesecr etar uma ideologia), de um lado e, do outro, da pro-dução do indivíduo elaborada por ele isoladamente e a

par tir de sua relação com os demais. Obviamente essasemantização - e suas relações com essa ideologia -só pode ser isolada através da análise específ ica de cadamomento histórico.

A partir desta primeira semantização do espaço pode ele experimentar mudanças ou acréscimos semânti-cos - e às vezes se colocam camadas so bre camadasde signif icados so bre a car ga inicial. Se as simples mo-dif icações semânticas são f áceis de detectar e analisar quando se o pera a par tir da prática f ísica do espaço(quando por exemplo se tr ansf orma um centenário moi-nho industrial em centro coletivo de lazer), as tr ansfor -mações ao nível da prática do imaginário e as sobr essig-nificações atr ibuídas e a um espaço (a pro posição dees paços sobr essignif icantes) são de detecção e compr e-ensão ( portanto revelação) mais trabalhosa, particular-mente para o usuário-tipo do espaço. E os espaçossobr essignificantes, que interessam aqui de modo parti-cular, normalmente se revestem de um cunho especial-mente ideológico ao adCl~lr irem essas dotações semân-ticas extras através de um d iscurso sobre o espaço. f: oque se pode verificar, por exem plo, na simples leituradas publicidades das companhias constr utor as e correto-ras de imóveis, to pos privilegiados desses espaços sobres-significantes. Um apar tamento (e com ele o edifício)não se esgota na semântica de um tradicional "morar""a brigar", nem mesmo num "habitar com conforto" ~que já seria uma signif icação segunda. Os es paços q ueali se têm, ou melhor , as conotações sucessivamente em- pilhadas so bre a denotação inicial, tal como se em pi-lham miseravelmente as "caixas de mor ar" umas sobr eas outras, variam confor me a fantasia do r edator e acondição do imóvel - mas se encaixam todas na mes-

Il. Ren ri Le fe bvre , no entanto (qu e não é u m ar qult, t.o) temnoç ão des sa. lm perlosid ad e, embora não se d etenha em su a' nálise.Ver PToduc t~ o n l'es pac e, op . c ito

12. Um espaço não s6 po d e como d eve se r analisa d o a pa r tir das r elações socia is que nele se d esen volvem, ass im com o estas pod em ser apreendid as at r avé s d e suas proj eçõe s sobre o espaç o.

anterior, o pr ocesso de dessemantização pode-se verificar tanto ao nível da pr ática efetiva do espaço (f ísica ouimaginária) como em conseq üência de um discursosobre ele. O "porão" de Bachelar d f oi dessemantizadona concepção das "casas" em pilhadas propostas pelosedifícios modernos: tornou-se irrealizável no campoprático e perdeu sua significação para o imaginário Um

ma ideologia do consumo e do. su pérfluo com que sefascinam as massas. Assim, sobre um espaço do morar tem-se um es paço do "todo confor to", do "moderno"(ou do "clássico" - enf im, um espaço do "estilo"),do "luxo" e assim sucessivamente até os espaços mais"atmosf éricos" como o da "felicidade", do " poder ", etc.tudo claramente exposto e corroborado por descrições

Page 61: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 61/90

prático e perdeu sua significação par a o imaginário. Umespaço pode ser igualmente dessemantizado não por "im- possibilidade" (seja qual for a razão, econômica ououtra) de construção mas pelo desa par ecimento da fun-ção: a partir do momento em que os f umantes (e os fa- bricantes de ta baco) conseguiram convencer a humani-dade de q ue os dir eitos estão todos do lado deles,fumantes, e que os não-f umantes devem conformar-secom um consumo passivo e obrigatór io do fumo dosoutros através da f umaça (ou que se mudem), o "salãode fumar " foi dessemantizado: alguns sobraram, comnovas f unções, a maioria simplesmente desapar eceu, pr inci palmente dos edifícios públicos, meios de trans- porte, restaur antes, etc. - o q ue é sem dúvida uma la-mentável perda par a as sociedades. Mesmo a cave dosmoder nos edifícios f ranceses não deixa de ser, co-mo resq uício do porão (mas não com todas suasdimensões e funções), um exem plo de espaço desseman-tizado.

Esse processo pode também ser desencadeado por um discur so sobre o espaço. Mas raramente ocor re q ue proponham, os discursos, diretamente essa dessemanti-zação. Esta ocor re mais como conseqüência da su pras-semantização de outros espaços (da qual é operaçãoinseparável) e igualmente da suprassemantização inicialdo próprio espaço agor a dessemantizado. Que se pense

por exemplo no fenômeno tí pico das grandes cidadesamericanas: o abandono de certas zonas da cidade por par te de seus moradores brancos ante a constatação deque os pretos estão para lá se mudando (não importando se a condição econômica dos· novos moradores éigual à dos antigos). Dessemantização social e ideológi-ca: os negros, através de um lento processo, conseguemreunir as condições econômicas para uma mudança par azonas outrora valorizadas, e quando o f azem os antigosha bitantes desapar ecem. Seria possível dizer: neste casohá su prassemantização para uns (os negr os) e desse-mantização para os outros. O que no entanto não cor-responde à inteir a verdade porque muitas dessas novas

tudo clar amente exposto e corroborado por descriçõesminuciosas da or ganização do espaço, da localização,dos materiais em pr egados e da parafernália de gadgetsq ue se tor nar am a par entemente imprescindíveis à vidamodema -- e que num edif ício francês r ecentementeinaugur ado num hamea u exclusivo do exclusivíssimo 16eme. ar r ondissem ent parisiense vai desde um mecanismoque trava e destr ava automaticamente as entradas doapartamento até um sofisticado sistema de iluminação do parque do pr édio, que acende suas luzes com uma ~nten-sidade gradativa correspondente à diminuição da luz na··tural de tal forma que não se sente o cair da noite nemse é "chocado" com a " brutal" irrupção instantânea daluz elétrica! 13 Os exem plos dessa operação de supras-semantização do espaço (ou de conotatividade sucessi-va) não são poucos e não se restr ingem às "casas" par -ticular es: estendem-se às ruas (Fif th Ave., New York ;Via Veneto, R oma; Rue du Faubourg Saint-Honor é,Paris), às praças, a cidades inteir as e ilhas e países (vi-sando especialmente o turismo: Saint Tropez, Majorca,os "trópicos" - assim indeterminado é ainda mais sig-nificativo - ou o "Oriente").

É ó bvio, por outro lado, que a supr assemantização

de um es paço iniciada por um discurso so br e esse espaço pode ser eventualmente acompanhada por um compor -tamento prático no mesmo sentido. É possível inclusiveque todo o processo se inicie originalmente ao nível da prática de um espaço, por exemplo, quando determinadaclasse social passa a abandonar certos bair ros e ins-talar-se num outro, que é a seguir suprassemantizado

por um discur so sobr e ele. Seja como for, a operaçãoque efetivamente ancor a essas duas semantizações e a

põem em f uncionamento ef etivo parece ser sempre arealizada por um discur so sobre o espaço.E assim como um espaço é semantizado e superse-mantizado, pode ser dessemantizado. Na prática efetivado es paço ou no discur so sobre ele? Tal como no caso

comunidades ressentem o processo efetivamente comode dessemantização (a valorização daq uele espaço emq ue eles também inicialmente acr editaram não pode dei-xar de levar à constatação da desvalor ização que os br ancos impõem agora, r azão pela q ual muitos radicaisnegros aca bam por suger ir não só a cr iação de zonas es-pecificamente negras desde o início como a própria se··

ficação, é a bsolutamente certo: esta é uma realidade praticamente inelutável. Mas a afirmação de que a ci-dade tem elementos neutr os que devem ser entendidoscomo elementos de significado vazio, car entes de signifi-cado, configura uma pr oposição não só de todo discutí-vel como, parece, de todo impossível (e a força desteargumento deveria fazer mesmocom que a discutibili

Page 62: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 62/90

pecificamente negr as desde o início como a própria se paração completa entre as raças). De igual modo, ainvasão de uma zona pela indústr ia, pelo comércio ou por um aumento da circulação viár ia pode dar or igema um pr ocesso de dessemantização q ue pode de inícionão ser es pecificamente e intencionalmente promovido- mas dificilmente deixará de estar ligado a uma an-ter ior ou simultânea valor ização de outr os espaços.

Surge aqui uma questão interessante: se o pr ocessode semantização e de suprassemantização de um espaço parece indeterminado e am plo, sendo sempre possívelacrescentar um novo signif icado a um certo espaço detal modo q ue não se pode legitimamente prever seu

ponto culminante, o processo de dessemantização temum ponto máximo possível além do qual não pode pr os-seguir e que é o ponto onde esse espaço perde todo sig-nificado, sentido ou significação, propondo-se como umes paço vazio, não-signif icante. Uma situação possível- é, porém, provável e real?

Numa conferência publicada pela r evista italianaOp . c it o n. 10, Roland Barthes sugere que a cidade não'é composta por elementos iguais mas por elementosfor tes e elementos neutros, isto é, elementos sígnicos eelementos não-sígnicos. E que se atribui uma impor tân-cia cada vez maior ao significado vazio, ao lugar carentede significado - dizendo de passagem que o centr odas cidades atuais é uma espécie de núcleos não-dur os,de "foco" vazio da imagem q ue a coletividade faz docentro e que é necessária para a or ganização do resto dacidade 14.

Que a cidade (como toda manipulação do espaço)tem elementos com variado valor de significado e signi-

14. Do que l ança m ão Zevl, em seu Linguaggio m o d e rnodell' ar c h ite ttura par a con cluir apres sad amente que os eleme ntosnão-signlcos são aqu eles que d ef inem a atividad e arqultet ural, Istoé, os elementos vazios que ele id entif ica alucln antem ente com oes paço, num a conc e pção a bsurda a mos trar que ele na v erd ad eignora tota lmente o signif icado e a signif icação re al d e espaço . Anoção d e es paço como ausência, com o buraco, ausê ncia d e con str u-ção, não pode ser própri a à mente d o teórico da a r quit etur a; insis-te-s e, esp aço é não ap enas o não -construido c omo igualment e oconstruid o.

argumento dever ia fazer mesmo com que a discutibili-dade da proposição não fosse sequer mencionada). Estacolocação é fruto sem dúvida de uma mente habituada àanálise lingüística, como a de Barthes, e acostumada atentar analisar todo aspecto da atividade humana a partir do modelo lingüístico r igor osamente entendido.Se na linguagem propr iamente dita é possível constatar a presença de elementos "for tes" e de elementos "neu-tros" (no caso destes: d e, por, e , etc., além de cada umdos fonemas a, b , c, d ... x, v, z) não existe na lingua-gem ar quitetural nenhum elemento q ue se possa dizer assemelhado a esses seja so b q ue as pecto f or . O dis-cur so ar quitetural não é um discurso meramente f ormal

(ou mer amente artístico), o q ue significa que está vio-lentamente carr egado com uma pesada trama de signif i-cados vividos q ue torna praticamente impossível a cons-tatação de um elemento seq uer que seja "vazio". Vazio para quem, afinal? Partículas como de, por, e, são neu-tr as para todos os manipuladores desse código - mao código da arq uitetura está longe de se apr esentar comuuma entidade entendida, recebida e praticada por todosda mesma for ma. Em segundo lugar , o caráter de vividoé enormemente mais acentuado em códigos como o daarq uitetur a do q ue possivelmente em q ualquer outro quese possa imaginar, e ao nível do vivido na cidade serásempr e possível encontrar não só indivíduos como gr u- pos a atri buir signif icados a eleIP~ntos do tecido ur banoq ue apar ecem para outr os como destituídos de q ualq uer significado ou sentido (outr os gr upos de outras partesda cidade, turistas, grupos de ger ações dif erentes, etc.). Não é possível su por assim sob que as pecto se possadeclarar um elemento urbano como vazio ou neutr o:esta proposição par ece, ela sim, vazia. O que se podedizer é que esses elementos, eventualmente e no máximo,se poderiam declarar como dessemantizados (e aindaassim relativamente dessemantizados, isto é, desseman-tizados em r elação a algum significado mas não emr elação a outro) ou, melhor ainda, em processo de desse-mantização. Mas não inteiramente dessemantizados: os

lugares q ue assim se apresentam, nJieconomia q ue rege avida das comunas de hoje, são simplesmente eliminadosdo tecido arq uitetural para dar lugar a outros f or temen-te semantizados. E excluída a hipótese de q ue es paçovazio é elemento vazio, sem significado ( pois não existetal coisa: o es paço é construído ou não, e se não o éele significa por oposição direta ao construído a sua

poder religioso, mesmo ainda se mantendo fisicamentena pr aça, vem sendo acentuadamente desertado pelo povo, de tal forma que os atos por ele praticados nãoconfiguram mais, nem de longe, os antigos "aconteci-mentos". Tampouco existe mais a "vida social pú blica":as f estas tornam-se r aras ou são levadas par a os recintosfechados assim comoé nestes que acontecem os teatros

Page 63: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 63/90

ele significa por oposição direta ao constr uído a suavolta, especialmente na cidade - mas sempre há "al-guma coisa" "em cima" deie, numa linguagem grosseir a,e por tanto nunca é vazio) não há pois como considerar a existência de espaços neutros na cidade.

So b esse aspecto, quando Barthes fala que o centrodas cidades atuais é "vazio", ele não se distancia muitoda ver dade mas acaba por deixar escapá-Ia por f alta justamente de um modelo como o aqui proposto ( pr áti-ca física do es paço e pr ática do imaginário - e não pr ática imaginária - do espaço). Para poder ser rece- bida, sua pro posição deve ser encarada apenas metafori-camente.

A solução pode ser indicada atr avés de uma inda-gação não sobre o q ue é o centro da cidade mas so breo q ue era o centro das cidades. Esse centr o er a funda-mentalmente o lugar do poder político, do poder eco-nômico e do poder es piritual. Isto significava a presençaf ísica da administração (os edifícios " públicos": a pre-f eitura, o tribunal, a escola) a pr esença f ísica da riqueza(o comércio e suas lojas) e a presença do templo. Erao lugar de onde emanava não só a vida, a animação dacidade (pois ao redor da igre ja e na praça se desenro-lavam atividades f undamentais como o teatro, o car na-val, as execuções dos condenados - que Foucaultmostra serem verdadeir as festas 15) como, e especial-mente, a ordem, justa ou injusta, que mantinha a cida-de. Uma vida e uma or dem visíveis.

Como estão esses centr os atualmente, especialmentenas grandes cidades modernas? Não é muito exageradodizer que, em muitos lugares, foram pr aticamente deser-tados por todos os tr ês poderes, os tr ês f ocos. O poder político se afastou, ou tende a af astar-se do centro (coma subdivisão de suas f unções) e mesmo a quase se retir ar para fora da cidade, em alguns casos. O comércio, par -ticularmente o "grande" comér cio, aquele com foros de"nobreza", este se afasta decididamente do centro. E o

fechados, assim como é nestes que acontecem os teatros,cinemas, etc. Sob esse ângulo, o centro da cidade seesvaziou um pouco. Mas - e este é o ponto f undamen-

tal - para os moradores da cidade continua a haver um centr o que, mal ou bem, sob um as pecto ou outro(histórico, sentimental) ainda é sentido (vivido) comofoco or ganizador e instaur ador da cidade. Há um cen-tro, as pessoas se or ientam em relação a ele e o recebemcom~ ~centuadam~nte signif icativo apesar de todas as pOSS}VeIs.degrada~oes que possa ter ex perimentado. Eele e aSSlIllpercebIdo não só pelos mor ador es da cidadecomo pelos "de fora", turistas ou não. Todas as cidadesmodernas ou antigas, ostentam em suas entr adas r odo~

viár ias imensos e sempre renovados cartazes com a ins-crição CE NTRO que leva o estranho, placa por placa,cruzamento por cruzamento, ao lugar desejado, ao lugar que ele tem de ir, q uer se ja dia da semana ou um feria-do ou domingo onde o centro está "fechado" e mor to.f: fundamental que ele vá até o centro tal como o. . ,VIajante de um transatlântico q uer visitar as máq uinas- onde? - no "centr o" do navio. Se ele não vir essecentro, do navio e da cidade, sente-se COmose não ostivesse de fato conhecido, ao navio e à cidade, recebidos

como ~Igo que se lhes escapou. Mesmo que a pós o re-conhecImento dessa localização específica se ja possívelouvir declarações de desa pontamento: "Mas é isso ocentro?"

E tanto a ânsia pelo centro como o desencantoeventual diante de sua visão demostram claramenteuma coisa: por mais esvaziado que possa estar no plano físico, f uncional efetivo, continua a subsistir inteir amente na prática do imaginár io das pessoas,COm q uase a mesma çarga signifcativa de antes. Eé necessár io reconhecer: em bora ha ja cidades onde ocentro é literalmente a bandonado nos dias fer iados ,numa indicação clar a de que fora de sua eventualfuncionalidade e de algum eventual valor histór ico elenão re pr esenta realmente muita coisa para os habi-tantes em termos de vivência humana (como São

Paulo, New Yor k) há mais de um caso, bem mais,onde o centr o da cidade 'Continua a ser pólo agIuti-nadar e vivo do tecido urbano. Em Paris (onde aliásBarthes tem uma de suas duas residências: ele deve-ria portanto sentir esse estado de coisas), o marcozero da cidade é Notre-Dame.' Ora, a q ue momentodo dia de q alq er dia esse lgar e a área i inha

das, ou a zona do Mulino Stucky ou a dos ex-Can-tieri N avali, só utilizadas para ocasionais eventos cul-turais) não chegam nem por um momento a se tr ans-formar em elementos não-significantes.

É possível af irmar que no discurso do espaçonão há lugar para o carente de significado; a semiose

Page 64: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 64/90

do dia, de qualquer dia, esse lugar e a área ,vizinha,se vê vazia, vazia de f uncionalidade, de vivência, deum significado qualquer? Quando ela "morre"? Ou,

para os q ue colocam o centro de Paris nos Champs-Elysés: é vazia essa zona, neutra? Se for a zona daOpera: neutra, não-significante? Obviamente não.

O q ue se vê assim é que o centro da cidade podeter -se diluído às vezes, pode ter sido desmembrado- mas não se neutralizou, não se "esvaziou". Pr oces-sos de dessemantização por certo ocor reram e ocor -r em: a dessemantização funcional, por exemplo, équase sem pr e evidente. Pode igualmente ter sofrido

alguma dessemantização, em alguns lugar es particu-lar es, na prática de seu imaginário. É mesmo possívelconceder que a imagem que a coletividade se faz docentro, como quer Barthes, tenha sido assim um pou-co esvaziada. Mas o centr o não é, nem de longe, olugar do vazio, um lugar não-significante. Não é pos-sível considerar assim a existência de espaços desse-mantizados em grau absoluto, e muito menos propor q ue tais espaços sejam ne::essários para a or ganiza-ção da cidade. O tecido urbano só contém elementos

fortes, elementos menos ou mais f or tes, se se quiser ,mas nada além disso; o espaço neutro, q uando che-ga a existir , é imediatamente morto pela cidade esubstituído (mal ou bem, por razões de es peculaçãoeconômica ou não) por outr o. A af irmação de quea cidade é feita por elementos fortes e vazios seriaequivalente a uma que dissesse. a mesma coisa docor po humano: tem nosso corpo um centro vazionecessário par a a or ganização do resto? A imagemé r idícula. Não há nele elementos não-sígúicus (n on

segnat i) , todos são elementos fortes: alguns ser ãomais fortes (os pulmões), outros menos (as unhas)·mas o neutro nele não tem lugar . Idêntica argumen-tação vale para a cidade. Mesmo num& cidade comoVeneza alguns es paços que passam a maior parte dotempo deser tos e inúteis (como igrejas a bandona-

não há lugar para o carente de significado; a semiose~esse texto, o processo de formação da significação,e um processo aberto e q ue se desenvolve numa úni-ca dire.ção, na direção do significativo: um espaço ésemantIzado, pode ser su prassemantizado eventual-mente e pode degenerar num processo de desseman-tização - o qual no entanto nunca atinge a quotazer o - como numa assÍntota. Quando isso acon-t~ce, esse es paço é retirado do tecido ar q uitetur al,nao permanece nele como elemento neutro; para que per maneça enq uanto vazio, é necessário que a cida-~e mor ra co~ ~l~ -:- e no entanto mesmo Pom péiae toda ela sIgmf lcatIva: funcionalmente, esvaziou-semas a pr ática significativa do imaginário só mor r~com o interpretante do diSo::ursoarquitetur al, o ho-mem.

Page 65: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 65/90

II. o DISCURSO ESTf:TICO DAARQUITETURA

Em princípio se diria que esses dois termossão absolutamente incompatíveis um com o outro: sese tr ata de um discurso, não é estético, e se é esté-tico, não é discur so. Uma certa tradição ainda quer que o domínio do estético seja o do emocional e odo sensorial. De fato, o "choque" q ue sinto ao pe-netrar em Santa Sofia é uma experiência de início pun~mente ao nível dos sentidos e da emoção: está-tico, aq uele espaço no entanto me transporta e a pe-r ambulação vagabunda por aquele lugar, sem nenhumob jetivo "científico" de cOJlhecer as coisas e regis-trá-Ias na câmera ou no caderno, é fundamentalmente

uma viagem ao prazer indizível. Mesmo depois, sain-do de lá, o pensamento r acional não encontra commuita facilidade (ou com facilidade nenhuma) as r a-zões daq uelas sensações, o motivo de eu ter per ce bi-do de imediato (ao menos para minha par ticular ex- per iência) que Santa Sofia era realmente não só únicacomo se impunha sobre todasas outras construções do

belo em ar q uitetur a, per f azem um código rígido ou,no máximo, vários códigos rígidos que se manifestamtotalmente formalizados desde as descrições de Vitrú-via até os dias de hoje, passando por todos os varia-dos movimentos e e!>colas. E são tão f ormalizadosq ue não é difícil atribuir à arquitetura a etiqueta daarte mais conservadora e mesmo mais retrógrada e

Page 66: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 66/90

como se impunha sobre todas as outras constr uções dogêner o existentes no Ocidente. Tudo isto é correto eocorre a todo momento diante de um quadro, de um

f ilme: a r ecepção das formas de arte dis pensa a inte-lecção racional e é mesmo grande a tentação de de-clar ar q ue o juízo é mesmo prejudicial à per cepçãoestética. Mas - e embora não caiba aq ui discutir ex-tensamente ou demonstrar a validade deste ponto - arecepção r acional da o bra de arte não só é possívele existe como será mesmo f undamental par a a plena percepção dessa obr a, intervindo num segundo mo-mento após os sentidos ter em sido saciados. E estaabordagem r acional cabe e é necessária mesmo por-que é ela um instrumento fundamental do artista: o pintor renascentista joga de maneir a particular coma per s pectiva, proposição r acional que deve ser racio-nalmente colocada e resolvida so b pena de pereci-mento da obra. O impressionista parte de uma pro- posição de todo r acional so br e a com posição da luze da cor . Por outr o lado, q uantas proposições estéti-cas existem que são mais r acionais que a do cubismo?Ou que a do concretismo de Mondr ian? Seria talvez possível discutir, e longamente, sobre a irr acionalida-de de Pollock , mas s e ele par te de uma proposiçãodar a (fazer arte) e se domina com toda evidênciauma determinada t écnica, não cabe propor uma irra-cionalidade a bsoluta par a sua produção. Existe as-sim de f ato um discurso da obra de arte, existemmesmo vários discursos estéticos, entendendo-se odiscurso como um enunciado (e uma enunciação) or-ganizado de acordo com normas claramente fixadase manipuladas tanto quanto possível conscientemente.

E sob esse aspecto, quando se fala da arquite-tura a ex pressão "discurso estético" é ainda maiscabível do que nas outras artes uma vez q ue essediscurso é muito mais rígido, formal e r acional doque o da pintura, escultura, etc. As normas de comofazer arquitetura e, especialmente, de como fazer o

arte mais conservadora e mesmo mais retrógrada ereacionári~ (no sentido es pecífico daquilo que se opõea uma açao) dentre todas as outr as. Sem muito exa-

gero, seria mesmo possível dizer que no chamadomundo ocidental europeu a ar quitetura não mudouna~a desd~ as matrizes gregas. Zevi, por exemplo, nãohe~lta mUlto em dizer que quase toda a arquitetur aOCidental. depois do século XVI é uma arquiteturar enascentIsta - e, sendo justo, não é exagero algumdefender tal proposição.

Em parte, é corr eto atribuir essa rigidez do dis-cur so ar quitetur al a um as pecto q ue deve estar ne-c~ssari.amente presente na ar quitetur a e que é a f un -c:onalLdad e. ~or outro lado, é ó bvio que essa ques-tao oper a mais cama des-culpa para o imobilismo dodiscurso estético, e uma desculpa que não é tanto fru-to da culpa exclusiva, da incompetência ou da faltade criatividade dos arquitetos como da vontade defacilitar a construção, diminuindo-se os custos e au-~entando-se os lucros. Se ja como f or , é fácil apontar (Justamente por sua forte formalização) os eixos emtorno dos quais tem-se organizado o discurso esté-tico ar q uitetural: ritmo , harmon ia , medida, compos i-ção. ~ão há a~q uiteto. ou teór ico da arquitetur a queconscl.ente ou mconSClentemente deixe de or ganizar seu discurso em torno desses eixos e os reconheçacomo absolutamente "naturais" à ar quitetura. Masmuito poucos são os que, r econhecendo e defendendoesses eixos, reconhecem neles a pr ópria definição daRenascença. Que é Renascença? É ritmo. Ou harmo-nia. E har monia. E/ou medida. E/ou composição.

Quer dizer então q ue a R enascença é o mal ab-

sol to, o inimigo a com bater e destr uir, o pecado ori-ginal do qual a arquitetur a moderna tem de livrar -sea todo custo? Essa tese, defendida mais ou menoscom as mesmas palavras por muito arquiteto "revo-lucionário", está evidentemente mal colocada. Umaher ança cultural não só não se renega impunemente

como simplesmente não pode .ser r enegada, pon!o fi-nal. A questão está em. identif~car uma d~t~rnl1nada prática com uma determmada epoca, localIza-Ias, sa- ber qual a relação que se estabeleceu entre ambas eindagar se tal modelo de prática é válido p~ra outraépoca ou não. É necessário ressaltar que nao se tra-ta nem mesmo de defender a Renascença (ou qual-

A análise se voltará assim para esses elementosfundamentais do discurso estético da ar quitetura a fimde detectar as armadilhas que estendem à prática ar-quitetural e as brechas que se pode pr oduzir na ideo-logia de que se revestem, com a possibilidade ulterior dl', pro por , também par a o discurso estético da arqui-tetura, alguns eixos de oposições passíveis de orien-

Page 67: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 67/90

ç ( qquer outro período ou movimento) como manifesta-ção adequada a sua época, e tampouco. de propor .a

necessidade de modificações pela necessIdade de on-ginalidade: é preciso ter sempre em mente que a bu~-ca desesperada do nOvo está longe ~e ser u~~ J?atnzimperiosa, absoluta e constante, se ja na histona domundo ocidental, se ja n a história de todos os povos.Se é verdade que na China, por exemplo, se deu valor àqueles pintores que de alguma for ma r omper am comdeterminados modos de ex pressão, propondo "estilos"novos, não é menos ver dade que se atribuía idênticovalor (e às vezes mesmo maior valor) àquele que era"simplesmente" capaz de pintar tão bem quanto pi~-tavam todos os demais. O valor de uma obra naoestava n a personalidade (no personalismo) e menosainda na originalidade: residia na capacidade de enun-ciar uma certa mensagem. Se esta era bem dita pou-co importava que o modo, a maneira de fazê-Io fos-se idêntica à de tantos outros. ~smo nas ~ocieda@socidentais a febre da originalidade só VaI atacar ohomem bem recentemente, a partir do século XVIII

- e, a rigor, no começo do século XX: o Tinto!-"ettod.a--Escola de S. Rocco em Veneza não faz mUlto maisque se colocar nos moldes de Michelângelo, e muito pintor romântico ou barr~o. é igual ~ tantos o~tros pintores bar r ocos ou romantlcOs. Se~a? n :aus pmto-res apenas por essa razão? Não; a ongmalIdade abso-luta não era para eles um absoluto valor . Na verdade,a originalidade como meta última é freqüenteme.ntetão lamentável quanto a cópia fiel. Trata-se aSSIm, para a ar q uitetura, de ser adeq uada a um momento _enão de renegar por princípio esta ou aquela soluçaohistór ica ou praticar tais soluções ,como norma impe-r ativa se ja de maneir a consciente ou, pior - e é oq ue acontece na arquitetura atual. onde l?revalecemas noções clássicas de ritmo, har moma, medIda e com- posição - de modo inconsciente.

, g p ç ptar essa prática na direção de metas mais adequadasao homem atual e sua prática arq uitetônica.

II . 2 . O ritmo

Que se pode entender por ritmo? Um conceito primeiro de r itmo, bastante difundido, é aquele que oidentifica com a noção de or dem 1. Or dem como? ATeor ia da Informação propõe q u e a noção de ritmodeva ser entendida como baseada na r epetição de ummesmo. elemento a iguais inter valos de tempo, e ésob esse aspecto que ele é entendido e praticado em

arquitetura. Com que finalidade se procede a tal re- petição, além de pôr uma ordem no objeto de traba-lho? (Ou: que tipo de ordem se pretende obter comessa r epetição?) Com a finalidade de pôr em pr á-tica ,tr ês pr incípios muito caros ao pensamento renas-centista (do qual, aliás, a própria definição de r itmo

já é clar o indício): princípio do eq uilíbrio, princípioda continuidade e pr iooí pio da passagem do todo

par a as partes. Com q ue ef eito prático para o recep-tor da obra? P. A. Michelis faz, a r espeito, uma colo-

cação exemplar sem, no entanto, perceber o alcancee a verdadeira significação dela:O ritmo permite-nos ad ivinhar q ue vai seguir-se um gol pe

rítmico ou ur na certa sér ie de gol pes, assim corno mais oumenos o ef eito segue a causa. Antes por tanto q ue o golpese produza nós já o esperamos, e quando ele acontece segue-seem nós urna sensação muito rá pida de satisfação.

O que leva Spencer a referir-se ao ritmo comosc.1do a "economia da atenção".

Como se pode ler essas concepções tradicionaise qual a r eorientação que se pode dar à prática arqui-tetural a partir delas?

1. Ver P. A. MIC HELIS , L'esthétique de l'a TchitectuTe. Paris ,197 4,p . 71. Par a Ml chells, trata-se Inclusive de descobrir a . "ordemexistente objetivamente" numa coisa. Ora, não existe uma ordemob jetiva , como se procu r ou demonstrar na . discussão sobre o pensa-men to clentiflco e o id eológico.

Antes de mais nada, está· clar o que essa con-cepção instauradora do r itmo nada mais é ,d? q ~~a definição do mód ulo. Módulo, conceito maglco Jana Renascença e ainda hoje; a gr ande preocupação doarquiteto atualmente de fato parece ser a de encon-trar o módulo, a partir do qual todos seus problemas

Page 68: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 68/90

, p q p par ecem se revolver como por encanto 2. O que sefaz com um módulo? Repete-se-o. Na Renascença

determinava-se um módulo, por exem plo, para uma janela de um palácio: a fachada seria a repetição detantos e q uantos desse módulo. Ou determinava-seque o módulo a ser repr oduzido infinitamente é ocomposto por uma janela e uma porta, ou janela esacada; e a própria porta é modulada, pois seria com- posta de tantas ou quantas "almofadas" deste ou da-quele tipo 3 . Que se faz hoje num edifício moderno,num "espigão", numa "tor re"? Encontrado o módulo(normalmente a janela), o edif ício está em pé4. E o

pensamento modular está de tal maneir a arraigado no pensamento do es paço que parece im possível pensar de outra maneira. E àqueles que se opõem à práticamodular costuma-se lembrar q ue toda a ar q uitetur asempre foi modular, desde a Gr écia e passando-se pelo românico, barroco, etc. Se a ausência do mó-dulo é realmente a exceção, não é menos certo que aseventuais arquiteturas não-modular es, quando se apre-sentam, deslumbram o homem pelas suas possibilida-des: o Mummers Theater de J. Johansen 5, compos-to por "caixas" não re petitivas q ue se combinam; a própria Torre Einstein 6, de Mendelsohn, ou ainda acasa que Le Corbusier fez par a Ozanfant em Paris 7.

Contudo, todos os exemplos de "não-modulismo" quese possa encontrar realmente f icam soterr ados dianteda prolif eração esmagadora do pensamento modular (a tal ponto que hoje não moramos mais em casasou apartamentos mas sim em módulos) - mas a sim- ples pr ática histórica não é ar gumento válido' par a jus-

tif icar uma proposição.2. Neces sá rio r essaltar , de r esto, que o pensamento modul ar se

es palha hoje por toda s as á r eas da aLlv ldade r ef lexiva e pr ática dohom em, des d e o de sign - com seu s móve is mod ulados - at é a pr ática se mi ológic a, basea d a na Id entlf icaçáo das unida d es mlnl mase na cons tância d e sua r e petição.

3. Ilustmçã o n.O 4.4. Ilustração n ." 5.5. Ilust r ação n. o 6.6. Ilustraçã o n.o 7.7. I lustra ção n. o 3.

Ilust r aç ão ,,9 . 4: ~xeJ? plo de constr ução modulada na Re-~ascença. A Jlustr açao e um cr oquis do Palazzo Pitti de FiI-hppo. ~r un~lIeschi (1440), em Florença. O pr o jeto bas~ia-se naf repetIçao !Jtmada de alguns poucos elementos (módulos): umaorma de Janela, uma forma de arco.

Page 69: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 69/90

Ilustraç ã o nç> 5: Cr oquis do Anexo da Biblioteca Nacional,de H. Roux-S pitz. Normalmente apresentado como projetoJípico da r eação moder na à arquitetura dos excessos (a q uemistura, na fachada, corbelhas de flor es de gesso com colunasdór icas, etc.), o tr a balho de Roux-Spitz é bom exemplo naver dade da construção modulada da atualidade, baseada nosmesmos moldes dos da arquitetura renascentista: obediênciaaos ditames c1ássimos da harmonia, composição e ritmo, obti-dos através da r epetição de um módulo.

I lusJ raç iio 11~ 6: Nummer s Theater , de John Johansen, emOklah~ma Clty (1971). R:clIsa da arquitetur a do módu)o, dar e pellç<lO do Igual. Tam bem chamada de actioll-ar chite clur eesta arq uit:~ur a é bom exem plo do pr ocesso de listagem (elen:C?) e r eUl1lHO(assemblage) de pedaços, circuitos e f or mas va-nadas.

Por que ser contr a o módulo, contra o ritmo?Por q ue ele cria no homem a neur ose da certeza e datr anq üilidade, de que o homem tanto necessita e q ueao mesmo tempo aniq uila toda sua vida intelectual,de início, e p osteriormente toda sua vida, em todosos sentidos. Como pode ser isso? Voltemos à concep-ção intuitiva de Michelis (intuitiva porque não basea-da na Teoria da Informação); o ritmo permiteprever

Page 70: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 70/90

da na Teoria da Inf or mação); o r itmo permite prever o que se vai ofer ecer aos olhos, a esta previsão desensação satisfaz. O.r itmo portanto agrada ao homem.Mas a Teoria da Inf or mação mostra q ue a previsibi-lidade é apenas uma das facetas de qualquer ti po decomuniçação, estética ou não. A outr a, necessária, éa imprevisibilidade. E o processo de comunicação sedesenvolve a par~ir de um jogo contínuo com essesdois elementos. E por que a imprevisibilidade é im- pr escindível? Porque se ef etivamente a sensação doconhecido (do previsível) reconfor ta o homem, asse-gur a-o em suas cer tezas não o submetendo ao inédi-to (as cr ianças só tiram prazer de histór ias que já co-nhecem e r eclamam quando se lhes tenta contar umahistória nova: já sabem o que vai acontecer , queremr eceber novamente aq uele mesmo esq uema, já gozam por antecipação o eventual castigo do malvado e a boa for tuna do herói - esse é o esq uema, de resto,das histór ias em q uadrinhos ou das novelas, e a r a-zão mesma de seus sucessos) a par tir de um deter -minado momento o r eceptor f ugírá dessa mensagem porque já a conhece - f ugirá consciente ou incons-cientemente. N o pr imeir o caso, em razão, por exem- plo, do desenvolvimento de suas exigências estéticas;no segundo, em vir tude simplesmente da acumulaçãodaquela mensagem em sua mente , da r epetição a queela esteve su bmetida e q ue a partir de um determi-nado momento "fecha" sua r eceptividade para aque-le ti po de mensagem.

I lustração n9 7: Casa-ate\ie r do pintor Ozenfant em Paris , pr o- jeto por Le Cor busier (1922): au~ê n.cia de mód ulos. r e petidos ,de pr eocupação com as regras cl asslcas da harmo ma e com- posição.

Por esta razão se joga simultaneamente cOm pre-visibilidade e imprevisibilidade: o conhecido é dado para não af asta~ (assustar) o r eceptor desde o i ní-cio, ao mesmo tempo em que se o tempera com odesconhecido par a evita r o af astamento do r eceptor para longe da mensagem 8.

Éduplamente inadequado a6sim continuar a pro- por o r itmo como um dos pilares da estética arqui-

[dur al: primeiro, por se tratar essa noção de umelemento que sobreviveu a um sistema estético nãomais necessariamente em vigor (o sistema renascen-tista); segundo, por ser inadeq uada a constr ução deuma mensagem estética baseada tão f or temente nessanoção de ritmo demódulo de repetição pois a úni-

Uma janela pode ser r edonda, ou ovalada, ou trian-gular, ou r etangular, e nada impede que uma janelaredonda seja colocada ao lado de outra que compõeum retângulo na horizontal (nada a não ser a com- binação estética desses elementos). O canto esq uerdodo andar térreo da construção necessita de uma janelaredonda: que seja redonda. O andar de cima necessitade uma janela q ue permita à luz entrar no aposento

Page 71: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 71/90

noção de ritmo, de módulo, de re petição, pois a úni-ca coisa que se tem nesse caso é uma mensagem sui-

cida, uma mensagem que se constrói a penas para ser posta de lado tão logo com pletada. É isso aliás o q uese tem no cenár io arq uitetural de hoje: uma série denadas que se sobrepõem num magrna indiferençado.

A estética da ar q uitetura não pode, com todaevidência, a bandonar pur a e simplesmente a noção deritmo como alguns (Zevi, entre eles) insistem que sef aça, 'pois r itmo é uma das faces da moeda: se se ti-rar essa face, a moeda não existe mais. Essa estética,no entanto, vai apoiar -se aqui também num eixo deopostos onde o ritmo é contrabalançado por uma no-ção como a de elenco (a outra face), pr oposta pelomesmo Zevi. Que se deve entender por elenco? Pen-se-se na elaboração de uma fachada: o arquiteto re-nascentista (quer tenha vivido no século ~VI ouatualmente) determinará uma forma- padrão de janelae a r e petir á sem alterações em todos os andares dáconstr ução, visando conseguir o "obrigatório" efeitounitário. Se se adotar o procedimento do elenco, otrabalho do arquiteto não apenas será inteiramentedif erente como bem mais árduo (assim como tomarámais complexa a construção efetiva do prédio - masnão necessar iamente mais custosa) porém os resulta-dos estarão não só à altura da época como à alturado homem (o homem deve ser o padrão das coisas, enão as coisas se colocarem como padrão para o ho-mem): lista-se as for mas possíveis e adequadas queas janelas podem eventualmente assumir nas variadas posições que ocuparão no prédio, e a seguir reúne-seessas formas numa espécie de assemblage. Assim, aoinvés de uma sucessão de janelas retangulares que seempilham umas sobre as outras na vertical e que sesucedem monotonamente na horizontal, tem-se umasucessão de formas diferenciadas que, quase literal-mente, movimentam-se pela superfície considerada.

j q p pem toda sua extensão, mas não é necessária uma gran-de vidraça que se estenda de uma parede à outr a: pois então se rasga uma abertura retangular de lado alado. Que conviverá com a a ber tura redonda de bai-xo e com uma outra quadrada que, em cima da se-gunda, está disposta ao final de uma saliência na su- perfície da fachada, saliência q ue permite ao obser va-dor uma visão par a o lado do edif ício (sem ter dede br uçar-se para f ora de uma janela e virar o pesco-ço) 9. Enf im, lista-se, elabora-se o elenco das for masutilizáveis e das f unções exigidas e com binam-se es-ses elementos se jam quais for em. Não se tr ata de pro- por o caos total (a entropia máxima, ou desor ganizaçãomáxima da mensagem, afasta o r eceptor tanto quantoa ordem total - previsibilidade total) pois algumaordem sempr e haver á: sim plesmente não se escolhe aalternativa mais cômoda: a re petição de um módulo(que não apenas cansará o receptor , em ter mos de

percepção de f ormas, como não ser á obviamente ade-quada às variadas necessidades que surgem dentro deuma constr ução).

A técnica do elenco não será a plicada por certoa penas à ela boração da f achada: todo o corp(l Ollconstrução pode ser determinado por esse processo -e nesse caso nem mesmo se falará mais no corpo daconstrução mas sim nos cor pos dessa constr ução). As-sim, ao invés de determinar como módulo de mor a-dia as "caixas de sapato" su per postas monotonamenteem sua retangular idade, determina-se par a este cantoum corpo na forma de um pentágono que se combinacom uma semi-esfera deitada no chão à qual se super - põe uma baixa caixa retangular encimada por sua vez por um cilindrv deitado 10, etc. O procedimento delistagem-combinação é inclusive, como se percebe, um

dos métodos para a obtenção da temporalização does paço: os espaços diferem, o modo de se passar do pr imeiro para o segundo não é o mesmo que se em- prega par a ir do terceiro ao q uar to, etc. Exem plosde procedimento por elenco são, até cer to ponto, oHabitat de Montr eal (1977) e o mesmo MummersTheater de Oklahoma City (1971) 11.

Page 72: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 72/90

Theater de Ok lahoma City (1971) 11.

O primeiro eixo do discurso estético da ar q uite-

tura não deve ser assim, ao lado da harmonia, me-dida e composição, o eixo do ritmo isoladamente con-siderado mas sim o eixo Ritmo X Elenco.

As noções de harmonia, medida e composlçaonão podem ser abordadas isoladamente da noção der itmo da q ual são, na ver dade, um desdobr amento -de fato, a análise começou aqui com a consider ação

do ritmo mas podia per feitamente ter principiado como estudo da harmonia, por exemplo, da qual se dir iaque comanda as· noções de ritmo e composição q uedela derivam, o u então começar pela medida, etc. :todas estão intimamente relacionadas e não se podedizer q ue uma pr e~ede a outra, assim como na ver da-de não se pode dizer, a não ser talvez por razões me-todológicas, que uma difere da outra. Diz-se por exem- plo que o r itmo comanda os momentos de t hesis ears is, isto é, intensidade e relaxamento da atenção.

Mas onde é q ue esses momentos ocor rem de fato anão ser na composição, ou na har monia, ou na me-dida? Como podem ser avaliados se não for atravésdessas outras tr ês noções? Quando Michelis 12 reafir -ma a doutrina segundo a q ual os tr ês pr incípios dor itmo são o pr incípio da continuidade, o princípio da passagem do todo às partes e o princípio do eq Jilí- brio na verdade ele não está dizendo outr a coisa senão que os pr incí pios do ritmo são a harmonia, a com- posição e a medida. Como é que do todo eu passo às

partes a não ser atr avés da composição e da har mo-nia? Por outro lado, "equilí brio" não é "composição",q ue por sua vez não é "har monia"? A continuidadetam bém não se mede pela harmonia, etc.? O própr io

, t?í\\\\\\\\\\\\\\",~ ~

~~~

1 - · . - - -

llus / r ação n{J 8: Exe,m p!o dado por Br uno Zevi par a a ar ui-t~tur a de elenco:. ao mves de re petir um mesmo elemento qre-~~~~e~:~eá~r mm~dtO, (01ar quiteto pes<I,.uisaas necessidadesP de

. proJe ° UZ, ar ) e pro poe as f ormas adequadas:~ n~~:tarslmdaenhtaodas. funlçõ~s. r equeridas, sem manter-se preso

rmoma c aSSlclsta.

Michelis, pagmas adiante, acaba dizendo, sem se dar conta talvez, que harmonia é simetria, que por suavez é a exter iorização de um equilíbrio 13. Diz tam- bém que através dos princípios da "classificação" eda "subordinação" se estabelecem a!>relações entre otodo e as partes e entre as próprias partes de modoa predominar a "unidade n a diversidade" que ddine,

Page 73: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 73/90

Ilustração n'l 9: Exemeplo ainda de B. Z~vi, agor a. referente ao processo de elenco dos volumes: .não mais o empl1h~mento decaixas geométr icas f ormando aqUIlo ~ue se co~venclOnou cha-mar de "apar tamento", mas sim a hvre pesq ~1Sa ~e. volumesque se combinam em o posição às r egras do classlclsmo mo-der no".

a predominar a unidade n a diversidade q ue ddine,enfim, a harmonia 14.

Não há, portanto, e realmente, nenhuma razão par a se falar do ritmo, da harmonia, da composiçãoe da medida como se fossem coisas independentes:estão tão intimamente associados que na verdade nãose pode identif icar com efetividade aquilo que é umou outro desses elementos. Essa estrita associação(exigida aliás pela moldura maior em que se encaixao tipo de est~tica que se def ine por esses quatro ele-mentos, moldura essa que é novamente a do pensa-mento renas;::entista) só pode ser cindida por razõesmetodológicas mas, mesmo assim, essa divisão nãodeve assumir a forma de quatro entidades singula-res como normalmente se propõe (ritmo isoladamen-te, harmonia isoladamente, composição isoladamente,medida isoladamente) mas sim, se se pr ef er ir manter a distinção, a forma de eixos bi polares. Mas antesde pr opor um eixo de l) poStos referente à har monia,ve jamos como a estética tradicional da arq uiteturaa entende.

A noção fundamental que a estética tradicional pr o põe para harmonia· é a de simetria: disposição deelementos idênticos (em, forma e número) em ambosos lados cr iad(lS de uma su perfície separados por umeixo imaginár io. Esse é o conceito mais elementar quese tem de harmonia ou, se preferir, esse é o conceitoda harmonia elementar . Não se pense que esta no-ção (ao mesmo tempo válida par a a de eq uilíbr io) por ser elementar não é muito utilizada ou é umanoção constante e intensamente praticada ao longo

quitetos ou pintor es menos significativos. Não: é umanoção constante e intensamente praticada ao longode toda a história da arte e da arquitetur a. Um nú-mero considerável de telas (senão todas) da Baixa

13. Id em, p. 96.14. Idem, p. 98 .

Renascença pode ser dividida ao meio no sentido ver-tical por um eixo imaginár io, e se constata q ue se dolado direito existem 20 figuras humanas, do lado es-querdo haver á um número equivalente; se essas f igu-r as for mam uma seção onde predomina a cor azul,no outr o lado, cOmo se se tr atasse de um espelho, severá idêntico grupo azul; se as pessoas do lado direi-

Há, neste juízo- padrão, dois grandes momentos~e er ro que com põem a teor ia da mistif icação esté-tica q~e vem se !mpondo à humanidade de geração emgeraçao a par tIr ?a .R enascença (se não a partir dos ~r egos) .. 0 pnmelro momento é aquele em q uese. af trma se mscrever em as obr as em formas geomé-tncas; o segundo que essa inscrição se faz segundo

Page 74: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 74/90

verá idêntico grupo azul; se as pessoas do lado direito estão dis postas segundo a forma de um semi-cír-culo, a mesma conf iguração se constatará do outrolado. Esta harmonia, isto é, este equilí brio baseadona idéia de repetição é apenas, como se pode ver cla-ramente, um outr o aspecto da noção de ritmo e demódulo, no q ual o ritmo se baseia, e contr a ela se pode levantar as mesmas objeções já f eitas com rela-ção ao ritmo: pr evisibilidade, monotonia, etc. A elase poderia opor o pólo da dissonância, da assimetr ia, justificando-se cOm os mesmos argumentos já utiliza-dos quando se falou no eixo geométr ico/I:ão-geomé-

trico.Mas há uma outra maneir a segundo a qual a es-tética tradicional julga se uma pr o posição é harmôni-ca ou não. Embora reconhecendo a existência de ele-mentos sub jetivos pa avaliação de algo como harmô-nico ou não - elementos nunca suficientemente de-ter minados, e confundidos com o princí pio da simpa-tia ou empatia estética (sentir com ; fazer um com oo bjeto) formulado pela Einf ühlungstheor ie, essa es-tética acaba por matematizar esse juízo do harmôni-

co, esta belecendo fór mulas par a sua ver ificação queacabam por afundar as possibilidades de uma sub- jetividade estética so b o manto dour ado (mas f also)de uma chamada ob jetividade harmônica.

Como se for mula essa outr a maneira de julgar har mônica uma pr oposição, em que se baseia essa ptetensa o bjetividade harmônica? Volta-se novamentea Michelis, re pr esentante-tipo dessa estética (aliás, aúnica normalmente pr o pagada) :Se estudarmus agor a as obras de ar quitetur a n:CO, IIlCCIO ,,'

(como harmônicas, .:umo grandes obr as) veremos que elas seinscr evem geralmente em f or mas geométr icas cujos lados man-têm entr e si a relação 1 : ou 2 : 3 ... (e) as mais f amosasapr esentam a relação do número de ouro, a pr oximadamente3 : 515.

tncas; o segundo, que essa inscrição se f az segundoas norm~s A do. númer o de our o. Isto signif ica conside-

r ar a eXlstencla de uma idéia- padr ão inata e impressa~a me?te do hOmem segundo a qual as formas esté-ticas (I. e., as formas "boas") são, primeir o, aq uelasque se reduzem aos elementos da geometria e, segun-do, não a qualquer tipo de elemento mas a elementosqu~ se ordenam segundo uma proporção es pecífica _ delx~ndo de ~ec?nhecer q ue essa med ida (uma certamedIda geo~~tnca) surgiu a penas num segundo mo-mento da atIVIdade do homem - não sendo inata ou primordial. - e se im pôs apenas por uma q uestão

de educaçao do gosto, isto é, de hábito, de con-for -mação, de moldagem das pr ef er ências. Dever -se-ia di-zer , ?a verdade, que a par tir de um dado período (Re-na~c~mento) o homem passou a julgar estéticas (har-mom::as) as formas q ue se apresentassem desse deter-minado modo, e que esse modo de julgar é apenasum modo, resultante de uma maneira de pensar. E, por tanto, q ue há outras maneiras, de outras épocas,de outr os lugares. Mas não: apresenta-se essa medidacomo se ela f osse universal, e eter na: harmônico é

tudo aq uilo que está na pr o porção áur ea - sem selevar em consider ação q ue ela foi apenas a conso-lidação de uma certa maneira de gostar num determi-nad~ mo~ento. Ainda que esse modo de ~entir pre-domIne hOJe, por uma questão de herança cultural, detransmissão de um modo de encar ar as formas, issonatur almente não significa q ue se deve consider ar co-mo harmônicas essas e somente essas formas. Muitossucumbiram a essa ingenuidade, no entanto; Fechner 16

por exemplo tentou pôr em pr ática uma maneira de ex-

p~r imentalmente deter minar o gosto estético predo-mmante sem partir, julgava ele, de nenhuma teoriza-ção. pr évia. E através de uma sér ie de testes práticosaphcados aos entrevistados, chegou à conclusão de

que realmente se devia r atificar a estética do númerode ouro, pois não apenas as' pessoas demonstravamgostar das formas geométricas como preferiam, acimade todas, uma determinada forma geométrica, a doretângulo, e um tipo de retângulo, justamente aquelecujos lados mantinham entre si a r elação do númerode ouro. a "peq ueno" detalhe de q ue Fechner , ina-creditavelmente não se deu conta era que a humani

Page 75: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 75/90

creditavelmente, não se deu conta er a q ue a humani-dade, no momento de suas experiências, estava há 300

anos (pelo menos) sob o império de uma lei estéti-ca, consagrada no Quinhentismo, que justamente man-dava gostar de formas geométricas desta ou daquelamaneir a f ormadas, e que nesse caso suas entrevistasnada mais faziam que recolher aquilo inculcado por todo um sistema de educação na mente das pessoas.Dizia q ue sua estética era a estética " por baixo", emo posição ao que chamava de estética "do alto", aemanada da teor ização dos ar tistas: não sa bia q ue asua er a ainda muito mais "do alto" do q ue as que

julgava com bater .a próprio Michelis, é fato, r ejeita as conclusõesde Fechner , em parte, ao lem brar que basta o re-tângulo de ouro, por exemplo, apresentar -se desenha-do não apoiado sobre um de seus lados menor es ("as-sentado" so bre um plano horizontal imaginário) massim so br e um de seus vér tices ( per manecendo assimnum "equilíbr io instável" 17 par a que deixe de cons-tituir-se em forma preferida. Do mesmo modo comoem deter minadas ocasiões se prefere o quadr ado ou o

triângulo, etc. Mas ar gumenta, para re pudiar as noçõesde Fechner , de um lado com a existência de elementossu bjetivos da harmonia (nunca definidos) e do outr ocom proposições inteir amente vagas segundo as quaiso belo, a empatia estética, o pr azer estético se atuali-zam porque o "ritmo d iferencia e conduz à quantidade,à extensão, e a harmonia int egra e conduz à intensida-de, ao estilo de alta q ualidade que pr edomina em cadasistema" 18. Antes de mais nada, o ritmo não dif eren-cia, pelo contrár io: tor na tudo equivalente. Mas isto já

foi comentado: o que interessa é saber como a harmo-nia "integra" e conduz à intensidade, que é essa in-tegração e em q ue consiste essa intensidade, que é esseestilo de alta q ualidade, como é o btido e porque pr e-

timento puro (a subjetividade) como o único regula-dor do valor estético, pr opondo e admitindo como guiasdo juízo estético as r elações numér icas e o traçado geo-métrico 21. :f : exatamente disso que se trata: uma de-terminada época r esolve aceitar como guia tais e tais padrões, nada mais que isso. Trata-se de um fato cul-tural (como tal, passível de ser cir cunscrito, datado elocalizado) e não de uma tendência inata ao homem

domina em cada sistema. Isso. não é dito, nem emseu estudo nem em todos os demais que se propõemessa mesma linha de a bor dagem. O fato é que para Mi-chelis, seja como for, todos os elementos de apr eciaçãodo valor estético acabam sendo mesmo dominados pe-los elementos o bjetivos identif icados f undamentalmentecom a proporção áurea (secti o aur ea para da Vinciou mesmo proportio di vina para Paccioli) cujo exis-

Page 76: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 76/90

18. PARIS , Les Belles Le tt res, 1969, p. 62.19. A respe ito, ver, co mo o própri o Mlchell s Indic a, a o br a d e

M. GH YK A, L'es thé tiq ue de s proport io lls dans Ia na tur e et d ansles ar ts, Par is, Ga1l1mar d, 1927.

20. MICHELIS , op . cit ., p. 109 .

localizado) e não de uma tendência inata ao homemque precise ser corroborada pela análise matemática. E

q ue nunca foi absoluta nem mesmo na Renascença. :f:o mesmo Choisy quem reconhece q ue essa época nãose ateve de modo único a essas r elações numéricas egeométricas, continuamente retificadas, em sua pró priaexpressão (a pr ática corrigindo a teoria). Por q ue fa-zer, nesse caso, desse e de outros conceitos de har mo-nia a regra para a prática da arquitetura (digo da ar-quitetura porque as artes plásticas já a abandonaramhá muito tempo, há pelos menos 70 anos) e, mais, por que falar mesmo de harmonia já q ue parece impossível

desvincular seu conceito do conceito de equilí brio, in-tegração entre as partes, passagem suave do todo às partes e vice-versa? Michelis teria uma resposta aesta última indagação: continua-se a falar em harmo-nia porque não se pode deixar a ar te repousar intei-ramente sobre o valor subjetivo do artista 22. Insiste naexistência de "leis" da harmonia, leis f or mais que oartista, "pela gr aça da ins piração" (!) concretiza na prá-tica.

Por que tanto medo da liberdade de cr iação, por

q ue o desespero no sentido de impor normas, esta bele-cer quadros fixos de onde não se pode sair? Já sesabe porquê: com a conformidade geométrica se ma-ni pula melhor o gosto das pessoas e por conseguinte,simplesmente, as pessoas. Armadilha em que o artistae o arquiteto não devem cair.

O mesmo tipo de argumentação e de ob jeções valenuma análise dos outros dois elementos agor a funda-mentais da estética da arq uitetura, a medida e a com- posição. E como eles não são, como já r essaltado, es-sencialmente dif er entes da harmonia e do ritmo não hámuita razão para nos estender mos em sua apreciação.

Fala-se na medida es t é tica porque há necessidadede se julgar, avaliar - o que só pode ser feito atra-

ou mesmo proportio di vina, para Paccioli) cu jo existência encontra amparo na noção de anal ogia for mu-

lada por Ar istóteles e ex posta em sua Poéti ca 18: "En-tendo por relação de analogia todos os casos em que osegundo termo está par a o pr imeiro assim como o q uar -to está para o terceiro ... " e que encontr a sua forma

a bótima na expressão - = -- (a/b = c/ b daria apenas

b a+bsimilitud e de formas, enquanto o máximo de unidadese tem quando a+ b = c, ocasião em que se tem a"síntese ideal dos contrastes" 19).

Para Michelis - e este é o gr ande mal dessa esté-tica tradicional, sua grande mistif icação - tal demons-tração matemática, "essa estrita lógica das matemáticascoincid e com a exigência psicológica do sentimentosu b jetivo de har monia" e "nos persua d e (os grifos sãomeus) que a har monia não pode resultar apenas dedois elementos" sendo necessário um terceiro, "e esteterceiro elemento é o todo - a unidade dos dois -do qual estes se isolam" 20. É necessário insistir : a ló-gica das matemáticas não coincid e com a exigência psi-cológica (como se, coincidindo, ela viesse pr ovar a jus-teza da apreciação geométrica do fato estético) e não pode nos per suadir de nada. Essa pr o porção (e ou-tras mais), esse raciocínio são meras constr uções , pro- posições do homem, datadas e localizadas e que po-dem inclusive ser aceitas como inteiramente válidas -mas tanto e apenas tanto q uanto qualquer outr a. Nãose pode fazer dela a norma única da prática da arte ouda arquitetura. Choisy (que Michelis cita e cita mal pois não avalia o alcance de sua proposição) reconhe-ce q ue a R enascença (não mais, segundo ele, do quea Antiguidade ou a Idade Média) nunca aceitou o sen-

21 . CHO ISY, Hi stoi r e d e l'ar c hitec tu re, n, p. 64.22 . MICHE LIS , op. c it. , p. 149 .

vés de uma comparação que, por s).lavez, necessita deuma medida. E mais uma vez comparece o número deouro como medida su prema, ou ainda a proposição docorpo humano como medida. Se discorr esse sobre amedida com a f inalidade única de tr anscrever as ex- per iências já feitas pelo homem, não haveria nada acensur ar ; mas se pretende im por uma ou algumas no-ções im per ativas de medida, caímos no mesmo proble-

mas que não pr ocur am for mar um bloco monolítico ef echado (a decomposição). Exemplo de ambas as no-vas práticas se tem, mais uma vez, na Casa da Cas-cata 24 (Fallingwaters) de Lloyd Wright (1936-1939)e no projeto de Gropius para a Bauhaus em Dessau 25

(especialmente em relação à decomposição).O eixo que poderia agrupar essas o posições (e esse

agrupamento se justif ica na medida em q ue, como ob-

Page 77: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 77/90

ç p , pma de mistificação do gosto estético já a bordado. Nes-

ta última hipótese, a r eflexão sobre o estético em ar teou arquitetura pode perfeitamente dispensar essa no-ção de medida, como de resto pode dis pensar tambémas noções de composição, tais como vêm sendo r e pe-tidas, por r edundantes e inadequadas. Redundantes por -que "com posição" é apenas outro modo de se dizer "har-monia" (ver Michelis: a composição se o btém atravésdas "leis da classificação e da subordinação tendo emvista realizar a unidade na dliversidade" 23; q uando nãoé isto, se diz q ue a composição se define por : "a) uma

dialética de seus elementos com uma idéia centr al edesta com o resto; b) a definição de uma idéia clara;c) a or iginalidade da definição", o que constitui umacolocação que não especifica a bsolutamente nada: o queé uma idéia clar a. ()q ue é uma originalidade? etc.). Ina-dequada por que seus pr incí pios são os propostos por uma época passada q ue não deve ser encarada comoa única e obr igatór ia porta de saída par a a humani-dade. Essa é poca sem dúvida representou muito par atodo o mundo ocidental, e sua força é inegável: basta

q ue se olhe a nossa volta. Mas não se pode permitir que ela seja igualmente nosso túmulo, a tum ba de nos-sa criatividade.

Deve-se então, pura e sim plesmente, jogar pelaamurada todas essas noções de har monia, medida, com- posição? Não propriamente: continuam f igurando den-tro do pensamento estético, mas apenas como pólos deo posição. A elas se pode (e se deve) o por a dissonân-cia (assimetria) e a decomposição, como lembra Zevi.Ao invés de proceder de acor do com o padrão simé-

trico, eu desloco os elementos elencados de suas po-sições habituais (dissonância). Ao invés de pr ocurar in-tegrar todos os corpos da construção numa unidade ín-tegra e per f eita (composição) eu decomponho a cons-trução numa série de cor pos que se ligam, por certo,

g p j q ,ser vado, ritmo, harmonia, medida e composição não

são quatro conceitos distintos mas apenas um únicoconceito do q ual não constituem nem verdadeiras eta- pas) poderia se apresentar sob a denominação H armo-nia ve rsus S é rie . Série como, em q ue sentido? Série nosentido pr oposto por Pierre Boulez 26, um modo de pensar polivalente, uma reação ao conceito segundo oq ual a f orma é sempre algo q ue preexiste e, ainda, parao qual uma forma sempr e preexiste (a f or ma renas-centista, na acepção am pla do termo, ainda hoje é dadaCOmo algo preexistente à atividade artística). A o br a

harmônica é uma obra f echada, terminada, aca bada, quenão se pode q uestionar , enq uanto a obr a serial é umaobra aberta, um "universo em per pétua ex pansão"como diz Boulez. Fundamental na o bra serial é o fatode propor -se ela como uma constelação (conjunto deelementos frouxamente r elacionados, confor me propõea lingüística de Hjelmslev), COmouma assemblage li-vr e, e não como uma ordenação absoluta de constan-tes (isto é, de elementos que têm necessar iamente dea par ecer, e de um deter minado modo, a fim que apa-

r eçam igualmente outr os elementos determinados: naconstelação, a existência de um elemento não implicaa. ~xi.stência de outro e assim se um dado plano édlVldido em dois por um eixo imaginár io, o fato de ter-se tais f iguras ou confor mações num lado não impli-ca que se terá as mesmas figur as no outro). E mais im- por tante ainda é o fato de que a ideologia e a prá-tica ser ial não pretendem regredir ao código gerativo pr imeiro (como acontece com o pensamento harmônicor enascentista, para o qual trata-se sempr e, ainda hoje,

de retomar ao modelo original proposto no século XV

e q ue r emonta à Antiguidade) mas sim produ zir novoscódi gos. Função particularmente importante pois se éfato q ue o ar tista e o arquiteto não deve pr eocu par-

34. Ilustração n.o 11.25. Ilus tração n. o 12.26. P. B OULEZ , R e lé vés d' app re n ti, ParIs, se u l!, 1966. ..

Page 78: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 78/90

Ilust raçã o n9 11: "Fallingwaters" ou "Casa sobre a Cascata",de Fr ank L10yd Wright. em Bear ~~n, Pennsilvania _ (1936--1939): ar quitetur a da qual não partIcIpa a preocupaçao pel?simétrico. Formas e volumes são combinados de modo ~ntl-clássico. A composiçf:o não segue as norma~ do geometns~oclassicista, podendo-se f alar assim em verdadeIra decompos !< ' ao.

Ilust ração n9 12: A Bauhaus de Dessau (1926), em q ue tra- balharam Gropius e Mies van der Rohe. Blocos q ue se inter- penetram, ausência de simetria clássica: decompo sição arqui-tetura!.

se com ser uma máq uina de pt:üduzir novidades (quese tr ansformam, normalmente, em falsas novidades)não é menos cer to que sua tarefa é a de encontrar pr o- postas q ue se adaptam a novas exigências humanas q uesão, estas, reais e indiscutíveis.

E o pensamento serial constitui um pólo adequa-do par a o eixo pr oposto na medida, primeiro, em queo elenco ou listagem não é nada mais que um proce-

Page 79: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 79/90

g q pdimento de série (organizar numa seqüênCia um núme-

ro de elementos livr emente determinados, tal como f oi pro posto para o conceito de elenco) e, segundo, por encaixar -se plenamente dentro do plane jamento ser ial a prática da assimetria e da decomposição. Quando euconstruo por decomposição (quando com ponho por decomposição), e de modo assimétrico, estou elabo-rando uma sér ie, não mais um "todo íntegro", q uer di-zer , fechado: na decomposição, na assimetria há sem- pre uma aber tura, urna possi bilidade de continuação -exatam pnte o que há na série, na serialidade, e que

não e1:iste na harmonia renascentista com sua f obiada liberdade criativa (pelo menos tal como é defen-dida atualmente) 27.

Este único eixo Harmonia X Sér ie aqui. proposto para a organização do sentido no discurso estético daobr a arquitetônica não vai def inir, só ele, toda a es-trutura desse mesmo discurso, por cer to. Todo um con- junto importante de conceitos de estética da arquitetu~ra não foi aqui analisado. Mas me parece que é so breesse eixo que repousa todo o arcabouço dessa estética;sem ele, o resto não se sustenta, e se ele estiver mal posto, como continua a ser colocado pela estética tra-dicional, a obra que se constrói sobre ele ser á umaobr a que, se existe, é em ger al morta ou nula e nomínimo, e na esmagador a maior ia das vezes, ir relevante.E o novo eixo f ormulado pr etende possibilitar (como pr opunha Paul Valér y tam bém citado por Michelis,que no entanto jamais conseguiria realizar tal projetoem seu sistema) que os edif ícios da cidade deixem deser mudos ou, quando f alam, deixem de balbuciar : queeles cantem, essa a nor ma.

lU. DESCONSTRUÇÃO DO SENTIDO:ANTIARQUITETUR A?

27. Por c erto s e cria, na produ ção serlal , uma o utr a "harmo-nia" e em principi o nad a Imp ede que se contin ue a ut lUzar omesmo term o "harmonia" para a qu aUtlcaçá o desse o utro adequ a-mento estét ico - desde qu e ele s eja des pido d e suas con otaçõe Btradici onais.

Muitos def ensorf1s de uma ne bulosa e indefinida"antiar quitetur a", diante dos sete eixos aqui pr o postosCOmo organizadores da linguagem arquitetural, pode-riam indagar se não lhes seria lícito utilizar esteinstr umental teór ico e propor um eventual eixo Es paçoDurável X Es paço Perecível que def endesse a idéiaque ocasionalmente retoma a seus adeptos: a de umaarquitetur a per ecível, uma ar q uitetur a tr ansitória a opor -se à arquitetura tradicional do estável.

A tese, de início, é tentadora, e poderia ser esta:o es paço durável não apenas "destempor aliza" a ar-

quitetur a (mata-a) como im pede que as formas do ha- bitat evoluam (ou, pelo menos, se modifiquem), comisso fixando o homem num ambiente arquitetural e, con-seqüentemente, fixando-o numa determinada condiçãosocial, psicológica, filosófica enfim I.

Seria possível demonstrar a validade (ainda querelativa) dessa tese em alguns dos setores da prática ar -q uitetural; vamos ficar com um deles, o da ar quitetu-

f

(e par a isso bastavam as praças das cidades e ascompanhias itinerantes de atores com suas car roças) ouse tratava de um teatro "de elite" (usando telões pin-tados, maquinaria sof isticada) sustentado pelas cortesou casas no br es locais às q uais se agregava - eneste caso bastavam as imensas e múltiplas salas se-nhorias. Há um momento, no entanto, em que mesmosem ser aberto ao "gr ande público" (é sempre uma

Page 80: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 80/90

r a teatral (onde esse confronto entre dur a bilidade e

pereci bilidade pode ser am plamente ver ificado e ondeexerceu inf luências consideráveis e fáceis de constatar)a fim de avaliar as possíveis excelências de uma arq ui-tetur a perecível para, a seguir , considerar suas pos-si bilidades na ar q uitetura comum do quotidiano.

peq uena elite que o consome) começam a aparecer as

salas ditas pú blicas, levantadas como edifícios separa-dos. e pr óprios. Mas não se explica bem por que es-s~s construções, embora ainda lugar de nobr es e pr ín-CIpes e contando com "apo:o oficial" (como a de Pal-ladio) ainda sejam feitas em madeira: a cena doOlímpico apresentava uma cena fixa em mármor e, amesma para todas as encenações, e a madeira tinha deser pintada par a imitar essa pedra. No caso dos tea-tros surgidos através dos esf orços de pequenas com- panhias, sem recur sos, se entende que a madeira fosse

praticamente a única solução possível. Mas nos ou-tros. .. Não r econhecimento de uma utilidade maior para o teatro, ainda encarado como mera diversão eq ue de fato assim se a presentava? Não mer ecendo por-tanto o empenho de for tes somas? Nem mesmo o peri-go das catástrofes levava à construção em pedra: f re-qüentemente se em pregavam em cena engenhos incen-diários de razoáveis propor ções (dragões vomitando f o-go real) ou se mostravam casas incendiando-se (r eal-mente) em seguida a b atalhas. Mas nada: tudo er a

rece bido na dimensão do fantástico, e o espectador nãocostumava pensar que aquele fogo (visto mas conside-rado eventualmente de fantasia, pois fazia parte dafá bula) pudesse atingi-Ia.

;Uma sala exce pcional par a a história do teatroé se nenhuma dúvida o Teatr o Olímpico de Vincenza, pro jetado por um nome par ticularmente im por tante naarquitetura renascentista, Andrea Palladio. Constr uídoentr e 1580 e 1585 (terminado quando seu autor já ha-via morrido, mas rigorosamente de acor do com seus planos) o teatro chegou à atualidade -em bora in-teir amente construído em madeira. Na é poca de suaconstrução a madeira já tinha sido abandonada hámuito tempo, pelo menOs para as grandes edificaçõescomo igrejas, palácios, edif ícios públicos: há pelo me-nos q uatro séculos a nor ma já er a a pedr a, no todoou em par te. Os teatros no entanto, via de regra, con-tinuavam a ser feitos em madeira. A razão desse pro-cedimento não é de f ácil deter minação. Em toda aIdade Média os espetáculos teatr ais nunca tiveram umlugar q ue se pudesse chamar de específico e pró pr io.Ou se desenr olavam no inter ior das igr e jas e a sua vol-ta (os "mistérios" litúrgicos iniciais) ou mesmo nas praças públicas - ou então nas salas privadas dos pa-lácios. A tr ansição para uni lugar pró prio foi gradati-va, bem lenta, mesmo porq ue não se sentia essa ne-cessidade: ou o espetáculo era para o grande público

1. o que vem p rimeir o, um siste ma d e valor es, d o qual d ecorr eum si stema de o r ganização es pa.clal, ou uma f orma es pac ial q ue possi bilit a det er minad os va lor es, Imp edindo out r os? Não Impor tamu ito: na situaçã o atu al, é pre f er ivel - e necessá r io - par tir d afórmula dos co nstrutlvis tas sov iéticos (192 0-1930) ,se gund o os q uaisnovas r ela ções sociais eXig emu m espaço novo , devendo-se portant o propo r esse esp aço novo pa r a ajudar a permitir aqu elas relaç ões.

Seja qual tenha sido a razão específica desse pro-ceder , a construção de madeira foi particularmente útil par a o desenvolvimento de novas concepções no tea-tro, foi mesmo uma de suas especiais alavancas. Isto porq ue uma ar mação em madeira, naturalmente, se des-faz e refaz senão à vontade pelo menos com muitomaior li berdade de ação do que num edifício em pe-dr a. A cena se revela pouco pr of unda num dado mo-mento histórico? Aumenta-se-a, facilmente. As arqui- bancadas do público são muito extensas, atrapalhamum es petáculo que tem de vir para a frente do palco?É f ácil reduzi-Ias. A boca de cena é muito alta ou

baixa? Isso não constitui granq e pro blema. Em bora es-sas alterações não sejam fr eqüentes (podendo-se passar mais de uma dezena de anos sem. a ocorrência dequaisquer modificações) são inúmeros os teatr os queacabam passando por profundas reformas, ao longo deum período razoável de tempo. Algumas delas motiva-das por "simples" razões técnicas decorrentes das exi-gências dramatúrgicas, outras em seguida a incêndios,desabamentos ou degradação do material O Teatro

conceito de prática teatral q ue se a bandona e outraq ue se adota: o teatro vivo.

A partir do século XIX, no entanto, as questõesde segu~an~a ~om~çam a se impor: as preocupaçõescom os lllcendlOS e constante (afinal Londres já tinhasido atacada gravemente pelo fogo p:lo menos em duasocasiões). Para o teatro, chega-se a impor o uso deuma cortina metálica que separaria o palco da sala.

Page 81: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 81/90

desabamentos ou degradação do material. O TeatroSchouwburg, de Amsterdã, assim se apresentava quan-do de sua inauguração, em 1638: sala para o públicoem for ma de U, com dois lances de camarotes encima-dos por uma galeria em f or ma de arquibancada; cavea 2

livre e uma cena situada numa extremidade da sala, so- bre um elevado e com sua estrutura visível chegandoaté o teto (sem arco cênico, portanto). Em 1774, o nOvoSchouwburg é inteiramente diferente, não só na ar-quitetura q uanto no conceito de teatro: a relação cena-es pectador , q ue er a bem mais livr e no anterior ( poisos es pectador es da platéia não tinham onde sentar ,ficando em pé e movimentando-se livr emente de um lado para outr o durante a encenação), agor a se car acteriza pela se paração, pela distância absoluta deter minada par -ticular mente por um ar co cênico (outra mudança) q uer e baixa o teto visível da cena; e em bora os camarotescontinuem, a cavea é agora ocu pada por f ileiras con-tínuas de madeira à guisa de "cadeir as", como numaarq ui bancada.

O The Royal Theatre of Dr ury Lane 3, Londres tam- bém tem uma história verificável. Quando de sua constru-ção, em 1764, todo o pavimento do palco é ligeiramen-te inclinado, e o pr óprio palco se pr ojeta sobr e a pla-téia por uns cinco metr os. Em 1696, ColJey Ciber, seudiretor, amputa o palco dessa plataforma para au-mentar os espaços do público, empurrando a cena par ao fundo da sala e rompendo a ligação mais imediataentre cena e espectador, possível no es paço antericr . No Drury Lane de 1775, o palco volta a ser maior , porém em largura e altura es pecif icamente, e outra mu-dança em 1808 vai de novo aumentar a sala: de 3, asgaler ias passam para 5. Em cada mudança, é todo um

2. Aquilo q ue hoj e se cha ma p latéia, em bora o sentido desteterm o fosse de Início bem di fer ente, pois d esignava um lu gar d iante d a cena, um lu gar pl ano (p la yne) a ser ocu pad o, tambémele , pelos ato r es, colocand o-se os e s pectadores ape nas a lém des sa platéia .

3. Ver A LLAR DYCENICOL L, Lo spazio " scen ico , R oma, 1971 .

uma cortina metálica que separaria o palco da sala.Mas como sustentar uma cortina dessa espécie semum ar~o cênico sólido? E o arco cênico, que tinhaa pareCido e desapar ecido várias vezes, e de vários mo-dos, vem para ficar. Por longo tempo. A separação en-tre cena e sala é então definitiva e como mostra A. Ni-colJ, o teatro entra numa fase de estabilidade em maisde um sentido: fixa-se, e vai começar a se Úbertar denovo praticamente apenas a partir da terceir a década doséculo XX.

O exemplo da ar quitetura do teatro é como se vê particularmente eloqüente: uma função, a f unção teatro'se modificou e modificou seu espaço - porque est~espaço e;a modificável facilmente, ela se modif icou;f ato posslvel talvez em vir tude de uma certa anomia nahistór ia da arquitetur a, isto é, a constr ução em madeiraquando a regra já era a pedra, o definitivo.

. ~ ~ácil per ce ber onde se quer chegar com esseraClOcmlO: que se poderia fazer com a função habitar se seu eSJ:aço fosse tão maleável assim? A idéia é queessa funçao, como todas as outras, não só muda como

deve mudar através da história do homem. E para tan-to ,0 material neJ? precisaria ser necessariamente pe-reclvel: o forneCimento de "paredes" internas facil-mente removíveis e modificáveis seria um começo _ mas para a antiar q uitetura isso não basta os limitesexter iores sempre permaneceriam fixos. E ~omo o ho-me~ .não v~ .necessidade de mudar algo que aindaesta fir me, so1Jdo, sem uma perecibilidade total do es- p.aço a tendência para a ausência de mutações tende-na a manter-se.

O sólido, o pesado, o eter no, argumenta-se eramcom p.r ~ensíveis numa época em que a tecnologia não pe~mltla outra solução: as constr uções em pedr a, de- pOISem fer ro e concreto ar mado f oram ao mesmo tem- po. a melhor e praticamente as únicas possíveis e viá-veis so b o as pecto segur ança, abrigo, economia. Atual-mente, no entanto, uma variedade de novos materiais

poder iam per f eitamente substituir os antigos: são tãoresistentes q uanto eles - e são perecíveis, quer por -q ue se acabam mais rapidamente, q uer porque podemser "jogados fora" sem muito prejuízo (ou sem pre- juízo algum, se se pensasse nas despesas de conservação

. necessária para as construções tradicionais a partir deum dado tempo). A casa descartável? Por que não?Muitos projetos já existem a respeito, essa idéia não

i b l

que esta acaba chegando ao f im como por q ue a mu-dança pela mudança é necessária - pelo menos aofim de um cer to tempo, q uando a anter ior já tiver sido devidamente utilizada.

Poder iam dizer também, contra essa "antiar quite-tura", que talvez fosse mais simples mudar d e casa -mas seria necessário mudar todo mundo de casa, e essasverdadeiras transmigrações humanas parecem pouco fac-

Page 82: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 82/90

seria em absoluto uma archit- fiction!

De f ato, muitas das objeções à ar quitetura perecí-vel são de ordem econômica não defensável. O espaçodur ável em arquitetura é, ainda, privilegiado na ver-dade não por seus méritos eventuais intrínsecos mas pelo fato de que se transformou em objeto de proprie-dade e de propriedade lucrativa: "investir em pe-dr a", sonho (até hoje) sem idade histórica e sem fon-teiras. E que deixar ia de ser possível (ou seria bemdiminuído em suas pr oporções e conseqüências) q uan-do a "';asa" só tiver seu real valor d e uso , e não umvalor de tr oca e de per petuação freqüentemente man-tido de modo artificial. A casa descartável ao contrá-r io do que acontece hoje com a casa dur ável, não se-ria a única coisa a se valor izar continuamente enq uantose desvaloriza sem pre todo o r esto, a começar do pa- pel-moeda e d~ força de trabalho, limitada pela idadee sufocada pelo maquinismo e pela acentuada r e pro-dução da espécie.

Uma outra objeção que se poderia levantar a esse

tipo de antiarquitetura não seria, de f ato, dif ícil de su- perar: a de que a prática do es paço perecível é pr áticaconsumista a querer se pro por justamente quando ahumanidade está atenta para os excessos do consu-mo e q uando os indivíduos começam a reagir contraa or dem quase irretor quÍvel de consumir cada vez mais. Na ver dade, tudo dependeria do sistema sócio-econô-mico em que essa prática se inserisse. No sistema atual,dif icilmente ela deixaria de fato de constituir em r ealalavanca do consumo; mas num sistema q ue deixasse de

lado a corrida à acumulação de bens, a ostentação, atroca entr e q uantidades desiguais de tr abalho e di-nheiro, a sede do supérfluo, o espaço descartável se-ria uma simples necessidade como outra q ualquer . Nin-guém precisa de um guar da-r ou pa com 100 vestidos,20 par es de sapatos. Mas tampouco pode alguém vi-ver sempr e com um único jogo de roupa, não só por-

verdadeiras transmigr ações humanas parecem pouco factÍveis. Em princípio, mais fácil ser ia realmente trocar a casa, substitUÍ-Ia por outra quando a primeira seconsumiu. E este consumo da casa por certo evitariaoutro aspecto sórdido do habitat moder no: a "degr ada-ção social" da casa. Um edifício começa a brigando de-terminada classe social; dez anos mais tar de , em mé-dia, já se degradou o suf iciente par a af astar os antigosmoradores e se of erecer a uma classe mais baixa; ou-tro tanto, no máximo, e já se ~hega quase ao fim daescala social. Mas nesta altur a a construção é um ver-dadeir o monturo (embora ainda em pé) indigno para avida humana mas pelo q ual ainda se co bram q uan-tias injustificavelmente altas sejam q uais f orem seusmontantes. Uma casa que realmente pereça não poderiaser recuperada. Por certo se dirá que uma modif icaçãosocial que acabe com as diferenças de classe acabar iacom esse problema. Sem dúvida. Mas, novamente, o quevem primeir o: novas r elações sociais ou nOvos es pa-ços? Na dúvida, caber ia realmente a indagação "anti-ar q l1itetur al": por que não f azer uma coisa e outra ou,se im possível, pelo menos uma delas, a mais fácil -e a casa perecível seria a mais f ácil.

Sob o ponto de vista psicológico, o espaço per e-cível também poderia ser defensável. Se parece inad-missível, atualmente, que alguém mude constantementede espaço ambiental a ponto de desenr aizar-se tanto queseu equilí brio psíquico seja rompido (e a necessidadede algum enraizamento parece evidente) por outro ladonão se pode justificar que alguém passe toda uma vidanum único es paço, ou em dois ou tr ês apenas (e é

enorme o número de pessoas que não chegam r ealmen-te a ultrapassar esse Índice): a monotonia, a repetiçãofecha-lhe não só os horizontes físicos como, e isto émais grave, seus horizontes "espirituais". Se se q uisesselevar a sér io a temporalização do espaço, a hipótesedo espaço perecível não poder ia r ealmente ser des-cartada.

A ar gumentação exposta até aqm e em princí pioaceitável, e chama a atenção para um as pecto real-mente importante da organização e uso do espaço. Masnão parece que se deva aceitá-Ia inteiramente e, a par-tir daí, propor a perecibilidade do espaço como normaoper acional de preferência. Há algumas ob jeções q uenão se descartam tão facilmente. Uma delas diz respeitoao problema da consciência histórica dos gr:uPos.so-ciais O "jogar fora" o "não conservar" eqmvalena a

r os da opressão do homem pelo homem. Todos: qual aexceção?

Isso não signif ica que devam ser destruídos, estaseria uma idéia inadmissível; devem ser conser vados -desde que se ressalte o aspecto negativo de que serevestem. Mas não só estas edificações: também aque-las que caracter izam os s~m-história, os sem-ar quitetura.Talvez assim, entr e outras coisas, um dia se pre-

h l hi ó i d

Page 83: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 83/90

ciais. O jogar fora , o não conservar eq mvalena a

uma verdadeira operação de desenraizamento históri-co. O que seria o mundo sem os museus, e sem as bibliotecas - sem as pirâmides, Versalhes, o castelosforzesco, o castelo de Sant'Angelo? Não apenas in-suportável como possivelmente inviável: assim como ésomente a partir de um livr o anterior que se escreveum novo livro, da visão de um quadro antigo q ue sefaz um novo quadro, da mesma forma a arq uitetura pas-sada é o ponto de apoio par a a nova ar quitetur a.

Por certo existe em relação à conservação e con-sumo turístico dos monumentos arquitetônicos uma sé-rie de profundos mal-entendidos e distorções q ue nãose consegue eliminar. Quando se visita uma pirâmide, por exemplo, costuma-se admirar o gênio de um povo,de uma época; fica-se extasiado diante da beleza ouda ca pacidade técnica. E esquece-se nor malmente q uena verdade uma pir âmide, ou o Partenon, ou o Coli-&eu, não nos dá exatamente a medida da genialidadede um povo, nem o retrato de uma época - pelomenos, não diretamente, como se pensa. São no má-ximo indícios da prática de uma pequena classe social.Onde está a arquitetur a dos sem-história? Onde estáa arquitetura dos sem-arquitetura? A arq uitetura egí p-cia que se vê hoje não era a arquitetura do povo egíp-cio, assim como a ar quitetura grega que se estuda nãoé a arquitetura do povo grego da é poca. Da arquite-tura desse povo nada ficou - talvez até nem mere-cesse ficar , mas de qualquer for ma uma pirâmide nãoé a história desse povo. É, sim, uma história, mas aocontrário: percorrendo-se uma pirâmide se pode sen-tir q ue espécie de vida levaram os 100. 000 homensconsumidos (na total ace pção do ter mo) na sua edi-ficação. De fato, todos os monumentos arquitetônicosconsiderados normalmente como ex pr essões mais altasdo humano podem ser , de f ato, isso mesmo - massão também r esultados e manifestações, indícios cla-

enchesse essa monstruosa lacuna na história da ar -quitetura: a análise da arquitetur a comum, do ho-mem comum. Na História, até recentemente um relatoe análise das idéias e f eitos de alguns indivíduos "no-táveis", já se traçam as linhas de definição dos gr u- pos humanos que antes só apareciam, nos textos eru-ditos, como sombras difusas, pano de fundo para aação de alguns poucos indivíduos. Na História da Ar -quitetur a só se vêem as "grandes obr as", os "gr andesnomes". E o resto? Pode-se dizer: permanece a penasaq uilo q ue é excepcional, o notável, o bom. Mas mes-

mo que seja r ealmente "o bom", ele nunca ser á ade-q uadamente entendido se o outro, "o mau", não o for igualmente.

Sob este aspecto, a descartabilidade do espaço nãodever ia ser praticada. Hoje já se consome e põe de ladomuita coisa, e coisa im portante par a a memória dohomem: não há nenhuma necessidade de que também amemória arq uitetural do homem se perca. Ao contrá-r io, a vida humana (do indivíduo e d o gr u po) está baseada na recuperação e intelecção do passado.

Há ainda uma outra grande ob jeção à perecibilida-de dos es paços: o pró pr io desenvolvimento tecilOlógico permite atualmente mudar integralmente um espaço, nasua essência mesma, sem nada jogar fora, sem se ar-rasar estruturas, sem demolições e novas constr uções.Voltando ao exemplo da arquitetura teatr al: atualmen-te não é mais necessário refor mar , cor tar, pôr abaixo - basta o uso de máquinas e técnicas sofisticadas. Em Li-moges, um novo teatro constr uído em 1963 tem ummecanismo que f az a baixar todo o teto (40 tonela-das) de modo a esconder duas galer ias, r eduzir de umter ço a capacidade de público e com isso permitir for-mas específicas de r epr esentação, com um contato maisdir eto entre cena e es pectador do que q uando o tetoestá levantado. Em Aalborg, um outr o teatro tem pa-redes cor r ediças ( pesando 70 toneladas) de modo a

aumentar ou diminuir a extensão de uma das salas:uma peça mais "intimista", e f echam-se as paredes; segrandes es paços são r equeridos, são aber tas - maso teatro permanece o mesmo em seu conjunto geral.Com uma utilização bem menor dos mecanismos, o tea-tr o da Universidade de Miami (1950) possui uma salaque r apidamente se transforma em 5 ti pos básicos de palco e de relação cena-espectador , criando-se des-de um skené segundo os moldes clássicos gregos até

HI.2. Arquitetura não-rac iona l, ar quitetura irracional ,ar quit etura r adical

A LI NHA RETA É lMPIA. Par a Friedr ich Hun-der twasser , essa é uma certeza a bsoluta e inquestioná-vel. E ele é dur o, veemente: os proponentes e defenso-r es da linha r eta, da arq uitetura racional não diferemem nada de carrascos e torturadores: são os Torque-madas sutis da civilização industrial Hundertwasser

Page 84: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 84/90

de um skené segundo os moldes clássicos gregos até

um teatro de arena com a cena totalmente cercada peloses pectadores, passando por uma cena elisabetana e um palco tradicional com o arco de proscênio. Esta per s- pectiva cr iada pela multiutilização de uma mesma es-tr utur a básica, anterior às manifestações dos atuais"antiar quitetos", vai na ver dade muito além da pr o- posta pelo espaço perecível; é, mesmo, mais revolucio-nár ia; e mais econômica, mais pr ática, mais útil so-cialmente.

Com ef eito, um suposto eixo Espaço Durável XEspaço Perecível pode ser reduzido aos casos de m~:nipulação do Es paço Interior nos termos em que Jase falou mais atr ás: proposição de divisões móveis,maior possi bilidade de arranjos, etc. O es paço perecí-vel não parece ser algo q ue a humanidade atualmentese pode permitir, ainda mais se se constata que osmodos de ocupação do território (inevitáveis, pelo me-nos em algumas regiões de elevada densidade demo-gr áf ica como na Europa) exigem o edi~ício ,de vá~ios

andares, para os quais o espaço pereclvel e pratIca-mente impossível, quando mais não seja, sob o aspe~toeconômico. Mesmo porq ue a grande mudança espacial para o indivíduo seria realmente a mudança de lugar,da qual a perecibilidade do espaço seria um ersat z. Asimples modifica bilidade do es paço interno tam bém,sem dúvida; mas surge como mais conveniente à es-cala do homem atual.

A relação espaço durável/ espaço perecível valetalvez como exercício teórico: chama a atenção parauma série de contradições e mal-entendidos refer entes aoespaço durável, praticamente não q uestionados. Massua transformação num eixo autônomo do discurso ar -qu;tetural equivaleria a pôr em pr ática mais uma des-sas falsas r evoluções, tão freqüentes, fáceis e com pr o-metedoras na histór ia da ar quitetura.

madas sutis da civilização industrial. Hundertwasser

vai direto à fonte, e à fonte certa: a desgr aça do ho-mem moderno, da arquitetura moder na começa comAdolf Loos. Sim, Loos, o puritano Loos, o o positor doli beralismo formal da art nouveau , o inspirador de LeCorbusier e, por conseguinte, de Niemayer e de quasetudo aquilo que se pratica hoje em arquitetura. ParaHunder twasser, não há dúvida alguma: Loos deve-ria ter substituído o ornamento estéril (como era odo movimento secessionista, ao q ual se opunha) não pela linha r eta mas pela vegetação viva. Mas Loos

a postou no igual, no plano e no liso - e a linhar eta é justamente a única linha não-criativa. Hundert-wasser parece mesmo exagerar , mas sua análise é nadamais q ue precisa: a linha r eta tra balha pela perdiçãoda humanidade. Ele não consegue pr ever como ser áo fim do mundo, mas já consegue sentir um antegostodesse apocalipse:

Em cada ha bitáculo de New York há de dez a vinte psi-q uiatras. As clínicas estão lotadas de loucos que nelas não se podem cur ar , por que tam bém as clínicas foram constr uídas

conforme Loos.Análise exager ada? Nem um pouco. Antes, uma se-

vera crítica aos psiquiatras q ue, na ânsia de mergulhar no mundo inter no do paciente, esquecem-se de seu mun-do externo, que o condiciona, e desconhecem o que éarq uitetur a, o q ue é uma ar quitetur a humanamente po-sitiva ou negativa.

As doenças dos homens inter nados nos HLM 4 estéreis prosperam na mortal unif ormidade. Eles se f azem feridas,

4 . Habit a tio n s à lo ye r modér é: gran des conjunto s resid enc iaisde alu guel médio, ger almente situad os n as zonas afastadas do ssubú r bios das grande s cid ad es eur o péias. A palavra "Inte r nados"é for te - mas corr es pond erla à r ealid ad e? Pe lo menos so b umaspecto ess as pes soas estã o realm ente isol ad as: afas tam-se, por f~rça. da g r ande cidade, onde ger almente tra balham mas d a qualnao usufruem , em seu laze r , pois estão a quilôme tros del a. Cr iam -seassim , junto a esse con junto s, centros a r tificiais para tentar sa -tisfazer essas pesso as - na maioria das v ezes, Inutilmente .

úlceras, çâncer e mortes estranhas. A r econvalescença é im- possível nessas construções. Apesar da psíquiatria e da pr e-vidência social. Nas cidades-dormitór ios 5 registr a-se um nú-mero cada vez maior de suicídios e um número inf inito de ten-tativas de suicídio. São as mulheres que não podem sair decasa durante o dia, como os homens. Podemos ficar falandodurante horas e horas sobre a miséria que começou com Loos.

daquele que pr omove as tr ansfor mações não devem oC r r t r n -formações. Mas, para isso existem os técnicos que oll r ncalcular tudo tão bem. Não apenas o proprietário do opor la-mento MAS TAMBÉM O LOCATÁR IO DEVE TER A PSIBILIDADE DE MUDAR TODA A ARQUITETUR A. O

estado anterior da casa não deve ser restabelecido a menos q ueo locatário seguinte não esteja de acordo com as tr ansf or ma-ções da habitação. Mas é quase certo que as mudanças arqui-tetônicas, que de todo modo tendem para o humano, ser í:o ben-vindas ao próximo locatário.o nii1ismo dos internados exprime-se no declínio da von-

t d d t b lh d 1í i d d ti id d T h t

Page 85: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 85/90

tade de trabalhar, no dec1ínio da produtividade. Tenho certeza

que os psiquiatras e a estatística me d1io razão. Pois tambéma aflição pode ser ex pressa em cifras em dinheiro. O prejuizoque a construção racional causa é incomparavelmente maiselevado que sua aparente economia. Essa é a prova de que osedifícios racionais tornam-se criminosos se os deixarmos em seuestado atual. Não sou tão contrário assim à produção em série.INFELIZMENTE AINDA PRECISAMOS DELA. Mas deixar as coisas fabr icadas em série no estado em que as recebemosé demonstrar a própria captividade e aceitar ser escravo.

SE A LEI SOBRE A MODIFICAÇÃO INDIVIDUALDAS CONSTRUÇÕES não for retificada, a psicose de prisãodos internados {nesses prédios) irá aumentando até um finalhorrível. Para isso há diversas soluções:

Sua lucidez é perfeita, não há em seus propósitostraços de um r omantismo desesperado ou de um revo-

lucionismo inf antil.

Recusamos utilizar essas jaulas de escravos.

Recusamos entrar nelas.

Se formos convidados à casa de amigos ou a ir à políciae essas casas forem uma .caixa estéril, corremos ao telefonemais próximo e rogamos a essas pessoas que venham para for a.

Ajudem-me a anular as leis criminosas que oprimem a li- berdade de construir criativamente. Os homens nem mesmo sa- bem que têm todo o direito de modelar suas roupas e suas ha- bitações, interna e externamente, conforme seus gostos. Umarquiteto único ou único mandante não pode carregar a respon-sabilidade por todo um bloco de casas, nem mesmo por umúnico prédio onde habitam várias famílias. Esta responsabili-dade deve ser reconhecida a cada habitant~, quer seja arquiteto'ou não.

2. A TRANSFORMAÇÃO ARQUITETÕNICA PELOVISITANTE

A seguir, um pouco de anarquismo, sem dúvida.

Mas não muito:TODAS AS LEIS DE SERVIÇOS URBANOS, QUE

PROIBEM OU IMPEDEM AS TRANSFORMAÇõES INDI-VIDUAIS DA CASA DEVEM SER ANULADAS. CONSTI-TUI MESMO UM DEVER DO ESTADO APOIAR E AJU-DAR FINANCEIRAMENTE CADA CIDADÃO QUE DESE-JA PROMOVER MUDANÇAS INDIVIDUAIS NO EXTERIOR OU INTERIOR DE SEU APARTAMENTO.

Mas esse problema ideal é logo trazido à terra, para reconforto dos que pensam nas normas de segu-rança social.

O homem tem direito à própria pele arquitetural 6. Comuma única condiç1io: as vizinhanças e a estabilidade da casa

Demonstrei isso pessoalmente, pela primeira vez, num alo- jamento para estudantes.

Entremos numa jaula de escravos apenas se pudermos mo-dificar sua arquitetura.

Quem é o res ponsável por esse estado de coisas?

OS ARQUITETOS COVARDES, MARIONETES NASMÃOS DE PROMOTORES DE VENDA INESCRUPULOSOS.

Em todo caso, aqueles que fogem, se revoltam ou se sui-cidam são privilegiados. Todos os que não têm esses meios deescapar perdem suas almas, sua humanidade, seus bens mais preciosos e, do mesmo modo, todas as outras coisas 7.

5. Justamente, essesHLMe seus centros pré-fabricados .6 . McLuhan já nâo demonstrou que a casa é uma extensâo d a

pele? Neste caso, este direito deve alinhar-se realmente entre osmais sagrad06 do homem.

Trata-se, aqui, de um dos manifestos mais lúcidose mais apaixonados da história da arquitetura. Outros já discorreram sobre os males da arquitetura contempo-rânea: Hundertwasser nos faz viver essa situação; mui-tos já insinuaram reformas sensatas: Hundertwasser nos grita as soluções óbvias, possíveis e imediatas. Sua

7. Ex traído do catálo go da exposiçl ío de Hundertwasse r noMu seu d e Arte Mod erna da Cidade de Paris , maio-julho de 1975.

declaração deveria ser entregue a todo estudante de ar-quitetura que entra na universidade. E no momento degraduar-se deveria lê-Io novamente, pois possivelmenteo ensinamento recebido nesse tempo teria apagado es-ses princípios de sua mente. E em todo momento de suaatividade profissional essa declaração deveria impor-se constantemente em seus projetos.

Idealismo? Romantismo? Coisa de artista? Nadadi H d t é d i q lú id d

completamente camuf ladas pela terra e pelas ár vores.Por toda par te, nos projetos de Hundertwasser , os te-tos, paredes e superfícies se transf ormam em f lor estas: para o artista, uma boa arquitetura é a que se vê omenos possível. Existe outro princípio mais revolucio-nário na história da arquitetura ocidental, onde desde aRenascença (passando pelo Barroco, art nouveau , etc.)o problema fundamental é o de ser vista (o problema dafachada) e não o de ser vivida (uma enorme contra-

Page 86: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 86/90

disso: Hundertwasser é nada mais que lúcido, e nadavisionário. Não prega revoluções impossíveis (leia-se:economicamente impossíveis). Apenas mudar aqui e aliessas caixas estéreis a que chamam "apartamento" jáseria um começo, um bom começo. Em 1973, Hundert-wasser planta uma série de árvores grandes nas jane-las de um edifício de apartamentos na Via Manzoni, emMilão: loucura, impossível? Por quê? Que critérios nosoràC'nam a respeitar a fachada agressiva e morta, deconcr eto ou de ignóbeis pastilhas anônimas? Só o me-do. O medo à criatividade. Um medo que o espír itoneo-renascentista nos incutiu (isso q uando a Renas-cença f oi, ela, um movimento e um momento de inten-sa criação). Um medo que temos de nos libertar eque não atinge a Hundertwasser enquanto mostra quetambém na arquitetura a imaginação deve ter vôoabsolutamente livre. Se as condições econômicas penni-tem, Hundertwasser tem projetos mais completos, maisradicais: uma casa cujo teto está inteiramente coberto por um gramado, de fácil acesso a homens e animaisque sobre ele andam livremente (construída na Aus-trália). Ou a casa "fenda de olho": implantada numaelevação, é praticamente uma casa subterrânea, enci-mada por árvores - a natureza não é ferida. Ou a"casa-fosso": à semelhança de antigas habitações orien-tais construídas nas paredes de grandes fossos cavadosno chão, a casa-fosso é construída num enorme bura-co ajardinado. Não atraem? Ele tem outros projetos:a casa dos prados elevados, um edifício piramidal com

patamares que se estreitam à medida que se apro-ximam do "cume" e que formam tetos (para os apar-tamentos inferiores) cobertos com grama, árvores emesmo mato onde se pode até soltar animais. Masnão só as casas se modif icam: os postos de gasolinaficam ocultos em bosques, as próprias auto-estradas nãorasgam (no sentido pleno da palavra) mais os cam- pos, assolando-os com suas faixas estéreis, mas ficam

fachada) e não o de ser vivida (uma enorme contra

dição para a prática arquitetural, transformada em mo-numental exercício de pintura, de comunicação visualao ar livre)? Nem mesmo o Gótico escapa do rótulo"arquitetura de fachada", e nem os romanos, tampou-co os gregos. Por certo alguns poucos nomes, em al-guns poucos de seus projetos, praticaram algo do gê-nero proposto por Hundertwasser : mais uma vez, por exemplo, que se pense em Lloyd Wright, COm suas casasque são traços horizontais quase a se confundirem como meio ambinete (mas não o Lloyd Wright do Gugge-

nheim Museum). Mas nenhum tem talvez a força cr ia-tiva e a audácia libertária de Hundertwasser , um artistaque passou para a arquitetura, mas que não esqueceusua própria origem ao encarar a arquitetura como sen-do essencialmente uma arte (não esquecendo, ao mes-mo tempo, que a arquitetura êm suas origens sempreesteve ligada à arte e que os primeiros ar quitetos sem- pre foram, inicialmente e acima de tudo, artistas).

Diante da teoria e da prática de Hundertwasser ,as demais "antiarquiteturas" que grassam por aí não passam realmente de brincadeiras inconseqüenteS' q uefreqüentemente não provocam nem mesmo o riso eque são quase sempre inadmissíveis porque socialmen-te prejudiciais ou, no mínimo, inúteis. Que faz por exem- plo a chamada "arquitetura irracional", com seus edifí-cios de fachada que descola (Richmond, EUA) ou suasfachadas que desabam numa cascata imóvel de tijo-los (em Houston, EUA)? Nada mais são que proposi-ções kitsch que se inserem totalmente na chamada ar-quitetura de fachada, uma arquitetura para ser vistaunicamente e nada mais, uma falsa arquitetura, umgrande painel visual, uma arquitetura publicitária - ementirosa, gratuita. Chamar isso de antiarquitetura é por certo excesso de pretensão: não chega nem mes-mo a ser arquitetura! .... Como também nada são osmovimentos de "arquitetura radical" que proliferam na

Europa e EUA (sob nomes d~ ficção científica leva-dos a sério por seus adeptos, o que piora ainda mais asituação: Ufo, Libidarch, Archizoom, 9999, etc.) eque se propõem projetos de uma arquitetura cultural-mente impossível onde não interessaria mais o produtoacabado mas sim as relações com as pessoas. Que o produto acabado deixe de ser o objetivo supremo do ar-quiteto, muito bem: mas qual a alternativa proposta?A que esses grupos propõem não tem sentido algum,ã d d i t b i d i d i

mente com o maXlmo de lucros possível - sem ne-nhuma consideração pelo ocupante da construção. Atéaí, tudo bem; e opondo-se a essa arquitetur a técnicaquerem lembrar que a base da arquitetura é a arte.Ótimo. Mas em seu movimento de revolta (e não derevolução) vão longe demais e esquecem-se que arqui-tetura não é apenas arte e não pode seguir os cami-desta de modo absoluto. A arte pode eventualmentetornar-se apenas uma arte conceitual, isto é, uma arte

Page 87: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 87/90

são verdadeiras e monstruosas brincadeiras de criança.Em Milão, recentemente, desenvolveu-se um desses pro-

jetos da arquitetura radical: um grupo de pessoas pro-movem ações insólitas. Um se amarra fortemente a umacadeira, um outro enfia braços e pernas numa espécie decomprida meia furada, um terceiro cobre o rosto comuma máscara: ação de uma suposta vanguarda artísti-ca numa bienal de arte qualquer? Não, dizem eles, ar-quitetura radical em processo estudando o uso do cor- po. Em New York, na mostra "New Domestic Lands-cape" 8, um gr upo de radicais italianos (eles gostamde intitular a si mesmos em inglês) montaram seu stand:uma sala inteiramente vazia preenchida apenas pela gra-,'ação de uma voz de menina repetindo, numa cantile-na: "bonito, este ambiente, a gente se sente muito bem aqui, que bonita sala grande", etc. etc. Numa ou-tra mostra haverá, numa sala, apenas uma porta quemarcará o limite entre luz e sombra num ambiente·neutro.

p

que alguém imagina em sua mente, sem concretizá-Ia eãando-se por satisfeito com isso, numa atitude inteira-mente legítima que ninguém contestará. Mas a arquite-tura só existe enquanto construção efetiva, não comoconceito. As pessoas precisam de um lugar para ha- bitar, onde se proteger , onde se esconder se for o caso.Deixar de considerar esta finalidade última da arquite-

. tura (que em absoluto visa destruir uma cultura, masapenas ajl,ldá-Ia a corrigir-se, a encaminhar-se a seusfins mais elevados) é praticar um desrespeito em rela-

ção aos grupos sociais, à cidade, à sociedade, àqueleshomens, mais particularmente, que por suas condiçõeseducacionais e econômicas necessitam absolutamente doarquiteto. Assim como é um desrespeito à sociedade participar do Projeto de Reforma do Moinho Stuck yde Veneza com propostas desse tipo de "vanguarda":em 1975, no quadro da Bienal de Veneza, pensou-seem abrir uma espécie de concurso para o reaproveita-mento da' enorme estrutura do. moinho Stucky, cons-trução feita à beira do canal da Giudecca em 1895(projeto final) agora desocupada e inativa .e que amunicipalidade pensou 'em reaproveitar para entregar aos cidadãos como área de lazer e cultura. Chamam-se os arquitetos e os artistas - que se revelam um bando de marginais da arquitetura e da cult1Jra quenada mais fizeram do que desacreditar ainda mais tan-to a arte como a arquitetura modernas aos olhos do lei-go. Que lhes pediu um lugar humano. Quais foram suasrespostas? Deixar o lugar ser tomado pela vegetação(a participação desse "arquiteto" resumia-se na apre-sentação de um desenho do enorme edifício tomado pelo mato). Uma estrutura vacilante em equilíbrio pre-cário colocada em cima da antena do moinho, e queficaria oscilando conforme o número de pessoas queestivessem em seu bojo (desenhos e fotomontagens).

_ Um terceiro sugere cortar toda a fachada do moinho

Arquitetura? Antiarquitetura? Não, andaram seenganando de exposição. Ou inconseqüência. Outr osadeptos da "arquitetura radical" são mais "sérios":não expõem nada porque nada constroem, o que lhesinteressa é a penas estabelecer um pr o j~to - que ficacomo simples idéia, não concr etizada. Tudo isso envol-to numa suposta ca pa teórica que se pretende revolu-nária: "O fim último da arquitetura é a eliminação da pr ó pr ia arquitetura". Ou: "A vanguarda (a arquitetu-r a entre elas) tem por f unção a destruição técnica dacultura". Fr ases vazias e inconseqüentes, mostrandoenorme confusão de idéias: obviamente, os "radicais"querem opor-se à arquitetura tradicional, essa ar quite-tura supostamente racional, manipulada por técnicos daconstrução peritos no método de construir mais ra pida-

e deitá-Ia na água do canal, à "f r ente do edif ício, en-q uanto o lugar da antiga f achada seria ocupado por uma queda d'água: com isso haveria uma troca de pa- péis entre o meio ambiente e a constr ução. Um quar toargumenta que o papel do ar quiteto (e de uma arqui-tetura íntegra) não é reformar edifícios que foram origi-nalmente propostos para uma certa f inalidade, que essaoperação é contrár ia aos pro postos da arq uitetura, eque portanto elenão faria nada, projeto algum. Ou-

atividade humana), denunciar a bertamente as "van-guar das" da a par ência, as "vanguar das fáceis", as "van-guardas" da incapacidade, do anti-social, da verdadeiraimbecilidade. As "vanguardas" que, estas sim, são olegítimo foco da reação, do conservadorismo, do statusq uo , compostas (tal como já se disse a respeito dosradi cais italianos) nada mais que por burguesinhosdesesperados à cata de um álibi pessoal.

Estas e a "arquitetura irracional" dos edifícios-

Page 88: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 88/90

que portanto ele não f aria nada, projeto algum. Ou

tro propõe que se trans portasse o moinho Stuck y para o lugar do palácio dos Doges e este para o lugar do moinho. Outro, considerando-se sem dúvida extr e-mamente vanguardeiro, ocupa seu espaço na mostra comf otografias de Veneza às q uais f oram su perpostas ima-gens de grupos de chineses: seu tra balho se intitula"A invasão de Veneza pelos chineses", ou algo do gê-nero, e vêem-se chineses em poses her óicas junto à ca-tedral de São Marcos, colhendo arr oz nos canais, so- bre as pontes, arando o campo diante da estação, etc.É pr eciso recor dar: tratava-se de uma exposição de pro jetos para o rea pr oveitamente do moinho Stucky,com finalidades sociais.

Que dizer não dessa antiarq uitetura (como al-guns pomposamente rotulam sua prática) mas sim des-sa miséria da arquitetura? Nem rir deles não é possí-vel: esses "ar quitetos" e "artistas" assumiram uma po-sição nitidamente anti-social, tornaram-se marginais daarquitetur a e da sociedade e só podem mereCer real-mente o despr ezo desse corpo social. Como realmenteos repudiaram a esmagadora maioria do público, da im- prensa especializada italiana e, especialmente, de ma-neira aberta, clara e f undamentada, os funcio nário sda própr ia bienal que lamentaram a covardia da or-ganização da mostra ao deixarem de r ecusar as brinca-deiras onanistas pro postas. Pelo menos esses funcioná-rios, que impr imiram sua revolta em car tazes espalhados

por toda a cidade de Veneza, tiveram a coragem de ma-nifestar -se pública e vigorosamente contra a empulha-ção das vanguar das, até aqui aceitas incondicionalmen-te (pelo menos na aparência) por medo de se assumir contra elas uma posição que muito f acilmente seriataxada de reacionár ia ou, pelo menos, de conservado-ra. No entanto, já está mais do que chegada realmentea hora de, sustentando vigorosamente as vanguardaslegítimas (como mola essencial do desenvolvimento da

Estas, e a arq uitetura irracional dos edifícios--catástrofes ou a "arquitetura radical", não são antiarqui-tetura: não são coisa alguma. São, se se pr eferir, pro-dutos de comunicação (ou incomunicação) visual de

pessoas que se enganaram de profissão. E de formaalguma constituem uma vanguarda do pensamento daarquitetura, que só pode ser definida através das pr o- postas de um Hundertwasser e daquelas outras que po-dem ser encaixadas dentro daquilo que Zevi chamou de"azeramento" arquitetural: um retorno às funções pri-mitivas da arquitetura em sua condição de integração perf eita entre o construído e o natural, entr e o homeme o meio ambiente da natur eza, entre a cidade e oter r itório (a ur batetura), e que não receia, para f ormu-lar suas propostas, buscar inspiração nas aldeias primi-tivas dos Malis da África Ocidental, ou nas aldeias neo-Iíticas da Rodésia, ou nas cidades medievais (todosestes exemplos de arquitetur a orgânica, em íntimo con-tato com a natur eza e com as necessidades básicas na-turais do homem) ou ainda mesmo nos própr ios ele-mentos da natureza puramente considerada, como asdunas a partir de cujos modelos Mendelsohn trabalhou.

Esta pode ser chamada, se quiserem, antiarqui-tetura. Mas par a que esta denominação não se perca,ela também, entre as fórmulas mágicas e mistificadorasdas vanguardas vazias é necessár io r essaltar que por antiarquitetura nada mais se deve entender que umareação à arquitetur a contemporânea naquilo que elatem de proposta visual (ao invés de uma proposta docons t r uir efetivo), de uniformidade massif icante, de mo-notonia batizada de racionalismo (a linha reta), derepetição, de asfixia do comportamento humano, de lutacontra a natureza, de submissão dos interesses huma-nos aos interesses da economia, do lucro. Por anti-arquitetura se deve entender nada mais (e já é mui-to) que um tr a balho de ressemanti zação das funções eelementos da ar quitetur a: estes foram perdidos, ficaram

esq uecidos no meio da transfmmação produzida pelochamado pr ogresso industrial e trata-se assim não pro-

priamente de dar -lhes novos significados mas, simples-mente, de devolver-lhes, de repor-lhes os significadosoriginais: abrigo, proteção, conforto, construção para odesenvolvimento das potencialidades humanas em har -monia necessária com o meio ambiente (agora sufoca-do pelo homem, que com isso sufoca a si mesmo),integração com o mundo.

O i i di tid ( d

Page 89: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 89/90

Os eixos aqui discutidos (com seus pares de opos-tos a chamar a atenção para o elemento atualmentenão praticado) apresentam-se justamente como os ele-mentos or ganizadores' dessa nova linguagem, dessa lin-guagem r essemantizada (dessa antiarquitetura se qui-serem) q ue nada mais propõe além do abandono dos

balbucios e grunhidos não-significativos emitidos por "arquitetos" comerciais e "antiarquitetos", substituídosque podem ser assim, esses sons horríveis, por um dis-curso ao mesmo tempo lógico e poético (e nada maisadequado à ar q uitetur a do que o conceito de poesia,

pois poesia e construção, recorde-se, eram designadas por um único e mesmo termo na antiguidade grega, fococentral da arquitetura ocidental) ou, mais simplesmen-te, um discurso humano. Exigir essa linguagem conscien-te e livremente criativa é exigir o respeito ao direito àarquitetura, idêntico ao direito à própria pele.

ADORNO, T. W. T héorie esthé tique. Paris, K lincksieck, 1974 .ALTHUSSER, L. "Idéologies et appareils idéologiques d'état" in

La Pensé e. Paris, junho de 1970.ARISTÓTELES. Poé t ique. Par is, Les Bel1es Lettres, 1969.BACHELAR D, Gaston. La poéti que de l'es pace. Par is, PUF, 1974.---- -. La f or mat ion de l' espr it scient i fique. Paris, J.

Vrin Ed., 1975.BA NHAM, R eyner . Teor ia e pr o jet o na primeir a er a d a máqu ina.

São Paulo, Pers pectiva, 1976.BEAUDR ILLAR D,J. O sist ema d os objet os. São Paulo, Per spectiva,

1973.BER E NSON, Benhar d. T he lt a lia n Pa int ers of Renai ssance. Glas-COW, Fontana-Col1ins, 1975.

BLU NT, Anthony. Thé orie des ar ts en I t alie d e 1450 à 1600.Paris, Gal1imar dl Arts, 1966.

BOUDON, Philip pe. Sur l'es pace a r chit ectura le. Par is, P. Du -nod, 1971.

BOULEZ, P. Relé vés d ' a ppr ent i. Paris, Seuil, 1966.

COELHO NEtTO, J. T. I ntr odução à ~eori a da in f ormaç ão est ~-tica. Petr 6polis, Vozes, 1974.

CORBUSIER,Le. Quan d les cathMra les It a ient blanche s. Par is,Médiations, 1971.

DUFRENNE, Mikel. Art et politique . Paris, 10/18, 1974.------. PMnoménologie de l ' exp~rience esthltique.

Paris, PUF, 1967.Eco, Umberto. A estruturu ausente . São Paulo, Perspectiva,

1971.----- . As formas do conteúdo. São Paulo, Perspectiva,

Page 90: A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

8/13/2019 A construção do sentido na arquitetura-Coelho Neto

http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-sentido-na-arquitetura-coelho-neto 90/90

ln5.FOCILLON, H. La vie des formes. Paris, 1943.F1lEUD, S. Totem et tabou . Paris, Payot, 1975.-----. Essais de psychanalyse applíqu~e . Paris, Galli·

mard/ldées.----- . Introduction à Ia psychanalyse. Paris, Payol.FERllAN, A. Phílosophie de Ia composition architectural e. Pa-

ris, 1955.GOLDMANN,L. Structures mentales et création culturalle. Paris,

10/18, 1974.HADJINICOLAOU,Nicos. Histoi re de l' art et lutte des classes .

Paris, Maspero, 1975.HALL, E. T. La di mension cach~ e. Par is, Seuil, 1971.HJELMSLEV, Louis. Prol~gom~nes à uneth~orie du langage .

Paris, Minuit, 1971. (Edição brasileira em 1975 pela Pers- pectiva, São Paulo).

Hocn, G. R. Maneirismo: o mundo como la birinto. São Pau-lo, Per s pectiva, 1974.

KOFMAN, Sarah. L'enfance de l'art . Paris, Payot, 1975.LEFEBVRE,Henr i. La production de ·l' espace. Paris, Anthropos,

1974.LYOTARn,J. F. Dérive à partir de Marx et Freud . Par is, 10/18,

1973.MARNAT,MareeI. Michelange. Paris, Gallimard/ldées. 1974.MICHELIS, P. A. L'esthétique d e l' architecture. Paris, Klinck-

sieck, 1974. NICOLL, Alardyce. Lo spazio cenico . Roma, Bulzoni, 1971.PEIRCE, Ch. S. Collected Papers of Ch . S. Peirce. The Belknap

Press of Harvard Univ. Press, 1962.SARTRE, J. P. L' imaginair e, Paris, Gallimard/ldées, 1971.SCALVINI, M. L. L'architectur a come semiotíca connotativa .

Milão, Bompiani, 1975.VITRUVIO. Les dix livres d'architecture . Paris, 1965.WRIGHT, Frank Lloyd. A Testament. New York , Horizon Press,

1957.WORRINGER,W. L'art gotique. Paris, Gallimard-Idées/ Arts, 1967.ZAHAR ,M. Auguste Perret . Paris, 1959.ZEVI, Bruno. 11 línguaggio moderno dell'architectura . Torino,

Einaudi, 1973.--' ---. Arc hitectura e storiografia . Torino, Einaudi,

QUADRO DA ARQUITETURA NO BR ASIL - N estor G. Reis Filho(DOIS)

BAUHAUS: NOVARQUITETURA - Walter Gro pius (D047)MOR ADA PAULISTA - Luís Saia (D063)A ARTE NA ER A DA MÁQUI NA - Maxwell Fry (D071)COZINHAS, ETC. - Carlos A. C. Lemos (D094)VILA RICA - Sylvio de Vaseoneellos (DIOO)TERRITÓRIO DA AR QUITETURA - Vitlorio Gregotli (D 111)

TEORIA E PROJETO NA PRIMEI&A ERA DA MÁQUI NA - Reyner Banham (DI 13)A CO NSTRUÇÃO DO SENTIDO NA ARQUITETURA- J. Teixeira C.

Nelto (D144)ARQUITETURA ITALIANA EM SÃO PAULO - A. Salmoni e E. De-

benedclti (D 173)A CIDADE É O ARQUITETO - Leonardo Benevolo (0190)POR UMA ARQUITETURA - Le Corbllsier (E027)ESPAÇO DA ARQUITETUR A - Evaldo Coutinho (E059)A REGRA E O MODELO - Françoisc Choay (EOS8)ARQUITETURA P _S-INDUSTRIAL - RaffacIe Raja (EI 18)

ARQUITETURA PÓS-INDUSTRIAL - Raffaele Raja (EIIS)CIDADES DO AMANHÃ - Peler Hall (E123)HISTÓRIA DA AR QUITETURA MODERNA - Leonardo Benevolo

(LSC)ARQUITETURA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL - Yves Brlland

(LSC)HISTÓRIA DA CIDADE - Leonardo Benevolo (LSC)