a construção discursiva da comemoração do dia do Índio no museu
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIROUNIRIO
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS CCH
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM MEMRIA SOCIALPPGMS
CRISTINA DE JESUS BOTELHO BRANDO
A CONSTRUO DISCURSIVA DA COMEMORAO DO DIA DO NDIO NO MUSEU DO NDIO PELA MDIA TELEVISIVA
RIO DE JANEIRO2009
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CRISTINA DE JESUS BOTELHO BRANDO
A CONSTRUO DISCURSIVA DA COMEMORAO DO DIA DO NDIO NO MUSEU DO NDIO PELA MDIA TELEVISIVA
Dissertao apresentada como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Mestre em Memria Social do Programa de Ps-Graduao em Memria Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
OrientadoraProfessora Doutora Evelyn Goyannes Dill Orrico
UNIRIO2009
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BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Orientadora: Professora Doutora Evelyn Goyannes Dill Orrico
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO
_____________________________________________
Professora Doutora Diana de Souza Pinto
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO
_____________________________________________
Professora Doutora Isabel Siqueira Travancas
Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ
_____________________________________________
Professora Doutora Marialva Carlos Barbosa
Universidade Federal Fluminense - UFF
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Aos ndios brasileiros
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AGRADECIMENTOS
A Deus.
A minha famlia, pela ajuda. direo e aos amigos do Museu do ndio/FUNAI, pelo apoio.
Aos professores e alunos da ps-graduao, pelas leituras. coordenadora do Programa, pelo incentivo.
Aos professores de minha banca, pelas dicas e compreenso.A minha orientadora, pelo que me ensinou sobre anlise de discursos, leituras
e crticas.
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RESUMO
Este trabalho objetiva analisar e descrever o processo de produo do
discurso miditico relativo comemorao do Dia do ndio no Museu do ndio,
a partir da investigao de dados verbais e visuais de reportagens ao vivo de
telejornais, utilizando as bases tericas da vertente francesa da Anlise do
Discurso. As emisses ao vivo sobre o Dia do ndio fazem parte das
comemoraes como lugares de memria. Assim, a pesquisa problematiza o
papel da mdia, em particular o da televiso, como partcipe da construo de
uma memria discursiva relativa aos grupos indgenas brasileiros por meio de
estratgias discursivas. Nesse processo, revela-se um antagonismo entre o
discurso da instituio Museu do ndio que valoriza e d visibilidade ao
dinamismo e diversidade cultural indgena e a manuteno pela tev da
divulgao da imagem indgena por intermdio de uma viso cultural esttica,
arraigada no senso comum. O enunciado do ndio autntico atualiza-se aqui
como uma imagem recorrente, reforando aspectos primitivos e genricos
dessas sociedades e revelando a existncia de uma rede de imagens implcitas
e silenciadas. Ao mesmo tempo, h situaes, nessas celebraes miditicas,
em que as vozes das diferentes etnias indgenas conquistam posio nesse
jogo de prticas discursivas, de construo de memria. Percebemos, ento,
um deslizamento de sentidos nos enunciados veiculados pelas edies do
telejornal analisadas: a apresentao dos ndios ora no presente ora no
passado. Conclui-se que fala e imagem no caminham de mos dadas: a
imagem ainda opera com o ndio do imaginrio e a fala j aponta para o ndio
real, contemporneo.
Palavras-chave: memria, comemorao, televiso, Dia do ndio, celebrao miditica, Museu do ndio.
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ABSTRACT
This piece of research aims to analyze and describe the production
process of the media discourse relating to the celebration of the the Brazilian
Indian Day, in the Museu do ndio (Museum of the Brazilian Indian). The
method involves the examination of verbal and visual in live programs on the
news program, in the light of the theoretical approach of the French school of
Discourse Analysis. Live TV programs on the Brazilian Indian Day are part of
the celebrations as places of memory. Thus, this piece of research examines
the role of the media, especially of television, as an integral part of the
construction of a discoursive memory relating to the Brazilian Indian ethnic
groups through different discoursive strategies. This process shows an
antagonism between, on the one hand, the discourse of the Museu do ndio
institution, which both values and gives visibility to the dynamism and to the
cultural diversity of the Brazilian Indian and, on the other hand, the expression
by TV of the image of the Brazilian Indian by means of a culturally static view,
deeply rooted on common sense. The utterance of the authentic Brazilian
Indian is made concrete as a recurrent image, reinforcing primitive and generic
aspects of those (Indian) societies and revealing the existence of a network of
implicit and tacit images. At the same time there are occasions of memory
construction in these media celebrations, in which the voices of the different
Brazilian Indian ethnic groups climb a higher rank in this game of discoursive
practices. We notice then a shift in meaning in the utterances produced by the
news programs analyzed: the exhibition of the Brazilian Indians smetimem in
the present, other times in the past. It can be concluded that utterances and
images do not go hand in hand: images still operate with the idealized Brazilian
Indian whereas utterances point to the real Brazilian Indian.
Key-words: memory, celebration, television, Indian Day, media celebration, Brazilian Indian Museum.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Populao indgena e terras indgenas Ano 2000 .......................p. 20Figura 2 Terras Indgenas Ano 2005..........................................................p. 21
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SUMRIO
Agradecimentos................................................................................................p.VResumo...........................................................................................................p.VIAbstract..........................................................................................................p.VIILista de figuras..............................................................................................p.VIIISumrio...........................................................................................................p.IXIntroduo.......................................................................................................p.111. Quadro conceitual.......................................................................................p.251.1 O discurso e outros conceitos fins............................................................p.291.1.1 O discurso jornalstico e a narrativa televisiva.......................................p.331.2 O conceito de comemorao como lugar de memria.............................p.361.2.1 A data Dia do ndio................................................................................p.401.3 Memria social e prticas comemorativas................................................p.441.4 Celebrao miditica a comemorao na tev......................................p.461.5 Os conceitos de cultura e identidade........................................................p.491.6 O conceito de representao....................................................................p.551.6.1 Estudos sobre a representao do ndio pela sociedade brasileira......p.57
2 Museu do ndio: uma instituio de memria cultural..................................p.61
3 Descrio dos dados e metodologia............................................................p.68
4 Anlise.........................................................................................................p.774.1Primeira parte - Abertura da matria no estdio pelos apresentadores....p.804.2Segunda parte - Cobertura realizada ao vivo no espao Museu do ndio.p.904.3Terceira parte - Encerramento da edio do telejornal............................p.1024.4Consolidao da anlise dos segmentos................................................p.110
5 Consideraes finais..................................................................................p.113
6 Referncias................................................................................................p.121
7 Bibliografia de Apoio..................................................................................p.125
8. Anexos......................................................................................................p.1288.1 Transcries na ntegra dos extratos......................................................p.1288.1.1 Extrato Ano 1996.................................................................................p.1288.1.2 Extrato Ano 2005.................................................................................p.1318.1.3 Extrato Ano 2006.................................................................................p.1348.1.4 Extrato Ano 2007.................................................................................p.1378.2 Jornal Museu ao Vivo N25 Edio especial.......................................p.1418.3 Base de Dados Clipping Dia do ndio..................................................p.1428.3.1 BANDEIRANTES.................................................................................p.1428.3.2 CNN EM ESPANHOL..........................................................................p.1438.3.3 CNT......................................................................................................p.1438.3.4 TV CULTURA......................................................................................p.1448.3.5 GNT.....................................................................................................p.1448.3.6 MULTIRIO............................................................................................p.144
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8.3.7 NECC FACHA......................................................................................p.1458.3.8 REDE TV.............................................................................................p.1458.3.9 REDE RECORD .................................................................................p.1468.3.10 RIO PREFEITURA.............................................................................p.1478.3.11 TV CMARA .....................................................................................p.1478.3.12 SBT....................................................................................................p.1488.3.13 GLOBO NEWS..................................................................................p.1488.3.14 TV GLOBO.........................................................................................p.1498.3.15 CANAL FUTURA...............................................................................p.1508.3.16 UTV....................................................................................................p.1508.3.17 TVE/TV BRASIL.................................................................................p.1518.4 Decupagens / takes dos extratos............................................................p.152
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INTRODUO
H cerca de 20 anos que o Dia do ndio (19 de abril) um dia especial
em minha agenda. Como assessora de imprensa do Museu do ndio, fao parte
de uma equipe que tem a misso de no deixar esse dia e a instituio serem
esquecidos. Mas o que fazer para encher de pblico os jardins do museu de
modo a dar a conhecer a cultura indgena para um pblico cada vez maior?
Como despertar o interesse da populao no ndia? Qual a programao que
mais atrair os holofotes da mdia e, consequentemente, de visitantes? Sem
divulgao em jornais, rdios, televises e internet, a comemorao do Dia do
ndio, no Museu do ndio, pode no acontecer.
Comemorao. Por quase duas dcadas, essa palavra no constava
nos meus releases. Ela era substituda pela expresso programao alusiva
ao Dia do ndio para evitar a palavra comemorar com o significado de festejar
que o uso comum do termo. Festejar o qu? Com tantas terras indgenas
ainda no regularizadas, com a crescente explorao ilegal de recursos
naturais nessas reas, com aldeias sem projetos de auto-sustentao, enfim,
problemas no faltam aos ndios brasileiros. Comemorar, aqui, ainda no
estava no contexto de recordar, trazer memria.
Afinal, quem comemora o Dia do ndio? Os ndios ou a sociedade
envolvente? Lembrando, aqui, uma pergunta de um correspondente do jornal
Chicago Tribune, em visita nessa data, em 2006, ao Museu do ndio: o Dia do
ndio para os ndios ou para a nossa sociedade?
Nesse mesmo ano, comecei a me interessar pelos estudos relativos
Memria Social. Em contato com a bibliografia relativa a esse campo de
estudo, ampliei meus conhecimentos e consegui refletir melhor sobre os temas
comemorao e memria social. Agora j posso escrever a palavra
comemorao sem o receio de estar subestimando os problemas atuais das
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comunidades indgenas brasileiras: penso a prtica comemorativa como um
lugar de memria, onde se ancoram sentimentos, lembranas, tradies e o
sentido da identidade de um grupo. E nesse sentido que esse tema inserido
neste trabalho. O passado comemorado e construdo como acontecimento e,
nesse processo, misturam-se o presente e o passado. Com a comemorao,
materializa-se a memria. Na fase inicial de anlise, ao observar as matrias
televisivas sobre a cobertura da comemorao do Dia do ndio, no Museu do
ndio, com os meus olhos de assessora de imprensa, percebi logo um conflito a
ser investigado entre o que aparece na tev e a proposta da instituio
divulgada em seu material impresso, distribudo ao pblico. O discurso
institucional do Museu do ndio apresenta a inteno de modificar a imagem
preconceituosa que os brasileiros tm sobre os ndios, no entanto, a sua
programao comemorativa aparece, na tela da TV, exibindo, com frequncia,
imagens que reforam aspectos primitivos e genricos dessas sociedades,
como a cena de ndios danando com os corpos pintados e enfeitados de
penas descontextualizada da realidade da etnia em foco que se repete,
anualmente, em vrias edies dos telejornais.
Na perspectiva do senso comum, em nossa sociedade, opera-se com a
imagem de ndio genrico. No so consideradas as variedades cultural,
lingustica e social inerentes s sociedades indgenas brasileiras. Cada uma
possui a sua prpria identidade. Nada ou pouco informado sobre os aspectos
da vida tribal, as relaes entre esta e a sua concepo do mundo, a riqueza
de seu sistema de parentesco e descendncia. E mais, h aqui tambm o
apagamento da contemporaneidade dos ndios, isto , o ndio situado quase
sempre no pretrito.
O meu projeto de pesquisa nasceu, tambm, associado ideia de Jean
Davallon (1999) da imagem como objeto cultural operador de memria social.
O problema a ser investigado est no contexto da representao dos ndios
veiculada pela televiso. Assim, apresento o meu objeto de pesquisa: a
comemorao do Dia do ndio transmitida pela tev, tendo como base de
dados o clipping uma seleo por temas de matrias jornalsticas Dia do
ndio no Museu do ndio. Esse material audiovisual composto de programas
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e reportagens sobre a programao de comemorao do Dia do ndio no
Museu do ndio no perodo de 1996 a 2008. A anlise realizada a partir da
investigao da imagem da comemorao do Dia do ndio que acontece
dentro do Museu do ndio exibida pelo telejornal RJTV Primeira Edio que
mais est presente nessa comemorao.
Dentro do meu campo de investigao, levando em conta o fato de a
televiso ser um sistema de significao, representao e poder, construindo a
memria social pelas prticas discursivas engendradas, comecei a observar as
matrias jornalsticas anuais produzidas, pela TV, sobre o Dia do ndio no
Museu do ndio. A princpio, essa mdia, de um modo geral, pautou da mesma
maneira o tema nessa instituio, lembrando, aqui, que exero o papel de
assessora de comunicao social desde 1987, servindo de canal entre o
museu e a mdia. Naquela fase, ainda no tinha comeado as minhas anlises
sistemticas. A minha impresso era de que, nos ltimos anos, as emissoras
apresentavam, repetidamente, o mesmo formato de matria em relao
comemorao do Dia do ndio no Museu do ndio: fazendo semelhantes
perguntas, enquadrando sempre pelo mesmo ngulo imagens de
manifestaes culturais como a de ndios cantando e danando com pinturas e
adornos, sem discusses detalhadas sobre a problemtica indgena,
preferencialmente em um ambiente festivo diante de um pblico escolar infantil.
Por que silenciar a imagem do ndio vestido, do ndio urbano? Mas isso no
quer dizer que os sentidos que deslizam nos discursos veiculados pela mdia
sobre os ndios sejam sempre os mesmos. Seriam, simplesmente, reportagens
burocrticas para lembrar o Dia do ndio? No haveria nelas situaes em que
as vozes das diferentes etnias indgenas conquistassem posio nesse jogo de
prticas discursivas, de construo de memria?
Durante esses vinte anos trabalhando no Museu do ndio e frente dos
contatos com a mdia, venho observando que a instituio, ao promover
eventos com a presena de ndios apresentando suas manifestaes culturais
como danas e cantos, atrai mais facilmente a mdia. importante informar que
os ndios, durante a programao, quase sempre esto vestidos de ndios:
pinturas no rosto e no corpo, enfeites e, preferencialmente, cocares
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(diademas). Nesse sentido, h que se refletir sobre a possibilidade da eficcia
da proposta da programao em valorizar a identidade de diferentes etnias.
A partir dessa experincia frente da Assessoria de Comunicao
Social, muitos acontecimentos vm chamando a minha ateno. Lembro-me de
uma reprter de TV, no Dia do ndio de 2006, que no demonstrou interesse
em realizar matria com os ndios da etnia Nambiquara (MT), pois ao conversar
comigo considerou o grupo muito fraco (palavras da reprter). Ento, em
seguida, a mesma reprter pediu para filmar os Fulni- (PE) por danarem
mais animadamente, segundo expresso utilizada por ela. Na hora, esse
grupo de ndios era o que cantava mais alto e o que exibia pinturas mais
coloridas. Observei a o interesse da reprter de mostrar imagens de ndios que
mais apresentassem caractersticas primitivas, exticas.
Em outra oportunidade, em 1987, um fotgrafo de uma revista
jornalstica, de circulao nacional, procurou-me para fotografar um ndio
escritor do Peru que visitava o Museu do ndio. Era uma liderana de seu povo.
Quando o fotgrafo viu o ndio, virou-se para mim e comentou que ele no
possua cara de ndio e, sim, de um professor, o que lhe teria causado maior
assombro: o ndio usava culos. Ambos os episdios refletem a problemtica
da imagem estereotipada, presente no imaginrio nacional, que o senso
comum constri do ndio brasileiro: a do ndio primitivo, extico.
Parto do pressuposto institucional no qual o espao cultural Museu do
ndio apresenta o discurso de combate ao preconceito em suas atividades de
divulgao das culturas indgenas. O combate imagem do ndio genrico,
representao cristalizada das culturas indgenas, aparece em seu esforo de
revelar a diversidade existente e histrica entre centenas de grupos indgenas
brasileiros. Essa problemtica foi destacada na 25 edio (ver anexo 8.2) do
jornal da instituio Museu ao Vivo , no final de 2003, quando o discurso
institucional deu nfase questo do patrimnio cultural dos povos indgenas.
A promoo pelo Museu do ndio de apresentaes de manifestaes culturais
indgenas (rituais e danas) tem a inteno de propiciar o dilogo intercultural,
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a troca de conhecimentos e experincias com outros grupos, inserindo-se no
atual cenrio de debates sobre o patrimnio cultural intangvel.1
O Museu do ndio realizou diversas atividades em 2006, apresentando a poltica institucional do rgo de divulgao do patrimnio cultural indgena.. Em abril, durante a programao alusiva ao Dia do ndio, foram realizadas diversas aes: danas e cantos indgenas, alm de filmes e eventos para crianas. A programao contou com a presena de ndios Kuikuro (Xingu-MT), Fulni- (PE), Guarani (RJ) e Nambiquara (MT). Todos os eventos foram gratuitos. Cinco mil e 548 pessoas participaram dessa programao especial (Jornal Museu ao Vivo, 2006, Ano 17, N28, p. 3).
Sabe-se das relaes que variados setores da sociedade envolvente
mantm com os ndios por meio de concepes estticas da cultura. Para a
maior parte dos brasileiros, o ndio continua sendo concebido como um
primitivo, aborgene, que para ser reconhecido como portador de cultura
indgena deve viver no mato, usar cocar, etc. Seno ele no um ndio de
verdade e no se leva em conta o seu relacionamento com outras
comunidades culturais e suas adaptaes criativas de saberes ancestrais.
A instituio de memria Museu do ndio monta, anualmente, o cenrio
do acontecimento da comemorao do Dia do ndio e equipes de reportagem
retiram fragmentos do evento para represent-lo na midiatizao. H um
conflito entre a proposta da instituio Museu do ndio e o que veiculado pela
mdia. Dessa maneira, comea a construo do meu problema de pesquisa
que surge a partir dessa viso esttica que, a princpio, parece predominante e
que congela uma imagem idealizada do que seja a cultura indgena,
cristalizando e reforando uma determinada representao dos ndios. Tal fato
impede que a diversidade cultural dos grupos indgenas brasileiros seja
1 Um passo importante foi dado, em 1989, com a recomendao da UNESCO sobre a Salvaguarda da Cultura Popular e Tradicional. A partir dessa abordagem, a UNESCO promoveu a adoo, pelos estados nacionais, de medidas e programas que visaram, primeiro, a preservao e, depois, a valorizao das culturas tradicionais. Para saber mais sobre o assunto, consulta-se GALLOIS, Dominique T. (org.) Patrimnio Cultural Imaterial e Povos Indgenas: exemplos no Amap e norte do Par. So Paulo: Iep, 2006, pginas 15 e 16.
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amplamente mostrada. Essa imagem fixadora incoerente com a pluralidade
e o dinamismo da realidade indgena.
No captulo da anlise, estudo os silenciamentos/apagamentos e
implcitos (pistas e vestgios) em relao s imagens veiculadas. Para tentar
esclarecer, assim, o conflito entre a proposta da instituio Museu do ndio e o
que veiculado pela mdia, investigando a construo discursiva, pela mdia
televisiva, da comemorao do Dia do ndio no Museu do ndio.
Entretanto, importante lembrar que h momentos nessas matrias
principalmente em sua dimenso verbal em que os ndios ganham voz e
conquistam posio, produzindo sentidos positivos em relao questo
indgena.
A partir disso, surge uma questo:
Como tem sido construda a imagem do ndio na mdia
televisiva em relao comemorao do Dia do ndio no
Museu do ndio nos ltimos dez anos?
Tomando como referncia os estudos da antroploga Dominique Gallois
(2006) que aponta para o pressuposto da autenticidade cultural, arraigado no
senso comum, e para a pesquisa da Inesita Arajo (1998) que identifica o
discurso primitivista na TV e a ideia dominante de que o ndio autntico
aquele do registro discursivo primitivista, posso especificar melhor a minha
questo: como o enunciado do ndio autntico (primitivo), presente no
imaginrio nacional, se manifesta no discurso miditico televisivo falas e
imagens relativo s comemoraes do Dia do ndio no Museu do ndio? Ou
ainda, como a TV se apropria e refora o enunciado do ndio autntico
(primitivo)?
As questes formuladas vo ajudar a dar conta do objetivo geral que
analisar e descrever o processo de produo do discurso relativo
comemorao do Dia do ndio, no Museu do ndio, a partir da investigao do
clipping televisivo Dia do ndio no Museu do ndio como base de dados
(anexo 8.3).
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Aproveito este momento para explicar os critrios de seleo utilizados
para chegar ao corpus de minha dissertao. Dentro da minha Linha de
Pesquisa Memria e Linguagem, o formato ao vivo das narrativas jornalsticas,
das chamadas celebraes miditicas, encaixa-se adequadamente discusso
da comemorao como um lugar de memria. Ao destacar esse formato,
percebemos que a emissora TV Globo, com o seu telejornal RJTV Primeira
Edio, foi a mais regular em relao s coberturas da comemorao do Dia do
ndio, sendo que duas matrias ao vivo foram descartadas, na anlise, por no
terem sido realizadas dentro do espao Museu do ndio. Partindo de sete
horas, trinta e cinco minutos e cinco segundos de matrias e programas sobre
o Dia do Indio no Museu do Indio, encontrei quatro emisses ao vivo
realizadas, no espao da instituio e na prpria data comemorativa Dia do
Indio (19 de abril), por um mesmo telejornal. A primeira foi em 1996 e
acontecendo de novo somente a partir de 2005. Assim, preenchendo os
requisitos de formato ao vivo de coberturas realizadas no Dia do ndio dentro
do espao Museu do ndio, chegamos ao seguinte recorte: RJTV Primeira
Edio dos anos 1996, 2005, 2006 e 2007.
Como toda a imagem discurso (PINTO, 2002), pretendo seguir os
preceitos da vertente francesa de Anlise do Discurso, a fim de compreender a
construo discursiva da comemorao do Dia do ndio (19 de abril), na mdia
televisiva, pela anlise do clipping, das coberturas sobre essa comemorao
no Museu do ndio. Com esse instrumental, vou observar como se constitui
essa prtica discursiva.
A justificativa deste estudo repousa no interesse em mostrar a
importncia da cobertura da comemorao do Dia do ndio no Museu do ndio
pela mdia televisiva, como contribuio ao processo de reflexo sobre a
construo da memria nacional. Os historiadores, cada vez mais, tm utilizado
a imprensa como fonte primria nas suas pesquisas. O prprio interesse do
Museu do ndio em montar e arquivar o clipping O Dia do ndio no Museu do
ndio demonstra essa preocupao. A anlise do clipping revela de que
maneira as informaes fornecidas por uma Assessoria de Imprensa so
trabalhadas pelo reprter e ajudam na construo da imagem da instituio.
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Eles informam muito. E por essa razo que o clipping hoje de extrema
importncia e cercado de cuidados (CARVALHO, 2009, p. 25), garante o
recm publicado Manual Prtico de Assessoria de Imprensa. Como
construdo o discurso da temtica indgena, visto e ouvido por milhes de
brasileiros, pela telinha da televiso? So verses que podem vir a construir
uma memria social. O clipping mencionado rene as matrias televisivas
anuais sobre a comemorao do Dia do ndio no Museu do ndio desde 1996.
Penso que de grande responsabilidade contribuir para o processo de reflexo
da instituio em relao divulgao da temtica indgena.
No dia 25 de janeiro de 2008, saiu publicada, no O Globo, a matria
Brasileiros confiam mais na mdia. De acordo com uma pesquisa realizada
pela multinacional de relaes pblicas Edelman, 64% dos brasileiros
consideram a mdia a mais confivel das instituies, o que nos leva a refletir
sobre a relevncia dos estudos envolvendo a mdia, as representaes sociais
e a formao da opinio pblica.
Cabe aqui destacar a minha atividade profissional de assessorar o
relacionamento de uma instituio de memria o Museu do ndio com os
meios de comunicao (lugar de memria). Nessa relao, o Museu do ndio,
por exercer o papel de guardio da cultura indgena, atrai os holofotes da mdia
e funciona como locao ideal para a comemorao do Dia do ndio.
Finalizando, atualmente existe a preocupao de diversos pases e
instituies com a diversidade cultural. No Brasil, o ensino de histria e cultura
indgena passou a ser obrigatrio para alunos dos Ensinos Mdio e
Fundamental. Uma lei sancionada pelo presidente Luiz Incio Lula da Silva, no
dia 10 de maro de 2008, incluiu a obrigatoriedade da temtica no currculo das
escolas pblicas e particulares.
A viso etnocntrica ainda predomina na perspectiva dos que privilegiam
o conhecimento tecnolgico como padro, considerando os traos culturais
no-ocidentais como impedimento ao desenvolvimento. Como escreveu a
antroploga Dominique Gallois, necessrio engajar todas as naes na
preservao dos patrimnios culturais que refletem a diversidade cultural no
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mundo para que toda a humanidade pudesse se reconhecer como herdeira das
mais importantes e belas realizaes humanas (GALLOIS, 2006, pg.15).
No Brasil, h cerca de 220 grupos indgenas que so muito diferentes
entre si. A divulgao dos diversos modos e jeitos de saber e de fazer dos
grupos indgenas brasileiros colabora para a preservao desse patrimnio. A
UNESCO passou a se destacar na luta pela defesa da riqueza que resulta da
diversidade cultural. Isso coloca em evidncia a pluralidade cultural que, para
ela, uma condio essencial para o convvio pacfico entre povos.
Outros informes sobre a situao atual dos indgenas no Pas so
necessrios, a fim de esclarecer ao leitor aspectos importantes da realidade
desse segmento populacional na sociedade brasileira. Conforme o Censo
Demogrfico IBGE/2000, existem 734 mil pessoas auto-identificadas como
indgenas, 170 lnguas indgenas e a populao indgena est, assim,
distribuda por rea:
rea Rural 47,8%
rea Urbana 52,2%
Segundo a Fundao Nacional do ndio FUNAI , h tambm 63
referncias de ndios ainda no contatados, chamados de isolados, alm de
existirem grupos que esto requerendo o reconhecimento de sua condio
indgena junto a esse rgo.
Mais da metade da populao indgena habita as regies Norte e
Centro-Oeste do Pas, mas encontramos ndios vivendo em todas as regies
brasileiras com exceo dos estados do Piau e Rio Grande do Norte. Mesmo
no Piau, existem grupos de pessoas que vm se auto-identificando como
indgenas e reivindicando tal reconhecimento (dados retirados do site da
FUNAI em 27/01/2008).
A seguir, dois mapas que ajudam a visualizar, no Brasil, as categorias
populao e terras indgenas, baseados na anlise feita pelo IBGE, acerca dos
indgenas com base nos resultados dos Censos Demogrficos 1991 e 2000.
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Populao indgena e terras indgenas Ano 2000
Fonte: IBGE, Diretoria de Geocincias, Coordenao de Geografia; IBGE, Censo Demogrfico 2000; Fundao Nacional do ndio, Diretoria de Assuntos Fundirios.
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Terras Indgenas Ano 2005
Fonte: IBGE, Diretoria de Geocincias, Coordenao de Geografia e Coordenao de Cartografia, Malha Municipal do Brasil, Situao em 2001; Fundao Nacional do ndio, Diretoria de Assuntos Fundirios.
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Dois grupos indgenas so citados em duas matrias jornalsticas do
corpus: os 13.303 ndios Xavante (dados de 2007), de lngua da famlia J, que
vivem, no Mato Grosso, em comunidades autnomas. E os 2.930 ndios Fulni-
(dados de 1999), de lngua Ia-T ou Yat do tronco Macro-J, vivendo em
Pernambuco. Este grupo o nico do Nordeste que conseguiu manter ativa a
sua prpria lngua. (Fonte: Povos Indgenas no Brasil: 2001-2005, Instituto
Socioambiental, 2006).
O Dia do ndio no Museu do ndio est vivo, certamente, na memria das
crianas que j visitaram o museu levadas por suas escolas para festejar o Dia
do ndio. E, tambm, em tantas outras cabeas que viram pelas TVs esse
acontecimento. Nestas, poder estar congelada a imagem de um ndio
genrico de cocar. E a no saberemos se um Xavante, Av-Canoeiro,
Guarani, Tiri, Wajpi, Patax, Tikuna, Xicrin.
Nesse sentido, este trabalho contribui para a compreenso das
estratgias discursivas utilizadas pela TV na construo de uma representao
genrica relativa ao ndio brasileiro.
Para dar conta do objetivo de depreender essas estratgias, este
trabalho, inicialmente, apresenta o quadro conceitual com comentrios sobre
leituras em que percebi a relao da construo da memria dos povos
indgenas com a comemorao do Dia do ndio na televiso. Nesta parte,
constam os conceitos de discurso, formao discursiva, memria social,
comemorao, identidade, cultura e representao.
No subitem O conceito de comemorao como lugar de memria,
abordo a comemorao como lugar de memria no sentido dado pelo
historiador francs Pierre Nora (1993): lugar onde uma sociedade ancora sua
memria. Para tanto, tambm utilizo o referencial terico de Michael Pollak
(1992) que explica ser possvel encontrarmos lugares de apoio da memria na
memria mais pblica, isto , nos lugares de comemorao. Entram aqui,
tambm, dados histricos sobre o Dia do ndio para dar subsdios ao conceito
de comemorao como lugar de memria.
Ainda nessa parte, analisarei as emisses ao vivo da programao do
Dia do ndio fazendo parte das comemoraes, tambm, como lugares de
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memria. So celebraes miditicas, em forma de narrativas, que colocam em
relevo a questo da memria: o passado comemorado e reconstrudo como
acontecimento e, nesse processo, misturam-se o presente e o passado
(BARBOSA, 2004).
Na seo dos conceitos de identidade, cultura e representao,
discutida a construo da indianidade. apresentada a problemtica da
autenticidade que a narrativa sobre a temtica indgena construda pelo
enunciado do ndio autntico, presente no imaginrio nacional, como j dito
acima quando construo o meu objeto de pesquisa, revelando a viso esttica
que embasa a ideia de cultura. Essa concepo se manifesta pela procura da
autenticidade, sem considerar a troca de conhecimentos e experincias que um
grupo mantm com outros, sem considerar a dinmica cultural.
A UNESCO, que integra o grupo de instituies das Naes Unidas,
difunde a recomendao a favor da diversidade cultural por meio da valorao
e preservao dos patrimnios culturais material e imaterial indgenas. O
Museu do ndio deve assumir, junto sociedade nacional, o papel de
conscientizador em relao importncia da participao das produes
indgenas no patrimnio cultural da Nao, fortalecendo, assim, a identidade de
diversas etnias. No entanto, a sua programao comemorativa do Dia do ndio,
exibida pela tev, veicula cenas onde a diversidade cultural indgena no
ganha visibilidade.
Em seguida, apresento o Museu do ndio uma instituio de memria -
e suas prticas discursivas na tentativa de discutir o meu problema de
pesquisa. Sero evidenciadas as narrativas museais sobre a relao entre
memria e patrimnio.
No captulo da descrio dos dados e metodologia, apresentada a
Anlise do Discurso no estudo do texto e da imagem, a fim de explicitar os
mecanismos discursivos das matrias jornalsticas selecionadas.
Por fim, a anlise dos dados procura mostrar, pelos procedimentos que
conjugam a descrio e a identificao das imagens indgenas com a
transcrio das falas das personagens, as construes discursivas recorrentes
com a aplicao das bases tericas da vertente francesa da Anlise do
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24
Discurso AD. Nessa parte, apresento o processo de construo da
celebrao miditica por meio de quadros, contendo os elementos visuais das
cenas como enquadramentos e movimentos de cmera. Pretendo, assim,
problematizar o papel da mdia, em particular o da televiso, como partcipe na
construo da memria coletiva: a televiso reconstruindo memria. Entra
tambm aqui a ideia da imagem como operador de memria social
(DAVALLON, 1999), considerando a interveno concreta da imagem no
estabelecimento de uma forma de memria societal prpria a nossa poca e a
nossa sociedade.
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25
1. QUADRO CONCEITUAL
O trabalho da professora Inesita Arajo Televiso e Indianidade:
questes sobre a construo narrativa da imagem do ndio pela televiso
(1998) foi para mim um marco inicial na fase de criao desse projeto de
pesquisa. Nele, a autora aborda o modo pelo qual a temtica indgena tratada
pela TV, produzindo sentidos indesejveis para a sociedade indgena.
Pretendo, agora, dez anos depois, por uma anlise sistemtica do clipping
televisivo Dia do ndio no Museu do ndio, conseguir apontar
brechas/aspectos, nesse importante veculo de comunicao de massa que a
televiso, por onde as vozes dos ndios consigam negociar os seus discursos
com outros grupos sociais a favor da diversidade cultural. Como ela mesma diz
em seu artigo, necessrio aprofundar esse vis de estudos, formulando
anlises de discursos que permitam comprovar de forma mais sistemtica tudo
o que foi levantado aqui, a ttulo de hiptese (Araujo, 1998, p.44).
O artigo Todo ano, no ms de abril (2002), de Jos Ribamar Bessa
Freire, sobre as matrias produzidas pelos canais de TV no Dia do ndio, fez-
me refletir sobre as coberturas televisivas anuais da comemorao do Dia do
ndio no Museu do ndio. No momento, trilho um caminho, onde h evidncias
de um quadro de reforo aos preconceitos em relao aos ndios brasileiros
como afirma o autor. No entanto, tambm esbarro em situaes favorveis
como as que do uma maior visibilidade s etnias indgenas por meio dos
media.
Outro texto que impulsionou a minha pesquisa, ou melhor, deu flego a
minha formao de jornalista, foi Jornalistas, senhores da memria?, de
Marialva Barbosa, que trata da ao de natureza memorialstica do jornalista, j
que a memria uma operao do presente e conformadora da prpria
identidade. Foi da que tirei a ideia do conceito de celebrao miditica para
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caracterizar a cobertura televisiva da comemorao do Dia do ndio no Museu
do ndio. Ele importante para esclarecer a repetio, anualmente, do formato
ao vivo das matrias jornalsticas relativas comemorao do Dia do ndio.
A antroploga Dominique Gallois, em seu livro Patrimnio cultural
imaterial e povos indgenas (2006), trata do reconhecimento e da salvaguarda
do patrimnio cultural imaterial indgena. Dele, eu extra a ideia do enunciado
do ndio autntico, profundamente arraigado no senso comum, que pretendo
analisar no discurso televisivo. E continuo a estudar o assunto acerca dos
discursos da indianidade no mbito de novos fluxos de identidade e cultura,
privilegiando o autor Marshal Sahlins com sua defesa de que a cultura dos
povos no est acabando e que as culturas esto sempre em processo de
renovao e reestruturao.
Nesta seo, vou abordar conceitos que fazem parte do
desenvolvimento da minha pesquisa como discurso, memria social,
comemorao, celebrao miditica, identidade, cultura e representao.
Atravs do discurso das comemoraes televisivas, chegamos at a maneira
pela qual construda retratada a imagem de um grupo social dentro do
processo de construo da memria social. A discusso desses conceitos
importante no meu trabalho para o entendimento das narrativas, utilizadas pelo
Museu do ndio e pela tev, dirigidas ao acontecimento de comemorao do
Dia do ndio e s sociedades indgenas.
A adoo da Anlise de Discurso AD da vertente francesa, na minha
pesquisa, deve-se ao seu modo de tratar a linguagem como prtica social e
histrica. Pelos discursos, lugares de produo de sentidos, podemos melhor
compreender a relao do homem com a sua realidade. Para o
desenvolvimento da minha proposta de trabalho, envolvendo a televiso como
formadora de imaginrios coletivos e fonte de memria de uma sociedade, a
compreenso da linguagem como prtica simblica fundamental. Nesse
campo de conhecimentos, a memria, quando pensada em relao ao
discurso, tratada como interdiscurso, ou seja, a memria discursiva: o saber
discursivo que torna possvel todo dizer. Orlandi assim justifica a disciplina:
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A anlise de discurso aponta, pois, para novas maneiras de ler, para outros gestos de leitura, outra escuta, sustentada por dispositivos tericos e analticos que nos permitem no apenas nos reconhecermos no que lemos (ou ouvimos) mas que conheamos o modo como os sentidos esto sendo produzidos e as posies sujeito se constituindo na relao do simblico com o poltico (ORLANDI, 2006, p. 28).
Cabe, a este trabalho, a tarefa de tentar aplicar a disciplina no campo
das imagens em movimento. Pretendo analisar no s o que ouvimos, mas
tambm o que vemos.
Dentro do contexto dos estudos acerca do funcionamento da linguagem,
pretendo tecer anlises sobre a produo do discurso e conceitos correlatos
(formao discursiva, pr-construdo, interdiscurso e memria discursiva)
baseados na Escola Francesa de Anlise do Discurso. Esta retoma vrias
postulaes do filsofo francs Michel Foucault (1926-1984) sobre o discurso e
as formaes discursivas. O principal fundador da anlise do discurso de linha
francesa foi o filsofo francs Michel Pcheux (1938-1983). No Brasil, a
linguista Eni Orlandi a principal divulgadora de seus fundamentos,
apresentando as bases tericas e os procedimentos analticos para a sua
compreenso na qualidade de prtica simblica.
O que ler significa? Os anos 60 do sculo XX foi um momento em que a
leitura suscitou questes ligadas interpretao. Autores como Althusser,
Foucault, Lacan, Barthes, e outros pensadores da poca, indagaram o que ler
queria dizer. Abriu-se a um lugar disciplinar para a anlise de discurso. No
Brasil, ela se constitui na perspectiva que trabalha o sujeito, a histria e a
lngua como uma disciplina de entremeio, fazendo-se na contradio de trs
campos de saber: a lingustica, a psicanlise e o marxismo com um particular
desenho disciplinar (ORLANDI, 2006, p. 14).
O discurso mais do que transmisso de informao (mensagem) feito
de sentidos entre locutores. E todo dizer, discursivamente, um deslocamento
nas redes de filiaes (histricas) de sentidos (PCHEUX, 1990). A unidade da
anlise de discurso o texto. O texto possui comeo, meio e fim, mas, se o
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considerarmos como discurso, instala-se logo a sua incompletude. Trs
aspectos so importantes destacar: a incompletude do discurso (ele nunca
uma unidade fechada); a historicidade, constitutiva do discurso; e o fato de que
o sujeito se constri no discurso.
A lngua, como sistema e estrutura2, se apresenta como a base comum
aos falantes, j o discurso a ao do homem na lngua com a finalidade de
expressar e produzir sentidos:
o sentido de uma palavra, de uma expresso, de uma proposio etc. no existe em si mesmo mas, ao contrrio, determinado pelas posies ideolgicas que esto em jogo no processo scio-histrico no qual as palavras, expresses, proposies etc. mudam de sentido segundo as posies sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referncia a essas posies, isto , em referncia s formaes ideolgicas nas quais essas posies se inscrevem (PCHEUX, 1997, p.160).
O conceito de discurso que vamos trabalhar aqui est bem explicitado
por Eni Orlandi, no prefcio do livro Anlise de discurso: princpios e
procedimentos, 2005, como movimento dos sentidos, errncia dos sujeitos,
lugares provisrios de conjuno e disperso, de unidade e de diversidade, de
indistino, de incerteza, de trajetos, de ancoragem e de vestgios (ORLANDI,
2005, p.09). Como ela mesma define: o ritual da palavra, mesmo o das que no
se dizem.
O assunto pertinente ao campo da memria social3, j que so as
prticas discursivas do cotidiano, englobando as produzidas em contextos
institucionais como a famlia, a igreja, a escola, o trabalho e as veiculadas
pela literatura e pela mdia, que contribuem para a sua construo.
Se considerarmos que na linguagem que so construdas as culturas humanas, precisamos admitir que tambm a linguagem que pode propiciar o acesso melhor compreenso dos mecanismos e recursos que utilizamos para construir a memria e as configuraes identitrias a ela relacionadas. (FERREIRA, 2005, p. 109)
2 Ver obra Curso de lingstica geral, de Ferdinand de Saussure (1916).3 Ver conceito em HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. So Paulo; Vrtice, 1990.
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1.1 O discurso e outros conceitos afins
Mas, o que h, enfim, de to perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, est o perigo?
Michel Foucault, 2006, p. 08
Como j mencionamos antes, Pcheux (1969), em sua crtica ao sistema
elementar da comunicao, falar que o discurso mais do que transmisso
de informao (mensagem). Para ele, no h a relao linear entre o
enunciador e o destinatrio do seguinte circuito da comunicao: o emissor
transmite uma mensagem (informao) ao receptor, referindo-se a algum
elemento da realidade e formulada em um cdigo (a lngua), O discurso efeito
de sentidos entre os locutores. Orlandi explica:
Esses efeitos resultam da relao de sujeitos simblicos que participam do discurso, dentro de certas circunstncias dadas. Os efeitos se do porque so sujeitos dentro de certas circunstncias e afetados pelas suas memrias discursivas (ORLANDI, 2006, p.15).
Para Ferreira (2003), o discurso funciona como uma metfora que
requer a cada construo um transporte de um campo para outro. a carga de
significncia que o torna to denso e o faz devolver linguagem a sua
materialidade e ao sujeito a sua contradio. O discurso no fala nem texto,
um processo que produz sentidos. Podemos falar em deslizamentos de
sentidos que circulam sem destino.
Percebemos que o sujeito e a situao (contexto scio-histrico) esto
no bojo da anlise do discurso. Estes participam ao constiturem,
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discursivamente, partes das condies de produo do discurso. Assim,
precisamos relacionar o discurso com suas condies de produo, sua
exterioridade. Em toda situao de linguagem, os contextos imediato
(circunstncias imediatas da enunciao) e scio-histrico (ideolgico, mais
amplo) funcionam conjuntamente.
O sujeito, na anlise do discurso, a posio-sujeito projetada no
discurso. O enunciador e o destinatrio indicam diferentes posies-sujeito. O
que conta a projeo da posio social do sujeito, um lugar que este ocupa
para ser sujeito do que diz. Trata-se de um imaginrio. Por exemplo, quando
falamos professor, no do professor que estamos falando, mas da imagem
que a nossa sociedade faz dele. Cada lugar tem sua fora na comunicao
estabelecida. As relaes de fora fazem parte do modo como as condies de
produo do discurso se estabelecem. O lugar social do qual falamos marca o
discurso com a fora da locuo que este representa (ORLANDI, 2006,
pg.16). Importa se falamos do lugar de professor ou de aluno.
Logo, as posies-sujeito no so neutras e se nutrem do poder que as
constitui em suas relaes de fora. Em sua obra A ordem do discurso,
Foucault vai mais alm: O discurso no simplesmente aquilo que traduz as
lutas ou os sistemas de dominao, mas aquilo por que, pelo que se luta, o
poder do qual nos queremos apoderar (FOUCAULT, 2006, pg.10). No incio
dessa mesma obra, Foucault apresenta a hiptese de que, em toda a
sociedade,
a produo do discurso ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero de procedimentos que tm por funo conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatrio, esquivar sua pesada e temvel materialidade. (FOCAULT, 2006, p.8)
O autor fala, a, dos procedimentos de excluso que atingem o discurso.
Sabemos que no podemos falar de tudo o que queremos em qualquer lugar,
em qualquer momento, em qualquer circunstncia. So muitas as formas de
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controle existentes na sociedade que atingem as prticas discursivas como
verdadeiros sistemas de coero.
O conceito de discurso apresentado por Pcheux em seus trabalhos
est ligado diretamente ideologia. Inicialmente, o autor tomou este conceito
de Louis Althusser. Mais tarde, suas formulaes englobaram as noes de
formao discursiva e formao ideolgica de Foucault explicitadas em suas
obras Arqueologia do Saber e A ordem do discurso. Para Pcheux, a
formao discursiva tudo que pode ser dito ou deve ser dito (sob qualquer
forma) em determinada formao ideolgica, ou seja, a partir de uma posio
dada em uma determinada conjuntura (OLIVEIRA e ORRICO, 2005, p. 80).
As formaes discursivas manifestam, na linguagem, as formaes
ideolgicas que lhes so correspondentes. Assim, conclumos que no
podemos pensar o sentido e o sujeito sem pensar a ideologia, como no
podemos, tambm, pensar a ideologia, discursivamente, sem pensar a
linguagem. Ento, como afirma ORLANDI (2005), um dos pontos fortes da
Anlise do Discurso ressignificar a noo de ideologia a partir da
considerao da linguagem: uma definio discursiva de ideologia.
A ideologia, por sua vez, nesse modo de a conceber, no vista como conjunto de representaes, como viso de mundo ou como ocultao da realidade.No h alis realidade sem ideologia. Enquanto prtica significante, a ideologia aparece como efeito da relao necessria do sujeito com a lngua e a com a histria para que haja sentido. (ORLANDI, 2005, p. 48)
O trabalho ideolgico um trabalho da memria e do esquecimento.
Segundo Pcheux, uma formao discursiva no um espao estrutural
fechado, j que ela permanentemente invadida por elementos provenientes
de outros lugares, por exemplo, os pr-construdos. O pr-construdo designa
o que remete a uma construo anterior exterior, mas sempre independente, e
que se liga ao que construdo no enunciado. um j-dito, um trao no
discurso de um discurso anterior.
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Para que uma expresso tenha sentido preciso que ela j faa sentido
antes (efeito do j-dito). A isso que chamamos historicidade na anlise do
discurso. Chamamos de efeito de pr-construdo, a impresso do sentido que
deriva do j-dito, do interdiscurso e que faz com que ao dizer j haja um efeito
de j dito sustentando todo o dizer (ORLANDI, 2006, p. 18).
Podemos at nos chocar quando enfrentamos essa realidade: nada
original, neutro ou novo em nossa fala. Nossos discursos no so inditos. H
sempre algo por trs nos guiando e querendo nos recolocar nos trilhos quando,
numa aventura, samos deles. Se acontece o diferente, temos que enfrentar
toda uma sociedade, tentando nos excluir do processo de vida, de produo de
sentidos. Possenti explica que a AD rompe com a concepo de sujeito uno,
livre, caracterizado pela conscincia (isto , sem inconsciente, sem ideologia) e
tomado como origem (POSSENTI, 2004, p. 388, sic). Os sujeitos no processo
de produo discursiva acreditam que so senhores de seus discursos, mas,
na verdade, passam de sujeitos a assujeitados. O sujeito do discurso, ento,
apropria-se da memria.
Para definir o conceito de memria discursiva, destaco o intelectual
francs Jean-Jacques Courtine (1985) com seu esquema dos eixos. Segundo
sua teorizao, o eixo vertical o da constituio do dizer e o eixo horizontal
o eixo da formulao. Como eixos se cruzam, todo dizer se d no cruzamento
do que chamamos constituio e formulao, sendo que a constituio do dizer
determina a sua formulao. A memria se situa no eixo vertical e qualquer
formulao se d determinada pelo conjunto de formulaes j feitas, mas
esquecidas. Da a memria discursiva ser constituda pelo esquecimento,
sustentando cada palavra por meio do j dito. De forma alguma essa memria
um reservatrio de informaes ou uma memria de arquivo (da qual no
esquecemos).
Em relao ao meu trabalho, a memria discursiva construda em
tempos remotos, relativa imagem do ndio, funciona como um imaginrio
formado pelos discursos construdos por vrias instncias sociais como a
escola, a literatura, o cinema, a msica e a histria oficial. E sobre esse
imaginrio j existente que a televiso opera, de forma seletiva, quando celebra
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o Dia do ndio em sua tela. Nesse sentido, a tev, com suas estratgias de
construo do discurso a respeito dos ndios, torna-se fonte de pesquisa para
meus estudos.
1.1.1 O discurso jornalstico e a narrativa televisiva
Em seu artigo Discurso e instituio: a imprensa (MARIANI, 1999),
Mariani explica que, no sculo XIX, afirma-se uma posio institucional para a
imprensa como instituio organizada a partir da formulao de prticas
jurdicas que regulamentam o modo como deve ocorrer a textualizao: pelo
impedimento de se dizer qualquer coisa que afete as bases do imaginrio
ocidental cristo. O discurso jurdico, impondo regras e punies aos
participantes da prtica jornalstica, passa a ser um aval para a ilusria
imparcialidade. Da vem o mito do jornalismo verdade, isto , a iluso de que
os jornais so apenas veculos de informaes verdadeiras, isentas e
imparciais.
O poder da designao, abordado por Kanavilil Rajagopalan em Por
uma linguagem crtica: linguagem, identidade e a questo tica, mostra como
o discurso jornalstico imprime seu ponto de vista atravs da fabricao de
novos termos de designao para se referir s personagens novas que surgem
no cenrio e aos acontecimentos novos que capturam a ateno dos leitores
(Rajagopalan, 2003, p. 84). Como podemos pensar numa imprensa neutra, se
h um julgamento de valor disfarado no simples ato de denominar? Se o
discurso, como j falamos antes, um produtor de sentidos.
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34
Nesse sentido, h a emisso de uma opinio por parte da mdia,
disfarada de um ato de referncia neutra. Um alerta para o ouvinte ingnuo.
Movida por essa inteno, segue o quadro, destacando algumas
denominaes dadas aos ndios nas reportagens selecionadas, como
contribuio ao estudo das prticas discursivas do Dia do ndio.
Categoria RJ TV - 1 Edio/TV GLOBO Dia do ndio
Designaes dadas aos ndios
ANO 1996 ANO 2005 ANO 2006 ANO 2007
Diversas tribos
Xavantes, Guaranis,
Tupiniquins
Primeiros habitantes de nossa terra
Autntico Xavante
Donos
Representantes da tribo Fulni-
Eles s tem o dia 19 de abril
Os ndios
No artigo A mdia e o lugar da histria, Ribeiro destaca que o
acontecimento jornalstico remete a um contedo ao mesmo tempo
transparente (dada a sua ancoragem factual) e profundamente opaco (devido
ao jogo oblquo das denominaes - PCHEUX apud RIBEIRO, 2005, p.
117).
Por mais que os pesquisadores discutam a no-objetividade jornalstica,
sabe-se da dificuldade de se conseguir negar a sua caracterstica de
ancoragem factual. Os acontecimentos, projetados como notcias, so a
unidade bsica de construo dos jornais. como se os acontecimentos
abordados pelas matrias jornalsticas tivessem saindo naturalmente do real.
Acreditamos, assim, que o que deu no jornal a verdade. Apesar de,
geralmente, os nomes, datas e acontecimentos no serem inventados e de
essas informaes estarem mais ou menos iguais em outros jornais
revelando uma coerncia , as interpretaes (pontos de vista) aos fatos
concretos so diversas.
Segundo Barbosa,
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ao difundir uma narrativa do mundo (ainda que selecionada entre mltiplas possibilidades factuais), a mdia no mero espelho da realidade, fazendo sempre um trabalho de produo de significados, determinantes na constituio daquilo que chamamos realidade. (BARBOSA, 2007, p. 133)
Voltando minha pesquisa, de acordo com o meu relacionamento
(pessoal ou telefnico), como assessora de imprensa do Museu do ndio, que
mantive com o pessoal da imprensa televisiva, encarregado de pautar o que vai
ser exibido pela emissora, a comemorao do Dia do ndio no considerada
pelas pautas do telejornalismo uma matria factual, portanto, prioritria.
Em conversa informal com a pauteira da TV Globo, a cobertura de
nosso evento, no Museu do ndio, pode ser considerada uma matria
produzida, no factual. Ela comentou, ainda, que para tal indicado o formato
ao vivo, uma pista para o entendimento dessas matrias comemorativas como
celebraes miditicas (conceito discutido mais adiante).
Percebemos que, quando o Dia do ndio (19 de abril) cai num final de
semana4, a presena da mdia televisiva prejudicada. Nesse perodo, as
emissoras trabalham com esquema de planto, com equipe reduzida,
atendendo apenas o que considerado prioridade e a produo do formato ao
vivo torna-se mais complicada.
Importante ressaltar aqui que a narrativa televisiva introduz uma
suspenso do tempo no presente do telespectador que participa do processo: o
passado torna-se presente vivido na cena da telinha. Outra caracterstica desse
tipo de narrativa o fato de a imagem figurar o real. Da a confuso de
significaes que o pblico produz em relao aos gneros televisuais,
misturando ficcional e factual.
Assim, depois de tomarmos conhecimento das bases tericas da AD
para a compreenso do funcionamento da linguagem enquanto prtica
simblica, passamos para o conceito de comemorao. A comemorao, neste
trabalho, vista como um lugar de memria no sentido dado pelo historiador
Pierre Nora (1993): lugar onde uma sociedade ancora sua memria.
4 Ver anexo 8.3 da base de dados Clipping Dia do ndio no Museu do ndio.
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De que maneira so construdos os enunciados da comemorao? Para
responder essa questo, precisamos entender as especificidades da
construo desses rituais de celebrao.
1.2 O conceito de comemorao como lugar de memria
este vai-e-vem que os constitui: momentos de histria arrancados do movimento da histria, mas que lhe so devolvidos. No mais inteiramente a vida, nem mais inteiramente a morte, como as conchas na praia quando o mar se retira da memria viva.
Pierre Nora, 1993, p. 13
Passo, agora, a abordar a comemorao como lugar de memria no
sentido dado pelo historiador francs Pierre Nora (1993). Para tanto, tambm
utilizo o referencial terico de Michael Pollak (1989 e 1992) que v o tema das
comemoraes dentro do contexto da memria como lugar de disputa, de
conflito.
Para refletir sobre a categoria lugares de memria, teremos que fazer
um breve relato da anlise de Pierre Nora sobre as noes de memria e
histria. Os lugares de memria nascem da conscincia de que no h
memria espontnea. A memria vida, carregada por grupos vivos, aberta
dialtica da lembrana e do esquecimento, em permanente evoluo. Assim,
preciso criar arquivos. So lugares com efeito nos trs sentidos da palavra
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material, simblico e funcional: de registros escritos a datas comemorativas,
passando por celebraes e smbolos, at museus, bibliotecas, obras de arte.
Para Nora, a razo fundamental de ser de um lugar de memria
bloquear o trabalho do esquecimento e, ao mesmo tempo, estar apto para a
metamorfose, sofrendo um deslizar permanente de significados. Destaque para
o trecho do texto Entre Memria e Histria, a problemtica dos lugares que faz
parte de La Republique, primeiro volume de Les Lieux de Mmoire, projeto
coordenado por Nora:
Os lugares de memria nascem e vivem do sentimento que no h memria espontnea, que preciso criar arquivos, que preciso manter aniversrios, organizar celebraes, pronunciar elogios fnebres, notariar atas, porque essas operaes no so naturais. por isso a defesa, pelas minorias, de uma memria refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que levar incandescncia a verdade de todos os lugares de memria. Sem vigilncia comemorativa, a histria depressa os varreria. So basties sobre os quais se escoram. (NORA, 1993, p.13)
O surto da memria em todo o mundo vem da ameaa do
esquecimento. A necessidade de criar arquivos que marca o contemporneo,
com suas transformaes fase da acelerao da histria (NORA, 1993,
p.13), vem do fato de no haver memria espontnea, da a construo dos
lugares de memria.
Como reflexo a esse tpico, a obra Seduzidos pela Memria, de
Andreas Huyssen, vai ao encontro do meu objeto de anlise a comemorao
do Dia do ndio , quando fala do fenmeno recente da musealizao, isto , as
obsesses com a memria e com o passado: No h dvida de que o mundo
est sendo musealizado e que todos ns representamos os nossos papis
neste processo (HUYSSEN, 2000, p.15).
Huyssen tambm constri uma ponte entre memria e os meios de
comunicao de massa, ao afirmar que
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a acusao de amnsia feita invariavelmente atravs de uma crtica mdia, a despeito do fato de que precisamente esta desde a imprensa e a televiso at os CD-Roms e a Internet que faz a memria ficar cada vez mais disponvel para ns a cada dia. (Idem, 2000, p.18)
Fechando a abordagem sobre a seduo pela memria, Abreu (1994)
nos explica: Vivemos cercados por comemoraes. Rituais comemorativos
no nos parecem nenhuma novidade tal a sua frequncia no dia a dia de
nossas vidas. Essas comemoraes so prprias do mundo moderno, onde se
observa uma tendncia fragmentao da vida coletiva (ABREU, 1994, p. 20).
A autora apresenta, no texto Entre a nao e alma: quando os mortos
so comemorados, a comemorao como uma inteno deliberada dos
agentes produtores da memria social para criar laos de continuidade. As
comemoraes adquiriram um significado especialmente importante no
momento em que o rompimento da memria com as antigas tradies e com o
costume levou a criao de novos mecanismos (ABREU, 1994, p. 21). Assim,
surgiu a necessidade de instituir novas formas de preservao, de
memorizao e de arquivamento no mundo moderno. Para a autora, os
pesquisadores Pierre Nora com seus lugares de memria e Eric Hobsbawm e
Terence Ranger com a expresso tradies inventadas esto se referindo a
um mesmo processo, enunciando que, no mais havendo uma memria
incorporada na tradio e no costume, teria sido necessrio criar lugares
prprios para a sua construo. (Idem, Ibidem). Nesse contexto, podemos
inserir a definio do pensador e filsofo contemporneo, o francs Paul
Ricoeur5, para o conceito de rememorao: trabalho de construo de uma
memria coletiva.
Agora, vamos expor as ideias acerca do tpico anterior do socilogo
Michael Pollak que define os elementos constitutivos da memria individual ou
coletiva: os acontecimentos, os personagens e os lugares. O autor explica que
possvel encontrarmos lugares de apoio da memria na memria mais
5 Definio de conceito retirada do artigo Rememorao /comemorao: as utilizaes sociais da memria, de Helenice Rodrigues da Silva, publicado na Revista Brasileira de Histria, vol.22, n44, SP, 2002.
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pblica, que so os lugares de comemorao. Problematiza, ainda, os vestgios
datados de memria como aquilo que fica gravado como data precisa de um
acontecimento:
Todos sabem que at as datas oficiais so fortemente estruturadas do ponto de vista poltico. Quando se procura enquadrar a memria nacional por meio de datas oficialmente selecionadas para as festas nacionais, h muitas vezes problemas de luta poltica. (POLLAK,1992, p. 203)
As comemoraes fazem parte de um processo de construo de poder,
de disputa, sobretudo se considerarmos que ela seletiva.
A memria organizadssima, que a memria nacional, constitui um objeto de disputa importante, e so comuns os conflitos para determinar que datas e que acontecimentos vo ser gravados na memria de um povo. (POLLAK, 1992, p.203)
Para Pollak, a organizao da memria em funo das preocupaes
pessoais e polticas do momento mostra que a memria um fenmeno
construdo.
Assim, necessrio documentar o presente e relembrar, a todo o
momento, o passado. Multiplicam-se os lugares de memria. Os momentos de
celebrao ancoram memrias que no podem se perder, sentimentos que
intensificam o presente, funcionando como elemento de identificao para
todos que participam da prtica comemorativa.
Durante a leitura dos trabalhos dos autores apresentados acima,
consolidei a ideia de que o acontecimento de comemorao do Dia do ndio
est inserido no contexto atual de preocupao com a memria e com o
passado. Pela prtica comemorativa, os agentes produtores da memria social,
nesse caso a televiso e a prprio Museu do ndio um lugar de memria ,
pretendem, no mbito de disputas e relaes de poder, fortalecer determinados
valores na nossa sociedade. Atravs desse dilogo, pude levar a problemtica
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da musealizao para o contexto da questo indgena. Trata-se de um enfoque
equivocado em relao s sociedades tradicionais, que situa os ndios no
passado com risco de extino. Tal viso aparece em minhas anlises iniciais
como veremos adiante.
1.2.1 A data Dia do ndio
Focalizando as comemoraes em torno do Dia do ndio, podemos partir
da noo de lugares de memria, explicitada anteriormente, para refletir sobre
a preocupao com a organizao da memria nacional, estabelecendo
relao entre ela e a origem indgena.
O Presidente da Repblica, pelo Decreto-lei n5.540, de 2 de junho de 1943, determinou que o Brasil comemore solenemente o Dia do ndio a 19 de abril de cada ano, data escolhida pelo Instituto Indigenista Interamericano, com sede no Mxico, para que todos os pases americanos solenizem as memrias dos primitivos povoadores do Novo Mundo (CNPI, 1946, p.11, grifos meus).
Na dcada de 30, surgiram as primeiras ideias a respeito de um
programa indigenista continental. Em 1933, durante a VII Conferncia
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Interamericana, o representante do Mxico props a realizao de um
Congresso Indigenista Interamericano com essa finalidade.
Por sugesto da Oitava Conferncia Internacional Panamericana em
Lima, Peru, em 1938, aconteceu, dois anos depois, o Primeiro Congresso
Indigenista Interamericano, no Mxico, que props aos pases da Amrica a
adoo da data de 19 de abril para o Dia do ndio. O nico delegado brasileiro
presente no Congresso foi o antroplogo Edgard Roquette-Pinto.
Atravs do Decreto-lei 5.540, de 2 de junho de 1943, assinado pelo
ento Presidente Getlio Vargas, o Brasil adotou essa recomendao. No ano
seguinte, o pas comeou a celebrar a data com solenidades, atividades
educacionais e divulgao da cultura indgena. Foi organizada, uma Semana
do ndio. Essa primeira comemorao foi confiada ao ento General Cndido
Mariano da Silva Rondon, presidente do Conselho Nacional de Proteo aos
ndios CNPI, antroploga Helosa Alberto Torres, diretora do Museu
Nacional e, tambm, membro do CNPI.
Nas vsperas da celebrao de tais comemoraes foi distribuda a
seguinte nota aos jornais:
O Brasil, do mesmo modo que as demais Naes americanas, comemorar festivamente ste ano o Dia do ndio, escolhido pelo Instituto Indigenista Interamericano para celebrar a memria dos primitivos povoadores da terra americana e para homenagear as tribos silvcolas remanescentes, que ainda representam um patrimnio humano de real valor. (CNPI, 1946, p. 9).
De acordo com os dados da publicao da Comisso Rondon, a
programao estava dividida em duas partes: palestras de divulgao nos
programas radiofnicos da Hora do Brasil e exposio etnogrfica montada no
hall da Associao Brasileira de Imprensa, alm de exibio de filmes e
realizao de conferncias.
No encerramento dessa Semana, o General Manuel Rabelo declarou em
sua conferncia sobre as populaes indgenas: Nosso primeiro dever
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preservar a sua existncia como uma relquia da humanidade, mediante a
proteo oficial, ativa e eficiente, aos seus remanescentes (CNPI, 1946, p.15).
Como explicado anteriomente, foi, no Mxico, em 1940, que foi proposta
a data de 19 de abril para o Dia do Indio. E a data foi apropriada, no Brasil, pela
poltica nacionalista da poca. O dia 19 de abril era o dia do aniversrio de
Getulio Vargas. Constou em discurso de Rondon, durante a comemorao, a
seguinte meno ao aniversrio do presidente:
eu quero, antes de nos despedirmos, repetir que hoje o aniversrio do Dr. Getlio Vargas. A citao desta data natalcia e as referncias que acabo de expender, justificam a proposta que fao para que fique consignado, em ata, um voto efusivo do nosso louvor ao Presidente Getlio Vargas, pela sua ao benevolente e desassombrada em favor dos nossos irmos das selvas. (CNPI, 1946, p.14)
Em 24 de maio de 1944, foi publicado, no jornal Correio da Manh, o
artigo A Margem da Semana do ndio de Batista de Castro. Nele, o autor citou
as comemoraes da Semana do ndio:
Alm do propsito a que diretamente visaram, as comemoraes da Semana do ndio h pouco realizadas, serviram para relembrar problemas etnogrficos que, a bem dos nossos foros de cultura, no deveriam permanecer relegados ao mais recndito silncio, como ora se encontram... As comemoraes da Semana do ndio, assim, se outras finalidades no lograram, ao menos serviram para relembrar to palpitantes assuntos que, incontestvelmente, merecem a devida considerao dos governantes, nestes dias sombrios, mas, tambm, onde ala o colo tanta frioleira empavonada.(CNPI,1946, p. 207).
Em sua tese Tutela e Resistncia Indgena, Andrey Cordeiro Ferreira
chama a ateno para o carter nacionalista implcito no ritual do Dia do
ndio, uma iniciativa nascida dentro do CNPI que foi criado durante o Estado
Novo, enquanto rgo consultivo, em 1939.
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Devemos analisar este rito para poder compreender todos os significados expressos pelo ritual em seu conjunto. Isto porque, certos signos sero selecionados do contexto da ideologia nacionalista implcita na poltica indigenista que gerou o ritual do dia do ndio. (FERREIRA, 2007, p. 191)
E conclui: O Dia do ndio foi utilizado pelo Estado-Nacional como
ferramenta localizada da sua auto-construo. O projeto de nacionalizao do
ndio utilizou esta data para implementar um ritual que encenasse o mito de
origem da nao, de maneira que o indigenismo foi tambm parte da poltica
global nacional-desenvolvimentista utilizada pelo Estado Novo, para construir
uma identidade nacional. (IDEM, p.189, sic)
Hoje, a comemorao do Dia do ndio continua, mas como um lugar de
memria que, para Nora, onde a memria se cristaliza e se refugia. A
celebrao dessa data pela sociedade nacional um lugar para registrar e
lembrar o passado, onde a memria dos primeiros habitantes se conserva.
tambm para celebrar a sua identidade, comemorar o seu passado.
Focamos aqui comemorao como a programao de eventos (exibio
de exposies, atividades para crianas e adultos, realizao de manifestaes
indgenas como danas, rituais e cantos e outros), promovida pelo Museu do
ndio, para celebrar o Dia do ndio dentro da instituio. A anlise acontece a
partir da investigao da imagem dessa comemorao na tev.
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1.3 Memria social e prticas comemorativas
No seguinte texto Memria, Esquecimento, Silncio, Michael Pollak
dialoga com Halbwachs (1990) e seu conceito de memria coletiva, alm de
contextualizar a categoria lugares de memria de Nora no processo de
enquadramento da memria6:
Em sua anlise da memria coletiva, Maurice Halbwachs enfatiza a fora dos diferentes pontos de referncia que estruturam nossa memria e que a inserem na memria da coletividade a que pertencemos. Entre eles incluem-se evidentemente os monumentos, esses lugares da memria analisados por Pierre Nora, o patrimnio arquitetnico e seu estilo, que nos acompanham por toda a nossa vida, as paisagens, as datas e personagens histricas de cuja importncia somos incessantemente relembrados, as tradies e costumes, certas regras de interao, o folclore e a msica, e, por que no, as tradies culinrias. (Pollak, 1989, p.3) (grifo meu).
O trecho acima, ao falar da fora dos diferentes pontos de referncia
os lugares de memria que estruturam nossa memria, inserindo-a na
memria da coletividade de que fazemos parte, remete ao conceito de memria
social de Maurice Halbwachs que tenta responder o problema da coeso
social. O que faz com que os indivduos construam laos sociais ou coletivos
que se mantm com relativa firmeza? Para Halbwachs, essa coeso
6 Expresso de Henry Rousso em Le syndrome de Vichy. De 1944 nous jours. Paris: Seuil, 1990.
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garantida pelos quadros sociais da memria, entendidos como um sistema de
valores que unifica determinados grupos familiares, religiosos, de classe7.
Outros homens tiveram essas lembranas em comum comigo. Muito mais, eles me ajudam a lembr-las: para melhor me recordar, eu me volto para eles, adoto momentaneamente seu ponto de vista, entro em seu grupo, do qual continuo a fazer parte, pois sofro ainda seu impulso e encontro em mim muito das ideias e modos de pensar a que no teria chegado sozinho, e atravs dos quais permaneo em contato com eles. (HALBWACHS, 1990, p. 27)
O autor Pollak explica que a referncia ao passado serve para manter a
coeso dos grupos e das instituies que compem uma sociedade, alm de
definir seu lugar respectivo. A memria funciona para definir e reforar
sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades. Alm dos
discursos em torno de acontecimentos e de grandes vultos, os rastros desse
trabalho de enquadramento so os objetos materiais como monumentos,
museus, bibliotecas e outros. Porm, o autor adverte: a memria seletiva.
Nem tudo fica gravado e registrado.
Pollak fala em memrias subterrneas, referindo-se s camadas
marginalizadas (as minorias). Para ele, no se trata de historiar memrias que
j deixaram de existir, mas trazer superfcie memrias que prosseguem seu
trabalho de subverso no silncio e de maneira quase imperceptvel e que
afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados
(POLLAK, 1989, p. 4), travando-se, ento, a disputa entre memrias ou a luta
entre a memria oficial e as memrias subterrneas.
Pollak esclarece, conforme dito anteriormente, que so comuns os
conflitos para determinar que datas e que acontecimentos vo ser gravados na
memria de um povo como, por exemplo, as datas oficiais que so fortemente
estruturadas do ponto de vista poltico. Neste caso, a memria nacional
constitui um objeto de luta importante, pois diferentes processos e agentes
7 GONDAR, J, DODEBEI, Vera (Orgs.). O que Memria Social? Rio de Janeiro: Contra Capa, 2005.
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atuam na sua constituio quando acontece um processo de negociao para
conciliar memria coletiva e memrias individuais.
O passado comemorado e construdo como acontecimento. Nesse
processo, misturaram-se o presente e o passado. Com a comemorao,
materializa-se a memria. No mais esqueceremos o fato, j que ele, agora,
est marcado em um calendrio. Ele pode gerar poder por sua valorao
pblica e lucro se for comercializado como produto.
No prximo tpico, estabeleceremos uma aproximao dos conceitos
comemorao e celebrao miditica.
1.4 Celebrao miditica a comemorao na tev
Em seu trabalho Jornalistas, senhores da memria?, a professora
Marialva Barbosa conceitua a comemorao/celebrao miditica como um
tipo de evento miditico que coloca em relevo a questo da memria. Espcie
de marco que reatualiza o passado. Para ela, a comemorao um importante
instrumento utilizado pela prtica jornalstica para construir uma dada memria
da sociedade.
Sabe-se que a narrativa jornalstica marcada pela identidade do
instante. Ento, o mecanismo para se eliminar o dficit em relao ao passado
construir a comemorao como um acontecimento, atravs de uma lgica
narrativa na qual o passado usado ao mesmo tempo em que o presente,
gerando uma realidade diferente daquela da transmisso direta. Na veiculao
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do acontecimento de comemorao pelos meios de comunicao, o passado e
o presente se misturam num processo de construo de memria como
ilustrado na citao a seguir:
Para isso, mistura-se o presente e o passado, razo pela qual tornam-se os meios de comunicao verdadeiros guardies das comemoraes contemporneas e construtores de uma dada memria atravs da montagem de uma verdadeira indstria da comemorao. (BARBOSA, 2004, p.11)
Percebo que as coberturas anuais, pela mdia televisiva, da
programao comemorativa do Dia do ndio no Museu do ndio esto no
contexto deste conceito. As emisses ao vivo sobre o Dia do ndio fazem parte
das comemoraes, tambm, como lugares de memria, movidas pelo medo
do esquecimento.
A celebrao da data nacional do Dia do ndio lembra aos brasileiros a
cultura indgena como fragmento de nossa histria, de nossa identidade, com a
inteno de tornar esses aspectos memorveis. Para Marialva Barbosa8, em
relao ao caso do Dia do ndio, a comemorao dessa data, no Museu do
ndio, celebrada na mdia. Ainda segundo a autora, os meios de comunicao
comemoram suas datas significativas ou as datas que eles mesmos elegem
como emblemticas para a histria do pas. Dessa maneira, reinstaura-se uma
dada memria nacional, lugar onde coexistem memrias coletivas atuais e
reservatrio do que resta das antigas memrias comemorativas.
Se a memria histrica se condensa em torno dos lugares e dos monumentos, tambm se sintetiza em torno das celebraes. E nesta construo e, por extenso, naconstituio de uma dada identidade coletiva, a mdia desempenha papel essencial. (BARBOSA, 2007, p. 55)
8 Palestra de abertura do IV Seminrio de Memria e Linguagem, no dia 12 de novembro de 2001, na UNIRIO.
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Da, o uso da expresso celebrao miditica, afirmando aqui a sua
importncia para esta pesquisa, j que a anlise a ser realizada acontece a
partir da investigao da imagem da comemorao do Dia do ndio que
acontece dentro do Museu do ndio transmitida pela tev.
Mais adiante, no captulo da Anlise, veremos que, em relao ao fato
de as comemoraes miditicas reatualizarem o passado, no caso da temtica
indgena, apenas alguns aspectos desse pretrito so atualizados, outros so,
simplesmente, esquecidos. Nas imagens da comemorao do Dia do ndio no
Museu do ndio, transmitidas pela tev, o ndio do tempo presente que dana
e canta vestido de ndio do tempo passado (primitivo, da origem da
humanidade). Mas como relata Barbosa, se a imagem na televiso figura o
real, tambm figura o ficcional, materializando o prprio imaginrio social
(BARBOSA, 2007, p.135). E para se estudar as imagens na televiso, teremos,
ento, que enfocar as representaes do pblico, coletivas, em relao
ordem social.
Fechando com Halbwachs: as nossas lembranas so coletivas e elas
nos so lembradas pelos outros, mesmo no presentes fisicamente. Podemos
entender, assim, que as pessoas precisam da memria de outras pessoas de
um mesmo grupo social para reafirmar suas prprias imagens do passado.
Nesse sentido, a televiso cumpre o papel de comemorar o Dia do ndio ao
utilizar imagens do passado, reafirmando as lembranas de seu pblico. E a
imagem do ndio selecionada para ser exibida, em sua tela, vai se cristalizando
a cada ano como real, silenciando tantas outras representaes.
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1.5 Os conceitos de cultura e identidade
Cultura um conceito ligado antropologia desde o seu surgimento. Em
1871, Edward Tylor assim definia pela primeira vez o termo:
tomado em seu amplo sentido etnogrfico este todo complexo que inclui conhecimentos, crenas, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hbitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade. (TYLOR, 1871, p.1)
Nessa poca, a nascente antropologia era dominada pela perspectiva do
evolucionismo unilinear, onde era possvel situar cada sociedade humana
dentro de uma escala que ia da menos a mais desenvolvida atravs de trs
estgios: selvageria, barbarismo e civilizao.
A principal reao ao evolucionismo iniciou-se com o alemo Franz Boas
(1858-1949), em 1896, com o seu artigo The Limitation of the Comparative
Method of Anthropology, no qual atribuiu antropologia a comparao da vida
social de diferentes povos, cujo desenvolvimento segue as mesmas leis. Boas,
ao desenvolver o particularismo histrico (ou a chamada Escola Cultural
Americana), fez surgir a ideia de que cada grupo humano desenvolve-se
atravs de caminho prprio, uma abordagem multilinear.
Alfred Kroeber (1876-1960), antroplogo americano, em seu artigo O
Superorgnico (1949) contribuiu para a ampliao do conceito de cultura,
preocupando-se em evitar a confuso entre o orgnico e o cultural, isto , a
cultura, mais do que a herana gentica, determina o comportamento do
homem e justifica as suas realizaes.
Em relao ideia sobre a origem da cultura, Roque de Barros Laraia,
em seu livro Cultura Um conceito Antropolgico (1986), destaca o
pensamento de dois importantes antroplogos sociais. Para o francs Claude
Lvi-Strauss, a cultura surgiu quando o homem convencionou a primeira regra,
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norma, que seria a proibio do incesto um padro de comportamento
comum a todas as sociedades humanas. E Leslie White (1955), antroplogo
norte-americano, explicou que a passagem do estado animal para o humano
ocorreu quando o crebro do homem foi capaz de gerar smbolos.
Direcionando o assunto para a temtica indgena, falaremos agora sobre
as mudanas nas sociedades, o carter dinmico da cultura. Pelo Manifesto
sobre aculturao, resultado de um seminrio realizado na Universidade de
Stanford em 1953,
qualquer sistema cultural est num contnuo processo de modificao. Assim sendo, a mudana que inculcada pelo contato no representa um salto de um estado esttico para um dinmico mas, antes, a passagem de uma espcie de mudana para outra. O contato, muitas vezes, estimula a mudana mais brusca, geral e rpida do que as foras internas (LARAIA, 1986, p.100)
Laraia ressalta que, no caso dos ndios brasileiros, o resultado do
contato de um sistema cultural com um outro representou uma verdadeira
catstrofe. Surge, ento, o conceito de aculturao. No Brasil, este passa a ser
utilizado a partir dos anos 50 com a apresentao de Estudo de Aculturao
dos Grupos Indgenas Brasileiros, na I Reunio Brasileira de Antropologia em
1953, por Eduardo Galvo. O conceito era usado para anlise das situaes de
contato, principalmente entre brancos e ndios, e para entender as
consequncias deste processo, isto , a perda dos traos culturais originrios
como perda de sua substncia.
Para Laraia, cada sistema cultural est sempre em mudana. Entender
esta dinmica importante para atenuar o choque entre as geraes e evitar
comportamentos preconceituosos (IDEM, p.105), conclui.
Em seu livro Patrimnio cultural imaterial e povos indgenas, a
antroploga Dominique Tilkin Gallois diz que indispensvel o processo de
reviso do conceito de cultura, j que este no consegue superar uma
definio datada dos anos 1950, que a Antropologia da poca definia a partir
dos conhecimentos, crenas, arte, leis, costumes, capacidades e hbitos que
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constituiriam o conjunto dos traos distintivos de um grupo social, no plano
espiritual, material, intelectual, emocional e incluindo, alm das artes e da
literatura, os estilos de vida, os modo de vida em comum, os sistemas de
valores, as tradies e as crenas (GALLOIS, 2006, p. 18). Um dos principais
empecilhos dessa reviso a viso esttica que embasa a ideia de cultura,
profundamente arraigada no senso comum e que se manifesta frequentemente
na busca de autenticidade. Essa abordagem de traos culturais continua
orientando a apreciao das culturas indgenas.
a idia de cultura delimitada apenas por meio de traos que seriam produtos caractersticos de um povo, grupo ou comunidade localizada sem considerar a troca de conhecimentos e experincias que, necessariamente, um grupo mantm com outros. (GALLOIS, 2006, p. 20)
Segundo a autora, h muito ainda a fazer para promover uma noo de
cultura que integre a dinmica e a criatividade. E superar a ideia segundo a
qual cultura remete a coisas do passado e a fragilidade das culturas. E
particularmente preocupante o fato de tal fragilidade ser sempre atribuda aos
setores menos favorecidos, ou minoritrios como so os povos indgenas
(Idem, p.21). Por isso, quase sempre descritos como grupos em vias de
extino atravs de uma viso que interpreta as mudanas nos padres da
cultura original como perda. Em relao a essas mudanas, a antroploga
Manuela Carneiro da Cunha9 afirma que os regimes culturais so passveis de
mudanas que no so apenas induzidas externamente: elas seguem tambm
uma dinmica interna.
Afinado com a abordagem da anlise de discurso, recorri leitura de
trabalhos de antroplogos que tratam dos discursos da indianidade no mbito
de novos fluxos de identidade e cultura. Destaco aqui o autor Marshall Sahlins
9 Patrimnio imaterial e biodiversidade. Revista do IPHAN. Nmero32, 2005.
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com sua afirmao de que a cultura no um objeto em via de extino ao
falar dos fluxos globais:
No plano mundial, a humanidade, unificada pelos fluxos culturais globais que correm pelos canais da integrao econmica, est comeando a coincidir efetivamente com a espcie humana. Mas, ao mesmo tempo, ao se infletirem localmente, os fluxos globais diversificam-se de acordo com esquemas culturais particulares. (SAHLINS, 1997, p. 133.)
Em resumo, as culturas no esto desap