a construção da identidade da mulher vítima da violência doméstica em telenovelas da rede globo
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Uma excelente tese. A leitura vale a pena.TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA
Layara Carreteiro Pantoja Macedo
A CONSTRUÇÃO DOS DISCURSOS SOBRE A MULHER VÍTIMA DA VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA EM TELENOVELAS DA REDE GLOBO
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
BELÉM - PA
2013
Layara Carreteiro Pantoja Macedo
A CONSTRUÇÃO DOS DISCURSOS SOBRE A MULHER VÍTIMA DA VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA EM TELENOVELAS DA REDE GLOBO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura, Linha de Comunicação, Linguagem e Arte no Contexto Social da Amazônia, da Universidade da Amazônia, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Comunicação. Orientadora: profª. Drª. Andrea Pontes
Belém
2013
Layara Carreteiro Pantoja Macedo
A CONSTRUÇÃO DOS DISCURSOS SOBRE A MULHER VÍTIMA DA VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA EM TELENOVELAS DA REDE GLOBO
Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do título de Mestre em Comunicação, Linguagens e Cultura, e aprovada em sua forma final pela orientadora, co-orientadora e pela banca examinadora.
Orientadora: profª. Drª. Andrea Pontes
Co-Orientadora: profª. Drª. Ivânia dos Santos Neves
Banca Examinadora:
___________________________________
Profª. Drª. Selma Suely Lopes Machado (UFPA)
___________________________________
Profª. Drª. Neusa Gonzaga de Santana Pressler (UNAMA)
Coordenadora do Programa de Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura:
_______________________________
Profª. Drª. Ivânia dos Santos Neves
Dedico este trabalho a Eloá Pimentel, Mércia Nakashima, Sandra Gomide, Patrícia Aggio, Elisa Samúdio, Adriana Filgueiras e tantas outras vítimas dessa violência tão covarde... Que não tenha sido em vão!
AGRADECIMENTOS
Na esfera acadêmica e institucional:
À minha orientadora, profª Drª. Andrea Pontes, por me oferecer um pouco do seu
tempo tão escasso, abrindo os caminhos deste trabalho.
À minha co-orientadora, Profª Drª. Ivânia Neves, por ter me oferecido ferramentas
fundamentais para a conclusão da pesquisa, além de ter ministrado a melhor
disciplina do mestrado.
Agradeço à professora Profª Drª. Cenira Sampaio, que idealizou comigo esta
pesquisa e foi sempre tão solícita e ética, e a todos os demais professores do
mestrado que me mostraram um mundo novo, muito além de problemas
epistemológicos.
À minha banca de qualificação, formada pelas professoras Drª. Ataíde Malcher e
Drª. Analaura Corradi, por dedicarem seu tempo a aperfeiçoar meu trabalho, me
dando novas perspectiva, além de me fazerem repensar todo o processo de
construção do conhecimento na Amazônia.
Agradeço toda a equipe que compunha o mestrado e que nos deu suporte durante
este percurso. Obrigada pela atenção de sempre e pelos cafezinhos que nos
deixavam seguir nas aulas do Prof. Dr. Agenor até a meia-noite.
Na esfera pessoal:
“Os seus problemas são soluções nas mãos de Deus”. Minha avó me disse isso e tal
frase nunca foi tão aplicável como nessa jornada. Durante a realização desse
trabalho tive a certeza de que Deus esteve comigo em todos os momentos, mesmo
tendo me afastado Dele em muitos outros.
Agradeço à minha mãe, Florinês, que nunca esteve tão presente em minha vida
como nesses dois anos, me acompanhando na universidade, escutando minhas
aflições, sofrendo comigo, brigando pelos meus direitos e sendo a pessoa que me
disse que certos discursos, como “você não serve para isso” e “desista”, não eram
para mim. Obrigada por (pelo menos tentar) me ensinar a ser uma pessoa mais
‘desencanada’ (eu sei que preciso mesmo, não desista). Obrigada, mais uma vez,
por me achar a pessoa mais inteligente do mundo e por acreditar em mim mais do
que eu!
Aos meus avós, Floriano(In Memorian) e Inês, que “escolheram” ser meus pais e me
deram a honra de ser criada por eles. Vó, agradeço as orações (sei que não foram
poucas) e a torcida silenciosa e sofrida. Afinal, a senhora sabe que tem mais “moral”
com os santos do que eu. Agradeço também, além de terem me dado as condições
de cursar o mestrado e apostarem em mim, por terem sido as pessoas que me
deram ensinamentos que pude a todo o momento colocar em prática durante esse
trabalho. Acredito que os princípios que vocês me passaram são as características
principais em uma carreira acadêmica: caráter, ética, honestidade, humildade e
respeito ao próximo. Além disso, me ensinaram na prática que o sucesso digno é
fruto do trabalho árduo. Muito obrigada pelo exemplo!
Ao meu marido, Rui, que é a pessoa mais inteligente que conheço e que ficava
escutando e rindo de mim quando eu falava sobre Foucault. Você me fez perder o
medo dos desafios com a fé de que “tudo é possível” e me ensinou a ter disciplina
na vida, principalmente para estudar, o que foi fundamental nesse mestrado. Que
tantas vezes aguentou o meu mau humor, as crises de choro e inseguranças,
vontade de desistir, suportando a minha ausência constante, me dando suporte sem
nunca reclamar. Que tantas vezes, quando eu estava muito atarefada com a
pesquisa, saia do trabalho para comprar o meu almoço, tirar xerox e tantas outras
coisas. Outras vezes que, diante do meu desânimo, praticamente teve que me levar
arrastada para o Galeão. Obrigada por acreditar em mim, você me inspira!
Ao meu tio, Florinaldo, que com sua experiência acadêmica entendia meus anseios
e conseguiu me apontar soluções, dando valiosíssimos conselhos e também
dizendo “Lay, não entrega os pontos”.
À minha amiga Karol, uma irmã que Deus me deu, que esteve comigo durante todo
o curso dividindo trabalhos, dúvidas, aflições e confidências. Mais do que isso,
esteve comigo no momento mais difícil dessa caminhada, largou tudo e bateu na
porta da minha casa oferecendo ajuda. Aconselhou, ouviu, ofereceu a mão quando
tantos outros me deram as costas, mostrando que além de uma excelente
professora, é um ser humano excepcional. Quero que você saiba o quão importante
foi a sua atitude.
À minha mais recente amiga, Kaé, que corrigiu essa dissertação com uma
dedicação que eu não teria encontrado em mais ninguém. Muito obrigada por ser tão
crítica e por ter dado dicas tão valiosas. Pode deixar que vou saber retribuir tudo
isso à altura.
Por fim, agradeço a mim mesma por ter conseguido encerrar esse caminho sem
perder a dignidade e a humildade, e por ter conseguido manter (até certo ponto!) a
minha sanidade. Fico orgulhosa de mim!
- (...) Você pensa que eu teria tanta dificuldade e tanto prazer em escrever, que eu me teria obstinado nisso, cabeça baixa, se não preparasse - com as mãos um pouco febris - o labirinto onde
me aventurar, deslocar meu propósito, abrir-lhe subterrâneos, enterrá-lo longe dele mesmo, encontrar-lhe desvios que resumem e
deformam seu percurso, onde me perder e aparecer, finalmente, diante de olhos que eu não terei mais que encontrar? Vários, como
eu sem dúvida, escrevem para não ter mais um rosto. Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo: é
uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever.
(Michel Foucault)
RESUMO
Este trabalho é um estudo sobre comunicação na perspectiva da Análise do
Discurso. O objetivo é pesquisar como se dão os processos de recepção sobre a
violência contra a mulher entre telespectadores de telenovelas, destacando para
isso as tramas de Mulheres Apaixonadas e A favorita. Primeiramente, nos
dedicamos à descrição das cenas que abarcam o tema para entender como são
construídas essas narrativas televisivas para, em um segundo momento,
procurarmos entender como se dão as relações entre produtor e interlocutor de
conteúdos das telenovelas, aplicando os usos sociais da proposta das teorias da
recepção através de autores como Martin-Barbero (2003), Orosco (1997) e Ruótolo
(1998). Vamos mostrar, também, como a cultura da mídia atravessa essas práticas,
analisando os discursos que são construídos nessas movimentações por meio de
materiais coletados na rede social Orkut. A metodologia da pesquisa é embasada
nas perspectivas teóricas propostas por Michel Foucault (1996) e nos estudos de
Gregolin (2003, 2004, 2005, 2007), que olham as condições de produção dos
discursos através da sua história e de um movimento de regularidades e dispersões.
Por fim, concluímos que existe uma ordem do discurso nas telenovelas em questão,
como propunha Foucault, atravessada por diversas condições que estão submetidas
aos discursos e aos sujeitos que a produzem.
Palavras-chaves: violência contra a mulher; Teorias da Recepção; Análise do
Discurso; telenovela; redes sociais.
ABSTRACT
This work is a study about communication in a perspective of discourse analysis. The
objective is to research how the reception process about violence against women
works between spectators and soap operas, specially on the plots of Mulheres
Apaixonadas and A Favorita. We started with a description of the scenes that deal
with this theme in order to understand how these narratives are created so that, later,
we could identify the relationship between producers and interlocutors of soap
opera's content, applying the social aspects of reception theories of authors like
Martin-Barbero (2003), Orosco (1997) e Ruótolo (1998). We will also go through how
media's culture interrelates with these practices analyzing the discourses that build
up on social networks' materials of Orkut. The methodology is based on theorical
perspectives proposed by Michel Foucault (1996) and on studies of Gregolin (2003,
2004, 2005, 2007), that go ue through the ham asconditions of discourse production
based on their own stories and those of a movement of regularities and dispersion.
At the end we conclude on the existance of a discourse on soap operas on study, like
Foucault proposed, conditioned by discourses and by the subjects who produce
them.
Key words: violence against women; reception theorie; discourse analysis; soap
opera; social networks.
LISTA DE FIGURAS E QUADROS
FIGURA 1 - O Nascimento da Virgem___________________________________ 29
QUADRO 1 - Mudanças legais pós lei Maria da Penha_____________________ 77
QUADRO 2 – Regularidades ________________________________________ 86
QUADRO 3 – Dispersões ___________________________________________ 88
QUADRO 4 – Discurso Mulheres Apaixonadas ______________________________ 95
QUADRO 5 – Discurso A Favorita ________________________________________ 100
LISTA DE IMAGENS
IMAGEM 1 - Repercussão do primeiro beijo lésbico da televisão brasileira______56
IMAGEM 2 - Jade dançando em O Clone _______________________________ 57
IMAGEM 3 - Maya e as peculiaridades do vestuário indiano_________________58
IMAGEM 4 - Viúva Porcina com um lenço Rosa Flúor______________________58
IMAGEM 5 - As meias de lurex em Dancing Days_________________________59
IMAGEM 6 - Propaganda em Caminho das Índias_________________________63
IMAGEM 7 - Abertura de Mulheres Apaixonadas__________________________71
IMAGEM 8 - Abertura da telenovela A Favorita___________________________ 79
IMAGEM 9 - Catarina bate em Léo_____________________________________82
IMAGEM 10 - Comunidade "Salve Jorge - Rede Globo"____________________ 89
IMAGEM 11 - Marcos, de Mulheres Apaixonadas_________________________ 91
IMAGEM 12 - Comunidade contra Marcos, de Mulheres Apaixonadas_________ 92
IMAGEM 13 - A Favorita_____________________________________________93
IMAGEM 14 - Por que gostamos do Léo?_______________________________ 94
IMAGEM 15 - Violência doméstica na rede______________________________ 95
IMAGEM 16 – Catarina______________________________________________96
SUMÁRIO
INICIANDO A CAMINHADA ............................................................................ 12
CAPÍTULO 1 .................................................................................................... 16
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES
NA SOCIEDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA. .................................... 16
1.1 – UMA FOTOGRAFIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER .................... 23
1.2 – FAMÍLIAS E SUAS AMBIGÜIDADES EM FACE DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER .... 28
CAPÍTULO 2 .................................................................................................... 40
MÍDIA E SEUS DISCURSOS ........................................................................... 40
2.1 – COMUNICAÇÃO MÍDIA E TELENOVELA............................................................. 40
2.2 O LUGAR DAS MEDIAÇÕES .............................................................................. 43
2.3 - DISCURSO, IDENTIDADE E MÍDIA .................................................................... 53
2.4 – PROBLEMATIZANDO IDENTIDADES ................................................................ 56
2.5 - REDES DE MEMÓRIA .................................................................................... 60
CAPÍTULO 3 .................................................................................................... 62
EM CENA: TELENOVELAS ............................................................................ 63
3.1 – UM ESTUDO DE CASO DE PRODUÇÕES DA REDE GLOBO ................................. 63
3.2 – EM PAUTA: MULHERES APAIXONADAS ............................................................ 72
3.2.1 - O núcleo Raquel, Marcos e Fred .......................................................... 74
3.3 – EM PAUTA: A FAVORITA ................................................................................ 80
3.3.1 -O núcleo Catarina e Leo ........................................................................ 81
3.4 – REGULARIDADES NO DISCURSO DAS TELENOVELAS ....................................... 84
3.5 – A PARTIR DE REGULARIDADES, DISPERSÕES .................................................. 86
3.6 – AS MÍDIAS SOCIAIS ENTRAM NO DEBATE: O CASO DO ORKUT ........................... 89
3.6.1 – O público de Mulheres Apaixonadas .................................................... 92
3.6.2 – O público de A Favorita ........................................................................ 95
PARA CONTINUAR REFLETINDO ............................................................... 102
REFERÊNCIAS .............................................................................................. 106
12
INICIANDO A CAMINHADA
No ano de 2011 ingressei no mestrado de Comunicação, Linguagens e
Cultura da Universidade da Amazônia. No início, a ideia era fazer um trabalho de
campo para analisar como as mulheres que sofriam violência doméstica faziam uso
e criavam sentidos a partir das cenas de agressão nas telenovelas. No entanto, no
decorrer do curso, com o aprendizado de novas disciplinas e os encontros com a
minha orientadora, novos rumos foram sendo desenhados para a minha pesquisa.
O meu interesse pelo tema violência surgiu desde a graduação, quando
participei do programa de iniciação científica, sob a orientação da professora Danila
Cal, que trabalha com pesquisas sobre violência contra a criança e o adolescente.
Como a minha formação é em jornalismo, verifiquei a forma como os meios de
comunicação impressos estavam abordando tal violência. Durante esses estudos,
me chamou atenção, também, a abordagem na cobertura dos casos sobre a
violência doméstica, que eu analisei no meu trabalho de conclusão de curso e na
minha monografia de especialização.
Durante o mestrado, o tema ganhou mais consistência devido à possibilidade
de interdisciplinaridade que o curso oferece. Portanto, trabalhar o tema violência
contra a mulher para além da comunicação me permitiu transitar por várias áreas do
conhecimento, o que acredito só ter engrandecido a minha pesquisa.
Já falando sobre as telenovelas, Em “Mulheres Apaixonadas”, por exemplo,
de Manuel Carlos, exibida em 2003, a personagem Raquel, vivida pela atriz Helena
Ranaldi, tem uma vida marcada por violências praticadas pelo seu ex-marido,
Marcos, personagem do ator Dan Stulbach. Na tentativa de se livrar de um passado
de abusos, Raquel foge de São Paulo para o Rio de Janeiro e passa a dar aulas de
Educação Física em uma escola. Marcos, entretanto, descobre o paradeiro de sua
ex-mulher e reinicia suas práticas de agressão. Entre outras violências, ele
costumava bater nela com uma raquete de tênis, prática agravada pelo fato de
Raquel ter se envolvido amorosamente com seu aluno Fred, que tenta impedir as
agressões contra a professora.
“Você não serve nem para Rameira”. Tal ofensa, proferida por Léo a sua
esposa, Catarina, é o retrato de uma motivação banal: o atraso na hora de servir o
jantar. A telenovela de 2007, “A favorita”, de João Emanuel Carneiro, retrata o drama
de Catarina, personagem interpretada pela atriz Lilian Cabral, que sofre diversos
tipos de violência, sempre praticadas por Léo, seu marido, vivido por Jackson
13
Antunes. A mulher é agredida e humilhada diariamente na frente da família e com a
autoestima sempre baixa, nem pensa em se separar.
Comuns e, na mesma medida, complexos, os dramas referidos acima
passeiam entre a ficção e a realidade. Pelas questões levantadas, não é possível
compreender a teledramaturgia brasileira apenas como entretenimento. No Brasil, a
telenovela funciona como uma importante formadora de sentidos no cotidiano do
interlocutor, que, no processo de recepção, pode reger e criar seus próprios usos, a
partir da programação televisiva.
Segundo Santos (2010, p. 1) “além de um produto cultural, a telenovela está
integrada à realidade social dos sujeitos por meio das representações sociais”.
Essas representações, criadas pelos meios massivos, acabam por formar
identidades e discursos, como acontece nos casos de violência doméstica contados
pelas telenovelas, sendo que, em meio a este processo, o interlocutor produz
sentidos a partir de suas possibilidades históricas.
No caso específico das telenovelas referidas, temos presente a temática da
violência contra a mulher. No que tange a compreensão dos estudos de
comunicação e recepção, podemos propor o seguinte questionamento: a partir das
informações veiculadas em tais obras de ficção, quais seriam os possíveis usos e
sentidos adotados pelo telespectador no seu cotidiano?
Dessa forma, o primeiro capítulo da pesquisa apresenta aspectos históricos
que mostram a presença da mulher na sociedade brasileira, priorizando questões
relativas à violência e discorrendo, também, sobre as estratégias que as mulheres
usaram ao longo dos anos para garantir os seus direitos frente a uma sociedade
fundamentada em um pensamento patriarcal e machista. Pensamento esse que
muitas mulheres acreditavam ser o correto e que até mesmo defendiam, sendo que
outras vezes tentavam o derrubar, conformavam-se quando não conseguiam e, ao
mesmo tempo, revoltavam-se, configurando um processo de luta não linear e muito
menos homogêneo, como mostra Michel Foucault (1986) ao abordar a não
linearidade da história.
Nesse percurso social e histórico, que podemos chamar de revolução
protagonizada pelas mulheres, merece destaque as múltiplas faces dos papéis que
socialmente lhes foram atribuídos, como de mãe, esposa dedicada e dona de casa
exemplar; de mulher que se separa e cria os filhos sozinha, amparada apenas pelo
próprio trabalho, ou de mulher independente, que opta por não ser mãe. Tal decisão,
14
para algumas feministas, representava a efetivação de uma vida calcada em planos
de independência e liberdade, como também uma revolução dentro de si, em uma
da tentativa de descobrir o que, afinal, é ser mulher em uma sociedade tão marcada
por valores masculinos.
No segundo capítulo, buscamos abordar alguns conceitos de análise do
discurso e mídia, utilizando para isso as teorias da comunicação pós Escola de
Frankfurt, discorrendo sobre como o fenômeno da recepção está sendo construído
na América latina. Com isso, objetivamos analisar a recepção como o lócus
privilegiado de negociação e de estruturação do próprio significado, segundo Leal
(1995), como também ressaltar que o produto dessa nova forma de pensar culminou
em novas problemáticas que, conforme Jacks (1995), entendem as mediações como
importante objeto de estudo e a escolha do cotidiano como lugar prioritário de
análise; além de reconhecer os receptores como agentes capazes de produzir
sentindo.
Assim, com base nas questões de pesquisa e objetivos apresentados,
pensaremos a telenovela como exemplo de mediação que atravessa a cotidianidade
do telespectador, sendo fundamental, para isso, estudar o uso que os sujeitos fazem
dessas mensagens e “perceber na realidade do sujeito receptor seu modo de viver”
(SANTOS 2010, p. 06). Nesse capítulo, também vamos tratar sobre a análise do
discurso, escolhida como ferramenta da nossa análise, utilizando conceitos como a
noção de descontinuidade histórica, identidades, relações de poder, regularidades e
dispersões e redes de memória, aplicando cada um deles ao campo da
comunicação.
No terceiro e último capítulo discorremos sobre os conceitos de telenovela
brasileira. Sobre isso é importante destacar que também nos apropriamos do termo
teledramaturgia para falar deste fenômeno, já que ele diz respeito a toda gama de
produção televisiva nos quesitos drama, como séries, filmes, curtas-metragens e
telenovelas. Nesse momento do trabalho, apresentamos a descrição das telenovelas
escolhidas para serem analisadas, sendo elas “Mulheres apaixonadas” e “A favorita”,
fazendo abordagem principal sobre os núcleos que envolvem os personagens que
destacamos. Para isso, escolhemos algumas cenas que estão disponíveis no site
YouTube, analisando-as segundo os conceitos trabalhados ao longo dos demais
capítulos, abordando também as regularidades e dispersões presentes nas duas
telenovelas.
15
Para buscar responder os questionamentos desta pesquisa, a metodologia
adotada nesse trabalho foi o estudo de caso baseado na pesquisa qualitativa.
Também buscamos aplicar à comunicação ferramentas empregadas à análise do
discurso que, antes eram exclusivas, ou mais utilizadas, pelo campo da linguística.
Dessa forma, procuramos tecer uma abordagem interdisciplinar que perpassa esses
dois campos de saber.
Segundo Minayo (2004), a pesquisa qualitativa é usada nas ciências sociais
para adentrar em questões que o método quantitativo não consegue dar conta.
Dessa forma, entende-se que esta metodologia é utilizada para responder questões
que envolvem significados culturais como crenças, valores e etc, tratando com
profundidade esse tipo de problemática.
O estudo de caso foi adequado já que trabalhamos com a temática violência
contra a mulher especificamente nas telenovelas Mulheres Apaixonada e A Favorita.
Posteriormente mostramos a aplicação das ferramentas da análise do discurso no
caso da Rede Social Orkut. Sobre a análise do discurso, explicaremos melhor este
método a partir do segundo capítulo. Portanto o estudo de caso foi escolhido
considerando que ele tem como objetivo especificar fenômenos particulares.
Segundo André(2008, p. 17-18), “o caso em si tem importância, seja pelo que revela
sobre o fenômeno, seja pelo que representa. É, pois, um tipo de estudo adequado
para investigar problemas práticos, questões que emergem do dia-a-dia.”
Dessa forma, vamos estudar, num primeiro momento, as cenas que envolvem
a violência contra a mulher que coletamos a partir das cenas disponíveis na rede
social YouTube, usando para isso o caminho metodológico descritivo. Assim,
consideramos que utilizamos também a análise de conteúdo para fazer essa
descrição.
A análise de conteúdo é o conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não), que permitem a interferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens. (BARDIN, 1977, p. 42).
Na coleta de dados, assistimos as cenas das referidas telenovelas disponíveis
no YouTube, selecionamos as que faziam referências ao núcleo de violência contra
a mulher e descrevemos apenas aquelas que se relacionavam com os conceitos
adotados neste trabalho.
16
Depois, analisamos discursos construídos por telespectadores, disponíveis
em comunidades virtuais da Rede Social Orkut e criadas a fim de fomentar o debate
acerca da temática e dos personagens envolvidos nas tramas. Para isso, utilizamos
os enunciados das comunidades em questão e aplicamos os conceitos teóricos que
trabalhamos anteriormente: concepções e representações sobre as mulheres,
análise do discurso e aspectos referentes às telenovelas. Nesta etapa, acessamos
todas as comunidades disponíveis na respectiva rede social e selecionamos as que
analisamos no trabalho de acordo com as diferentes opiniões encontradas.
É importante destacar que quando quantificamos os membros das
comunidades a nossa intenção não é analisar as alterações ocorridas ao longo do
tempo, haja vista que há uma passagem temporal desde que as telenovelas foram
exibidas e que as comunidades foram criadas até a data da nossa análise. Assim,
nosso foco no terceiro capítulo desse trabalho foi mostrar como os conceitos que
foram usados nos capítulos anteriores resurgem para analisarmos nosso objeto de
estudo, procurando trazer uma perspectiva interdisciplinar.
1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NA SOCIEDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA
Não se trata aqui da chamada revolução
feminista, com tantas polêmicas e conotações ideológicas. [...] Toda revolução é mesmo
exagerada, [...] mas a verdadeira revolução teria a cabeça mais fria. No seu planejamento
e estrutura seria uma revolução prudente e mais paciente, obscura, talvez. Contudo,
ambiciosa na sua natureza mais profunda. Lygia Fagundes Telles
Neste trabalho, como já referido na introdução, traremos para o debate
telenovelas brasileiras que pautam a violência contra a mulher. Acreditamos que a
mídia seja responsável por trazer à tona temas de interesse público, pois sua
visibilidade passa a atingir diretamente a sociedade e, com isso, órgãos públicos,
agendas políticas e a mobilização social dos cidadãos.
17
Sobre isso, Wânia Pasinato1, socióloga e pesquisadora do Núcleo de
violência da USP, afirma que quando o tema da violência é abordado em uma
novela, as vítimas deixam de se sentir como um caso isolado, passando a procurar
alternativas para sair da situação, sendo que tal atitude repercute diretamente no
aumento de ocorrências nas delegacias.
É o que pensa também a psicóloga do Conselho Federal de Psicologia e
coordenadora de mobilização e organização do Fórum Nacional pela
Democratização da Comunicação, Roseli Goffman. Segundo ela:
A televisão é uma rede social que influencia e modela comportamentos e a novela pode produzir uma identificação, não com a mulher que sofre passivamente, mas com aquela que reage à violência ao ser contemplada por seus direitos. Além disso, a audiência das novelas chega a 40% dos brasileiros e, portanto, atinge mulheres que ainda desconhecem seus direitos. Os autores precisam ser assessorados pelos grupos que tornam legítimos os direitos humanos no país para poder transmiti-los2.
Cilene Canôas (1997), por sua vez, afirma que as mulheres enquanto sujeitos
coletivos têm se movimentado para assegurar melhores condições de vida e de
trabalho, principalmente a partir da segunda metade do século XX. É importante
considerar, nesse contexto, que o motor das lutas das mulheres devia-se a busca da
desconstrução de um ideário e suas práticas construídas em muitas sociedades e
contextos históricos diferenciados, nos quais a mulher era identificada socialmente
por um papel inferior ao do homem, sendo considerada apenas uma auxiliar,
colaboradora, responsável por satisfazer as necessidades masculinas. Segundo
Guimarães (2005), na antiguidade, por exemplo, quase não existiam direitos civis
para as mulheres.
Na era vitoriana, que corresponde ao período de 1837 a 1901, na qual a
Inglaterra era governada pela rainha Vitória, as mulheres eram vistas como “anjos
do lar”, onde sua função principal era cuidar da casa, do marido e dos filhos. Elas
não participavam da política, não podiam votar e quase não tinham oportunidades
de trabalho (MONTEIRO, 1998).
1Entrevista disponível em:
http://agenciapatriciagalvao.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2226:novela-pauta-midia-sobre-violencia-contra-a-mulher&catid=51:pautas Acesso em março de 2012. 2 Entrevista disponível em:
http://agenciapatriciagalvao.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2226:novela-pauta-midia-sobre-violencia-contra-a-mulher&catid=51:pautas. Acesso em março de 2012.
18
No Brasil, segundo Mary Del Priore (2011), até 1932 a mulher não podia votar
e o homem era considerado o chefe da família. A partir dos anos 1950, elas
começam a lutar por seus direitos e a obter espaço na sociedade e no mercado de
trabalho. As mulheres passam a acreditar em suas capacidades e com isso mudam
a história, tentando se estabelecerem financeiramente e intelectualmente da mesma
maneira que os homens, sem, contudo, deixarem de estar vinculadas a seus papéis
de mãe e esposa.
Mesmo com o avanço das mulheres no contexto social do país, as relações
de poder que reforçam e naturalizam a dominação masculina se mantiveram
enraizadas, paradoxalmente, nas práticas de instituições diluídas e nos discursos
refratários que abordam as transformações de um novo lugar da mulher no Brasil e
no mundo. Esse comportamento encontra ensejo nos postulados patriarcais e
consiste na subordinação da mulher à figura do pai, associado ao machismo que a
submete ao poder de dominação atribuído ao homem, impondo-lhe, mesmo que de
forma sutil, normas de conduta e de vida em sociedade. Esse comportamento, como
defendem alguns estudiosos, corrobora com a presença significativa da violência
doméstica contra a mulher.
Sobre isso, a delegada da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher,
Alessandra Jorge, acredita que a cultura patriarcal favorece a violência doméstica.
A cultura machista e a cultura patriarcal regem a humanidade desde os primórdios. A mulher sempre foi considerada uma cidadã de segunda classe; a mulher não tinha o direito de votar, isso sem contar muitas outras coisas absurdas que ela não tinha acesso. Então, o homem que bate em mulher vê a sua companheira não como um sujeito de direitos, mas sim como um objeto, e a reprime dessa forma, como acha correto. E a própria mulher, inserida nesse contexto, porque viu a sua avó e a sua mãe apanharem e ficarem caladas para manter o casamento e a família, também vai reproduzir esse comportamento (JORGE, 2009. Informação verbal).3
Como produto cultural construído a partir de práticas sociais, a violência
contra a mulher deve ser vista como qualquer outra violência, cujas consequências
devem recair sobre os agressores. Na maioria das vezes, o agressor se encontra
dentro da própria casa onde vive a mulher e, em geral, é familiar da vítima,
predominando os abusos cometidos pelos próprios cônjuges ou companheiros.
3 JORGE, Alessandra. Violência Doméstica contra mulheres. Belém, 2009. Entrevista concedida a
MELO, Thiago, em 11 set. 2009.
19
Segundo Samuel Buzaglo (2007), advogado criminalista, “a violência tem
mais probabilidade de ocorrer entre pessoas que estão intimamente vinculadas no
plano emocional, e, portanto, reciprocamente vulneráveis” (idem, p.56). No Rio de
Janeiro, a pesquisa Dossiê Mulher 2012 revelou que das 303 mulheres
assassinadas em 2011 na cidade, 14,2% das vítimas eram ex-companheiras ou
companheiras do provável autor do homicídio, sendo que 19,1% conheciam os
acusados4.
A delegada Alessandra Jorge, mencionada anteriormente, também aponta
outro fator que dificulta a denúncia da violência doméstica. Ela se refere ao fato de
que, muitas vezes, a mulher acredita que o marido estava com ciúmes e, por isso,
exaltou-se a ponto de proferir humilhações verbais ou até praticar agressões físicas.
Sobre isso, cabe apresentarmos o caso do Texas, estado americano que até 1974
colocava a lei totalmente a favor do homem em casos de violência praticada, entre
outras causas, por ciúme. Em tal contexto, o marido que surpreendesse sua esposa
com um amante e a matasse por justificativa da traição era poupado do julgamento.
Por muito tempo, no Brasil, o homem que cometesse violência e até homicídio
contra a mulher que praticasse adultério podia ficar livre da pena, com base na tese
da legítima defesa da honra. Um caso que ficou conhecido no país, por exemplo, foi
o da mineira Ângela Diniz, assassinada em 1976 pelo seu companheiro. No
julgamento, o réu foi absolvido utilizando o argumento de que a mulher havia ferido
sua honra ao traí-lo. Na ficção, o remake da telenovela Gabriela5 destacou tal
temática por meio da relação conjugal do Coronel Jesuíno, vivido por José Wilker, e
Dona Sinhazinha, interpretada por Maitê Proença, que foi morta pelo marido após
ser vista com seu amante, sendo, para o coronel, necessário “lavar sua honra”. No
entanto, acabou preso.
O código penal brasileiro de 1890 dizia que só a mulher era condenada em
caso de adultério, sendo punida com prisão celular6 de um a três anos. O homem só
era considerado adúltero no caso de possuir uma amante sustentada por ele. Essa
desigualdade justificava-se por um discurso biologicista em que a mulher, tendo
4 Pesquisa Dossiê Mulher. Disponível em:
http://urutau.proderj.rj.gov.br/isp_imagens/Uploads/DossieMulher2012.pdf Acesso em novembro de 2012. 5 A primeira versão da telenovela foi no ano de 1960. O remake foi no ano de 2012, exibido pela Rede
Globo. 6 A prisão celular foi a grande novidade do Código penal de 1890 e nada mais é do que a prisão em
cela. Antes as penas eram atribuídas de forma individual, mas tal penalidade foi inviabilizada pelo aumento da população.
20
menos sensibilidade sexual, conseguia, por exemplo, manter-se casta por longos
anos, o que para um homem não seria possível.
Caso o marido tivesse um caso extraconjugal, cabia a mulher entender e
perdoar a “sexualidade excessivamente exigente” do homem. Para a sociedade, era
de sua responsabilidade manter a fidelidade do marido, como veiculado pelo Jornal
das Moças, de 16 de maio de 1957 (apud PRIORE, 2011, p. 615).
No terreno do Amor conjugal, a mulher deve sempre suportar com paciência que dá o amor verdadeiro, deixando que ele [o marido] encontre no lar tudo o que deseja, dando-lhe, então, motivos para que, sozinho, veja os erros cometidos fora de casa. Cabe à mulher manter no homem a vontade de voltar para junto dos seus, no lugar reservado para ele, onde encontrará a felicidade, esperando-o de braços abertos.
No que tangia aos crimes passionais, à figura masculina raramente cabia a
culpa, já que “nunca a explosão da paixão na mulher poderia ser tão violenta quanto
no homem” (SOIHET, 2011, p.381). Por isso, exigia-se sempre a compreensão das
mulheres diante do “temperamento poligâmico do homem”. Segundo Soihet (idem),
os crimes passionais e de legítima defesa da honra eram julgados muito mais pela
conduta moral dos envolvidos do que pelo ato criminoso em si. Assim, se o homem
era trabalhador, cumpria suas obrigações de provedor da família e sua esposa não
era uma “dona de casa e mãe exemplar”, por exemplo, provavelmente ela seria
prejudicada no julgamento. O contrário também acontecia, mesmo sendo mais difícil
de ser comprovado: se o homem não cumprisse suas obrigações de mantedor do
lar, poderia ser o culpado, caso as acusações fossem efetivamente provadas.
No entanto, também havia a defesa da honra feminina. Se comprovado o
desrespeito da mesma, considerava-se o ato como um atentado a propriedade do
pai ou marido. Se fosse necessário à mulher assassinar um homem que atentasse
contra a sua honra, estava justificado. Soihet (2011, p. 395) cita um caso onde a
defesa afirmou que “a honra constitui o mais sagrado e precioso patrimônio humano
de todo o homem e que nenhum direito é, portanto, mais essencial a pessoa
humana que o direito a honra” (idem, p. 395). Nesse sentido, preservar a honra
individual era necessário, uma vez que ela era considerada um dos fundamentos da
vida social.
21
Se a defesa da honra constitui dirimente de responsabilidade dos delitos praticados nas circunstâncias definidas no art. 34, do Código Penal, mais acentuada deve ser a justificativa quando essa defesa se refere ao sentimento de fidelidade conjugal, fundamento de toda a organização social e base primordial da moral pública e privada. (ibidem).
Nesse caso, o juiz concedeu as justificativas e reafirmou que pertence a
mulher o direito de
prevenir por todos os meios e ultraje de que está ameaçada e de empregar por este efeito a violência, pois pode tudo recear daquele que se lança sobre ela para um atentado deste gênero (ao pudor). Este perigo basta para legitimar a morte ou os golpes e feridas (ibidem).
É interessante perceber, como constata Soihet (2011), que nesses casos as
mulheres conseguem instituir uma espécie de “dominação masculina contra o seu
próprio dominador” na medida em que se apropriam de argumentos como os da
manutenção da castidade e do zelo pela honra estabelecida pelos próprios homens,
utilizando-os contra os mesmos. Como vimos anteriormente, mulheres conseguiram
ficar impunes diante de crimes por elas cometidos tendo por base a defesa da
honra, ou por justificativas referentes ao não cumprimento do homem no seu papel
de sustento do lar.
Tais penas contra a honra mudaram apenas no ano de 2005, quando o então
presidente da república, Luís Inácio Lula da Silva, sancionou uma lei que modificou o
Código Penal, retirando o adultério do capítulo dos crimes contra o casamento. A
partir de então, o homem que agredisse a mulher com a justificativa de traição não
ficaria mais impune.
Entretanto, apesar dos avanços legais, Buzaglo (2007) mostra que, de acordo
com dados divulgados em 2005 pela Organização Mundial de Saúde, 25% do total
das mulheres agredidas no Brasil não contaram a ninguém sobre a violência que
sofreram; 60% nunca deixaram o lar sequer por uma noite, em função das
agressões sofridas; menos de 10% procuraram serviços especializados de saúde ou
segurança e, em média, a mulher demora 10 anos para pedir ajuda pela primeira
vez.
22
Na tentativa de coibir e punir a violência doméstica, em 16 de junho de 2004
foi sancionada a primeira lei penal específica para tais casos. A lei nº 10.886
acrescentou novo parágrafo no artigo 129 do código penal, que diz respeito à lesão
corporal.
Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano. (JESUS, 2010, p.50)
No entanto, essa nova lei não trouxe grandes avanços na coibição da
violência doméstica, já que a única mudança foi o aumento do tempo de detenção,
uma vez que, para a lesão corporal simples, a pena era de três meses a um ano e
continuava sendo considerada infração de menor potencial ofensivo. Por isso, o dia
7 de agosto de 2006 se constituiu como um marco para as mulheres que sofrem
violência dentro de suas casas. Sancionada pelo presidente Luis Inácio Lula da
Silva, a lei de número 11.340 surgiu a partir da denúncia de uma mulher e tem a
função de criar mecanismos para impedir e punir a violência doméstica e familiar
contra as mulheres.
Maria da Penha, mulher que deu nome à lei, foi hospitalizada no dia 29 de
maio de 1983, quando seu marido tentou matá-la enquanto dormia, com o disparo
de uma arma de fogo. Ao sair do hospital, após duas semanas, a farmacêutica ficou
com sequelas permanentes da paraplegia nos seus membros inferiores. Após esse
caso, o marido de Maria da Penha, em mais um ato de violência, tentou matá-la
eletrocutada enquanto ela tomava banho, sendo que a farmacêutica sobreviveu a
mais este atentado. Somente depois de 19 anos e seis meses, seu agressor foi
finalmente condenado e preso.
Diante desse caso, a Comissão Interamericana de Direitos da Organização
dos Estados Americanos publicou um relatório no qual se recomendava ao Brasil a
realização de uma Reforma Legislativa, com o objetivo de combater a violência
doméstica contra a mulher. A legislação brasileira atendeu a recomendação e criou
a Lei Maria da Penha, que pune o agressor com maior agilidade e assegura às
mulheres seus direitos de cidadãs.
No entanto, a lei tem sofrido diversas criticas. Jesus (2010) discorre sobre o
assunto quando diz ser ela um
23
estatuto eivado de impressionantes inconstitucionalidades, contradições e confusões, péssima técnica e imperfeições de redação, a nova lei será objeto de inúmeras críticas e aplausos, submetendo mais uma vez o estudioso do direito brasileiro a intenso esforço de interpretação. (idem, p. 52).
Para alguns, a lei fere a Constituição, que define “homens e mulheres iguais
em direitos e obrigações”, protegendo apenas as mulheres. Há quem acredite que a
lei deva ser expandida para outros grupos. No entanto, apesar das criticas, a medida
pode ser considerada um avanço considerável na legislação do país, como também
resultado da intensa luta das mulheres na sociedade brasileira.
1.1 Uma fotografia da violência doméstica contra a mulher
Para Maria Porto (2002), a violência é um fenômeno primeiramente empírico
e não teórico, ou seja, o senso comum, a mídia e outros setores da sociedade não
científica se apropriam do sentido da violência, que é retirado da realidade social.
Segundo a autora, é necessário que este fenômeno seja estudado teoricamente
para que seja explicado e teorizado de maneira a atender as demandas que visam
aprofundá-lo.
Em uma tentativa de esclarecer o conceito, Michaud (1989, apud PORTO,
2002) afirma que a violência existe
quando, numa situação de interação, um ou vários atores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou mais pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas participações simbólicas e culturais. (ibidem)
No sentido histórico-cultural, o conceito de violência muda de sociedade para
sociedade, podendo ser tratada não somente como violência, mas como violências,
já que existem vários tipos, presentes em diferentes culturas. Entre os tipos de
violência, estão as práticas físicas, psicológicas, verbais, sexual, a negligência, que
representa a omissão do responsável pela pessoa dependente em proporcionar as
24
necessidades básicas, e o bullying7, que é o uso do poder ou da força para intimidar
e perseguir as pessoas.
A Organização Mundial de Saúde (OMS apud MUSUMECI, 2007, p. 153)
define violência como
uso de força física ou poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande probabilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação. (ibidem)
Segundo essa definição, muitos atos podem ser considerados “violentos”,
mesmo que não envolvam força física, como, por exemplo, descaso, abandono,
discriminação, ofensa moral ou tortura psicológica.
Fazendo uma digressão histórica, o aumento da violência afetou diretamente
a estrutura das casas no início do século XX. Odalia (1985), em uma das obras
pioneiras em abordar as mudanças arquitetônicas ocasionadas pela violência,
mostra que com o passar dos anos a arquitetura do espaço aberto cedeu lugar a
uma arquitetura de defesa e proteção. Antes, a casa era vista como um local de
proteção para a família; um espaço em que cada membro do lar estaria protegido da
violência que acontecia nas ruas. No entanto, o mesmo local que deveria proteger
se tornava, como ainda hoje, palco de violência doméstica sofrida, na maior parte
das vezes, por mulheres.
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO, em inglês), na Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a
Mulher8, a define como
qualquer ato de violência com base no gênero, sexo, que resulta em, ou que é provável resultar em dano físico, sexual, mental ou sofrimento para a mulher, incluindo as ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária de liberdade, ocorrida em público ou na vida particular (UNESCO, 1993).
7 “Bullying”, derivado da Língua Inglesa, significa literalmente “saco de pancada”. O termo é
associado a atos de violência física ou psicológica, intencionais e repetidos, praticados por um indivíduo ou grupo de indivíduos com o objetivo de intimidar ou agredir outro indivíduo incapaz de se defender. 8 Declaration on the Elimination of Violence against Women. Disponível em:
<http://www.un.org/rights/dpi1772e.htm>. Acesso em: 20 abr. 2011.
25
Fica claro, dessa forma, que a violência contra a mulher vai muito além do
espancamento, muitas vezes noticiado nos jornais. Assim como a OMS, o artigo 5º
da Lei nº 11.340, mais conhecida como a Lei Maria da Penha9, de 7 de agosto de
2006, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer “ação ou
omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou
psicológico e dano moral ou patrimonial”. Segundo o artigo 7° da mesma lei, a
violência doméstica e familiar contra a mulher se configura das seguintes formas:
física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Entretanto, grande parte dos leitores
só conhece a agressão física e, por isso, permanece desinformada sobre os outros
tipos de agressão, que não deixam de se configurar como violência doméstica.
De acordo com a OMS, a violência contra mulheres é, atualmente, uma das
maiores preocupações de saúde e dos direitos humanos, sendo “um dos fenômenos
sociais mais denunciados e que mais ganharam visibilidade nas últimas décadas em
todo o mundo” (JESUS, 2012, p. 8). As mulheres podem ser vítimas de abuso físico
ou mental em seus diferentes ciclos de vida, como na infância e/ou adolescência, ou
durante a fase adulta e, até mesmo, na velhice. Na Declaração sobre a Eliminação
da Violência contra a Mulher, estudos da população mundial relatam que entre 12 e
25% das mulheres sofreram ataques ou foram violentadas sexualmente por seus
parceiros ou ex-parceiros em alguma ocasião de suas vidas.
Segundo Osório (2004), para se entender o que é violência doméstica é
necessário que se responda a seguinte questão: “quem agride e onde agride”. Para
que seja considerada violência conjugal, é necessário que o agressor frequente a
casa da vítima e vice-versa, ou more com ela, independente do que seja: marido,
namorado, amante. A segunda condição é se o ambiente é doméstico e se o
agressor tem livre acesso a ele.
Como já mencionado, mulheres vítimas dessa violência sofrem em casa o
que, muitas vezes, não é levado ao conhecimento da sociedade. A violência
doméstica é silenciosa e covarde, pois, em boa parte dos casos, a mulher não tem
coragem de denunciar o agressor, que normalmente é alguém que convive com ela
na mesma casa e com quem tem uma relação bastante íntima.
Sobre isso, cabe dizer que a falta de reconhecimento da igualdade de direitos
torna a mulher vulnerável à violência e em especial às agressões no âmbito
9 Disponível em http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm. Acesso em:
28 abr. 2011.
26
doméstico e nas relações intrafamiliares. Essa diferenciação é causada, também,
pelos preconceitos produzidos a partir de diferenciações entre gêneros, sendo
necessário que se entenda alguns conceitos em torno dos seus significados.
Segundo Aguiar (1997, p.103), “o gênero é um elemento constitutivo de
relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos; de outro lado, o
gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder”. Conforme o autor,
a diferença entre sexo e gênero é que o primeiro seria usado para a definição
biologicamente de quem é o macho e a fêmea e o segundo estaria relacionado às
construções sociais, culturais e psicológicas que se impõem sobre essas diferenças
biológicas.
Se quisermos entender o comportamento de qualquer sujeito real uma mulher em carne e osso não é para seu útero nem para seu equilíbrio hormonal que devemos olhar, mas sim para as crenças e condições históricas que revelam o contexto cultural em que ela se move.10
Dessa forma, a subordinação feminina não é algo natural, que já nasce com
ela, e sim um acervo de culturas, crenças e costumes que foram sendo construídos
e lentamente impostos a mulher. Percebe-se, por exemplo, que quando o sexo de
um bebê é anunciado imediatamente já se atribuem à criança as regras e os códigos
culturais a serem cumpridos para o resto da vida. Dessa forma, começam a surgir as
hierarquias e desigualdades impostas ao gênero e foi assim que, ao longo da
história, se definiu a classificações da mulher como sexo frágil, como menos capaz e
carente de proteção de um ser mais forte, o homem.
Como este trabalho tem como princípio tecer análises sobre o gênero
feminino, é importante que se entendam também as construções da identidade
feminina. Para isso buscaremos aporte em Judith Buttler (2012), autora que defende
ser necessário questionar a produção de identidades femininas dentro do próprio
movimento feminista. Segundo ela, há uma tendência em reduzir a complexidade do
sujeito mulher através de traços comuns e estáveis, sendo necessário indagar se
10
Claúdia Fonseca em palestra proferida durante o Seminário 500 Anos de Dominação Masculina? Organizado pelo Museu Antropológico do RS, Estado do RS, Secretaria da Cultura - Museu de Arte de Rio Grande do Sul, 24 março, 1999. Disponível em: http://www.antropologia.com.br/tribo/genero/artigos/a1-cfonseca.pdf Acesso em dezembro de 2011.
27
existiriam traços comuns entre as “mulheres” preexistentes a sua opressão ou estariam as mulheres ligadas em virtude somente de sua opressão? Há uma especificidade da cultura das mulheres, independente da sua subordinação pelas culturas masculinistas hegemônicas? (idem, p.21)
Para se construir traços estáveis, coerentes, permanentes e comuns na
tentativa de criar representações para esse sujeito, torna-se inevitável a criação de
um processo de exclusão. Segundo a autora, inconscientemente essa estratégica
acaba reforçando as relações de poder entre os gêneros. Nesse sentido, “a crítica
feminista também deve compreender como categoria das ‘mulheres’ o sujeito do
feminismo, que é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por
intermédio das quais se busca a emancipação” (idem, p.19). Assim, a autora
acredita que a identidade do sujeito feminista não deve ser necessariamente o
fundamento da política feminista.
Tendo por base Michel Foucault, Buttler (idem) sugere que as práticas
discursivas formam identidades e questiona em que medida a identidade de gênero,
que pode ser entendida como uma relação entre sexo, gênero, assim como prática
sexual e desejo, “seria o efeito de uma prática reguladora que se pode identificar
como heterossexualidade compulsória?” (ibidem, p. 44). Para ela, uma pessoa é um
gênero e assim é em virtude do seu sexo, já que se tende a subordinar a noção de
gênero a de identidade.
Ao longo da história, a diferenciação entre o gênero masculino e o feminino é
usada para justificar os abusos cometidos contra as mulheres. A Igreja Católica e
outras de ideologia criacionista, por exemplo, sugerem que a mulher veio de uma
costela do homem. Além disso, vários versículos da bíblia colocam o sexo feminino
em uma posição de inferioridade. No livro bíblico de gênesis há um trecho que diz
que “não é bom que o homem esteja só: vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a
ele11”. Percebe-se nessa passagem que a mulher é vista apenas como um acessório
que veio ao mundo para ajudar os maridos, pais, irmãos e demais figuras do sexo
oposto.
Da mesma forma, a vida eclesiástica também deu maior poder aos homens.
Segundo Nunes (2011), até o Concílio Vaticano II (1962-1965) somente os homens
11
Em Gn 2:18-19
28
faziam parte das elaborações epistemológicas da teologia, além de que apenas eles
poderiam orientar a vida espiritual das mulheres. Na verdade, até hoje somente
pessoas do sexo masculino participam do alto clero romano.
É importante considerar que muitos discursos construídos sobre a mulher
encontram-se ancorados em um olhar androcêntrico, que ratifica uma imagem de
fragilidade da mulher ao longo da história e esconde a participação das mulheres
como sujeitos coletivos participantes e ativos, que lutaram pelo direito ao voto,
educação, pelo uso de métodos contraceptivos, independência financeira e para ter
garantia da sua integridade física e mental dentro de casa, como defendido pela Lei
Maria da Penha. Essa invisibilidade reforça práticas de violência contra mulher no
âmbito da vida privada e familiar, assim como encontra terreno fértil de propagação
em outras instituições da sociedade contemporânea.
Percebe-se nesse contexto de silenciamentos que a família, como espaço de
proteção e apoio ao indivíduo, pode também acabar se tornando palco de agressões
que, devido ao ambiente privado, acabam por calar as mulheres. Althusser (1985)
fala da família como um importante aparelho ideológico, que serve, muitas vezes,
para controlar e exercer poder. Sobre isso afirma que
os aparelhos ideológicos do Estado funcionam principalmente através da ideologia, e secundariamente através da repressão, seja ela bastante atenuada, dissimulada, ou mesmo simbólica (não existe aparelho puramente ideológico). Dessa forma, a Escola, as igrejas, “moldam” por métodos próprios de sanções, exclusões, seleção [...] (idem, p.70)
Nota-se que, no caso da violência doméstica, a família é um aparelho que
além de servir para disciplinar o indivíduo, é também utilizada para reprimir e,
algumas vezes, violentar.
1.2 Famílias e suas ambigüidades em face da violência contra a mulher
A expressão família etimologicamente deriva do latim, designando o conjunto
de escravos e servidores que viviam sob a jurisdição do pater famílias. Com sua
ampliação, tornou-se sinônimo de Gens, que seria o conjunto de agnados (os
29
submetidos ao poder em decorrência do casamento), e os cognados (parentes pelo
lado materno). (BRASIL, 2005, p. 1).
No ocidente predomina o modelo de família patriarcal, herdado de Roma.
A família romana era organizada, preponderantemente, no poder e na posição do pai, chefe da comunidade. O pátrio poder tinha caráter unitário exercido pelo pai. Este era uma pessoa sui júris, ou seja, chefiava todo o resto da família que vivia sobre seu comando, os demais membros eram alini júris. (idem, p. 2).
O direito contemporâneo, por sua vez, define família como sendo
de início constituída pela figura do marido e da mulher. Depois se amplia com o surgimento da prole. Sob outros prismas, a família cresce ainda mais: ao se casarem, os filhos não rompem o vínculo familiar com seus pais e estes continuam fazendo parte da família, os irmãos também continuam, e, por seu turno, casam-se e trazem os seus filhos para o seio familiar. A família é uma sociedade natural formada por indivíduos, unidos por laço de sangue ou de afinidade. Os laços de sangue resultam da descendência. A afinidade se dá com a entrada dos cônjuges e seus parentes que se agregam à entidade familiar pelo casamento. (ibidem)
Ao longo dos séculos, o conceito de família tem sofrido diversas alterações.
No século XV, por exemplo, a ideia de lar era diferente da que se tem nos dias de
hoje. Philippe Ariès (1981) explica que a iconografia mostra o nascimento do
sentimento de família, que nasceu a partir dos séculos XV e XVI, quando os artistas
passaram a fazer as representações da família através de crianças brincando,
batizados e casamentos.
30
FIGURA 1 - O Nascimento da Virgem12
Esse afresco de Domenico Ghirlandaio, datado entre 1486 e 1490, mostra
uma representação do parto, onde a razão aparente é o nascimento da virgem.
Percebem-se várias mulheres cuidando do bebê e a mãe descansando. É
interessante notar, também, que acima há um casal em momento íntimo, dirigindo-
se ao quarto.
Essa é uma nova concepção para a família, tendo por base o nascimento da
intimidade, já que em outros tempos espaços totalmente privados dentro de uma
casa não eram comuns. Por isso, não se fazia presente a divisão de cômodos nas
residências, sendo as camas, por exemplo, separadas somente por cortinas. As
casas ricas eram muito numerosas em habitantes, envolvendo familiares, criados,
clérigos, aprendizes, entre outros, e todos dormiam muito próximos, como em um
grande salão. Nesse contexto, Ariès (1981) destaca que “era preciso colocar cortinas
em torno da cama, cortinas que se abriam ou fechavam a vontade, para defender a
intimidade dos seus ocupantes” (idem, p.181).
Com a reorganização familiar, mudanças consideráveis também ocorreram
em relação à criação dos filhos. No século XV, por exemplo, os ingleses levavam
suas crianças para outras casas, a fim de serem criadas por outras pessoas. Como
pequenos aprendizes, eram chamadas a realizar serviços pesados a partir dos sete
anos de idade e só voltavam para a casa da família de origem na idade adulta, já
formados.
12
Fonte: http://www.wga.hu/
31
Percebe-se, a partir de tais considerações, que o sentimento de proteção e
carinho não era tão presente nessa época. No entanto, com os avanços da
intimidade e o surgimento da escola, as famílias começaram a querer manter suas
crianças por perto e a diferença de valorização que era feita entre os filhos também
foi sendo minimizada. Segundo Ariès (1981, p. 164), “o sentimento da família não se
desenvolve quando a casa está muito aberta para o exterior”.
No decorrer dos anos e das mudanças sociais, o conceito de família foi
ficando cada vez mais difícil de ser definido. Segundo Borsa (2008, p. 3), o conceito
atual que possuímos de família é oriundo de diversos agenciamentos culturais
ocidentais. Nesse caso, é imprescindível citar as crianças que passaram a ter novos
espaços dentro da família e ganharam direitos, sendo a figura feminina uma das
grandes responsáveis por essas mudanças. No caso das mulheres, o grande marco
foi o movimento feminista nos anos 1960.
No Brasil, a última leva do feminismo começa a se expressar no contexto da ditadura militar, época em que se expande o sistema universitário e as mulheres ampliam, de forma marcante, seu ingresso nos estabelecimentos de ensino superior em busca de uma formação. Essa também é a época da institucionalização do divórcio, o que situa novos parâmetros de vida para as mulheres da classe média brasileira, à procura de um projeto de identidade e autonomia. (AGUIAR, 1997, p.13)
No entanto, uma maior autonomia feminina começou a ser vista no Brasil já a
partir do início do século XIX, onde se fez presente o nascimento da família
burguesa. Os espaços sociais foram abertos às mulheres e estas passaram a
frequentar bailes, teatros e cafés. Tudo sobre os olhares atentos dos pais e maridos
que lhes cobravam uma postura maior diante da sociedade, que passava a julgar
seu comportamento e suas atitudes na vida social. Os homens ganhavam ou
perdiam prestígio de acordo com a conduta de suas mulheres, criando assim um
“capital simbólico” importante (D’INCAO, 2011).
Os casamentos eram considerados uma forma de ascender socialmente ou
manter o status e eram realizados entre as famílias que possuíam patrimônios e
bens materiais. Com isso, a mulher era valorizada por ajudar a família a ter
reconhecimento perante a sociedade, sendo necessário ser uma boa anfitriã e
portar-se de maneira requintada. Além disso, nesse período, além da valorização da
32
intimidade, percebe-se a exaltação da maternidade, uma vez que ela passa a ser
cobrada como mãe cuidadosa e zelosa.
Os cuidados e a supervisão da mãe passaram a ser muito valorizados nessa época, ganhando força a ideia de que é muito importante que as próprias mães cuidem da primeira educação dos filhos e não os deixem simplesmente soltos sob influência de amas, negras ou “estranhos”, “moleques” de rua. (D’INCAO, 2001, p. 229)
D’incao (idem) ressalta que a família burguesa passa a exigir da mulher de
elite uma maior dedicação ao lar e que a mesma seja a base da moral da sociedade,
devendo “adotar regras no encontro sexual com o marido” e “vigiar a castidade das
filhas”, mantendo assim a honra e o prestígio de sua casa.
No entanto, a realidade das mulheres brasileiras pobres era outra. Segundo a
autora, a liberdade moral e sexual era mais frequente, sendo permitido até uniões
mais liberais sem a obrigação do casamento formal, que custava muito caro. Além
disso, a falta de recursos financeiros não permitia as trocas que eram feitas na elite,
como os dotes ou as aspirações de crescimento social através das uniões conjugais.
O controle da família sobre as moças pobres também era feito de maneira
mais moderada porque as mães não tinham tempo de ficar em casa em constante
vigilância, já que precisavam sair para trabalhar. Era justamente essa participação
na vida financeira do lar que lhes dava também mais autonomia. Segundo Soihet
(2011, p. 367), “as mulheres populares, em grande parte, não se adaptavam às
características dadas como universais ao sexo feminino: submissão, recato,
delicadeza e fragilidade.” Sendo assim, algumas tentavam até escapar dos
casamentos, já que o padrão de família burguesa, onde o homem era o provedor do
lar, não se aplicava e o sustento da casa, assim como os afazeres domésticos,
muitas vezes ficavam sob a sua responsabilidade. Como afirma uma personagem da
obra literária brasileira O Cortiço,
Casar? Protestou Rita. Nessa não cai a filha de meu pai! Casar! Livra! Para quê? Para arranjar cativeiro? Um marido é pior que o diabo; pensa logo que a gente é escrava! Nada! Qual! Deus te livre. (AZEVEDO, 1981, p. 30)
Da mesma forma, na telenovela Gabriela (remake, 2012), a personagem
vivida por Vanessa Giácomo, Malvina, também tentava a todo custo fugir de um
33
casamento arranjado. Apesar de ser oriunda de uma classe abastada
financeiramente, queria estudar em Salvador e conquistar a independência
financeira, e assim o fez.
Soihet (2011) afirma, nesse contexto, que alguns homens pertencentes a
camadas mais pobres da sociedade brasileira do século XIX faziam uso da
agressividade dentro do lar como forma de tentar reafirmar sua autoridade diante,
muitas vezes, do não cumprimento do seu papel de mantenedor financeiro da
família. “A violência surgia, assim, de sua incapacidade de exercer o poder irrestrito
sobre a mulher, sendo antes uma demonstração de fraqueza e impotência do que de
força e poder” (idem, p. 370).
No entanto, a autora também discorre sobre o fato de que algumas mulheres
das camadas subalternas não aceitavam a submissão e as violências do parceiro,
partindo também para o uso de atos de agressividade ou mesmo abrindo mão do
casamento. Essas situações foram se agravando com o passar do tempo, já que
muitas dessas mulheres sonhavam em ter uma situação conjugal semelhante a das
mulheres de classes mais abastadas, que tinham, geralmente, casamentos formais
e se sentiam diminuídas quando não alcançavam esse objetivo. Portanto, embora
muitas vezes reagissem, “aceitavam o predomínio masculino; acreditavam ser de
sua total responsabilidade as tarefas domésticas, ainda que tivessem que dividir
com o homem o ganho cotidiano” (idem, p. 367).
As desigualdades entre as moças pobres e ricas eram tão latentes que até
mesmo os conventos só podiam ser freqüentados por mulheres brancas e
consideradas de “boa família”.
Para as mulheres brancas das classes altas, os conventos foram um espaço contraditório. Funcionavam como instrumentos eficazes de regulação de casamentos. Quando se tornava difícil casar “bem” todas as filhas, atraindo jovens ricos, a solução era casar apenas uma e encerrar as outras num convento. Segundo as informações da época, era comum encontrar vários membros da mesma família em um único convento. Assim, a riqueza e o poder político de um pequeno grupo de família eram preservados. Histórias de mulheres enclausuradas contra a própria vontade, nesse período, não faltam. Todas elas com ingredientes trágicos e romanescos: loucura, noivados abandonados, fortunas perdidas (NUNES, 2011, p.486).
No entanto, a história das freiras no Brasil pode ser considerada como uma
contribuição para as conquistas das mulheres, já que a partir do século XIX foram
34
criadas várias “escolas para meninas”, que beneficiaram a educação feminina e
tiveram as religiosas como propulsoras fundamentais.
Nos anos 1950, quando o mundo viveu o período pós-guerra, com marcas do
crescimento urbano, da industrialização e com o crescimento de ideias de
democracia, foram possibilitadas maiores chances de aumento do nível educacional
e, consequentemente, de aspirações profissionais a homens e mulheres. O Brasil,
na medida do possível, seguiu essas tendências mudando algumas práticas na
relação entre os gêneros e, embora ainda muito discriminada, a entrada da mulher
no mercado de trabalho começou a ser efetivada. A Revista Querida, de novembro
de 1954, (apud PRIORE, 2011), que era muito influente sob as moças brasileiras
daquela época, dispõe sua opinião sobre a mulher que trabalhava.
Lugar de mulher é no lar [...]. A tentativa da mulher moderna de viver como um homem durante o dia, e como mulher durante a noite, é a causa de muitos lares infelizes e destroçados.[...] Felizmente, porém, a ambição da maioria das mulheres ainda continua a ser o casamento e a família. Muitas, no entanto, almejam levar uma vida dupla: no trabalho e em casa, como esposa, a fim de demonstrar aos homens que podem competir com eles no seu terreno, o que frequentemente as leva a um eventual repúdio de seu papel feminino. Procurar ser à noite esposa e mãe perfeitas e funcionária exemplar durante o dia, o que requer um esforço excessivo [...]. O resultado é geralmente a confusão e a tensão reinantes no lar, em prejuízo dos filhos e da família. (idem, p. 624)
Sob a mesma ótica, A revista Cruzeiro, de 14 fevereiro de 1959 (apud
PRIORE, 2011), comenta o pensamento dos homens sobre tal questão:
[alguns] homens rejeitam a ideia de casar-se porque acham que as mulheres tornaram-se muito independentes. [...] [pensam eles que] as mulheres de hoje são quase agressivas. Disputam conosco a primazia nas repartições, nos escritórios, nos esportes e na vida social. Se em vez de companheiros, seremos competidores, para que casar? (idem, p. 625)
Sobre as definições entre os papéis femininos e masculinos e o lugar da
família, Pinsky (2011) mostra que ainda era seguida uma ordem mais tradicional.
Se o Brasil acompanhou, à sua maneira, as tendências internacionais de modernização e de emancipação feminina – impulsionadas com a participação das mulheres no esforço de guerra e reforçadas pelo desenvolvimento econômico -, também foi
35
influenciado pelas campanhas estrangeiras, que, com o fim da guerra, passaram a pregar a volta das mulheres ao lar e aos valores tradicionais da sociedade (idem, p. 608).
No que diz respeito aos relacionamentos amorosos das moças, era dada
ênfase à educação das mesmas, uma vez que os casamentos por amor passaram a
ser gradativamente aceitos, diferenciando-se da opção e escolha dos pais. Assim, a
mulher então tinha que aprender a controlar seu comportamento e principalmente
sua sexualidade, mesmo sendo a influência familiar considerada como um fator
importante na hora da escolha. Segundo Pinsky (idem, p.616), acreditava-se que
“dificilmente um casamento realizado contra a família era bem sucedido”.
Alguns pais conservadores preferiam que a filha só namorasse na companhia
de alguém de confiança. No entanto, já era comum às moças saírem sozinhas, mas
deviam evitar serem vistas em situação que “sugerisse intimidade” com o namorado.
Caso contrário, poderiam ficar com má fama e seriam prejudicadas para conseguir
pretendentes. O oposto acontecia com os homens, que desde cedo tinham sua
sexualidade incentivada.
Nesse contexto, o código civil de 1916 previa o direito da anulação do
casamento caso o homem descobrisse que sua esposa não era mais virgem. Ele
tinha até dez dias após a data da união para acabar com o matrimônio. Assim, a
mulher era submetida a exames ginecológicos e, se ficasse comprovado o fato, os
dois voltavam a ser solteiros. (TULLIO, 2011)
Segundo Pinsky (2011, p. 614), “o valor atribuído a essas qualidades
favorecia o controle social sobre a sexualidade das mulheres privilegiando, assim,
uma situação de hegemonia do poder masculino nas relações”. Muitas das
telenovelas de época, como Gabriela, O Cravo e a Rosa, Cabocla, entre outras,
retrataram essa fase em que viveram muitas mulheres.
No entanto, a entrada da mulher na universidade e o surgimento da pílula
anticoncepcional, que separou a vida sexual e reprodutiva feminina e diminui
drasticamente a taxa de membros por família, são alguns dos responsáveis,
também, pelo novo lugar da mulher moderna: o mercado de trabalho.
Esse fato (pílula anticoncepcional) criou as condições materiais para que a mulher deixasse de ter a sua vida e sua sexualidade atadas a um “destino”. Recriou o mundo subjetivo feminino e, aliado a expansão do feminismo, ampliou as possibilidades de atuação da
36
mulher no mundo social. A pílula associada a outro fenômeno social, a saber, o trabalho remunerado da mulher, abalou os alicerces familiares, e ambos inauguraram um processo de mudanças significativas na família. (SARTI, 2007, p. 21)
Mais tarde, com o surgimento da inseminação artificial, entendeu-se que a
concepção de uma família não vinha mais de algo naturalizado, e sim se tratava de
um processo de escolhas. Essas invenções tecnológicas abalaram também o
movimento feminista, que acreditava que “a maternidade seria uma condição da qual
toda a mulher deveria tentar escapar” (BORSA, 2008, p. 5), já que a criação dos
filhos e o contexto da casa em âmbito privado a deixava em condição de
subalternidade perante o homem.
A sociedade, assim, sempre impôs à mulher um papel considerado inferior ao
do homem, já que a ela eram destinados os afazeres privados, como cuidar da casa,
dos filhos e do marido. Ou seja, o viver em função do outro, não tendo projeto de
vida própria, submetendo-se ao protagonista da história: o sujeito masculino. Esse,
por sua vez, ficava com o papel, supostamente, de ator principal, ocupado com
temas como a guerra, a diplomacia e a alta política. (AGUIAR, 1997).
A partir disso, criou-se a ideia de que o homem é a autoridade do lar,
responsável pelo sustento da família, sendo a ligação entre seus membros com o
mundo externo, fato que acaba por corroborar a função historicamente atribuída de
“chefe da família”. Por outro lado, a mulher continua tendo que zelar pela residência,
filhos, marido, deixando o lar sempre em ordem e sendo a “chefe da casa”, o que a
também a põe em um posto de comando, mesmo que inferior aos olhos da
sociedade (SARTI, 2007, p. 28).
No entanto, paralelamente a isso, o homem passou a ter novas
preocupações. O exame de DNA, que passou a ser mais utilizado nos últimos anos,
por exemplo, garante a precisão em casos onde é necessário efetivar a
comprovação de paternidade, fato esse que tem feito com que muitos homens
adquiram, mesmo que compulsoriamente, responsabilidade bem maior do que em
outros tempos (SARTI, 2007).
Além disso, estudos revelam que o número de crianças que são criadas
apenas pelo pai aumentou de 2,1% no ano de 1993 para 2,7% em 2006. Por outro
lado, o número de mulheres que criam seus filhos sozinhas diminuiu de 63,9% em
37
1993 para 52,9% em 200613. Tal pesquisa também mostra que, em 2001, as
mulheres cuidavam de tarefas domésticas em média 29 horas por semana,
enquanto eles passavam 10,9 horas nesse tipo de trabalho. Já em 2006, a média de
horas delas caiu para 24,8, enquanto eles passaram a trabalhar 12 horas. Dessa
forma, percebe-se que o homem passa a ser cada vez mais responsável pela sua
reprodução biológica e que, apesar das mulheres continuarem dedicando mais
tempo às atividades domésticas, as obrigações masculinas aumentaram no âmbito
privado.
É importante lembrar também os outros tipos de relações que foram sendo
constituídas no contexto da criação das crianças. Segundo Sarti (idem), atualmente
as mulheres são responsáveis também pelo sustento do lar e muitas vezes precisam
deixar seus filhos com parentes (pais, avós, tios) ou com babás para poder
trabalhar. Isso acontece também devido a uniões instáveis e empregos incertos, que
exigem dos pais ajustes e adaptações, tecendo, assim, novos arranjos familiares.
Sobre isso, podemos mencionar que na última década o número de mulheres
que criam seus filhos sozinhas aumentou para 53%. Além disso, existem as crianças
criadas por casais homossexuais; os recasamentos, que cujos filhos acabam sendo
criados pelo novo cônjuge; as produções independentes e os casais que optam por
não ter filhos, sendo que esses já contabilizam 39% (PORTES, ROCHA et al, [s.d.]).
Dessa forma, Wagner e Levandowski (2008, p. 94) afirmam que fatores como
a preservação da harmonia entre os pais, independentemente da condição conjugal,
assim como o tempo dedicado aos filhos e a presença, ou ausência, de um projeto
de vida familiar acabam por potencializar a família na formação de hábitos, atitudes
e valores de seus filhos. Da mesma forma,
independente da sua estrutura e configuração, a família é o palco em que se vivem as emoções mais intensas e marcantes da experiência humana. É o lugar onde é possível a convivência do amor e do ódio, da alegria e da tristeza, do desespero e da desesperança. A busca do equilíbrio entre tais emoções, somada as diversas transformações na configuração deste grupo social, tem caracterizado uma tarefa ainda mais complexa a ser realizada pelas novas famílias. (WAGNER, 2002, p. 35-36).
13
Os dados fazem parte da 3ª edição da pesquisa Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, realizada pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea). Disponível em http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/destaque/Pesquisa_Retrato_das_Desigualdades.pdf, acesso em novembro de 2012.
38
Segundo Wagner e Levandowski(2008), no que se refere aos aspectos legais,
observa-se, por exemplo, que no código civil de 1916 a “família legítima” era aquela
definida apenas pelo casamento oficial. Atualmente, a definição abrange as
unidades formadas por casamento, união estável ou comunidade de qualquer
genitor e descendentes (CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA, 1988. Art. 226, § 4º).
O Novo Código Civil de 2002 reconhece a união estável e afirma que o
casamento passa a ser “a comunhão plena pela vida, com base na igualdade de
direitos e deveres dos cônjuges” (idem, art. 1511), sendo essa apenas uma das
formas de se constituir uma família. Paralelamente, os filhos adotados e concebidos
fora do casamento têm direitos idênticos aos nascidos dentro do matrimônio,
conforme exposto na Constituição Brasileira (1988, art. 227, § 6º), eliminando-se,
então, a antigo preconceito com os filhos “bastardos”.
A lei do divórcio, que só passou a fazer parte da realidade brasileira em 1977,
atribuía a guarda dos filhos ao cônjuge que não fosse culpado pela separação. Hoje,
é concedido a “quem revelar melhores condições de exercê-la” (CÓDIGO CIVIL,
2002, art. 1584). Nesse caso, a família é dirigida pelo casal, e não mais apenas pelo
homem, sendo que o “pátrio poder” que o pai exercia sobre os filhos passa a ser
“poder familiar” atribuído também à mãe. (WAGNER E LEVANDOWSKI, 2008, p.91).
Em relação às mulheres de hoje, situadas no contexto de um século que se
inicia, é importante lembrar que todas essas conquistas lhes impõem novos
desafios. Dividir o sustento da casa com o homem e continuar exercendo as funções
de mulher, mãe, esposa e dona de casa é uma tarefa árdua que requer um desafio
bem maior do que quando a sua função era apenas no lar.
A Agência de Saúde Pública de Barcelona14, na Espanha, em pesquisa com
cerca de 2.800 pessoas de diversos ramos e classes sociais, revelou após um ano
de estudos que 17,1% das mulheres analisadas ultrapassam a jornada de 40 horas
semanais, considerada normal ou até mesmo mínima no Brasil. O mesmo estudo diz
que as mulheres têm a saúde mais afetada devido a esse acúmulo de funções,
sendo o estresse (que pode apresentar sintomas como dores de cabeça, insônia,
gastrite, diarréia, queda de cabelo e alterações menstruais) a doença mais comum.
Outras, como a depressão, a ansiedade e os problemas cardíacos são consideradas
14
Disponível em: http://cyberdiet.terra.com.br/excesso-de-trabalho-e-prejudicial-a-saude-da-mulher-5-1-4-322.html, acesso em setembro de 2012.
39
mais sérias, como o aumento do consumo de cigarros e problemas hormonais. Além
disso, muitas vezes devido à falta de tempo, muitas mulheres acabam não dispondo
de uma alimentação balanceada e abrindo mão das atividades físicas.
É importante lembrar que, mesmo estando inserida no mercado de trabalho, a
mulher não necessariamente deixa de cumprir afazeres relacionados com a
maternidade e com a casa, configurando, dessa forma, mudanças significativas na
estrutura familiar e na sua própria forma de ser e se sentir mulher. Tais
transformações geram novos conceitos e classificações para as novas performances
femininas.
40
2 MÍDIA E SEUS DISCURSOS
Enquanto no capítulo anterior tecemos uma abordagem histórica sobre a
participação das mulheres na sociedade brasileira contemporânea, mostrando
aspectos relativos à violência doméstica e às mudanças estruturais ocorridas na
constituição das famílias e da própria imagem da mulher perante si, neste segundo
momento vamos tratar de correntes teóricas necessárias para a interpretação da
recepção do telespectador de algumas telenovelas brasileiras que abordaram tais
questões, utilizando para isso a análise de materiais coletados nas redes sociais
Youtube e Orkut.
Dessa forma traremos, primeiramente, discussões sobre algumas teorias da
comunicação, em especial os estudos epistemológicos sobre recepção, até
chegarmos aos estudos de telenovela. Na segunda parte, trataremos da relação
entre discurso e mídia, entendendo como se dão os processos de identidade. Por
fim, falaremos de como funcionam as redes de memória nas telenovelas e como
elas podem produzir uma matriz cultural.
2.1 Comunicação, mídia e telenovela
No início da década de 1950, quando as pesquisas no campo da
comunicação tiveram início, acreditava-se, ainda, num modelo de comunicação em
que o emissor era aquele que detinha o poder, enquanto o receptor era analisado
apenas como um sujeito dominado frente a essa relação hegemônica e poderosa. A
teoria crítica, preconizada pela Escola de Frankfurt, configurou-se num marco
referencial desse pensamento. O modelo mostrava que os meios eram detentores
do poder absoluto da informação e que o seu conteúdo era usado para manter as
massas alienadas e reforçar o discurso capitalista (MATTELART, 1999, p.78). Nesse
contexto,
o receptor talvez possa ser visto aqui como uma outra expressão do dualismo teórico sujeito/objeto, dado que se constitui empiricamente como expressão de receptor/objeto/mercadoria. A racionalidade do capitalismo industrial do início do século deslocará para o mercado o eixo explicativo de manutenção do sistema; e era nesse eixo que
41
comunicação, cultura e poder interagiam. Nele o receptor se encontrava retificado por completo. (SOUSA, 1995, p. 18).
Analisando estas formulações, Kellner (2001) identifica que, embora
produtivas em certos aspectos, também acabam por apresentar deficiências. Assim,
sugere algumas adaptações, como
análise mais concreta da economia política da mídia e dos processos de produção da cultura; investigação mais empírica e histórica da construção da indústria da mídia e de sua interação com outras instituições sociais; mais estudos de recepção por parte do público e dos efeitos da mídia; e incorporação de novas teorias e métodos culturais numa teoria crítica reconstruída da cultura e da mídia (...). Tal reconstrução do projeto clássico da escola de Frankfurt atualizaria a teoria crítica da sociedade e sua atividade de crítica cultural ao incorporar os desenvolvimentos contemporâneos da teoria social e cultural nos esforços da teoria crítica. (idem, p.45)
É necessário observar, também, que a suposta passividade do receptor e a
limitação crítica que estabelece uma cultura “superior” e considera as chamadas
culturas de massa como inferiores já não dão conta de suprir as novas demandas.
As tecnologias de informação e comunicação, como a telefonia móvel e a rede
mundial de computadores, por exemplo, não podem ser compreendidas a partir
deste modelo de análise limitador. No entanto, a escola de Frankfurt foi fundamental
na medida em que inaugurou a integração entre os estudos de comunicação e
cultura, além de que propôs novos métodos de análise no que diz respeito a esse
tipo de pesquisa (KELLNER, 2001, p.47).
A partir dessa problemática, os campos das ciências sociais e humanas
sentiram a necessidade de debater essas questões e, aos poucos, as escolas de
comunicação começaram a ser implementadas no Brasil. Era necessário criar não
uma teoria, mas sim uma abordagem metodológica diferenciada para explicar como
acontece o processo em que o receptor é parte ativa no processo comunicacional. A
recepção passa a ser o espaço da comunicação onde as mensagens adquirem
sentido; passando-se a valorizar o receptor como o sujeito ativo no processo
comunicacional. A construção desse novo paradigma faz acreditar que
o reconhecimento do sujeito e da pertinência de uma teoria que parte das percepções deste último, de sua subjetividade; que acolhe as vacilações da significação; que entrevê a comunicação como um
42
processo dialógico onde a verdade, que não será nunca mais a mesma, nasce da intersubjetividade. (MATTELART, 1989, p. 201).
Subjetividade essa que, como afirma Borelli (1995), explica o interesse e a
importância em se procurar estudar o telespectador como sujeito da sua história. Ela
denomina esse estudo como uma introdução à construção de uma “teoria do sujeito”,
que só vem provar que o telespectador ou leitor é participante na (re)interpretação
dos significados, sendo capaz de redefinir antigos (pré)conceitos, reformulando-os.
Henry Jenkins (2009), por sua vez, acredita que o mercado precisa estar
atento aos interesses do consumidor, já que esse passa a exigir participação ativa na
produção do conteúdo. Não pode mais haver a separação entre os dois e sim,
interação.
A circulação de conteúdo - por meio de diferentes sistemas midiáticos, sistemas administrativos de mídias concorrentes e fronteiras nacionais – depende fortemente da participação ativa dos consumidores [...]. O público, que ganhou poder com as novas tecnologias, que está ocupando um espaço de interseção entre os velhos e os novos meios de comunicação, está exigindo o direito de participar intimamente da cultura. Produtores que não conseguem fazer as pazes com a nova cultura participativa enfrentarão uma clientela declinante e a diminuição dos lucros. (idem, p.51)
É necessário, sob tal ótica, compreender os estudos de recepção não mais
como apenas uma fase dos estudos de comunicação, como acreditavam as outras
teorias citadas, mas sim como um “lugar novo”, que tem novas propostas
metodológicas e epistemológicas.
É indubitável que o estudo da recepção, no sentido em que estamos
discutindo, quer resgatar a vida, a iniciativa, a criatividade dos
sujeitos, quer resgatar a complexidade da vida cotidiana, como
espaço de produção de sentido; quer resgatar o caráter lúdico da
relação com os meios; quer romper com aquele racionalismo que
pensa a relação com os meios somente em termos de conhecimento
ou desconhecimento, em termos ideológicos; quer resgatar além do
caráter lúdico, o caráter libidinal, desejoso da relação com os meios.
(MARTÍN-BARBERO, 1995, p. 54)
43
Segundo o autor, a concepção de que o receptor é um ser que apenas segue
a ordem e é facilmente manipulado segue a linha teórica que ele nomeia de
condutista, onde “a iniciativa da atividade comunicativa está toda colocada no lado do
emissor, enquanto do lado do receptor a única possibilidade seria a de reagir aos
estímulos que lhe envia o emissor” (ibidem), sendo que esse é um tipo de argumento
que não se sustenta mais. Segundo o autor, é necessário que se estude para além
do entendimento do que os meios fazem com as pessoas, propondo pensar essa
sistemática de forma contrária: o que as pessoas fazem com os meios? Quais usos e
sentidos elas criam?
Por outro lado, é necessário que se entenda que, logicamente, o poder não
está todo do lado de quem consome. Temos que considerar que a teoria da
recepção proposta por Martín-Barbero (2001) leva em conta também a tentativa de
dominação por conta dos meios. Segundo Élide Santos (2010),
[...] foi preciso tomar cuidado com o sentimento puramente
progressista acerca dos meios, posto que Barbero (2001) não propõe
este sentimento, ao contrário, não nega o viés de dominação e
hegemonia que os meios parecem querer impor. (idem, p. 6)
Martín-Barbero (1995) cita também o problema acerca da “exclusão cultural
na recepção”, lembrando as formas de desqualificação dos gostos populares. Há
uma camada da sociedade que considera as preferências populares como vulgares,
sem procedência “culta” ou legítima. Nessa classificação, estão enquadradas as
telenovelas, o cinema de gênero, entre outros. O autor também lembra que parte da
sociedade não aceita o modo como os populares apreciam as representações
artísticas. Assim, acredita que só haverá, de fato, uma democratização dos meios
quando os estudos de recepção passarem a focar não apenas as demandas sociais
de uma classe intelectual, mas sim as demandas culturais dos populares e o modo
como a sociedade civil, em geral, se expressa.
2.2 O lugar das mediações
Como um dos objetivos desta pesquisa é analisar a relação emissor-receptor
em relação às telenovelas que tratam da violência contra a mulher, é necessário
44
fazer uma discussão teórica sobre processos de mediação. Para fundamentar as
análises propostas, tomaremos como princípio teórico as formulações de Martin-
Barbero, Nestor Garcia-Canclini, Rúotolo e Orosco, já que configuram importantes
contribuições na constituição desta discussão na América Latina. Esses autores
partem de estudos de Antônio Gramsci sobre hegemonia para inserir definições de
comunicação e cultura no campo da comunicação.
Dentro dessa abordagem, entende-se hegemonia como “a capacidade de
unificar através da ideologia e de conservar unido um bloco social que não é
hegemônico, mas sim marcado por profundas contradições de classe”. (GRUPPI,
1978, p.91). A partir dessa nova perspectiva, rompeu-se com a idéia de dominação
imbricada no conceito de hegemonia, que passou a ser considerada como relações
de consenso. Segundo Canclini (1988),
nas sociedades complexas, a hegemonia se estabelece mediante
uma relação dialética entre a homogeneidade e diferenciação social.
Enquanto a dominação homogeneíza, submetendo as pretensões de
pluralidade ao denominador comum da obediência, a hegemonia
consiste em trabalhar com as diferenças e às vezes fomentá-las, sob
a coesão de um poder unificador [...]. Quando a diversidade de
interesses se desenvolve em estilos de vida enfrentados sem pacto e
reciprocidade, gera conflitos desintegradores da unidade social, mas
essas mesmas diferenças, desde que reconhecidas pelo poder
hegemônico e coordenadas por ele, podem coexistir e inclusive
colaborar para que a hegemonia seja legitimada através do
consenso. (idem, p. 22)
No entanto, Martin-Barbero (2001) critica os estudos que apenas mostram a
tensão entre a cultura hegemônica do “dominar” e a subalterna do “resistir” e como
cada uma desempenham suas respectivas funções, afirmando que
nem toda a assimilação do hegemônico pelo subalterno é signo de submissão, assim como a mera recusa não é de resistência, e que nem tudo que vem “de cima” são valores da classe dominante, pois há coisas que vindo de lá respondem a outras lógicas que não são as de dominação (idem, p. 119).
É assim que se disseminam os estudos de comunicação e cultura e de
recepção na perspectiva das mediações culturais. A recepção passa a ser o espaço
45
da comunicação onde as mensagens adquirem sentido; passa-se a valorizar o
receptor como o sujeito ativo no processo comunicacional.
Entretanto, são amplas as críticas à relação entre comunicação e cultura
destacada no contexto latino-americano. Segundo Boaventura e Martino (2009),
poucos estudos têm se dedicado a entender as barreiras teórico-epistemológicas dos
estudos de recepção e dos estudos culturais. Contraditoriamente ao que defendem,
os estudos latino-americanos estariam desenvolvendo
uma corrente de pesquisa tão engajada na oposição às tradições dominantes que desenvolveu o conceito de hegemonia, tornando-se uma tendência dominante no campo, com pouca abertura e espaço para crítica. A hegemonia de uma teoria pode levar ao dogmatismo. (idem, p.14)
Segundo Martín-Barbero (1995), a recepção é um processo de interação,
sendo que “a verdadeira proposta do processo de comunicação e do meio não está
nas mensagens, mas nos modos de interação que o próprio meio transmite ao
receptor” (idem, p.57). Dessa forma, não é o caso pensar apenas nos veículos de
comunicação ou nos donos desses conglomerados, e sim como o receptor interage
com os atores sociais e com a sociedade por conta das mensagens produzidas. Além
disso,
deslocar o eixo das pesquisas para as mediações não significa desconsiderar a importância dos meios, mas evidenciar que o que se passa na recepção é algo que diz respeito ao seu modo de vida, cuja lógica deriva de um universo cultural próprio, incrustado em uma memória e em um imaginário que são decorrentes de suas condições concretas de existência. (JACKS, 1995, p.153)
Um exemplo disso é a telenovela, pois é na circulação dos discursos
cotidianos, na prática de contar o enredo e a estória, uns aos outros - e não somente
no ato de ver TV – que as mensagens vão passando a fazer sentindo, criando,
assim, significados a um determinado grupo social.
Ruótolo (1998, p. 151) enfatiza ser importante lembrar que o foco de análise
dos estudos de audiência e recepção está nas “respostas que os indivíduos dão aos
conteúdos da comunicação”, e que isso “sempre ocorre individual e isoladamente
com cada membro da audiência”. Dessa forma, classifica as respostas dos
46
receptores dos meios de comunicação da seguinte maneira: respostas de exposição,
respostas de recepção, respostas atitudinais e respostas comportamentais.
A perspectiva da exposição está centrada na decisão do indivíduo em ter
consumido o produto da comunicação. Dessa forma “se ocupam do fenômeno mais
básico a audiência em si mesma, sem a qual nenhum outro efeito ou consequência
pode ser possível” (idem, p. 153). Do ponto de vista estrutural, a exposição vê os
indivíduos como um conglomerado de consumidores dos meios e,
conseqüentemente, dos produtos. Essa teoria está centrada no sistema de
“mensuração da audiência” de cunho mais comercial e procura medir o alcance dos
produtos vendidos pelos meios de comunicação através das pesquisas
especializadas.
Outro aspecto da perspectiva de exposição é a de “usos e gratificações”,
focada no interesse de saber por que o indivíduo escolhe determinados conteúdos
comunicativos, sendo a questão principal: “por que o indivíduo voluntariamente
decide ser um receptor em vez de engajar-se em outra atividade alternativa?”
(RUÓTOLO, 1998, p.153). Acredita-se, a partir de tal perspectiva, que o receptor
procura os programas e conteúdos que melhor se encaixam às suas necessidades;
sujeitas a influências do meio, de fatores psicológicos, entre outros. No entanto, essa
escolha de ser expor aos meios de comunicação é intencional, já que vai satisfazer
os desejos particulares de cada indivíduo.
As perspectivas de recepção se dividem em Estudos Críticos, Interacionalismo
Simbólico e Construção Cultural, sendo que se preocupam em entender as respostas
da audiência depois que a exposição ocorre. Aqui, o interesse não está mais no
simples estudo da exposição, e sim na interpretação que cada receptor dá ao
conteúdo ao qual é submetido, de acordo com sua realidade e seu contexto.
Os estudos críticos estão ligados à teoria crítica da comunicação,
apresentando um foco mais pessimista em relação aos meios. Segundo essa
proposta, o receptor estaria sendo exposto aos discursos ideológicos e políticos das
classes dominantes.
O maior interesse dos estudos críticos localiza-se nos significados políticos que os receptores extraem dos meios de comunicação: ou seja, a interpretação política dada aos conteúdos. Mas a perspectiva até agora não chegou às explicações satisfatórias de onde provem a interpretação: se dos próprios conteúdos, da ideologia das classes “dominadas” ou do contexto social. (RUÓTULO, 1998, p.155)
47
O interacionismo simbólico, por sua vez, é uma perspectiva voltada para a
interação do sujeito com os meios. Essa relação com o outro resulta em novas
formas de criar significados, formando as “comunidades interpretativas”
desenvolvidas a partir de todos os intercâmbios que o sujeito faz ao longo da vida.
Conforme Ruótolo (idem, p. 156), “cada indivíduo tem sua própria comunidade
interpretativa cujos integrantes são as pessoas com as quais vai interagir em todas
as esferas de sua vida pessoal e profissional”. Assim,
a maneira como o receptor constrói seu entendimento do mundo é a
sua realidade simbólica. Os meios de comunicação são vistos como
importantes componentes dessa elaboração cognitiva que vai servir de
base para a compreensão de novas experiências, de novos
significados e influenciar o comportamento do receptor. (ibidem).
Já a construção cultural entende os meios de comunicação como parte de um
grupo responsável pela formação do receptor, considerando a cultura como
fundamental para construção do indivíduo. É baseada na teoria dialógica em que o
indivíduo não pode pensar sem a participação do outro. Tal corrente trabalha as
“mediações” como um importante componente no processo de “construção de
significados” a partir dos conteúdos trabalhados pelos meios de comunicação. Sobre
isso, cabe ressaltar que
cada receptor, cada comunidade encontra significados que se
aproximam mais de si mesmos do que o emissor. E, paradoxalmente,
quanto mais conteúdos a indústria cultural produzir, maior será a
facilidade do receptor de modificar os significados para se aproximar
mais de sua própria percepção. (RUÓTOLO, 1998, p.158)
A perspectiva atitudinal, por sua vez, está dividida em perspectivas de
persuasão e de pauta. É uma corrente relacionada à opinião pública e
comportamento político, agregando conceitos da psicologia. Os meios de
comunicação, nesse sentido, seriam palco onde se forma e é modificada a opinião
pública. Dessa forma, “a atitude não é o comportamento, mas sim um estágio
anterior, uma propensão ao comportamento” (ibidem).
Como já foi dito anteriormente, em meados da década de 1930, acreditava-se
que os meios de comunicação tinham poder absoluto na formação de seus
48
expectadores. No entanto, a partir dos anos de 1950 os estudos de persuasão foram
se direcionando para os efeitos indiretos dos meios de comunicação. Com isso,
passou-se a analisar fatores como a fonte, a mensagem e o receptor como sujeito
individual, percebendo-se como a opinião era formada e/ou modificada e
considerando quem está falando, o que está dizendo e para quem.
Segundo Ruótolo (1998), a teoria da pauta é uma evolução da teoria da
persuasão. Essa linha vai afirmar que o papel do meio de comunicação é colocar em
evidência assuntos de interesse do receptor, já que defendem que
[...] as opiniões não são mudadas pelos meios de comunicação. O
papel dos meios de comunicação é o de colocar na pauta das
preocupações dos indivíduos ou na pauta da discussão pública
determinados temas e assuntos. A influência dos meios de
comunicação ocorre na medida em que os temas da pauta fazem
aflorar determinadas opiniões que já existem no repertório atitudinal do
receptor (idem, p. 159).
No entanto, é necessário ver até que ponto essas pautas não são direcionadas
por determinados grupos, uma vez que, dessa forma, o sujeito estaria propenso a
discutir temas de interesse de agentes que não estão preocupados somente com o
“bem público”. De qualquer forma, estariam propensas a mudar e/ou influenciar
opiniões e comportamentos dos receptores.
Sampaio (1999) explica que a comunicação passa a ser entendida como um
fenômeno indissociado da cultura, na perspectiva das mediações culturais. A autora
ressalta que,
nessa nova linha de pensamento, as culturas populares não podem ser
estudadas de forma isolada e sim, mediatizadas por elementos que
produzem e reproduzem significados sociais e culturais como um
espaço que possibilita compreender as interações entre a produção e
recepção do sentido. (idem, p.58)
O conceito de mediação, segundo Martin-Barbero (2001), sugere que o
emissor perde o seu poder absoluto de ação, ao mesmo tempo em que elimina a
passividade do receptor. Para Guillermo Orozco (1997), cujos estudos sobre
mediações culturais têm se voltado à televisão, a principal pergunta sobre tal
temática é: como se realiza a interação entre a TV e a audiência? Na tentativa de
49
encontrar respostas para tal questão, o autor mostra que mediação é o “conjunto de
influências que estruturam o processo de aprendizagem e seus resultados
provenientes, tanto da mente do sujeito, como de seu contexto sócio-cultural” (idem,
p. 114). O autor ainda trata das seguintes mediações: a individual ou cognoscitiva, a
situacional, a institucional, a contextual, a estrutural e a videotecnológica.
A mediação cognoscitiva ou individual pode ser entendida como o conjunto de
ideias, repertórios, esquemas e guias mentais que influenciam em nossos processos
de percepção, processamento e apropriação das mensagens propostas pelos meios.
Ainda há outro conjunto de mediações, constituído por elementos mais contextuais
da recepção, como o lugar de origem e de residência, o nível educativo da audiência,
o tipo de trabalho, suas experiências de mobilidade social, suas percepções sobre os
meios em geral, suas visões e ambições.
As mediações estruturais, por sua vez, são aquelas que configuram a
identidade do sujeito receptor, observando aspectos como classe social, etnia, idade,
sexo e situação socioeconômica dos sujeitos. Orozco (1997) ressalta que essas
mediações também são denominadas de mediações de referências. Nas mediações
estruturais ou de referências, portanto, as identidades diversas do receptor
constituem mediações no processo de recebimento das mensagens, influenciando,
mesmo que de forma distinta, na interação entre as culturas estabelecidas pela
parceria.
Assim, a proposta do autor é assumir a audiência como sujeito, já que ela se
constitui de muitas maneiras e acaba por se diferenciar de acordo com os contextos
ao qual está inserida, sendo, então, entendida como um processo resultante da
interação receptor/tv/mediações, que entram em jogo no contínuo ato de ver a TV.
Esses momentos, por sua vez, fundam-se com as práticas cotidianas, responsáveis
pela negociação de significados e sentidos a partir da apropriação dos conteúdos
massivos. Nesse caso, a TV é considerada mediadora e uma instituição social que
produz significados, ganhando, assim, legitimidade frente sua audiência. Exatamente
nesse contexto, situado por Orozco (1997) através de seus estudos televisivos, que
buscamos enxergar a parceria como um processo de comunicação entre duas
culturas, entendendo-a, portanto, como uma mediação cultural.
As mediações institucionais, por sua vez, servem como cenários, já que nelas
ocorre a recepção, como, por exemplo, no âmbito da família, considerada como
mediadora dessa categoria. Elas são também responsáveis pelas apropriações ou
50
reapropriações das mensagens, funcionando como fontes de referência (que, neste
caso, pode ser a escola). Também se destacam como comunidades de interpretação,
entendidas como conjunto de sujeitos sociais unidos por um âmbito de significação,
na medida em que é “desde ellas que se interpretan muchos de los mensajes
percebidas, se significan y se produce la comunicación” (OROZCO, 1997, p.114).
Finalmente, as mediações videotecnológicas são aquelas relacionadas aos
meios eletrônicos ou a elementos que produzem sua própria mediação, utilizando
recursos para impor-se sobre a audiência. A proposta metodológica de Orozco
(idem), nesse sentido, diz respeito ao lugar onde as mediações se entrecruzam para
dar sentido ao que foi apropriado ou reapropriado. Dessa forma, por comunidade de
apropriação entende os diferentes âmbitos de significação através dos quais a
mensagem adquire sentido.
Segundo Boaventura e Martino (2009), Martin-Barbero, Orosco e Canclini,
apesar de falarem do mesmo tema, divergem em seus conceitos e abordam
perspectivas diferentes. Orosco, por um lado, enfatiza as audiências, defendendo
que estas devem ser educadas, já que para ele é necessário um aprimoramento nos
processos de recepção por parte do receptor. Já Martin-Barbero acredita que essa
visão é preconceituosa, uma vez que visa “corrigir o ver”, o que não colaboraria para
a compreensão dos meios. Ele pensa as mediações através dos fatos e controles
que ocorrem durante o processo de recepção, reduzindo as mediações a influências
que ocorrem durante o processo. Como vimos acima, ele descreve os tipos de
mediação.
Para Martin-Barbero, o conceito é mais abrangente.
A mediação seria a intersecção entre fatores, o lugar onde duas fontes de influência ao processo de recepção parecem se encontrar, se cruzar [...]. A mediação seria um ponto intermediário, o “meio termo” entre dois objetos. Daí a importância dessa proposta dentro da obra de Martín-Barbero, que defende sempre a saída da “razão dualista” da investigação, que contrapõe polos opostos. A mediação seria esse “lugar” que está entre esses opostos, e que permite a compressão mais completa dos fenômenos complexos (...). Os mediadores são verdadeiros atores sociais e não apenas intermediários. (BOAVENTURA, MARTINO, 2009, p.12)
Segundo os autores, ainda há muito para ser aperfeiçoado até se chegar a
uma teoria clara sobre os processos de mediações nas pesquisas em comunicação.
51
No entanto, vamos trabalhar com os conceitos em desenvolvimento e aplicá-los nas
análises sobre as telenovelas que retratam casos de violência doméstica contra
mulheres15, já que consideramos tal gênero da teledramaturgia como importante
exemplo de mediação, entendida aqui como resultado da interação do sujeito com o
meio, tendo em vista suas relações interpessoais, cognitivas, institucionais e todo o
contexto sócio-cultural.
Assim, o entendimento de que o receptor é também um produtor de sentidos
resultou na escolha do cotidiano como lugar importante de análise, já que nele se
manifesta a cultura. Com isso, poderemos compreender as mediações culturais e
seus usos. Nesse sentido, cabe ressaltar que a telenovela surge como uma
importante formadora de sentido para o cotidiano dos sujeitos, que reagem e criam
seus próprios usos a partir de determinada mensagem.
Segundo Élidy Santos (2010, p. 1), “além de um produto cultural, a telenovela
está integrada à realidade social dos sujeitos por meio das representações sociais”.
Com isso, não podemos esquecer que é no lugar comum, em um ambiente
propriamente doméstico, que ela é absorvida. Assim, como lembra Leal (2005,
p.119), “é mais do que isso, é uma história de famílias para famílias; é uma história
de afetos que entra num espaço de afins e consanguíneos que é eminentemente
afetivo”.
Sobre isso, pesquisadores latino-americanos como Canclini e Martin-Barbero
partem do princípio de que a cultura é uma força viva, constituída da ação autônoma
do homem, que compartilha códigos, condições materiais da vida e formas de
apropriações semelhantes. Na opinião desses estudiosos, a cultura não é estática e
nem algo que deve ser incorporado e reproduzido fielmente pelos indivíduos, já que
novas interações com outros grupos ou códigos culturais podem sempre trazer novas
significações.
Para o antropólogo Geertz (1989, p.15),
o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu. Assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado. (ibidem)
15
Tais telenovelas serão analisadas no terceiro capítulo desta dissertação.
52
Podemos entender que este processo de significação da cultura acontece com
os dramas reproduzidos nas telenovelas brasileiras, uma vez que geralmente são
compostos por histórias semelhantes às da vida real, de várias camadas sociais e de
territórios rurais e urbanos que tiveram considerada relevância, sendo que, a partir
disso, passam a ser problematizados na televisão.
Dessa forma, como afirma Martin-Barbero (2001), o âmbito televisivo tem
grande capacidade de projetar a realidade a partir do momento em que as pessoas
passam a se identificar e a enxergar um ao outro por este meio. A telenovela, nesse
sentido, vai além do entretenimento, passando a ser uma poderosa ferramenta de
identificação cultural e uma importante formadora de opinião, capaz de criar agendas,
sustentar ou refutar as ordens discursivas estabelecidas e propor novos olhares para
um universo social dinâmico e plural.
Sobre isso, cabe destacar alguns exemplos produzidos no Brasil. Na
telenovela A Favorita, de João Emanuel Carneiro, exibida e produzida pela Rede
Globo no período de 2 de junho de 2008 a 16 de janeiro de 2009, no horário das 21
horas, um núcleo de personagens retratava o problema da violência doméstica.
Assim, a partir do melodrama, um problema social e cotidiano vivido por muitas
mulheres brasileiras foi largamente problematizado e reiterado. Por isso, de acordo
com Jacks (1993, p.32), de uma maneira ou outra, “mostrando e discutindo
realidades urbanas ou rurais, a telenovela brasileira tem se apropriado de temáticas
que tocam de alguma forma na cultura e identidade nacional”.
Figueiro (2003), sob a mesma ótica, afirma que a telenovela assume “o papel
do contador de história dos velhos tempos”, servindo como um produto de consumo,
mas, também, como uma narrativa ficcional capaz de “penetrar no cotidiano do
espectador, de forma a que ele possa rever-se na própria realidade” (idem, p. 15).
Percebe-se, então, que no espaço da recepção16 são trabalhadas as identidades dos
sujeitos de determinado contexto, já que esses, geralmente, se identificam com as
tramas.
Assim, a telenovela transita nos espaços do público e vai tecendo formações
que combinam a vida cotidiana e as diversas maneiras de identificação da nação. Já
que a telenovela trabalha com diversas histórias e núcleos, o telespectador tem a
oportunidade de se reconhecer e apreender outras formas de ver o mundo.
16
Conceito trabalhado anteriormente por autores como Martin-Barbeiro, Élyde Santos e Jeckins.
53
A identidade social de um indivíduo se caracteriza pelo conjunto de suas vinculações em um sistema social: vinculação a uma classe sexual, a uma classe de idade, a uma classe social, a uma nação e etc. A identidade permite que o indivíduo se localize em um sistema social e seja localizado socialmente. (CUCHE, 2002, p.177).
Com isso, nos propomos a pensar a relação de discurso, identidade e mídia.
Para isso, será necessário entendermos algumas categorias analíticas do discurso,
abordadas a seguir.
2.3 Discurso, identidade e mídia
Para dar continuidade a pesquisa, vamos tratar de alguns conceitos da
Análise do Discurso (AD). No entanto, nossa proposta não é a de entrar em
questões específicas do campo da linguística, mas sim utilizar algumas ferramentas
da AD que dialogam com o campo da comunicação. Sobre tal relação, Gregolin
(2007) enfatiza a possibilidade de estreitar a relação entre mídia e discurso:
a análise do discurso (AD) é um campo de estudo que fornece ferramentas conceituais para análise desses acontecimentos discursivos, na medida que toma como objeto de estudos a produção de efeito de sentidos, realizada por sujeitos sociais, que usam a materialidade da linguagem e estão inseridos na história. Por isso, os campos da AD e dos estudos da mídia podem estabelecer um diálogo extremamente rico, a fim de entender o papel dos discursos na produção das identidades sociais. (idem, p.13).
Queremos discorrer nesse momento sobre um dos principais autores que
estudaremos neste tópico: Michel Foucault. Partimos do pressuposto de que a
aplicação das suas ferramentas ao campo da comunicação é possível, haja vista
que ele é um autor interdisciplinar, que analisa, em diferentes obras, assuntos
relacionados à linguagem, ao poder, às prisões, às clinicas, sempre tecendo fios que
entrelaçam vários campos de estudos.
Dessa forma, é importante ressaltar que a análise do discurso se propõe a
compreender a produção de sentidos e efeitos em uma sociedade, sejam eles
históricos e/ou sociais; concretizados por sujeitos. Sobre isso, Foucault (1996, p. 54)
54
destaca quatro noções fundamentais em sua análise: noção de acontecimento, a de
série, a de regularidade e a de condições de possibilidade.
As condições de possibilidade que estão inscrita no discurso, conforme
Gregolin (2003), acabam ocasionando as formações discursivas. Além disso, o
conceito de acontecimento discursivo diz respeito à proposta de verificar a
descontinuidade histórica, sendo que, por isso, Foucault afirma que “os discursos
devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam, por vezes, mas
também se ignoram ou se excluem” (idem, 1996, p.52).
Sobre o acontecimento, discorre que
não é imaterial; é sempre no âmbito da materialidade que se efetiva, que é efeito; ele possui seu lugar e consiste na relação, coexistência, dispersão, recorte, acumulação, seleção de elementos materiais; não é um ato nem a propriedade de um corpo; produz-se como efeito uma dispersão material (...). Por outro lado, os acontecimentos discursivos devem ser tratados como séries homogêneas, mas descontínuas umas em relação às outras (...). Trata-se de censuras que rompem o instante e dispersam o sujeito em uma pluralidade de posições e de funções possíveis. (idem, p. 57).
Acreditamos ser essa noção histórica o princípio norteador desse trabalho, já
que as telenovelas são, também, uma produção histórica. Sobre isso, Foucault
preocupava-se com as “não evidencias”. Segundo ele, os historiadores sempre se
preocupavam com os “equilíbrios estáveis de serem rompidos, os processos
irreversíveis, as regulações constantes, os fenômenos tendenciais que culminam e
se invertem após continuidades seculares.” (1996, p.1).
Dentro das tramas sobre a violência contra a mulher, objeto de estudo desse
trabalho, notamos que ao mesmo tempo em que são levantados debates sobre tal
temática, também vão sendo tecidos discursos em prol de alguns enunciados que
corroboram com esse tipo de violência. Na telenovela Mulheres Apaixonadas17, por
exemplo, frases como “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher” foram
proferidas várias vezes, inclusive quando uma pessoa próxima à vítima morre na
tentativa de ajudá-la a acabar com o problema.18
Nesse contexto, também julgamos pertinente analisar, por meio das
telenovelas, o conceito de regularidades e dispersões discursivas trazidas por Michel
17
Telenovela produzida e veiculada pela Rede Globo no período de 17 de fevereiro a 11 de outubro do ano de 2003 no horário das 21 horas. 18
A ser analisado no terceiro capítulo.
55
Foucault, a fim de entendermos as semelhanças e oposições entre as obras
televisivas a serem analisadas. Sobre isso, afirma que
no caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão e, no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações) diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva.(idem, 2008, p. 43).
Assim, se a regularidade está na dispersão do objeto, estamos em frente,
segundo Foucault (1986), à positividade de um discurso que
caracteriza sua unidade através do tempo e muito além das obras individuais, dos livros e dos textos. Se a positividade não revela quem estava com a verdade, pode mostrar como os enunciados “falavam a mesma coisa”, colocando-se no “mesmo nível”, no “mesmo campo de batalha”. (GREGOLIN, 2004, p. 73)
A rede Globo, por exemplo, constitui uma continuidade no que diz respeito ao
teor do conteúdo desse tipo de trama, adequando as temáticas a determinados
horários. Bologh (1995) cita como exemplo a criação da telenovela das seis horas da
tarde, que é voltada a um público que presumidamente não trabalha. Encontra-se
nela, assim, uma história mais romantizada, com personagens “do bem e do mal”,
numa linguagem mais maniqueísta.
A “novela das sete”, por outro lado, procura abordar temas mais engraçados e
debochados, que fazem o público rir. Já a “novela das nove” é voltada para um
público adulto e procura trazer assuntos mais tensos e polêmicos, que se aproximam
mais diretamente à realidade do telespectador. Não podemos deixar de mencionar
que entre as telenovelas das sete e das nove horas, a emissora insere o Jornal
Nacional, que é o momento de trazer o telespectador para a realidade, preparando-o
para um melodrama mais próximo do seu cotidiano, que é o caso da “novela das
nove”. Dessa forma, cria-se uma rotina no telespectador e consequentemente o
hábito de assistir telenovelas. (BORELLI, 1995).
56
2.4 Problematizando identidades
Como o objetivo de abordar questões sobre mídia e discurso mostrando como
essa relação produz identidades, concordamos com Kellner (2001) quando afirma
que a cultura da mídia as forja, produzindo estilos de vida, fornecendo “os modelos
daquilo que significa ser homem ou mulher, bem-sucedido ou fracassado, poderoso
ou impotente” (2001, p. 9).
Gregolin (2007, p. 92), por sua vez, questiona esses modelos ditatórios
quando constata que “as identidades são, pois, construções discursivas [...]. O que é
ser “normal”, “ser louco”, ser “incompetente”, ser “ignorante” se não relatividades
estabelecidas pelos jogos desses micro-poderes?”. Segundo a autora, o grande
conflito da humanidade atualmente são as questões de identidade. Para ela, há uma
insistência em generalizar representações que culminem em categorizações de
“identidades” homogeneizantes. As tensões, dessa forma, não seriam mais entre o
estado ou as instituições e o sujeito, mas sim entre um “poder globalizante” através
micro-lutas cotidianas.
É importante lembrar que o poder não é estático e nem está restrito. Ele
transita e atravessa todo o corpo social. Segundo Foucault (1979), o poder está no
micro, está nas pequenas relações do dia-a-dia e circula no cotidiano das pessoas.
o poder não está localizado no aparelho do Estado e nada mudará
na sociedade se os mecanismos de poder que funcionam fora,
abaixo, ao lado dos aparelhos de Estado a um nível muito mais
elementar, quotidiano, não forem modificados. (idem, p. 149)
A partir de tais colocações, devemos entender os micro-poderes para além do
poder estatal. Eles estão inseridos em cada sujeito histórico, sendo as relações
sociais pressuposto básico para que ocorram. As telenovelas, nesse sentido, são um
grande exemplo que envolve micro-poderes, pois a relação autor-telespectador é
sempre abarcada por tensões e resistências que podem resultar em transgressões
ou negociações. Na telenovela Amor e Revolução19, por exemplo, Marina,
interpretada por Giselle Tigre, e Marcella, por Luciana Vendramini, chocaram o
19
Telenovela brasileira produzida e exibida pelo SBT de 2011 a 2012 no horário das 22h.
57
público ao protagonizar o primeiro beijo lésbico da televisão brasileira. Na época, o
fato estampou as manchetes de importantes jornais e revistas20.
IMAGEM 1: repercussão do primeiro beijo lésbico da televisão brasileira21
No entanto, existem casos em que, a pedido do público, o autor acaba
negociando e retirando algum personagem da trama, como foi caso de Lavínia
(Nívea Stelman) e Fernando (Rodrigo Hilbert), que foram cortados da telenovela
Morde e Assopra22 devido à grande rejeição do público.
Além disso, as telenovelas, como produto midiático, contribuem na construção
de identidades. Kellner (2001) lembra que nas sociedades tradicionais era possível
encontrar identidades estáveis, já que era papel dos grupos onde cada indivíduo
estava inserido a designação de funções. Na contemporaneidade, o autor traz para
o conceito de identidade a noção do social e a subordinação ao outro, pois “à
medida que o número de possíveis identidades aumenta, é preciso obter
reconhecimento para assumir uma identidade socialmente válida” (idem, p. 296). Da
mesma forma, percebe-se maior fragilidade e instabilidade desse sujeito.
Atualmente, devido à necessidade de reconhecimento da própria identidade,
a sociedade de consumo entra como mediadora fundamental nos processos de ser,
vestir, agir e em tudo o que se diz relativo à imagem do sujeito. Podemos
compreender isso através das telenovelas que acabam por ditar modismos, modos
de falar e agir através de personagens. Destacamos, por exemplo, os assessórios
20
Todas as imagens presentes nesse capítulo foram acessadas na primeira semana de fevereiro de 2013, sendo que, por isso, suas respectivas citações não apresentarão a data de acesso individual. 21
Fonte: http://www.netcina.com.br/2011/07/polemica-marina-e-dra-marcela.html 22
Telenovela brasileira produzida e exibida pela Rede Globo em 2011 no horário das 21h.
58
marroquinos e indianos das telenovelas O Clone23 e Caminho das Índias24, que
caíram no gosto brasileiro mesmo sendo representações de uma cultura muito
distinta.
A imagem abaixo mostra a personagem Jade, por Giovanna Antonelli, que
interpretava uma mulçumana, onde se destacam os brincos grandes, a maquiagem
marcada no olho e a dança do ventre, que ficaram muito populares no Brasil e foram
largamente usados na época da telenovela.
IMAGEM 2: Jade dançando em O Clone25
Abaixo, temos a indiana Maya, interpretada por Juliana Paes, que também fez
sucesso no Brasil com o uso excessivo de acessórios, maquiagens marcadas e
tatuagens de henna. A telenovela Caminhos das Índias, assim como O Clone, eram
da mesma autora, Glória Perez, e tinham como objetivo mostrar as culturas do
oriente: Indiana e Marroquina, respectivamente.
23
Telenovela brasileira produzida e exibida pela Rede Globo de 2001 a 2002 no horário das 21h. 24
Telenovela brasileira produzida e exibida pela Rede Globo de 2009 no horário das 21h 25
Fonte: http://televisao.uol.com.br
59
IMAGEM 3: Maya e as peculiaridades do vestuário indiano26
No âmbito brasileiro, a década de 1980 ficou marcada por bordões como “tô
certo ou tô errado?” do personagem Sinhôzinho Malta, vivido por Lima Duarte, e as
faixas de cabelo da viúva Porcina, interpretada por Regina Duarte, como mostra a
imagem abaixo, em Roque Santeiro27. A trama passava na cidade interiorana fictícia
de Asa Branca e retratava costumes tipicamente nordestinos.
IMAGEM 4: Viúva Porcina com um lenço Rosa Flúor 28
Apesar do incômodo causado pelas meias de “lurex”, cujo tecido tinha a
textura grossa, no final da década de 1970 tais meias coloridas foram muito imitadas
pelos brasileiros devido ao sucesso que faziam na telenovela Dancing Days29.
26
Fonte: www.google.com.br 27
Telenovela brasileira produzida e exibida pela Rede Globo entre 1985 a 1986 no horário das 20h 28
Fonte: http://canalviva.globo.com/programas/mais-da-tv/materias/extravagancia-de-maria-do-carmo-e-viuva-porcina.html
60
IMAGEM 5: as meias de lurex em Dancing Days30
O sucesso dos modismos ditados pelas telenovelas é tamanho que a Rede
Globo criou a Globo Marcas, site especializado em vender apenas produtos que
fazem sucesso na programação da emissora. Neste funcionamento comercial,
percebe-se a presença dos micros-poderes de Michel Foucault (1979), já que a
sociedade do consumo tem necessidades de seguir os padrões de grandes
conglomerados midiáticos, fazendo com que os micro-poderes circulem nessas
normas de regulação de como se deve “ser”, “vestir” e “agir”.
2.5 Redes de memória
Segundo Gregolin (2005), cada sujeito tem um arquivo31 de memória de
determinados períodos e, em diferentes momentos, recorre (consciente ou
inconscientemente) a eles. Esses arquivos são, conforme o autor, subjetividades,
como também singularidades históricas a partir do agenciamento de trajetos e redes
de memórias. A mídia, nesse contexto, faz a apropriação dessas redes de memória,
29
Telenovela produzida e exibida pela Rede Globo entre os anos de 1978 e 1979 no horário das 20h. 30
http://colunistas.ig.com.br/curioso/tag/meia-lurex/ 31
Segundo Gregolin(2005,p.09) O arquivo de um momento histórico se constitui em “horizontes de expectativas” e um acontecimento discursivo realiza algumas das suas possibilidades temáticas.
61
utilizando-as na seleção dos temas que irá abordar. Assim, as escolhas temáticas
são sempre motivadas por atravessamentos históricos, sociais e culturais de uma
sociedade.
As telenovelas, nesse sentido, acabam sendo o reflexo das redes de memória
quando ativam as memórias discursivas do telespectador. Podemos citar como
exemplo a telenovela Mulheres Apaixonadas. No núcleo onde a professora Raquel,
interpretada por Helena Ranaldi, namorava seu aluno adolescente Fred, interpretado
por Pedro Furtado, a própria trama contribuía para despertar tal memória discursiva,
que é sempre recorrente quando um sentido é produzido. Através dos personagens
envolvidos no enredo (as famílias, os amigos, o ex-marido), havia constantemente a
lembrança que a sociedade não autorizava o tipo de relacionamento vivido entre o
jovem e a professora.
Cabe ressaltar que as telenovelas acompanham as transformações históricas
e sociais, assim como as redes de memória que são recorrentes, mas nem sempre
estáveis. Dessa forma, elas podem estabilizar e desestabilizar situações, criando a
possibilidade de novos sentidos. Segundo Gregolin, elas criam um “nó na rede”
(2005, p.12).
No caso da telenovela Avenida Brasil32, o público torcia para que Tufão, vivido
por Murilo Benício, agredisse sua esposa Carminha, protagonizada por Adriana
Esteves, vingando-se. Neste caso, verificamos que o tema da violência doméstica foi
incentivado, já que a cena teve aprovação do telespectador, que entendia se tratar
de uma prática condizente com o papel do “mocinho” da trama. Ao mesmo tempo,
isso acaba por implicar na reafirmação do discurso que aceita a violência contra a
mulher quando essa “faz por merecer”.
Na telenovela Salve Jorge33, Bianca, personagem de Cléo Pires, faz uma
festa de “descasamento” para comemorar seu divórcio, utilizando uma
representação estável, que é o casamento, para inverter o sentido tradicional do
conceito. Ao mesmo tempo que parece não valorizar as definições clássicas do
casamento e do amor, se apaixona pelo guia turístico Zyah, vivido por Domingos
Montagner, que mora em uma caverna. A moça larga tudo para viver esse amor,
reforçando o mito de que o grande objetivo da mulher sempre acaba sendo
encontrar um relacionamento estável e tradicional.
32
Telenovela produzida e exibida pela Rede Globo no ano de 2012 no horário das 21h. 33
Telenovela produzida e exibida pela Rede Globo no ano de 2012 e 2013 no horário das 21h.
62
No próximo capítulo, trataremos de alguns conceitos mais específicos sobre
telenovela, discorrendo sobre as que são foco deste trabalho para, posteriormente,
tecer análises sobre as representações da mulher e das violências a ela cometida,
utilizando para isso informações presentes em redes sociais.
63
3 EM CENA: TELENOVELAS Conforme pesquisa34 realizada em 2007 por Mauro Alencar, doutor em
teledramaturgia, dois bilhões de pessoas assistem telenovela no mundo e este
mercado movimenta cerca de setenta milhões de dólares por ano. Nesse contexto, o
Brasil e o México são os maiores exportadores do melodrama no mundo. Mas como
se deu a trajetória da teledramaturgia brasileira? Partindo de tal questão, a proposta
deste capítulo é mostrar suas características no Brasil e, especificamente, mostrar
as telenovelas que nos dedicamos a analisar neste trabalho: Mulheres Apaixonadas
e A Favorita. Para compreendermos o percurso histórico da telenovela, vamos nos
fundamentar na pesquisa de Maria Ataíde Malcher (2009), que fez um significativo
levantamento sobre este tema.
3.1 Um estudo de caso de produções da Rede Globo
Para fazer um apanhado da teledramaturgia no Brasil é necessário levar em
consideração a ausência de dados sobre o início do processo no país. Segundo
Malcher (2009), pouco se têm de registro sobre o que era veiculado nos anos iniciais
da televisão. Portanto, faremos aqui um levantamento bibliográfico sobre esse
percurso.
Outro ponto a destacar é que as telenovelas são produtos midiáticos e como
tal, financiadas pelas verbas oriundas da publicidade. Dessa forma, partimos do
princípio que as telenovelas recebem as influências dos seus patrocinadores e, se
necessário, precisam mudar o rumo das tramas de acordo com as necessidades do
anunciante. Na imagem abaixo, vamos constatar uma cena comum: o uso de
determinada marca comercial por um dos personagens.
Na imagem abaixo, a personagem Aída, interpretada por Tottia Meirelles, de
“Caminho das Índias”, exibe um produto da marca “Novex”, destacando que o usa e
que o mesmo é de excelente qualidade.
34
Pesquisa feita por Mauro Alencar para a Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação Disponível em http://www.htforum.com/vb/showthread.php/56712-2-BILH%C3%95ES-DE-PESSOAS-ASSISTEM-TELENOVELAS-NO-MUNDO-INTEIRO
64
IMAGEM 6: propaganda em Caminho das Índias35
Para destacar as questões teóricas que abarcam as telenovelas, é importante
situar que, num primeiro momento, vamos tomar emprestada a denominação
telenovela dos dias atuais para lembrar que no início do percurso do melodrama
televisivo, ainda não era possível configurar o termo no seu “conceito lato”. O que
acontecia era que a maioria das telenovelas eram oriundas do rádio e, portanto,
tinham o roteiro adaptado para esse meio. Outras eram adaptações de roteiros
estrangeiros, como também havia a inserção do teatro na TV, aliando a competência
entre ambos, chamado de teleteatro (MALCHER, 2009).
A primeira emissora do Brasil, a TV Tupi, foi inaugurada em 1950, na cidade
de São Paulo. Neste período surgiram também as emissoras Record, Paulista,
Continental e TV Rio. Já era possível observar um movimento de regionalização da
televisão, mesmo que ainda incipiente. As obras veiculadas por essas emissoras
eram predominantemente no eixo Rio-São Paulo, mas, no entanto, nota-se a
abrangência para outras regiões, o que já sinalizava um caráter de diversidade na
televisão. Considerando que o Brasil é vasto em termos sócio-culturais, seria
necessário ir captando a realidade de outras partes do país.
As obras ficcionais na TV, neste momento, buscavam sua inspiração nas
radionovelas, que faziam sucesso como melodrama e tinham como característica o
forte apelo popular. No entanto, na TV havia a grande tensão entre as
35
Fonte: http://blog.modadenovela.com.br/
65
características populares do melodrama do rádio e as raízes do que naquele
contexto considerava-se como “cultural”, como grandes obras clássicas, o teatro
europeu e outros. Esse novo meio precisava de legitimação, mas era arriscado se
manter longe da realidade do povo brasileiro (MALCHER, 2009). Acreditava-se,
nesse contexto, que com roteiros distantes do cotidiano da maioria da sociedade a
telenovela podia ficar fora da realidade da população e não agradar.
As primeiras telenovelas no Brasil tinham duração de apenas 20 minutos e
eram veiculadas três vezes na semana. Segundo a pesquisa de Malcher, a década
de 1950 teve 109 produtos que, dentro das limitações do termo, podem ser
chamados de telenovelas36. No entanto, essas obras não tinham horários fixos e
apresentavam pouca audiência. A maior parte dos roteiros de telenovelas era de
origem estrangeira e só a partir de 1953 foi possível ver criações de textos e autores
nacionais baseados na literatura brasileira, formulados especificamente para esse
tipo de mídia. A TV Excelsior, por exemplo, teve na época o propósito de valorizar
essas obras e adaptar seu roteiro à cultura brasileira.
Esta emissora, que permaneceu até 1970 no ar, trouxe para a televisão o
modelo organizacional norte-americano, criando a grade horizontalizada e
verticalizada. Sobre isso, Borelli (1995) acredita que, além da televisão passar a
adotar o princípio da diversidade e da miscigenação brasileira considerando as
várias etnias e culturas do país, foi sistematizado um tipo de organização baseado
na verticalidade e horizontalidade. Portanto, é necessário a uma telenovela passar
todos os dias em determinado horário e emissora (princípio da horizontalidade) ou
que esses melodramas se encaixem entre as programações diárias como “depois”
de um determinado jornal ou “antes” de um programa de auditório (princípio da
verticalidade).
Essa emissora, então, investiu em tecnologia com o videotape e lançou, em
1963, a primeira telenovela diária, intitulada 2-5499 Ocupado. Neste mesmo ano
estreia também Teatro 63, que procura dramatizar histórias do cotidiano de um
brasileiro. Segundo Malcher (2009), a Excelsior também inovou ao romper com o
“acordo de cavalheiros”, que nada mais era que um pacto entre as emissoras de não
empregar funcionários das empresas concorrentes. Dessa forma, acabou
36
Mais adiante iremos explicar porque esse termo só pode ser considerado lato a partir da década de 1980.
66
angariando alguns grandes atores promissores. Além disso, foi uma importante
conquista na valorização dos artistas brasileiros que trabalhavam na televisão.
A Excelsior inaugura modelos para o jovem negócio de TV, aplicando diretrizes que visavam à criação de departamentos, a utilização otimizada e customizada do tempo no ar, a profissionalização, a introdução do hábito de “ver televisão orientado pela grade de programação horizontal e vertical. Evidentemente, deixando de ser o “patinho feio”, a telenovela torna-se a produção mais explorada da televisão. (MALCHER, 2009, p.115)
Mesmo assim, as telenovelas com a programação diária não conseguiram se
estabelecer imediatamente. Nesse processo, muitas emissoras não conseguiam
cumprir com a grade de programação, desrespeitando os horários e a permanência
das tramas no ar. Assim, a década de 1960 foi fundamental, pois nela as telenovelas
começaram a dar os primeiros passos e avançar tecnologicamente.
Esse processo ganhou impulso a partir de 1969, quando o governo militar, por meio do Ministério das Comunicações e da Embratel, criados pouco antes, concluiu uma parte de seu projeto de “integração nacional” e inaugurou a rede básica de microondas, interligando as diversas regiões do país [...]. Da mesma forma satélites brasilsat vieram complementar e ampliar a rede de microondas, de 1985 em diante, cobrindo efetivamente todos os quadrantes do território brasileiro. (PRIOLLI apud MALCHER, idem, p.112).
Dessa forma, é necessário contextualizar a ditadura militar como palco desse
processo, onde foram suspensas várias manifestações de expressão, atingindo
diretamente o meio televisivo.
Um tempo duro para um país que precisava amadurecer e com estratégias políticas marcadas por ações extremas de violência e ignorância (...). É interessante salientar que a televisão conseguiu “proteger” muitos dos que estavam ameaçados pelo sistema que se implantará e durante os vinte duros anos de repressão e que serviu de celeiro para a criação de projetos televisivos por nomes que hoje integram o que há de melhor em termos de teledramaturgia. (idem, p.119)
67
Nesse período, as emissoras se abrangem para outros estados e na década
de 1970 surge a TV Globo37, que começa a ameaçar a concorrência, já que passa a
transmitir em rede e conseguiu maior abrangência no país. Assim a programação vai
se consolidando e com isso as telenovelas passam a ser exibidas de segunda a
sábado. Além disso, as emissoras começam a ter menos oscilações de horários e
programações, o que ajuda a solidificar a audiência. Conforme Malcher (2009, p.
125), “a distribuição dos programas em horários planejados e previamente
divulgados pela emissora, desde o início da programação até o encerramento das
transmissões, cria um plano conhecido como grade horária semanal”.
Na década de 1970, a telenovela também passou a ter espaço entre o público
masculino através de Irmãos Coragem38, mesmo sendo um período no qual a
telenovela ainda era destinada ao público feminino. Quase 30 anos depois, percebe-
se que ela ainda continua sendo preferência entre as mulheres. Sobre isso, uma
pesquisa39 encomendada pelo governo federal em 2010 mostra que os programas
mais assistidos pelos homens são os telejornais (52,3%) e entre a população
feminina este índice declina para 33,5%. Já as telenovelas são mais assistidas por
mulheres (51,2%), sendo que apenas 9,4% dos homens assistem a este tipo de
programação.
Atualmente, apesar de ainda haver resistências, é mais comum encontrar
homens chamados de “noveleiros”. A telenovela global Avenida Brasil40, por
exemplo, ficou conhecida por ter tido grande audiência masculina.41
A partir de 1979, o publico começa a perceber a inserção de temas mais
complexos nas teledramaturgias, em especial nas telenovelas da Globo. Segundo
Malcher (2009, p.127), “a Globo vai desenhando sua grade de programação com
37
Neste trabalho damos ênfase maior a TV Globo em detrimento das telenovelas de outras emissoras, já que as duas telenovelas analisadas foram produzidas por tal rede de TV. Fundada em 26 de abril de 1965, na cidade do Rio de Janeiro, pelo jornalista Roberto Marinho, tem hoje um público diário de 150 milhões de pessoas no Brasil e no exterior. A emissora é a segunda maior rede de TV comercial do mundo, atrás apenas da americana American Broadcasting Company. No que tange as telenovelas, é um dos maiores produtores do planeta, alcançando 98,44% do território brasileiro e cobrindo 5.482 municípios, ou seja, cerca de 99,50% da população total do Brasil. Fonte: www.globo.com Acesso em dezembro de 2012. 38
Telenovela produzida e exibida pela Rede Globo no período de 8 de junho de 1970 a 12 de junho de 1971. Escrita por Janete Clair, totalizando 328 capítulos. 39
Pesquisa realizada pela Meta (Instituto de Pesquisa realiza diagnósticos sócio-econômicos, empresariais e eleitorais), em 2010. Disponível em https://gestao.secom.gov.br/ 40
Telenovela exibida pela Rede Globo no período de 26 de março a 12 de outubro de 2012. Escrita por João Emanuel Carneiro 41
Matéria feita pela revista Isto É. Disponível em http://www.istoe.com.br/reportagens/245202_A+NOVELA+QUE+FISGOU+ATE+OS+HOMENS. Acessado em 15/01/2013
68
traços precisos e matrizes carregadas de verde e amarelo, oferecendo um cardápio
cada vez mais variado, atiçando o paladar dos diferentes gostos brasileiros”.
Assim, a emissora começou a ter um prestígio tão grande que as outras
passaram a mudar o horário de sua programação para não ter audiência perdida.
Foi o caso da telenovela Éramos seis42, da Rede Tupi, que mudou para o horário
das 19h30 para não coincidir com a telenovela Locomotivas, da Globo, que era
transmitida no mesmo horário (ibidem).
Segundo a autora, foi a partir da década de 1980 que as telenovelas
passaram a apresentar o conceito que temos atualmente. As tecnologias ficaram
cada vez mais avançadas e as marcas autorais com forte identidade nacional,
típicas das telenovelas brasileiras, ficaram cada vez mais evidentes. Também se
verifica
números médios de capítulos, textos escritos originalmente para a televisão, mesmo quando adaptados de obras estrangeiras e que são realizados por autores nacionais que os adéquam a realidade brasileira. Seu tempo de veiculação em capítulos obedece a uma periodização em meses para a exibição e os capítulos são apresentados dia-a-dia, de forma constante, possibilitando o desenrolar lento da narrativa; possuem multiplicidade das tramas e sua preocupação com os elementos que integram sua linguagem são itens na pauta de sua produção, seja a trilha musical, cenografia, maquiagem, fotografia, direção, entre outros elementos. (MALCHER, 2009, p.140).
Apesar da trajetória marcada por enormes avanços, ainda hoje a
teledramaturgia não consegue escapar dos preconceitos da crítica intelectual. No
inicio do processo, era considerada sem legitimação, pois tinha suas principais
raízes no rádio. Segundo Moreira (2000), o maior desafio da TV brasileira é superar
esse embate.
Outro ponto que destacamos é a importância do cotidiano, que foi deixado de
lado por muitos pesquisadores que acreditavam serem estes espaços destinados
apenas aos estudos sobre a luta das classes populares e, consequentemente, às
lógicas de produção marxistas. Com isso, as pesquisas do dia-a-dia de um
determinado bairro não eram consideradas um objeto de importância científica, já que
não estavam diretamente ligadas à esfera política. (JACKS, 1995)
42
Telenovela brasileira produzida pela Rede Tupi e exibida de junho a dezembro de 1977.
69
Segundo Martin-Barbero (1995, p. 58), um dos aspectos mais importantes nos
estudos de recepção na América Latina são as considerações sobre o cotidiano.
Segundo o autor, “o aporte fundamental é ver a vida cotidiana como espaço em que
se produz a sociedade e não só onde ela se produz”.
Esse conceito tem um papel relevante nessa esfera quando se busca
compreender as práticas culturais dos segmentos populares, pois é justamente no
cotidiano que o sujeito compara e viabiliza, ou não, as propostas hegemônicas ou
contra-hegemônicas, sustentando seus hábitos ou costumes e os de seus grupos
identitários. Sobre isso, Agnes Heller (1989) diz que a vida cotidiana é onde o homem
está presente em todos os aspectos do seu dia-a-dia, abarcando características de
sua individualidade e personalidade. Nela colocam-se em funcionamento todos os
seus significados e sentidos, capacidades intelectuais, habilidades, seus
sentimentos, suas paixões, idéias e ideologias. A autora afirma também que o
homem da cotidianidade é “atuante e fruidor, ativo e receptivo, porém não tem tempo
e nem possibilidade de se absorver inteiramente em nenhum desses aspectos; por
isso não pode aguçá-lo em toda a sua intensidade” (HELLER, 1989, p.17-18).
Mauro Wilton (1989) também desenvolveu estudos de recepção que
privilegiam o cotidiano como o espaço onde as coisas acontecem de fato. O autor diz
que a noção da cotidianidade, tanto quanto a de práticas de pessoas e grupos
sociais, é uma primeira aproximação importante para se destacar o que vem se
colocando como prioridade no estudo de interação entre comunicação e cultura.
Esses grupos que se formam no cotidiano constituem, ao mesmo tempo, o motivo
dessa mesma vida dos indivíduos. Neles se obtém informações básicas para a
subsistência, para a constituição e renovação das experiências históricas e pessoais
e, nos processos mais avançados, para o suporte vivencial das grandes lutas sociais.
Um dos aspectos importantes a se destacar quando se pensa a telenovela
como um importante aspecto da vida cotidiana são as estratégias usadas pelos
veículos de comunicação para impetrá-las desta forma. Segundo Malcher (2009,
p.153), as obras da ficção passaram a trazer diferentes modalidades de gênero
ficcionais. A autora traz o exemplo de A indomada43 para perceber como em uma
mesma telenovela é possível detectar vários tipos de gênero: comédia, drama,
suspense, entre outros.
43
“A Indomada” foi uma telenovela brasileira produzida e exibida pela Rede Globo em 1997.
70
Para compreender o sucesso das telenovelas junto ao público é importante
que se destaque os conceitos de representação fundamentais ao entendimento de
como funcionam os mecanismos das narrativas fictícias. Segundo Moscovici (apud
SODRÉ, 1972, p.76), a representação é “um processo de mediação entre conceito e
percepção”. Em linhas gerais, uma forma de reconstruir um objeto já existente, dando
consequentemente uma nova roupagem ao real e levando em consideração as
influências culturais e ideológicas próprias do receptor. A telenovela é um grande
exemplo de representação, já que independente do nível de proximidade e realidade
da narrativa com o telespectador, sendo a função principal do folhetim a de
representar.
Segundo Gregolin (2007, p. 6), “na sociedade contemporânea, a mídia realiza
a imensa tarefa de fazer circular as representações e, nesse sentido, coopera para as
interconexões dos fios desse entrelaçamento”. Como já foi dito anteriormente, as
telenovelas muitas vezes se vêem reproduzindo dramas da vida real, como
escândalos políticos, problemas vividos no âmbito privado e público, preconceitos,
tabus. Podemos reconhecer determinadas situações nas gírias, no comportamento
das personagens, nos cenários, nas tramas, na atmosfera política e cultural e na
estética de produção em geral. Esses folhetins “retiram” o cerne do problema da vida
real, dando-lhe uma nova forma e transformando-o em narrativa áudio-visual. Como
afirma Campadelli (1987), essas tramas passeiam entre ficção e não-ficção, sendo
que, no entanto, sempre mantém uma estrutura que lembra e representa a realidade.
Dessa forma, percebe-se que tudo passa a ser intencional na construção das
narrativas.
A organização narrativa para ser entendida pressupõe a sua descrição, a determinação dos sujeitos, o papel que representam na história simulada, e a contextualização. Nesse nível observa-se a intencionalidade do artista e os mecanismos de manipulação dos quais se utiliza para interagir com o “olhar” do espectador. (BORGES, 2006, p.69)
Percebe-se, assim, que a telenovela faz uso de dispositivos tecnológicos para
narrar. Na telenovela A favorita, por exemplo, em cena referente ao núcleo onde a
personagem apanhava do marido, percebia-se uma composição que levava o
telespectador ao suspense, com o uso de uma trilha sonora mais tensa ou até
mesmo tirando o fundo musical para dar um aspecto de realidade à cena. O folhetim
71
fazia uso de closes nos personagens principais para mostrar as mínimas expressões
de emoções. Quando ocorria a agressão, tinha-se a sensação de que a pancada
havia sido mais forte devido a proximidade das câmeras.
Com o avanço da tecnologia agregada a valores culturais do telespectador, a
estética de áudio e vídeo passou a ser uma grande aliada dessa identificação e os
sujeitos sociais passaram a se projetar nos dramas, que são mais reais com a ajuda
desses meios técnicos mais especializados, que tem por objetivo aproximar as
histórias verídicas das fictícias. Outro fator interessante a se destacar é o que Hall
(2003) chama de “comunidades imaginadas”. Usando o exemplo da Grã-Bretanha,
ele diz que
a vida das nações, não menos que a dos homens, é vivida em grande parte na mente. As fundações racionais e constitucionais da Grã-Bretanha ganham significado e textura de vida através de um sistema de representação cultural. Elas se sustentam nos costumes, hábitos e rituais do dia-a-dia, nos códigos e convenções sociais, nas versões dominantes de masculino e feminino, na memória socialmente construída dos triunfos e desastres nacionais, nas imagens, nas paisagens e distintas características nacionais que produzem a “Grã-Bretanha”. (idem, p. 78)
Isso também acontece com a telenovela, já que mostrando lugares, hábitos e
culturas ela automaticamente nos transporta a ambientes desconhecidos, que
passam a ser familiares. Na telenovela Salve Jorge, o telespectador passa a
reconhecer a cidade do Rio de Janeiro e a Turquia, marcadas com seus hábitos,
sotaques, costumes. Toda essa intimidade acontece apenas através da mente, que
cria essas “comunidades imaginadas”.
Em linhas gerais, as telenovelas nacionais têm o objetivo de identificar o povo
brasileiro, seus problemas e toda uma complexa cultura que é influenciada por
diversos fatores como classe social, experiências de vida, crenças e todos os dilemas
de uma civilização que vive em território extenso e que, historicamente, recebeu
influência de várias partes do mundo (JACKS, 1993).
Acredita-se que a partir do momento em que a telenovela tira os problemas
do cotidiano e passa a registrá-los na ficção, ela passa a ser uma importante
ferramenta de democracia, construção e modificação da realidade social.
72
3.2 Em pauta: Mulheres apaixonadas
IMAGEM 7: abertura de Mulheres Apaixonadas
44
Uma das telenovelas que iremos analisar com mais profundidade é Mulheres
Apaixonadas. A trama brasileira substituiu Esperança, de Benedito Ruy Barbosa, e
foi veiculada pela Rede Globo no período de 17 de fevereiro a 11 de outubro do ano
de 2003, no horário das 21 horas. Foi escrita por Manoel Carlos e dirigida por
Ricardo Waddington, Rogério Gomes, José Luiz Villamarim, Ary Coslov e Marcelo
Travesso. Teve um total de 203 capítulos na versão nacional e depois de exportada
170 capítulos, sendo reprisada no programa “Vale a Pena Ver de Novo”45 entre 1 de
setembro de 2008 e 27 de fevereiro de 2009.
Foram exibidas 15 aberturas diferentes nos meses em que ficou no ar, já que
as fotos mostradas eram enviadas por telespectadores. As imagens de mulheres
apareciam em destaque, enquanto a dos homens ficavam embaçadas. Inicialmente,
as fotos seriam trocadas mensalmente. No entanto, a ideia fez sucesso e as trocas
aconteciam a cada duas semanas. Em 2003, época em que foi exibida, Mulheres
Apaixonadas foi destaque no jornal “O estadão”46, já que o sucesso evidente vinha
através de sua audiência: o maior ibope do horário nobre, com média de 54 pontos e
picos de 60, além de share47 de 73%.
Em entrevista48, Manoel Carlos disse que é um autor que se preocupa com os
problemas sociais. Segundo ele49, “a ficção tem sido uma boa aliada no
44
Fonte: www.google.com.br 45
É um programa exibido pela Rede Globo no horário da tarde que tem como objetivo reprisar as telenovelas da emissora. 46
Matéria disponível em http://www.estadao.com.br/arquivo/arteelazer/2003/not20030717p2810.htm 47
Percentual de audiência em relação ao total de aparelhos ligados. 48
Entrevista concedida por Manoel Carlos para o livro Autores – História da Teledramaturgia. 49
Entrevista concedida por Manoel Carlos ao jornal Estado de São Paulo. Disponível em http://br.monografias.com/trabalhos/mulheres-apaixonadas/mulheres-apaixonadas3.shtml
73
esclarecimento de questões importantes para a sociedade e a telenovela, como o
mais abrangente dos gêneros ficcionais, precisa estar atenta a isso”. Segundo Costa
(2000), o autor também se preocupa com as reações do público: “Manoel Carlos
admite ser capaz de modificar o destino de seus personagens se o público assim
exigir (idem, p. 163).
Com isso, conforme as concepções teóricas já apresentadas ao longo do
trabalho, constata-se o processo da recepção. Sobre isso, Jeckins (2009) lembra
que se o mercado não estiver atento aos interesses do consumidor pode observar
uma queda significativa nas suas ações, já que este consumidor tem a necessidade
de interagir. É o que afirma, também, Martin-Barbero (2001) quando diz que a
recepção é um processo de interação. Ruótolo (1998), como também citamos no
segundo capítulo, acredita que é importante estudar as repostas que os indivíduos
dão aos conteúdos de comunicação. Além disso, segundo o autor, o receptor tem a
escolha de optar pela programação que mais se encaixe as suas necessidades, já
que a exposição ao meio é intencional, sendo mais um motivo para o produtor se
preocupar com os processos de recepção. Outro ponto importante a ser lembrado
são as relações de poder imbricadas nessa relação autor-telespectador. Como já
abordado no capítulo anterior, segundo Foucault (1979), o poder não é estático e
atravessa toda a sociedade, interferindo nas relações cotidianas.
Mulheres Apaixonadas tem como tema principal o drama de várias mulheres
que moravam no Rio de Janeiro, na maioria dos casos, no bairro do Leblon, e eram
de classe média. A protagonista, vivida pela personagem de Cristiane Torloni,
Helena, vive no declínio de seu casamento com Téo, personagem vivido por Tony
Ramos, e se arrisca a viver uma complicada paixão com seu ex-namorado, César
(José Mayer).
A personagem é diretora da Escola Ribeiro Alves, onde os estudantes vivem
diversos conflitos. Um deles diz respeitos às adolescentes Rafaela (Paula Picarelli) e
Clara (Aline Moraes), que sofreram diversos preconceitos ao assumir o
relacionamento homossexual.
De acordo com opiniões veiculadas pela mídia50, no período da telenovela a
história das duas moças foi bem aceita pelo publico, já que foi posta de maneira
50
Nota especial para a manchete do Correio Braziliense, edição de 25 de maio de 2003: “A namorada tem namorada – Com maestria, Manoel Carlos conduz romance entre Clara e Rafaela. A história conquistou o público”. Fonte: correiobraziliense.com.br
74
gradativa e repleta de cuidados pela direção para evitar maiores polêmicas. Na
telenovela Torre de Babel, por exemplo, o tema foi rejeitado, e as personagens que
viviam relação semelhante, Leila (Silvia Pfeifer) e Rafaela (Cristiane Torloni), tiveram
de ser retiradas às pressas da trama, cuja solução foi para apelar para uma
explosão em um shopping.
Ainda em Mulheres Apaixonadas foi abordado o problema do alcoolismo
através da professora Santana (Vera Holtz), além da trama envolvendo Dóris
(Regiane Alves) e seus avós, Leopoldo (Osvaldo Louzada) e Flora (Carmen Silva),
que sofriam violência contra o idoso. Sobre isso, cabe destacar que a repercussão
foi tamanha que o tema foi pauta no Congresso Nacional.
Além dos problemas de separação e traição que envolviam as mulheres da
telenovela, havia a personagem Estela (Lavínia Vlasak), que se dedicava a
conquistar o Padre Pedro (Nicola Siri) e Heloísa (Guilia Gam), que sofria por ciúmes
excessivos do marido. Através de tal personagem foi divulgado o grupo de apoio
psicológico “Mulheres que Amam Demais”, que ajuda mulheres vítimas do ciúme
exagerado.
A trama investiu também na polêmica do relacionamento de mulheres mais
velhas com homens mais novos, como foi o caso das personagens Lorena (Suzana
Vieira) e Silvia (Natália do Valle), além da personagem que vamos destacar neste
trabalho, Raquel (Helena Ranaldi), que se envolve com seu aluno adolescente, Fred.
Foi pauta, também, a violência urbana com a bala que atingiu e matou a
personagem Fernanda (Vanessa Gerbelli), no bairro do Leblon. Entretanto, a
telenovela sofreu, por outro lado, tentativa de processo judicial do Sindicato dos
Trabalhadores Domésticos de Jundiái, São Paulo, por conta do tratamento retratado
à Zilda (Roberta Rodrigues), que sofria assédio e inúmeras investidas de Carlinhos
(Daniel Zettel), filho dos donos da casa onde trabalhava. Apesar da tentativa, a
justiça negou o processo.
3.2.1 O núcleo Raquel, Marcos e Fred
A trama que iremos destacar aqui diz respeito à personagem de Raquel
(Helena Ranaldi) e seu ex-marido violento, Marcos (Dan Stulbach). Como já
discorremos anteriormente, ela é professora de Educação Física, tem
75
aproximadamente 30 anos de idade e se muda de São Paulo para o Rio de Janeiro
na tentativa de recomeçar a vida após a separação. Na cidade do Rio de Janeiro,
ela mora em um apartamento com a sua empregada doméstica e confidente, Ivone
(Arlete Heringe).
Raquel começa a dar aulas na Escola Ribeiro Alves, onde conhece e passa a
se envolver com um aluno bem mais novo que ela, Fred (Pedro Furtado), que tem
16 anos. Ele mora com a mãe Eleonora (Joana Medeiros), foi criado sem o pai e é
apaixonado por esportes, principalmente por natação. A telenovela explorou
bastante essa relação, mostrando que Eleonora era uma das mulheres apaixonadas:
pelo filho. Durante toda a trama, a mãe se dedica quase que exclusivamente ao
garoto.
É interessante destacar também que a personagem Raquel não chegou a se
separar legalmente do ex-marido. Ela precisou fugir de São Paulo, pois além dele
não possibilitar o divórcio, a agredia constantemente, uma vez que Marcos ainda se
considerava casado e “dono” de Raquel, inclusive chamando-a de “meu amor”. Na
cena em que ele chama Fred para intimidá-lo, deixa bem claro esse sentimento de
pertencimento. Marcos diz:
há muito tempo em São Paulo, um garoto assim (...), mais novo que você, era aluno dela, também se encantou pela Raquel. É, você não foi o primeiro. Tudo bem, viu? Não fica assim. Garotos se encantam por mulheres, é natural... aí resolvi ter uma conversa com ele, assim como estou tendo com você. Mas sabe que ele não me ouviu? Continuo dando em cima da minha mulher...51
Apesar das mudanças legais que concederam o direito de divórcio às
mulheres e, mesmo com os avanços que marcaram o ano de 2003, como já
mostrado anteriormente, o processo seguiu sendo muito burocrático, principalmente
no que dizia respeito à separação não aceita por um dos cônjuges, ou seja, litigiosa,
como era o caso de Marcos e Raquel, já que ele não aceitava o divórcio. Segundo a
Lei 6.515/77, “a separação judicial pode ser pedida por um só dos cônjuges quando
imputar ao outro conduta desonrosa ou qualquer ato que importe em grave violação
dos deveres do casamento e tornem insuportável a vida em comum” (Art. 5º) 52.
51
Cena disponível em http://www.youtube.com/watch?v=9vqkz_JLblA. 52
Disponível em http://www.separacaoedivorcioonline.com.br/separacao-judicial.html
76
Vale ressaltar que em 2003 a lei do divórcio ainda exigia a necessidade da
separação judicial por mais de um ano ou a separação de fato por mais de dois. A
partir de 13 de julho de 2010, vingou a lei de que, não havendo a existência de filhos
menores, o divórcio poderia ser feito em cartório, diminuindo as burocracias.
Na telenovela, constata-se que a relação entre Fred e Raquel não é bem vista
pelos amigos e a mãe do garoto, Eleonora, que prefere que Fred namore Marcia
(Pitty Webbo), já que a garota é filha de um famoso médico, Marcos (José Mayer), e
de “boa família”. Na cena em que os pais dos alunos estão reunidos na escola para
um encontro de boas vindas, Eleonora comenta com a mãe de um dos alunos sobre
Márcia:
A família é podre de rica. E ela, cá pra nós, que ninguém nos ouça, é apaixonada pelo Fred, meu filho. Arrasta uma asa pra ele. Eu rezo todo dia, ascendo vela pros dois namorarem. Ah, pra ele vai ser uma grande oportunidade. Mas não é por causa do dinheiro, que eu não sou interesseira. É por causa da família, são todos muito educados e distintos, sabe? Já viajaram o mundo inteiro.53
Logo depois, Fred e Raquel chegam juntos a Escola. Eleonora comenta em
tom de desaprovação: “essa moça agora grudou no meu filho?”, e Marcinha,
chateada, responde: “pois é, o tempo todo!”54.
Enquanto isso, Marcos (Dan Stulbach) vai para o Rio de Janeiro perseguir a
ex-mulher. Ele é de classe média alta e aparece sempre dirigindo carros caros e
frequentando restaurantes de luxo. Entre outros atos de violência, ele costuma bater
em Raquel com uma raquete de tênis.55 Além disso, faz ameaças constantemente,
praticando violência psicológica e dizendo que ia denunciar o caso dela com seu
aluno se ela não reate o relacionamento. Na cena em que os dois estão no bar que
pertence ao ex-marido da diretora da escola em que Raquel trabalha, Marcos a
ameaça dizendo: “pega sua taça, vamos fazer um brinde ao romance da
professorinha e seu aluno”.
Raquel implora para o ex-marido parar, mas ele continua. “Tá com medo de
ser desmascarada aqui na frente de todo mundo? Banda de música e tudo, Raquel.
Vamos continuar essa conversa lá na minha suíte. Só nós dois, amor.” Ela se nega e
53
Cena disponível em http://www.youtube.com/watch?v=AT7hDAH-_M8. 54
Cena disponível em http://www.youtube.com/watch?v=7w2y7fjDMZ4. 55
Cena de Marcos batendo em Raquel com a raquete de tênis está disponível em http://www.youtube.com/watch?v=zOicILt247U
77
ele ameaça: “então tá bom, não me resta outro jeito. Vamos anunciar esse romance
aqui mesmo. Vamos aproveitar a presença do Théo, ex-marido da Helena e irmão
da Lorena (dona do colégio, vivida por Suzana Vieira).56
Vendo que as violências psicológicas e físicas não estavam surtindo o efeito
esperado, Marcos passa a perseguir Fred e a professora decide denunciá-lo por
agressão. O jornal O Estadão57 divulgou que, segundo dados da Delegacia de
Atendimento a Mulher do Rio Janeiro, depois que Raquel foi à polícia o número de
denúncias aumentou 40% nas delegacias.
Segundo Moscovici (1987) e Gregolin (2007), as telenovelas se utilizam da
representação, tirando dramas sociais da realidade, inserindo nas tramas e trazendo
o máximo de características que remetam a realidade. Nesse sentido, os
“laboratórios” que os atores fazem antes de começarem as gravações de uma
determinada telenovela servem para eles conheçam a história de sujeitos reais que
vivem esses dramas no cotidiano, a fim de conceder à trama um caráter verossímil.
Um exemplo disso foi mostrado pelo jornal Estadão58. A pesquisadora da
telenovela, Leandra Pires, contribuiu com a cena fictícia de denúncia feita por
Raquel contra seu ex-marido por meio de diálogos travados no dia-a-dia de uma
delegacia para mulheres vítimas de violência, tentando atingir o máximo de
verossimilhança com a realidade. Na reportagem, a atriz Helena Ranaldi afirmou que
quando me abordavam para falar desse assunto, eu perguntava se essas pessoas sabiam quais eram as punições para os agressores. Grande parte não tinha conhecimento dessa falha na lei. Eu adoraria que os agressores fossem presos. Espero que na novela o Marcos sofra de alguma forma.59
No entanto, antes da audiência judicial, Marcos leva Fred para uma
emboscada e os dois morrem em um acidente. No final da trama, a professora
descobre que está grávida do estudante. Vale ressaltar que no período da telenovela
a Lei Maria da Penha (2006) ainda não havia sido criada. Portanto, os
procedimentos legais eram outros, como podemos observar no quadro comparativo
antes e depois da Lei. Vejamos abaixo:
56
Cena disponível em http://www.youtube.com/watch?v=BZq03IH3-bQ 57
Jornal do Estado de São Paulo 58
Dados disponíveis em http://www.estadao.com.br/arquivo/arteelazer/2003/not20030929p3005.htm 59
Entrevista disponível em http://www.estadao.com.br/arquivo/arteelazer/2003/not20030929p3005.htm
78
ANTES DA LEI MARIA DA PENHA DEPOIS DA LEI MARIA DA PENHA
Não existia lei específica sobre a violência doméstica
Tipifica e define a violência doméstica e familiar contra a mulher e estabelece as suas formas: física, psicológica, sexual,
patrimonial e moral.
Não tratava das relações entre pessoas do mesmo sexo.
Determina que a violência doméstica contra a mulher independe de orientação
sexual.
Nos casos de violência, aplica-se a lei 9.099/95, que criou os Juizados
Especiais Criminais, onde só se julgam crimes de "menor potencial ofensivo"
(pena máxima de 2 anos).
Retira desses Juizados a competência para julgar os crimes de violência
doméstica e familiar contra a mulher.
Esses juizados só tratavam do crime. Para a mulher resolver o resto do caso, as questões cíveis (separação, pensão, guarda de filhos) tinha que abrir outro
processo na vara de família.
Prevê a criação de Juizados Especializados de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher, com competência cível e criminal, abrangendo
todas as questões.
Permite a aplicação de penas pecuniárias, como cestas básicas e
multas.
Proíbe a aplicação dessas penas.
A autoridade policial fazia um resumo dos fatos e registrava num termo padrão
(igual para todos os casos de atendidos).
Tem um capítulo específico prevendo procedimentos da autoridade policial, no
que se refere às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar.
A mulher podia desistir da denúncia na delegacia.
A mulher só pode renunciar perante o Juiz.
Era a mulher quem, muitas vezes, entregava a intimação para o agressor
comparecer às audiências.
Proíbe que a mulher entregue a intimação ao agressor.
Não era prevista decretação, pelo Juiz, de prisão preventiva, nem flagrante, do
agressor (Legislação Penal).
Possibilita a prisão em flagrante e a prisão preventiva do agressor, a
depender dos riscos que a mulher corre.
A mulher vítima de violência doméstica e familiar nem sempre era informada
quanto ao andamento do seu processo e, muitas vezes, ia às audiências sem
advogado ou defensor público.
A mulher será notificada dos atos processuais, especialmente quanto ao
ingresso e saída da prisão do agressor, e terá que ser acompanhada por advogado,
ou defensor, em todos os atos processuais.
A violência doméstica e familiar contra a mulher não era considerada agravante
de pena. (art. 61 do Código Penal).
Esse tipo de violência passa a ser prevista, no Código Penal, como
agravante de pena.
A pena para esse tipo de violência doméstica e familiar era de 6 meses a 1
ano.
A pena mínima é reduzida para 3 meses e a máxima aumentada para 3 anos,
acrescentando-se mais 1/3 no caso de portadoras de deficiência.
Não era previsto o comparecimento do agressor a programas de recuperação e
Permite ao Juiz determinar o comparecimento obrigatório do agressor
79
reeducação (Lei de Execuções Penais). a programas de recuperação e reeducação.
O agressor podia continuar frequentando os mesmos lugares que a vítima
frequentava. Tampouco era proibido de manter qualquer forma de contato com a
agredida.
O Juiz pode fixar o limite mínimo de distância entre o agressor e a vítima, seus familiares e testemunhas. Pode
também proibir qualquer tipo de contato com a agredida, seus familiares e
testemunhas. QUADRO 1: Mudanças legais pós lei Maria da Penha
Fonte: Observatório Lei Maria da Penha60
A partir do quadro acima, percebe-se que na cena em que Marcos recebe a
intimação da justiça para prestar esclarecimentos sobre a denúncia de Raquel, ele
rasga o papel e sequestra Fred, ato que termina em desastre. Se fosse dentro da
nova lei, talvez isso pudesse ser evitado, já que ela possibilita a prisão em flagrante
e a prisão preventiva do agressor. Além disso, ele poderia ter que manter distância,
como diz a lei, da “vítima, seus familiares e testemunhas. Pode também proibir
qualquer tipo de contato com a agredida, seus familiares e testemunhas”61. Portanto,
percebe-se que a telenovela se dá em outro contexto. Além disso, até o ano de 2005
ainda existia a Lei da Legítima Defesa da honra62,que poderia ter defendido o
agressor.
Outro ponto a ser questionado é o final da trama, na qual se percebe que
diante da dificuldade em dar um destino para o romance polêmico que envolvia uma
mulher mais velha e um homem mais novo, Raquel e Fred, foi mais viável a morte
do personagem, como também a morte de Marcos, já que sem lei específica na
época era complicado desenvolver uma punição verossímil para o mesmo.
Verifica-se, também, que durante toda a trama o personagem, que era de
classe média alta, foi tratado como psicopata, já que sentia prazer nos atos de
agressão física com sua raquete de tênis. Sobre isso, a telenovela podia ter
aproveitado para destacar ainda mais a discussão sobre a violência doméstica,
trazendo para o personagem uma punição condizente com a legislação da época,
60
Disponível em http://www.observe.ufba.br/lei_aspectos. O Observatório para Implementação da Lei Maria da Penha desenvolve suas atividades através de um Consórcio liderado formalmente pela Universidade Federal da Bahia. 61
Lei Maria da Penha. Art. 61 do Código Penal. 62
Como já dissemos anteriormente, a Lei da Legítima defesa da Honra protege o homem que cometer violência contra a sua esposa quando se tratar de traição.
80
como o pagamento de cestas básicas ou uma simples multa, a fim de mostrar e
criticar a ‘realidade’.
3.3 A Favorita em pauta
IMAGEM 8: abertura da telenovela A Favorita63
A telenovela que agora iremos analisar é A favorita. Foi veiculada pela Rede
Globo no período de 2 de junho de 2008 a 16 de janeiro de 2009, no horário das 21
horas. Escrita por João Emanuel Carneiro, tinha a direção de Ricardo Waddington e
teve um total de 197 capítulos, sendo depois exportada para Portugal. O primeiro
capítulo marcou uma média de 35 pontos e 49% de participação, sendo que o último
atingiu uma média de 50 pontos, com picos de 55 e share de 69,4%.
Devido ao sucesso, ganhou vários prêmios, incluindo o de “Qualidade Brasil
2008”64 de melhor autor e diretor e melhor atriz coadjuvante para a atriz Lilia Cabral,
que interpretou a personagem que iremos destacar, Catarina.
A telenovela girava em torno de um mistério envolvendo Donatela (Claúdia
Raia) e Flora (Patrícia Pilar). As duas eram suspeitas de assassinato pela morte de
Marcelo, marido de Donatela e amante de Flora. Diferente do autor Manoel Carlos,
João Emanuel Carneiro não tem o estilo de trazer para suas tramas dramas sociais.
Sua marca é destacar as mulheres como grandes protagonistas e vilãs, como foi o
caso de Flora de A favorita e Carminha (Adriana Esteves), em Avenida Brasil.
63
Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/A_Favorita. 64
O prêmio é internacional que confere qualidade aos produtos de determinados países.
81
3.3.1 Núcleo violência contra a mulher
No caso de A favorita, a temática social da violência doméstica contra a
mulher também foi destacada. No entanto, apresenta casos bem distintos quando
comparada a Mulheres Apaixonadas.
Léo (Jackson Antunes) era um operário da cidade de Triunfo, onde se passa
a trama. Era de classe baixa e tinha aproximadamente 50 anos. Vindo do interior, de
família pobre, foi para São Paulo ainda jovem trabalhar como operário da indústria
de Gonçalo (Mauro Mendonça). Sua função era intimidar os operários que
ameaçavam fazer greve. Sua esposa, Catarina (Lilia Cabral) era dona de casa e
tinha aproximadamente 40 anos. O casal tinha dois filhos: a adolescente Mariana
(Clarisse Falcão) e Domenico (Eduardo Melo). Catarina era filha de Copola (Tarcísio
Meira), que defende os direitos dos trabalhadores da indústria em que Léo trabalha.
Léo era um homem bastante agressivo e humilhava Catarina proferindo
ofensas verbais e agressões físicas. A filha do casal é revoltada com a situação e
enfrenta constantemente o pai. Já Domenico, devido ao sofrimento que vive em
casa, torna-se introvertido e tem dificuldades para falar.
Depois de ter feito uma viagem com o avô, Domenico volta para casa falando.
Catarina prepara um jantar para comemorar o avanço do filho. No entanto, Léo já
entra em casa fazendo grosserias à mulher. Ele fala de maneira ríspida com a
criança, que já se intimida novamente e não consegue mais falar. Então, ele diz:
Malandro ou doente, hein pirralho? Cê não tava falando? Eu não acabei de ouvir aí da boca da tua mãe que tu tava falando? Então por que tu não fala comigo que sou teu pai? Ãh? Fala seu traste! Eu sou teu pai e quando eu mando falar tem que me obedecer, traste! Não vai falar né? Mas aposto que sentir dor, você sente! Vamos ver se você não abrir essa boca já já!65.
Catarina faz parte das estatísticas da Organização Mundial de Saúde, que
mencionamos no primeiro capítulo, que constata que 60% das mulheres nunca
saem de casa, sequer por uma noite, devido às agressões sofridas. Além de que,
em média, uma mulher demora 10 anos para pedir ajuda pela primeira vez. É o que
65
Cena disponível em http://www.youtube.com/watch?v=NvreTGdbfrU
82
acontece com Catarina, que sofre agressões desde o início do casamento e as
silenciou por muito tempo.
Mesmo tendo uma família que a apoia, Catarina não tem coragem de
denunciar Léo, alegando que ele é seu marido e pai dos seus filhos. Na cena em
que o pai de Catarina entra em sua casa e começa uma discussão com Léo devido
a um problema que os dois tiveram no trabalho, Copola diz:
Eu não entendo, minha filha, eu não entendo você. Como é que você se submete a esse sujeito. Por quê? Isso não pode ser amor! Quê que é isso? É medo? Você tem medo dele, é isso que você tem? E você tem medo dele por quê?66
Catarina responde, “pelo amor de Deus, pai. O Léo é meu marido, o pai dos
meus filhos [...]”. Léo diz, “escuta Catarina, se você quiser ir, vai. É um favor que
você me faz. Vai, vai com o seu pai”. Copola insiste, “vem comigo, minha filha. Você
era feliz na sua casa. Vem comigo, vem pra sua casa”. Catarina, chorando, lamenta:
“Não posso. Vai pra sua casa, pai, depois a gente conversa. Entende, pai. Essa é
minha casa. É o meu marido, meus filhos. Eu sei me cuidar. Por favor, vai” (ibidem).
De outro lado, Catarina tem um admirador, Vanderlei (Alexandre Nero), que é
um homem bom e dono da venda do bairro. No entanto, entra na trama Estella
(Paula Bularmaqui), que se torna amiga de Catarina e a incentiva a deixar Léo. A
telenovela procura dar a entender uma relação homossexual entre as duas, mas não
deixa isso claro. Com tal relação, Catarina começa a se reerguer, consegue um
emprego, passa a se impor frente a Leonardo, respondendo suas ameaças e
agressões e chega a sair de casa.
Em outra cena, Catarina chega em casa do trabalho acompanhada de seu
filho Domênico. Léo a recebe com reclamações sobre o horário que ela chegou.
Como Catarina trabalha no restaurante de Estela, Léo diz que não quer seu filho
“nesse antro de perdição”, já que Estela é lésbica. Segundo ele, essa convivência
pode atrapalhar a educação do menino. Nesse momento, Catarina inesperadamente
rebate: “ô Léo, você devia se preocupar com o seu comportamento, com as suas
atitudes, porque o Domênico já viu você bêbado, já viu você dando escândalo, me
batendo, me humilhando. Isso sim pode estragar uma criança”. Léo reclama dizendo
66
Cena disponível em http://www.youtube.com/watch?v=NvreTGdbfrU
83
que Catarina está defendendo essa “doença” e diz que a cidade vai começar a
pensar que ela também virou homossexual.
Catarina continua e diz não se importar com o que os outros pensam. Então
Léo, grosseiramente, a questiona se, a partir de agora, “vai passar a gostar de
mulher também”. Ela, então, parte para cima dele, dando um tapa em seu rosto e
diz: “se eu gostasse de mulher, tenho certeza que ia ser mais feliz ao lado de uma
do que eu sou ao lado de um homem ignorante, preconceituoso, machista e
estúpido como você”67, como mostra a imagem abaixo.
IMAGEM 9: Catarina bate em Léo
Percebe-se que no momento em que Catarina vai se tornando independente
e arruma outra ocupação que não seja o lar, passa a se sentir mais confortável para
revidar. Isso confirma as afirmações de Sarti (2007), que ao falar sobre a evolução
das mulheres responsabiliza vários dos seus avanços ao novo lugar que elas
passam a ocupar: o mercado de trabalho. Essa inserção, no caso da trama, é um
divisor de águas muito importante para Catarina, já que, com isso, seu marido não é
mais o único a trabalhar fora e sua superioridade, advinda do fato de ser o “chefe da
família”, começa a ser enfraquecida.
Tempos depois, Catarina sai de casa e passa a viver um romance com
Vanderlei. Em uma noite em que os dois estão juntos na casa do dono da loja de
67
Cena disponível em http://www.youtube.com/watch?v=SLBAfb6lLjw&playnext=1&list=PL8F832DEA14E9F139&feature=results_main
84
verduras, Léo aparece bêbado, querendo buscar a ex-mulher. E grita: “você me
traiu, foi pra cama com o primeiro macho que apareceu, sua vadia, vagabunda”. Léo
ameaça Vanderlei, que bate nele. No entanto, o ex-marido não aceita e repete várias
vezes: “Catarina, você é minha mulher”.
Paralelamente a isso, Mariana aparece grávida e não conta quem é o pai da
criança, deixando a suspeita que poderia ter sido estuprada pelo próprio pai, sendo
vítima de incesto. O mistério segue sem revelação até o final da trama. Léo, por
incrível que pareça, não é preso pelos abusos contra Catarina e sim por tentar
estuprar Stella. No final, ele volta arrependido, querendo se reaproximar de Mariana
e da neta (ou filha), que o ignora.
Catarina recebe uma proposta para casar com Vanderlei, mas recusa e vai
viajar com Stella para Buenos Aires para recomeçar a vida. A telenovela, em
nenhum momento, confirmou a relação entre as duas mulheres, sendo que, no
entanto, subentendeu-se que ambas passaram a viver juntas. Percebe-se, com isso,
que a trama, de certa forma, acaba dando ênfase para o discurso de que as
mulheres se tornam homossexuais devido a alguma decepção com o sexo
masculino.
3.4 Regularidades no discurso das telenovelas
Percebe-se que a trama de Mulheres Apaixonadas e A favorita traçam
caminhos semelhantes em muitos momentos. Para começar, as duas telenovelas
têm como destaque o sexo feminino. Em Mulheres Apaixonadas, como já sugere o
próprio título, a trama se dedica a mostrar casos de várias mulheres. Em A favorita,
a trama é protagonizada por duas mulheres. Além disso, ambas retratam dramas
típicos do universo feminino, sendo objeto de maior atenção a violência.
Como aprofundado no primeiro capítulo, as mulheres ficaram por muito tempo
às margens da história. Aguiar (1997, p.24) lembra que foi só a partir de 1930 que
elas passaram a ter maior espaço.
A emergência da história das mulheres teve papel fundamental na desmitificação das correntes historiográficas, herdeiras do iluminismo, que se acreditavam informadas pela verdade e pela imparcialidade de seus profissionais, os quais eliminavam as mulheres das considerações dessa disciplina. (ibidem)
85
Sobre isso, Gregolin (2004) diz que a maior preocupação da história era olhar
apenas o que era “evidente”. Assim, é relevante pensarmos sobre a história da
mulher no Brasil e no mundo. Onde elas estão inseridas? Quais foram suas
conquistas e lutas? Infelizmente, quase nenhum ato heróico a elas é atribuído se
compararmos a quantidade de figuras masculinas presentes no imaginário da nação.
A história, até pouco tempo, era contada apenas por homens que
privilegiaram seu gênero. Além de que, a preocupação em manter a linearidade e as
“regulações” culminou na descrição de apenas alguns aspectos de determinados
períodos, como, por exemplo, a política e a economia, cujos espaços não eram
permeados por mulheres (PERROT, 1988). Aliás, as poucas que conseguiram
subverter esse esquecimento pagaram um preço muito alto, como Joana D’arc e
Olga Benário.
No âmbito das telenovelas, percebe-se que já há uma preocupação com a
história das mulheres, pois vários desses melodramas televisivos tentam dedicar
suas tramas principais a elas, protagonizando-as. Assim, outra regularidade nas
telenovelas analisadas acima diz respeito à abordagem sobre os casos de violência
doméstica, já que ambas apresentam personagens que sofreram essa violência pelo
companheiro, ato esse que, segundo Buzaglo (2007), tem maior probabilidade de
ocorrer justamente entre pessoas que possuem vínculos emocionais e que tem
intimidade.
Outro ponto que vale ser ressaltado é de que as duas telenovelas trabalham
com aspectos relativos ao cotidiano nos núcleos sobre violência contra a mulher.
Catarina, por exemplo, era uma dona de casa como muitas mulheres no Brasil e
Raquel era uma professora, representando uma camada feminina significativa.
Sobre isso, Mauro Wilton (1989) lembra que é no cotidiano que acontecem as
interações, o que não deixaria de ser no caso das telenovelas. Nas vivências do
cotidiano as pessoas assistem a telenovela e discutem os temas que são
abordados, sendo que nesse espaço acontecem os fenômenos de representação.
Os dois núcleos trouxeram casos de violência causados por ciúmes, já que as
personagens passaram a se envolver com outros homens. Isso nos remete ao que
foi trazido no primeiro capítulo pela delegada Alessandra Jorge, quando disse que
muitas vezes a violência doméstica praticada pelo homem, por motivos de ciúmes, é
de alguma forma mais aceita, como se fosse uma justificativa plausível. Por outro
86
lado, os homens envolvidos nas tramas, Marcos e Léo, também se envolveram com
outras mulheres. O primeiro teve um relacionamento com Dóris e o segundo tentou
estuprar as personagens Dedina (Helena Ranaldi) e Estella. Durante a nossa
pesquisa, verificamos que a sociedade trata de forma aceitável a traição por parte do
homem, cabendo à mulher perdoar, pois ainda acredita-se ser necessário entender
sua “sexualidade excessivamente exigente”, que torna inevitável “controlar” esses
instintos68.
Marcos e Léo também tinham um ponto em comum, que era a possessividade
pelas suas (ex) esposas, que muitas vezes ocasionava a violência. Hannah Arendt
(1994) acredita que violência e poder caminham distintamente, já que um acontece
pela ausência do outro. No entanto, para ela, “o domínio pela pura violência advém
de onde o poder está sendo perdido; é precisamente o encolhimento do poder [...] a
impotência gera violência” (idem, p. 38 e 42).
Como mostramos anteriormente, os dois tinham a necessidade de controle
sobre as mulheres, reafirmando a todo o momento que elas pertenciam a eles,
sendo que a desestabilização de conduta que ocasionava a violência normalmente
vinha de ocasiões de desobediência, como quando Raquel e Catarina se recusavam
a voltar para os ex-maridos. Abaixo, disponibilizamos um quadro para mostrar de
maneira mais clara as principais regularidades encontradas.
As duas telenovelas têm como destaque o sexo feminino.
Os homens em questão agridem as mulheres pela
necessidade de poder.
As duas telenovelas mostram a cotidianidade nos casos.
Marcos e Léo também tiveram casos extraconjugais.
Os dois homens revelavam uma possessividade extrema afirmando a todo o momento que as mulheres pertenciam a eles.
A violência nos dois casos também foi causada por ciúmes.
Quadro 2 - Regularidades
3.5 A partir de regularidades, dispersões
68
Pesquisa feita através do jornal das Moças. Disponível em D’INCAO (2011).
87
Como mostramos anteriormente, as tramas de Mulheres apaixonadas e A
favorita tiveram características convergentes. No entanto, também notamos a
presença de pontos divergentes. Segundo Foucault (2008, p.37),
de modo paradoxal, definir um conjunto de enunciados no que ele têm de individual consistiria em descrever a dispersão desses objetos, apreender todos os interstícios que os separam, medir as instâncias que reinam entre eles- em outras palavras, formular sua lei de repartição.
Percebemos algumas diferenças fundamentais entre as duas personagens.
Raquel já tinha um emprego e uma situação financeira confortável, tanto que morava
em um bairro nobre do Rio de Janeiro. No inicio da telenovela A favorita, Catarina
ainda não estava inserida no mercado de trabalho e vivia para o lar. A primeira não
tinha filhos e a segunda sim, sendo que por várias vezes alegava esse fato ao dizer
os motivos de não optar pela separação. Isso nos remete a Borsa (2008) quando
discorre sobre o movimento feminista, mostrando que a maternidade era uma
condição da qual a mulher devia escapar, pois isso a limitava ao âmbito da casa,
deixando-a em condição inferior ao homem. Assim, notamos que em A favorita esse
discurso foi confirmado.
Analisamos que as tramas que envolviam a violência contra a mulher
seguiram caminhos próximos, mas ao mesmo tempo, distintos. Como dissemos
anteriormente, ambas as violências eram motivadas pela necessidade de poder,
mas foram tratadas de formas distintas. Léo, um operário de classe baixa que bebia,
tinha necessidade de poder e agredia a esposa mostrando um tipo de violência
doméstica bastante recorrente. Marcos, por outro lado, era um empresário rico que
batia na esposa e tinha como seu ápice de prazer agredi-la com uma raquete de
tênis de quadra, dando a entender que se tratava de uma psicopatia, ou seja, uma
doença. Sobre isso, questionamos se a televisão brasileira estaria de fato preparada
para mostrar que as mulheres casadas com homens de classes mais abastadas
também estão sujeitas à violência dentro de casa.
Outra questão é que Catarina não chegou a denunciar Leonardo na delegacia
da mulher, mesmo já existindo a Lei Maria da Penha (2006). No caso de Raquel,
mesmo ainda não tendo uma lei incisiva, a denúncia chegou a ser feita. Por que
Catarina não denunciou Léo e ele foi preso por outro crime? Em Mulheres
88
Apaixonadas, o desfecho da trama não deu espaço para mostrar as consequências
da denúncia contra a violência doméstica.
Entendemos que há uma ordem do discurso presente nesses casos. Segundo
Foucault (1996, p. 8-9),
em toda sociedade, a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”.
Dessa forma, é importante compreender que essa ordem discursiva nunca é
ingênua, já que impõe regimes de verdade. Segundo Florencio, é necessário
ter uma compreensão de que os discursos se organizam e se “desorganizam”, mas sempre buscando nova organização e coerência interna para justificar “certezas” constituídas historicamente. Portanto, quem diz sempre o faz a partir de um lugar
e uma intenção. (2006, p. 3)
Assim, quando em A favorita Catarina não denuncia Léo, é posto, de certa
forma, que as mulheres não têm o hábito de denunciar seu agressor, principalmente
quando mantém uma relação tão próxima. Como disse Catarina várias vezes, Léo
era “seu marido e pai de seus filhos”. Já em Mulheres apaixonadas, onde houve a
denuncia e logo depois aconteceu a tragédia com o aluno que tentava ajudar a
professora, insiste-se no discurso de que “em briga de marido e mulher ninguém
mete a colher”.
Verifica-se que, de maneira sutil, a telenovela vai tecendo uma linha
tênue. De um lado, dá visibilidade aos problemas sociais, mas ao mesmo tempo
permanece estabelecendo uma ordem do discurso que é mais aceita pela
sociedade. Como já dissemos anteriormente, as telenovelas são uma construção
histórica, onde discursos são produzidos, trazendo com eles uma rede de memórias.
Dessa forma, nota-se que há descontinuidade nesse discurso, já que ora defende
um debate, ora o contradiz. Abaixo, disponibilizamos um quadro para mostrar de
maneira mais clara as principais dispersões encontradas.
Raquel tinha independência financeira, Catarina não.
89
Catarina tinha filhos, Raquel não.
Marcos era um empresário rico, Léo era um operário de classe baixa.
Catarina não denunciou Léo, Raquel fez a denuncia.
Quadro 3 - Dispersões
3.6 As mídias sociais entram no debate: o caso do Orkut
Neste momento do trabalho, vamos abordar como se deu a repercussão
dessas telenovelas na rede social Orkut, analisando como o telespectador trabalha
os processos de recepção. Segundo Brignol e Cogo (2011), as mídias têm um papel
importante na reconfiguração das relações sociais. Um desses papéis diz respeito à
possibilidade de produção de informações não mais de forma massiva e
hegemônica, mas com a viabilidade de transmissões para públicos segmentados e
individuais. No que diz respeito ao processo comunicacional, repercutindo na
proposta da recepção, vamos dar destaque às possibilidades de interação entre
produtor e os interlocutores nesses meios. Segundo as autoras,
ainda que a partir da compreensão da interatividade como característica também de outras mídias, é na internet que ela ganha força como prática efetiva nos usos midiáticos. Mesmo sendo, em grande parte das situações, limitada por um número finito e pré-definido de opções, podemos falar de interatividade maior no ciberespaço pela possibilidade mais concreta de aproximação entre as lógicas da produção e as do reconhecimento ou recepção. Vale ressaltar, nessa perspectiva, que é preciso distinguir os limites e as diferenças nos sistemas interativos e reconhecer que, na web, podem ser ultrapassados esses enquadramentos da participação em padrões previamente estabelecidos com um empoderamento maior do receptor e o aumento exponencial do número de indivíduos efetivamente capazes de desempenhar o papel de emissor em um processo comunicacional de ampla escala. (BRIGNOL; COGO, 2011, p. 8).
Dessa forma, começaremos por definir o que é a rede social Orkut. Tal rede
foi criada em 24 de janeiro de 2004, sob os cuidados do Google. O engenheiro,
criador e projetista Orkut Büyükkökten, tinha como objetivo ajudar pessoas a
interagirem e manterem relacionamentos, sendo o site difundido inicialmente apenas
nos Estados Unidos. No entanto, a rede passou a se popularizar bastante em países
como Brasil e Índia, tendo no primeiro mais de 30 milhões de usuários. Desde 2011,
90
em contrapartida, vem perdendo espaço para redes sociais como Facebook e
Twitter.
Dessa forma, é importante destacar que as comunidades que serão
analisadas sofreram alterações significativas desde o período em que as telenovelas
foram ao ar até a data desta análise. No entanto, o objetivo principal deste trabalho
não é verificar as movimentações ou a quantidade de membros de cada comunidade
e sim, examinar a produção dos discursos construídos em torno do tema violência
contra a mulher.
No início do processo de fixação da rede, para participar do Orkut era
necessário o envio de um convite de algum amigo que já fizesse parte da rede
social. O Orkut tem como objetivo criar redes de amizade. Dessa forma, é
necessário aos usuários pedirem permissão para fazerem amizade, podendo ser
aceita ou não. Também fica disponível um mural de recados para cada participante,
chamado de “scrap”, dispondo ainda de um espaço dedicado a postagem de fotos e
vídeos, depoimentos deixados pelos amigos, lembretes de aniversários e uma lista
de bate-papo. Na página principal fica disponível a atualização dos amigos da rede.
A ferramenta do Orkut que iremos destacar diz respeito às “comunidades”,
cujo objetivo é viabilizar preferências em comum. Por exemplo, na imagem abaixo,
há uma comunidade chamada “Salve Jorge – Rede Globo”. Nela os internautas que
têm interesse por tal telenovela podem partilhar informações através de fórum e
enquetes sobre o tema.
91
IMAGEM 10: comunidade “Salve Jorge - Rede Globo"69
Como podemos ver, as imagens mostram alguns personagens da telenovela.
A foto principal está destinada aos protagonistas, Théo (Rodrigo Lombardi) e
Morena (Nanda Costa), sendo que as imagens centrais dizem respeito a outros
personagens da trama. Ao lado, estão disponíveis as comunidades relacionadas
com o mesmo tema. Nota-se também um espaço que é dedicado a pessoas que têm
interesses em comum. Dessa forma, pode-se discutir o assunto com outros usuários,
sem precisar ter a amizade virtual. Segundo reportagem divulgada na revista
“Cidade Nova”70, existem desde comunidades que reúnem moradores ou
apreciadores de uma determinada cidade, banda, estilo musical, filmes, artistas e
comidas, até ex-estudantes de escolas, pessoas com o mesmo sobrenome,
profissões, atividades e hábitos comuns.
Nos seus estudos sobre a relação entre produtor e consumidor, Jenkins(2006)
discorre sobre o denominado por ele de fandom ( nome dado a comunidades de fãs)
para mostrar como acontece a participação ativa dos fãs através de comunidades
virtuais. Segundo ele “os fãs sairam das margens invisíveis da cultura popular para
irem ao centro das reflexões atuais sobre produção e consumo midiático”(JENKINS,
2006, p.38). Para o autor, a sociedade pode ter um maior poder de barganha
69
Disponível em http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=122076172 70
Disponível em Revista “Cidade Nova”, vol.47, nº07, Mês Julho/2005. p.36-38.
92
formando essas comunidades, que já não podem ser mais ignoradas pelos
produtores de consumo.
As mídias corporativas reconhecem o valor e a ameaça da participação dos fãs. Produtores e anunciantes falam hoje das lovermarks reconhecendo a importância da participação do público em conteúdos de mídia. Os consumidores estão usando a net para se envolverem com o que admiram, entendem esse como um espaço democrático e de ações coletivas. A convergência alternativa tem impulsionado mudanças na paisagem midiática. (JENCKINS, 2006, p.235)
Dessa forma é necessário reunir preferências e, no campo virtual, criar
debates, como acontece nas comunidades do Orkut. Segundo o autor, esta é uma
maneira de formar cidadãos mais articulados politicamente. Nesta etapa da
pesquisa, recortamos algumas dessas comunidades, interpretando-as como o
arquivo de nosso estudo. Segundo Foucault (1979), o arquivo
trata-se antes, e ao contrário, do que faz com que tantas coisas ditas por tantos homens, há tantos milênios, não tenham surgido apenas segundo as leis do pensamento, ou apenas segundo o jogo das circunstâncias, que não sejam simplesmente a sinalização, no nível das performances verbais, do que se pôde desenrolar na ordem do espírito ou na ordem das coisas; mas que tenham aparecido graças a todo um jogo de relações que caracterizam particularmente o nível discursivo. (idem, p. 146)
Dessa forma, selecionamos comunidades, mostrando as que são relativas às
telenovelas analisadas, a fim de mostrarmos como se deram os processos de
recepção do telespectador através dessa rede social.
3.6.1 O público de Mulheres Apaixonadas
A escolha da rede social Orkut em detrimento de outras foi feita devido à
popularidade que a telenovela ganhou nesse espaço. É importante ressaltar que na
época em que o Orkut ficou popular no Brasil (2004), a telenovela tinha terminado
recentemente e por isso ainda havia muita repercussão na rede. É importante
ressaltar novamente que devido a passagem de tempo entre as veiculações das
telenovelas e a esta análise, os dados que serão mostrados são referentes a datas
mais atuais, não sendo necessariamente os mesmo dados da época de exibição das
93
telenovelas, lembrando sempre que o foco deste trabalho é a produção dos
discursos e não dados estatísticos.
Na nossa pesquisa, detectamos duas comunidades que falavam sobre o
núcleo “Marcos e Raquel”. A primeira comunidade se manifestava a favor do
personagem de Marcos.
IMAGEM 11: Marcos, de Mulheres Apaixonadas
A descrição da comunidade diz: “para aqueles que gostam de bater em
mulheres! Até de brincadeirinha! Com raquetes, chutes, tapas, chicote, tá valendo!
Lambada de amor não dói!71.Tentamos fazer parte da comunidade para ver os
comentários a respeito, mas a comunidade já está desativada pelo fundador. No
entanto, esse enunciado revela certos discursos que estão impregnados na nossa
sociedade, já que existe a criação de um padrão entre a violência e o afeto, o que
acaba por tornar banal a violência doméstica.
71
Disponível em http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=86211441
94
A segunda comunidade, no entanto, já faz referências contra o personagem.
IMAGEM 12: comunidade contra Marcos, de Mulheres Apaixonadas
Tal comunidade tem 19 membros e, segundo sua descrição, Marcos é
“psicopata, doente sentimentalmente, agredia sua mulher Raquel com raquetadas”.
É interessante destacar, nesse caso, que mesmo a comunidade sendo
aparentemente contra as atitudes do personagem, a descrição defende o discurso
de que ele era um homem doente, sendo possível depreender como a sociedade
ainda distingue os casos de violência. Como Marcos tinha um poder aquisitivo maior,
não era tratado como mais agressor e sim como um doente que precisa de
tratamento. Para mostrar de maneira mais clara os resultados obtidos, sintetizamos
os enunciados e os discursos através de um quadro.
95
Telenovela Mulheres Apaixonadas
Títulos da comunidade Descrição da comunidade
Marcos de Mulheres Apaixonadas “para aqueles que gostam de bater em mulheres! Até de brincadeirinha! Com raquetes, chutes, tapas, chicote, tá valendo! Lambada de amor não dói!”
Marcos – Mulheres Apaixonadas “psicopata, doente sentimentalmente, agredia sua mulher Raquel com raquetadas”
Quadro 4 – Discurso Mulheres Apaixonadas
3.6.2 O público de A Favorita
Analisar a telenovela A favorita pela rede social Orkut foi mais viável, já que
na época em que a telenovela foi exibida, 2008, o Orkut tinha um alcance mais
abrangente no Brasil. Detectamos nove comunidades que diziam respeito aos
personagens estudados, Catarina e Léo. Dessas, cinco defendem as atitudes de
Léo, duas são contra e duas dizem respeito à Catarina, sendo que uma critica sua
passividade frente à violência.
Umas das comunidades têm como título “Leo d A favorita ESSE É MACHO”.
A comunidade possui 45 membros, sendo apenas uma mulher.
96
IMAGEM 13: A Favorita
A descrição da comunidade faz exaltação ao comportamento do personagem,
destacando sua bravura como figura masculina. “Essa comunidade e pra vc q morre
de rir com as cenas desse personagem das cavernas... MAS É MACHO!!!
Huahuahuhauhuahua...”. Além disso, os integrantes das comunidades abriram
fóruns de discussão para falar sobre as razões de gostar de Léo e sobre as
“melhores” frases que ele dizia na telenovela.
97
IMAGEM 14: Por que gostamos do Léo?
Percebemos que neste caso, a comunidade faz referências aos conceitos de
sexo e gênero que trabalhamos no primeiro capítulo, já que procura sugerir que há
uma relação entre ser homem e cometer violência doméstica. Segundo Aguiar
(1997), o sexo diz respeito à ordem biológica de ser homem ou mulher, mas o
gênero diz respeitos às condições sociais, culturais, psicológicas que ocorrem diante
dessas diferenças biológicas. Portanto, conforme ele, para estudarmos o
comportamento de qualquer pessoa, é necessário olhar para suas construções
sociais e não simplesmente para o fato de ser homem ou mulher.
Segundo a matéria do jornal NotiBras, publicada em novembro de 201272, a
violência contra a mulher reflete uma cultura de macho no Brasil. Gláucia Souza,
coordenadora-geral de acesso à Justiça e Combate à Violência, da Secretaria de
Políticas para as Mulheres, acredita que "precisamos mudar a cultura machista que
ainda está arraigada na cultura brasileira". Ana Rita, que é relatora da Comissão
72
Matéria Violência contra mulher reflete uma cultura de macho no Brasil. Disponível em: http://www.notibras.com.br/site/pt/editorias/brasil/5122/Viol%C3%AAncia-contra-mulher-reflete-uma-cultura-de-macho-no-Brasil.htm.
98
Parlamentar Mista de Inquérito que investiga a violência contra a mulher, também
enfatiza dizendo que essa é uma questão que ultrapassa as questões legislativas,
sendo um problema cultural.
Outra comunidade que iremos destacar neste trabalho é a comunidade
chamada “Crueldades c/ Léo – A favorita”. Essa comunidade é composta por quatro
mulheres que se manifestam contra a violência proferida pelo personagem.
IMAGEM 15: violência doméstica na rede.
A descrição diz que
se vc assim como eu, cada vez que assiste a novela A Favorita fica imaginando mil formas cruéis de torturar o Leo, entre na comunidade e nos conte. Afinal, homens como ele merecem o CHIFRE depois a CADEIA. Diga não aos “Léos”!! Violência doméstica - DENUNCIE.
Essa comunidade faz uma campanha para o fim da violência contra a mulher.
Por outro lado, percebe-se que a fundadora da comunidade, ao mesmo tempo
sugere uma vingança por parte das mulheres, incentivando a traição e outras formas
de violência antes da punição legal.
A última comunidade que iremos destacar é sobre a personagem Catarina.
Esse grupo, chamado “Catarina – Novela A favorita” tem 30 membros, sendo sete
homens e 21 mulheres.
99
IMAGEM 16: Catarina
A descrição da comunidade diz:
Essa comunidade é pra quem fica revoltada com a falta de atitudes da Catarina, personagem da Atriz Lilian Cabral na novela a Favorita. Sai fora Catarina, quebra uma cadeira na cara desse homem e coloca ele pra fora de casa, deixa de ser a vergonha de nossa classe, e vira nossa Diva..rsrsrs..Como eu sempre digo: " HOMEM É IGUAL BISCOITO, VAI 1 TEM + 18".
Nota-se que essa comunidade, assim como a anterior, defende o fim da
violência contra a mulher e também acredita que Catarina deve se vingar do marido
e exaltar a “classe” das mulheres, não se submetendo às agressões. Essas duas
últimas comunidades lembram o que tratamos no primeiro capítulo sobre a
insubordinação da mulher em vários períodos da história. Sobre isso, Soihet (2011)
mostra que muitas mulheres na década de 1930 e 1950, por exemplo, se recusavam
ao casamento, a se portar de maneira requintada e a obedecer ao marido,
contrariando todas as normas impostas pela sociedade, invertendo, assim, a ordem
do discurso. Para mostrar de maneira mais clara os resultados obtidos da telenovela
A Favorita, sintetizamos os enunciados e os discursos através de um quadro.
100
Telenovela A Favorita
Títulos da comunidade Descrição da comunidade
Leo d A favorita ESSE É MACHO “Essa comunidade e pra vc q morre de rir com as cenas desse personagem das cavernas... MAS É MACHO!!! Huahuahuhauhuahua...”
Crueldades c/ Léo – A favorita “se vc assim como eu, cada vez que assiste a novela A Favorita fica imaginando mil formas cruéis de torturar o Leo, entre na comunidade e nos conte. Afinal, homens como ele merecem o CHIFRE depois a CADEIA. Diga não aos “Léos”!! Violência doméstica - DENUNCIE.”
Catarina – Novela A Favorita “Essa comunidade é pra quem fica revoltada com a falta de atitudes da Catarina, personagem da Atriz Lilian Cabral na novela a Favorita. Sai fora Catarina, quebra uma cadeira na cara desse homem e coloca ele pra fora de casa, deixa de ser a vergonha de nossa classe, e vira nossa Diva..rsrsrs..Como eu sempre digo: " HOMEM É IGUAL BISCOITO, VAI 1 TEM + 18"
Quadro 5 – Discurso A Favorita
Sobre as mediações, vale ressaltar que todas as comunidades analisadas
trazem opiniões opostas. Algumas defendem as atitudes de violência contra a
mulher, outras condenam veemente. Isso nos remete a Orosco (1997) quando diz
que as mais variadas identidades do receptor estabelecem mediações no ato de
recepção. Essas mediações são objeto da interação do telespectador com o meio,
sendo importante considerar as interações interpessoais, cognitivas, institucionais e
todo o contexto sócio-cultural. É o que afirma, também, Ruótolo (1998) quando diz
que cada receptor vai dar a interpretação aos conteúdos veiculados pelos meios de
acordo com a sua realidade e seu contexto.
No caso da violência doméstica contra a mulher, verificaram-se opiniões que
seguiam a ordem do discurso e outras que as transgrediam. Conforme Michel
Foucault (1986), os discursos são isso: práticas descontínuas que se esbarram e
outras vezes se excluem.
Além disso, vale destacar que entre as comunidades que eram a favor dos
personagens violentos, os membros eram em sua maioria homens. No caso das
comunidades que eram contra a violência, ocorriam manifestações maiores por conta
das mulheres. Dessa forma, podemos constatar que as comunidades do Orkut são
101
um grande exemplo de como ocorrem os processos de recepção e mediações, já que
nesse meio vários pontos de vista ecoam sobre diferentes assuntos. Retomando
Foucault (1986), cabe sempre ressaltar que o sujeito é histórico e que, por isso, é
sempre atravessado por suas condições de produção, pois é assim que são
formadas as subjetividades.
102
PARA CONTINUAR REFLETINDO
No início dessa pesquisa, nossa intenção era fazer um trabalho de campo
mostrando como se dava o processo de recepção, utilizando mulheres vítimas de
violência doméstica como interlocutoras. No entanto, no decorrer do processo de
pesquisa sobre o tema, observamos alguns fatos que despertaram a nossa atenção
sobre o assunto, destacando-se o papel das redes sociais.
Pesquisando na internet sobre as telenovelas que destacamos - Mulheres
Apaixonadas e A favorita, percebemos que as redes sociais foram palcos de
diversas discussões sobre o tema, comprovando a nossa hipótese de que o receptor
é um sujeito ativo no processo comunicacional. Dentre outras telenovelas com a
mesma temática, escolhemos as duas tramas citadas devido ao seu caráter
contemporâneo, considerando que de outra forma, a atualidade deste trabalho
perderia o foco.
Como a proposta do mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura da
Unama é interdisciplinar, resolvermos utilizar como ferramenta de pesquisa a análise
do discurso, que é uma disciplina oriunda da linguística, e aceitamos o desafio de
relacionar esse campo de saber à comunicação. Dessa forma, primeiramente nos
debruçamos a assistir as cenas das telenovelas escolhidas, destacando os núcleos
de violência contra a mulher. Foi então, que percebemos como a história das
mulheres e das telenovelas tinha fundamental importância para se entender como se
deu a construção dessas cenas.
Desta forma, o primeiro capítulo foi dedicado a explorar as condições
históricas, nas quais as mulheres estiveram inseridas ao longo do tempo.
Percebemos que junto a isso, estava presente a trajetória das famílias, ficando
inviável separar tais movimentos. Por isso, nos debruçamos a entender como se
constituíram os modelos familiares e constatamos que as mudanças ocorridas, tanto
na esfera familiar, quanto no processo de construção da identidade feminina andam
juntas, mostrando também como isso ocorria com mulheres de classes sociais
distintas.
Dentro deste contexto achamos importante situar algumas telenovelas que
traziam a temática feminina, principalmente as de períodos históricos que citamos
durante este trabalho para exemplificar como a história das mulheres e das
telenovelas acompanhavam as evoluções e transformações ocorridas ao longo do
103
tempo. Procuramos também aportes teóricos como a autora Judith Buttler, que
critica o processo de construção de identidade feminina dentro do próprio movimento
feminista, já que este muitas vezes na ânsia de representar a classe feminina acaba
criando identidades homogeneizantes.
No segundo capítulo estudamos os conceitos de mídia que usamos para a
nossa análise trazendo autores que defendem a participação do sujeito no processo
comunicacional e desmembramos algumas ferramentas teóricas da análise do
discurso que seriam necessárias para a nossa metodologia como a noção de
descontinuidade histórica mostrando que os discursos são sempre irregulares
considerando as condições de produção do sujeito.
Também enfocamos nas questões sobre identidades, ressaltando uma
perspectiva sob o ponto de vista midiático e menos sociológico do conceito.
Portanto, procuramos explicar como a mídia, mais especificamente as telenovelas
forjam identidades para o sujeito, criando estilos de vida podendo ser considerada
como um micro-poder que se utiliza das redes de memória, já que estas ativam a
memória discursiva do telespectador. Para isso, procuramos fazer o diálogo entre os
campos do saber da comunicação e a análise do discurso e trouxemos aportes
teóricos que nos mostraram que a comunicação é atravessada a todo momento
pelos discursos construídos nas sociedades, abrangendo as possibilidades de
pesquisa em Comunicação.
No terceiro momento, trouxemos os conceitos da telenovela brasileira, em
especial as produzidas e veiculadas pela Rede Globo, já que as duas obras
ficcionais analisadas são dessa emissora, mostramos a trajetória e os percursos
traçados ao longo dos anos. Depois, já adentrando as telenovelas Mulheres
Apaixonadas e A Favorita, mostramos através de cenas do Youtube como são
construídos os discursos sobre a violência contra a mulher pelos meios televisos
novelescos. Dessa forma, pudemos constatar que a produção televisiva acompanha
os processos discursivos presentes na sociedade e como produto mercadológico
que é, sofre interferência dos patrocinadores e depende da aceitação do público.
Dessa forma, precisa manter certos discursos presentes na sociedade como a não
aceitação de um relacionamento entre uma mulher mais velha com um homem mais
novo. Por outro lado, verificamos que as produções também têm um caráter
educativo e algumas vezes tentam subverter a ordem do discurso tirando da
104
invisibilidade problemas presentes na sociedade como a violência doméstica, que
devido acontecer na esfera privada é passível de silenciamentos e tabus.
Logicamente, nesse processo, verificamos regularidades e dispersões entre
as tramas devido às particularidades de cada personagem, tais como a idade, a
classe social, o grau de escolaridade. Portanto, partindo das considerações de
Michel Foucault sobre a historicidade dos acontecimentos, o nosso trabalho em
nenhum momento desvinculou-se da história, mostrando como essas dispersões e
regularidades são movidas por acontecimentos históricos. Sobre isso também
constatamos através dos discursos televisivos e por parte do público que ainda há
uma resistência em aceitar que a violência doméstica acontece em diferentes
classes socais, como nos casos dos agressores estudados Leó e Marcos que
detinham poderes aquisitivos diferentes.
Também analisamos alguns discursos que circulavam na rede social Orkut
mostrando primeiramente o que é essa mídia e o que são essas comunidades que
nos propomos a analisar. Do ponto de vista comunicacional, procuramos mostrar
como se deu o processo de recepção no Orkut em comunidades sobre os
personagens envolvidos nos casos de violência contra a mulher, verificando a
presença ativa do interlocutor no processo de recepção. Sobre isso, vale ressaltar
que o resultado deste trabalho se diferenciou das nossas expectativas do início da
pesquisa, já que nas comunidades analisadas a maiorias dos discursos eram a favor
dos agressores, constatando que mesmo na contemporaneidade a violência contra a
mulher está mais enraizada de maneira positiva e justificável na sociedade brasileira
do que esperávamos.
Nas telenovelas analisadas, verificamos também a não-linearidade. Notamos
que ao mesmo tempo em que elas sustentavam um discurso, logo adiante o
refutavam. Além disso, o próprio processo de recepção é descontínuo. Constatamos
que dentro de uma mesma formação discursiva, que é a da telenovela, há múltiplas
interpretações do fenômeno, já que o interlocutor também é sujeito histórico e é
formado dentro de condições de produções distintas.
Do ponto de vista do discurso, constatamos também a importância de
considerar o sujeito dentro da sua subjetividade, já que eram vários os discursos que
circulavam sobre o assunto. Sobre isso, também é importante lembrar que as
telenovelas iam sendo interpretadas de acordo com a sua posição na história e com
as experiências de cada telespectador. Além disso, verificamos que as tramas
105
possuem redes de memórias que ligam acontecimentos, como a questão da
violência doméstica, já que as duas telenovelas apresentavam, por exemplo, uma
passagem de tempo significativa em relação à data de produção e veiculação.
Por fim, constatamos que os vínculos que envolvem produtor e interlocutor
são sempre permeados por relações de poderes já que estes dois atores sociais
estão inseridos em contínuos processos de negociações, mostrando as diversas
influências envolvidas nesse processo, conforme as concepções de Foucault e os
estudos de Gregolin. Ressaltamos, dessa forma, a existência de uma ordem no
discurso, que por vezes se mantém e, em outras, é derrubada, em uma relação que
envolve negociações, tensões e transgressões.
106
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