a concorrência dos sistemas de justiça...

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Universidade de Lisboa Faculdade de Direito A Concorrência dos Sistemas de Justiça Internacional Dissertação de Mestrado Mestrado em Direito Internacional e Relações Internacionais Diana Filipa Cabral Botelho Trabalho realizado sob orientação da Professora Doutora Maria José Reis Rangel de Mesquita fevereiro de 2017

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Universidade de Lisboa

Faculdade de Direito

A Concorrncia dos Sistemas

de Justia Internacional

Dissertao de Mestrado

Mestrado em Direito Internacional e Relaes Internacionais

Diana Filipa Cabral Botelho

Trabalho realizado sob orientao da

Professora Doutora Maria Jos Reis Rangel de Mesquita

fevereiro de 2017

2

[] the proliferation of international courts gives rise to a serious risk

of conflicting jurisprudence, as the same rule of law might be given

different interpretations in different cases. This is a particularly acute

risk, as we are dealing with specialized courts that are inclined to

favour their own disciplines. Several examples of this may already be

cited. Thus, in ruling on the merits in the Tadic case, the International

Criminal Tribunal for the former Yugoslavia recently disregarded

case-law formulated by the International Court of Justice in the

dispute between Nicaragua and the United States of America. []

Regardless of what one might think of this solution, the contradiction

thus created gives clear evidence of the risks to the cohesiveness of

international law raised by the proliferation of courts.

What can be done to ensure that this situation does not give rise to

serious uncertainty as to the content of the law in the minds of players

on the international stage and does not ultimately restrict the role of

international law in inter-State relations? [] The International

Court of Justice, the principal judicial organ of the United Nations,

stands ready to apply itself to this end if it receives the necessary

resources. Relying exclusively on the wisdom of judges might not be

enough however. []

(Declarao do Juiz Gilbert Guillaume, Presidente do Tribunal

Internacional de Justia, Assembleia Geral das Naes Unidas, a 26

de outubro de 20001)

1 Verso completa disponvel em http://www.icj-cij.org.

http://www.icj-cij.org/

3

minha famlia, a de sangue e a que escolhemos, que j no consegue

dissociar a ideia da minha presena sem estar acompanhada por um livro

para estudar. Por todo o esforo, sacrifcio e confiana que depositam em mim,

pela distncia e por todos os momentos roubados, trocados pelo academismo,

pela dedicao e empenho que este trabalho representa, saibam que tudo

saber sempre a pouco para expressar a minha gratido.

Professora Doutora Maria Jos Reis Rangel de Mesquita, pelo apoio

e pelos conselhos valiosos na elaborao da presente dissertao e, acima de

tudo, pelo exemplo.

Aos meus amigos, aos que no dominam o assunto e me fazem superar-

me para conseguir tornar a temtica acessvel e acabam por influir no curso

deste trabalho, e aos que dominam, e por isso me desafiam e tornam-me

maior. Por toda a confiana que depositam em mim diariamente, acreditando

mais em mim do que eu prpria e levando-me por caminhos que eu no

escolheria.

Maria Lusa, pela pacincia digna de irm. E por viver este trabalho,

como todos os pedacinhos da minha vida, como se tambm fossem um pouco

seus.

Rita, pela partilha diria de ansiedade e tormento, pelo conselho e

pela inspirao que fazem a nossa parceria uma das razes pelas quais

conseguimos chegar aqui.

Ao fator surpresa deste percurso, que me fez querer ser maior que tudo

o resto. Pela confiana inabalvel, pelo apoio, e por toda a fora. Por fazer de

mim melhor pessoa.

Ao meu soldadinho. Por ltimo, porque ser sempre o primeiro, por

me ter deixado a sua coragem e mostrado como enfrentar cada batalha que se

apresenta no nosso caminho, tornando-me a pessoa determinada que

conseguiu terminar este trabalho quando todas as probabilidades indicavam

o contrrio.

A todos, o meu mais sincero - Obrigada.

4

5

Nota Prvia

I. A presente Dissertao versa sobre a temtica da concorrncia

existente entre os diversos sistemas de justia internacional no

mbito do direito internacional pblico, problemtica amplamente

discutida na unidade curricular de Justia Internacional, no ano

letivo de 2014/2015, sob a regncia da Exma. Sra. Professora

Doutora Maria Jos Reis Rangel Mesquita, tendo a mesma

levantado diversas questes, muitas das quais complexas, no raras

vezes, sem resoluo legal e jurisprudencial, e, embora com alguma

prtica jurdica internacional, sem solues concretas.

II. No existindo, assim, uma soluo diretamente aplicvel, a

presente dissertao tem como objetivo ilustrar o problema nas suas

diferentes vertentes e expor as vantagens e desvantagens de cada

uma das solues apontadas pela doutrina e pela jurisprudncia,

pugnando pela criao de um Tribunal Internacional de Conflitos.

III. No estudo e na elaborao da presente Dissertao foram

consideradas as obras bibliogrficas e a jurisprudncia at 31 de

dezembro de 2016.

IV. A presente Dissertao est redigida conforme o novo Acordo

Ortogrfico, ressalvando-se que no se procedeu a alteraes das

citaes de texto de outros autores, jurisprudncia ou legislao.

V. A presente dissertao tem por base vrias fontes bibliogrficas em

lnguas que no a portuguesa, pelo que se ressalva que todas as

citaes se mantiveram na lngua original, salvo a existncia de

uma traduo oficial para portugus.

6

Resumo

A matria da concorrncia de jurisdies no necessariamente nova,

tendo sido j amplamente discutida no mbito do direito internacional

privado. No entanto, relativamente ao direito internacional pblico, afigura-

se uma matria recente.

A multiplicao do nmero de sistemas de justia internacional, cada

um alicerado no seu prprio tratado constitutivo e no seu percurso histrico,

com razes fundamentais diversas, com valores e diretivas muito prprias que

fundamentam as suas prprias decises, operando independentemente, a par

da no existncia de uma hierarquia ou coordenao entre qualquer um deles,

agudizam o problema, podendo levar a decises claramente contraditrias por

parte de instncias diferentes.

A presente dissertao sobre a temtica da concorrncia entre os

sistemas de justia internacional ter ento como objetivo uma exposio do

problema da proliferao dos sistemas de justia internacional nas suas

diversas vertentes, isto , quer uma abordagem terica, quer prtica.

Assim, a dissertao dividir-se- em cinco captulos, estruturados de

forma a conduzir soluo a apresentar como concluso.

No primeiro captulo, o foco ser a anlise do fenmeno de proliferao

dos sistemas de justia internacional, abordando os fatores que lhe deram

origem, a produo doutrinal sobre a temtica, e a qualificao do fenmeno

como conducente fragmentao ou constitucionalizao do direito

internacional pblico.

No segundo captulo, debruar-nos-emos sobre o estudo do modo de

articulao existente entre os sistemas de justia internacional, tanto a nvel

universal, como a nvel universal contraposto com o nvel regional, e

unicamente a nvel regional.

O terceiro captulo ser dedicado ao estudo de case studies

paradigmticos, analisando o seu enquadramento factual bem como a

legislao aplicvel e retirando concluses.

7

O Frum Shopping no Direito Internacional Pblico ocupar a posio

de destaque no quarto captulo, onde se analisar este fenmeno tpico do

direito internacional privado e as suas implicaes na juridicidade

internacional.

Por fim, o quinto e ltimo captulo ser dedicado s solues para este

fenmeno da concorrncia entre os sistemas de justia internacional, expondo

as vrias solues propostas pela doutrina internacionalista, as suas

vantagens e desvantagens, e a soluo por ns propugnada a criao de um

Tribunal de Conflitos Internacional.

Palavras-chave: concorrncia; justia internacional; proliferao;

fragmentao; Tribunal de Conflitos Internacional.

8

Abstract

The concurrence of jurisdictions thematic is not exactly new and has

already been widely discussed in the private international law frame.

However, as far as public international law is concerned, this is a recent issue.

The multiplication of the number of international justice systems, each

based on its own constitutional treaty and its own historical course, with its

own fundamental reasons, its own values and directives that fundament their

decisions, operating independently, along with the non-existence of a

hierarchy or coordination between any one of them aggravates the problem,

and can lead to clearly contradictory decisions by different instances.

The present dissertation on concurrence between international judicial

bodies will have as its objective an exposition of the problem of the

proliferation of international justice systems in its various aspects, both in a

theoretical and practical approach.

Thus, the dissertation will be divided into five chapters, structured in

such a way as to lead to the solution to be presented as a conclusion.

In the first chapter, the focus will be on analyzing the phenomenon of

proliferation of international justice systems, addressing the factors that gave

rise to it, doctrinal production on the subject, and qualifying the phenomenon

as leading to the fragmentation or constitutionalization of public

international law.

On the second chapter, we will study the form of articulation existing

between international justice systems, at universal level, universal level as

opposed to the regional level, and only at regional level.

The third chapter will be devoted to the study of paradigmatic case

studies, analyzing its factual framework as well as the applicable legislation

and drawing conclusions.

The Forum Shopping in Public International Law will occupy the

prominent position in the fourth chapter, which will analyze this phenomenon

typical of private international law and its implications in international

juridicity.

9

Lastly, the fifth and final chapter will be devoted to solutions to this

phenomenon of concurrence between international judicial bodies, setting out

the various solutions proposed by internationalist doctrine, their advantages

and disadvantages, and the solution we have put forward - the creation of an

International Court of Conflicts.

Key Words: concurrence; international justice; proliferation;

fragmentation; International Court of Conflicts

10

Abreviaturas

Ac. Acrdo

AG Assembleia Geral

Al. Alnea

Art. Artigo

Arts. Artigos

CEDH Conveno Europeia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e

das Liberdades Fundamentais de 4 de novembro de 1950

Cfr. Confrontar

Cit. Citado

CNU Carta da Organizao das Naes Unidas

CNUDM Conveno das Naes Unidas sobre Direito do Mar

COMESA Mercado Comum da frica Oriental e Austral

CS Conselho de Segurana

CVDT Conveno de Viena sobre o Direito dos Tratados de 23 de maio de

1969

CVRC Conveno de Viena sobre as Relaes Consulares de 24 de abril de

1963

DI Direito Internacional

DIP Direito Internacional Pblico

DUE Direito da Unio Europeia

Ed. Edio / Editor

Etc. Et cetera

ETIADH Estatuto do Tribunal Interamericano de Direitos Humanos

11

ETIDM Estatuto do Tribunal Internacional do Direito do Mar

ETIEJ Estatuto do Tribunal Internacional Penal para a Ex-Jugoslvia

ETIJ Estatuto do Tribunal Internacional de Justia

ETIR Estatuto do Tribunal Internacional Penal para o Ruanda

ETJCAN Estatuto do Tribunal de Justia da Comunidade Andina

Ibid. Ibidem.

i.e. Id est.

Mercosul Mercado Comum do Sul

N. Nmero

Nrs. Nmeros

NAFTA North American Free Trade Association

OI Organizao Internacional / Organizaes Internacionais

OMC Organizao Mundial de Comrcio

ONG Organizao No Governamental

ONGs Organizaes No Governamentais

ONU Organizao das Naes Unidas

OSPAR Oslo / Paris Convention for the Protection of the Marine

Environment of the North-East Atlantic.

OTAN Organizao do Tratado do Atlntico Norte

OUP Oxford University Press

p. Pgina

pp. Pginas

Par. / Pars. Pargrafo / Pargrafos

PESC Poltica Externa e de Segurana Comum

12

RPTIJ Regulamento de Processo do Tribunal Internacional de Justia

ss. Seguintes

TC Tribunal Constitucional

TCE Tratado da Comunidade Europeia

TEDH Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

TFUE Tratado sobre o Funcionamento da Unio Europeia

TIDM Tribunal Internacional do Direito do Mar

TIJ Tribunal Internacional de Justia

TIEJ Tribunal Internacional (penal) para a Ex-Jugoslvia

TIR Tribunal Internacional (penal) para o Ruanda

TJCAN Tribunal de Justia da Comunidade Andina

TJCE Tribunal de Justia das Comunidades Europeias

TJUE Tribunal de Justia da Unio Europeia

TPA Tribunal Permanente de Arbitragem

TPI Tribunal Penal Internacional

TPJI Tribunal Permanente de Justia Internacional

TUE Tratado da Unio Europeia

UE Unio Europeia

URSS Unio das Repblicas Socialistas Soviticas

Vol. Volume

13

ndice

I. Introduo e delimitao do objeto -------------------------------------------------- 16

II. A proliferao dos sistemas de justia internacionais ------------------------ 17

2.1. Em busca de uma definio de sistema de justia internacional

Terminologia e definio a adotar -----------------------------------------------17

2.2. Os principais fatores para a proliferao dos sistemas de justia

internacional o caminho entre a fragmentao e a

constitucionalizao do Direito Internacional Pblico -------------------- 21

2.3. A proliferao dos sistemas de justia internacional Um

problema real? --------------------------------------------------------------------------------- 27

2.4. Vetores de anlise da proliferao dos sistemas de justia

internacional ----------------------------------------------------------------------------------- 32

2.5. Concluses -------------------------------------------------------------------- 37

III. A articulao dos diferentes sistemas de justia internacional --------- 38

3.1. A articulao do Tribunal Internacional de Justia com os

restantes tribunais de jurisdio universal----------------------------------- 39

3.1.1. A articulao do Tribunal Internacional de Justia com os

tribunais de competncia especializada -------------------------------39

3.1.2. A articulao do Tribunal Internacional de Justia com o

Tribunal Penal Internacional---------------------------------------------41

3.2. A articulao do sistema de justia internacional universal do

Tribunal Internacional de Justia com o sistema de justia

internacional regional do Tribunal de Justia da Unio Europeia -------

----------------------------------------------------------------------------------------------43

3.3. A articulao dos diferentes sistemas de justia internacional

regionais o caso da articulao do Tribunal Europeu dos Direitos do

Homem com o Tribunal de Justia da Unio Europeia e o problema da

adeso da UE CEDH -------------------------------------------------------------- 57

IV. Case Studies Da teoria prtica ---------------------------------------------- 59

4.1. O Contencioso Mox Plant ------------------------------------------------- 61

4.1.1. Enquadramento factual ------------------------------------------ 61

14

4.1.2. O direito internacional aplicvel ------------------------------- 62

4.1.3. Concluses ------------------------------------------------------------ 67

4.2. O caso Nicaragua vs EUA do Tribunal Internacional de Justia

e o caso Tadic do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslvia --

--------------------------------------------------------------------------------------------- 68

4.2.1. Enquadramento factual ------------------------------------------ 68

4.2.2. O direito internacional aplicvel ------------------------------- 70

4.2.3. Concluses ------------------------------------------------------------ 71

4.3. O Caso Bosphorus ----------------------------------------------------------- 73

4.3.1. Enquadramento factual ------------------------------------------ 73

4.3.2. O direito internacional aplicvel ------------------------------- 75

4.3.3. Concluses ------------------------------------------------------------ 77

4.4. O caso Mexico Soft Drinks ------------------------------------------------ 79

4.4.1. Enquadramento factual ------------------------------------------ 79

4.4.2. O direito internacional aplicvel ------------------------------- 80

4.4.2.1. A deciso do painel da OMC -------------------------- 82

4.4.2.2. A deciso do painel de Apelao da OMC -------- 83

4.4.3. Concluses ------------------------------------------------------------ 83

4.5. O caso La Grand ------------------------------------------------------------- 84

4.5.1. Enquadramento factual ------------------------------------------ 84

4.5.2. O direito internacional aplicvel ------------------------------- 85

4.5.3. Concluses ------------------------------------------------------------ 87

V. O Frum Shopping no Direito Internacional Pblico ---------------------- 88

5.1. Concluses -------------------------------------------------------------------- 90

VI. Um problema sem soluo? As vrias teses de resoluo do problema

da concorrncia dos sistemas de justia internacional, em especial, a da

criao de um Tribunal de Conflitos Internacional de funcionamento ad hoc--

------------------------------------------------------------------------------------------------------ 91

6.1. A extenso da Jurisdio do Tribunal Internacional de Justia e a

sua utilizao como instncia de recurso -------------------------------------- 92

15

6.2. A criao de um sistema de controlo prvio ou a extenso da j

existente competncia consultiva do Tribunal Internacional de Justia

--------------------------------------------------------------------------------------------- 97

6.3. O princpio da aplicao do caso julgado e da litispendncia ----

------------------------------------------------------------------------------------------- 100

6.4. O dilogo judicial -------------------------------------------------------------104

6.4.1. A soluo do Professor Yuval Shany The principle of

Comity ----------------------------------------------------------------------- 104

6.4.2. A soluo do dilogo judicial do Juiz Canado Trindade ---

----------------------------------------------------------------------------------- 105

6.5. A aplicao do mtodo Solange a tese de Nikolaos Lavranos 107

6.6. A criao de um Tribunal Internacional de Conflitos -------------- 108

6.6.1. A proposta de criao de um Tribunal Internacional de

Conflitos apresentada por Nikolaos Lavranos -------------------- 108

6.6.2. A proposta de criao de um Tribunal Internacional de

Conflitos de funcionamento ad hoc ---------------------------------- 110

VII. Concluses ------------------------------------------------------------------------------ 114

VIII. Bibliografia --------------------------------------------------------------------------- 117

8.1. Manuais e Monografias (por ordem alfabtica) -----------------------117

8.2. Fontes de Direito Internacional (por ordem alfabtica) ------------122

8.3. Jurisprudncia (por ordem alfabtica) ----------------------------------125

8.4. Stios na Internet (por ordem alfabtica) -------------------------------130

16

I. Introduo e delimitao do objeto.

Com o fim da Guerra Fria e o consequente rejuvenescimento da cooperao

entre os Estados anteriormente em campos opostos, assistimos

inevitavelmente a uma densificao do direito internacional, que trouxe

consigo problemas de articulao prementes.

Com efeito, o direito internacional passou a cobrir cada vez mais reas,

assistindo-se a um desenvolvimento acentuado em certos domnios que antes

eram menosprezados, como os direitos humanos ou o direito ambiental. Este

fator, aliado a uma maior abertura a outros sujeitos de direito internacional

que no os Estados, como as organizaes internacionais e os indivduos,

concedeu um novo fulgor litigncia internacional e prpria temtica da

concorrncia dos sistemas de justia internacional.

De facto, desde sensivelmente os ltimos 25 anos que temos constatado

uma proliferao considervel do nmero de instncias internacionais,

acompanhado de uma maior vontade por parte dos Estados em usar esses

mecanismos, o que fez com que a produo jurisprudencial deste perodo

temporal tenha aumentado consideravelmente.

A ttulo de exemplo, pode ser mencionada a criao dos tribunais ad hoc

para a Ex-Jugoslvia e para o Ruanda (1993/1994), a criao do Tribunal

Internacional de Direito do Mar (1996), do Tribunal Penal Internacional

(2002), do sistema de resoluo de conflitos complexo da Organizao Mundial

do Comrcio (1994), e dos tribunais hbridos da Serra Leoa (2002), Camboja

(2005), Timor-Leste (2000) e Kosovo2 (2016) e do Tribunal Especial para o

Lbano (2009).

A criao deste nmero de tribunais, a par da globalizao das relaes

polticas, jurdicas e econmicas entre Estados, e do crescente envolvimento

das organizaes internacionais e mesmo dos particulares no panorama

2 Tribunal ainda em processo de criao, tendo entrado em vigor a 1 de janeiro de 2017 o

acordo com o estado holands para instalao no seu territrio do sistema de justia

internacional, composto por Specialist Chambers e um Specialist Prosecutors Office.

Para desenvolvimento da questo, cfr. Kosovo Specialist Chambers & Specialist Prosecutors

Office, disponvel em https://www.scp-ks.org/en.

https://www.scp-ks.org/en

17

internacional, com as possibilidades de resoluo de disputas a

multiplicarem-se, leva a uma maior utilizao dos vrios sistemas, em

detrimento do modelo tradicional, o recurso nico pelos Estados ao Tribunal

Internacional de Justia.

Esse aumento na utilizao dos sistemas de justia internacional acarreta,

naturalmente, alguns obstculos que importa resolver. Com efeito, a

proliferao dos sistemas de justia internacional conduziu sobreposio de

jurisdies e ao surgimento de um problema de concorrncia entre os sistemas

de justia internacional.

Assim, o primeiro objetivo da presente dissertao ser o de ilustrar a

produo doutrinal no mbito desta temtica, analisando-a, a fim de tomar

uma posio sobre as verdadeiras consequncias da proliferao dos sistemas

de justia internacional, id est, se essa proliferao conduzir efetivamente a

uma fragmentao do Direito Internacional Pblico, ou sua consolidao e

harmonizao.

Competir-nos-, assim, atravs da anlise da prtica jurdica existente e

dos case studies paradigmticos sobre a questo, propor uma srie de solues

para o problema, expondo as suas vantagens e desvantagens, e porventura os

meios para as ultrapassar.

Esta ser sempre, contudo, uma proposta de anlise modesta, alicerada

na prtica e na doutrina existente, que carecer de desenvolvimento, para que

se possa definir que rumo dever o Direito Internacional Pblico e as

instncias internacionais efetivamente tomar, a fim de a concorrncia entre

os sistemas de justia internacional no mais se apresentar como um

problema to premente.

II. A proliferao dos sistemas de justia internacionais

2.1. Em busca de uma definio de sistema de justia

internacional Terminologia e definio a adotar.

No domnio do contencioso internacional, sempre existiu alguma confuso

de terminologia, em lngua estrangeira, e em particular no domnio do

18

fenmeno da proliferao de sistemas de justia internacional, utilizando os

autores estrangeiros os termos international tribunals3, international

courts4 ou international courts and tribunals5 quase indistintamente.

Cesare P. R. Romano6 regista que os autores que recorrem ao termo

international tribunals tendero a incluir os tribunais de jurisdio

permanente, bem como os tribunais ad hoc, enquanto que os autores que

recorrem expresso international courts tendero a incluir apenas os

tribunais ad hoc ou de constituio temporria ou transitria, o que encontra

fundamento na prtica dos Estados das ltimas dcadas.

Com efeito, o Autor refere, ainda, que apenas os tribunais ad hoc

institudos pelo Conselho de Segurana das Naes Unidas tendem a ser

referidos como tribunals, sendo todas as restantes instncias referidas como

courts7.

semelhana de Cesare P. R. Romano8, que opta por utilizar a designao

de international judicial bodies, ns optamos por uma noo mais ampla,

que designaremos de sistemas de justia internacional, a fim de conseguirmos

abranger tanto os tribunais, permanentes ou no, como os sistemas de

resoluo de conflitos cuja classificao como tribunal se afigura duvidosa,

como exemplo o sistema de justia da Organizao Mundial do Comrcio.

O nosso primeiro obstculo na anlise do fenmeno da proliferao dos

sistemas de justia internacional prende-se com o facto de no existir, data,

uma definio universalmente ou genericamente aceite do que ser um

sistema de justia internacional.

3 A ttulo de exemplo, cfr. BOCZEK, Boleslaw Adam, Historical Dictionary of International

Tribunals, Scarecrow Press, 1994 e HUDSON, Manley O., International Tribunals: Past and

Future, Brookings Institution,1944. 4 A ttulo de exemplo, cfr. JANIS, Mark, International Courts for the twenty-first century,

Nijhoff, 1992. 5 A ttulo de exemplo, cfr. BERNHARDT, M., Encyclopedia of Public International Law,

North Holland, 1981. 6 ROMANO, Cesare P.R., The proliferation of international judicial bodies: the pieces of the

puzzle, International Law and Politics, Vol. 31, 1999, pp. 730 e ss. 7 Com exceo do Tribunal Internacional de Direito do Mar, que uma instncia de jurisdio

permanente e designado por International Tribunal of the Law of the Sea. 8 ROMANO, Cesare P.R., The proliferation of international judicial bodies: the pieces of the

puzzle, International Law and Politics, Vol. 31, 1999, pp. 730 e ss.

19

Contudo, embora no seja nosso foco alcanar uma definio livre de

imperfeies, h uma definio que decerto merece nota, a de Christian

Tomuschat9, seguida por diversos autores, como o caso de Karin Oellers-

Frahm10, pelo que a analisaremos.

Assim, Tomuschat entende que para um sistema de justia internacional

possa ser classificado como tal dever preencher cinco critrios:

a) Em primeiro lugar, dever ser um sistema dotado de permanncia, isto

, independente da existncia de um determinado litgio, o que

remover desta definio tanto os tribunais ad hoc como as instituies

que simplesmente fornecem uma arbitragem ad hoc aos seus membros,

como o caso da NAFTA11.

b) Em segundo lugar, dever o sistema ter sido institudo por um

instrumento jurdico internacional, como um tratado ou atos dele

derivados, como exemplo o Tribunal de Justia da Unio Europeia12

ou os Tribunais ad hoc para a ex-Jugoslvia e para o Ruanda13.

c) Em terceiro lugar, o sistema dever recorrer a direito internacional

para a deciso dos litgios que lhe so apresentados.

d) Em quarto lugar, dever produzir a sua deciso com base nas regras

procedimentais pr-existentes e que no podero ser modificadas pelas

partes, sob risco de discricionariedade sem fundamento.

e) Por ltimo, dever produzir uma deciso vinculativa para as partes, o

que restringe bastante a lista de sistemas de justia internacional

existentes.

9 TOMUSCHAT, Christian, International Courts and Tribunals with Regionally Restricted

and/or Specialized Jurisdiction, in Judicial Settlement of International Disputes:

International Court of Justice, Other Courts and Tribunals, Arbitration and Conciliation: An

International Symposium, Max-Planck Institut fr Auslndisches ffentliches Recht und

Vlkerrecht, 1987, pp. 285 a 416. 10 OELLERS-FRAHM, Karin, Multiplication of International Courts and Tribunals and

Conflicting Jurisdiction Problems and Possible Solutions, in Max Planck Yearbook of

United Nations Law, Volume 5, Kluwer Law International, Netherlands, 2001, pp.69. 11 Cfr. art. 2004 e ss. do Tratado Norte Americano para o Comrcio Livre, que prev a

disponibilizao de mecanismos de arbitragem para a resoluo de controvrsias. 12 Tribunal institudo por tratado, com base jurdica nos arts. 19. do TUE, artigos 251. a

281. do TFUE, artigo 136. do Tratado Euratom e Protocolo n. 3 anexo aos Tratados relativo

ao Estatuto do Tribunal de Justia da Unio Europeia. 13 Tribunais institudos pelo Conselho de Segurana das Naes Unidas, pelas resolues

827/1993 e 955/1994, respetivamente.

20

Cesare P. R. Romano acrescenta a esta definio mais dois vetores, que

entendemos contriburem para uma melhor definio.

Assim, este Autor entende que, por um lado, o sistema de justia

internacional dever ser composto, pelo menos maioritariamente, por juzes

que no foram apontados pelas partes, mas sim que foram escolhidos de forma

imparcial.

Por outro lado, defende ainda que apenas dever decidir disputas entre

duas ou mais entidades onde pelo menos uma delas seja um Estado soberano

ou uma organizao internacional14.

Assim, pela definio de Tomuschat e Romano, preencheriam todos os

requisitos as seguintes instituies15:

1. O Tribunal Internacional de Justia;

2. O Tribunal Internacional de Direito do Mar;

3. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem;

4. O Tribunal Interamericano de Direitos Humanos;

5. O Tribunal de Justia da Unio Europeia;

6. O Tribunal de Justia da Comunidade Andina;

7. O Tribunal de Justia da EFTA;

8. O Tribunal de Justia do Benelux;

9. O Tribunal de Justia do COMESA;

10. O Tribunal de Justia da Unio do Magrebe rabe;

11. O sistema de justia da Organizao rabe dos Pases Exportadores de

Petrleo.

Caso os critrios fossem aplicados com alguma flexibilidade, na opinio de

Romano poderiam ainda ser includos os tribunais ad hoc para a ex-

14 O que eliminar desta definio, por exemplo, a Cmara de Comrcio Internacional, que

fornece aos seus membros arbitragem comercial, uma vez que os rbitros responsveis pela

resoluo do litgio podero ser indicados pelas partes. 15 ROMANO, Cesare P.R., The proliferation of international judicial bodies: the pieces of the

puzzle, International Law and Politics, Vol. 31, 1999, pp. 730 e ss.

21

Jugoslvia e para o Ruanda e o sistema de justia da Organizao Mundial

do Comrcio, apesar de no preencherem o requisito da permanncia.

O sistema de resoluo de conflitos da Organizao Mundial do Comrcio,

contudo, merece ainda um especial enfoque, uma vez que no contempla s

uma instituio, mas sim dois corpos judiciais o Dispute Settlement Body

e o Appelate Body que diferem entre si e no preenchem, na generalidade,

os critrios defendidos por Tomuschat e complementados por Romano.

No entanto, atenta a sua prtica jurdica, o Appelate Body aproxima-se

muito mais de um sistema de justia na definio destes Autores, em termos

de independncia, embora acabe por falhar o teste, pelo facto de as suas

decises no serem vinculativas.

Em suma, apesar do contributo destes Autores para uma noo de sistema

de justia internacional, porventura mais restrita, nossa opinio que este

critrio no poder ser aplicado linearmente, fruto das prprias

especificidades de cada sistema de justia internacional, que se identificam

com diversas caractersticas do prprio direito internacional e contribuem

para um sistema mais rico, no sendo possvel enquadr-los apenas dentro

destas regras.

De facto, no por classificarmos os sistemas e tentarmos enquadr-los

num conceito que eles deixaro de se contrapor, sendo nosso dever, como

acadmicos, tentarmos abraar as diversidades que cada sistema traz, de

forma a enriquecer o prprio direito internacional pblico.

A temtica da proliferao de sistemas de justia internacional tem sido

palco, nas ltimas dcadas, de uma produo doutrinal acentuada, sobretudo

em lngua estrangeira, produo que analisaremos cuidadosamente infra.

2.2. Os principais fatores para a proliferao dos sistemas de

justia internacional o caminho entre a fragmentao e a

constitucionalizao do Direito Internacional Pblico

As opinies sobre a questo premente da proliferao dos sistemas de

justia internacional acompanharam o fenmeno de multiplicao das

instncias, sendo vrias e bastante diversas umas das outras, identificando

22

vantagens e desvantagens no fenmeno, pendendo entre uma ideia de

fragmentao e de constitucionalizao do Direito Internacional Pblico.

Por um lado, h autores que defendem, como Nikolaos Lavranos16, que

esta densificao parte de um processo de institucionalizao, que poder

fornecer as bases para uma constitucionalizao do direito internacional.

Por outro lado, h autores que vo ainda mais longe, defendendo que o

crescente nmero de tribunais criados e esta tendncia constante podero

levar, no futuro, criao de uma comunidade global de tribunais, como o

caso de Anne-Marie Slaughter17.

Com efeito, esta Autora entende, assim, que esta proliferao de tribunais

e centros de deciso judicial no levanta problemas ou conflitos relevantes,

devendo ser entendida como o comeo de uma jurisprudncia global, que no

dever levantar conflitos.

Contudo, nossa opinio de que no isto que a prtica evidencia, sendo

uma ideia um pouco utpica, uma vez que o risco da fragmentao do prprio

direito internacional, causado pela mesma proliferao, no pode deixar de

ser levado em conta.

Para Cesare P. R. Romano, por sua vez, a proliferao dos sistemas de

justia internacional deve-se essencialmente a um nmero de fatores

diversos18.

Em primeiro lugar, expanso do direito internacional para reas onde

antes s os Estados legislavam, como o direito criminal ou os recursos

naturais martimos, porquanto os Estados foram transferindo ao longo das

ltimas dcadas para as organizaes internacionais o poder de legislar sobre

determinadas matrias, o que fez com que o poder para as interpretar e julgar

acabasse por o acompanhar.

16 LAVRANOS, Nikolaos, On the need to regulate competing jurisdictions between

international courts and tribunals, European University Institute, Max Weber Programme,

2009/14, ISSN 1830-7728. 17 SLAUGHTER, A.M., A Global Community of Courts, Harvard International Law

Journal, 2003, pp. 191-219. 18 ROMANO, Cesare P.R., The proliferation of international judicial bodies: the pieces of the

puzzle, International Law and Politics, Vol. 31, 1999, pp. 730 e ss.

23

Em segundo lugar, para este Autor, a proliferao dos sistemas de justia

internacional foi uma consequncia direta do desmantelamento da ex-URSS

e do fim do bilateralismo e advento do multilateralismo.

Com efeito, Romano entende que o fim do bipolarismo existente, com o

desmantelamento da URSS, funcionou como uma alavanca de

rejuvenescimento de algumas organizaes internacionais, bem como um

motor de estabelecimento de novas organizaes.

Exemplo disso, por um lado, evidentemente a criao do Tribunal ad hoc

para a ex-Jugoslvia, que s pde ter lugar aps a obteno de um consenso

dentro do Conselho de Segurana da Organizao das Naes Unidas, o que

antes do fim da Guerra Fria seria extremamente improvvel.

Por outro lado, a queda da cortina de ferro permitiu a expanso do

Conselho da Europa para leste e rejuvenesceu o Tribunal Europeu dos

Direitos do Homem, que nas palavras de Romano, que ns subscrevemos,

[] rightly regarded as the most accomplished and successful international

system for the protection of human rights []19.

Outro exemplo citado por Romano para ilustrar este fator de proliferao

o desenvolvimento exponencial do Tribunal Internacional de Direito do Mar,

uma vez que no entender deste Autor, o facto de a maior parte dos Estados

que ratificaram a Conveno das Naes Unidas de Direito do Mar

pertencerem ao grupo dos no-alinhados conduziu a que, quando a Guerra

Fria terminou, os restantes Estados pertencentes OTAN e ex-URSS

ratificassem a conveno, dando novo fulgor a este sistema de justia

internacional.

Romano tem ainda uma interessante opinio, defendendo que o fim das

interpretaes marxistas-leninistas das relaes internacionais, onde as

relaes amigveis entre Estados no eram promovidas, por ser entendido

que o Direito, e bem assim o Direito internacional, era uma forma de

encorajamento da diviso de classes e da existncia de uma estrutura

hierarquizada, conduziu a um aumento do nmero de sistemas de justia

19 ROMANO, Cesare P.R., The proliferation of international judicial bodies: the pieces of the

puzzle, International Law and Politics, Vol. 31, 1999, pp. 730 e ss.

24

internacional, fazendo com que pudessem agora ser resolvidas por estes

sistemas de justia internacional disputas entre pases capitalistas e

comunistas, o que antes seria impensvel.

De facto, como bem refere Lucius Caflisch20, corroborando a posio de

Romano, ao analisar a prtica da Unio Sovitica e dos restantes Estados

socialistas nas dcadas de Guerra Fria, constatamos que historicamente

sempre optaram maioritariamente pelo uso da diplomacia ao invs do uso de

algum sistema de justia internacional, o que vem dar suporte a esta posio.

Com o fim da Guerra Fria, nesse sentido, um nmero avultado de pases

socialistas expressou o seu consentimento na sujeio jurisdio de diversos

sistemas de justia internacional e assistiu-se efetivamente a uma utilizao

crescente dos sistemas de justia internacional por estes Estados.

O exemplo mais flagrante deste facto foi a extenso da jurisdio do

Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a todos os pases da Europa de

Leste, consequncia do alargamento do Conselho da Europa, com a sua

sujeio jurisdio obrigatria imposta pela CEDH, bem como, mais tarde,

na nossa opinio, a submisso destes pases da Europa de Leste ao sistema

de justia da Unio Europeia, aps o alargamento da Unio para leste e a

aplicao da consequente jurisdio obrigatria imposta pelo TUE e TFUE.

Para alm disso, com a queda dos ideais marxistas assistiu-se

multiplicao de acordos regionais de integrao econmica21, promotores da

livre circulao de produtos, de forma a aumentar a eficincia econmica e a

competitividade dos produtos. Tal conduziu a que, com o surgimento desses

acordos regionais de integrao econmica, fossem sendo criados nesse mbito

sistemas de resoluo de conflitos internos, que acabaram por se tornar em

verdadeiros sistemas de justia em alguns casos, atento o nvel de integrao

20 CAFLISCH, Lucius, Le Rglement Pacifique des Diffrends Internationaux la Lumire

des Bouleversements Intervenus en Europe Centrale et en Europe de lEst, em Anuario de

Derecho Internacional, 1993, pp. 17 a 39. 21 A ttulo de exemplo, veja-se o Mercosul, a North American Free Trade Association, o

Tribunal de Justia da European Free Trade Association, o Tribunal de Justia do Mercado

Comum da frica Oriental e Austral, o Tribunal de Justia da Unio Europeia, o Tribunal

da Comunidade Andina, ou o Tribunal de Justia do Benelux.

25

econmica, para garantir a correta aplicao das normas acordadas pelos

Estados.

A homogeneidade de valores dos Estados que constituram estes acordos

regionais de integrao econmica , na opinio de Romano, outro dos fatores

que conduziram criao de sistemas de justia internacional e que levou

sua expanso, por forma a garantir o cumprimento e a promoo desses

valores comuns.

Para alm disso, outro dos fatores que Romano reala, e bem na nossa

opinio, a transformao do ordenamento jurdico internacional de um

modelo orientado essencialmente por Estados para um modelo gradualmente

disponvel para outros sujeitos de diversa natureza, como outros sujeitos de

Direito Internacional, as organizaes no governamentais e os prprios

indivduos, bem como sujeitos infraestaduais, como os tribunais domsticos

dos Estados, que procuram no ordenamento jurdico internacional a justia e

a legalidade que anteriormente lhes era impossvel almejar sem ser atravs

do seu Estado.

Em primeiro lugar, no caso das organizaes no governamentais, Romano

constata que estas tm locus standi em quase todos os sistemas de justia

internacional, seja com uma forma de acesso apenas a nvel consultivo22, com

uma forma de acesso como intermedirio23, ou com uma forma de acesso

plena, com acesso a todas as opes contenciosas24.

Em segundo lugar, no que aos indivduos diz respeito, h que separar

claramente o acesso direto dos indivduos a um sistema de justia

internacional, que tem vindo a crescer significativamente, ou o acesso dos

indivduos pela via da proteo diplomtica.

22 o caso da Assembleia Geral das Naes Unidas, dos seus rgos autorizados e do Conselho

de Segurana das Naes Unidas, que podem requerer a emisso de parecer ao Tribunal

Internacional de Justia sobre determinados assuntos (cfr. art. 96 do Estatuto do Tribunal

Internacional de Justia). 23 o caso da Comisso Interamericana para os Direitos Humanos, que recebe as queixas dos

indivduos que depois apresenta ao Tribunal Interamericano de Direitos Humanos (cfr. art.

61.1 da Conveno Americana sobre Direitos Humanos). 24 o caso da Cmara de Controvrsias dos Fundos Marinhos do Tribunal Internacional de

Direito do Mar, do Tribunal de Justia da Unio Europeia; do Tribunal de Justia da EFTA;

do Tribunal da Comunidade Andina.

26

Assim, so exemplos de acesso direto dos indivduos a sistemas de justia

internacional o caso do Tribunal de Justia da Unio Europeia25, do Tribunal

de Justia da European Free Trade Association26 e do Tribunal Europeu dos

Direitos do Homem27, que tornam o ordenamento jurdico internacional mais

permevel aos indivduos, o aproximam da realidade diria dos cidados e o

desmistificam, levando evoluo dos sistemas de justia internacional.

No caso de sistemas de justia de mbito universal, a realidade , contudo,

um pouco diferente, como bem refere Romano, pois o seu acesso est muitas

vezes limitado proteo diplomtica28, ao acesso atravs do seu Estado de

nacionalidade, o que faz, na nossa opinio, que se limite muitas vezes a

atuao dos prprios indivduos nos casos em que o violador dos seus direitos

seja o prprio Estado de que nacional.

Contudo, aceitamos tambm a posio de Cesare P. R. Romano, que

defende que uma vez que existem poucas organizaes internacionais em

sentido amplo que legislem a nvel universal no mbito de assuntos que

afetem os indivduos diretamente, a necessidade de garantir a sua proteo

jurisdicional nesta sede seja mais reduzida, o que se justifica.

Exceo feita, claro est, para o Tribunal Penal Internacional, que permite

que os indivduos sejam julgados diretamente.

Em terceiro lugar, de referir que, em alguns casos, mesmo os tribunais

domsticos acabam tambm por ter uma posio nos sistemas de justia

25 As pessoas singulares e coletivas podem diretamente interpor recurso de anulao de um

ato (cfr. art. 263 e 277 do TFUE); um recurso por omisso de ato devido (cfr. art. 265 do

TFUE); aes para indemnizao por responsabilidade de algum dos rgos da Unio

Europeia (cfr. arts. 268 e 340 do TFUE); aes por litgio emergente de relao laboral, no

caso de ser funcionrio de algum dos rgos da Unio Europeia (cfr. art. 270 do TFUE); aes

em caso de litgio em virtude de uma clusula compromissria inserida num contrato

celebrado entre uma pessoa singular ou coletiva e a Unio Europeia (cfr. art. 272 do TFUE);

e eventualmente ainda aes sobre a aplicao de uma sano, com a aplicao do art. 261

do TFUE. 26 Qualquer pessoa singular ou coletiva poder recorrer diretamente ao Tribunal de Justia

da EFTA em caso de ato que lhe diga diretamente respeito emitido pela Autoridade da

Fiscalizao da EFTA (cfr. art. 36 do Estatuto do Tribunal de Justia da European Free

Trade Association). 27 Qualquer pessoa pode recorrer ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, se entender

que esto a ser violados os seus direitos, previstos na conveno, por alguma das Altas Partes

contratantes (cfr. arts. 34 e seguintes da Conveno Europeia dos Direitos do Homem). 28 o caso paradigmtico do Tribunal Internacional de Justia (cfr. art. 34 do Estatuto do

Tribunal Internacional de Justia).

27

internacional, principalmente no caso de sistemas de integrao dos seus

Estados membros, como so exemplos o sistema da Unio Europeia29 ou da

Comunidade Andina30.

Na opinio de Cesare P. R. Romano, esta uma forma privilegiada de os

tribunais domsticos poderem eles prprios serem guardies do ordenamento

jurdico internacional, opinio que ns partilhamos.

2.3. A proliferao dos sistemas de justia internacional - um

problema real?

O problema da proliferao dos sistemas de justia internacional tem

ainda sido abordado pelos autores de duas maneiras distintas embora

alguns tenham conscincia da dimenso do problema e proponham mesmo

solues, outros h que no reconhecem essa proliferao como um verdadeiro

problema, mas sim como uma fonte de evoluo do ordenamento jurdico

internacional, como caso paradigmtico Anne-Marie Slaughter31.

Karin Oellers-Frahm32, por sua vez, entende que a proliferao dos

sistemas de justia internacional , de facto, um problema real e iminente

para a unidade do ordenamento jurdico internacional.

Contudo, esta autora reala que a noo de conflito de jurisdio ou de

conflito entre sistemas de justia internacional no dever ser avaliada em

sentido amplo, mas sim em sentido estrito, apenas existindo um conflito

quando a mesma norma de direito internacional seja interpretada ou aplicada

por vrios sistemas de justia internacional de maneira diversa, o que causar

um confronto direto, afastando-se assim da noo genrica de conflito de

jurisdies.

29 Os tribunais domsticos tm a hiptese de utilizao do reenvio prejudicial, previsto no art.

267 do Tratado sobre o Funcionamento da Unio Europeia, em caso de dvida na

interpretao de qualquer disposio dos tratados. 30 Os tribunais domsticos da Comunidade Andina tm hiptese de utilizao de

interpretao prejudicial, conforme previsto nos arts. 32. e seguintes do Tratado de Criao

do Tribunal de Justia da Comunidade Andina. 31 SLAUGHTER, A.M., A Global Community of Courts, Harvard International Law

Journal, 2003, pp. 191-219. 32 OELLERS-FRAHM, Karin, Multiplication of International Courts and Tribunals and

Conflicting Jurisdiction Problems and Possible Solutions, in Max Planck Yearbook of

United Nations Law, Volume 5, Kluwer Law International, Netherlands, 2001, pp.69.

28

Benedict Kingsbury33, por sua vez, defende que a sobreposio de

jurisdies de sistemas de justia internacional , no s j teoricamente

possvel, como tambm um problema cada vez mais constante na prtica

jurdica internacional.

Com efeito, o leque de possveis problemas cada vez maior e, ao contrrio

do que defende William W. Burke-White34, Kingsbury analisa a maior

interveno de atores no estatais no panorama jurdico internacional no

como uma fonte de desenvolvimento, mas sim como um fator de agravamento

da litigncia.

Com efeito, com o nmero de sistemas de justia internacional a aumentar

manifestamente, as questes que poderiam ser colocadas sobre a alada de

um sistema de justia internacional acabam por ser reenviadas para outro

sistema, aumentando a possibilidade de decises opostas entre instncias,

isto sem esquecer os problemas de soberania dos Estados que acabam por

surgir como maior oposio proliferao de instncias internacionais,

supranacionais.

Isto confirmado por outra posio, a de John Bolton35, que defende no

existir uma estrutura que permita aos sujeitos identificar claramente o

processo de formao das normas e a sua via de aplicao que seja sujeita a

uma legitimao popular e proteja a liberdade, mas sim que as instncias se

limitam a existir, sem uma estrutura adjacente, o que uma falha apontada

tambm por Oellers-Frahm36.

Outro Autor que apresenta uma posio manifestamente contra a

proliferao desregrada Jos Alvarez37 que, por exemplo, em relao

criao do Tribunal Penal Internacional para o Ruanda, defende que a sua

33 KINGSBURY, Benedict, Foreword: Is the proliferation of international courts and

tribunals a systemic problem?, International Law and Politics, Vol. 31, 1999, pp. 679 a 696 34 BURKE-WHITE, William W., International Legal Pluralism, Michigan Journal of

International Law, 2004, Vol.25, p. 963 e ss. 35 BOLTON, John, Reject and Oppose the International Criminal Court, in Toward an

International Criminal Court?, Alton Frye, 1999. 36 OELLERS-FRAHM, Karin, Multiplication of International Courts and Tribunals and

Conflicting Jurisdiction Problems and Possible Solutions, in Max Planck Yearbook of

United Nations Law, Volume 5, Kluwer Law International, Netherlands, 2001, pp.69. 37 ALVAREZ, Jos E., Crimes of State / Crimes of Hate: Lessons from Rwanda, Yale Journal

of International Law 365, 1999, pp. 458-468 e 481-482.

29

criao pelo Conselho de Segurana da ONU sem a existncia de qualquer

juiz ruands e com primazia das suas decises sobre as decises dos tribunais

domsticos do Ruanda nada mais foi do que [] the pursuit of an

international political and liberal-legalist agenda []38. O que em nada

ajudou a situao, que poderia ter sido, no entender deste autor, melhor

resolvida pela utilizao dos tribunais nacionais ruandeses do que pela

aplicao de normas internacionais homogneas que no tiveram em conta a

especificidade das tradies e dos costumes nacionais, pelo que nunca poder

existir uma hierarquia desregrada.

Jonathan Charney39, por seu turno, entende que no existe um problema

de proliferao de sistemas de justia internacional, identificando na

jurisprudncia das diferentes instncias uma certa conformidade em questes

fulcrais, como as fontes de direito internacional, as normas de regulao dos

tratados internacionais e a responsabilidade dos Estados pelos seus atos, e

defendendo que as maiores divergncias apenas refletem a diferena de

objetivos entre sistemas universais e regionais.

O juiz Canado Trindade, por sua vez, entende que [] os tribunais

internacionais contemporneos tm contribudo decisivamente para a

expanso da jurisdio internacional, assim como para a afirmao e

consolidao da personalidade e capacidade jurdicas internacionais do ser

humano, como sujeito tanto ativo (ante os tribunais internacionais de direitos

humanos) como passivo (ante os tribunais penais internacionais) do Direito

Internacional. []40

No que a esta matria diz respeito, foi inclusive publicado um relatrio da

Comisso de Direito Internacional41, em 2006, que, no obstante, acabou por

38 Ibid. 39 CHARNEY, Jonathan I., Is International Law Threatened by Multiple International

Tribunals?, 271 Recueil des Cours 105, 1998, pp. 125. 40 CANADO TRINDADE, Antnio Augusto, Os Tribunais Internacionais Contemporneos e

a Busca da Realizao do Ideal da Justia Internacional, estudo do autor que serviu de base

Aula Magna que ministrou na Escola Superior Dom Hlder Cmara, em Belo Horizonte, a

27 de agosto de 2009, p. 44, disponvel em http://www.corteidh.or.cr/tablas/r30426.pdf 41 Fragmentation of International law: Difficulties arising from the Diversification and

Expansion of International Law, Relatrio do Grupo de Estudo da Comisso de Direito

Internacional, 58 Sesso da Comisso de Direito Internacional, 2006.

http://www.corteidh.or.cr/tablas/r30426.pdf

30

no analisar a fundo as solues possveis para o conflito entre jurisdies

existente, ficando-se pela sua constatao.

Como expe o prprio relatrio, [] This study has not aimed to set up

definite relationships of priority between international laws different rules or

rule-systems. To that extent, its results may seem unsatisfactory or at least

inconclusive []42.

Contudo, o relatrio acaba por nos fornecer vrias posies interessantes,

que contribuem para o desenvolvimento da temtica em estudo, que

apresenta diversas ramificaes, e sero um auxiliar poderoso na construo

da nossa posio, a da resoluo do problema com a criao de um Tribunal

Internacional de Conflitos, acompanhado de um Direito Internacional dos

Conflitos43

Uma das concluses mais importantes do relatrio apresentado pela

Comisso de Direito Internacional de que a ameaa de incoerncia do Direito

Internacional Pblico trazida pela proliferao dos sistemas de justia

internacional e consequentes conflitos existentes ser sempre um obstculo

aliado ao aumento do pluralismo da ordem jurdica internacional, como a

conhecemos.

De facto, apesar de apenas um sistema coerente poder tratar os sujeitos

de direito internacional de forma equitativa, a Comisso entendeu que o

pluralismo dever ser um valor constitutivo do prprio ordenamento jurdico

internacional, a fim de se coadunar com a perspetiva plural promovida pelos

prprios Estados, sujeitos de Direito Internacional Pblico44, e que o

equilbrio entre esses dois fatores que fornecer a melhor soluo.

Apesar da aparente superficialidade do relatrio, posteriormente,

contamos com os trabalhos de Nikolaos Lavranos45, Yuval Shani46 e Heiko

42 Ibid., pp. 245, par. 484. 43 Ibid., pp. 249 e ss, par. 493 44 Ibid., pp. 248, par. 491. 45 LAVRANOS, Nikolaos, On the need to regulate competing jurisdictions between

international courts and tribunals, European University Institute, Max Weber Programme,

2009/14, ISSN 1830-7728. 46 SHANY, Yuval, Regulating Jurisdictional Relations between national and international

courts, OUP, 2007.

31

Sauer47 para demonstrar o impacto associado concorrncia de jurisdies,

nomeadamente, que a coerncia do ordenamento jurdico internacional

poder efetivamente ser gravemente afetada pelas divergncias da

jurisprudncia dos diversos sistemas de justia internacional, o que levar

sua fragmentao48.

Mais ainda, estes Autores defendem que o problema crucial se prende com

a verdadeira falta de hierarquia legal entre as normas de direito internacional

(com a exceo da supremacia das normas de jus cogens49), e entre os diversos

sistemas e tribunais, problema sobre o qual nos debruaremos adiante.

Com efeito, este problema de conflito de jurisdies muito comum a nvel

interno, mas a principal diferena, como reala Lavranos, que a maior parte

dos ordenamentos jurdicos nacionais esto dotados de um supremo tribunal,

de uma ltima instncia que determine o desfecho do litgio in fine, e

precisamente essa falta de regulao formal e explcita a nvel internacional

que tornam o problema da concorrncia de jurisdies e de tribunais to

premente.

Assim, ao contrrio do que afirma Anne Marie Slaughter50, a proliferao

de instncias internacionais e a crescente institucionalizao do Direito

Internacional Pblico levanta problemas, como o so o maior risco de decises

conflituantes, com a falta de uma hierarquia vinculativa entre instncias, a

falta de coordenao e a falta de mecanismos formais de controlo, o que

acentua o risco de fragmentao do direito internacional, quando o efeito

pretendido o oposto.

47 SAUER, Heiko, Jurisdiktionskonflikte in Mehrebenensystemen: Die Entwicklung eines

Modells zur Lsung von Konflikten zwischen Gerichten unterschiedlicher Ebenen in

vernetzten Rechtsordnungen, Springer, 2008 48 LAVRANOS, Nikolaos, On the need to regulate competing jurisdictions between

international courts and tribunals, European University Institute, Max Weber Programme,

2009/14, ISSN 1830-7728, p. 8. 49 A supremacia das normas de jus cogens relativamente s restantes fontes de Direito

Internacional uma matria amplamente discutida pela doutrina, mas que no ser alvo de

anlise, atento o objetivo da presente monografia. 50 SLAUGHTER, A.M., A Global Community of Courts, Harvard International Law

Journal, 2003, pp. 191-219

32

2.4. Vetores de anlise da proliferao dos sistemas de justia

internacional

William W. Burke White51 ensina-nos, a ttulo de exemplo, que para

analisarmos a temtica da proliferao dos sistemas de justia internacional,

teremos que ter em conta sete variveis:

a) A diversificao dos tribunais que aplicam direito internacional

pblico;

b) A proliferao e o conflito hipottico das normas legais;

c) O aumento das vias de acesso de sujeitos de direito internacional para

alm dos Estados aos sistemas de justia internacional;

d) A distino entre jurisdio e direito aplicvel nos sistemas de justia

internacional;

e) A rpida expanso do dilogo interjudicial;

f) A uniformizao procedimental e costumeira dos tribunais e

ordenamentos jurdicos;

g) O desenvolvimento de tribunais hbridos que combinam elementos

nacionais e internacionais.

Burke-White defende, assim, que nestes sete vetores que deve assentar

a anlise da proliferao dos sistemas de justia internacional, defendendo

semelhana de Romano52 que a emergncia de novos problemas que criam

a necessidade de solues transnacionais. O que conduziu ao surgimento da

resposta do direito internacional pblico o aumento de instncias

especializadas, que possam dar uma resposta cabal aos problemas que foram

surgindo com a globalizao e a evoluo histrica a nvel mundial.

Em nossa opinio, essa diversificao surge tambm com um maior

nmero de tribunais nacionais a aplicar direito internacional, conduzindo a

que o Direito Internacional se tornasse cada vez mais uma parte central dos

procedimentos legais nacionais, sendo no raras vezes incorporado nas

51 BURKE-WHITE, William W., International Legal Pluralism, Michigan Journal of

International Law, 2004, Vol.25, pp. 963 e ss. 52 ROMANO, Cesare P.R., The proliferation of international judicial bodies: the pieces of the

puzzle, International Law and Politics, Vol. 31, 1999, pp. 730 e ss.

33

constituies de cada pas, com uma receo formal das fontes de Direito

Internacional.

Assim, o Autor conclui que esta diversificao e proliferao de sistemas

de justia internacional dever ser vista como um fator de aumento da

relevncia concedida ao prprio Direito Internacional Pblico, sendo apenas

a resposta natural ao aumento do nmero de problemas transnacionais e de

diferentes novas reas, como os direitos humanos, o crime internacional, os

fluxos internacionais de mercadorias ou a poluio transnacional, pelo que

apesar da possibilidade do aumento de conflitos de jurisdio, essa

diversificao tem um efeito mais amplo o de conceder verdadeira relevncia

ao Direito Internacional Pblico.

Para alm disso, o nmero de normas de direito internacional criadas, a

par das instncias, tem aumentado exponencialmente nas ltimas dcadas,

com a assinatura de vrios tratados bilaterais e multilaterais em reas

especficas que moldaram intensivamente a ordem jurdica internacional.

Mais uma vez, contrariando as vozes de protesto que defendem que tal s

trar fragmentao do direito internacional e a proliferao de conflitos, como

a de Joost Pauwelyn53, o Autor defende que esse um pequeno preo a pagar

pela relevncia que tal evoluo concede ao direito internacional.

O Autor identifica ainda que, no panorama atual, cada vez mais os

indivduos, as organizaes no governamentais e mesmo as pessoas coletivas

de direito privado tm um acesso sem precedentes aos sistemas de justia

internacional, algo que tambm ns j expusemos. So exemplos deste acesso

os sistemas do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o Tribunal de

Direitos Humanos Interamericano, bem como o acesso indireto ao Tribunal

Penal Internacional atravs do Office of the Prosecutor, ou o acesso de

pessoas coletivas de direito privado no mbito do sistema da OMC.

No entender deste Autor, ao contrrio de tal crescente acesso de outros

sujeitos de direito internacional poder contribuir para uma maior litigncia e

fragmentao, este fenmeno s contribuir para fortalecer o ordenamento

53 PAUWELYN, Joost, Bridging Fragmentation and Unity: International Law as a Universe

of Inter-Connected Islands, Michigan Journal of International Law, Vol. 25, 2004, pp. 929 e

ss.

34

jurdico internacional, na senda do que tambm defende Anne-Marie

Slaugter54, servindo para que este seja respeitado da melhor forma.

No seu entender, a generalidade dos sistemas de justia internacional

partilha o mesmo corpo unificado de normas de direito internacional,

aplicando as mesmas regras, independentemente dos seus tratados

fundadores e diferentes jurisdies.

E que, mais ainda, a contrapor a fragmentao, h cada vez mais um

dilogo interjudicial intenso entre instncias, que ocorre essencialmente a

trs nveis entre tribunais supranacionais55, entre tribunais supranacionais

e tribunais domsticos56 e entre tribunais domsticos entre si57.

Quanto ao dilogo entre tribunais supranacionais, tanto Charles Koch58

como Jonathan Charney59 so defensores de que h cada vez um maior dilogo

entre instncias a nvel supranacional, mitigando os conflitos que possam

surgir, principalmente atravs da anlise de jurisprudncia de cada uma

delas, identificando estes Autores uma certa deferncia de todos os tribunais

em relao ao Tribunal Internacional de Justia.

Embora no consigamos concordar completamente com a posio de

Burke-White, Koch e Charney, por acharmos que uma soluo com pouco

impacto prtico, concordamos com a constatao do desenvolvimento de

dilogo entre os diversos sistemas de justia internacional, ainda que no

merea ainda uma nota to evidente.

de realar, contudo, que quanto ao dilogo entre tribunais

supranacionais e tribunais domsticos, Burke-White fundamenta a sua

posio com referncia a alguns casos em que os tribunais supremos dos

ordenamentos jurdicos nacionais citam nas suas decises instncias

54 [] it is possible to imagine individuals as monitors of government compliance with agreed

rules, whether arrived at through a domestic or an international legislative process.

SLAUGHTER, Anne-Marie, International Law in a World of Liberal States, European

Journal of International Law, 1995 55 Emesa Sugar, Acrdo do Tribunal de Justia da Unio Europeia, 08.02.2000, Processo C-

17/98. 56 Vide infra nota n60. 57 Vide infra notas 61, 62, 63 e 64. 58 KOCH Jr., Charles H., Judicial Dialogue for Legal Multiculturalism, Michigan Journal

of International Law, Vol. 25, 2004, pp. 879. 59 CHARNEY, Jonathan I., Is International Law Threatened by Multiple International

Tribunals?, 271 Recueil des Cours 105, 1998, pp. 125.

35

internacionais, como foi o caso do Supremo Tribunal de Justia americano

Lawrence vs Texas60, em que o tribunal citou jurisprudncia do Tribunal

Europeu dos Direitos do Homem relativamente ao padro internacional de

proteo dos direitos dos indivduos de orientao homossexual.

Mais, em relao ao terceiro nvel, ao dilogo existente entre tribunais

domsticos, o Autor defende que possvel assistir atualmente a um aumento

do dilogo entre tribunais domsticos de diversos pases entre si, como foi o

caso, nos EUA, do caso Knight vs Florida61, em que um juiz responsvel por

decidir emitiu um voto de vencido citando casos do Zimbabu62, ndia63, ou do

Canad64.

Burke-White defende, assim, com esta exposio que os acordos informais

entre sistemas de justia internacional poderiam mitigar os efeitos de um

conflito e acaba por defender a soluo do professor Yuval Shany65 do respeito

pelas restantes instncias internacionais como forma de solucionar a

fragmentao existente.

Em sexto lugar, Burke-White defende ainda que possvel identificar uma

tendncia gradual de uniformizao de procedimento e costumes judiciais nos

vrios sistemas de justia internacional e que mesmo que no resulte num

procedimento uniforme, o que nem sequer desejvel, tem a vantagem de

tornar a soluo de aplicao do comity mais simples, medida que os

sistemas vo tendo estruturas mais similares.

Culmina com a defesa de que a utilizao, por exemplo, no Tribunal Penal

Internacional, de estratgias que se fundam tanto num modelo inquisitrio

bem como num modelo adversarial, poder sugerir a formao de uma cultura

60 Lawrence v. Texas, 539 U.S., Supremo Tribunal de Justia dos Estados Unidos da Amrica,

2003. 61 Knight v. Florida, 528 U.S. 990, Supremo Tribunal de Justia dos Estados Unidos da

Amrica, 1999. 62 Catholic Commission for Justice and Peace in Zimbabwe v. Attorney General, Supremo

Tribunal de Justia do Zimbabu, 1993. 63 Sher Singh v. State of Punjab, Supremo Tribunal de Justia da ndia, 1983. 64 Kindler v. Minister of Justice, Supremo Tribunal de Justia do Canad, 1991. 65 Soluo defendida pelo professor Yuval Shany que tem por base uma ideia de entendimento

entre os diversos tribunais e complexos judiciais internacionais, de forma a que cada um

prestasse aos restantes uma certa deferncia nas suas decises, respeitando-as e

restringindo-se de as contradizer, em virtude da cortesia existente entre os diferentes

sistemas

36

jurdica global, essencial para solucionar a fragmentao atualmente

existente, ideia que tambm partilhada por Koch.66

Por ltimo, na anlise dos vetores que identificou, o Autor defende ainda

que pela formao de corpos de direito internacional, alguns at sistemas de

justia internacional que tm por base o crescimento de uma fuso entre as

estruturas nacionais e internacionais, principalmente no mbito do direito

criminal, h uma hibridizao desses sistemas.

, por exemplo, o caso dos painis especiais criados pela Autoridade

Transitria das Naes Unidas para Timor-Leste67, o Tribunal Especial para

a Serra Leoa68, ou os Tribunais semelhantes que foram propostos para os

casos do Iraque69, Camboja70, Repblica Democrtica do Congo71, Lbano72 ou

Kosovo73.

Para Burke-White74, a existncia destes tribunais s refora a ideia de

governao global multinvel que defende, combinando instncias nacionais

com instncias internacionais, o que equilibra a unidade no ordenamento

jurdico internacional e afasta a fragmentao existente.

Em suma, Burke-White um acrrimo defensor de que o que melhor define

o sistema judicial internacional em que vivemos atualmente a oposio da

66 Koch Jr., Charles H., Judicial Dialogue for Legal Multiculturalism, Michigan Journal of

International Law, Vol. 25, 2004, pp. 879. 67 United Nations Transitional Authority of East Timor, UNTAET/REG/2000/15, Organizao

das Naes Unidas, 2000. 68 Statute of the Special Court for Sierra Leone, disponvel em

http://www.sierraleone.org/specialcourtstatute. 69 Statute of the Iraqi Special Tribunal for Crimes Against Humanity, 2003, disponvel em

http://www.cpa-iraq.org/humanrights/statute. 70 Law On The Establishment Of Extraordinary Chambers In The Courts Of Cambodia For

The Prosecution Of Crimes Committed During The Period Of Democratic Kampuchea, 2004,

disponvel em

https://www.eccc.gov.kh/sites/default/files/legal-

documents/KR_Law_as_amended_27_Oct_2004_Eng.pdf 71 A existncia deste tribunal j foi discutida pelos autores e pelas foras polticas diversas

vezes, mas acabou por ainda no ter sido criado, at data. 72 Statute of the Special Tribunal for Lebanon, disponvel em https://www.stl-

tsl.org/en/documents/statute-of-the-tribunal/223-statute-of-the-special-tribunal-for-lebanon. 73 Tribunal ainda em processo de criao, tendo entrado em vigor a 1 de janeiro de 2017 o

acordo com o estado holands para instalao no seu territrio do sistema de justia

internacional, composto por Specialist Chambers e um Specialist Prosecutors Office. Para

desenvolvimento da questo, cfr. Kosovo Specialist Chambers & Specialist Prosecutors Office,

disponvel em https://www.scp-ks.org/en. 74 BURKE-WHITE, William W., International Legal Pluralism, Michigan Journal of

International Law, 2004, Vol.25, pp. 963 e ss.

http://www.sierraleone.org/specialcourtstatutehttp://www.cpa-iraq.org/humanrights/statutehttps://www.eccc.gov.kh/sites/default/files/legal-documents/KR_Law_as_amended_27_Oct_2004_Eng.pdfhttps://www.eccc.gov.kh/sites/default/files/legal-documents/KR_Law_as_amended_27_Oct_2004_Eng.pdfhttps://www.stl-tsl.org/en/documents/statute-of-the-tribunal/223-statute-of-the-special-tribunal-for-lebanonhttps://www.stl-tsl.org/en/documents/statute-of-the-tribunal/223-statute-of-the-special-tribunal-for-lebanonhttps://www.scp-ks.org/en

37

fragmentao aos exemplos de unidade e coerncia, fazendo com que

tenhamos um sistema que s pode ser descrito como pluralista, que aceita

uma diversidade de hipteses, igualmente legtimas, provenientes de

governos nacionais e sistemas de justia internacional, sempre num contexto

de um sistema universal, o que vai de encontro ao relatrio apresentado pela

Comisso de Direito Internacional, em 200675.

2.5. Concluses

neste sentido que assenta a nossa posio, porquanto reconhecer a

diversidade do sistema ser, assim, a melhor forma de o fazer funcionar,

respeitando as diferenas de cada sistema de justia internacional e tornando

o ordenamento jurdico internacional mais eficaz e legitimado atravs do

dilogo entre instncias e entre utilizadores dos diversos sistemas de justia

internacional, conduzindo a uma alternativa poderosa de desenvolvimento

dos sistemas de justia internacional e do Direito Internacional Pblico em si.

Apesar dos riscos da proliferao dos sistemas de justia internacional, e

da possibilidade de que se desvirtue a essncia do poder judicial com a

multiplicao de instncias, nossa opinio que com a aplicao das solues

corretas para a articulao entre os diferentes sistemas de justia

internacional seja possvel filtrar as vantagens dessa proliferao e contribuir

para um pluralismo esclarecido no ordenamento jurdico internacional.

75 Fragmentation of International law: Difficulties arising from the Diversification and

Expansion of International Law, Relatrio do Grupo de Estudo da Comisso de Direito

Internacional, 58 Sesso da Comisso de Direito Internacional, 2006.

38

III. A articulao dos diferentes sistemas de justia

internacional, a nvel universal, a nvel universal e regional,

e a nvel regional strictu sensu

Como se exps na primeira parte da presente monografia, nas ltimas trs

dcadas, o nmero de sistemas de justia internacional aumentou

consideravelmente, por um leque de razes que j se explorou

exaustivamente, o que resulta num ordenamento jurdico internacional

plural, repleto de instncias especializadas em diferentes matrias.

Mas como se articula esta multiplicidade de sistemas de justia

internacional? Esta a questo que orienta este trabalho e a que cumpre

fornecer uma resposta to cabal quanto possvel.

Com o dever dos sistemas de justia internacional de julgarem os litgios

submetidos sua jurisdio a apresentar-se como uma questo cada vez mais

inegvel, quase consubstanciando, na nossa opinio, um verdadeiro dever de

non liquet, urgente compreender os seus fundamentos de deciso e a forma

como se articularo os diferentes sistemas num campo sem qualquer tipo de

hierarquia.

sobre esta temtica que se debruar a prxima parte da presente

dissertao, analisando a forma de articulao entre o Tribunal Internacional

de Justia e os tribunais universais de competncia especializada (em

especial, a sua articulao com o Tribunal Penal Internacional), a articulao

entre o Tribunal Internacional de Justia e o Tribunal de Justia da Unio

Europeia, e por ltimo, a articulao do Tribunal de Justia da Unio

Europeia com o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no se analisando

mais sistemas de justia internacional por respeito sntese exigvel a este

tipo de dissertao.

39

3.1. A articulao do Tribunal Internacional de Justia com os

restantes tribunais de jurisdio universal

3.1.1. A articulao do Tribunal Internacional de Justia

com os tribunais de competncia especializada

O Tribunal Internacional de Justia o rgo jurisdicional mximo do

sistema das Naes Unidas e, por muito tempo, foi o rgo de resoluo de

conflitos entre Estados por excelncia.

Com efeito, com a criao dos diversos sistemas de justia internacional

especializados em razo da matria, na dcada de 90, e a maior utilizao do

sistema arbitral, o Tribunal Internacional de Justia foi, paulatinamente,

perdendo alguma importncia.

Com efeito, embora seja patente o aumento do nmero de casos

submetidos ao Tribunal Internacional de Justia, tambm um facto que, nos

ltimos anos, o recurso arbitragem como ferramenta de resoluo de litgios

tem-lhe retirado algum protagonismo, o que nas palavras de Nikolaos

Lavranos, revela uma forte transio [] from a power-based towards rule-

based dispute resolution []76.

No obstante, o facto que, como afirma Yuval Shany77, quase todos os

conflitos que caiam no mbito material dos diversos sistemas de justia

internacional de competncia especializada poderiam, teoreticamente, ser

alvo de apreciao pelo Tribunal Internacional de Justia, se no da mesma

maneira, pelo menos a nvel incidental, como foi o caso da situao na ex-

Repblica da Jugoslvia78 contraposto com o caso de responsabilidade

internacional j analisado aquando do julgamento da atuao das foras

militares e paramilitares na Nicargua79, exposto infra.

76 LAVRANOS, Nikolaos, On the need to regulate competing jurisdictions between

international courts and tribunals, European University Institute, Max Weber Programme,

2009/14, ISSN 1830-7728. 77 SHANY, Yuval, Regulating Jurisdictional Relations between national and international

courts, OUP, 2007. 78 Tadic, Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslvia, julgamento de 15 de julho de

1999, IT-94-1-A, disponvel em http://www.un.org/icty/cases-e/index-e.htm. 79 Case Concerning Military And Paramilitary Activities In And Against Nicaragua -

Nicaragua vs US, Tribunal Internacional de Justia, julgamento de 27 de junho de 1986,

disponvel em http://www.icj-cij.org/docket/files/70/6503.pdf.

http://www.un.org/icty/cases-e/index-e.htmhttp://www.icj-cij.org/docket/files/70/6503.pdf

40

Isto faz com que a jurisdio potencial do Tribunal Internacional de

Justia seja to alargada, nas palavras de Shany, que v para alm do que

resultaria se todas as matrias de competncia especializada dos diversos

complexos jurisdicionais fossem objeto de agregao.

No entanto, este problema da concorrncia entre o rgo de jurisdio

de tipo universal por excelncia e os restantes sistemas de justia

internacional , como expe Shany, mitigado pelos diferentes requisitos que

preenchem o locus standi de cada tribunal especializado, uma vez que o

Tribunal Internacional de Justia s aprecia disputas entre Estados, com

exceo da apreciao indireta de casos de indivduos por via da proteo

diplomtica80.

Mais ainda, como nos ensina Shany, no que toca s disputas que

envolvam organizaes internacionais, ainda mais improvvel que estas no

sejam alvo de concorrncia entre o sistema judicial do Tribunal Internacional

de Justia e os restantes sistemas de competncia especializada em razo da

matria, uma vez que este instituto da proteo diplomtica j no se aplica

da mesma maneira que se aplica aos particulares, restringindo as vias de

proteo jurisdicional.

A concorrncia entre o Tribunal Internacional de Justia e os restantes

sistemas de competncia especializada em razo da matria tem, assim, uma

importncia acrescida nas reas onde h disputas entre Estados, como o

caso do mbito de jurisdio material do Tribunal Internacional de Direito do

Mar, que pode conflituar diretamente com o mbito de jurisdio do Tribunal

Internacional de Justia, apesar da sua competncia especializada, uma vez

que no h nenhuma norma que retire estas matrias do mbito geral do

direito internacional, como confirmam os artigos 287 e 288 da Conveno de

Montego Bay.

80 [] taking up the case of one of its nationals, by resorting to diplomatic action or

international judicial proceedings on his behalf, a State is in reality asserting its own right,

the right to ensure in the person of its nationals respect for the rule of international law [],

SHANY, Yuval, Regulating Jurisdictional Relations between national and international

courts, OUP, 2007, pp. 35, Nota n.20.

41

3.1.2. A articulao do Tribunal Internacional de Justia

com o Tribunal Penal Internacional

Depois desta anlise, seria fcil concluirmos que a relao do Tribunal

Internacional de Justia com o Tribunal Penal Internacional, por terem

ambos uma competncia ratione personae diferente, no aparente ser,

primeira vista, problemtica de qualquer forma.

De facto, efetivamente o que a prtica sugere.

No entanto, h um certo segmento da competncia em razo da matria

deste tribunal que, na nossa opinio, poder levantar alguns obstculos.

Referimo-nos alnea d) do n1 do artigo 5 do Estatuto de Roma do Tribunal

Penal Internacional, que confere poder a esta instncia para julgar casos de

crimes de agresso81.

Com efeito, por fora do disposto no n2 do mesmo artigo, O Tribunal

poder exercer a sua competncia em relao ao crime de agresso desde que,

nos termos dos artigos 121. e 123., seja aprovada uma disposio em que se

defina o crime e se enunciem as condies em que o Tribunal ter competncia

relativamente a este crime. Tal disposio deve ser compatvel com as

disposies pertinentes da Carta das Naes Unidas82.

Esta disposio complementar, contudo, s veio a ser aprovada em

2010, atravs da Resoluo RC/RES.683, adotada pela Conferncia de Reviso

do Estatuto de Roma de 11 de junho de 2010, em Kampala.

De facto, esta resoluo concedeu finalmente uma definio de

agresso, mas colocou a jurisdio plena sobre esta matria por parte do

81 1 - A competncia do Tribunal restringir-se- aos crimes mais graves que afectam a comunidade internacional no seu conjunto. Nos termos do presente Estatuto, o Tribunal ter

competncia para julgar os seguintes crimes:

a) O crime de genocdio;

b) Os crimes contra a Humanidade;

c) Os crimes de guerra;

d) O crime de agresso.,

in Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, disponvel em

http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/tpi-

estatuto-roma.html. 82 Cfr. art. 5 do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, disponvel em

http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/tpi-estatuto-

roma.html. 83 Resoluo disponvel em https://treaties.un.org/doc/source/docs/RC-Res.6-ENG.pdf

http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/tpi-estatuto-roma.htmlhttp://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/tpi-estatuto-roma.htmlhttp://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/tpi-estatuto-roma.htmlhttp://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/tpi-estatuto-roma.htmlhttps://treaties.un.org/doc/source/docs/RC-Res.6-ENG.pdf

42

Tribunal Penal Internacional pendente de deciso entre as partes para

ativao da jurisdio do TPI nesta matria, apenas aps o dia 1 de Janeiro

de 2017, o que at data no ocorreu.

Assim, por fora do artigo 8 bis do Estatuto de Roma do Tribunal Penal

Internacional:

[] crime of aggression means the planning, preparation, initiation or

execution, by a person in a position effectively to exercise control over or to

direct the political or military action of a State, of an act of aggression which,

by its character, gravity and scale, constitutes a manifest violation of the

Charter of the United Nations.

2. For the purpose of paragraph 1, act of aggression means the use of armed

force by a State against the sovereignty, territorial integrity or political

independence of another State, or in any other manner inconsistent with the

Charter of the United Nations. Any of the following acts, regardless of a

declaration of war, shall, in accordance with United Nations General

Assembly resolution 3314 (XXIX) of 14 December 1974, qualify as an act of

aggression []

Mas levanta-se a questo ser este conceito identificvel com o

conceito de agresso da Carta das Naes Unidas e da jurisprudncia do

Tribunal de Justia Internacional?

Por um lado, o n2 do artigo 8 bis, ao incorporar a Resoluo 3314 da

Assembleia Geral das Naes Unidas84, exerce uma espcie de deferncia a

este sistema judicial, identificando o conceito de agresso e uso ilcito da fora

com o da Organizao das Naes Unidas e, neste ponto, torna-se uma

emenda ao Estatuto louvvel, que contribui para uma melhor coerncia entre

os dois sistemas.

No entanto, por outro lado, o elenco do artigo 8 bis no nos parece ser

taxativo85, com a utilizao do vocbulo shall, deixando em aberto a hiptese

84 Resoluo n3314 da Assembleia Geral das Naes Unidas, disponvel em

http://legal.un.org/avl/ha/da/da.html. 85 Any of the following acts [] shall [] qualify as an act of agression - n2 do artigo 9 do

Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, verso original em lngua inglesa

disponvel em

http://legal.un.org/avl/ha/da/da.html

43

da qualificao de outros atos de agresso por parte do Tribunal Penal

Internacional, o que faz com que o risco de contradio no esteja eliminado.

3.2. A articulao do sistema de justia internacional universal

do Tribunal Internacional de Justia com o sistema de

justia regional do Tribunal de Justia da Unio Europeia

semelhana do que afirmava para a relao entre os tribunais de

competncia especializada e o Tribunal Internacional de Justia, Yuval

Shany86 defende que qualquer disputa que caia na jurisdio de um sistema

judicial regional poderia, em teoria, ser submetido ao Tribunal Internacional

de Justia.

O oposto, todavia, j no ser verdade, dada a delimitao to restrita

destes corpos judiciais, tanto ratione materiae, como a nvel geogrfico, bem

como dada a existncia de clusulas de exclusividade de jurisdio, como

exemplo o art. 273 do TFUE87.

No entanto, o problema das jurisdies sobrepostas88 no deixa aqui

de se aplicar, agravado pelo papel dominante dos particulares e das

organizaes internacionais na litigncia destes tribunais e pela aceitao,

grosso modo, por parte destes sistemas de justia regional, do sistema de

justia universal onusiano.

Isto faz com que seja fcil esperar que questes similares possam ser

discutidas perante o Tribunal Internacional de Justia e outras instncias

https://www.icc-cpi.int/nr/rdonlyres/ea9aeff7-5752-4f84-be94-

0a655eb30e16/0/rome_statute_english.pdf. 86 SHANY, Yuval, Regulating Jurisdictional Relations between national and international

courts, OUP, 2007. 87 O Tribunal de Justia competente para decidir sobre qualquer diferendo entre os

Estados-Membros, relacionado com o objeto dos Tratados, se esse diferendo lhe for