a compreensÃo do luto sob o olhar da gestalt-terapia
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
CAMPUS ARAPIRACA
UNIDADE EDUCACIONAL DE PALMEIRA DOS ÍNDIOS
CURSO DE PSICOLOGIA
RICHARD ALEXANDRE NUNES
WILLYANNE GOMES FIRMINO
A COMPREENSÃO DO LUTO SOB O OLHAR DA GESTALT-TERAPIA
PALMEIRA DOS ÍNDIOS
2020
RICHARD ALEXANDRE NUNES
WILLYANNE GOMES FIRMINO
A COMPREENSÃO DO LUTO SOB O OLHAR DA GESTALT-TERAPIA
Trabalho de Conclusão de Curso – TCC apresentado
ao Curso de Graduação em Psicologia da Unidade
Educacional de Palmeira dos Índios do Campus
Arapiraca da Universidade Federal de Alagoas –
UFAL para a obtenção do título de Formação em
Psicologia.
Orientadora: Profª. Ma. Fernanda Cristina Nunes
Simião.
PALMEIRA DOS ÍNDIOS
2020
Catalogação na fonte
Universidade Federal de Alagoas
Biblioteca Unidade Palmeira dos Índios
Divisão de Tratamento Técnico
Bibliotecária Responsável: Kassandra Kallyna Nunes de Souza (CRB-4: 1844)
N972c Nunes, Richard Alexandre A compreensão do luto sob o olhar da Gestalt-terapia/ Richard
Alexandre Nunes; Willyanne Gomes Firmino, 2020.
74 f.
Orientadora: Fernanda Cristina Nunes Simião.
Monografia (Graduação em Psicologia) – Universidade Federal de
Alagoas. Campus Arapiraca. Unidade Educacional de Palmeira dos Índios. Palmeira dos Índios, 2020.
Bibliografia: f. 70 – 74
1. Psicologia. 2. Gestalt-terapia. 3. Luto. 4. Morte. I. Firmino,
Willyanne Gomes. II. Simião, Fernanda Cristina Nunes. III. Título. CDU: 159.9
RICHARD ALEXANDRE NUNES
WILLYANNE GOMES FIRMINO
A COMPREENSÃO DO LUTO SOB O OLHAR DA GESTALT-TERAPIA
Trabalho de Conclusão de Curso – TCC
apresentado à Banca Examinadora para
obtenção do Grau de Formação em Psicologia
no Curso de Graduação em Psicologia da
Unidade Educacional de Palmeira dos Índios
do Campus Arapiraca da Universidade Federal
de Alagoas – UFAL.
Data da aprovação: 06/02/2020.
Banca Examinadora
AGRADECIMENTOS
Richard Alexandre Nunes
Durante todo esse percurso, algumas pessoas estiveram presentes em minha vida e
tornaram toda essa caminhada mais leve, prazerosa e suportável nos momentos difíceis. Para
além disso, meu guia e companheiro de todas as horas foi uma figura amorosa, presente e
acolhedora: agradeço a Deus por me fazer refletir sobre o amor, o cuidado, a aceitação e a
diversidade de ser-no-mundo.
Agradeço aos meus familiares por terem sempre me incentivado e auxiliado no
processo de ensino/aprendizagem e por estarem ao meu lado, lembrando sempre que não
estou sozinho. Ao meu pai, Ramilson, que é um exemplo de luta e superação; à minha mãe,
Nedivânia, que é a mulher mais forte e corajosa que conheço, obrigado por todo cuidado,
afeto e por todas as ligações para conferir como estou; à tia Nádja, pelo incentivo a ler e a
conhecer o universo literário; à tia Naédja, obrigado por me receber na sua casa e por cuidar
de mim com amor e zelo; à Vovó Salete, que, além de também me receber, acordava às 5 da
manhã para fazer café, me desejar boa viagem e ida à universidade e me encher de afeto.
Essas boas influências me tornaram o homem que sou, atraído pelas artes, por conhecimento,
pelo desejo de sempre aprender e ser uma pessoa melhor.
Ao sair de casa, o medo de não se ter um novo lar – entenda-se, aqui, alguém para
contar – é gigante, sou grato por não saber como é se sentir assim. Anne Karolyne, Gustavo
Alberto, Lidiane Costa, Hemile Dantas, Leukarty Ronniery, Kassandra Kallyna, Jadiel
Cartola, João Vitor, Beatriz Cedraz, Joanir Queiroz, Romário Araújo e Rodrigo Dantas,
obrigado por serem família e por todo o amor e acolhimento.
Desses bons amigos, agradeço em especial a duas mulheres que dividiram dias, afetos,
responsabilidades e dívidas comigo. Hemile, a intimidade e amizade que construímos estarão
presentes em toda minha vida. Tenho saudade de bater em sua porta de 5 em 5 minutos
querendo mostrar uma coisa boba (porém, empolgante) que vi na internet, num livro, numa
série, em um clipe. Como também sou grato por todas as conversas, lamentações, conquistas,
brejas, festas, faxinas e risadas que demos juntos. Karol, compartilhar com você os dias de
graduação e, mais recentemente, o nosso lar, foi uma das melhores coisas que me aconteceu
nesses últimos anos. Minha admiração por ti, que começou lá em 2012, continua a crescer.
Sou feliz por (r)existir ao seu lado, por aprender contigo, por dividir as refeições e limpezas
diárias, pelos bons filmes, séries e músicas compartilhados nos nossos dias, pelos vinhos e
conversas (geralmente carregadas de lágrimas) que tivemos em cada canto de nossa casa
(inclusive na cozinha). Essas duas mulheres que tenho e tive o prazer de ver (quase todos os
dias) carregam consigo muita beleza e força! E com vocês aprendo a ser um homem e um
amigo/irmão melhor, gratidão!
Sou grato ao meu companheiro, Alcides, por todo amor, suporte, paciência e cuidado.
Você me engrandece e me torna uma pessoa melhor a cada dia. Obrigado por ser luz!
Aos professores, pela aprendizagem e por me inspirarem a ser um profissional tão
competente quanto vocês são. Gratidão: Fernanda Simião, Flávia Ribeiro, Antônio César,
Lidiane Barbosa, Carol Padilha, Danielle Nóbrega, Adalberto Duarte e Saulo Luders.
À Willyanne, por todas as boas conversas e pelo companheirismo.
À nossa orientadora, professora Fernanda Simião, por todos os ensinamentos, pelo
acolhimento e pelos bons momentos partilhados. Desde o início da graduação e durante todo
meu trajeto terei você como referência de pessoa e profissional.
À banca, composta por mulheres incríveis, que marcaram de forma memorável o
caminho que percorri até aqui. Fernanda, Carol e Lidiane, vocês, de forma marcante e
singular, a cada contato, me motivaram a ser um profissional implicado, competente, humilde
e capaz.
Por fim, gratidão a todos que acreditaram e se fizeram presentes, direta ou
indiretamente, nessa caminhada!
AGRADECIMENTOS
Willyanne Gomes Firmino
Por muito tempo sonhei, desejei e também cheguei a não acreditar que conseguiria
vivenciar este momento, o fechamento de ciclo de vida tão importante e significativo, que
sempre será motivo de felicidades, conquistas, aprendizados, evolução pessoal, angústias,
inquietações e ressignificações processuais. Sou muito grata à oportunidade de ter uma
formação que me possibilitou compreender a minha vivência acadêmica por uma ótica que vai
além do tempo cronológico predeterminado, sendo esta experiência no meu tempo vivencial,
tornando-se um momento único.
Sou extremamente grata à minha mãe, Vilma, por ser sempre presente e me apoiar em
todas as decisões durante a minha vida, sem ter medido esforços para me ver feliz. Agradeço
também aos meus irmãos, Wallyson Antônio e Willyam Gomes, por serem companheiros em
todo momento desta caminhada da vida. gratidão às minhas avós, Marinita e Silvina, por se
dedicarem cuidando e colaborando na minha educação e formação pessoal.
Não poderia deixar de agradecer ao meu avô paterno, Lourenço (in memoriam), que
exerceu em minha vida o papel fundamental de pai e cuidador. Também sou muito grata ao
meu avô materno, Cícero (in memoriam), que me ensinou o quanto é importante a leveza da
vida nos momentos sombrios.
Sou grata aos meus tios e primos, Ivan, Genivaldo, Lisandra, Nilma, Nathalia, Nataly,
Thayná e Genivaldo Júnior, que contribuíram diretamente nesta caminhada acadêmica,
proporcionando todo apoio e compressão.
Ao meu sempre e amado amigo, Fernando (in memoriam), que teve sua passagem
breve em minha vida, mas marcante e única, só tenho a agradecer pela amizade inesquecível.
Aos amigos que a Psicologia me deu de presente, em especial, Valéria Fernanda,
Thayne Lessa, Karen Nicoli, José Ataídes, Raul Brito, Hellen Oliveira, Vanessa Alves,
Isabella Costa, Aymê Fernanda, Rodrigo Dantas e Kassandra Kallyna, aos quais tenho um
maior carinho por transformar essa caminhada mais leve e prazerosa.
À Amanda Brandão, por todo incentivo e confiança, especialmente enquanto pensava
em desistir, suas palavras me fortaleciam e me faziam seguir em frente. Obrigada por toda
paciência, companheirismo e compreensão, você sempre será um pessoa incrível.
Aos professores que tive o prazer de conhecer e que tanto me inspiraram
profissionalmente: Nádia Milena, Flávia Ribeiro, Cássia Castro, Caroline Padilha, Fernanda
Simião, Danielle Nóbrega, Lidiane Barbosa, Augusta, Antônio César e aos outros que
contribuíram com a minha formação.
Em especial, sou grata à minha supervisora de estágio, Cássia Castro, por ter me
ouvido, acolhido e ensinado a reconhecer minhas potencialidades. Sou grata por todos os
momentos vivenciados ao seu lado. Você é uma das pessoas mais lindas e iluminadas que tive
o prazer de conhecer.
Ao Richard, pelo companheirismo e conversas na construção deste trabalho.
Por fim, agradeço à nossa orientadora, Fernanda Simião, por toda paciência,
disponibilidade e aprendizado que compartilhou neste fechamento de ciclo.
- eu soube que a menina que morreu era amiga sua.
- a carla.
- e você tá se sentindo como?
-
Sozinha.
quando ela volta, seu luís?
(ele tirou os óculos
de novo.
o olho de pedra
me assustou um pouco
menos)
- ela não volta.
quer dizer,
ela só volta dentro de nós toda vez que alguém pensar nela.
fora, nunca mais.
Aline Bei
(O peso do pássaro morto, 2017)
RESUMO
Este trabalho teve como objetivo geral analisar como a Gestalt-terapia compreende o processo do luto
e suas formas de enfrentamento. Para isso, como objetivos específicos, buscamos, inicialmente,
identificar as principais teorias que discutem o luto, a perda e a morte; em seguida, apresentar os tipos
de luto; e, por fim, analisar artigos científicos que discutam sobre o luto a partir do olhar da Gestalt-
terapia. Iniciamos discorrendo sobre os fenômenos luto, perda e morte e suas ramificações
socioculturais, que, por serem fenômenos norteadores, estarão presentes em toda discussão crítica
deste trabalho. Dissertamos sobre a Gestalt-terapia e sua compreensão de homem e mundo, o que
possibilitou assimilar uma compreensão dos fenômenos em estudo de forma singular, como também
proporcionou um entendimento tangível da temática em tela. No que se refere aos aspectos
metodológicos, trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo e bibliográfico, na qual realizamos um
levantamento de produções acerca do assunto em estudo através de pesquisas na base de dados Google
Acadêmico. Para a nossa análise, selecionamos 4 artigos científicos em português publicados no
período de 2017 a 2019, utilizando como método de análise a análise de conteúdo de Bardin, a partir
da qual elaboramos três categorias: 1) A morte e a perda são vivências singulares e culturais; 2) Tipos
de luto (saudável/funcional e não-saudável/disfuncional); e 3) O processo singular do luto. Dentre os
nossos resultados, apresentamos a distinção existente entre o luto normal e o luto complicado,
percebendo que o que os separa são sutis fatores que devem ser avaliados de forma coerente, precisa e
individual, compreendendo também que esse processo não será vivenciado a partir de fases lineares
e/ou com características prenunciadas. A partir das reflexões geradas, entendemos que este trabalho
ofereceu uma importante e imprescindível discussão, principalmente por se tratar de um tema sensível
e comumente evitado e/ou negligenciado. Dessa forma, possibilitou-nos uma reflexão sobre os
fenômenos luto, perda e morte, nos colocando diante de nós mesmos enquanto pessoas e profissionais
propensos a ressignificar nossa praxe ao contatar estes fenômenos. Obtivemos também uma nova
concepção do processo de enlutamento, entendo-o como um processo único, singular e dotado das
mais variadas possibilidades e formas de vivenciá-lo. Por fim, destacamos que esta leitura se apresenta
como significativa para estudantes, profissionais e familiares/cuidadores que buscam ter uma visão
crítica acerca dos fenômenos discutidos e, principalmente, sobre o processo do luto e seus
desdobramentos.
Palavras-chave: Psicologia. Gestalt-terapia. Luto. Perda. Morte.
ABSTRACT
This work aims to analyze how Gestalt-therapy deals with the grieving process and its ways of coping
it. For this, as specific objectives, we initially seek to identify the main theories that discuss mourning,
loss and death; then we present the types of mourning; and, finally, analyze scientific articles that
discuss mourning from the perspective of Gestalt-therapy. We begin by discussing the phenomena of
mourning, loss and death and their sociocultural ramifications, which, as guiding phenomena, will be
present in every critical discussion of this work. We discussed about Gestalt-therapy and its vision of
man and world, which made it possible to understand the phenomena under study in a unique way, as
well as providing a tangible perspective of this subject. Regarding to methodological aspects, it is a
qualitative and bibliographic research, in which we carry out a survey of productions on the subject
under study through searches in the Google Scholar database. For our analysis, we selected 4 scientific
articles in Portuguese, published from 2017 to 2019, using Bardin's content analysis as the method of
analysis, from which we elaborated three categories: 1) Death and loss are singular cultural
experiences; 2) Types of mourning (healthy/functional and unhealthy/dysfunctional); and 3) The
singular process of mourning. Among our results, we present the distinction between normal and
complicated mourning, realizing that what separates them are subtle factors that must be evaluated in a
coherent, precise and individual way, also understanding that this process will not be experienced from
linear phases and/or with predicted characteristics. From the reflections generated, we understand that
this work offered an important and essential discussion, mainly because it is a sensitive and commonly
avoided and/or neglected topic. In this way, it enabled us to reflect on the phenomena of mourning,
loss and death, placing us in front of ourselves as people and professionals prone to reframe our
practice when contacting these phenomena. We also obtained a new conception of the mourning
process, understanding it as a unique, singular process and endowed with the most varied possiblilities
and ways of experiencing it. Finally, we highlight that this work presents itself as significant for
students, professionals and family members/caregivers who seek to have a critical view about the
phenomena discussed and, mainly, about the grieving process and its consequences.
Keywords: Psychology. Gestalt therapy. Mourning. Loss. Death.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 11
2 LUTO, PERDA E MORTE: O SILENCIAMENTO DESSES PROCESSOS NA
SOCIEDADE OCIDENTAL 15
2.1 O Luto e suas Possibilidades de Vivência 22
2.1.1 Principais Teorias sobre o Luto 23
2.1.2 Formas de Enfrentamento do Luto: do Luto Saudável ao Luto Complicado 27
3 GESTALT-TERAPIA E SUA COMPREENSÃO DE HOMEM E MUNDO 32
4 METODOLOGIA, ANÁLISE E DISCUSSÃO: AS CONTRIBUIÇÕES DA
GESTALT-TERAPIA PARA A COMPREENSÃO DA VIVÊNCIA DO LUTO
COMO UM PROCESSO SINGULAR
46
4.1 A Morte e a Perda são Vivências Singulares e Culturais 52
4.2 Tipos de Luto (saudável/funcional e não-saudável/disfuncional) 56
4.3 O Processo Singular do Luto 61
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 68
REFERÊNCIAS 70
11
1 INTRODUÇÃO
Esta pesquisa teve como propósito compreender o luto sob o olhar da Gestalt-terapia,
analisando como esta abordagem lida com os processos de enlutamento, além de refletir
também sobre como é possível intervir com pessoas em sofrimento e/ou desorganização
decorrentes de uma perda significativa.
Tivemos como objetivo geral analisar como a Gestalt-Terapia compreende o processo
do luto e suas formas de enfrentamento. Para isso, como objetivos específicos, buscamos
inicialmente, identificar as principais teorias que discutem sobre o luto, a perda e a morte; em
seguida, apresentar os tipos de luto; e, por fim, analisar artigos científicos que discutam sobre
o luto a partir do olhar da Gestalt-terapia.
O interesse em realizar este estudo surgiu dos nossos contatos com pessoas que
carregavam consigo perdas marcantes e desestabilizadoras. Estes contatos ocorreram durante
vivências em nossos estágios, ambos ofertados pelo Curso de Psicologia da Unidade
Educacional de Palmeira dos Índios da Universidade Federal de Alagoas, que foram: o
Estágio Básico 1 na Clínica de Doenças Renais do Hospital Regional Santa Rita, em Palmeira
dos Índios; e o Estágio Específico 1 e 2 na Clínica-Escola de Psicologia do curso. A partir
dessas experiências, tivemos a possibilidade de perceber o luto como inerente à condição
humana, sendo um fenômeno sensível, que necessita de cuidado ao manejá-lo.
Além disso, a necessidade de falar sobre essa temática surgiu a partir dos nossos
processos e vivências pessoais com o luto, a perda e a morte, como também do desejo de
aprofundar muitas das nossas inquietações no contexto teórico-vivencial. Assim, essa
temática também fala de nossa existência, das nossas relações com as perdas, dos nossos
momentos frente à finitude, remetendo àqueles que se foram, mas que continuam presentes
nas nossas histórias e lembranças – essas pessoas implicam diretamente no nosso tema e
interesse por esta discussão, como também na forma que passamos a enxergar as nossas vidas.
O decorrer da realização dessa pesquisa nos possibilitou refletir sobre os fenômenos
do luto, da perda e da morte, nos colocando diante de nós mesmos enquanto pessoas e
profissionais propensos a ressignificar nossa praxe ao contatar esta realidade. Tivemos a
intenção de proporcionar crescimento e expandir a discussão sobre esta temática, visto a
dificuldade de falar sobre estes fenômenos, lembrando-nos também da relevância de estarmos
12
sempre nos atualizando e nos apropriando destas questões tão presentes em nossas vidas e
futuras práticas profissionais.
Sobre isso, Safra (2018, p. 10-11) nos chama atenção ao apontar que
No mundo contemporâneo, lidar com as situações de perda e com a morte
torna-se mais difícil, pois viver está subordinado à produção, ao imediato, à
imagem estética bidimensional, o que eclipsa o sentido da vida humana. A experiência de transcendência fica como que esquecida e estancada. O
indivíduo, sentindo-se uma peça na cadeia de produção, enxerga-se como
inútil; sua vida lhe parece cinza. O resultado é o aparecimento de uma crise
de identidade, acompanhado de depressão e de tédio, sem a possibilidade de vislumbrar um sentido último para a existência – o que torna o morrer
semelhante à experiência de aniquilação de si.
O luto pode ser definido e compreendido a partir de diversas teorias e áreas de
conhecimento, tais como: a teoria psicanalítica de Sigmund Freud, com a obra Luto e
Melancolia; a Teoria da Vinculação ou do Apego de John Bowlby; as cinco fases/estágios do
luto de Elisabeth Kübler-Ross; o Modelo do Processo Dual do Luto de Stroebe e Schut;
dentre outras. No entanto, esclarecemos que esta pesquisa terá como base o referencial teórico
da Gestalt-terapia, considerando seus fundamentos filosóficos, teóricos e principais conceitos.
Assimilando desta forma, o que há de comum entre elas é o entendimento deste processo
como natural e presente em toda existência humana, visto que, desde o nosso nascimento até a
nossa morte, existem demasiadas perdas e rompimentos, como expõe Alves (2018, p. 170):
O luto é o dolorido processo de elaboração dessa perda e, segundo Parkes
(1998), compõe a pior experiência do ser humano durante toda sua
existência. Sempre que houver perda ou rompimentos significativos, haverá luto. O luto não tem tempo definido: ele é único, individual e subjetivo.
Depende do vínculo estabelecido com aquilo que foi perdido, do lugar que
essa perda ocupa na vida da pessoa, das experiências e ferramentas internas
de cada um para enfrentar frustações, entra outras características individuais. O luto é um processo natural, saudável e necessário. Não é doença.
Vivenciar a dor colabora com o fortalecimento para seguir em frente.
No que diz respeito aos aspectos metodológicos, esta pesquisa foi desenvolvida com
base no método qualitativo e bibliográfico, tendo como objetivo realizar um levantamento de
materiais que discutissem sobre o nosso tema de interesse, os quais foram analisados a partir
do método da análise de conteúdo de Laurence Bardin (2004).
13
Para isso, realizamos buscas na base de dados Google Acadêmico, utilizando os
descritores “Luto e Gestalt-terapia” e “Luto sob o olhar gestáltico”. Como resultado do
processo de busca, filtragem e seleção do material a ser analisada, determinamos como
critério de inclusão para a seleção das publicações a serem analisadas neste trabalho artigos
científicos em português, publicados no período de 2017 a 2019, que tivessem a Gestalt-
terapia como referencial teórico (ou uma das suas bases filosóficas e teóricas) e abordassem
no título pelo menos um dos três termos: luto, perda e morte; sendo excluídos todas as demais
produções que não atendessem esse critério.
A partir disso, inicialmente, realizamos a leitura de todos os títulos das produções
resultantes das buscas na base de dados e, após este processo de filtragem, chegamos ao
número de 9 artigos científicos em português. Contudo, posteriormente, foi necessário
efetuarmos mais duas etapas de filtragem. Na primeira etapa, após a leitura dos títulos e
resumos de cada um dos 9 artigos, retiramos 4 deles por não atenderem ao objetivo de
discussão desse trabalho. E na segunda etapa, após a leitura na íntegra dos 5 artigos restantes,
fizemos mais uma filtragem, pois percebemos que somente 4 deles colaborariam de forma
satisfatória para a discussão proposta nesta pesquisa.
O processo de análise de conteúdo dos quatro artigos científicos resultou em três
categorias: 1) A Morte e a Perda são Vivências Singulares e Culturais; 2) Tipos de Luto
(saudável/funcional e não-saudável/disfuncional); e 3) O Processo Singular do Luto. A partir
das discussões presentes nestas categorias, pudemos alcançar uma maior compreensão acerca
dos fenômenos do luto, da perda e da morte e do quanto é importante termos conhecimento
sobre estas questões tão presentes na vivência humana.
Este trabalho foi estruturado em três capítulos. No primeiro capítulo (Luto, Perda e
Morte: o silenciamento desses processos na sociedade ocidental), apresentamos os conceitos
de luto, perda e morte e suas ramificações socioculturais. Tratamos ainda do luto e suas
possibilidades de vivência, além de apresentarmos as suas principais teorias e diversas formas
de enfrentamento.
No segundo capítulo (Gestalt-terapia e sua Compreensão de Homem e Mundo),
apresentamos a visão de homem e mundo da Gestalt-terapia, que é o referencial teórico
adotado neste estudo, além de discorrermos sobre os seus pressupostos filosóficos e teóricos e
principais conceitos.
14
No terceiro e último capítulo (Metodologia, Análise e Discussão: as contribuições da
Gestalt-terapia para a compreensão da vivência do luto como um processo singular),
inicialmente, apresentamos os procedimentos metodológicos percorridos nesta pesquisa, que
teve um caráter qualitativo e de cunho bibliográfico. Em seguida, explicamos como se deu o
processo de análise de conteúdo dos artigos científicos selecionados para análise. E, por fim,
expomos os nossos resultados e discussões a partir da apresentação das categorias de análise
elaboradas.
Ao final deste trabalho, apresentamos as considerações finais desta pesquisa, expondo
as nossas reflexões decorrentes do contato com as atuais publicações acerca da proposta
central deste estudo: a compreensão do luto sob o olhar da Gestalt-terapia.
Portanto, com este estudo, objetivamos compreender o fenômeno do luto e suas
decorrentes possibilidades de vivenciá-lo, como também buscamos distinguir o luto normal
do luto complicado, além de entender como a Gestalt-terapia compreende e maneja o
processo de enlutamento.
15
2 LUTO, PERDA E MORTE: O SILENCIAMENTO DESSES PROCESSOS NA
SOCIEDADE OCIDENTAL
Para que possamos compreender o processo do luto, neste capítulo, discutiremos a
relação do luto com a morte e a perda, dando ênfase, inicialmente, na contextualização destes
três conceitos. Além disso, apresentaremos brevemente as diferentes formas de se conceber a
morte no contexto social e cultural. Em seguida, aprofundaremos a discussão sobre o
entendimento do que é luto e suas diversas possibilidades de vivência, sendo importante
considerar a singularidade e a história de cada pessoa. Iniciaremos a nossa discussão
abordando acerca da etimologia das palavras luto, morte e perda e os seus significados.
Segundo Ferreira (2004), no Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, o Luto tem sua
origem do latim – luctu – e seu significado está atrelado ao sentimento de dor, tristeza ou
pesar pelo falecimento de alguém. A Morte tem sua origem do latim – morte –, que se
caracteriza pelo ato de morrer, o fim da vida animal ou vegetal. A Perda tem sua origem do
latim – perdita, ‘perdida’ – sendo definida como o ato ou efeito de perder ou privação de
alguma coisa que se possuía.
Para se discutir sobre o processo de luto é necessário abordar a morte como parte
indissociável do desenvolvimento humano, assim como a vida, algo inerente à vivência dos
seres humanos. Em meio a esse esquema, vale ressaltar que o luto não deve ser compreendido
somente quando morre uma pessoa querida, mas quando perdemos algo que consideramos
importante.
Nesse sentido, conforme Silva e Secchin (2017, p. 1), “o processo de luto não começa,
necessariamente, com a morte, mas também com a possibilidade de perda que pode tornar-se
tão concreta”. Desta forma, o luto é entendido como um fechamento de um ciclo vivencial.
Em harmonia com Martins e Lima (2014, p. 4), compreendemos que:
A morte é uma realidade intrínseca e universal da existência humana. No contato com a finitude, o homem tem a oportunidade de viver de forma
plena e autêntica conseguindo extrair das adversidades grandes
oportunidades de aprendizado.
Para Kovács (2010), a morte pode ser compreendida de diversas formas. Segundo ela,
a morte biológica é representada pela suspensão completa e definitiva das funções essenciais
16
de um organismo vivo, com a cessação de respostas aos estímulos nervosos e degeneração dos
órgãos essenciais e celulares. Já a morte simbólica caracteriza-se pela perda ou ausência de
um objeto ou ser vivo importante, que apresente significado afetivo e emocional para o
sujeito.
Quando nascemos, nossa primeira perda é a zona de conforto do útero de nossas mães,
momento em que ocorre a separação entre o bebê e a mãe e temos que aprender a respirar
sozinhos e a lidar com a ausência desta, sendo este momento entendido como o primeiro
contato direto e marcante do homem com a morte simbólica. Esse processo de ausência/perda
poderá ser vivenciado de maneiras diferentes. Dessa forma, as crianças criam vários ajustes
para suprir e lidar com a ausência da mãe e a nova realidade de separação em que esta não é
mais onipresente. Assim, de acordo com Kovács (2010, p. 3), a morte está presente no
desenvolvimento humano desde o início.
Nos primeiros meses de vida a criança vive a ausência da mãe, sentindo que esta não é onipresente. Estas primeiras ausências são vividas como mortes, a
criança se percebe só e desamparada. Efetivamente não é capaz de
sobreviver sem a mãe. São, no entanto, breves momentos ou, às vezes, períodos mais longos, porém logo alguém aparece. Mas esta primeira
impressão fica carimbada e marca uma das representações mais fortes de
todos os tempos que é a morte como ausência, perda, separação, e a consequente vivência de aniquilação e desamparo.
Geralmente não associamos a morte simbólica à perda de algo importante, porém ela
está interligada à morte biológica, assim como o consequente luto, sendo todos fenômenos
universais nos quais os indivíduos estão fadados a passar em algum momento da vida. O
conceito de morte existe porque algo significativo se perdeu, um familiar, um amigo muito
próximo, o fim de um relacionamento, o rompimento de uma amizade, a perda de um objeto
de grande valor, ou finalização de um ciclo da vida. Nesse sentido, conforme Soares e Castro
(2017, p. 103), “considera-se perda tudo aquilo que tem um valor emocional paro o sujeito”.
Desta forma, Soares e Castro (2017, p. 104) afirmam que
É de conhecimento público que o luto é a tristeza que toma conta do indivíduo quando este perde um ente querido para a morte. O que muitos não
sabem é que esse mesmo estado de espírito invade não só nessas situações e
sim em qualquer condição de perda, mesmo que seja um status, um bem material ou qualquer objeto que tenha um valor sentimental na vida do
17
indivíduo. A maneira que ele vai lidar com isso vai depender da forma como
o sujeito reage frente a situações que lhe trouxeram frustrações no decorrer
da sua vida.
Ainda sobre essa questão, Martins e Lima (2014, p. 14) colocam que
As experiências de perdas são universais e não se referem exclusivamente à
morte de um ente amado, envolvem muitas circunstâncias da vida. Perde-se
também ao abandonar e ser abandonado, por escolher e renunciar deixando coisas para trás e seguindo novos caminhos. As perdas não são apenas as
separações e as partidas ao longo da vida, é também o abandono consciente
ou inconsciente de sonhos românticos, a fuga de expectativas impossíveis e inclusive o desaparecimento de um eu jovem.
Historicamente e culturalmente a morte é vista de diferentes formas ao longo do
tempo, de modo que, atualmente, coexistem diferentes formas de perceber e lidar com a
mesma. Além disso, destacamos que a singularidade ao lidar com esse fenômeno estará
sempre presente durante a discussão.
Desta forma, Magalhães e Melo (2015 apud SOARES; CASTRO, 2017) discutem que
há uma diversidade de culturas, e que cada uma tem seus próprios rituais para cuidar de seus
mortos e vivenciar a morte, todavia, embora partilhando do mesmo eixo cultural, entende-se
que serão processos únicos para cada sujeito. A perda em si será um acontecimento comum a
todos, pois perder algo é inerente a estar vivo, contudo, poderá ser expressada e vivenciada de
diferentes formas, considerando tanto as singularidades, quanto os aspectos socioculturais
envolvidos.
É importante acentuar que o foco do nosso trabalho é o luto e a compreensão de sua
vivência na sociedade ocidental. Diante dessa proposta de discussão, foi necessário fazer um
recorte histórico, mais precisamente no período da Idade Média, para termos uma visão sobre
a forma como a morte biológica era vista e enfrentada, como também o processo do luto. No
entanto, não iremos aprofundar a discussão sobre a morte e suas representações ao longo do
tempo, nem nas especificidades de como cada cultura lida com esse fenômeno, porque esta
discussão não é o foco deste trabalho.
De acordo com Ariès (1977 apud MARTINS; LIMA, 2014), por muito tempo, na
Idade Média, a sociedade ocidental celebrou a morte como um ritual de passagem necessário
para o fechamento de uma fase da vida, mesmo cercada de sofrimento e angústia, era um
18
fenômeno compreendido com naturalidade. Os funerais não eram tratados como tabu, nessa
época, eram abertos ao público, com rituais que envolviam toda a família.
Neste período, os cemitérios eram localizados nos grandes centros e eram controlados
pela igreja católica, que, por sua vez, determinava o posicionamento de cada corpo em suas
covas conforme sua posição social: era comum ter uma igreja dentro dos cemitérios e a
proximidade de onde o corpo seria enterrado indicava o prestígio da pessoa enquanto ela
estava viva, de modo que as covas das pessoas que tinham um maior prestígio social eram
próximas da igreja, enquanto os pobres eram colocados em valas comuns.
[...] Era aí que se enterravam os mortos pobres, aqueles que não pagavam os direitos elevados da inumação dentro da igreja ou debaixo dos carneiros.
Amontoavam-se em grandes fossas comuns, autênticos poços de 30 pés de
profundidade, de 5 metros por 6 metros de superfície, contendo entre 1200 a 1500 cadáveres, as mais pequenas de 600 a 700. Havia sempre uma aberta,
por vezes duas. Ao cabo de alguns anos (ou de alguns meses), quando
estavam cheias, fechavam-nas e cavavam-se outras ao lado, na parte mais remotamente escavada da galeria (ARIÈS, 1977, p. 73 apud MARTINS;
LIMA, 2014, p. 6).
Segundo Ariès (1977 apud MARTINS; LIMA, 2014), na segunda metade da Idade
Média começou a haver algumas mudanças ao se falar sobre a morte, que passou a ser um
evento íntimo à família. O corpo que antes tinha grandes funerais passou a ser colocado em
caixas de madeira e tinha seu rosto coberto, sem haver mais as grandes celebrações de
passagem. Desse modo, a cultura ocidental passou a entender a morte como um fracasso da
humanidade e não mais uma fase natural do ciclo do desenvolvimento humano.
Na Idade Moderna, século XVIII, o homem modificou sua atitude perante o fenômeno
da morte, que, nessa época, era vivenciada de forma romantizada. Como discorre Caputo
(2008, p. 77), “As igrejas deixaram de ser o local dos enterramentos, os quais passaram a
ocorrer em cemitérios, construídos nas margens da cidade, marcando assim uma dicotomia
entre vivos e mortos”. Ainda de acordo com o autor,
Na Idade Moderna, a partir do século XVIII, as atitudes do homem perante a
morte alteram-se mais uma vez, de modo que essa passa a ser romantizada e o homem desta época passa a ter complacência com a idéia da morte. O
morrer passa a ser também um momento de ruptura, no qual o homem era
arrancado de sua vida cotidiana e lançado num mundo irracional, violento e
19
cruel. Assim passa a ocorrer uma radical separação entre a vida e a morte e
uma laicização da última. (CAPUTO, 2008, p. 77)
A partir da segunda metade do século XX há uma grande mudança na compreensão da
morte, essa passa a ser “interdita”, oculta, combatida e vista como fracasso, é tida também
como um evento estranho, desconhecido e solitário, além do sofrimento vinculado a esse
fenômeno se manifestar de forma minimizada. Nesse sentido, como apresenta Caputo (2008,
p. 78),
[...] a partir da segunda metade do século XX, passa a ocorrer uma mudança
brusca, na qual a morte deixa de ser familiar e passa a ser um objeto
interdito. Um fator material importante que impulsionou esta transformação
foi a transferência do local da morte. Já não se morre em seu domicílio, no meio dos familiares, mas sozinho no hospital.
Com o passar do tempo esse tabu1 só foi crescendo, a morte era um assunto muito
delicado para ser tratado pela sociedade, com isso, qualquer artifício para fugir do assunto era
válido, pois se tratava do ponto mais frágil da humanidade: sua finitude. Nesse sentido,
segundo Prestrelo (2001, p. 1), “Na sociedade contemporânea a atitude presente é de procurar,
a qualquer custo, driblar a morte, ou retardá-la o máximo possível”.
Em contrapartida, mesmo não sendo o foco de discussão deste trabalho, sublinhamos
que em várias culturas e religiões, principalmente no oriente, a morte não é vista ou entendida
com tanto pesar e evitação (como se percebe no ocidente), sendo um ritual, considerado
natural, de passagem para outra vida ou significando o fechamento de um ciclo, ritual este
que, muitas vezes, é festejado, admirado e romantizado.
Sobre isso, Soares e Castro (2017, p. 106) afirmam que
Dentro dos diferentes contextos históricos e sociais é possível notar a
variação do significado da morte. Várias culturas usam rituais para cuidar
dos seus mortos, cada uma a enxerga de uma maneira, porém compartilham
1 Tabu, de acordo com Ferreira (2004, p. 1905), é uma “proibição convencional imposta por tradições
ou costume a certos atos, modos de vestir, temas, palavras, etc., tidos como impuros, e que não pode
ser violada, sob pena de reprovação e perseguição social”. Ou seja, é um assunto delicado que vai de encontro às regras ou convenções de uma sociedade, cultura ou religião, sendo proibidas ou evitadas
discussões acerca deste a qualquer custo.
20
os mesmos sentimentos em relação às suas perdas, apesar de algumas não
demonstrarem, não significa que não sofram.
No Japão, quase todas as famílias designam um monge budista para os serviços
fúnebres e procedem rituais como: culto aos antepassados, cumprimentar a foto ou o corpo do
morto olhando em seu rosto, oferendas em comida, recitam sutras (orações), oferecem flores e
acendem velas e incensos. Assim, dentre os rituais, “[...] os familiares colocam flores e uma
tigela com arroz cozido dentro do caixão e numa mesa ao lado colocam água, velas, incenso e
um jarro de flores, na crença de que assim nada faltará ao morto” (SOARES; CASTRO, 2017,
p. 106).
Os autores ainda discorrem sobre a cultura islâmica e budista e apontam que
Assim como os islamistas, os budistas veem a morte como uma passagem
para uma nova fase. A alma espera pelo juízo final, onde ocorrerá a
ressurreição. O velório é feito apenas para aguardar a chegada de algum parente distante, o caixão deve ser simples, pois servirá apenas para levar o
morto até o cemitério, para eles não existe o luto, pois a morte deve ser vista
como algo natural. (SOARES; CASTRO, 2017, p. 106).
No México, o Dia de los Muertos é uma celebração de origem indígena que acontece
entre os dias 31 de outubro e 02 de novembro e tem o intuito de celebrar, honrar e lembrar os
falecidos com rituais festivos. Esse ritual é retratado em algumas obras da cinematografia,
como, por exemplo, no curta metragem Dia de los Muertos dirigido por Lindsey St. Pierre,
Kate Reynolds e Ashley Graham em 2013 e no filme Viva – a vida é uma festa dirigido por
Lee Unkrich e Adrian Molina em 2018.
Sobre essa celebração, Alves (2015, p. 56) explica que
[...] Elementos católicos e indígenas misturam-se dando origem a uma forma de celebração muito peculiar. Entretanto, as práticas indígenas originárias
também podem ser vistas claramente arraigadas na forma de celebrar.
Primeiramente, o próprio caráter festivo da celebração remonta, por exemplo, à maneira asteca de cultuar os mortos, povo indígena
contemporâneo à chegada dos espanhóis. Eles possuíam um calendário de
dezoito meses, sendo que em cada um deles acontecia alguma festa em honra
aos deuses e outras delas dedicadas também aos mortos. Nessas festas ofereciam-se comidas e bebidas típicas, havia música, bailes, flores e muito
colorido. Hoje em dia brinca-se com a morte e faz-se piada dela. As pessoas
fantasiam-se de caveiras e de esqueletos e comem alimentos nesses
21
formatos. A devoração simbólica da morte é uma maneira de dizer-lhe que
se é forte diante dela e que ela não é mais temida que a própria vida. Em
segundo lugar, destacam-se os elementos simbólicos que compõem a festividade e que fazem parte das oferendas dedicadas aos mortos: altares,
comidas, bebidas, flores, velas, incenso e outros objetos. Muitas dessas
comidas e bebidas, além da flor de morto que é presença constante nessa
celebração, fizeram parte do mundo indígena de outrora.
Já no Brasil, o dia em homenagem aos mortos acontece no dia 2 de novembro, como
também ocorre no México. No entanto, ao contrário da celebração mexicana, no nosso país
este momento é voltado para a introspecção, reflexões e orações dedicadas aos entes que já
faleceram. Apesar de ambos os países estarem situados nas Américas, por aqui, no lugar das
músicas, comidas e festividades, o que se apresenta é consternação, tristeza e resignação, que
dão um ar melancólico e dramático para este dia.
Diante dessas especificidades culturais, percebemos que, na sociedade ocidental
contemporânea, a maioria das pessoas têm dificuldades de lidar com coisas e assuntos que
fogem do seu controle, como, por exemplo, a morte, a partida de alguém querido, a
finalização de uma amizade, entre outras situações. Tornar-se consciente da existência da
finitude dos processos da vida não é fácil, visto que, haverá de se reconhecer o possível
encerramento de um ciclo. Atualmente, muitos de nós vivemos num mundo mecânico, em que
o ter prevalece sobre o ser e o sentir, e essa tomada de consciência pode tirar o ser humano do
vazio, do fazer por fazer, resgatando-o para a consciência do que se está vivenciando, o que
pode vir a expor seus medos mais profundos. Assim, de acordo com Martins e Lima (2014, p.
12),
Ao se falar de morte se evidencia como expor as fragilidades e as limitações humanas é entendido como fracasso, visto que nos é cobrado a sermos:
saudáveis, alegres, fortes e belos. Entretanto, é importante destacar que as
fraquezas, a pobreza e o desespero fazem parte do humano.
Diante disso, entendemos que a sociedade ocidental vela um verdadeiro silenciamento
em relação à finitude da vida. Lidar com a morte, com o inevitável “fracasso”, se torna algo
doloroso, visto que, há dificuldade em se defrontar com as perdas na vida, complicando,
assim, tanto o contato com o luto, a perda e a morte, como a sua elaboração. Desta forma,
existe uma necessidade de se discutir o luto e seus processos, o que será apresentado na seção
a seguir.
22
2.1 O Luto e suas Possibilidades de Vivência
O ponto de partida para se compreender o luto e sua vivência é ressaltar que ele não é
um estado, e sim um processo, tanto vivencial, quanto existencial, fazendo parte da vida de
cada pessoa nas situações que envolvem perdas. Considerando isso, deve ser dada a devida
importância a todo o processo para que se preserve a saúde emocional da pessoa que
vivenciou uma perda, enfatizando sua singularidade no mundo. Sendo assim, Rodrigues
(2015, p. 3) destaca que o luto é
[...] uma experiência bem particular, que exige reações emocionais distintas;
apenas o sujeito que sofre pode avaliar a intensidade da sua dor. Cada perda produz um sofrimento diferente, e ainda que em outro momento passe pelo
mesmo sofrimento, a perda poderá produzir dores diferenciadas.
Tomando como fundamental princípio para a compreensão do luto como um processo
vivencial, partimos da premissa que cada homem é um ser único no mundo, sendo assim, sua
forma de viver e compreender os fenômenos são singulares. Portanto, Tavares (2001 apud
MARTINS; LIMA, 2014, p. 15) salienta que “O luto é um ritual que expressa os sentimentos
mais profundos e particulares da existência. Encontra-se ao lado da morte, como evento, e ao
lado da vida como processo”. Assim, podemos até adiar a vivência do processo do luto, mas
inevitavelmente ele será experienciado em algum momento.
Quando se trata do luto, geralmente, nossa sociedade – ocidental – se distancia e
silencia, pois não está preparada para lidar com temáticas ligadas à finitude da vida ou às
perdas/ausências, visto que são temáticas que mexem diretamente com a relação que o
homem estabelece com o mundo.
Nesse sentido, Tavares (2001 apud MARTINS; LIMA, 2014, p. 12) aponta que
A instauração da conspiração do silêncio é uma proteção à dor, que se
transforma em tortura, em frieza, em distanciamento. A compreensão do verdadeiro sentido de vida favorece a diminuição do apego e também do
consumismo. Estar vivo é estar em evolução e transformações constantes.
Onde valores que não tenham mais sentido não sejam revistos, não morram,
não há vitalização.
23
O processo de elaboração do luto não é necessariamente um caminho para o
esquecimento ou substituição da pessoa, do objeto, da fase de vida, dentre outras questões que
foram perdidas, mas é um processo gradativo de ressignificação dos sentimentos negativos
dados à separação, à ausência ou à perda. Assim, de acordo com Martins e Lima (2014, p. 16),
“ao vivenciar situações extremas de grande sofrimento, abre-se a oportunidade para um
autoconhecimento, incitando uma transformação da dor em aprendizado, possibilitando uma
nova percepção dos valores da vida”. A seguir, iremos apresentar algumas formas de
compreensão sobre o luto, a partir dos principais teóricos que estudaram esse fenômeno.
2.1.1 Principais Teorias sobre o Luto
O luto vem sendo discutido por diversos teóricos na tentativa de estabelecer um
padrão ou uma sequência lógica para se compreender seu processo. No decorrer de nossas
pesquisas, identificamos alguns teóricos que discutem sobre o luto, tais como: o médico
neurologista e psiquiatra austríaco, Sigmund Freud (1856-1939), que foi o fundador da
psicanálise e abordou a temática do luto e a melancolia; John Bowlby (1907-1990), que foi
psicólogo, psiquiatra e psicanalista britânico, com sua teoria da vinculação; a psicóloga
americana Margaret Stroebe e o psicólogo H. Schut, que discutem sobre o processo dual de
lidar com o luto; e a psiquiatra americana Elizabeth Kübler-Ross (1926-2004), que discutiu
sobre as etapas do luto. A seguir, faremos uma breve apresentação de cada uma destas teorias.
Freud, fundador da psicanálise, em sua obra Luto e Melancolia (1917), foi um dos
primeiros a discutir o processo de luto e seus aspectos em relação ao enlutado. Ele enfatiza
que o luto é um processo natural do ser humano, em que o sujeito poderá, através do processo
de elaboração, redirecionar a libido de um objeto para outro. Neste processo ocorre uma
simbolização e elaboração da perda, assim, há a possibilidade de encontrar novos caminhos
para seu desejo. Deste modo, existirá um deslocamento do significado que o objeto tem, para
que se possa investir em outro objeto de amor.
De acordo com Freud (1969, p. 29),
[...] Uma a uma, as lembranças e expectativas pelas quais a libido se ligava
ao objeto são focalizadas e superinvestidas e nelas se realiza o desligamento
da libido. Por que essa operação de compromisso, que consiste em executar
uma por uma a ordem da realidade, é tão extraordinariamente dolorosa, é
24
algo que não fica facilmente indicado em uma fundamentação econômica. E
o notável é que esse doloroso desprazer nos parece natural. Mas de fato, uma
vez concluído o trabalho de luto, o ego fica novamente livre e desinibido.
É importante frisar que esse processo não é simples, pois o deslocamento da libido de
um objeto amado para outro necessita da criação de novas fantasias conscientes e
inconscientes em torno do substituto, levando o sujeito a elaborar o luto e a quebrar suas
defesas e fantasias em busca de um novo equilíbrio psíquico.
Bowlby, criador da Teoria da Vinculação ou do Apego, foi o pioneiro nas discussões
do conceito de vínculo nas relações humanas, trazendo também a importância da discussão
acerca do tipo de vínculo que foi estabelecido, salientando as diferenças entres as formas que
cada pessoa irá lidar com o processo do luto. Deste modo, compreendemos que a
relação/ligação do enlutado com a perda será diferente no momento de enfrentamento deste
luto.
De acordo com Bowlby (2002/2006 apud SANTOS; YAMAMOTO; CUSTÓDIO,
2017, p. 5), são quatro as fases do processo do luto:
1. Fase de entorpecimento: Pode durar de algumas horas a uma semana e
pode ser interrompida por explosões de aflição e/ou raiva extremamente intensas. Nesta fase, a pessoa se sente chocada e incapaz de aceitar a notícia
da perda. Alguns pacientes tendem a apresentar crises de pânico;
2. Fase de anseio e busca da figura perdida: Dura de alguns meses a anos. Neste momento, se começa a registrar a realidade da perda, levando a crises
de desânimo e aflição. Quase sempre, há uma grande inquietação, insônia e
preocupação com a pessoa perdida, combinada com um sentimento de sua
presença concreta e uma tendência a interpretar sons e sinais como indícios que a esta voltou;
3. Fase de desorganização e desespero: Neste momento, o enlutado
reconhece a imutabilidade da perda, e que não poderá recuperar a pessoa perdida, vivenciando uma desmotivação pela vida;
4. Fase de reorganização (em maior ou menor grau): Finalmente, há uma
reorganização da depressão e da desesperança. E com uma maior tolerância às mudanças sofridas, a pessoa torna possível o investimento afetivo em
novos objetos.
Segundo Santos, Yamamoto e Custódio (2017), as quatros fases descritas por Bowlby
seguem uma linearidade para que se possa enfrentar o luto de uma forma saudável. Contudo,
25
os autores salientam que a intensidade de como será vivenciada cada perda é única, pois cada
relação de vínculo terá seu grau de importância para o sujeito.
Stroebe e Schut (1999 apud SILVA; FERREIRA-ALVES, 2012) apresentam o
Modelo do Processo Dual do Luto, que é uma nova proposta de compreensão do luto como
processo transitório, sendo identificados dois fatores estressores: orientado para a perda, o
enlutado direciona toda sua atenção para os detalhes da perda, como ocorreu, grau de
proximidade com a pessoa que faleceu, entre outros fatores, lidando assim com as emoções e
os sentimentos; e orientado para a restauração, que são as consequências secundárias à
perda, como lidar com assuntos que eram de responsabilidade do falecido, obrigações que
agora se tornam estressoras.
Este modelo também apresenta o conceito de oscilação, que é a transição de um fator
estressor para o outro. Assim, a mesma se caracteriza por ser um momento em que o enlutado
evita vivenciar algum destes estressores do processo do luto, sendo comum que ele transite
entre os dois fatores estressores num movimento de fuga e evitação.
Como enfatizamos no decorrer do texto de que o luto é um processo, Kübler-Ross, que
é uma das principais autoras de referência sobre a temática, em sua obra Sobre a Morte e o
Morrer: o que os doentes terminais têm para ensinar a médicos, enfermeiras, religiosos e aos
seus próprios parentes (2008), dividiu o luto em cinco estágios – negação e isolamento,
raiva, barganha, depressão e aceitação –, sendo estes vivenciados de forma única por cada
pessoa, não existindo uma linearidade na passagem pelos mesmo, sequer uma obrigatoriedade
de passar por todos.
O primeiro estágio do processo do luto é a negação. Ao descobrir a existência de uma
doença incurável, perceber que está perdendo um ente querido ou diante da previsibilidade da
morte, incialmente há um grande choque, que gera vários questionamentos: “Isto não pode ser
verdade!”, “Não está acontecendo comigo!”; de modo que essa pessoa acaba negando e não
aceitando a realidade presente. Por não saber lidar com tal situação, torna-se ainda mais difícil
passar por esse estágio, direcionando-se ao isolamento como uma forma de fuga.
Kübler-Ross (2008, p. 45) afirma que “comumente, a negação é uma defesa
temporária, sendo logo substituída por uma aceitação parcial”. Apesar da negação ser o
primeiro estágio, ela pode estar presente durante todo o processo, mesmo depois do choque
inicial a pessoa pode continuar não aceitando a perda.
26
Em seguida, o estágio mais intenso e doloroso, que pode gerar muito sofrimento
psíquico, é a raiva. Os sentimentos de raiva, revolta, inveja e ressentimento, podem ser
direcionados à pessoa que faleceu e a deixou sozinha, a Deus, às pessoas mais próximas, à
equipe médica e até a si mesma, por se culpar por não ter salvo o ente querido que se foi.
De acordo com Soares e Castro (2017, p. 110), compreendemos que
A raiva aparece como resultado da intolerância a frustrações do decorrer da
vida, dificultando que o sujeito aceite que tal perda só pertence a ele, levando-o a terceirizar culpados, até que sua estrutura emocional esteja
pronta para elaborar e dar novo significado ao momento em que ele se
encontra.
Essa relação à culpa, que surge durante a raiva, é uma forma de vivenciar a dor pela
perda sofrida. Sendo assim, Martins e Lima (2014, p. 17) ressaltam que, para se redimir do
sentimento de remorso, “[...] o enlutado começa a idealizar o falecido, transformando-o em
uma pessoa perfeita depois de morta. Desta forma ele se redime do mau que fez ao falecido e
a culpa deixa de dominar seus pensamentos”.
O terceiro estágio é a barganha, uma negociação íntima que a pessoa faz consigo
mesma ou com divindades, na tentativa desesperada de, por exemplo, obter o ente querido de
volta ou a reversão de um quadro médico incurável. Diante disso, nesse estágio, geralmente,
são feitas promessas e trocas de hábitos. Sendo assim, Kübler-Ross (2008, p. 89) afirma que
“a barganha, na realidade, é uma tentativa de adiamento”.
A depressão é o quarto estágio. Essa é a fase em que a negação deixa de ser
protagonista do processo e dá espaço à vivência da finitude da vida como possibilidade real,
sendo um momento caracterizado pelo sofrimento profundo, pela tristeza, pelo medo e pela
percepção de que não irá superar a perda. Geralmente, nessa fase, as pessoas se tornam
introspectivas e se isolam para vivenciar sua dor.
Neste estágio também pode acontecer à valorização exagerada dos feitos e lembranças
do falecido por parte do enlutado, fazendo com que este realize o que rotineiramente faziam
juntos na tentativa de estar mais próximo do seu ente querido. Deste modo, Soares e Castro
(2017, p. 110) destacam que o enlutado, na maioria das vezes,
27
[...] perde todas as esperanças e se retira para o seu mundo interno e sente
todas as dores que a perda provoca. Aqui serão lembrados todos os
momentos que tal objeto proporcionou e também tudo aquilo que contribuiu para a perda do mesmo, tudo com um grau de importância maior, aquilo que
parecia ser insignificante, ganha uma proporção máxima.
O quinto e último estágio é a aceitação, sendo o momento de recuperação e
ajustamento à nova realidade, ressignificando a perda. Mesmo sendo a última fase do luto,
poderá ser a que mais se lamenta e sente saudades. Neste período de aceitação é necessário
enfrentar e aprender a seguir em frente conforme suas limitações e possibilidades forem
permitindo, é de extrema importância que seja um estado passageiro e vivenciado até seu
esgotamento. Nesse sentido, concordamos com Martins e Lima (2014, p. 18) ao afirmarem
que “é necessário que a pessoa se permita vivenciar a dor e a tristeza da perda e para isso
acontecer é necessário haver o luto”.
Considerando o que foi apresentado, ao ressaltarmos algumas formas e fases dos
principais teóricos que discutem o processo do luto, enfatizamos a importância do
enfrentamento e da superação da perda como necessários para a vivência do luto considerado
saudável, pois há a possibilidade de que ele seja vivenciado de uma forma que é considerada
patológica/complicada2. Partindo dessa premissa, a seguir, apresentaremos algumas formas de
enfrentamento do luto, fazendo a distinção do que é considerado saudável ou complicado.
2.1.2 Formas de Enfrentamento do Luto: do Luto Saudável ao Luto Complicado
Considerando a diversidade de possibilidades de lidar com o processo de luto,
destacamos que é importante que o enlutado assuma um posicionamento de enfrentamento
para que se possa gerar mudanças criativas em sua vida, visto que será necessário ajustar-se à
nova realidade a partir da perda. Neste momento, se percebe que não se findou apenas alguém
ou algo importante, mas também que se viverá sem o que era proporcionado enquanto a
pessoa falecida ou objeto/momento perdido fazia parte de sua vida.
Desta forma, Soares e Castro (2017, p. 111) salientam que
2 Neste trabalho, preferimos usar o termo “complicado” em detrimento do termo “patológico”, por ser
uma terminologia mais atualizada e condizente com o que nos propormos abordar. Entendemos que o patologização da vida e seus processos determinam e limitam a vivência do sujeito frente às suas
possibilidades de ser-no-mundo.
28
A superação de uma perda está diretamente ligada à maneira que o sujeito enfrenta os acontecimentos a sua volta, isso vai depender da sua
personalidade, do momento em que se encontra na vida e o grau de
importância que esse objeto tem na sua existência. Incluem ainda questões de tolerância a frustrações e as experiências com perdas anteriores.
Consideramos que passar pelas fases do luto é um processo vivencial único para cada
pessoa, e que é de extrema importância vivenciá-lo até o seu esgotamento, se fixar em alguma
fase exposta anteriormente, ou não vivenciar o luto por completo, pode gerar um movimento
adoecedor. Sobre isso, Martins e Lima (2014, p. 19) pontuam que “[...] o indivíduo liga-se à
falta, ao apego e fica inerte no processo de luto, contudo, não assume uma postura de
enfrentamento, o que dificulta a atribuição de sentido à experiência, restando apenas o peso
do pesar”.
Ao falarmos de enfrentamento, deixamos uma questão em aberto: o que acontece
quando não enfrentamos e fugimos do processo do luto? Inevitavelmente ele vai voltar, seja
com um ou dez anos depois, mas a forma como cada um passa por ele vai além de uma
questão simples de ponto de vista, existindo diversos fatores determinantes que precisam ser
levados em consideração.
De acordo com Amorim (2006 apud MARTINS; LIMA, 2014), os fatores relevantes
para situar o que determina o processo do luto são: a importância e o tipo de vínculo afetivo
estabelecido com a pessoa que morreu; a forma que ocorreu a perda; e o histórico de perdas
que o enlutado já passou e a forma que lidou com cada uma, levando em consideração a
idade, sexo, o nível de tolerância à frustração, o apoio social e emocional e se possui algum
transtorno de pessoalidade.
O luto como processo de vida tem seu lado funcional, há uma busca por equilíbrio
como uma forma de manutenção do enlutado, o qual pode sofrer ou não diante da finitude da
vida. Como qualquer experiência dos ciclos da vida, espera-se que o processo de luto –
mesmo que vivenciado de forma singular – tenha um início, um meio e um fim.
Freud faz a distinção entre luto e melancolia, trazendo o luto como sendo um processo
natural na vida do sujeito que vivenciou a morte ou perda de algo importante. Em
contrapartida, a melancolia é descrita como um processo de adoecimento considerado
patológico, em que o sujeito fica fixado no sofrimento e nos sentimentos de angústia e
tristeza. De acordo com Freud (1969, p. 28), o luto é
29
[...] a reação à perda de uma pessoa amada, contêm o mesmo estado de ânimo doloroso, a perda de interesse pelo mundo externo – na medida em
que este não faz lembrar o morto –, a perda da capacidade de escolher um
novo objeto de amor – em substituição ao pranteado – e o afastamento de toda e qualquer atividade que não tiver relação com a memória do morto.
Facilmente compreendemos que essa inibição e esse estreitamento do ego
são a expressão de uma dedicação exclusiva ao luto, na qual nada mais resta
para outros propósitos e interesses.
Contudo, destacamos que podem ocorrer situações na qual o luto se torne uma barreira
que impedirá o movimento de seguir com a rotina, estagnando qualquer possibilidade de
mudança ou ressignificação da perda. Deste modo, Freud (1969, p. 28) salientou que o luto
“[...] é a reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela,
como pátria, liberdade, ideal etc. Sob as mesmas influências, em muitas pessoas se observa no
lugar do luto uma melancolia, o que nos leva a suspeitar nelas uma disposição patológica”.
Nesse mesmo sentido, Soares e Castro (2017, p. 104) afirmam que
[...] Não se trata de algo que deixe escolha, se o sujeito não passar por esse
processo ele ficará preso em algum estágio dele, muitas vezes sem perceber,
pois os sintomas de uma perda não elaborada se parecem muito com outras
patologias.
Bromberg (1996/2000 apud SANTOS; YAMAMOTO; CUSTÓDIO, 2017, p. 7)
afirma que permanecer fixo em alguma das fases do luto poderá trazer prejuízos para a saúde
mental do enlutado, ocorrendo o luto considerado complicado. Segundo essa autora, o luto
pode ser classificado em:
Luto Crônico: trata-se do prolongamento indefinido do luto, quando predomina ansiedade, tensão e inquietação;
Luto Adiado: ocorre devido a não apresentação das fases do luto normal no
tempo certo, gerando sintomas distorcidos como superatividade, isolamento
ou mesmo sintomas da doença do morto;
Luto inibido: trata-se da ausência de sintomas do luto normal. É muito
semelhante ao luto adiado, variando apenas nos graus diferentes de defesa
psíquica.
30
Um dos parâmetros de definição do luto como patológico é o Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais V – DSM-5 (2014), que cita o luto diversas vezes. Em
uma delas, traz o Luto Sem Complicação, que é definido como uma reação de tristeza normal
de uma pessoa que perdeu um ente querido, podendo apresentar episódio depressivo maior
temporariamente. O DSM-5 enfatiza que é importante considerar as variações em relação à
duração e à expressão do luto dependendo da cultura, o que irá interferir na classificação se o
luto vivenciado é considerado normal ou complicado.
Ainda segundo o DSM-5, o luto também pode ser classificado como transtorno
mental, sendo denominado como Transtorno do Luto Complexo Persistente, caracterizado por
apresentar os seguintes critérios diagnósticos:
A. O indivíduo experimentou a morte de alguém com quem tinha um
relacionamento próximo.
B. Desde a morte, ao menos um dos seguintes sintomas é experimentado em
um grau clinicamente significativo na maioria dos dias e persistiu por pelo
menos 12 meses após a morte no caso de adultos enlutados e seis meses no
caso de crianças enlutadas:
1. Saudade persistente do falecido. Em crianças pequenas, a saudade pode
ser expressa em brincadeiras e no comportamento, incluindo
comportamentos que refletem ser separado de e também voltar a unir-se a um cuidador ou outra figura de apego.
2. Intenso pesar e dor emocional em resposta à morte.
3. Preocupação com o falecido.
4. Preocupação com as circunstâncias da morte. Em crianças, essa
preocupação com o falecido pode ser expressa por meio dos temas de
brincadeiras e comportamento e pode se estender à preocupação com a
possível morte de outras pessoas próximas a elas (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014, p. 789).
De acordo com este Manual, os indicadores de risco são importantes alertas para
nortear os cuidados ao enlutado, sendo eles: Ambientais, caracterizado pela dependência do
enlutado ao morto; Fisiológicos e Genéticos, por exemplo, quando a pessoa enlutada é do
sexo feminino há um risco maior para o desenvolvimento do transtorno; e Culturais, sendo
importante considerar como o luto é vivenciado na região.
Diante disso, é possível perceber que, mesmo havendo formas diversas de lidar com o
luto, haverá a necessidade de ser ajustar de forma criativa em algum momento. Mesmo tendo
a possibilidade de não ser considerado um ajustamento saudável, o sujeito, necessariamente,
31
terá que ressignificar sua perda da forma mais confortável possível. Sendo assim, Prestrelo
(2001, p. 8) salienta que
A forma como nós vivemos se constitui num ajustamento criativo – ou não –
das diversas influências que recebemos durante a vida e de como as
digerimos. Se realizamos um ajustamento coerente com as nossas necessidades e de acordo com as nossas possibilidades, no momento, ele será
criativo, caso contrário, estaremos reproduzindo formas disfuncionais de
relações. A forma como lidamos com a morte não seria diferente, portanto, depende do que nos é oferecido pelo meio e de como o elaboramos. A
responsabilidade por construirmos formas “criativas”, funcionais, de viver é
um compromisso com a existência.
Tendo em vista a complexidade em diagnosticar o luto complicado, Parkes (1998)
acentua a necessidade de se ter uma precaução em rotular de forma precoce os processos de
luto como disfuncionais ou complicados, sendo de fundamental importância a avaliação única
e precisa para cada caso. Para isso, é importante entender cada processo como individual,
considerando que não necessariamente haverá uma linearidade de estágios ou sentimentos e
expressões características esperadas – tais como tristeza, sofrimento, desespero, entre outros.
Considerando o que foi discutido neste capítulo, é importante compreender que
existem diferentes formas de se perceber e vivenciar o luto, a perda e a morte. Apresentamos
alguns recortes destes processos em suas mais variadas formas, trazendo diferentes contextos,
culturas, ressaltando que, para a compreensão do luto se faz necessário considerar os diversos
contextos, as plurais culturas, religiões, entre outros fatores. Destacamos também o
silenciamento deste processo na sociedade ocidental e como ocorreu uma mudança na forma
de conceber o luto como um processo necessário para a evolução do sujeito.
Assim, o intuito principal desse capítulo foi realizar uma breve apresentação e trazer
algumas percepções em relação aos principais conceitos em estudo. No próximo capítulo,
iremos apresentar o referencial teórico que embasa esta pesquisa: a Gestalt-Terapia.
32
3 GESTALT-TERAPIA E SUA COMPREENSÃO DE HOMEM E MUNDO
Neste capítulo, discutiremos os principais aspectos que norteiam a Gestalt-Terapia,
referencial teórico que embasou nossa pesquisa. Inicialmente, apresentaremos seus principais
pressupostos filosóficos (Humanismo, Existencialismo e Fenomenologia) e teorias de base
(Psicologia da Gestalt, Teoria Organísmica e Teoria de Campo). Em seguida, abordaremos
acerca da visão de homem e de mundo sob a ótica da abordagem gestáltica. Por fim, traremos
alguns dos principais conceitos dessa teoria, visando, em nossas análises, compreender a sua
importância para o entendimento do processo do luto e seus enfrentamentos.
Gestalt é uma palavra de origem alemã que não tem uma tradução exata para nosso
idioma. Perls (1988), ao definir Gestalt, utilizou-se de vários termos para chegar a uma
definição mais próxima e equivalente dos sentidos que essa palavra manifesta, que são:
estrutura, forma, organização particular das partes de cada sujeito, algo completo, um todo.
Desse modo, o autor salienta que “[...] a natureza humana é organizada em partes ou todos,
que é vivenciada pelo indivíduo nestes termos, e que só pode ser entendida como uma função
das partes ou todos das quais é feita” (p. 19). Assim, compreende-se que o sujeito não irá
perceber as partes isoladamente do processo, que é visto como um todo. Somado a isso,
entende-se também que cada experiência é vivenciada de forma única com relação à situação
ou ao sujeito.
A Gestalt-Terapia surgiu na década de 1950, nos Estados Unidos, tendo como um dos
principais precursores o médico especialista em neuropsiquiatria Frederick Salomon Perls
(1893-1970). Para a construção da base teórica desta abordagem, Perls contou com a
colaboração de Elliot Shapiro, Isadore From, Laura Perls, Paul Goodman, Paul Weisz e
Sylvester Eastman, os quais passaram a serem conhecidos como o “grupo dos sete”, e,
posteriormente, Richard Kitzler se juntou ao grupo.
Essa perspectiva teórica promoveu a discussão de uma nova forma de compreender o
homem e sua relação com o mundo. Deste modo, Fukumitsu (2012, p. 50) afirma que
“Gestalt-terapia: é uma abordagem psicológica, embasada na fenomenologia enquanto
método, e no existencialismo e na psicologia humanista, enquanto visões do homem”.
A compreensão de homem e de mundo na Gestalt-Terapia tem como base uma
concepção holística que, de acordo com Aguiar (2005), acredita que o universo é organizado
por infinitas totalidades, dentro de totalidades menores que, por si só, envolvem outras
33
totalidades, e assim por diante, até chegar ao indivíduo, que, por sua vez, também é uma
totalidade.
Ainda de acordo com a autora,
Dentro de uma concepção holística, o ser humano é percebido como uma
unidade, como um ser global que transcende o dualismo que durante muito
tempo imperou de forma absoluta na filosofia e na ciência. Perceber o ser humano como uma totalidade significa compreendê-lo para além de suas
características isoladas, articulando-as não só a outras características do seu
ser total, como também a totalidade do contexto mais amplo do qual ele faz
parte (AGUIAR, 2005, p. 41).
Portanto, na abordagem gestáltica, entendemos que a relação homem e mundo sempre
estará interligada. Além disso, compreende-se que o homem está inserido dentro de um
organismo/universo macro e vive numa busca constante para se manter em equilíbrio. Nesse
sentido, Aguiar (2005, p. 41) salienta que “a organização desses elementos interdependentes é
regida por uma força que visa sempre a busca de equilíbrio. Assim, o que ocorre em uma
parte sempre afeta as outras e, por conseguinte a totalidade do indivíduo”.
A seguir, apresentaremos brevemente os pressupostos filosóficos da Gestalt-Terapia:
Humanismo, Existencialismo e Fenomenologia. O Humanismo surgiu em meio ao auge do
movimento hippie e é considerada a “Terceira Força da Psicologia”. Seu advento apresentou
uma nova visão de homem e mundo, compreendendo o homem como o centro de sua
existência e como um ser capaz de se autogerir e regular-se, se afastando das concepções de
teorias predominantes da época, como a Psicanálise e o Behaviorismo. À vista disso, Holanda
(1997, p. 16) afirma que “a psicologia humanista nasce, pois, da necessidade de ampliar a
visão do homem, que se achava limitada e restrita a apenas alguns aspectos, a alguns
elementos, segundo as perspectivas behaviorista e psicanalítica”.
De acordo com Ribeiro (2012, p. 28), “O homem é naturalmente o centro das coisas,
do universo, porque, como diz Heidegger, só o homem existe, as coisas são. O homem é o
único ser que tem uma maneira característica de se fazer, de se realizar”. Ainda sobre essa
questão, Frazão e Fukumitsu (2013, p. 12) se posicionam argumentando que
A psicologia humanista enfatiza a auto-realização por meio do
desenvolvimento de potencialidades humanas de crescimento e criatividade.
O homem se autodetermina, interage ativamente com seu ambiente, é livre e
34
pode fazer escolhas, sendo responsável por elas no universo inter-relacional
no qual vive, o que constitui um novo paradigma.
Somado a isso, Ribeiro (2012, p. 29) salienta que
Uma psicoterapia, preocupada com a valorização do homem, procura diretamente lidar com o que de positivo tem a pessoa, procura lidar com o
potencial de vida (saúde, beleza, força, etc.), procura fazer com que o cliente
tome, de fato, posse de si mesmo e do mundo. Tal postura não significa que não se tente compreender o sentido das limitações, das fronteiras, da morte,
no contexto da psicoterapia, pois psicoterapia tem que ser expressão da
própria vida.
Nesse sentido, o Humanismo compreende que o homem deve ser protagonista da sua
própria história, pois ele tem a capacidade de se autorreger. Com isso, Rogers (1994 apud
RIBEIRO, 2012) enfatiza que os sujeitos têm recursos para modificação dos seus
autoconceitos, atitudes e comportamentos, através da auto-compreensão, afirmando, assim,
que o ser humano possui a tendência a atualizar-se e a crescer enquanto sujeito de
potencialidades.
Partindo dessa visão, considerando o objeto de estudo desse trabalho, podemos refletir
que a desogarnização causada pelo processo de enlutamento (e por outras vivências
permeadas de angústia e dificuldade relacionadas aos fenômenos da morte e da perda) poderá
ser ressignificada. Desse modo, tendo por base essa visão de homem, compreendemos que, ao
contatar a situação posta e vivenciá-la até o seu esgotamento, poderemos vislumbrar novas
possibilidades de ação.
Portanto, o Humanismo fundamenta a prática da Gestalt-Terapia enquanto processo
terapêutico propondo o resgate dos valores humanos que foram esquecidos com o tempo.
Dessa maneira, o homem volta o olhar para si e passa a refletir sobre sua existência,
percorrendo novos rumos. À vista disso, esse movimento enfatiza a singularidade e o
potencial de se reinventar enquanto sujeito.
A corrente filosófica Existencialista preocupa-se em explicar e compreender a
experiência humana nas suas relações. O homem não é entendido como um ser universal mas
como um ser singular composto por vontades, possuidor de liberdade para exercer escolhas
diante da vida, bem como, lidar com o que delas derivam, suas responsabilidades. Segundo
Ribeiro (2012, p. 32), é no Existencialismo que “a expressão de uma experiência individual,
35
singular, trata diretamente da existência humana”. Ou seja, para que se possa compreender a
existência humana é necessário ter um olhar para a singularidade de cada sujeito.
De acordo com essa afirmação, Frazão e Fukumitsu (2013, p. 60) destacam que
O homem surge no mundo como um ser particular, sem a possibilidade de
definição prévia, e somente depois poderá vir-a-ser. Portanto, ele não é como
uma semente que traz em si características imutáveis, não podendo ser nada além do que está determinado no cerne do seu ser. Ao contrário, ele é
entendido como um ser livre pra escolher sua essência a cada instante,
consumando, assim, seu projeto de vida e seu ser no mundo. Ao fazê-lo
torna-se o único responsável por sua existência.
O filósofo, escritor e crítico francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) foi um dos
principais autores que contribuiu para a construção da concepção de homem na Gestalt-
Terapia. Ele compreendia que a subjetividade era o ponto de partida para se entender que o
homem existe antes das coisas, deste modo, ele não é algo, está sendo ou vivendo (RIBEIRO,
2012).
Neste sentido, Ribeiro (2012, p. 37) afirma que
Na visão sartreana, esta antecedência só tem sentido para o homem e não para as coisas, porque a essência do homem, ou seja, aquilo que o definirá e
caracterizará como homem é algo que ele conquista, rejeita, incorpora, dia a
dia. Ele é um ser permanentemente a caminho, diferentemente da pedra que é um ser estático. Neste sentido, poderemos dizer que o homem é um ser
existindo permanentemente à procura da sua essência, do seu completar-se,
que só se realiza na morte.
Deste modo, diante da individualidade consciente do homem, que deixa de seguir
padrões e passa a compreender os seus sentimentos e linguagens como únicos, no
Existencialismo esse homem assume uma postura autêntica, identificando o que é dele e o que
é dos outros ao seu redor. Assim, segundo Ribeiro (2012, p. 37), “[...] Ele sai do “como se”,
do “se”, do “dizem” para assumir sua liberdade de maneira coerente e lúcida. Ele busca em si
e não nos outros as razões íntimas do seu agir”.
O último dos principais pressupostos filosóficos que destacamos nesse trabalho é a
Fenomenologia, que é uma teoria e um método científico criado pelo matemático e filósofo
alemão Edmund Gustav Albrecht Husserl (1859-1938). Ela tem seu foco nos estudos dos
36
fenômenos, sendo bem enfatizado que a forma que o homem percebe o fenômeno só será
identificada em estado de plena consciência a partir da relação do homem com o mundo, visto
que, só serão fatos e objetos quando forem percebidos conscientemente. Considerando isso, a
Fenomenologia é utilizada na Gestalt-Terapia tanto como embasamento teórico, quanto como
método de trabalho.
Dessa forma, a Fenomenologia é uma filosofia e um método que estuda os fenômenos
em si, obtendo uma visão de mundo específica. Porém, Ribeiro (2012, p. 65) afirma que o
fenômeno “não pode e não deve ser considerado independentemente das experiências
concretas de cada sujeito”. De acordo com o autor:
Consciência e fenômeno não podem ser concebidos separadamente. Ao
colocarmos, portanto, entre parênteses a realidade mundana, estamos conservando na consciência apenas aquilo que, de maneira nenhuma, pode
ser negado, ou seja, algo que exista independentemente de todo ato da
consciência (p. 70).
Como afirmam Joyce e Sills (2016, p. 31), “[...] a investigação fenomenológica foi
adaptada para o ambiente terapêutico para que passe a ser um método pelo qual tanto o
terapeuta quanto o cliente investiguem o significado subjetivo do cliente e a experiência que
ele tem de si próprio”. Para compreendemos a proposta fenomenológica, Ribeiro (2012)
destaca três conceitos centrais que compõem esta teoria e seu método investigativo, sendo
eles: redução fenomenológica, intencionalidade e intersubjetividade. O primeiro deles, a
redução fenomenológica, é um método de intervenção utilizado pelo terapeuta “[...] em que as
crenças, premissas e julgamentos são suspensos temporariamente ou pelo menos não são
tomados com tanta seriedade, para ver o cliente em sua situação ‘como se fosse pela primeira
vez’” (JOYCE; SILLS, 2016, p. 31).
Deste modo, Ribeiro (2012, p. 70, grifos do autor) enfatiza que
A redução fenomenológica põe em evidência o ser no mundo, o ser em
situação, em função do qual o sujeito não é jamais puro sujeito, nem o
mundo puro objeto. Ela nos coloca diretamente em contato com a existência,
considerando, como já dissemos antes, que viver é existir, existência vista como anterior a toda reflexão.
37
Desta forma, compreendemos que o mundo não vai ser imposto à consciência, uma
vez que a visão e vivência dele serão entendidas de modo único para cada sujeito. Segundo
Ribeiro (2012, p. 71, grifos do autor), “[...] a redução fenomenológica é a busca do
significado, que é a chegada da totalidade à minha consciência. É a totalidade que contém o
significado. Esta totalidade é feita de momentos fenomenológicos: sensações, percepção,
intuição (introversão – insight)”.
O segundo conceito central da Fenomenologia é a intencionalidade, que ocorre através
da apreensão do objeto pela consciência, de modo que o objeto passará a ser intencionado.
Sendo assim, o sujeito, obtendo consciência de um fenômeno, dará sentido a esse objeto de
forma intencional. Ribeiro (2012, p. 82-83, grifos do autor) evidencia que
O conceito da intencionalidade da consciência na identificação do fenômeno
nos leva a reflexões eminentemente práticas no campo da psicoterapia como uma extensão fenomenológica do processo de sentir, de perceber, de intuir.
Existem pessoas que nunca estão onde estão. Elas dizem: “eu fiz isto, mas
não queria fazer”, “tenho vontade de fazer isto, mas não consigo”, “lamento
muito por ter feito isto”, “se tivesse pensado um pouco mais, não teria feito isto”. São todas formas de lidar ambiguamente com a consciência, de desviar
o contato desta intencionalidade essencial que dizemos estar presente em
qualquer ação e que, em consequência, nos faz responsáveis pelo que decidimos fazer.
O terceiro e último dos principais conceitos da abordagem fenomenológica é a
intersubjetividade, que, de acordo com Ribeiro (2012), está relacionada ao ser e à consciência,
compreendendo que, mesmo recebendo estímulos externos, a resposta dependerá do âmbito
interno e da forma de concepção de mundo de cada sujeito, podendo haver ressignificação
quando este entra em contato com a realidade do outro.
Conforme a discussão apresentada até aqui, destacamos a importância dos três
principais pressupostos filosóficos que embasam a Gestalt-Terapia, os quais trazem visões de
mundo e de homem que se relacionam e se complementam entre si de forma harmoniosa.
Após a apresentação das bases filosóficas, realizaremos uma breve exposição sobre os
pressupostos teóricos que fundamentam essa abordagem: a Psicologia da Gestalt, a Teoria de
Campo e a Teoria Organísmica.
A Psicologia da Gestalt, com seu referencial teórico, trouxe uma contribuição
fundamental para os principais conceitos e princípios que embasam a teoria e a prática da
Gestalt-Terapia. Seus principais representantes foram os psicólogos Max Wertheimer (1880 –
38
1943), Wolfgang Köhler (1887 – 1967) e Kurt Koffka (1886 – 1941), que buscaram estudar as
sensações e percepções, entendendo que o campo perceptivo se organiza de forma
espontânea. Além disso, eles estudaram sobre os processos de aprendizagem e de solução de
problemas. Dessa forma, Perls utilizou esses estudos para ampliar e embasar a teoria e a
prática na psicoterapia de abordagem gestáltica.
Deste modo, Ribeiro (2012, p. 98) afirma que
Falar de percepção e, sobretudo, de aprendizagem e solução de problemas é
dar um passo na compreensão de qualquer forma de psicoterapia como um processo que envolva ambas as situações. De fato, Perls foi buscar na
Psicologia da Gestalt sua proposta de aprendizagem e solução de problemas
no que elas podem ajudar o cliente a aprender a solucionar seus problemas
em um nível amplo, como seja o existencial.
Perls (1988, p. 19) destaca a importância do conceito de Gestalt ao explicar que “Uma
Gestalt é uma forma, uma configuração, o modo particular de organização das partes
individuais que entram em sua composição”. Diante disso, ele salienta que os fenômenos não
são percebidos de formas isoladas pelo sujeito, sem ter qualquer relação entre eles, esses
fenômenos se organizam de uma forma que seja mais significativa no processo perceptível,
formando um todo, uma configuração, conforme suas necessidades e motivações.
A premissa básica da psicologia da Gestalt é que a natureza humana é
organizada em partes ou todos, que é vivenciada pelo indivíduo nestes
termos, e que só pode ser entendida como uma função das partes ou todos das quais é feita (PERLS, 1988, p. 19).
A Psicologia da Gestalt tem como seus principais conceitos: parte e todo, figura e
fundo e aqui e agora. O primeiro conceito, parte e todo, compreende o homem em sua
totalidade absoluta. De acordo com Ribeiro (2012, p. 104),
Quando nos deparamos com algo, a nossa percepção o capta como um todo e
a seguir percebemos suas partes. Donde podemos afirmar que o todo é
anterior às suas partes. Embora feito de partes, o todo como ente atualiza sua essência, no momento em que ele está de fato inteiro, completo. O todo, na
realidade, perde muito de seu significado, da sua importância intrínseca, no
momento em que, para ser analisado, é dissecado em suas partes. O todo é, na realidade, um fato fenomenológico global e é através desta globalidade
39
que os fenômenos podem ser compreendidos, criando ou dando consciência
de sua natureza intrínseca.
O segundo dos principais conceitos da Psicologia da Gestalt é figura e fundo, que é a
forma como os fenômenos se apresentam e são percebidos, tendo uma figura que se destaca a
partir de um fundo dentro de um processo fluído e dinâmico, de modo que o que é percebido
pode transitar entre figura e fundo. Frazão (2013, p. 102, grifos do autor) afirma que “[...]
nossa percepção se organiza pelo princípio de figura/fundo: percebemos totalidades e,
dependendo das circunstâncias, algo se destaca, torna-se mais proeminente, fica em primeiro
plano – a figura –, enquanto o restante permanece em segundo plano – o fundo”. Deste modo,
Ribeiro (2012, p. 109) salienta: “Ao mencionar figura e fundo estamos falando de forma ou de
formação de realidades ou daquilo que se chama ‘formação duo’: uma figura ‘sobre’ ou
‘dentro’ de ‘outra’”.
O terceiro e último dos principais conceitos é o aqui e agora. Ribeiro (2012) afirma
que é a representação da relação dos conteúdos acessados no momento vivencial sem haver a
necessidade de regressar a experiências do passado, sendo compreendido que o aqui e agora
não faz uma relação com o tempo cronológico, mas com o tempo vivencial que cada
experiência proporciona. Desta forma, o autor destaca que
O presente ou o aqui e agora convive com o organismo e com o passado que
são uma história, numa relação de figura e fundo, de todo e parte. É o princípio da contemporaneidade. O passado e o corpo estão presentes, aqui e
agora, na pessoa como um todo, e isto basta para entendê-la e para que se
possa lidar com ela criativamente. Neste sentido, o aqui e agora é a-histórico, ele simplesmente é (RIBEIRO, 2012, p. 120).
Após apresentarmos as principais contribuições que a Psicologia da Gestalt
proporcionou à fundamentação teórica da Gestalt-Terapia, abordaremos a segunda teoria de
base, que é a Teoria de Campo. Esta foi idealizada pelo psicólogo alemão Kurt Lewin (1890 –
1947) e foi de fundamental importância para a abordagem gestáltica devido a sua
compreensão da relação da pessoa com o ambiente no qual está inserida, ou seja, a
interdependência entre sujeito e seu meio social.
Em consonância a essa ideia, Ribeiro (2015, p. 63) ressalta que
40
A questão da relação pessoa-campo (ambiente) constitui o pressuposto
básico metodológico da Teoria de Campo. Dessa relação se desenvolvem
todos os conceitos que a operacionalizam. É a partir da noção de campo (pessoa/meio) que se pensa a questão energética como força transformadora,
por meio da emoção, das relações pessoa-mundo.
Desta forma, entende-se que só haverá uma compreensão plena da relação pessoa-
campo (ambiente) se as coisas e as pessoas forem percebidas em sua totalidade. Sobre isso,
Ribeiro (2012, p. 95) explica que “[...] objetos e pessoas só se fazem inteligíveis ou
compreendidos quando são vistos na sua relação total com o ambiente que os cerca, ou seja, a
pessoa não se faz compreensível a não ser no contexto total em que se encontra”.
Ainda de acordo com o autor, compreendemos que
O comportamento deixa de ser entendido apenas como resultado da
realidade interna da pessoa e passa a ser analisado em função do campo que existe no momento em que ocorre. A situação comportamental é vista como
um todo, da qual decorrem partes diferenciadas (RIBEIRO, 2012, p. 141).
Assim, a Teoria de Campo traz a ideia de que a pessoa estabelece suas relações com o
mundo de forma única, porém, esse mundo se encontra em dimensões amplas de contextos e
experiências que a pessoa mantém relação, os quais precisam ser levados em consideração
para a compreensão de suas vivências.
Ao falar sobre organismo/ambiente, se faz necessário apresentar outro conceito
bastante importante para a abordagem gestáltica: o contato. Este é definido por Moraes e
D’acri (2014, p. 34) como sendo “[...] a experiência do limite entre o eu e o outro”,
complementando que “O ser humano é um ser relacional e seu crescimento ocorre na inter-
relação entre eu e não eu, entre o que somos e o que não somos. Ele vive em seu meio pela
manutenção de sua diferença, assimilando o ambiente à sua diferença” (p. 35). Logo, o
contato é essencial para o crescimento e o caminho para mudar a si mesmo e a experiência
que se tem com o mundo.
Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 44, grifo dos autores) descrevem o contato ao
apontar
41
[...] fundamentalmente, um organismo vive em seu ambiente por meio da
manutenção de sua diferença e, o que é mais importante, por meio da
assimilação do ambiente à sua diferença; e é na fronteira que os perigos são rejeitados, os obstáculos superados e o assimilável é selecionado e
apropriado. Bem, o que é selecionado e assimilado é sempre o novo; o
organismo persiste pela assimilação do novo, pela mudança e crescimento.
Por exemplo, o alimento, como Aristóteles costuma dizer, é o “dessemelhante” que pode se tornar “semelhante”; e no processo de
assimilação o organismo é sucessivamente modificado. Primordialmente, o
contato é a awareness da novidade assimilável e comportamento com relação a esta; e rejeição da novidade inassimilável. O que é difuso, sempre o
mesmo, ou indiferente, não é um objeto de contato.
A terceira e última das principais teorias de base da abordagem gestáltica é a Teoria
Organísmica, que foi explicada e exposta por vários autores na tentativa de compreender a
relação corpo e mente, contudo, ela foi fundamentada pelo neurologista alemão Kurt
Goldstein (1878 – 1965), que foi o seu principal representante. Essa teoria teve como foco a
compreensão de que não se pode entender um sintoma somente a partir de uma lesão orgânica
(uma parte), mas sim considerando o organismo como um todo. Diante disso, Goldstein
defende que “[...] o organismo é uma só unidade; o que ocorre em uma parte, afeta o todo”
(RIBEIRO, 2012, p. 158).
A partir da Teoria Organísmica, podemos compreender o conceito de pessoa da
seguinte forma:
1. A pessoa é una, integrada e consistente. A organização é natural ao organismo. A desorganização é patológica.
2. O organismo é um sistema organizado, com o todo diferenciado em suas
partes. Qualquer elemento deve sempre ser visto como parte integrante do
organismo total. O todo não pode ser compreendido pelo estudo das partes isoladas. [...]
3. O homem possui um impulso dominante de auto-regulação, pelo qual é
permanentemente motivado. Ele está permanentemente à procura de atualizar suas potencialidades. Este impulso dá duração e unidade à sua vida,
como pessoa.
4. O homem tem dentro dele as potencialidades que regulam seu próprio crescimento, embora possa e receba influências positivas de crescimento do
meio exterior, as quais ele seleciona e utiliza. [...]
5. A Teoria Organísmica se utiliza dos princípios da Psicologia da Gestalt,
enquanto funções isoladas, como percepção e aprendizagem que ajudam na compreensão do organismo total. [...]
6. “A Teoria Organísmica acredita que se pode apreender mais em um
estudo compreensivo da pessoa do que em uma investigação exclusiva de
42
uma função psicológica isolada e abstrata de muitos indivíduos”
(RIBEIRO, 2012, p. 158-159, grifos do autor).
Assim, a Teoria Organísmica parte de uma concepção positiva do homem ao
apresentar o impulso de autorregulação organísmica deste, “onde sua energia de vida se
transforma na expressão clara de sua atualização” (RIBEIRO, 2012, p. 108). O atualizar-se
possibilidade ao sujeito o fluxo contínuo em busca do equilíbrio e concomitante a isso, seu
crescimento. Deste modo, é possível compreender a importância dos princípios da Teoria
Organísmica e sua relação com a Gestalt-Terapia.
A partir da compreensão dos principais pressupostos filosóficos e teóricos que
fundamentam a abordagem gestáltica, a seguir, discorreremos sobre alguns dos conceitos
centrais que dão base a teoria e a prática desta abordagem e que são importantes para a
discussão realizada na análise deste trabalho, que são: homeostase, awareness e ajustamento
criativo.
Perls (1988) evidenciou que a homeostase, também conhecida como autorregulação
organísmica (conceito oriundo da Teoria Organísmica de Goldstein), é um processo em que o
organismo tenta manter um equilíbrio permanente de sua saúde, independente da situação que
esteja sendo exposto. Desta forma, um organismo saudável se autorregula conforme suas
necessidades, entendendo que a vida é composta pelo movimento de desequilíbrios e
equilíbrios. Esse processo é contínuo, uma vez que
[...] suas necessidades são muitas e cada necessidade perturba o equilíbrio, o
processo homeostático perdura o tempo todo. Toda vida é caracterizada pelo
jogo continuo de estabilidade e desequilíbrio no organismo. Quando o
processo homeostático falha em alguma escala, quando o organismo se mantém num estado de desequilíbrio por muito tempo e é incapaz de
satisfazer suas necessidades, está doente. Quando falha o processo
homeostático o organismo morre (PERLS, 1988, p. 20).
Deste modo, a abordagem gestáltica compreende que a manutenção da saúde do
indivíduo vai depender de um processo homeostático saudável e funcional. Contudo o
processo de homeostase ou autorregulação só acontecerá diante da tomada de consciência e
satisfação das necessidades do indivíduo, ou seja, é necessário que ocorra a awareness
(tomada de consciência) e que ele se ajuste de forma criativa (ajustamento criativo) para que
43
ocorra um processo saudável de satisfação de suas necessidades visando reestabelecer o
equilíbrio.
Diante disso, Frazão (1995) compreende que a awareness é o estado de consciência
interno do sujeito, no qual ficam armazenados seus sentimentos, sensações e percepções,
somente existindo no estado de coisas, diante da relação estabelecida com o externo. Nesse
sentido, é necessário salientar que
Awareness é a apreensão, com todas as possibilidades de nossos sentidos, da
ocorrência do mundo dos fenômenos dentro e fora de nós. Esta apreensão se dá no presente, no aqui-e-agora. Mesmo quando lembramos de algo do
passado, o lá-e-então, o ato de lembrar está se dando no presente. Embora a
awareness seja sempre presente, o objeto dela pode pertencer a um outro
tempo e espaço (YONTEF, 1993 apud FRAZÃO, 1995, p. 146, grifos do autor).
Desta forma, o conceito de awareness se refere à compreensão tanto dos fenômenos
internos, quanto dos fenômenos externos, permitindo, com isso, que se possa atingir uma
consciência amplificada sobre nosso funcionamento, ou seja, quanto mais tomadas de
consciência o sujeito têm, maior será a consciência tanto dos seus processos, quanto de si.
Assim, de acordo com Perls (1988, p. 77),
O “conscientizar-se” fornece ao paciente a compreensão de suas próprias capacidades e habilidades, de seu equipamento sensorial, motor e intelectual.
Não se trata de consciente – que é puramente mental – como se a experiência
fosse investigada somente através da mente e de palavras. O “conscientizar-
se” fornece algo mais ao consciente. Trabalhando, como nós, com o que o paciente tem, seus meios atuais de manipulação, mais do que com o que ele
não desenvolveu ou perdeu, a “conscientização” dá tanto ao paciente quanto
ao terapeuta a melhor imagem dos recursos atuais do paciente.
O terceiro e último dos principais conceitos da Gestalt-Terapia que destacamos neste
trabalho é o ajustamento criativo, que é a busca singular por equilíbrio, de forma criativa, que
ocorre através da autorrealização e dos processos de ajustamento do organismo visando à
satisfação das necessidades que vão surgindo durante a vida. Estamos sempre em movimento
de mudança e é necessário que esse movimento ocorra para nos mantermos
saudáveis/funcionais, caso contrário, entraremos num movimento que pode ser considerado
não-saudável/disfuncional.
44
Deste modo, podemos entender que o ajustamento criativo é um processo que parte da
demanda e do surgimento de um fenômeno vivenciado por um indivíduo que se ajusta dentro
das suas possibilidades de enfrentamento. Assim, Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 211)
explicam que
Dada a novidade e a variedade indefinida do ambiente, nenhum ajustamento seria possível somente por meio da auto-regulação herdada e conservativa; o
contato tem de ser uma transformação criativa. Por outro lado, a criatividade
que não está continuamente destruindo e assimilando um ambiente dado na percepção, e resistindo à manipulação, é inútil para o organismo e
permanece superficial faltando-lhe energia [...].
Em conformidade com este argumento, Cardella (2014, p. 114) ressalta que
O ajustamento criativo não significa prescindir do já conhecido, do vivido, nem repetir o que é tradicional, mas ser capaz de um reposicionamento
singular, diferente e pessoal do tradicional, recriando-o. Ajustamento
criativo é então a capacidade de pessoalizar, subjetivar e se apropriar das experiências que acontecem no encontro com a alteridade, processo contínuo
no campo organismo/meio.
Frazão (1995) compreende que para ocorrer um ajustamento criativo funcional é
necessário que o indivíduo tenha habilidades criativas e flexíveis ao estabelecer relações com
o ambiente, de modo que possa suprir suas necessidades ao entrar em contato com os
fenômenos, sendo importante respeitar seus limites e unicidade. Desta forma, é possível
entender que o ajustamento criativo disfuncional só ocorrerá quando o indivíduo não
conseguir entrar em contato com os fenômenos e nem suprir suas necessidades de forma
criativa e satisfatória, cristalizando, assim, esse processo, o que faz com que esse indivíduo
suprima suas necessidades e sentimentos e vivencie suas relações de forma inautêntica e
artificial.
O ajustamento criativo se torna um conceito fundamental para compreendermos as
possibilidades de vivenciar o luto saudável e/ou complicado. A vivência do processo de luto
pode ser considerada saudável quando o indivíduo consegue passar por essa experiência de
forma plena até seu esgotamento, vislumbrando novas formas de se adequar e lidar com a
realidade posta. Em contrapartida, o luto pode ser considerado complicado quando o enlutado
não consegue se ajustar e agir criativamente, se acomodando e cristalizando em uma das fases
45
do processo de enlutamento, não conseguindo se aquedar à nova vida que se apresenta a partir
da perda e atender às necessidades que emergem na sua relação com o meio.
Portanto, após tudo que foi exposto concernente ao nosso referencial teórico, que teve
como objetivo obter uma melhor compreensão sobre o tema em estudo nesse trabalho, o luto
sob o olhar da Gestalt-terapia, entendemos que cada pessoa é um ser único e, por esse motivo,
a vivência desse processo será compreendida e sentida de forma singular. Além disso,
enfatizamos que cada pessoa irá procurar seus próprios meios de lidar com esse processo
(ajustamentos criativos) visando alcançar um equilíbrio (homeostase/autorregulação
organísmica).
No próximo capítulo, apresentaremos a metodologia, a análise e a discussão desta
pesquisa, de modo que descreveremos os caminhos percorridos pela mesma e faremos uma
discussão a respeito do luto, relacionando-o à abordagem gestáltica.
46
4 METODOLOGIA, ANÁLISE E DISCUSSÃO: AS CONTRIBUIÇÕES DA
GESTALT-TERAPIA PARA A COMPREENSÃO DA VIVÊNCIA DO LUTO COMO
UM PROCESSO SINGULAR
Neste capítulo, inicialmente, apresentaremos os caminhos metodológicos percorridos
na realização desta pesquisa qualitativa e bibliográfica. Também abordaremos como ocorreu o
processo de análise de dados (artigos científicos), de acordo com a análise de conteúdo de
Laurence Bardin (2004) e, por fim, traremos a discussão dos resultados dessa pesquisa.
O objetivo geral dessa pesquisa foi analisar como a Gestalt-terapia compreende o
processo de luto e suas formas de enfrentamento. Para isso, tivemos como objetivos
específicos: identificar as principais teorias que discutem sobre o luto, a perda e a morte;
apresentar os tipos de luto; e analisar artigos científicos que discutam sobre o luto a partir do
olhar da Gestalt-terapia.
A pesquisa que realizamos seguiu os pressupostos da abordagem metodológica
qualitativa. De acordo com Minayo (2012), a pesquisa qualitativa atende a questões
específicas, levando em consideração as ciências sociais, que não focam em quantificar o
objeto de estudo. Desta forma, é importante salientar que a pesquisa qualitativa busca
compreender
[...] o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças,
dos valores e das atitudes. Esse conjunto de fenômenos humanos é entendido aqui como parte da realidade social, pois o ser humano se distingue não só
por agir, mas por pensar sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e
a partir da realidade vivida e partilhada com seus semelhantes (MINAYO,
2012, p. 21).
Nessa perspectiva, utilizamos nesse estudo os princípios da pesquisa qualitativa para
compreendemos as diferentes formas que o processo de luto se apresenta e é vivenciado, além
de perceber que há uma variedade de possibilidades de sentidos que podem ser atribuídos a
esse fenômeno por cada pessoa, tendo como norte o olhar da Gestalt-terapia.
Além de qualitativa, esta pesquisa se caracteriza por ser um estudo bibliográfico, que
tem como objetivo a análise da literatura acerca de um determinado assunto, obtendo como
ponto de partida um levantamento acerca das produções existentes sobre a temática de
47
interesse e a possibilidade do pesquisador de entrar em contato com a bibliografia produzida,
sendo ela em forma de livros, revistas, publicações científicas ou de circulação midiática e
imprensa escrita, para que seja possível fundamentar a análise da pesquisa ou manipular as
informações obtidas. Este procedimento reflexivo, sistemático, controlado e crítico possibilita
diversas descobertas em qualquer campo do conhecimento (LAKATOS; MARCONI, 1992).
No que se refere ao processo de busca e acesso aos dados que analisamos nessa
pesquisa, utilizamos como fonte a base de dados Google Acadêmico. A busca por publicações
que discutissem sobre luto e Gestalt-terapia foi realizada no período de julho a agosto de
2019. No total, foram realizadas quatro buscas, em todas elas selecionamos artigos científicos
publicados na língua portuguesa, e em apenas duas delas restringimos a busca ao período
entre 2017 e 2019 para obtenção de produções mais atualizadas sobre a temática em tela.
A primeira busca foi realizada com os descritores “luto” e “gestalt-terapia” juntos e
sem filtro, obtendo como resultado aproximadamente 2.210 publicações. A segunda busca foi
realizada com os mesmos descritores, porém, limitada ao período de 2017 a 2019, obtendo-se
como resultado 258 produções.
A terceira busca foi realizada com a expressão “luto sob o olhar gestáltico” sem filtro,
obtendo como resultado aproximadamente 2.180 publicações. A quarta e última busca foi
realizada com a mesma expressão, mas limitado ao período de 2017 a 2019, obtendo como
resultado 451 publicações. A seguir, apresentaremos um quadro com cada uma das tentativas
de busca e os seus respectivos resultados.
Quadro 1 – Resultados das buscas realizadas no Google Acadêmico
Descritores/
Expressão
Resultado sem o filtro do
período
Resultado com o filtro de
2017 a 2019
Luto e Gestalt-terapia 2.210 258
Luto sob o Olhar Gestáltico 2.180 451
Fonte: os autores
Após a execução desse processo de busca e levantamento das publicações na base de
dados, determinamos como critério de inclusão para a seleção das publicações a serem
48
analisadas neste trabalho artigos científicos em português, publicados no período de 2017 a
2019, que tivessem a Gestalt-terapia como referencial teórico (ou uma das suas bases
filosóficas e teóricas) e abordassem no título pelo menos um dos três termos: luto, perda e
morte; sendo excluídos todas as demais produções que não atendessem esse critério.
A partir disso, inicialmente, realizamos a leitura de todos os títulos das produções
resultantes das buscas na base de dados e, após este processo de filtragem, chegamos ao
número de 9 artigos científicos em português. Contudo, posteriormente, foi necessário
efetuarmos mais duas etapas de filtragem. Na primeira etapa, após a leitura dos títulos e
resumos de cada um dos 9 artigos, retiramos 4 deles por não atenderem ao objetivo de
discussão desse trabalho. E na segunda etapa, após a leitura na íntegra dos 5 artigos restantes,
fizemos mais uma filtragem, pois percebemos que somente 4 deles colaborariam de forma
satisfatória para a discussão proposta nesta pesquisa.
Dentro dos objetivos que buscamos discutir, é importante ressaltar uma informação
que surgiu na trajetória de seleção destes artigos: dos 4 artigos científicos em português
selecionados para a análise, 2 deles discutem acerca do processo de luto na perspectiva teórica
da Gestalt-terapia e 2 abordam o luto sob teorias que fundamentam filosoficamente a Gestalt-
terapia, sendo um deles a ótica humanista e o outro a perspectiva fenomenológica.
Assim, apesar da grande quantidade de publicações relacionada à temática – obtida a
partir das buscas realizadas –, num primeiro momento, após o processo de filtragem, somente
9 artigos foram selecionados. Dessa forma, verificamos que, mesmo existindo muitas
publicações relacionadas ao processo de luto, é notável que há poucas publicações científicas
recentes que relacionam o processo de luto com a Gestalt-terapia e suas bases filosóficas e
teóricas.
A seguir, apresentaremos um quadro com a descrição do material selecionado para a
análise dessa pesquisa, destacando3: título, resumo, palavras-chave, autor(es) e ano de
publicação de cada artigo científico, sendo enumerados de acordo com o ano de publicação.
3 Informamos que o título, o resumo e as palavras-chave apresentadas no quadro foram elaborados
pelos autores de cada artigo científico.
49
Quadro 2 – Artigos selecionados para análise
Nº TÍTULO / RESUMO / PALAVRAS-CHAVES AUTORES ANO
1 A MORTE E O LUTO NA PERSPECTIVA DA
PSICOLOGIA HUMANISTA
Resumo: O luto pode ser definido como um conjunto de reações,
sensações e sentimentos diante de uma perda. A morte é compreendida como algo irreparável, irreversível, impositiva, o
fim. Esse tema é relevante por se tratar de uma realidade que
todos vão enfrentar. O presente texto tem como objetivo descrever o processo de morte e luto, analisando o tema a partir da terceira
força psicológica que são as abordagens humanistas. A
metodologia utilizada foi revisão de literatura. Para o
existencialismo a morte é entendida como condição humana. A fenomenologia trata o luto e a morte como fenômenos próprios do
humano. Os resultados obtidos a respeito da morte são de um
fenômeno impositivo, e com isso deve-se valorizar a vida enquanto ela se manifestar. O luto, enquanto fenômeno existencial
é marcado pelo sofrimento e perda de sentido. Ele pode, contudo,
ser ressignificado e ser vivido de forma saudável.
Palavras chave: Morte. Luto. Fenomenologia.
Neila Jucilene Ceccon
2017
2 LUTO, PATHOS E CLÍNICA: UMA LEITURA
FENOMENOLÓGICA
Resumo: A compreensão sobre o luto sofreu profundas modificações em seus aspectos teóricos e práticos, com
repercussões importantes na recente versão do DSM. Não apenas
o contexto cultural, mas também a clínica psicológica impactou
profundamente a sua compreensão. A psicologia fenomenológico-existencial estuda os fenômenos como vivências no mundo,
contribuindo com a reflexão sobre o caráter vivencial e pathico do
enlutamento. Este estudo objetiva apresentar o luto nessa perspectiva e suas implicações para a clínica psicológica. Quando
submetemos o fenômeno do luto à epoché, deparamo-nos com a
evidência da intersubjetividade. O luto é uma vivência que tem início na abrupta supressão do outro enquanto corporeidade,
rompendo os sentidos habituais do mundo-vida. Diante da
suspensão de sentidos, propõe-se que o setting clínico permita o
retomar e o ressignificar das narrativas interrompidas, diante de um novo mundo-vida que se abre fora do horizonte das
predeterminações teóricas.
Palavras-chave: Luto. Clínica. Psicologia Fenomenológica. Intersubjetividade. Pathos.
Joanneliese de
Lucas Freitas
2018
3 PSICOTERAPIA INFANTIL: PERDAS, LUTO E
AJUSTAMENTOS CRIATIVOS ELABORADOS NO
BRINCAR
Resumo: Este artigo se propõe a discutir a psicoterapia infantil na
perspectiva da Gestalt-terapia, trazendo como elementos questões
referentes às perdas, ao luto e aos ajustamentos criativos
Renata da
Silveira
Borstmann
Yohanna
2018
50
elaborados no brincar. Para tanto, utilizamos como metodologia a
pesquisa bibliográfica, bem como trouxemos ilustrações de nossa
prática clínica para corroborar com o que foi explicitado na teoria.
Os principais autores utilizados foram Perls (1977), Oaklander (1980), Aguiar (2005), Fukumitsu (2012) e Martins e Lima
(2014). Percebemos que as perdas não dizem respeito apenas à
morte física, mas também à morte simbólica, a qual pode ser vivenciada de diferentes formas. Por meio dos casos
exemplificados, evidenciamos que através do brincar os pacientes
conseguiram elaborar ajustamentos criativos, sejam eles funcionais ou disfuncionais, como modo de lidar com a situação
vivenciada.
Palavras-chave: Gestalt-terapia. Psicoterapia infantil. Perdas.
Luto. Ajustamentos criativos.
Breunig
Maria Luisa
Wunderlich dos Santos de
Macedo
4 A EXPERIÊNCIA DE MÃES APÓS A MORTE DA
CRIANÇA
Resumo: Este trabalho tem por objetivo compreender a
experiência de mães que vivenciaram a morte de um(a) filho(a) na fase infantil (do nascimento aos 11 anos de idade). A pesquisa está
sendo realizada na Associação dos Pais e Amigos dos Leucêmicos
de Alagoas (APALA). O instrumento utilizado para coleta dos dados consiste em entrevistas semiestruturadas com mães
selecionadas de acordo com critérios de inclusão e exclusão. A
metodologia segue uma proposta qualitativa embasada no modelo fenomenológico, caracterizada por estudo de caso. Os
procedimentos para análise e discussão dos resultados ocorrerão a
partir do método fenomenológico de Giorgi (2000), que consiste
em descrever com maior precisão os fenômenos vivenciados, que se enquadram na perspectiva da Gestalt-terapia como aporte
teórico. Atualmente, percebe-se uma espécie de tabu a respeito
deste tema, na medida em que as pessoas evitam falar abertamente sobre o assunto devido à dor e ao sofrimento que gera para as
mães e a família, em sentido mais específico, e o mal-estar para a
sociedade, de maneira geral. Este trabalho pretende contribuir com o avanço de pesquisas sobre a experiência de mães que perderam
seus filhos ainda crianças, fornecendo subsídios básicos para
profissionais de Psicologia e áreas afins.
Palavras-chave: Morte da Criança. Experiência das Mães. Gestalt-terapia.
Helisa Maria
Canuto Jacinto
Juciane de Holanda Santos
Thaissa Danielle dos Santos Silva
Daniela do Carmo
Kabengele
2018
Fonte: os autores
A análise dos artigos científicos selecionado foi realizada a partir do método da
análise de conteúdo de Laurence Bardin (2009), que se volta para a descrição objetiva,
sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto na comunicação. Segundo a autora, a análise
de conteúdo
51
[...] é um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter,
por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição de conteúdo das
mensagens, indicadores (qualitativos ou não) que permitem a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis
inferidas) destas mensagens (BARDIN, 2004, p. 37).
Desta forma, a análise do conteúdo do material dessa pesquisa organizou-se em três
etapas cronológicas, que são divididas por Bardin (2009) da seguinte maneira: a pré-análise; a
exploração do material; e o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação. Na
primeira etapa (pré-análise), se inicia o processo de análise, sendo considerada uma fase de
organização do material a ser analisado (nesta pesquisa foram analisados 4 artigos científicos
em português). O ponto de partida foi realizar leituras minuciosas do material selecionado
tendo por objetivo conhecer este material para a sistematização das primeiras impressões
obtidas a partir desta pré-análise. Com isso, para fundamentar as nossas discussões, foi
necessário, a priori, identificar questões similares e possíveis discordâncias dentre os quatro
artigos analisados.
Dando continuidade ao processo de análise, a fase seguinte é a da exploração do
material, na qual se buscou conhecer mais a fundo os quatro artigos analisados de modo a
confirmar as primeiras impressões levantadas. De acordo com Bardin (2009), esta é a fase
mais longa e cansativa da análise, pois consiste em decodificar, decompor ou enumerar os
dados em função de regras previamente formuladas, ou seja, faz-se uma análise mais
detalhada do material sendo esta norteada pelos objetivos e pelo foco de discussão da
pesquisa.
Para finalizar o processo de análise de conteúdo, na terceira e última etapa foi
realizado o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação. Nesta, os resultados
obtidos após a análise aprofundada foram organizados e sistematizados em categorias, que é
uma maneira sucinta de agrupar os elementos presentes nas mensagens, considerando suas
características comuns e semelhanças, sendo “uma representação simplificada dos dados em
bruto” (BARDIN, 2009, p. 147). Para obter esse objetivo, a autora destaca algumas formas de
alcançar uma alta qualidade nas categorias, que são:
Exclusão mútua: condição que pressupõe que os elementos sejam únicos, não devendo
apresentar-se em mais de uma categoria;
Homogeneidade: o processo de organização das categorias deve estar baseado em um
único princípio de classificação;
52
Pertinência: presume que a categoria deve estar em acordo com o quadro teórico e
material de análise escolhidos;
Objetividade e Fidelidade: definição assertiva das variáveis tratadas nas categorias a
fim de evitar as distorções de questões subjetivas e variações de juízos; e
Produtividade: oferecer resultados férteis em índices de inferência, produção de novas
hipóteses e exatidão de dados.
Após finalizar as etapas citadas anteriormente, chegamos a três categorias, sendo elas:
1. A Morte e a Perda são Vivências Singulares e Culturais; 2. Tipos de Luto
(saudável/funcional e não-saudável/disfuncional); e 3. O Processo Singular do Luto. Essas
categorias expressam o conjunto de discussões que foram construídas a partir da análise dos
dados desta pesquisa.
Acreditamos que a metodologia adotada ofereceu subsídios suficientes para
alcançarmos o objetivo do presente estudo. A seguir, apresentaremos os resultados das
discussões desta análise fazendo um diálogo entre as categorias elaboradas e a discussão
presente nos capítulos anteriores.
4.1 A Morte e a Perda são Vivências Singulares e Culturais
Como apresentamos no capítulo 1 deste trabalho, a morte e a perda são compreendidas
e vivenciadas de diferentes formas, tendo como pressuposto a cultura e a sociedade em que o
sujeito esteja inserido, assim, cada pessoa tem uma percepção própria desses fenômenos. É
importante salientar que a morte foi e é vista de diversas maneiras ao longo do tempo – a
partir de uma perspectiva histórica e cultural –, de modo que, atualmente, coexistem
diferentes formas de perceber e lidar com a morte.
Nesse sentido, retomando o capítulo 1, Soares e Castro (2017) apontam que cada uma
das diversas culturas existentes tem seus próprios rituais para cuidar de seus mortos, além de
um modo próprio de vivenciar e processar a morte. Contudo, ressaltam que a morte é
vivenciada como um processo único para cada sujeito, por mais que se partilhe da mesma
cultura e sociedade.
Sobre esse aspecto da singularidade, Assunção e Malaguth (2006, p. 250) apontam que
53
Tanto para os humanistas quanto para o existencialismo de Heidegger, o homem possui responsabilidade e possibilidade de dar forma à sua própria
existência, do mesmo modo que um bailarino dá forma à coreografia a ser
dançada [...]. Pode-se ver aí que, embora lançado em contingências sociais e culturais comuns, o homem dá singularidade a seu modo-de-ser, assim como
na dança, a coreografia na qual o dançarino é lançado a priori, não consegue
furtar-se à forma de sua interpretação singular.
Dentre os quatro artigos científicos que foram analisados nessa pesquisa, visando
discutir as diferentes possibilidades de vivenciar a morte e a perda culturalmente e
socialmente, tendo como base as contribuições da Gestalt-terapia, inicialmente, destacamos o
Texto 4, que foi produzido por Helisa Maria Couto Jacinto et al. (2018) e tem como título “A
experiência de mães após a morte da criança”. Considerando a análise desse texto, foi
possível ter uma compreensão da morte e da perda não apenas a partir de uma visão
generalista desses fenômenos, mas também a partir de uma visão específica de como eles são
vivenciados na infância.
Deste modo, Papalia e Feldman (2013 apud JACINTO et al., 2018, p.46) enfatizam
que
[...] existe uma variedade de conceitos atribuídos ao tema [morte], de acordo
com a época, o contexto e cultura em que cada indivíduo está inserido. O
significado de morte pode variar, por exemplo, entre um idoso de origem
japonesa, seguidor do Budismo, crença a qual prega a aceitação do inevitável, e um jovem norte-americano, criado sob a crença de que é dono
de seu próprio destino, até mesmo se este jovem também tenha a origem
japonesa.
No Texto 4, Jacinto et al. (2018) salientam que, em alguns momentos, a morte não é
compreendida somente como um processo biológico, o fim de um ciclo, visto que ela, muitas
vezes, também está associada à perda de algo significativo no campo simbólico. Sendo assim,
retomemos o que foi apresentado no capítulo 1, quando a autora Kovács (2010) explica a
diferença entre a morte biológica, que é representada pela suspensão completa e definitiva das
funções essenciais de um organismo vivo, e a morte simbólica, que se caracteriza pela perda
ou ausência de um objeto ou ser vivo importante, que apresente significado afetivo e
emocional para o sujeito.
54
Como apresentado no capítulo 1, geralmente, não associamos a morte simbólica à
perda de algo importante, porém, ela está interligada à morte biológica, assim como o
consequente luto, sendo todos estes considerados fenômenos universais nos quais os
indivíduos estão fadados a passar em algum momento da vida. O conceito de morte existe
porque algo significativo se perdeu.
No capítulo 2 desse trabalho destacamos a assertiva de Perls (1988) de que os
fenômenos não são percebidos de forma isolada pelo sujeito, sem ter uma relação entre eles,
pois esses fenômenos se organizam da forma mais significativa possível – conforme as
necessidades e motivações do sujeito –, formando uma gestalt, que é um todo, uma
configuração. Assim, fazendo uma correlação entre essa afirmação de Perls e as diferentes
formas de compreender o fenômeno da morte, considerando os aspectos individuais, sociais,
históricos e culturais, é necessário compreender o que enfatiza Weiss (2014, p. 39 apud
JACINTO et al., 2018, p. 47):
A humanidade, por conseguinte, ao longo do processo histórico, constitui um conjunto de crenças e de representações frente ao fenômeno do falecimento.
São esses comportamentos culturais que vão nortear as atitudes dos
membros das sociedades diante deste evento, sendo que a maneira como
uma determinada sociedade se coloca perante a morte exerce uma função decisiva na construção e manutenção de sua própria identidade coletiva.
Somado a isso, diante das compreensões acerca dos fenômenos da morte, perda e luto,
o Texto 1, que foi produzido por Neila Jucilene Ceccon (2017) e tem como título “A morte e
o luto na perspectiva da psicologia humanista”, menciona Kovács e traz uma compreensão da
morte e da perda como eventos universais, contudo, destaca o seguinte: “A morte é um
fenômeno universal, ponto terminal e inevitável, porém não é assim que os indivíduos a
encaram” (p. 888). Além disso, a autora desse texto afirma que por muito tempo a morte foi
vista como um fato aterrorizante e assustador, mas que em algumas culturas era tratado com
naturalidade, sem ser enaltecido ou evitado, sendo considerado como um ritual de passagem.
Essa autora frisa que se tornar consciente da existência da finitude dos processos da
vida não é fácil, visto que haverá de se reconhecer o possível encerramento de um ciclo.
Somado a isso, ela destaca que “A morte do outro fala da morte de si mesmo e permite fazer
uma aproximação com o fenômeno da terminalidade” (CECCON, 2017, p. 895).
55
Assim, Martins e Lima (2014, p. 12) afirmam que existe uma evitação de se falar
sobre a morte, destacando que
Ao se falar de morte se evidencia como expor as fragilidades e as limitações
humanas é entendido como fracasso, visto que nos é cobrado a sermos:
saudáveis, alegres, fortes e belos. Entretanto, é importante destacar que as fraquezas, a pobreza e o desespero fazem parte do humano.
Nesse sentido, compreendemos que a morte sempre será tratada como um paradoxo da
humanidade, pois, geralmente, se busca a todo custo viver tudo que a vida pode proporcionar,
sendo comum não perceber que a morte faz parte do desenvolvimento humano e que a vida
segue rumo à finitude, considerando o inevitável fluir do tempo.
Dando continuidade às nossas análises, a morte na infância é o tema central discutido
por Jacinto et al. (2018) no Texto 4, em que elas apresentam os diferentes sentidos atribuídos
a essa perda, afinal, quando uma criança morre, coloca-se em cheque o processo “natural” do
desenvolvimento humano, no qual se espera que os pais morram antes dos filhos. Com isso,
comumente, a morte é associada ao fim da vida, na velhice, como uma conclusão do processo
de envelhecimento – este que se inicia desde o nosso nascimento. Nessa perspectiva, as
autoras ressaltam que “A morte de um(a) filho(a) gera mudanças no cotidiano dos pais, e pode
incentivá-los a refletir sobre todos os aspectos de suas vidas, pois a perda vivenciada os afeta
de maneira irreversível, desconstruindo seus sonhos” (p. 50).
O Texto 2, produzido por Joanneliese de Lucas Freitas, com o título “Luto, pathos e
clínica: uma leitura fenomenológica” (2018), apresenta que a morte nos impõe a vivência da
perda de forma irreversível, acarretando sentimento de angústia e impotência perante o
desaparecimento do outro e da finalização da história em comum. A mesma reflete que “Não
é apenas o outro que desaparece com sua história. É uma vida comum que se interrompe,
morremos “nós”, em largo sentido – eu e o outro” (p. 51).
Ainda de acordo com a autora,
A vivência da perda de um ente querido costuma ser uma experiência de
profundo sofrimento psíquico em que o sobrevivente perde mais do que um
“outro”, perde também possibilidades próprias de existir no mundo, podendo experienciar, assim, o esvaziamento de sentido de sua existência (FREITAS,
2018, p. 52).
56
Diante disto, Fukumitsu (2004 apud OLIVEIRA; OLIVEIRA; LOBATO, 2017, p.
264), importante autora brasileira na discussão sobre luto, suicídio, processos autodestrutivos
e Gestalt-terapia, frisa que
Em geral não se pode fazer nada quando alguma pessoa amada morre. Por outro lado, é importante entender que, embora não possamos fazer nada com
as facticidades da vida, existe a liberdade (permeada pela possibilidade) de
se fazer o que se quer e de escolher como se apropriar da situação propriamente dita.
Fundamentados nessas afirmações, retomamos o que foi discutido no capítulo 1 deste
trabalho quando apresentamos que a perda em si é um acontecimento comum a todos os seres
humanos, pois perder algo é inerente a estar vivo, contudo, ressaltamos que essa perda poderá
ser expressa e vivenciada de diferentes formas por cada pessoa, considerando tanto as
singularidades, quanto os aspectos socioculturais presentes em sua história de vida.
Portanto, tendo por base o que foi discutido nesta primeira categoria, é importante
salientar que há uma relação direta entre as formas de percepção dos fenômenos da morte, da
perda e do luto com os contextos históricos e culturais nos quais as pessoas estão inseridas.
Assim, frisamos o que foi discutido anteriormente acerca da influência da história e da cultura
nas vivências coletivas destes processos. Contudo, apesar disso, destacamos que estes
fenômenos são vividos de forma singular e, por esse motivo, devem ser compreendidos
levando em consideração essas especificidades, de modo a respeitar a experiência e o
contexto em que o sujeito está inserido. Ou seja, é importante considerar que cada pessoa terá
seu tempo/ritmo de processar sua vivência e terá seus próprios modos de expressão dos mais
variados sentimentos que podem emergir.
4.2 Tipos de Luto (saudável/funcional e não-saudável/disfuncional)
Para entendemos os tipos de luto e como estes são definidos, é necessário
compreender a concepção de homem na Gestalt-terapia. Para isso, retomaremos o que
discutimos no capítulo 2, no qual destacamos a visão de homem apresentada por Ribeiro
(2012) ao enfatizar que os sujeitos têm recursos para modificação dos seus autoconceitos,
57
atitudes e comportamentos, através da auto-compreensão, afirmando, assim, que o ser humano
possui a tendência a atualizar-se e a crescer enquanto sujeito de potencialidades.
A abordagem gestáltica considera o homem a partir de uma concepção holística, como
um sujeito biopsicossocial dotado de múltiplas dimensões: física, afetiva, intelectual, cultural,
social e espiritual. Logo, a experiência é fruto da interação do indivíduo com o seu meio
(FRAZÃO, 2015).
Desta forma, Perls (1977 e 1998 apud CARDOSO, 2013, p. 63) afirma que
[...] a Gestalt-terapia concebe o homem como o melhor intérprete de si
mesmo, de sua individualidade complexa e dinâmica, o que é possível
mediante o princípio da presentificação da experiência (Awareness), ou seja, no modo como seu passado e seu futuro são experienciados no aqui e agora.
É fundamentado nesta visão de homem que este trabalho buscou compreender os
possíveis tipos de luto, estes são evidenciados por Jacinto et al. (2018) no Texto 4. Apesar de
não se deterem em aprofundar esta discursão em seu artigo, as autoras trouxeram alguns
recortes de como o processo de luto pode ser vivenciado a partir da compreensão gestáltica,
ressaltando duas formas possíveis de compreender esse processo a partir dessa teoria, que são:
[...] a saudável e a disfuncional. Na forma saudável, o indivíduo consegue ultrapassar todas as fases da negação até a aceitação da morte, sendo
particular a maneira como a morte é encarada em cada fase. Na vivência
disfuncional, o indivíduo não consegue passar de uma fase para outra, fixando-se na situação inacabada, o que acaba gerando mais sofrimento
(MARTINS; LIMA, 2014 apud JACINTO et al., 2018, p. 51).
Acerca das possíveis formas de ver e intervir em situações de enlutamento, no Texto
2, Freitas (2018) aponta que, na atualidade, existem divergências no modo de compreender e
atuar diante do luto. Além disso, há controvérsias no que se refere à sua classificação como
transtorno mental. A autora complementa discorrendo que
Testemunhamos uma era de patologização da vida e de hipermedicalização,
com pouca tolerância às vivências inerentes ao enlutamento. Com o
enfraquecimento dos ritos que envolvem a morte e o luto, sua individualização e subjetivação, e a redução de suas possibilidades
expressivas no seio da comunidade, a expressão do luto tem sido delimitada
58
e compreendida socialmente – cada vez mais e com maior intensidade –
como uma vivência patológica. Tal perspectiva de invisibilidade de sua
expressão produz consequências relevantes na qualidade das vivências que envolvem o enlutamento, assim como nas possibilidades ou dificuldades
encontradas pelo enlutado no enfrentamento da perda de um ente querido (p.
51).
Contudo, a autora prossegue expondo que, atualmente, a partir de novos estudos
apresentados nos últimos anos, há diversas teorias que lançam um novo olhar para o
fenômeno do luto, indo além das discussões relacionadas ao DSM-5. Desta maneira, esses
novos estudos implicaram em mudanças na compreensão e distinção desse fenômeno, “[...]
tanto no que é considerado “luto normal” quanto no que é considerado “luto complicado”,
bem como produziu diferenças significativas no que se considera como adequado para o seu
suporte e atenção em psicoterapia e mesmo em psiquiatria.” (p. 51).
Discorrendo a respeito da importância da compreensão da Gestalt-terapia perante o
processo de enlutamento, evidenciamos o conceito de awareness (explicado no capítulo 2
deste trabalho), que é descrito por Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 75) como sendo
“[...] o sentir espontâneo do que quer que surja em você – do que você está fazendo, sentindo,
planejando”. Ressaltamos que essa experiência só será espontânea quando houver contato
direto com a vivência ou situação presente.
Neste sentido, sobre a importância de se entrar em contato com o que se está
vivenciando, a autora do Texto 1 menciona Tada e Kovács (2007 apud CECCON, 2017, p.
886) enfatizando que “[...] é através da vivência do processo de luto e da expressão dos
sentimentos que o enlutado poderá externalizar sua dor, contribuindo assim para uma melhor
elaboração do mesmo”.
Outro aspecto interessante é a importância de se vivenciar os processos de morte e
perda, o qual é apontado no Texto 3, produzido por Renata da Silveira Borstmann, Yohanna
Breunig e Maria Luisa Wunderlich dos Santos de Macedo (2018), com o título “Psicoterapia
infantil: perdas, luto e ajustamentos criativos elaborados no brincar”, que usa os autores
Martins e Lima para destrinchar a temática em discussão, apresentando que tanto a morte
como a perda são necessárias e precisam ser vivenciadas para o crescimento e evolução do
sujeito. Nesse mesmo sentido, Fukumitsu (2004, p. 14) afirma que “[...] perdas são
experiências do nosso viver, experiências como inúmeras outras, que nos ensinam,
transformam, deformam e formam”.
59
De acordo com Martins e Lima (2014 apud BORSTMANN; BREUNIG; MACEDO,
2018, p. 81), “[...] as perdas e a morte são inerentes à vida humana, sem que seja possível
pensar a ideia de vida sem conceber a possibilidade da morte”. Sendo assim, é importante
frisar que o sujeito precisará passar por esses processos, se atualizando a cada acontecimento,
considerando que cada vivência é única e impossível de ser re-vivenciada. Dessa forma, tendo
em vista que estamos num constante processo de transformação e mudança, num
funcionamento saudável espera-se que a pessoa esteja sempre atualizando a sua forma de
reagir às novas experiências e situações de adversidades.
Considerando a proposta de discussão desta categoria, que reflete sobre os tipos de
luto saudável e não-saudável a partir da ótica da abordagem gestáltica, é importante retomar
alguns dos principais conceitos desta teoria que foram apresentados no capítulo 2 deste
trabalho: ajustamento criativo, autorregulação e equilíbrio/homeostase. Desse modo, no
Texto 3, Borstamann, Breunig e Macedo (2018) enfatizam que o sujeito estabelecerá com o
mundo ajustamentos criativos de forma ativa e dinâmica para lidar com o processo do luto, na
busca pela autorregulação, sendo esse um processo contínuo em busca de um equilíbrio
(homeostase) a partir da satisfação das necessidades que vão emergindo. As autoras ainda
destacam que esse processo é mais rápido com crianças, porque elas têm uma maior
capacidade criativa em ajustar-se.
Nessa perspectiva, Frazão (2015, p. 88) aponta que
O atendimento de necessidades ocorre por intermédio do ajustamento
criativo, que é a capacidade de satisfazer as nossas necessidades de acordo,
simultaneamente, com nossa hierarquia de necessidades e com as possibilidades no campo organismo/meio. Ou seja: é a capacidade de
interagir de modo ativo com o ambiente na fronteira de contato, adaptando,
quando necessário, a demanda das necessidades às possibilidades de atendimento do ambiente.
Ainda sobre esses conceitos, de acordo com Lima (2013, p. 153), os seres humanos
estão em uma “[...] constante busca de autorrealização dentro das melhores condições
possíveis que se fossem criando na relação do homem com o meio circundante”. Dessa forma,
a autorregulação é um processo em que o organismo tenta manter um equilíbrio (homeostase)
60
permanente de sua saúde4, independente da situação a que esteja sendo exposto. Assim sendo,
entendendo que a vida é composta pelo movimento de desequilíbrios e equilíbrios, espera-se
que um organismo saudável tenha a capacidade de se autorregular conforme suas
necessidades. Somado a isso, retomamos um dos princípios do movimento humanista – que é
um dos pressupostos filosóficos da Gestalt-terapia –, o qual acredita no potencial humano
para o crescimento/desenvolvimento e superação das adversidades de uma forma criativa.
A busca constante por um ajustamento criativo saudável/funcional para o enfretamento
do processo do luto foi evidenciada no Texto 1, quando Ceccon (2017, p. 885) salientou que
“O enlutado tem a difícil tarefa de lidar com o sofrimento e dar continuidade à sua própria
vida, tentando adaptar-se à nova fase. O homem é um ser para a morte, afirmam os filósofos
existencialistas, e viver negando esta realidade é viver de forma inautêntica”.
Sobre o conceito de ajustamento criativo funcional, Frazão (2015, p. 90) o considera
como
[...] um fenômeno interativo que ocorre na fronteira de contato e se refere à habilidade de se relacionar criativamente com o ambiente como indivíduo
único, com vistas à expressão e ao atendimento de necessidades – mantendo,
ao mesmo tempo, uma relação respeitosa com o outro em sua unicidade.
Deste modo, Goldstein (1961 apud LIMA, 2005, p. 11) ressalta que os
funcionamentos dos organismos tendem a “[...] autorrealizar sua natureza, a atualizar a “si
mesmo”, é o impulso básico, a única motivação pela qual a vida do organismo é
determinada”. Neste sentido, enfatizamos que, quando o organismo está funcionando de
forma saudável, essa busca pelo equilíbrio acontecerá de forma fluída, dinâmica e processual,
considerando que isso se dará de forma singular para cada pessoa.
Ainda sobre os ajustamentos criativos, no Texto 1, Ceccon (2017) frisa a importância
de compreender o indivíduo e suas vivências como únicas, dentro da dinâmica preestabelecia
de suas experiências com o mundo. Desta forma, a autora faz um destaque para os
ajustamentos que podem não ser satisfatórios, afirmando que “[...] a má elaboração do luto
pode gerar doenças, comportamentos antissociais, criminalidade, revolta, suicídio, etc” (p.
886). Como aponta Frazão (2015, p. 91), “[...] o ajustamento criativo disfuncional implicará
4 Retomando o conceito de autorregulação organísmica de Kurt Goldstein, criador da Teoria
Organísmica, que é uma das bases teóricas da Gestalt-terapia, apresentada no capítulo 2 deste trabalho.
61
algum grau de desorganização ou distorção do universo das percepções e dos sentimentos – o
que, por sua vez, interferirá nos processos de awareness”. A autora complementa expressando
que
[...] considera ajustamento criativo disfuncional um fenômeno interativo que
ocorre na fronteira de contato e se refere à inabilidade e/ou impossibilidade
de se relacionar criativamente com o ambiente. Ao contrário, a pessoa se relaciona por meio de padrões cristalizados e repetitivos, pelos quais a
expressão de necessidades e sentimentos é distorcida ou suprimida a fim de
manter a relação com o outro, por mais artificial e inautêntica que uma
relação desse tipo possa parecer. Quanto mais intensa a necessidade e maior a dificuldade de expressá-la e satisfazê-la, e quanto mais precocemente ela
ocorrer, tanto mais provável nos depararmos com sintomas graves (físicos ou
psíquicos) (p. 93, grifo do autor).
Sendo assim, considerando o que foi discutido nesta segunda categoria, ressaltamos
que há diversas compreensões acerca de como se pode vivenciar o processo de luto e suas
formas de expressão. Além disso, neste trabalho, os princípios da abordagem gestáltica nos
fazem ir além de um olhar patologizante e classificatório dos indivíduos que estão enlutados.
Com isso, para essas discussões, foi importante retomar a visão da Gestalt-terapia e
sua concepção de homem e mundo, bem como seu entendimento sobre awareness, contato,
equilíbrio/homeostase, autorregulação organísmica e ajustamentos criativos
saudáveis/funcionais e não-saudáveis/disfuncionais. Dessa forma, frisamos que há diversas
possibilidades tanto de entender quanto de enfrentar o processo de luto.
4.3 O Processo Singular do Luto
Na terceira e última categoria de análise destacamos o quanto é relevante e
indispensável, na perspectiva da Gestalt-terapia, discutir acerca do processo singular do luto.
Em nossa pesquisa, identificamos essa discussão em todos os quatro artigos científicos que
foram analisados, e dentre os pontos que foram abordados nestes textos, destacaremos nesta
categoria os mais relevantes.
O Texto 1 começa definindo o luto como “[...] um conjunto de reações, sensações e
sentimentos diante de uma perda”, complementando com a definição proposta por Tada e
Kóvacs (2007 apud CECCON, 2017, p. 885) ao explicarem que o luto é
62
[...] o processo de elaboração do sentimento de pesar devido à perda de uma pessoa querida, que envolve, portanto, muita tristeza. É também o período
em que a pessoa está passando por esse sofrer e ao mesmo tempo tem que
seguir sua vida. O luto é um processo que, apesar de difícil, deve ser vivido com intensidade. Ele não deve ser reprimido, nem negado. A pessoa que está
passando por ele deve sentir, chorar, expressar-se como um ritual de
despedida.
Esse processo de elaboração do luto é apresentado no Texto 1 por Ceccon (2017, p.
885) como sendo um “[...] fechamento gestáltico5 (fecha-se uma gestalt com sepultamento).
Sentir e passar por esse sofrer faz parte do início do processo de ressignificação da perda do
ente querido”. Essa ressignificação faz parte do processo de busca pela homeostase, conceito
destacado no capítulo 2 deste trabalho e exposto por Perls (1988) como sendo um processo
em que o organismo tenta manter um equilíbrio permanente de sua saúde, independente da
situação a que esteja sendo exposto. Como evidenciado no Texto 3 por Borstamann, Breunig
e Macedo (2018, p. 91), “[...] os fechamentos de “Gestalten” relativos a perdas significativas
fazem parte de um importante processo para que seja reestabelecido o ajustamento criativo
saudável da pessoa em sofrimento”.
Ainda de acordo com Ceccon (2017), autora do Texto 1, o luto pode se manifestar
diante de diversas situações, como a perda de um emprego, uma separação, o término de um
curso, a perda de um animal de estimação, o falecimento de um ente querido, entre outras. Ela
ressalta também que há uma diferença entre o luto e a morte, pois o luto, de certa forma, pode
ser “elaborado”, ressignificado. Essa elaboração é de extrema importância e para que ela
decorra é necessário entrar em contato com a situação de sofrimento relacionada ao
enlutamento. Com isso, é importante destacarmos o conceito gestáltico de contato, discutido
no nosso capítulo 2, que, segundo Cardella (2014, p. 113, grifo do autor),
[...] é a função que revela a necessidade de união e de separação para que
possa haver crescimento; contato é reconhecimento das diferenças, do novo,
do outro, do não eu; só pode haver experiência quando há contato, condição
de crescimento e mudança, possibilidade de atualização e transformação.
5 De acordo com Ginger (2007, p. 15, grifos do autor), “O verbo gestalten significa “pôr em forma, dar
uma estrutura significante”. O resultado, a Gestalt, é pois uma forma estruturada, completa e que
toma sentido para nós”.
63
Ainda sobre esse conceito, no Texto 1, Ceccon (2017) aponta que “[...] entrar em
contato e presentificar a experiência vivida é central para aceitar-se e vislumbrar novas
possibilidades de ação”. Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 45) complementam
exprimindo que “Todo contato é ajustamento criativo do organismo e ambiente”. O
ajustamento criativo é outro conceito em destaque no nosso trabalho. No capítulo 2, o
definimos como sendo a busca singular por equilíbrio, de forma criativa, que ocorre através
da autorrealização e dos processos de ajustamento do organismo visando à satisfação das
necessidades que vão surgindo durante a vida. Nesse sentido, Cardella (2014, p. 113, grifo do
autor) afirma que “Ajustar-se criativamente implica imprimir sua marcar nos acontecimentos
da vida, “pessoalizando-a”, tornando-a própria, atualizando as potencialidades singulares,
presentificando-as na interação com o mundo”.
Em todos os quatro artigos científicos analisados o luto é apresentado como sendo
uma experiência traumática, que gera saudade, tristeza, solidão, desorganização e uma perda
de sentido no mundo. No Texto 1, a autora cita Bowlby (2004 apud CECCON, 2017, p. 886),
que discorre acerca do luto ou perda como sendo “[...] um trauma para crianças e adultos. Ele
é colocado como uma experiência angustiante e desorganizadora”. No Texto 2, Freitas (2018)
faz um destaque para a pesquisa e a clínica em Psicologia Fenomenológico-Existencial,
apontando que
[...] o que tem se destacado fortemente nas pesquisas desde esse viés são as
vivências de dor e perda de sentido do mundo-vida na experiência do enlutado, com variações que são implicadas pelos contextos e circunstâncias
da morte, aspectos particulares de cada relação rompida e o horizonte
histórico em que se situam tais perdas (p. 52).
No Texto 4, Jacinto et al. (2018) enfatizam o luto dos pais que perderam filhos e
acentuam, citando Heleno (2013), que a morte de um(a) filho(a) é considerada um dos
momentos mais traumáticos e devastadores na vida dos pais: “Os laços parentais de proteção
e educação são desfeitos e os pais precisam lidar com sentimento de culpa e frustração” (p.
49). As autoras complementam, afirmando que, de acordo com Pampolha (2013), “[...] além
do sofrimento, os pais que perdem um filho vivenciam intensos sentimentos de impotência,
fracasso, raiva, indignação, revolta e inconformismo” (p. 49).
Outra vivência apresentada no Texto 1 que é considerada comum ao processo de luto
é a tomada de consciência de que somos sujeitos mortais e de que, consequentemente, iremos
64
morrer. Dessa forma, de acordo com Freitas (2003 apud CECCON, 2017, p. 889), “[...] o luto
que se vive pela morte de um ente querido é uma experiência dura e profunda de perda e
ainda uma evocação da própria condição de ser mortal”. Podemos relacionar esse “despertar”
com o conceito de awareness, discutido no capítulo 2 deste trabalho, que, segundo Yontef
(1998, p. 144, grifo do autor),
[...] é uma forma de experiência que pode ser livremente definida como estar
em contato com nossa própria existência, com aquilo que é... a pessoa que está consciente sabe o que ela faz, como ela o faz, que ela tem alternativas e
que ela escolhe ser como é.
Assim, o conceito de awareness se refere à compreensão tanto dos fenômenos
internos, quanto dos fenômenos externos, permitindo, com isso, que se possa atingir uma
consciência amplificada sobre nosso funcionamento, ou seja, quanto mais tomadas de
consciência o sujeito têm, maior será a consciência tanto dos seus processos, quanto de si.
Logo, tomar consciência de que somos sujeitos mortais – seres-para-a-morte – pode
nos suscitar reflexões acerca do que também pode acontecer conosco, além de nos fazer
atentar para o fato de que estamos vivos e que temos infinitas possibilidades de ser-em-vida.
Nesse mesmo sentido, Arantes (2016, p. 79) pondera que “É só pela consciência da morte que
nos apressamos em construir esse ser que deveríamos ser”.
Sobre a unicidade do luto, a autora do Texto 1 cita Freitas e Michel (2015 apud
CECCON, 2017, p. 893), que expõem que “A fenomenologia trata o luto e a morte como
fenômenos próprios do humano, e preocupa-se em evidenciar as experiências no mundo, de
forma especifica e única”. De acordo com Freitas et.al. (2015 apud CECCON, 2017, p. 894),
[...] a metodologia fenomenológica diverge dos conceitos de resolução ou
conclusão do luto e traz o termo ressignificação, que fala de novos modos e
possibilidades de existir no mundo sem aquele ente querido que partiu. Os autores propõem a compreensão do luto como condição e não processo,
como um novo modo de relacionar-se com o ausente e com sua falta.
No Texto 2, Freitas (2018, p. 55) também usa o termo ressignificação ao apontar o
seguinte:
65
[...] o mais importante – talvez também o mais difícil – seja compreender
que a morte nos impõe uma ruptura da narrativa de nossa coexistência, na
qual nossas histórias partilhadas são em geral suspensas no meio de uma frase e, portanto, não é o esquecer, mas o significar e o ressignificar que nos
permitem tecer novas possibilidades para o viver desde a ausência tão
presente de quem amamos.
Ainda tomando como base a Fenomenologia, no Texto 2, Freitas (2018) tece uma
crítica ao entendimento do luto a partir de etapas e estágios (pré)determinados, lembrando que
por mais importante que eles sejam para o entendimento de todo o processo, cada pessoa terá
seu modo único de assimilar e vivenciar o enlutamento, como também terá o seu próprio
tempo de elaboração. Segundo a autora, “Diante da morte e de seu absurdo, não há respostas
passíveis de serem programadas a priori, ou que possam ser forjadas tecnicamente, pois não
há um modo único ou normativo de expressar a dor ou viver com a ausência” (p. 53). Logo,
ela enfatiza que a perspectiva fenomenológica entende o luto como sendo
[...] uma experiência existencial, vivida em um mundo partilhado, um mundo
de coexistência. Essa perspectiva contrapõe-se à apreensão do luto como uma vivência passível de ser compreendida a priori, com etapas e
experiências predeterminadas, que se constituem como mero efeito de uma
perda. Essa perspectiva última, fundamentada em uma compreensão do luto a partir de estágios, implica em entender que aquele que perdeu alguém que
lhe é significativo precisaria se restabelecer de seu sofrimento para a
retomada de uma vida dita “normal” (FREITAS, 2018, p. 53).
Compreendemos a noção de experiência existencial a partir do que é apontado por
Ribeiro (1985 p. 32) ao discorrer sobre o Existencialismo: “[...] a expressão de uma
experiência individual, singular, trata diretamente da existência humana”. Ou seja, para que se
possa compreender a existência humana é necessário se ter um olhar para a singularidade de
cada sujeito.
Em contrapartida à visão fenomenológica do luto como condição, no Texto 3, que tem
por base a Gestalt-terapia, as autoras apontam o luto “[...] como um processo e não um estado,
visto que à medida que nos permitimos sentir esta dor e passar pelas fases que podem ocorrer
durante o luto, estaremos nos fortalecendo, evitando um luto patológico” (BORSTMANN;
BREUNIG; MACEDO, 2018, p. 81). Elas ainda suscitam que, na medida em que o luto é
instaurado, este será “[...] vivenciado de forma particular e única por cada sujeito, conforme o
66
vínculo e apego que este possuía com a pessoa ausente, sendo importante permitir a
manifestação dos sentimentos para passar por esse processo” (p. 81).
A singularidade do processo de vivência do luto também se apresenta no Texto 4, no
qual as autoras exprimem que essa vivência é individual e que cada sujeito terá sua própria
experiência após a morte de alguém que ama. Sobre isso, voltamos ao que é mencionado no
Texto 2, no qual Freitas (2018, p. 55) relembra que
[...] o luto é um fenômeno que se evidencia claramente no enlutar-se, no
modo de se expressar mesmo daquele que o sofre, na falta de sentido que vivencia, em sua dor, na ambiguidade vivida na presença-ausente do outro e
não uma entidade nosológica dada a priori.
Logo, vimos nesta categoria de análise que cada perda é única e que,
consequentemente, cada processo de enlutamento é singular, pois dependerá do vínculo
estabelecido com o ente que se foi, da forma como a perda se sucedeu e da maneira como as
mudanças decorrentes da perda e suas reverberações – que podem ser de status, de papel,
sociais e até econômicas – serão enfrentadas.
Dessa maneira, a partir da perspectiva da Gestalt-terapia, será necessário ajustar-se
criativamente a cada situação e experiência que for emergindo. Diante disso, retomamos o
conceito de ajustamento criativo conforme a explicação de Cardella (2014, p. 114):
O ajustamento criativo não significa prescindir do já conhecido, do vivido,
nem repetir o que é tradicional, mas ser capaz de um reposicionamento
singular, diferente e pessoal do tradicional, recriando-o. Ajustamento criativo é então a capacidade de pessoalizar, subjetivar e se apropriar das
experiências que acontecem no encontro com a alteridade, processo contínuo
no campo organismo/meio.
Dessa forma, considerando o que foi discutido nesta categoria, sublinhamos o olhar
gestáltico fenomenológico-existencial para o processo do luto, destacando alguns fatores que
emergem a partir desse fenômeno. Além disso, salientamos o enlutamento como uma
experiência singular que surge diante de perdas existenciais e/ou simbólicas. Por fim, sob a
ótica aqui apresentada, o luto é percebido como uma vivência que pode causar
desorganização, frustação e mudanças, as quais precisam ser experienciadas para serem
assimiladas e integradas à história de vida da pessoa enlutada.
67
Portanto, essa pesquisa teve o intuito de analisar o fenômeno do luto a partir da
Gestalt-terapia e de como esta maneja vivências que estão atreladas ao sofrimento, ao
desgaste e às transformações – sejam estas positivas ou negativas. Por compactuarmos com a
visão de homem e mundo desta abordagem, a partir do estudo em tela, pudemos entrar em
contato com nossas vivências particulares, com nossas inquietações teóricas e com o nosso
desejo de assimilar e refletir sobre as diversas possibilidades que se apresentam decorrentes
dos processos de perdas.
Ao final dessa pesquisa, acreditamos chegar a resultados relevantes a partir das nossas
análises e discussões, uma vez que as autoras dos artigos científicos analisados discutiram
pontos pertinentes que atendiam os aspectos eleitos como fundamentais dentro da nossa
temática de estudo, o que nos fez chegar à proposta inicial da nossa pesquisa, que foi refletir
sobre as contribuições da Gestalt-terapia no manejo de processos de enlutamento e suas
formas de enfrentamento.
68
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse trabalho teve como objetivo geral analisar como a Gestalt-Terapia compreende o
processo do luto e suas formas de enfrentamento e, como objetivos específicos, buscamos
identificar as principais teorias que discutem o luto, a perda e a morte; apresentar os tipos de
luto; e analisar artigos científicos que discutam sobre o luto a partir do olhar da Gestalt-
terapia. Ao chegarmos nesta etapa de finalização da pesquisa, podemos afirmar que estes
objetivos foram alcançados.
Para isso, realizamos uma breve explanação referente à história dos fenômenos luto,
perda e morte e seus processos de silenciamento na sociedade ocidental, enfatizando as
questões socioculturais presentes no que concerne à morte e o morrer. Ademais, apresentamos
algumas teorias do luto e discernimos sobre os tipos de luto (normal e complicado),
entendendo que, apesar da existência da nosologia, cada processo de enlutamento será
vivenciado de forma singular pelos sujeitos.
O aporte teórico escolhido para alicerçar essa pesquisa foi a Gestalt-terapia. Dessa
forma, discorremos sobre seus pressupostos filosóficos, teorias de base e principais conceitos,
buscando compreender a sua visão de homem e mundo, além de entender como esta percebe o
processo do luto, tema central neste estudo.
A partir de uma pesquisa qualitativa e bibliográfica, realizamos buscas de artigos
científicos referentes à temática em discussão na base de dado Google Acadêmico. Não
sentimos dificuldade em realizar o levantamento e encontrar materiais diversos sobre o
processo de enlutamento. Entretanto, não encontramos um número expressivo de produções
que articulassem o luto com a Gestalt-terapia. Por essa razão, tivemos necessidade de utilizar
artigos que embasam filosoficamente e teoricamente a abordagem Gestáltica. Por
conseguinte, foram escolhidos quatro artigos científicos que foram analisados a partir do
método de análise de conteúdo e que serviram de base para a discussão deste trabalho.
Dentre as reflexões decorrentes desta pesquisa, destacamos a importância de se
compreender a morte para além do seu caráter biológico, pois é imprescindível considerarmos
os demais fatores envolvidos nessa vivência, tais como os fatores históricos, culturais, sociais
e econômicos. Enfatizamos também que há uma diferença entre a morte simbólica –
caracterizada pela perda ou ausência de um objeto ou ser vivo importante – e a morte
biológica – representada pela suspensão completa e definitiva das funções essenciais de um
69
organismo vivo –, observando como ambas podem gerar sentimentos de pesar e processos de
enlutamento.
Assim, esta pesquisa teve o processo do luto como cerne, sendo esse reafirmado em
todo trabalho como um processo único, singular e dotado de possibilidades e formas
idiossincráticas de vivenciá-lo. Distinguimos o luto normal do luto complicado, percebendo
que o que os separa são sutis fatores que devem ser avaliados de forma coerente, precisa e
individual; compreendendo também que esse processo não será vivenciado a partir de fases
lineares e/ou com características prenunciadas.
Durante a realização deste estudo, confirmamos também que a Gestalt-terapia, a partir
dos seus pressupostos filosóficos, bases teóricas e conceitos, alcança o entendimento dos
processos de luto, perda e morte de forma íntegra, dando sustento teórico e prático para a
compreensão e intervenção diante desses fenômenos. Foi possível perceber que esta
abordagem retira o olhar patologizante decorrente da vivência do enlutamento e vislumbra
possibilidades outras de contatá-la, entendendo que cada pessoa terá uma maneira singular de
se expressar diante das perdas, como também um tempo único para ressignificar esta
experiência.
Finalizamos esta pesquisa tendo assimilado a contribuição da abordagem gestáltica
para o manejo do que emerge decorrente das vivências de luto, perda e morte. Almejamos que
as discussões apresentadas aqui sejam o prelúdio para novas explorações no campo da
Psicologia e da Gestalt-terapia no que diz respeito à compreensão do luto e suas formas de
enfrentamento.
Por fim, concluímos este trabalho nos apropriando dos fenômenos luto, perda e morte
e nos colocando diante de nós mesmos enquanto pessoas e profissionais propensos a
ressignificar nossa percepção e manejo no contato com estes fenômenos. Nosso intuito foi
expandir a discussão sobre estas temáticas, visto que há uma resistência em abordá-las.
Somado a isso, relembramos a importância de estarmos sempre nos atualizando e nos
apropriando das discussões acerca desses fenômenos para saber lidar da melhor forma
possível diante das mais variadas questões que se apresentam tanto em nossas vidas pessoais,
quanto em nossa prática profissional.
70
REFERÊNCIAS
AGUIAR, Luciana. Gestalt-terapia com crianças: teoria e prática. Campinas: Livro Pleno,
2005.
ALVES, Elaine Gomes dos Reis. Da psicologia dos desastres à psicologia da gestão integral
de riscos e desastres. In: FUKUMITSU, Karina Okajima. (Orgs.). Vida, morte e luto:
atualidades brasileiras. São Paulo: Summus, 2018. p. 166-181.
ALVES, Júlia Batista. Um brinde à identidade, à diversidade e à alteridade: um passeio pelo
mundo dos mortos no sul do México. Revista abehache, v. 8, n. 1, p. 53-73, 2015. Disponível
em: http://revistaabehache.com.br/index.php/abehache/article/view/177/176. Acesso em: 10
fev. 2020.
ARANTES, Ana Claudia Quintana. A morte é um dia que vale a pena viver. Rio de
Janeiro: Casa da Palavra, 2016.
ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. Manual diagnóstico e estatístico de
transtornos mentais: DSM-5. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014. Disponível em:
http://pt.scribd.com/doc/248320024/Manual-Diagnosico-e-Estatistico-de-Transtornos-
Mentais-DSM-5-1-pdf#scribd. Acesso em: 17 fev. 2019.
ASSUNÇÃO, Graciana Sulino; MALAGUTH, Marisete. Semelhanças entre a prática clínica
da Gestalt-terapia e a vivência corporal da dança: descrição comparativa. Revista da
Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, Instituto de Treinamento e Pesquisa em
Gestalt Terapia de Goiânia, Goiânia, v. XII, n. 1, p. 249-257, jun. 2006.
BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. 3. ed. Portugal: Edições 70, 2004.
BORSTMANN, Renata da Silveira; BREUNIG, Yohanna; MACEDO, Maria Luisa
Wunderlich dos Santos de. Psicoterapia infantil: perdas, luto e ajustamentos criativos
elaborados no brincar. Revista IGT na Rede, v. 15, n. 28, p. 76-95, 2018. Disponível em:
http://www.igt.psc.br/ojs. Acesso em: 22 ago. 2019.
CAPUTO, Rodrigo Feliciano. O homem e suas representações sobre a morte e o morrer: um
percurso histórico. Revista Multidisciplinar da Uniesp, n. 6, p. 73-80, 2008. Disponível em:
http://uniesp.edu.br/sites/_biblioteca/revistas/20180403124306.pdf. Acesso em: 10 fev. 2020.
71
CARDELLA, Beatriz Helena Paranhos. Ajustamento criativo e hierarquia de valores ou
necessidades. In: FRAZÃO, Lilian Meyer; FUKUMITSU, Karina Okajima (Orgs.). Gestalt-
terapia: conceitos fundamentais. São Paulo: Summus, 2014. p. 104-130.
CARDOSO, Claudia Lins. A face existencial da Gestalt-terapia. In: FRAZÃO, Lilian Meyer;
FUKUMITSU, Karina Okajima (Orgs.). Gestalt-terapia: fundamentos epistemológicos e
influências filosóficas. São Paulo: Summus, 2013. p. 59-75.
CECCON, Neila Jucilene. A Morte e o Luto na Perspectiva da Psicologia a Humanista.
Anais do EVINCI – UniBrasil, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 883-899, out. 2017. Disponível em:
www.scielo.br. Acesso em: 22 ago. 2019.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.
3. ed. Curitiba: Positivo, 2004.
FRAZÃO, Lilian Meyer. Compreensão clínica em Gestalt-terapia: pensamento diagnóstico
processual e ajustamentos criativos funcionais e disfuncionais. In: FRAZÃO, Lilian Meyer;
FUKUMITSU, Karina Okajima (Orgs.). A clínica, a relação psicoterapêutica e o manejo
em Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 2015. p. 83-102.
FRAZÃO, Lilian Meyer. Relação Psicoterapeuta-Cliente. Psicologia USP, São Paulo, v. 6, n.
2, 1995.
FRAZÃO, Lilian Meyer; FUKUMITSU, Karina Okajima (Org.). Gestalt-terapia:
fundamentos epistemológicos e influências filosóficas. São Paulo: Summus, 2013.
FREITAS, Joanneliese de Lucas. Luto, pathos e clínica: uma leitura fenomenológica.
Psicologia USP, v.29, São Paulo, n.1, p.50-57. 2018. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.1590/0103-656420160151. Acesso em: 22 ago. 2019.
FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia (1917 [1915]). In: Obras Completas. Rio de Janeiro:
Imago, 1969.
FUKUMITSU, Karina Okajima. Uma visão fenomenológica do luto: um estudo sobre as
perdas no desenvolvimento humano. Campinas: Livro Pleno, 2004.
GINGER, Serge. Gestalt: a arte do contato. Nova abordagem otimista das relações humanas.
Rio do Janeiro: Vozes, 2007.
72
HOLANDA, Adriano Furtado. Diálogos e psicoterapia: correlação entre Carl Rogers e
Martin Buber. São Paulo: Lemos, 1997.
JACINTO, Helisa Maria Canuto et al. A Experiência de Mães Após a Morte da Criança.
Revista de Ciências Humanas e Sociais, Alagoas, v. 4, n. 3, p. 43-54, maio 2018. Disponível
em: www.scielo.br. Acesso em: 22 ago. 2019.
JOYCE, Phil; SILLS, Charlotte. Técnicas em Gestalt: aconselhamento e psicoterapia.
Petrópolis: Vozes, 2016.
KOVÁCS, Maria Júlia. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo,
2010.
KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a Morte e o Morrer: o que os doentes terminais têm para
ensinar a médicos, enfermeiras, religiosos e aos seus próprios parentes. 9. ed. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2008.
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina Andrade. Metodologia do Trabalho
Científico: procedimentos básicos, pesquisa bibliográfica, projeto e relatório, publicação e
trabalhos científicos. 4. ed. São Paulo: Atlas, 1992.
LIMA, Patrícia Valle de Albuquerque. A Gestalt-terapia holística, organísmica e ecológica.
In: FRAZÃO, Lilian Meyer; FUKUMITSU, Karina Okajima (Orgs.). Gestalt-terapia:
fundamentos epistemológicos e influências filosóficas. São Paulo: Summus, 2013. p. 145-
156.
LIMA, Patrícia Valle de Albuquerque. Teoria organísmica. Revista IGT na rede, v. I, p. 11-
29, 2005.
MARTINS, Marize; LIMA, Patrícia Valle de Albuquerque. Contribuições da Gestalt-Terapia
para os enfrentamentos das perdas e da morte. Revista IGT na Rede, v. 11, n. 20, p. 3-39,
2014. Disponível em: http://www.igt.psc.br/ojs. Acesso em: 30 ago. 2018.
MINAYO, Maria Cecília de Souza; DESLANDES, Suely Ferreira; GOMES, Romeu (Orgs.).
Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 32. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.
73
MORAES, Gladys Costa de; D’ACRI, Rêgo Macedo. Contatos: funções, fases e ciclo de
contato. In: FRAZÃO, Lilian Meyer; FUKUMITSU, Karina Okajima (Orgs.). Gestalt-
terapia: conceitos fundamentais. São Paulo: Summus, 2014. p. 31-46.
OLIVEIRA, Leane Valente de; OLIVEIRA, Marília Zara Gentil de; LOBATO, Edilza de
Aguiar. O Processo Ciclo do Contato em uma Situação de Luto. Revista IGT na Rede, v. 14,
n. 27, p. 260-272, 2017. Disponível em: http://www.igt.psc.br/ojs. Acesso em: 22 ago. 2019.
PARKES, Colin Murray. Luto: estudos sobre a perda na vida adulta. São Paulo: Summus,
1998.
PERLS, Frederick Salomon. A abordagem gestáltica e testemunha ocular da terapia. Rio
de Janeiro: Zahar, 1988.
PERLS, Frederick Salomon; HEFFERLINE, Ralph; GOODMAN, Paul. Gestalt-Terapia. 2.
ed. São Paulo: Summus, 1997.
PRESTRELO, Eleonôra Torres. Vida e Morte: a dialética do humano sob uma perspectiva
gestáltica. VII Encontro Nacional de Gestalt-Terapia / V Congresso Brasileiro da Abordagem
Gestáltica. Fortaleza, 2001. Disponível em: www.scielo.br. Acesso em: 16 set. 2018.
RIBEIRO, Jorge Ponciano. Gestalt-Terapia de curta duração. 4. ed. São Paulo: Summus,
2015.
RIBEIRO, Jorge Ponciano. Gestalt-Terapia: refazendo um caminho. 8. ed. São Paulo:
Summus, 2012.
RODRIGUES, Vânia Maria Amaral. Uma Revisão da Literatura Acerca do Processo de
Elaboração do Luto no Sistema Familiar e os Manejos Usados por Psicólogos nesse
Contexto. O Portal dos Psicólogos. Documento publicado em 05 de Junho de 2016.
Disponível em: www.scielo.br. Acesso em: 22 ago. 2019.
SAFRA, Gilberto. Prefácio. In: FUKUMITSU, Karina Okajima (Orgs.). Vida, morte e luto:
atualidades brasileiras. São Paulo: Summus, 2018. p. 9-14.
SANTOS, Renato Caio Silva; YAMAMOTO, Yuri Molina; CUSTÓDIO, Lucas Matheus
Grizotto. Aspectos Teóricos sobre o Processo de Luto e a Vivência do Luto
74
Antecipatório. 2017. Disponível em: http://www.psicologia.pt/artigos/textos/A1161.pdf.
Acesso em: 09 ago. 2018.
SILVA, Júlia Farage; SECCHIN, Laura de Souza Bechara. Relato de Experiência sobre
Luto Antecipatório na Unidade de Terapia Intensiva. Relatório de Estágio Extracurricular,
de Curso de Graduação em Psicologia. Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. Juiz de
Fora, 2017. Disponível em: www.scielo.br. Acesso em: 30 ago. 2018.
SILVA, Maria das Dores Ferreira da; FERREIRA-ALVES, José. O Luto em Adultos Idosos:
natureza do desafio individual e das variáveis contextuais em diferentes modelos. Psicologia:
Reflexão e Crítica, v. 25, n. 3, p. 588-595, 2012. Disponível em: www.scielo.br/prc. Acesso
em: 10 nov. 2019.
SOARES, Letícia Gomes de Azevedo; CASTRO, Marcelo Matta de. Luto: colaboração da
psicanálise na elaboração da perda. Revista Psicologia e Saúde em Debate, v. 3, n. 2, p. 103-
114, dez. 2017. Disponível em: www.scielo.br. Acesso em: 30 ago. 2018.
YONTEF, Gary M. Processo, diálogo e awareness: ensaios em Gestalt-terapia. São Paulo:
Summus, 1998.