a cientificidade na obra marxiana de maturidade
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
ANTNIO JOS LOPES ALVES
A CIENTIFICIDADE NA OBRA MARXIANA DE MATURIDADE:
UMA TEORIA DAS DASEINSFORMEN
TESE DE DOUTORADO APRESENTADA
AO INSTITUTO DE FILOSOFIA E
CINCIAS HUMANAS DA UNICAMP PARA
OBTENO DO TTULO DE DOUTOR EM
FILOSOFIA.
ORIENTADOR:
JOO CARLOS KFOURI QUARTIM DE MORAES
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE VERSO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO, E
ORIENTADA PELO PROF.DR. JOO CARLOS KFOURI QUARTIM DE MORAES
CPG, 27 de agosto de 2012.
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FICHA CATALOGRFICA ELABORADA POR
CECLIA NICOLAU CRB8/3387 BIBLIOTECA DO IFCH
UNICAMP
Informao para Biblioteca Digital
Ttulo em Ingls: The scientific character in the Marxs work maturity: a theory of forms of being
Palavras-chave em ingls:
Marx, Karl, 1818-1883 Criticism and interpretation Marxism
Marxist philosophy
Political science
Categories (Philosophy)
Epistemology
rea de concentrao: Filosofia
Titulao: Doutor em Filosofia
Banca examinadora:
Joo Carlos Kfouri Quartim de Moraes [Orientador]
Armando Boito Junior
Ester Vaisman
Jorge Lus da Silva Grespan
Mrcio Bilhanrinho Naves
Data da defesa: 27-08-2012
Programa de Ps-Graduo: Filosofia
Alves, Antnio Jos Lopes, 1966-
AL87c A cientificidade na obra marxiana de maturidade: uma
teoria das Daseinsformen / Antnio Jos Lopes Alves.
- - Campinas, SP : [s. n.], 2012.
Orientador: Joo Carlos Kfouri Quartim de Moraes.
Tese (doutorado) - Universidade Estadual de
Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.
1. Marx, Karl, 1818-1883 Critca e interpretao. 2. Marxismo. 3. Filosofia marxista. 4. Cincia poltica.
5. Categorias (Filosofia). 6. Epistemologia. I. Moraes, Joo
Carlos Kfouri Quartim de, 1941- II. Universidade Estadual de
Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo.
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A Comissao Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, em sessao publica
realizada em 27 de agosto de 2012 , considerou o candidato ANTONIO JOSE LOPES AL YES aprovado.
Este exemplar corresponde a redac;:ao final da Tese defendida e aprovada pela Comissao Julgadora.
Prof. Dr. Joao Carlos Kfouri Quartim de Moraes
Prof. Dr. Armando Boito Junior
Prof. Dr. Ester Vaisman
Prof. Dr. Jorge Luis da Silva Grespan
:::r Prof. Dr. Marcio Bilharinho Naves -...
Prof. Dr. Antonio Rago Filho
Profa. Dra. Ligia Osorio Silva
Profa. Dra. Monica Hallak Martins da Costa
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Dedico este trabalho aos meus queridos filhos, Stefano,
que chegou quando o itinerrio ainda estava em seu
nascedouro, e Eleonora, que aportou em minha vida
quando o roteiro j se conclua, e minha amada
esposa, Sabina, companheira de afeto, intelecto e
esprito, que com sua parceria e temperana suavizou a
rudeza do caminho.
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Agradeo em primeiro lugar, ao meu pai (in
memorian), minha me e minha irm, queridos
familiares. Em segundo lugar, ao Professor Quartim,
orientador da presente tese, que com sua postura
acadmica exemplar deu provas de que as diferenas de
posio no redundam necessariamente no silncio
indiferente ou na rotunda hostilidade. E, por fim, aos
colegas do Grupo de Pesquisa Marxologia, que com as
discusses travadas e observaes feitas em muito
colaboraram para correo de rumos e esclarecimento
de problemas.
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Pois sim, com doutor erudito trato!
O que ele prprio no apalpa, abstrato;
O que no pega em mos, cousa nula,
Ser mentira o que ele no calcula;
O que no pesa, jamais ser vlido;
O que no cunha, tem por traste esqulido.
Mefistfeles, Doutor Faustus, Goethe.
(...) toda a cincia seria suprflua se a aparncia e a
essncia das coisas diretamente coincidissem.
Marx, O Capital.
Papel, em vez de ouro e de prata, um bem;
To cmodo , sabe-se o que tem;
No h da troca e regatear a praga,
Com vinho e amor cada qual se embriaga;
Para quem quiser metal, tem-se um cambista,
E se faltar, cava-se em nova pista;
Colares, clices, vendem-se em hasta,
Com que o papel logo salda. Basta
Para que ao ctico de asno se tache;
Nada mais se requer: vingou a praxe.
No imprio, assim, para sempre perdura,
De ouro, papel e gemas a fartura.
Mefistfeles, Doutor Faustus, Goethe.
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RESUMO
A presente tese resulta de pesquisa de doutoramento a qual teve por objeto o padro de
cientificidade que orienta e estrutura a crtica marxiana da economia poltica em sua fase de
maturidade. Nesse sentido, buscou-se apreender, compreender e explicitar o conjunto de
elementos e determinaes conceituais a partir dos quais se organizou o pensamento de
Marx no enfrentamento da decifrao do modo capitalista de produo da vida humana,
bem como quando da tarefa de avaliao de pensadores e correntes da economia poltica
que pretenderam explicar cientificamente o mundo da produo do excedente. A questo
inicial a que se volta Marx precisamente explicitar a natureza do mais-valor, a forma da
riqueza como capital, superando as aporias e inconsistncias que caracterizaram as
aproximaes tericas dos economistas. O trabalho de investigao dos textos marxianos
evidenciou a existncia de uma teorizao cuja base a definio do estatuto das categorias
como Daseinsformen, Existenzbestimmungenen, como formas sociais de ser do existente,
seja este ente, processo ou relao. As relaes sociais mesmas apareceram a partir desse
horizonte como formas de existncia historicamente determinada dos indivduos sociais, de
sua atividade e dos produtos desta. Essa determinao vai de encontro com o que a tradio
das interpretaes marxistas, majoritariamente, assumia como base da exercitao cientfica
de Marx: a dialtica hegeliana. Contrapondo-se a essa posio predominante, a pesquisa, e
a tese que nela se arrima, intentou descortinar e revelar o carter da teoria marxiana acerca
do capital, como uma analtica categorial das formas de ser da produo capitalista. No
mbito do desenvolvimento da pesquisa, buscou-se ento determinar o mais precisamente
possvel o que distingue essa analtica, a delimitao da differentia specifica do objeto da
reflexo marxiana. Nesse contexto, o Forschungsweise marxiano, o seu modo de
investigao, e no tanto o seu modo de apresentao constante de O Capital, foi
prioritariamente considerado como o centro da prpria atividade cientfica de Marx. Assim,
o Darstellungsweise revelou-se como instncia determinada, e no determinante do
discurso marxiano, estando sempre subsumida ordem da analtica da forma do existente
em questo a cada momento, bem como das relaes que aquele guarda com outras
determinaes dentro de um complexo particular. Resulta disso, que a determinao mesma
do momento preponderante no tributria da eleio a priori de uma categoria em
particular tomada como princpio ou chave explicativa. Ao contrrio, depende da marcha da
analtica como tal, da articulao que preside o ser da coisa como concreto efetivamente
existente, independentemente da teoria ou dos procedimentos. A esse respeito, a prpria
questo de mtodo acabou por ser reposicionada em funo disso, no sendo mais
entendida como ncleo da cientificidade, mas como momento igualmente determinado pelo
talhe do objeto. O que encaminhou a tese da existncia de um antimtodo no pensamento
marxiano.
Palavras-chave: Marxologia, Cientificidade, Crtica da Economia Poltica, Formas de ser.
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ABSTRACT:
This thesis results from doctoral research which had the object of scientific standard and
structure that guides the Marxian critique of political economy at its stage of maturity.
Accordingly, we sought to learn, understand and explain the range of conceptual and
determinations from which was organized Marx's thought in coping with the unraveling of
the capitalist mode of production of human life, and when the evaluation task of thinkers
and currents of political economy that sought to explain scientifically the world's
production surplus. The threshold issue that turns Marx is precisely explain the nature of
surplus-value, the shape of wealth as capital, overcoming the aporia and inconsistencies
that have characterized the theoretical approaches of economists. The research of the
Marxist texts revealed the existence of a theory whose foundation is the definition of status
categories as Daseinsformen, Existenzbestimmungen as social forms of being of the
existent, is this entity, process or relationship. The same socials relations that emerged from
the horizon as the existence of historically determined forms of social individuals, their
activity and products thereof. That determination runs counter to the tradition of Marxist
interpretations, mostly, assumed as the basis of scientific exercitation Marx: the Hegelian
dialectic. Opposed to this dominant position, research, and the thesis that it is anchored,
brought uncover and reveal the character of the Marxian theory of capital as an analytical
categorical ways of being of capitalist production. In developing the survey, we sought then
to determine as precisely as possible what distinguishes this analysis, the delimitation of the
differentia specifica of the object of Marxist reflection. In this context, the Marxian
Forschungsweise, its mode of inquiry, rather than its mode of presentation contained in the
Capital, was primarily considered as the center of scientific activity itself of Marx. Thus,
the Darstellungsweise proved to be instance specific, not a determinant of Marxian
discourse, being always subsumed to the order of the analytical form of matter exists in
every moment, as well as that of relations with other custody determinations within a
particular complex. It follows that the same determination of the tax is not currently leading
the election in advance of a particular category or taken as a key explanatory principle.
Rather, it's the march of analytics as such, who chairs the joint is the real thing as actually
existing, regardless of theory or procedures. In this respect, the very question of method
turned out to be repositioned because of this, no longer seen as core scientific, but also time
as determined by the intaglio of the object. What forwarded the theory that there was an
antimetod in Marxian thought.
Key words: Marxology, Scientific, Critique of Political Economy, Forms of Being.
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Sumrio:
Introduo: Para uma crtica do Mtodo da Suspeita ............................................... 15
Parte 1
Captulo 1: Arqueologia Crtica do Problema I. Questes Introdutrias ................................................................................................... 33
II. Pressupostos Crticos .................................................................................................... 35
III. Kautsky e a Aproximao Naturalista ........................................................................ 42
IV. Engels e as Leis da Dialtica ...................................................................................... 54
V. Lnin ............................................................................................................................ 63
VI. A Interpretao Logicista ........................................................................................... 71
Captulo 2: As Categorias como Daseinsformen I. As Categorias e as Coisas .............................................................................................. 89
II. A Centralidade da Differentia Specifica ..................................................................... 100
III. Differentia Specifica e Produtividade Analtica ....................................................... 115
IV. Modos e Formas: precises conceituais da crtica marxiana da economia poltica.. 128
Captulo 3: Crtica Marxiana da Questo de Mtodo I. Fundamento e Mtodo ................................................................................................. 145
II. A Crtica do Mtodo. .................................................................................................. 156
III. Para Alm de Hegel: o fundamento materialista da crtica ....................................... 169
IV. A Determinao Social do Pensamento e o Problema do Standpunkt ...................... 176
Parte II
Captulo 4: O Valor e suas Formas I. A Forma Mercadoria como Unidade do Diverso ........................................................ 195
II. O Valor como Determinao ...................................................................................... 204
III. Dinheiro, Circulao e Realizao ............................................................................ 224
IV. O Capital como Totalidade ....................................................................................... 241
Captulo 5: As Relaes Sociais como Formas de Ser: a questo do trabalho produtivo
I. Colocao do Problema ............................................................................................... 267
II. A Forma Social da Produo ...................................................................................... 265
III. A Precedncia da Determinao pela Forma ............................................................ 283
IV. O Produtivo como Carter da Atividade .................................................................. 296
Captulo 6: Algumas Leituras num Roteiro de Pesquisa Apresentao ................................................................................................................... 321
I. Christopher Arthur e Bertel Ollman ............................................................................ 323
II. Giannotti e Ruy Fausto ............................................................................................... 338
III. Lukcs ....................................................................................................................... 350
IV. Althusser ................................................................................................................... 364
Concluso Questes Finais ............................................................................................................... 385
A Metfora do Anatomista .............................................................................................. 386
Da Possibilidade do Conhecimento Objetivo da Realidade Social ................................ 392
Referncias Bibliogrficas ............................................................................................... 399
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INTRODUO
Para uma crtica do Mtodo da Suspeita
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oportuno no momento em que cabe expor inicialmente, e de modo bastante
sumrio, os principais pressupostos, elementos e questes envolvidas num trabalho de
pesquisa textual do pensamento marxiano, ter bem claro a justificativa apresentada pelo
prprio Marx para no incluir uma introduo geral em seu Para a Crtica da Economia
Poltica de 1859. Argumentava o pensador alemo que ao principiar-se um escrito com
uma exposio de tal natureza, corria-se o risco de anteciparem-se os resultados da
investigao, sem que as mediaes e proposies neles pressupostas pudessem ainda ser
devidamente esclarecidas. Como no se pode optar-se aqui por no faz-lo, dado o carter
do trabalho que trazido a pblico, ao menos tentar se considerar a advertncia marxiana
de, na medida do possvel, no se adiantar aquilo que somente o desenvolvimento da
anlise dos textos pode efetivamente corroborar.
Uma vez posta essa ressalva primeira, necessrio explicitar o porqu do esforo de
investigao conceitual empreendido, tanto no que tange s suas origens particulares,
quanto com relao justificativa sobre a qual se acha assentada. Nesse sentido, no
obstante a importncia que pode ser reconhecida ao tema da cientificidade da crtica da
economia poltica, a posio deste, do modo como se o fez pretende-se prov-la como
uma teoria das Daseinsformen (formas do ser) dependeu de circunstncias bastante
peculiares ao autor da propositura. Por um lado, a definio mesma do carter do padro de
cincia que subjaz crtica marxiana da economia poltica, deve sua figura discursiva ao
resultado obtido quando em pesquisa de mestrado, o investigador chegou concluso de
que, para Marx, a categoria da individualidade seria a forma de ser do ser social1.
Formulao essa cujo arrimo se encontra na indicao marxiana encontrada nos Grundrisse
objeto da pesquisa anterior segundo a qual as categorias seriam Daseinsformen,
Existenzbestimmungenen. Nesse sentido, a determinao do prprio estatuto das categorias
em Marx, bem como o modo como que estas integram a teorizao da crtica da economia
poltica, apareceu como um desafio necessrio compreenso do pensamento marxiano.
1 Para maiores esclarecimentos remete-se a esse particular ao texto da dissertao em tela A Individualidade
nos Grundrisse de Karl Marx, dissertao de mestrado, UFMG, Belo Horizonte, 1999, p. 7-8 bem como ao do artigo desta originado A individualidade Moderna nos Grundrisse, In Ensaios Ad Hominem 1, Tomo IV, Estudos e Edies Ad Hominem, So Paulo, 2001.
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Como consequncia, emergiu das leituras e elaboraes preparatrias a uma proposta de
pesquisa a designao da cientificidade marxiana como teoria das formas de ser. Por outro
lado, a propositura dessa hiptese que animou a pesquisa e se acha exposta na presente tese
tambm procede dos desenvolvimentos tericos levados a efeito por Jos Chasin, dentro do
projeto mais amplo de Retorno a Marx. No caso especfico do presente trabalho esse
volteio aos prprios termos e textos de Marx tem por objetivo o esclarecimento do talhe de
sua cientificidade, assim como o delineamento do conjunto de questes e temas
correlacionados.
No se ignora que ao intuito de tomar como objeto de investigao o carter da
cientificidade marxiana exercitada em sua obra madura, no contexto de sua crtica da
economia poltica, pode-se levantar algumas objees. Dentre as possveis redarguies
proposta est a de que o seu tema talvez esteja esgotado; e isso em um duplo sentido.
Primeiramente, poder-se-ia afirmar que, dados os desdobramentos histricos do ltimo
sculo e meio, a posio marxiana no estaria mais em condies de fazer frente aos
desafios do tempo social. Em segundo lugar, a pergunta pela resoluo da cincia de Marx
estaria, pois, ela mesma exaurida pelas discusses no interior da tradio marxista; tese do
mtodo dialtico marxista, no haveria ento mais nada a acrescentar. Com relao
primeira objeo, cabe uma dupla observao. A cada advento de crise que assoma e
baloua a normalidade da produo capitalista, os enunciados marxianos acabam sendo
aqui e acol referidos, ao menos para pretensamente serem desacreditados e afastados. De
certo modo, a emergncia, continuada e reiterada, de anomias ao funcionamento pleno do
capital termina esta mesma por recolocar se no seriam estes pretensos escapes da curva,
em verdade, a forma mesma de o capital operar como modo de produo histrico-social da
vida humana. Em outros termos, a crise aparece, nem que seja pela sua insistente
repetio e pela gravidade com que se manifesta em diversos momentos, como a via
normal, o padro, de realizao da riqueza como capital. Algo que a crtica marxiana da
economia poltica afirma explicitamente. Frente a isso se torna deveras difcil tratar o
pensamento de Marx como um esplio empoeirado ou um cadver enterrado e entregue
pura putrefao. No que respeita segunda objeo, a qual , por assim dizer, de natureza
interna ao marxismo tanto vertente acadmica como partido terico-prtico, decisivo
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assinalar que a suposta resoluo da ordem de procedimentos de O Capital pela sua
remisso sem mais dialtica especulativa de Hegel se mostrou, desde seus momentos
primevos, como algo no mnimo inconsistente. Haja vista o enorme esforo que diversos
autores da tradio marxista, dentre os quais verdadeiros gigantes do pensamento,
empreenderam para tornar factvel e aceitvel um Marx hegeliano. Essa tarefa herclea
incluiu e ainda inclui desde a simples subsuno da reflexo marxiana aos ditames da
dialtica como padro de pensamento at proposituras extremamente sofisticadas, seja do
ponto de vista propriamente filosfico seja daquele do travejamento de uma forma
estilstica de leitura. O grande problema que se pode depreender de todo o roteiro de
interpretaes que reforam, e s vezes foram tambm, o lao de Marx a Hegel, reside na
incongruncia flagrante entre o que o autor de O Capital aponta como o fundamento
(Grundlage) de sua teoria e aquele sobre o qual se ergue a monumental arquitetnica do
filsofo do Esprito. Em geral, o que se observa o recobrimento do modo de pesquisa pelo
modo de apresentao das categorias. A dialeticidade da exposio se sobrepe sobre o
teor analtico ao conjunto de pressuposies no epistmicas da extrao e compreenso
das categorias como formas da efetividade. Some-se a isso, a questo candente de buscar
enquadrar Marx dentro dos cnones a partir dos quais o pensamento filosfico opera com a
questo do conhecimento, ao menos desde Descartes o mtodo como o princpio da
cognio cientfica e as diversas concepes metafsicas de sujeito e objeto. Emaranhado de
vieses e de posturas filosficas algo inerciais que constitui o que se pode denominar,
analogicamente, de imperialismo gnosiolgico, a tendncia filosoficamente preponderante
na tradio de pretender dar resoluo autnoma ao problema do conhecimento, e a partir
dele recolocar em perspectiva todas as demais candencias do pensamento (CHASIN, 2009,
P. 26-27). Acerca dessa srie de problemas, a anlise textual e a discusso com a tradio
se voltou nos trs primeiros captulos da presente tese, para o qual se remete com o fito de
maior aprofundamento.
Um segundo ponto a esclarecer, ou encaminhar uma via de aclaramento, o
referente traduo de Daseinsformen por formas de ser. Longe de definir-se como uma
mera questo filolgica ou de estilo, essa aparente firula terminolgica guarda, em
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realidade, uma relao profunda e essencial para com o tema da pesquisa. Afora o desafio
de ao menos verter decentemente um termo ou vocbulo de uma lngua extremamente
sinttica para o vernculo luso do pesquisador2, reside no entendimento de seu sentido
preciso a possibilidade de compreenso do estatuto marxiano das categorias. O que poderia
tornar-se um problema verdadeiramente indisputvel em Marx e at mesmo com certa
ressonncia metafsica ou escolstica, dirige diferentemente sua resoluo com base nos
prprios elementos textuais. Na passagem da Einleitung zun den Grundrisse em que a
referida caracterizao das categorias aparece, Marx ape a mesma, como acima j se
mencionou, um complemento cujo talhe ultrapassa a sinonmia e se coloca como um
desdobramento terico. Ao acrescentar Existenzbestimmungenen delimitao das
categorias como Daseinsformen, Marx indica o carter mesmo das formas. A indicao
marxiana se distancia num s movimento do paradigma metafsico, segundo o qual as
categorias so formas puras e autnomas, figuraes da razo autossustentada, bem como
do entendimento empirista ou pragmtico, para o qual aquelas seriam somente esquemas
abstratos de pensamento. Contrariamente aos dois tradicionais disputantes, as formas se
definem em Marx como determinaes de existncia, o que as envia enfaticamente aos
entes ou processos objetivos, ao finito concretamente existente.
O ncleo problemtico do vocbulo se situa obviamente no substantivo Dasein,
principalmente em virtude da sua incorporao tcnica ao glossrio particular de uma das
correntes mais influentes do ltimo sculo. A traduo por ser-a carrega um lastro
demasiado complicado em se tratando da compreenso do pensamento marxiano. Enquanto
nas verses nascidas de Heidegger, e mesmo no seu nascedouro, o Dasein traz consigo
explicitamente o sentido de derrelito, de algo lanado no mundo, desamparado, no caso
marxiano, a determinao social aparece como contedo precpuo e determinante. Alm
disso, se no caso do autor de Ser e Tempo parece viger, apesar das declaraes em
contrrio, uma delimitao antropolgica, no que tange a Marx, o Dasein designa o ente
2 Com referncia a essa questo vide a maneira extremamente circnvaga pela qual uma das duas tradues
brasileiras completas da Introduo de 1857, at o presente momento, verte Daseinsformen: formas de modo de ser. Cf. Marx, Karl. Introduo [ Crtica da Economia Poltica], In Coleo Os Pensadores, Volume Marx, Editora Abril, So Paulo, 1974, p. 127. Sobre essa verso voltar-se- mais frente, na parte dedicada
discusso da questo de mtodo em Marx.
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concreto realmente existente em geral, prximo ao que seria, por exemplo, o Gegenstand.
O termo em tela aponta para o que objetivamente, de modo independente, autnomo com
relao aos modos de sua apreenso, e no de sada a uma forma especfica de existncia,
mediada j por algum nvel ou tipo de vivncia ou prescincia. Assinale-se igualmente o
cunho precisamente determinado do ente ativo, o homem concreto sempre, homens
concretos em sua relao com o mundo, o que faz distar o pensamento marxiano das
sendas heideggerianas. Delimitao essencial ao pensamento marxiano desde os seus
primeiros momentos, determinao objetiva do carter do ente/processo existente algo
observvel, juntamente com o talhe eminentemente ativo do comportamento dos indivduos
sociais, j nos Manuscritos de 1844, mas de modo mais concretizado e desdobrado nas Ad
Feuerbach e na Die deutsche Ideologie. Coisa que no abandonada na maturidade, mas
ganha um contedo determinativo mais concreto, porquanto passe a integrar a decifrao da
anatomia do moderno modo de produo capitalista, na crtica da economia poltica. Nesse
sentido, a pesquisa assume aqui explicitamente a identidade entre ser e existente, a juno
essencial do ser com aquilo que . O que no exclui, evidentemente, a acepo de ser como
predicado ou definio particular o ser de alguma coisa, mas faz com que esse sentido
se subsuma ao primeiro. Desse modo, a definio conceitual depende sempre da forma
concreta, particular e finita do existente, no um ato puro do intelecto, nem tem sua
validade atestada por uma suposta homologia essencial com uma razo substantivada.
Assim, formas de ser no tem a significao lassa do referimento a um algo indeterminado
ou inespecfico. Ao contrrio, a determinao particular e precisa de um existente dado
ente ou processo em sua inerncia e imanncia, como sntese objetivo-efetiva de
determinaes, como uma configurao plena de categorias, como existncia atual, a
delimitao categorial pensada rigorosa porque expresso aproximada da delimitao
categorial real que perfaz o existente tal como este . Ainda a respeito da justificao do
modo como se verteu Daseinsformen, assinale-se que na traduo da Introduo constante
da primeira edio completa dos Grundrisse em portugus3 tambm se opta pela soluo
apresentada nesta tese, o que de certo modo se constitui em importante apoio aos nossos
3 Cf. Marx, K. Grundrisse: manuscritos econmicos de 1857-1858, esboos da crtica da economia poltica.
So Paulo: Editorial Boitempo, 2011, p. 59.
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argumentos, ainda que no exclua uma futura reviso se o andamento de pesquisas
ulteriores assim indicar.
No intento de seguir o compromisso inicial, de no se antecipar apenas o que
marcha da anlise pode dar conta de tornar explcito e compreensvel, somente necessita-se
ento esclarecer, ainda que brevemente, outra questo importante. Relativa ordem dos
procedimentos observados para com os materiais investigados os textos marxianos da
crtica da economia poltica da maturidade , a qual extravasa em muito o stio do
puramente tcnico.
Mais uma vez o compromisso com os textos e termos de Marx desempenha o papel
de parmetro. O exame da problemtica da cientificidade marxiana de maturidade, em que
pese o enorme conjunto de leituras e interpretaes da mesma, tomou como divisa
fundamental o afastamento daquilo que pode denominar-se, com certa licena, de mtodo
da suspeita. Ou seja, o procedimento um tanto comum de tomar-se o texto de Marx como
simples pr-texto para a afirmao de uma chave de leitura, em geral a contrapelo do que o
autor mesmo diz. Por essa rubrica, pode contar-se entre essas posies aquelas que,
independentemente do dito, buscam surpreender no pensamento marxiano um momento
especulativo ou tentam ancor-lo, a despeito das observaes de Marx, numa
fundamentao lgico-dialtica, ignorando olimpicamente o carter analtico de sua
cientificidade, o qual explicita e largamente assinalado por ele. Ao reverso disso, a
pesquisa preferiu, por regra geral, dar o benefcio da dvida ao pensamento marxiano,
intentando conferir e aferir as suas declaraes com aquilo que o seus procedimentos
efetivamente operam.
Por conseguinte, ao invs de ler nos desdobramentos argumentativos marxianos a
eficcia de um esquema lgico ou a vigncia analgica de uma concatenao dialtica
herdada de A Cincia da Lgica ou de outras, a investigao procurou por confirmar, ou
no, mediante o escrutnio textual, o funcionamento de uma analtica das Daseinsformen
que extrai e explicita determinaes de existncia. Diversamente de tentar o vislumbre
duma concatenao a priori de momentos do capital como infinito substantivado,
empreendeu-se, o quanto foi possvel, uma analtica dos textos, recolhendo um a um os
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elementos que configuram a cientificidade marxiana madura. Intentando compreender esse
estudo das formas de ser pista fornecida, alis, pelo prprio Marx que perfazem a
organicidade funcional no necessariamente sistmica do capital e de sua regulao
no equilbrio pela forma valor. Dessa maneira, a dialeticidade da exposio aparece mais
como uma alternativa expressiva posta pelas relaes intrincadas, dinmicas e abertas
havidas entre as determinaes formais da atividade humana e dos seus produtos como
capital. Portanto, no tanto como sinal de uma filiao filosfica de fundo ou mesmo da
afirmao de uma continuidade entre o finito e a linguagem peculiar de Hegel, tomada
como expresso objetiva de uma substncia que transita em sua infinitude. O que remete
questo de saber se poderia Marx expor ou apresentar o modo de produo capitalista,
contraditrio em essncia, prescindindo de elementos discursivos ou formas de mediao
conceituais recolhidas dos modos peculiares de expresso da especulao hegeliana. Afinal
o Darstellungsweise de O Capital ter tomado a forma duma exposio dialtica se reveste
de uma necessidade, no sentido estritamente filosfico do termo? Isso algo que
evidentemente no pode nem deve ser decidido nos limites de uma introduo.
Afora esse jaez de aproximao da obra marxiana, dominante em certo perodo
dentro do marxismo, h tambm que referir criticamente as tentativas que, no obstante
afastando ou pretendo afastar a crtica da economia poltica da sua pretensa matriz
hegeliana, tomaram apenas o caminho oposto e igualmente abstrato. No interior dessas
formulaes est pressuposta uma concepo abstrata de determinao conceitual, segundo
a qual, qualquer discusso de pressupostos resvalaria obrigatoriamente para a metafsica em
geral. Basicamente, podem-se apontar dois modos de situar-se frente questo da
delimitao das categorias. Posies essas para as quais a recusa da suposta fundamentao
dialtica do mtodo de Marx equivaleria ao abandono mesmo de qualquer noo de
determinao.
Nesse sentido, para uma das vertentes crticas da determinao categorial, o que
emergiria do exerccio cientfico de Marx seria uma forma de indeterminismo, ao menos
inicialmente. No mbito dessas posies, a teoria marxiana, ao abdicar da pressuposio de
um princpio absoluto a priori, abriria mo, por consequncia, de qualquer pressuposto
determinativo. O materialismo marxiano seria ento um discurso em cujo cerne no poderia
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ser identificado nenhum posicionamento geral acerca da prpria natureza do efetivo. O que
resultaria em que a teoria mesma se converteria num articulado de conceitos dependentes
de uma contingncia absoluta, sem parmetros fora dela, sem uma cauo categorial. Em
primeiro lugar, importante assinalar que uma objeo da questo dos princpios que aceita
os termos da metafsica segundo os quais, os princpios so necessariamente de natureza
imaterial ou transcendente acaba por soobrar, ou ao menos a isso tende na medida em
que contrape determinao metafsica absoluta sua mera contrafao: a indeterminao
absoluta. Em que pese a tentativa de desvencilhar o pensamento dos vcios metafsicos, o
resultado a que se chega somente uma simples inverso de sentidos, a qual aceita,
tacitamente ou no, o contedo e o carter imputados pela tradio filosfica preponderante
noo mesma de determinao. Assim, uma inverso no deixa de ser especulativa,
apenas por ser uma inverso. Desde a Die deutsche Ideologie, Marx indica esse problema,
por exemplo, quando toma para exame a concepo de Stirner, a qual, entre outras coisas,
faz substituir o universal abstrato por um singular abstrato4. Em segundo lugar, essa
posio parece encontrar-se invalidada se a quiser como uma consequncia do padro de
reflexo de Marx. Tome-se tanto a advertncia marxiana acerca das pressuposies, com as
quais ns comeamos (Voraussetzungen, mit denen wir beginnen)5, contida na obra
supracitada, assim como nas primeiras linhas da Einleitung aos Grundrisse de, 1857, acerca
do ponto de partida; a produo dos indivduos socialmente determinada: indivduos
produzindo em sociedade logo, produo socialmente determinada dos indivduos
naturalmente o ponto de partida {Ausgangspunkt} 6.
A outra leitura crtica da determinao na obra marxiana de carter mais amplo e
no referida imediata ou principalmente questo da resoluo do conhecimento ou do
mtodo, mas que tem consequncias tambm para esse domnio. Essa postula uma
fundamentao de carter estritamente naturalista para o pensamento de Marx. No contexto
dessa variante de interpretao, o materialismo marxiano seria de talhe naturalstico ou no
4 Cf. Silva, Sabina. A Fenomenologia do Egosmo, In Ensaios Ad Hominem 1, Tomo IV, Estudos e Edies
Ad Hominem, So Paulo, 2001, p. 239-248. 5 Cf. Marx, Karl. Die deustche Ideologie, In Marx-Engels Werke, Band 3, Dietz Verlag, Berlin, 1969, p. 20-
21. 6 Cf. Marx Karl. Einleitung zun Grundrisse, In Marx-Engels Werke, Band 42, Dietz Verlag, p. 19.
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25
ento no poderia ser propriamente materialista. Apesar da proximidade com o
indeterminismo acima mencionado porquanto sustente um afastamento para com a
dialtica, dele se diferencia porquanto pretenda, ao mesmo tempo, postular uma instncia
determinativa e coloc-la referida necessariamente ao natural. A determinao concebida
biologicamente est base dessa posio, ainda que no do mesmo modo das apropriaes
enviesadas do darwinismo pelas cincias sociais durante certas quadras histricas. Trata-se,
sobretudo da tentativa de fornecer ou encontrar uma fundamentao naturalista, arrimada
nas aquisies tericas e cognitivas advindas do desenvolvimento das cincias da natureza,
em especial aquelas que se dedicam ao entendimento dos viventes. No obstante o mrito
de se opor s elucubraes de cunho idealista presentes em algumas verses do marxismo
que rejeitavam o economicismo, em especial as de talhe historicista, parece correr o risco de
no atinar para a centralidade da determinao da forma (Formbestimmung) na crtica
marxiana da economia poltica. A pesquisa, cujo resultado agora se expe, levanta como
uma das questes fundamentais para a compreenso da cientificidade de Marx exatamente a
prioridade da determinao da forma social de ser para a apreenso do que constitui a
differentia specifica da produo capitalista. Tal o caso, p.ex., do exame marxiano da
disputa acerca da determinao de trabalho produtivo/improdutivo nas diferentes verses
da economia poltica a partir da colocao original do problema feita por Adam Smith7.
A tese que ora apresentamos se divide em duas grandes partes. A primeira se volta a
questes mais gerais, num registro de abstrao maior. O primeiro captulo, intitulado
Arqueologia Crtica do Problema se prope a explicitar como a definio do carter da
cientificidade marxiana foi abordado nos clssicos do marxismo, bem como nos
primeiros representantes da vertente lgica que intentam resolver o epistemolgico
sustentando j um nexo, em algum nvel, essencial de Marx com a filosofia hegeliana. O
segundo captulo voltado ao problema da determinao da prpria cientificidade da crtica
marxiana da economia poltica em sua fase madura, tratando basicamente do estatuto das
categorias como Daseinsformen. O terceiro captulo versa sobre o tema do mtodo em
7 Cf. Marx, Karl. Theorien ber den Mehrwert, viertes Kapitel, In Marx-Engels Werke, Band 26.1, Dietz
Verlag, Berlin, 1971.
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26
Marx, no somente pretendo aproximar-se de uma delimitao do que distingue sua esfera
dos procedimentos, mas, e principalmente, indicando o aporte crtico com relao
tradio filosfica moderna, contido na posio marxiana sobre a questo de mtodo. No
momento em questo tem-se a indicao de elementos tericos que permitem sustentar a
posio de que Marx, por assim dizer, desmonta o discurso do mtodo. Nesse sentido,
estabelece como resoluo a figura do antimtodo. A segunda parte da tese tem como
momentos mais importantes os dois captulos temticos: um sobre a forma valor e o outro
sobre a posio de Marx acerca da discusso em torno da determinao da categoria
trabalho produtivo no interior da economia. Ambos os captulos so concebidos como
abordagens de anlises de problemas particulares, no curso das quais possvel demonstrar
a cientificidade marxiana como analtica das formas sociais de ser. O ltimo captulo
Algumas Leituras num Roteiro de Pesquisa tem por objeto as posies produzidas nos
ltimos 50 anos dentro marxismo acerca do problema focado pela pesquisa, tendo por eixo
o debate da posio de cada autor com referncia s relaes do pensamento marxiano com
o de Hegel, em particular com a dialtica. Ao final da tese, oferece-se uma breve concluso,
na qual se discute alguns resultados gerais da pesquisa.
Como ltimo esclarecimento acerca desta tese, cabe ressaltar um detalhe tcnico,
mas nem por isso desimportante, e que pode interferir em sua leitura e compreenso. As
referncias bibliogrficas constantes das citaes de obras de Marx no corpo do texto
remetem quelas originais, conforme publicadas nas Marx/Engels Werke, editadas pela
Dietz Verlag, consoante o disposto na lista que se encontra ao final do presente trabalho.
Nesse contexto, foram adotadas algumas solues terminolgicas que no
obrigatoriamente seguiram os cnones, formais ou informais, de traduo que se fixaram na
leitura e interpretaes marxistas em portugus. Como exemplos disso, tm-se dois casos
importantes, porquanto sejam expresses do intento a que a pesquisa e sua exposio
buscaram realizar. Em primeiro lugar, a escolha por formas de apario como opo em
portugus para Erscheinungsformen, ao invs de formas de manifestao, a qual se
observa, entre outras, na verso brasileira de O Capital editada pela Abril Cultural, na
Coleo Os Pensadores. Ou ainda como est traduzida na primeira verso em portugus dos
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27
Grundrisse, realizada sob a coordenao editorial do Professor Mario Duayer: forma
fenomnica8. Aqui, a forma de verter foi dirigida pela meta de transmitir o mais fielmente
possvel a relao havida entre as formas da sociabilidade, das essenciais para aquelas da
aparncia. Apontando explicitamente para o carter expressivo do aparecer numa dada
forma imediata das determinaes essenciais, sem que com isso se casse na dicotomia ou
mesmo contraposio, incorreta neste mbito categorial, entre fenmeno e essncia. A
segunda ocorrncia que importa destacar aquela relativa traduo de Mehrwert por
mais-valor. O sentido da eleio pela quase literalidade se encontra na posio terica de
indicar o contedo categorial mais preciso dos termos, neste caso, do excedente em valor.
Em que pese a perda de eufonia ou de elegncia, pareceu a soluo mais adequada. Visto
que o presente trabalho se prope dilucidao das categorias e de seu estatuto no
pensamento marxiano, um certo desconforto terico se instalou no curso do exame dos
textos para com as maneiras como tradicionalmente o conceito em tela era vertido ao
portugus, seguindo sempre de perto a forma francesa plus-value. Assim, a soluo aqui
operada parece, at o momento, ainda a mais adequada.
A esse respeito importante referir que a tese que se apresenta no est sozinha.
Posteriormente finalizao da pesquisa e de sua exposio, a primeira verso em
portugus dos Grundrisse, acima referida, coincide em muito em diversos momentos desta
tese com respeito tradutibilidade conceitual. Especialmente em relao ao caso da
categoria Mehrwert9. Essa remisso no tem, evidentemente, o sentido de um tipo qualquer
de apelo autoridade. Mas tenta ressaltar que a opo terminolgica encontra amparo
tambm em esforo de monta de tornar disponvel um texto marxiano central da fase
madura ao pblico de lngua portuguesa, o que pressupe, entre outros, o exame refletido
arrimado na tentativa de compreenso aprofundada do contedo. Alm disso, no significa
tambm, por outra parte, que se acompanhe sempre o equacionamento do trasladamento
vocabular. Tal se passa exempi gratia com a escolha feita pelo autor da tese de traduzir por
8 Cf. Karl Marx. Grundrisse: manuscritos econmicos de 1857-1858 esboos da crtica da economia
poltica. So Paulo: Editorial Boitempo, 2011, por exemplo, p. 95. 9 Cf. Duayer, M. Apresentao, In Karl Marx. Grundrisse: manuscritos econmicos de 1857-1858 esboos
da crtica da economia poltica. Op.Cit., p. 23.
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28
momento preponderante10
a expresso bergreifendes Moment. Diversamente na
publicao anteriormente referida optou-se por momento predominante, talvez se tentando
atenuar o sentido de uma determinao cujo carter poderia ser interpretado como absoluto.
No trabalho ora apresentado, buscou-se, diferentemente, acentuar exatamente o talhe de
determinao central que uma dada categoria assume, num contexto problemtico
especfico, frente s demais, estando presente inclusive como momento de delimitao real
destas ltimas11
.
10
Cf. Marx, K. Grundrisse: manuscritos econmicos de 1857-1858 esboos da crtica da economia
poltica. Op.Cit., em especial, p. 49. 11
Tal se observa, por exemplo, na exposio analtica que faz Marx das relaes efetivas existentes entre
produo, consumo, distribuio e troca, objetando e recusando as aproximaes meramente lgico-
silogsticas elaboradas tanto pelo socialismo belletrista quanto pela Economia Poltica, na Introduo de 1857
aos Grundrisse.
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PARTE I
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30
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31
CAPTULO 1
ARQUEOLOGIA CRTICA DO PROBLEMA
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32
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33
I
Questes Introdutrias
A hiptese basilar da qual se parte no presente trabalho a de que a obra de
maturidade de Marx se constitui no numa cincia econmica particular, nem na aplicao
de um mtodo filosfico qualquer aos problemas da economia. Ao contrrio, se perfaz
numa teoria das formas de ser da sociabilidade em sua configurao moderna, da ordem do
capital. Seria assim, a reflexo marxiana madura, um exerccio de dilucidao da
efetividade social do capital em seus nexos mais essenciais e em sua lgica especfica.
Produzida atravs da articulao rigorosa das categorias, das determinaes fundamentais
deste tipo de sociabilidade. Afastar-se-ia igualmente, deste modo, a identificao desta a
uma aproximao do real de natureza emprico-dedutiva. O que a pe distante tambm de
um amoldamento de dados ou objetos dentro de um quadro formatado atravs de uma
lgica a priori de natureza especulativa.
Assim posta, a tese proposta pela investigao se relaciona ao tema da cincia
econmica de Marx, explicitando seus aspectos distintivos. Pois pretende deixar
delineados os nexos principais que conformam teoricamente o exerccio cientfico
marxiano, esclarecendo seus pressupostos e implicaes. Bem entendido, o exame no se
dirige discusso de detalhe acerca de problemas particulares da economia, como o seriam
investigaes ou polmicas sobre aspectos pontuais como, por exemplo, a vigncia ou no
da lei do valor no mundo contemporneo. No obstante a importncia cientfica deste
ltimo ponto ou de outros quaisquer, o exame da obra marxiana madura ter por escopo a
determinao da sua malha categorial constitutiva. Pretende-se demonstr-la como analtica
de formas de ser. Portanto, um problema de cunho geral, por definio, filosfico, e no a
sua prospeco no nvel de uma cincia particular ou em questes mais pontuais. Alm
disso, mesmo admitindo ser o conjunto dos escritos marxianos um estudo e exposio
crticos de um dado objeto particular, o modo de produo capitalista, importante ressaltar
que no curso deste enfrentamento crtico, pela primeira vez na histria da filosofia, as
categorias econmicas aparecem como as categorias da produo e reproduo da vida
humana (LUKCS, 1979, p. 14-15). Ou seja, compreendem-se seus conceitos no como
esquemas arbitrrios de aproximao, mas como descrio do modo pelo qual um modo
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34
histrico concreto de ser social se pe. Esta inquirio cientfica do modo que se efetuou
veio a tornar possvel a explicitao dos liames societrios em termos materialistas, da qual
o carter especfico prope-se aqui rigorosamente a apresentar e demonstrar. Devendo ser,
por este motivo, apreendida na totalidade da reflexo marxiana, e no apenas como
exercitamento cientfico particular.
Numa palavra, o que a tese pretende deixar evidente que a cientificidade marxiana
seria ento algo outro que um corpus cientfico e metodolgico influenciado e delimitado
pelo modo da cincia de seu tempo ou a aplicao de A Cincia da Lgica de Hegel
analtica da forma mercadoria. Teses estas quase consagradas nas leituras tradicionais da
obra marxiana, s quais julgamos importante referir, ainda que de modo bastante sumrio.
Nesse sentido, o enfrentamento dessa tradio hermenutica se reveste de uma dplice
importncia. Primeiro, ao revelar a forma como uma dada interpelao do pensamento de
Marx se estabeleceu, indicando os protagonistas da cena interpretativa do marxismo. Em
segundo lugar, permite, ao mesmo tempo, j o afastamento de certos vieses que se
consolidaram no decorrer da trama acadmica e poltica de ndole trgica, que caracterizou
a relao dos comentadores com a obra marxiana. No ser abordada, neste momento, toda
a srie de leituras de Marx, mas somente aquelas que desempenharam um papel
posicional do problema em torno do tipo de cincia de O Capital. Trata-se de uma resenha
da questo, da verificao inicial do estado da arte. Por esse motivo, quatro autores que se
julgam como importantes no aparecero ainda aqui. Sendo a eles reservado um espao
prprio ao fim da segunda parte deste trabalho, quando todo conjunto de temas
relacionados quele enfrentado e exposto tiver sido o mais que possvel tratado. Trs
destes, Althusser, Giannotti e Lukcs, constituem-se, cada um a seu modo e com
determinado significado, personagens de alta relevncia para a discusso aqui levada a
cabo. Um quarto autor, Chasin, diferentemente dos acima referidos, no se afirma apenas
como um intrprete de Marx. Em sua elaborao terica deixou configurado um verdadeiro
roteiro de pesquisa, ao desvelar uma srie de aspectos e temas centrais da obra marxiana, os
quais ou bem se encontram desencaminhados ou bem mesmo intratados pela tradio
marxista. O que, alis, se acha expresso em seu repto investigativo de retorno a Marx,
lanado frente ao conjunto de abordagens do pensamento de Marx, em especial de sua
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35
crtica da economia poltica. Nesse sentido, quem pretende retornar a algum lugar, assevera
simultaneamente duas coisas: que um dado rumo se perdeu e que, no obstante os bices
histricos, reencet-lo uma tarefa possvel. Para tanto, consequentemente, cumpre repisar
o caminho em que o horizonte da crtica marxiana da economia poltica se perdeu de vista,
a fim de, no rascunho do mapa desta desorientao, se desviar das sendas acadmicas.
Pode-se, grosso modo, dividir a hermenutica marxista acerca da questo do padro
de cincia da obra de maturidade de Marx em duas vertentes. As quais se separam em
funo da forma sofisticada da aproximao ou no e da presena ou no de certo rigor
lgico no trato com as enunciaes. Uma vertente pretende certificar para a reflexo
marxiana um nicho junto s cincias em geral, em alguns momentos, apresentando desta
uma verso naturalista. Enquanto outra intenta enquadr-la como prtica de um tipo
particular de armao lgica. No entanto, nas duas prevalecem preponderantemente tanto
da questo de mtodo, quanto a assero da vizinhana da obra marxiana com a de Hegel.
Esses dois traos, a busca por uma via de acesso ao pensamento marxiano atravs da
identificao de seu mtodo e a posio de Marx prximo especulao hegeliana, esto
ambos presentes na quase totalidade das correntes e dos intrpretes.
II
Pressupostos Crticos
uma postura filosfica consolidada, com o peso de um mandamento protocolar,
que quando se coloca o debate da cientificidade imediatamente se pe a problemtica do
mtodo da subjacente teoria e ao seu discurso. Com relao a Marx, no diferente. E
isso, com o agravante de se impor sempre uma respeitosa, quando no, obrigatria,
deferncia dialtica hegeliana. Meno esta a qual, em grande parte das vezes, tende a
identificar o padro reflexivo de Hegel, em especial a lgica como explicitao do
movimento da essncia racional do mundo, como o ncleo terico de O Capital. Neste
sentido, a dupla crtica marxiana da economia poltica, a qual no somente dirigida
teoria, mas tambm ao mundo do capital, acaba por aparecer como um tipo especial de
aplicao da dialtica realidade social moderna. Assiste-se a um desvio que se configura
como produzido em duas etapas ou possuindo duas faces. A averiguao da forma
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36
marxiana de cientificidade se reduz a uma inquisio metodolgica e esta ltima se resolve
no achegar de Marx a Hegel, na afirmao de uma apropriao epistemolgica da filosofia
do conceito. Normalmente, no apenas o carter preciso da teoria marxiana se esfuma, mas
o prprio Hegel se v logicizado. A interrogao sobre as categorias em que se assenta a
teoria fica, portanto obnubilada por esse predomnio da epistemologia lgica. O estatuto
prprio dos conceitos marxianos, o que estes so, e a identificao de sua contextura terica
especfica, do modo pelo qual se encadeiam num perfil elaborado particular, so temas
relegados ao ostracismo. A definio categorial, a que afinal remetem as categorias em
Marx, um sujeito sobre o qual o silncio assume a funo explicativa. Ou melhor, tem sua
resoluo derivada daquela do mtodo. Dessa discusso em particular, a presente tese
voltar a ocupar-se no captulo 3.
Outro modo sob o qual aparece o problema da definio do estatuto prprio da
cientificidade da obra marxiana aquele da periodizao do itinerrio de sua constituio.
Normalmente, no traado dessa histria de construo intelectual, convencionou-se nos
crculos do marxismo opor ao Marx de O Capital, produtor de cincia, ao Jovem Marx. O
que caracteriza esse Marx imaturo, ora apontado como hegeliano, ora como feuerbachiano,
o fato de seu pensar ser uma reflexo ainda demasiadamente filosfica e prxima ao
idealismo de seu tempo, no obstante nunca se determine com preciso de que tipo de linha
idealista ele se filie. Assim sendo, a maneira como se entende o rumo seguido por Marx em
direo forma madura da crtica da economia poltica no uma questo meramente
acadmica ou de histria do pensamento. Ao contrrio, a posio mesma da problemtica
revela no seu encaminhamento, ou desentendimento, os pressupostos que configuram uma
dada aproximao da elaborao terica marxiana.
Ento, o que significa traar a periodizao da obra de um autor? Para alm da mera
pretenso de classificar os seus diversos escritos ou de simplesmente dividir a sequncia
cronolgica de fases, a organizao do itinerrio de desenvolvimento de um dado
pensamento revela ou pode explicitar o conhecimento, ou desconhecimento, da natureza
especfica de seu padro de reflexo. A forma como se faz a histria de um determinado
pensamento, evidencia de maneira clara o modo sob o qual este abordado. Assim,
historiografia e filosofia, reflexo e histria esboada, denunciam sua interdependncia
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37
radical. De tal modo que a incompreenso para com as origens ou a forma pela qual um
exercitamento filosfico se instaura gera necessariamente distores no seu trato, fazendo
da tarefa de exp-lo um jogo definido por regras quase sempre arbitrrias. Resida essa
arbitrariedade no msero arranjo mal acabado de momentos que se sucedem no tempo, da
obra e da vida, sem o menor sentido de rumo, continuidade e ruptura. Isto , na imposio,
grosseira ou extremamente sofisticada, de critrios extrnsecos ou de parmetros ditados
pela mais recente moda intelectual, em nada muda o resultado. O estipndio da
arbitrariedade somente pode ser a perda do efetivamente gerado, do posicionamento ou do
contedo de dada reflexo, em benefcio de sua atualizao postia ou de sua rpida e
violenta condenao como paradigma ultrapassado.
Neste sentido, podemos dizer, no sem ousadia, que a grande maioria das tentativas
de organizao do pensamento marxiano no correr de nosso ltimo sculo primou, da ponta
mais rasa e vulgar quela caracterizada por elevada erudio, pelo desconhecimento da
natureza prpria obra de Marx. Nas suas mais variadas verses, tais empreendimentos
analticos redundaram no obscurecimento do modus marxiano, quando no na pura e
simples supresso de seu carter distinto. Destituio de conhecimento filosfico que no
poupou nem mesmo representantes mais dignos e/ou tecnicamente competentes da tradio
recente em historiografia do pensamento. Apenas para novamente registrar, no que tange s
relaes do pensamento marxiano para com o idealismo em geral, Hegel em particular. De
maneira pendular ora foi aproximado em desmedida da especulao hegeliana, a ponto de
ser tratada sua obra madura como mera aplicao de A Cincia da Lgica realidade
econmica do capital, ora esta posta como gerao ex nihilo de um mtodo no
inteiramente discernido pelo prprio autor, uma verso mais refinada de naturalismo ou de
logicismo. Na confluncia da aparente oposio de tais proposituras acerca da obra
marxiana, ressoa um rudo de fundo comum, um eco de uma nica atitude fundante, a de
apor leitura o maneirismo da interpretao. Apropriar-se de Marx, sem ler Marx, ou de l-
lo e dele se apropriar por meio de um vis. A leitura transtornada de extrao sem dvida,
mais ou menos rica, dependendo de suas condies e instrumentais em exerccio de
imputao de significado, de implicaes e demandas do prprio intrprete, reverte-se em
amputao do sentido efetivo do texto. Evidentemente, esta situao no caracteriza to
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38
somente o abordo da reflexo marxiana. De certo modo todo e qualquer autor est sujeito
aos traumas da imputao de sentido, da violao que disseca o corpo discursivo
espargindo seus elementos constituintes em abstraes isoladas, membros apartados por
disjuno, ou estabelecendo aqui e acol conexes destes com modos de pensamento ou
problemticas estranhas, gerando uma monstruosidade insustentvel.
A forma de entendimento (ou de desentendimento) da obra marxiana no decorrer do
sculo XX fixou certas diretivas de abordagem e inteleco que ganharam o estatuto de
verdadeiras chaves de leitura, com fora de preconceito arraigado. Duas proposituras se
impuseram com maior vigor e sucesso. A primeira foi a do trplice origem do pensamento
de Marx, o amlgama fantstico entre economia poltica, poltica francesa e filosofia alem.
A segunda, a do corte epistemolgico cunhado por Althusser, da oposio entre um "jovem
Marx", ainda ligado ao humanismo ou filosofia, e um "Marx maduro", "cientfico", dono
afinal de um mtodo prprio, gnosiologicamente emancipado. No primeiro caso, o
pensamento de Marx aparece como produto curioso de uma juno entre trs elementos ou
tradies estranhas entre si em suas motivaes, determinaes e condies, prodgio
nascido de uma tanto tempestuosa quanto confusa fecundao. Como poderia semelhante
origem gerar algo com um mnimo de coerncia questo para a qual se faz muda quase
toda tradio do campo marxista. No segundo caso, a origem mesma que se encontra
descartada como problema. Aqui o pensamento no tomado como produto de um
itinerrio, com todas as idas e vindas, ratificaes ou retificaes, mas unilateralmente
fixado por um de seus momentos. Esse eleito como mais pertinente, no a partir de um
desdobramento ou evolver que pusesse uma inflexo, mas de uma regra ou critrio exgeno
sua prpria emergncia, no caso a instaurao de um mtodo. Diversamente do panorama
marxista assim tracejado, Chasin assinala que,
(...) a nova posio formulada por Marx no uma pura instaurao
endgena. Sua gnese, por isso, no apenas uma questo para a histria
intelectual ou de mera erudio, mas problema condicionante do acesso ao
entendimento efetivo de sua natureza terica, bem como da qualidade do
complexo categorial que integra sua fisionomia (CHASIN, 2009, p. 26).
Neste texto, ponto de chegada - julgado parcial por seu autor - do investimento
intenso e rigoroso de pesquisa dos textos marxianos, Chasin traa de sada o perfil da
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39
questo da origem e do desenvolvimento conforme enfrentada pela tradio marxista.
Desenho justo e impiedoso das vicissitudes e descaminhos da interpretao da obra
marxiana. Afastando logo na primeira formulao qualquer carter miraculoso ou
"original" da reflexo marxiana, Chasin a afirma como ato de apropriao ideal de mundo.
Ou seja, no ela posio discursiva autossuficiente, produto de um lance genial, mas fruto
do desenvolvimento de um dado padro de exercitamento intelectivo. Propositura esta,
portanto, que pe na ordem do dia o problema da origem do pensamento marxiano, o
entendimento de como veio a ser a reflexo do autor de O Capital.
Assim a justa compreenso do corpus marxiano somente pode ser alcanada na
medida em que se volta aos prprios textos, na apreciao rigorosa destes na marcha
mesma em que aquele se gerou. Esforo a exigir o exato contrrio das prescries mais
atuais em matria de exegese. O domnio da natureza especfica do pensamento marxiano
somente pode ser obtido sob a condio de um efetivo retorno a Marx. Retorno este
modulado por uma estrita obedincia ao posto pelo texto, sua singular forma objetiva, o
que,
(...) exige a captura imanente da entificao examinada, ou seja, a
reproduo analtica do discurso atravs de seus prprios elementos e
preservado em sua identidade, a partir da qual, e sempre no respeito a essa
integridade fundamental, at mesmo em 'desmascaramento', busca
esclarecer o intrincado de suas origens e desvendar o rosto de suas
finalidades (CHASIN, 2009, p. 40).
Deste modo, ler responder ao desafio de facear um objeto, obviamente de tipo
diverso daquele da materialidade, trazendo de suas entranhas a rede de determinaes que o
compe e o sustenta. A abordagem de uma obra ento seu enfrentamento nos seus
prprios termos e no na sua inquirio atravs de um repertrio de problemas extrnsecos.
A leitura , por conseguinte, exerccio de apropriao da imanncia do texto, por isso a
revelao de sua estrutura argumentativa por meio da subsuno ativa do leitor, e no o
desvelamento a si dos limites do pesquisador a pretexto e custa do texto.
Posio rigorosa da leitura como crtica imanente que encontrou sua expresso mais
elaborada no escrito supracitado, mas a qual se apresenta j como pressuposto terico da
abordagem da obra marxiana em textos anteriores de Jos Chasin. Em particular, no que
respeita ao problema da periodizao da reflexo de Marx, encontramos o exercitamento
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40
deste padro rigoroso de exegese filosfica em Marx ao Tempo da Nova Gazeta Renana.
Publicado sob a forma de prefcio ao livro A Burguesia e a Contra-Revoluo, no qual
esto reunidos quatro dos mais importantes artigos de Marx trazidos pblico em Nova
Gazeta Renana (1848), este artigo se prope a explicitar a dimenso decisiva deste perodo
da vida intelectual do autor alemo. O escrito em tela perfila o itinerrio de
desenvolvimento do corpus marxiano at aquele momento e indicando as consequncias e
inflexes futuras para a posterior crtica da economia poltica. Assim define Chasin o
momento marcado pelos acontecimentos revolucionrios contemporneos da Nova Gazeta
Renana: "O ano de 1848 de extrema importncia para Marx, para o marxismo e para todo
processo mundial (passado e futuro) da revoluo - reconhecida esta como atualizao
virtual da potncia oniparente do trabalho" (CHASIN, 1987, p. 12-13). Deste modo,
encontra-se fixada natureza determinante do ano de 1848 para o pensamento marxiano.
Perodo em que, segundo Chasin, pde emergir e emergiu com clareza a possibilidade
efetiva de transformao cabal de mundo, atravs da lgica do trabalho, representada
praticamente pela sua figura social. Percepo que tem tanto de definitiva, quanto pouco
tem de sbita. Ou seja, esta inteleco fruto de um intenso, apesar de relativamente pouco
extenso, rumo de elaborao de um padro reflexivo prprio. Arrimando-se nos
testemunhos marxianos contidos no prefcio Para Crtica da Economia Poltica, Chasin
refaz toda a rota terica e prtica que leva do Marx ainda ligado aos modos de proceder e
de refletir do idealismo ativo quele que, realizando a crtica da forma especulativa da
compreenso hegeliana do Estado, consegue fundar uma nova maneira de abordar a
mundaneidade social.
Marx nem sempre foi marxiano. desta evidncia histrica concreta, trazida, alis,
pelo prprio Marx no prefcio acima referido, que parte Jos Chasin. Do fato de que a
forma marxiana de pensar, no obstante deva em muito ao gnio da individualidade, nem
por isso constitui apangio de herdado natural. Desta maneira, Chasin intenta, no obstante
de modo sumrio, a seguir os passos tericos que tornaram a posio marxiana necessria e
possvel. Neste sentido, subverte os termos em que a expresso "Jovem Marx" comumente
aparece, enquanto referncia baseada mais na idade precoce do intelectual que na produo
efetivada naquele perodo, para lig-la a um momento anterior e diverso daquele no qual
-
41
surge o pensamento efetivamente marxiano. Ao contrrio de estabelecer a cronologia sobre
critrios usuais, mas externos obra pesquisada, como o caso da linha temporal
abstratamente tomada, segue-se aqui a prioridade do objeto, os escritos de Marx, para,
partindo deste, poder delimitar as fases de seu pensamento. Considerando o intervalo de
tempo definido pelos anos de estudos, compreendido entre 1837 e 1841 de maneira alusiva,
Chasin se dirige exposio da primeira ocasio em que Marx pe em ao o arsenal
filosfico-metodolgico do idealismo ativo. O ano 1842 e o empreendimento a chefia da
redao de A Gazeta Renana. Jornal que no deve ser confundido com seu sucessor de seis
anos mais tarde, esta publicao existiu brevemente como veculo da burguesia liberal
renana em seus confrontos polticos e ideolgicos com a autocracia prussiana. Como
jornalista, Marx tem a oportunidade de exercitar seu conjunto de conceitos e pressupostos
forjados sob a gide do idealismo nos mais variados assuntos, da educao ao matrimnio,
da liberdade de imprensa aos direitos consuetudinrios, tendo sempre por divisa e norma
uma concepo antropolgica racional do Estado e direito fundada na filosofia da
autoconscincia: o homem definido como sujeito racional e livre, e o Estado sendo a
realizao desta sua essncia atemporal. Dentre os temas aos quais Marx devotar sua
ardorosa ateno, aquele reunidos sob a rubrica de "interesses materiais" (a questo das
deliberaes parlamentares sobre o roubo de lenha do vale do Mosela e as discusses sobre
o livre-comrcio) constituir o mbil emprico a exigir a reviso do idealismo ativo.
Acompanhando com rigor o traado resumido dado pelo prprio autor a este
respeito, Chasin situar no ano de 1843, quando Marx abandona a chefia da redao do
jornal, pouco antes de seu fechamento pela censura prussiana. Momento de inflexo
inaugural no qual Marx passa a empreender um exame minucioso e crtico dos seus
pressupostos tericos, da especulao hegeliana sobre o Estado em particular. No se
encontra no enorme manuscrito resultante deste empreendimento crtico, Crtica da
Filosofia do Direito de Hegel, o que Chasin denominar de determinao onto-negativa da
politicidade. Ou seja, a identificao da poltica como trao no essencial do homem,
apontando para sua necessria superao. Entretanto, certamente neste momento se abre
com a crtica do feitio especulativo da reflexo hegeliana, a crtica ontolgica
especulatividade, o perodo propriamente marxiano. Neste sentido, assiste-se emergncia
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de um padro novo de inteleco, arrimado no comportamento terico atinente para com a
objetividade das entificaes, ao por-si da mundaneidade. Alicerce sobre o qual se erguero
as outras duas crticas, as da politicidade e da economia poltica - realizadas em escritos
como Sobre a Questo Judaica e Misria da Filosofia, por exemplo, a crtica da
especulao, portanto, pode ser entendido como ato inaugural, balizamento de parmetros
filosficos que jamais sero abandonados por Marx. Pense-se apenas a ttulo de ilustrao
na assertiva contida em A Ideologia Alem, de que seu pensamento parte do nico
pressuposto do qual no se pode fazer abstrao seno na imaginao: os indivduos vivos
e ativos, bem como na declarao constante de Glosas Marginais ao Tratado de Economia
Poltica de Adolph Wagner, distante dcadas da crtica aos neo-hegelianos, onde ele afirma
que eu no parto nunca de conceitos. Meu ponto de partida a mercadoria. a esta que
eu analiso, na forma sob a qual ela aparece. Assim sendo,
(...) ntido, portanto, que o itinerrio de 42 a 47 perfila a constituio do
iderio marxiano. Que ao fim desse tempo cumprira-se uma extensa e
complexa trajetria intelectual, resultando na configurao adulta, ainda
que no plenamente madura do pensamento de Marx (CHASIN, 1987, p.
19).
A esse respeito, vale chamar a ateno para o fato de que se 1843 se crava como ano
fundante da reflexo marxiana, isto no equivale de modo algum a infirm-lo como posio
de completude. antes o aflorar inicial de um padro filosfico que o parir de uma frmula
pronta e multiformemente acabada.
O pensamento marxiano ir desenvolver-se, aprofundar-se, direcionado agora para a
decifrao das determinaes essenciais da sociabilidade moderna, para o
esquadrinhamento crtico da anatomia da sociedade civil. Este exerccio de crtica do real se
efetivar no sentido da escavao das categorias que definem o modus societrio do capital
e suas expresses, o Estado e a poltica modernos. O que trar a cada novo passo,
ratificaes e retificaes, enriquecimento de alguns esquemas categoriais e alterao de
alcance de outros, sempre na direo indicada pela apropriao do real na forma do
pensamento, que na sua marcha empreende a concreo progressiva das categorias. Neste
particular, Chasin assinala o ganho intelectivo trazido pela maturidade, aberta com a
redao dos Grundrisse, afirmando que,
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(...) este recomear, que proporcionar o trnsito do delineamento adulto
para a fisionomia madura do pensamento cientfico de Marx, compreende
a transio da Misria da Filosofia para os Grundrisse. Trata-se, no plano
da cincia, da superao de uma anlise econmica, ainda um tanto no
desembaraada da teoria da oferta e da procura, pela formulao plena da
teoria da mais-valia, ou dito de forma mais restrita: Marx introduz nos
Grundrisse a distino entre trabalho e fora de trabalho. Distino
fundamental, inexistente na Misria da Filosofia, onde ainda no figura a
descoberta da categoria essencialmente diferente: Arbeitskraft - no uma mercadoria entre outras, mas uma mercadoria nica, produtora de
valor (CHASIN, 1987, p. 20).
Assim sendo, a elevao de patamar do pensamento marxiano adita na maturidade o
discernimento mais aprofundado da forma de ser do capital. Delimita essa enquanto modo
de produo da vida humana assentado na contradio essencial e profunda do trabalho
assalariado, na qual a potncia criadora de riqueza, convertida em mercadoria, trocada por
seu valor, materializado num quantum de trabalho morto, tornando-se, desta maneira,
matria alienada e de alienao; a perda radical como resultado da posse de suas foras
essenciais de objetivao como mercadoria: Esa e o prato de lentilhas (CHASIN, 1987, p.
228).
Potencializao da posio terica de extrair cientificamente do concreto as suas
determinaes essenciais, cujo carter crtico. Assumindo em cada nova configurao um
perfil mais definido e uma solidez categorial maior. A constituio do padro marxiano de
reflexo dista em muito da forma como foi e habitualmente entendida. Viciada essa
ltima que foi por seu duplo vis, gnosio-epistmico e politicista, na problematizao da
questo de mtodo, a aproximao da obra de Marx feita anteriormente se caracterizou por
uma deturpao explcita da ordem de prioridades categorial por ele mesmo fixada. Para
Marx, a delimitao precisa do modo de ser da coisa analiticamente faceada precede e faz
assim possvel uma tematizao da esfera do conhecimento em sua natureza e jurisdio
(Cf. CHASIN, 1987, p. 21). A este respeito, Chasin ir tornar ainda mais radical sua
posio quando, partindo do aprofundamento da sua pesquisa da fase adulta e incio da
madura oito anos mais tarde, Estatuto Ontolgico e Resoluo Metodolgica, declarar que
a rigor no h uma questo de mtodo no pensamento marxiano (CHASIN, 2009, p.89).
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III
Kautsky e a Aproximao Naturalista
Para a primeira vertente de comentadores, a obra marxiana seria atravessada por um
rigoroso determinismo a modus naturalista ou fatalista, como se afirmaria desde Kautsky
at os representantes do marxismo vulgar. No texto inaugural deste tipo de aproximao da
obra de Marx, Kautsky pretende apresentar o pensamento marxiano, no que ele tem de
original, como uma curiosa juno de trs tradies tericas diversas, o pensamento ingls,
francs e alemo, representadas, respectivamente, pela economia poltica ilustrada, pela
poltica francesa e pela filosofia clssica do idealismo alemo. No interior desta estranha
figura, deste hbrido ou, como o denominou Chasin, trplice amalgama (Cf. CHASIN,
2009, p. 29-37), surgiria uma teoria que permitiu a Marx fundar a unidade das cincias.
Com toda a carga de reducionismo a implicado, afirmada a anulao da especificidade do
ser social em relao naturalidade e a aplicao do padro de cientificidade tpico das
cincias da natureza (Cf. CHASIN, 2009, p. 31-35).
Neste sentido, Marx teria sido o iniciador de uma verdadeira revoluo cientfica no
que tange compreenso dos fenmenos sociais, no curso da qual se veriam superadas as
deficincias tanto dos autores tradicionais, moralistas e juristas, que assentavam sua anlise
do social em noes como liberdade, vontade etc., quanto aquelas dos naturalistas, como
denomina Kautsky os iluministas. Argumenta Kautsky que, se nos primeiros no havia a
percepo de necessidades causais nos fatos sociais, j nos segundos a ideia de Natureza
explicava to somente os atos simples, determinaes que os homens compartilham com
os animais, deixando os atos complexos, aqueles constitudos pelas ideias sociais e
ideais, na penumbra do inexplorado cientificamente. Com Marx ter-se-ia ento inaugurado
um novo momento cientfico, no qual,
(...) [a] evoluo social foi situada no quadro geral da evoluo natural; o
esprito humano, mesmo nas suas manifestaes mais elevadas e mais
complicadas, nas suas manifestaes sociais, era explicada como sendo
uma parte da Natureza; a conformidade causal de sua atividade foi
demonstrada em todos os domnios e a ltima base do idealismo e do
dualismo filosfico foi aniquilada (KAUTSKY, s/d, p. 17).
Marx teria dessa maneira operado uma subsuno de ordens de existncia, natureza e
sociabilidade, a uma mesma e nica legalidade, a dialtica. Assim, naturalidade e
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sociabilidade seriam duas formas de manifestao de um nico princpio material da
realidade, cuja determinao decisiva seria aquela da contraditoriedade, traduzida em
mbito humano pela luta de classes, que regeria como fundamento os andamentos da
histria, bem como, por consequncia as ideias e ideais ativos dos homens. A indistino
das ordens de ser da realidade aparece aqui como o ponto central desta dmarche
interpretativa. Na busca da definio da cincia de Marx, na sua determinao em analogia
com os desenvolvimentos havidos em outros campos do saber, os traos distintivos da
realidade humanosocietria so sumariamente apagados. Assim, por mais distinta que
possa parecer a sociedade do resto da natureza, nesta, como naquela, encontramos a
evoluo dialtica, quer dizer: o movimento provocado por uma luta de oposies que
surgem espontnea e continuamente no prprio meio (KAUTSKY, s/d, p. 17). Ao mesmo
tempo em que se pe a sociabilidade como submetida a leis naturais tm-se, por outro lado,
a dialetizao da prpria naturalidade. Tal questo da relao entre o desvendamento das
determinaes essenciais do capital e a suposta relao deste com uma pretensa teoria
dialtica geral, da qual Marx teria sido, seno o fiador, ao menos um filiado, j aparece,
como o veremos mais frente, em Engels.
exatamente no contexto desse empreendimento de cientificizao do estudo da
sociabilidade que Kautsky situa a importncia, bem como a superioridade, que o
pensamento de Marx possui. Ressalta a superioridade e a fora inerentes ao pensamento
marxiano frente s tentativas de anlise cientfica da sociabilidade, a qual resulta de uma
particularidade metodolgica. Nesse sentido, declara que,
Teria sido completamente incompreensvel a sua influncia ser to
extraordinria se Marx no tivesse conseguido descobrir as bases ainda
ignoradas da sociedade capitalista. Depois de tais descobertas, no
existem mais conhecimentos sociolgicos de importncia primordial a
obter que ultrapassem Marx, enquanto se mantiver a forma atual de
sociedade. Pode-se dizer tambm que durante todo este perodo o seu
mtodo ser mais frutuoso do que qualquer outro (KAUTSKY, s/d, p. 9-
10).
No entanto, os aspectos mais gravosos da aproximao que Kautsky realiza da obra
de Marx a meta da obra, a qual se anuncia no prprio ttulo. A forma como o tema das
origens que concorreram para o nascimento, constituio e consolidao da teorizao
marxiana tratado, pode ser considerado um critrio de leitura. No caso em tela, v-se aqui
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claramente a exogeneidade da qual sero vitimadas grande parte das interpretaes da
reflexo cientfica marxiana. Na circunscrio que define este, por assim dizer, territrio
hermenutico do marxismo, o pensamento de Marx visto como algo que brota e viceja
na periferia de sistemas ou de perspectivas terico-filosficas alheias, como um ramo de
uma rvore maior ou resultado de um hibridismo acadmico. A obra marxiana seria uma
quimera, para usar uma imagem vinda da gentica. Uma entidade resultante da mistura de
elementos essenciais vindos das mais diferentes ordens temticas. No exame de como o
tema das origens do marxismo podemos flagrar a origem mesma amalgama denunciado
por Chasin, como acima o referimos.
A teoria marxiana aparece a Kautsky como a fuso, bem rara, da profundidade
cientfica com a audcia revolucionria, que o faz viver com muito mais intensidade meio
sculo depois de sua morte do que quando se encontrava entre os vivos (KAUTSKY, s/d,
p. 10). Sustenta-se aqui uma pretensa assimilao de Marx pelos vrios mbitos da vida
social moderna, daquele circunscrito pela pesquisa acadmica queles onde se do os
embates decisivos da ordem societria. Penetrao esta a qual para Kautsky tem fora de
uma constatao autoevidente, que cumpre, para ele, explicar com plausibilidade: a
energia das origens e o poder do mtodo, da dialtica materialisticamente reconfigurada.
Intentando determinar com um pouco mais de rigor, nosso autor migrar da imagem,
desmesuradamente genrica e indefinida, da fuso para a noo de uma sntese de ordens
do saber cientfico. O pensamento marxiano ento uma sntese de diversos domnios
cientficos, de distintas tradies de reflexo filosfica e de formas de prtica, aparecendo
assim como resultado de uma rara fuso entre filosofia, cincia e prtica revolucionria.
Sntese que explica a seu ver no apenas a especificidade terica de Marx, mas acima de
tudo tambm sua fora:
Se queremos definir o carter da contribuio histrica deste homem
prodigioso, o melhor ser talvez dizer que tal contribuio uma sntese
de domnios diferentes e com frequncia at contraditrios: encontramos
a, antes de tudo, a sntese do pensamento ingls, francs e alemo, a do
movimento operrio e do socialismo e, por fim, a da teoria com a prtica
(KAUTSKY, s/d, p. 10-11).
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Com relao ao ltimo problema constante da citao de Kautsky acima, aquele da
relao entre teoria e prtica, cabe apontar um mrito importante, no obstante seu
conhecido cientificismo. Ele reconhece explicitamente que a atividade prtica de Marx
sempre se orientou pela tentativa e consecuo da apreenso terica rigorosa das
determinaes centrais da realidade social e dos nexos essenciais existentes entre elas.
Portanto, em se pretendendo uma compreenso da ao proposta nos marcos do marxismo,
a que necessariamente apreender com a mxima correo seus fundamentos tericos. No
por outra razo a temtica das origens que presidiram a emergncia da teoria marxiana o
alvo principal da inteleco.
O esquema da sntese se realiza numa construo que tenta dar conta de dois
aspectos, dificilmente conciliveis, como j o referimos, uma vez que se supe a amalgama,
por um lado, e, de outro lado, se constata o poderio e a coerncia da elaborao marxiana.
No curso da exposio de Kautsky, o pensamento de Marx aparece por fim como
resultado de um processo de sntese, mais que de confluncia, de trs tradies de
pensamento da vida moderna: a alem, a francesa e a inglesa. No interior dessa articulao
ideal, cada nao oferece a Marx uma determinada poro ou um momento do saber.
Inglaterra coube a parte material, o desenvolvimento o mais pleno das formas, meios e
relaes da produo capitalista. O que engendrou um, por assim dizer, esprito
puramente pragmtico, o qual se caracteriza pela estreiteza de viso e o conservadorismo,
marcadamente absteno de qualquer veleidade de aquisio de largos horizontes, o que
penetrou em todas as classes. Sua caracterstica mais marcante a avaliao desmesurada do
trabalho de detalhe tanto na poltica quanto na cincia. Em Inglaterra, segundo Kautsky,
no teria havido um processo de revolvimento da vida social e poltica, mas uma
acomodao de antigos componentes numa nova articulao. Da Frana veio o princpio
motor da poltica. Um pas de desenvolvimento capitalista mais atrasado quando
comparado ao dos ingleses, baseado na agricultura e numa indstria de luxo, com grande
predomnio das populaes dos centros urbanos, em especial Paris. Ao contrrio do
esprito de compromisso bardo, o desenvolvimento social francs foi sempre
caracterizado pela contestao dos poderes arcaicos e suas formas de dominao e
articulao polticas. No houve aqui um processo de reforma ou acomodao, mas sim a
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conquista do poder poltico, a qual encetada por uma classe oprimida, produz sempre
uma modificao do mecanismo social, em contraste com o caso ingls, predominava o
esprito radical e o entendimento poltico. No que tange Alemanha, a reflexo marxiana
herda o mtodo cientfico propriamente dito, a dialtica. O que j demarca uma diferena
com relao a Engels, por exemplo, para quem a dialtica uma lgica do mundo. Em
Kautsky, a doutrina emanada da obra hegeliana surge como uma organizao especfica do
esforo de inteleco cientfica. O mundo germnico se define por um desenvolvimento
capitalista retardatrio entre as naes europeias dominantes poca, sem a constituio
completa das classes que realizavam, em Inglaterra pelo compromisso pragmtico e em
Frana pela revoluo poltica, a consolidao da sociedade e do Estado modernos. E isso
no obstante o estmulo e o exemplo vindos dos seus dois contemporneos europeus mais
fortes, na sociedade alem o desejo de ao dos seus elementos mais enrgicos e mais
elementos mais inteligentes no pode se realizar em nenhum dos domnios que a burguesia
da Europa ocidental tinha conquistado (KAUTSKY, s/d, p. 40). Assim, no podendo obrar
seno na elucubrao terica, os representantes filosficos da sociedade alem
imaginavam os melhores mtodos para o avano do pensamento e da investigao
intelectual (KAUTSKY, s/d, p. 41). Um esprito demasiadamente contemplativo, que
vicejava e se fortalecia quando ficava-se pela posse das teorias juntas e negligenciava-se
lutar para se conquistar o poder necessrio para aplic-las. Desse resumido esboo
histrico feito por Kautsky, h que reter que cada princpio realizado pelos trs grandes
pases europeus, deixado a si mesmo, revela-se insuficiente e no resolutivo. O que se
comprovaria pelo fato de que Os alemes durante muito tempo, no souberam
desembaraar-se d idealismo inativo, como os ingleses do conservadorismo e os franceses
da fraseologia extremista (KAUTSKY, s/d, p. 42).
De certa maneira, assiste-se ao mesmo modo de operar esquemtico quando o
problema enfrentado da relao de trabalho e produo intelectual de Marx e Engels.
Kautsky pretender explicar as diferenas e comunidades entre os dois pensadores fazendo
recurso a uma espcie de genealogia sociolgica. Marx por sua origem, uma famlia de
advogados, voltou-se s questes terico-filosficas e jurisprudncia, e Engels, por ser
oriundo de um lar de industriais, ir ocupar-se da compreenso da vida econmica concreta
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(KAUTSKY, s/d, p. 27-29). O que aparecer mais tarde, no livro, no problema das fontes
do marxismo, como genealogia geopoltica, toma a feio neste passo de uma sntese de
genealogias pessoais. Desse modo, Marx se dirigir, para usarmos a nomenclatura do
prprio autor, para as cincias psicolgicas antigas, e Engels para a moderna economia
poltica. Kautsky parece ignorar que Marx, segundo o Prefcio de 1859 Para uma Crtica
da Economia Poltica, j em fins de 1843 foi obrigado a dedicar-se, pelo enfrentamento de
questes concretas, a encetar o estudo da anatomia da sociedade civil. A concordncia de
ambos, tendo em vista a disparidade de origens, reside no seu assentimento Revoluo. O
encontro de dois atores vindos de origens dspares se d pelo reconhecimento de um repto.
Tem-se aqui a origem de outra concepo que fez poca seja no interior da academia seja
fora dela, aquela da quase inseparabilidade de Marx e Engels que a tradio tanto marxista,
quanto antimarxista se apega como verdade autoevidente. Por conseguinte, segundo
Kautsky, Foi seu