a ciência é inumana

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Henri Atlan A CIENCIfl EINUMANAP Ensaio sobre a livre necessidade

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Henri Atlan

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Page 1: A Ciência é Inumana

Henri Atlan

A CIENCIfl EINUMANAP

Ensaio sobre a livre necessidade

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A CliNCIA EINUMANAP

Ensaio sobre a line necessidade

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ColepiloQUEST&ES DA NOSSA EPOCA

Volume 117

Dados Internacionais de Catalogagao na Publicapao (C IP ) (Cam ara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Atlan, HenriA c ien c ia e inum ana : en sa io sob re a liv re

necessidade / Henri Atlan ; traduifao de Edgard de A ssis C arvalho. — S5o Paulo : C ortez, 2004. — (Colepao questSes da nossa epoca ; v. 117)

Titulo original: La science est-elle inhumaine?ISBN 85-249-1057-7

1. Ciencia - Aspectos morais e eticos 2. Liberdade3. L iv re-arb itrio e de term in ism o 4. P rogresso - A sp ec to s m orais e e tico s 5. R e sp o n sa b ilid ad e 6. Tecnologia - Aspectos morais e eticos I. Titulo. II. S6rie.

04-4974____________________________________ CDD-303.483

Indices para catalogo sistematico:

1. Ciencia e livre necessidade : Sociologia 303.483

Henri Atlan

A CIENCIA ( INUMANA?

Ensaio sobre a livre necessidade

Tradupao de EDGARD DE ASSIS CARVALHO

/^CO RT€Z^CDITO RO

Page 4: A Ciência é Inumana

Tftulo original: La science est-elle inhumaine? Essai sur la librenecessiteHenri Atlan

Capa: Estudio GraalPreparagao de originais: Adilson Miguel Revisao: M aria de Lourdes de Almeida Composifao: Dany Editora Ltda.Coordenafao editorial: Danilo A. Q. M orales

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autoriza^ao expressa do autor e do editor.

© Paris, Bayard Editions, 2002

Direitos para esta edigaoCORTEZ EDITORARua Bartira, 317 — Perdizes05009-000 — Sao Paulo - SPTel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290E-m ail: cortez @ cortezeditora.com.brwww .cortezeditora.com . br

Impresso no Brasil — novembro de 2004

/S1GORT6Z'S?€D ITORfi

Su m a rio

1 . O inumano......................................

2. Livre necessidade e liberdade.....

3. Determinismo e livre necessidade

4. A responsabilidade........................

5. Tecnologia e e tica.........................

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/ E i C O R TE Z '» € D I T O R O

[0 inumano]

O inumano diz respeito apenas a especie hu- mana. Som ente seres hum anos podem ser inumanos ou confrontados a inumanidade. As existencias mineral, vegetal e animal pertencem apenas ao “nao-humano”. Justamente pelo fato de a ciencia ser uma das atividades mais carac- terfsticas da especie humana, a questao que hoje se coloca diz respeito ao carater humano ou inumano de suas p roduces. Nesse caso, a cien­cia poderia ser considerada inumana?

Desde a inven§ao do fogo, as ciencias e as tecnicas sempre fascinaram e amedrontaram si- multaneamente, pois tudo o que fizeram foi au- mentar os poderes dos homens sobre a natureza e sobre eles mesmos — inclusive em sua inu­manidade. Por meio da sua pesquisa de meca- nismos, explicagoes causais e leis profeticas que reduzem o campo do livre-arbftrio a algo que

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tende a desaparecer, a ciencia, entendida como saber, seria algo essencialmente inumano? Sob o efeito de uma certa tradi?ao humanista, a hu- manidade dos homens foi durante muito tempo associada aquilo que se acreditou ser o exercf- cio do livre-arbi'trio. A afirma9ao do determi- nismo, ao qual conduzem cada vez mais as des- cobertas cientfficas, parece, assim, incitar a afir- mafao de sua inumanidade.

Esse tema evoca outro que considero crucial, e ate mesmo urgente, mas ao qual raramente nos dedicamos. Hoje uma pergunta se coloca de modo relativamente novo: “O que e a nossa liberdade?” Se essa questao se impoe a mim agora, nao consigo lembrar-me do exato mo- mento em que ela me ocorreu pela primeira vez. Talvez porque simplesmente nao tenha havido esse exato momento. A reflexao que se segue nao e resultante de uma subita ilumina9ao, mas antes o resultado de uma pratica cotidiana — a pesquisa biologica — e de uma reflexao filoso- fica que empreendo sobre ela. Quando se passa grande parte do tempo pesquisando as causas dos fenomenos, das d e te rm in a tes , as vezes mesmo das leis, quando a cada dia se busca o ideal da pesquisa cientifica, o questionamento

nao pode deixar de surgir. Mesmo quando eu dedicava todo o tempo a pesquisa, em minha vida privada continuava a me comportar como qualquer pessoa. Fazia pianos para o futuro, vivenciava conflitos, enfim, comportava-me como um agente que decide o que quer fazer. Minha experiencia cientifica me levava a defen­der, em teoria, a posit^ao do determinismo ab- soluto. O simples engajamento em uma pesqui­sa das causas pressupunha o determinismo como postulado. Mas, no momento em que defendia esta posi§ao, eu lutava para obter coisas con- cretas, tomava uma ou outra decisao, escolhia essa ou aquela estrategia... Isso nao mudava em nada minha vida cotidiana, nem as r e d o e s que eu estabelecia ao meu redor, mesmo em meu laboratorio. Em suma, eu vivia plenamente a contradi§ao entre a teoria e o vivido. Foi nessa desconfortavel posigao que descobri as filoso- fias do determinismo absoluto, primeiro os es- toicos, depois outros e, posteriormente, Spinoza. Foi possfvel entao conciliar essas duas expe- riencias...

Se a inumanidade consiste em desmistificar tanto quanto possfvel as paixoes alienantes e as ilusoes humanas, inclusive as que a ciencia con-

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tribui para fomentar, entao nao resta duvida de que a ciencia e inumana. Mas se a inumanidade consiste em submeter os corpos e as mentes ao sofrimento, a incapacidade e a ignorancia, a ciencia, ao contrario, e um fator insubstitufvel de humanidade.

/acoRTezV&€DITORO

2 .

[Livre necessidade e liberdade]

Ate a segunda metade do seculo XX, convi- vemos com a ideia de que eramos agentes li- vres, nao apenas no piano politico, mas sobre- tudo no piano metafisico. Decidimos livremen- te empreender determinadas agoes, com uma fi- nalidade tambem escolhida de forma livre, ba- seada em nosso julgamento sobre o que e o bem e o mal. E sempre com base nessa ideia — “so- mos dotados de livre-arbftrio” — que somos julgados responsaveis. E ela que se encontra na raiz das filosofias morais, pelo menos das mais conhecidas, dentre elas, a kantiana, que primei- ro lan9ou os fundamentos da condi§ao livre. Inumeros pensadores empenharam-se em mos- trar que certos aspectos da filosofia de Kant encontravam-se defasados da evolu§ao das cien- cias. No infcio do seculo XX, sua epistemolo- gia passou pelo crivo das evolu9oes relativamen-

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te novas da fisica. A influencia de uma ffsica newtoniana ultrapassada foi revelada em sua concepgao de tempo e espago. A reviravolta que hoje testemunhamos e, porem, ainda mais im- portante. E com rela§ao as descobertas da bio- logia que a filosofia de Kant encontra-se hoje de- fasada. E por uma razao de ordem semelhante.

E necessario falar um pouco acerca dos avan- 90s recentes na biologia a fim de melhor com- preendermos a crise atual. Para a maioria dos pesquisadores contemporaneos de Kant, a bio­logia obedecia a pressupostos, a principios ou a teorias vitalistas. Os seres vivos se distinguiam dos nao-vivos de modo ontologico ou, pelo menos, epistemologico. Kant podia entao pen- sar os organismos vivos pela finalidade interna que neles se manifestava e os opunha aos ou- tros, unicamente determinados, por mecan\smos causais. Esse a priori praticamente desapare- ceu do discurso da biologia atual. Durante a vi- gencia do vitalismo, a diferen?a entre seres vi­vos e os outros foi solidamente fundamentada. A biologia molecular nos mostra todos os dias que os organismos, bem longe de obedecer a uma finalidade interna, sao regidos por meca- nismos ffsico-qufmicos. Hoje a biologia e as

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neurociencias revelam uma continuidade entre o nao-vivo e o vivo, entre o mundo sem cons- ciencia e o mundo da consciencia humana. De certa maneira, safmos de um perfodo que pode ser qualificado de “pre-biologico”, no qual a existencia da alma cindia o mundo em dois, dis- tinguia os seres animados dos inanimados, e o homem de qualquer outro ser vivo. A alma hoje I so existe para filosofos e poetas. De Platao a ̂Descartes, cafram por terra todas as visoes an- teriores de uma alma governando o corpo como, j um cocheiro governa sua carruagem. ,j 1

Quer dizer, entao, que toda diferenga deixa- ria de existir, que nao conseguiriamos distin- guir um cao de uma nuvem? E evidente que nao, pois a diferen?a subsiste, embora tenha muda- do de natureza. O que separa o cao da nuvem e uma questao que deve ser pensada independen- temente. Quando observamos uma nuvem, colocamo-nos problemas de estrutura, eventual- mente de causalidade — como ela se transfor­ma em chuva, por exemplo — , mas jamais ques- toes de fun§ao. Na verdade, quem afirmaria que a fun5ao da nuvem e produzir a chuva? Dito de outro modo, so nos colocamos essa questao de fun§ao quando estamos diante de seres vivos. E

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mesmo nesse caso, nao se espera mais que a fungao explique a estrutura do organismo. As- sim como aquilo que aparece como uma finali- dade interna, a fungao deve ser explicada de ma- neira mecanica. Essa e a tarefa da biologia mo­lecular atual. Nao ha mais diferenga de nature- za e, por isso, pode-se falar de uma continuida- de entre o mundo ffsico e o mundo vivo.

As mesmas leis se aplicam, apenas as pro- priedades variam: uma pedra nao respira, uma ameba nao pensa...

Durante muito tempo, a capacidade de repro- dugao, juntamente com a transmissao de carac- teristicas hereditarias, foi considerada o feno- meno mais especifico da vida, inteiramente ir- redutfvel as leis ffsico-qufmicas. De modo se- melhante, o metabolismo e a capacidade de um organismo de se adaptar as mudangas do meio- ambiente constitufam provas da existencia das forgas vitais. Ate o seculo XX, julgava-se que, nos organismos, existiam moleculas ditas or- ganicas que podiam ser observadas e analisa- das, embora sua smtese fosse impossivel de ser feita. Em ultima instancia, esse era o segredo que escondia a especificidade da vida. A revo-

lugao biologica do seculo XX 1 consistiu preci- samente em explicar, pelo menos em linhas ge- rais, esses comportamentos, pretensamente ca- racterfsticos da vida, a partir das propriedades ffsicas e quimicas das moleculas, que tinham a estrutura conhecida e podiam ser sintetizadas em laboratorio de modo artificial. O primeiro abalo ocorreu no infcio do seculo XX com a smtese da ureia, molecula de origem organica. Desde entao, a bioqufmica nao parou de sinteti- zar novas moleculas organicas (ate as protefnas, nos anos sessenta), reduzindo cada vez mais o

1. Da sintese da ureia a descoberta do codigo genetico, nos anos sessenta, os que chegaram a pensar que consegui- riam explicar o ser vivo pelo metodo mecanicista opuse- ram-se aqueles para quem esse fato constituia uma vitoria apenas parcial.

Os grandes exitos da biologia molecular ocorreram tam- bem nos anos sessenta: de um lado, a descoberta do substra­ta molecular dos genes sob a forma do ADN, de outro, os mecanismos pelos quais esses genes orientam a sintese das protefnas. A natureza ffsico-qufmica dos genes e o mecanis- mo de sintese das protefnas (moleculas observaveis unica- mente em seres vivos) constitufam os dois grandes proble- mas classicos da biologia que o metodo bioqui'mico ainda nao havia chegado a resolver, permitindo que uma concep^ao nao-mecanica da vida ainda tivesse algum espac^o. O ftm do vitalismo ocorreu a partir dessas descobertas.

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, domfnio do vitalismo. Nos dias atuais, a unica especificidade do ser vivo diz respeito a com- plexidade de sua organizagao e as atividades que a acompanham. E essas advidades, as quais nos referimos quando falamos de fun^ao, nao reme- tem de modo algum a uma finalidade. As subs- tancias radioativas tern tambem uma atividade, embora nao possuam nenhuma fun§ao ou fina­lidade. Por fim, a descoberta da morte celular programada, ou apoptose, acabou por perturbar as certezas sobre a vida. Sabe-se hoje que cer- tas celulas tern a capacidade de matarem-se a si proprias. Mais uma vez, nao se trata de finali­dade, de uma especie de consciencia que elas teriam acerca de sua propria vida e de sua mor­te, mas de mecanismos enzimaticos presentes na celula em estado latente que, uma vez ativados, provocam sua destruigao. Longe de ser excepcional, esse mecanismo caracteriza a quase totalidade dos seres vivos. A queda das folhas de uma arvore nao ocorreria sem a morte de um certo numero de celulas situadas no local em que elas se encontram presas aos galhos. Mais ainda, essa morte celular participa do desenvol- vimento embrionario. Como aqueles esbogos de maos e pes que se veem na ultra-sonografia aca- bam dando forma a dedos e artelhos? Precisa-

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mente pela morte de um certo numero de celu­las que se encontram nos intervalos futuros. Tra- ta-se de um processo muito geral, que pode ser encontrado no desenvolvimento do sistema ner- voso central e do sistema imunitario, entre ou- tros. Em 1979, ja se podia considerar que a vida,

'defmida por Bichat2 como “o conjunto de feno- menos que se opoem a morte”, revela-se mais como “o conjunto dos fenomenos capazes de utilizar a morte'V

ma formula do biologo Szent-Gyorgyi4 pa- ;ece resumir em si mesma toda essa aventura: A vida nao existe”. Quando ele fez essa decla-

ragao um pouco brutal, provavelmente nao pu- nha em duvida sua experiencia cotidiana. Nao considero nenhuma trai?ao a ele tomar sua asser- tiva mais precisa: a vida nao existe enquanto nogao explicativa das propriedades organicas.

2. Xavier Bichat (1771-1802). Anatomista e fisiologista frances, fundador da anatomia geral. [N. T.]

3. Henri Atlan. Entre le crystal et lafumee. Paris, Ed. du Seuil, 1979, p. 278. [Entre o cristal e a fumaga, trad. Vera Ribeiro. Revisao tecnica Henrique Lins de Barros. Rio de Janeiro, Zahar, 1992]

4. Szent-Gyorgyi, um dos primeiros grandes bioqutmi- cos do seculo XX, descobriu a vitamina C.

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Dito de outro modo, a vida nao existe como objeto da pesquisa bioJogica. Francois Jacob nao pretendia nada diferente disso quando escreveu: “Nao se interroga mais a vida nos laboratories.” A questao “o que e a vida?” nao pertence mais aos biologos; ela pode preocupar filosofos ou qualquer homem confuso diante de tantas des- cobertas, mas nao e mais uma interroga^ao bio- logica. Esse fato nao modifica em nada nosso cotidiano nem a enorme diferenga que, para nos, subsiste entre a vida e a morte de um ente que- rido. Mas essa diferen9a inabalavel e importan- te para nossa vivencia, nossa linguagem, para as trocas que realizamos com outros seres huma- nos ou ate com animais. A vida e uma experien- cia indiscuti'vel, mas apenas uma experiencia.

O hiato entre os avangos cientificos e o senti- mento de nossa existencia cotidiana e cada vez maior. As descobertas apontam para uma dire- ?ao cuja hipotese era rejeitada por Kant. Ele estava convencido acerca da impossibilidade de que um Newton biologo viesse, algum dia, ex- plicar o ser vivo de modo puramente mecanico. Todos os organismos vivos e, principalmente, o homem exprimiam fmalidades. A capacidade dos homens de se atribufrem a si mesmos seu

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proprio fim fundava a possibilidade de sua li- berdade. Nao foi, portanto, um Newton, mas um exercito de pequenos Newtons que acabaram por colocar a finalidade em maus len^ois e desco- brir os mecanismos que explicam nao apenas os comportamentos dos organismos mais sim­ples mas tambem os nossos.

Os dispositivos hoje observaveis no nfvel en- docrino5 mostram como alguns de nossos com­portamentos e pensamentos e, a fortiori, alguns de nossos sentimentos e paixoes sao determina­dos por fenomenos biologicos de toda ordem (sem contar os mecanismos sociais, psicologi- cos, lingtusticos com os quais interagem). A ideia de que tmhamos capacidade para decidir livremente nossos atos sofreu um abalo. Quan-

5. Sabemos, por exemplo, que o grau de adrenalina em nosso corpo nos toma mais ou menos capazes de resistir a colera. Certos desequilfbrios dos hormonios sexuais podem igualmente nos levar a cometer atos incontrolados e ate mesmo crimes. Outros fatores certamente desempenham importante papel na conduta impulsiva, mas a influencia dos hormonios e hoje inquestionavel. A eficacia do tratamento hormonal que diminui a libido e prova disso. Certos crimi- nosos sexuais chegaram mesmo a exigir esse tratamento quando safram da prisao, com medo de terem uma recaida.

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do se descobre que uma decisao foi de fato de- terminada por um desajuste hormonal, uma pre- disposigao genetica, uma influencia social ou cultural, tal ideia fica bem mais dificil de ser defendida. O conhecimento cada vez mais am- plo dos dispositivos fisico-quimicos conduz ine- xoravelmente a concepgao de um determinis- mo que concede apenas um lugar pequeno ao livre-arbitrio, senao mesmo nenhum. Ele nos le- varia a encarar nossa experiencia subjetiva e so­cial do livre-arbftrio como uma ilusao forjada por nossa imaginagao. Nesse sentido, a biolo­gia parece acabar com a conquista do determi- nismo absoluto e, em conseqiiencia, eliminar completamente a realidade de nossa experien­cia da liberdade, concebida como uma capaci­dade de livre escolha eficiente.

A crise nao encontra precedentes. Um indi- vfduo que nao tenha verdadeiramente experien­cia com a pesquisa cientffica sera certamente pouco sensfvel a esse fato. Ele podera ficar fas- cinado ou horrorizado com os horizontes aber- tos por certas tecnicas, como a da clonagem por exemplo, mas nem por isso colocara em duvida seu livre-arbftrio. Em contrapartida, aqueles que acumulam as duas experiencias irao vivenciar

o dilema ate as ultimas conseqiiencias. No tra- balho ou em areas centrais de seu interesse, eles tem a experiencia dos determinismos que reve- lam nossos conhecimentos atuais, continuando

I a viver e a fazer escolhas em seu cotidiano. Vi- vem o hiato em seu interior, divididos entre a experiencia cognitiva e as experiencias afetivas.

Diante dessa situagao, duas atitudes sao pos- siveis. A primeira preconiza a resistencia. Sim, existe hoje um domfnio no qual o sujeito e livre e nao determinado, o famoso dommio supra- sensfvel kantiano. O argumento defendido por esses resistentes e consideravel: se nao conti- nuarmos instalados nessa posigao, tudo cai por terra. Junto com o livre-arbftrio, desmoronam a moral e a responsabilidade. Quem ousaria admi- tir que nao existe mais moral e nem responsabi­lidade? Contra tudo e contra todos e preciso, entao, continuar a afirmar nossa livre vontade. Seria necessario opor-se a todas as descobertas cientfficas, mas tambem psiquicas, psicanalfti- cas, sociologicas, que conduzem a morte do sujeito. Segundo essas concepgoes, tudo aquilo que eu creio decidir, querer por mim mesmo enquanto sujeito livre, senhor de meu destino e de meu comportamento, e determinado por todo

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um conjunto de fatores que mal conhego. O su- jeito livre torna-se, entao, uma ilusao e se apa- ga na areia como a figura do homem de Foucault. Essas filosofias da suspeita — que nao contam com minha adesao6 — sao originarias de uma efetiva crise social. A moral cotidiana e o pro- prio direito se fundamentam na existencia de agentes responsaveis por seus atos. O hiato nao cessa de se ampliar entre o que e socialmente conveniente e os conhecimentos novos aos quais chegamos.

Dai a considerar o progresso dos conhecimen­tos, e das ciencias em particular, como uma ameaga a estabilidade moral e jurfdica da so- ciedade falta muito pouco. Mais ciencia parece querer dizer menos humanidade. As respostas a esse crescente mal-estar sao multiplas; a insti-

---------\y 6. Foucault se situa como herdeiro dos filosofos da sus- ^ peita, Marx. Nietzsche e Freud. Os tres contribui'ram para a

morte dojoijeito, demonstrando que os comportamentos ti- dos como livres eram, de fato, determinados por fatores so- ciais para Marx, biologicos para Nietzsche e inconscientes para Freud.

As filosofias estoica e spinoziana, das quais me sinto proximo, nao sao justamente teorias da morte do sujeito, mas ao contrario, sao pensamentos em que o sujeito se cons- troi pela_mediacao de seus proprios determinismos.

tuigao dos comites de etica e provavelmente uma das mais comodas e racionais dentre elas.7

Essa maneira habitual de resistencia se asse- melha mais a uma denegagao: fechar os olhos ou nao tirar conseqiiencias desse acumulo de conhe­cimentos e seguir acreditando na eficacia de nos- sas livres escolhas para continuarmos a ser agen­tes sociais ou jurfdicos. Quando essa denegagao e reivindicada, ela se transforma em uma nega- gao pura e simples. A ciencia e, entao, acusada de solapar os fundamentos da moral e da socieda- de, cedendo lugar a celebragao de certas formas de irracionalismo que podem ser identificadas tanto em religioes institufdas como em seitas.

Outro perigo que se encontra a espreita e o niilismo, que nao existe necessariamente quan-

7. Ciencias e tecnicas colocam atualmente problemas eti­cos que elas mesmas nao sabem como resolver. A utilidade desses comites consiste em criar as condifoes de um debate publico sobre questoes cujos aspectos tecnicos sao por ve- zes muito complicados e desconhecidos do grande publico, mas que nao encerram o debate. Quando se lida com ques- t5es eticas, ninguem pensa em confiar apenas aos cientistas a tarefa de resolver esses problemas. Esses comites iniciam o debate antes que ele se tome publico e, as vezes mesmo, formalizado por meio de leis.

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do o pensamos espontaneamente. Com certeza ele esta presente em uma certa atitude determi- nista: se sou determinado a agir, em virtude de quais princfpios posso ainda ser condenado? Por mais grosseiro que seja, esse perigo nao e maior que um outro, mais dissimulado, que se escon- de sob a atitude de resistencia naqueles que, em nome da defesa do sujeito, fazem do livre-arbi- trio um valor supremo? Como resposta a reve- latjao de todos esses mecanismos, uma especie de moral do desejo soberano talvez tenda a se constituir. A espontaneidade de nosso desejo seria a expressao mais justa de nossa liberdade e nao haveria nenhuma razao para fazer oposi- 9ao a ela. Mas que mundo e esse senao o da guerra de todos contra todos? Mesmo que cer- tas barreiras impe§am a guerra real, ela ja ocu- pa os espfritos. Estamos diante de um niilismo muito pratico que amea9a a sociedade, na qual eu nao reconheceria outros valores que nao fos- sem meus proprios desejos. Talvez eu respeite a lei que justapoe e ajusta os desejos de todos, mas o unico valor que me guia e meu desejo. Uma certa filosofia do sujeito livre conduz, as- sim, a um niilismo, tao perigoso quanto um de- terminismo mal compreendido.

Recuso essa posi9ao de resistencia. Nos dias atuais, e certamente muito dificil provar que ela e inadequada, pois os comportamentos ainda nao sao explicados de modo mecanico e sempre e possfvel sonhar que certos individuos continua- rao ao abrigo dos avan90S cada vez mais sofis- ticados do mecanicismo, inclusive aqueles que se utilizam das estatfsticas e do acaso “domes- ticado”, conforme a expressao de Nietzsche, por meio do calculo das probabilidades.8 O que e preocupante em tudo isso e que o domfnio do livre-arbitrio se reduz cada vez mais. Por que nao optar pela atitude inversa e ampliar, mesmo imaginariamente, as descobertas atuais? Com efeito, creio que e mais proveitoso deixar tudo isso de lado. Suponhamos que algum dia che- guemos a explicar mecanicamente o conjunto de nossos comportamentos e que, a partir de nossas escolhas, nos sintamos livres. Esse fato

8. O acaso nao se opoe ao determinismo absoluto. Pelo calculo das probabilidades, ele se torna, ao contrario, uma maneira de reduzir nossa ignorancia ate na ausencia explfci- ta de conhecimentos. Mesmo que pensemos que nao pode-, mos conhecer, provisoria ou definitivamente, as causas, o acaso, formalizado pelo calculo das probabilidades, nos per- mite reduzir a ignorancia.

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significaria o fim da moral, da responsabilida- de e de qualquer tipo de vida social? Creio que nao. E possfvel construir uma existencia e uma filosofia que sejam felizes assim como morais. Devemos reaprender a considerar como somos responsaveis pelo que somos e pelo que faze- mos, independente de uma crenca metaffsica no livre-arbftrio, admitindo que nao escapamos ao determinismo universal e que somos determi- nados a fazer o que fazemos, mesmo quando acreditamos escolher livremente ou nao nos sen- timos obrigados. Admitir isso exige um esforgo intelectual certamente um pouco diffcil que, no entanto, nao e nada novo. Antes de nos, os es- toicos, os epicuristas e, mais recentemente, Spinoza engajaram-se nessa problematica.9 As filosofias do determinismo, que consideram o livre-arbftrio uma ilusao ligada ao desconheci- mento das causas de nossas vontades, jamais re- nunciaram buscar conscientemente uma etica da

9. Certos pensadores do determinismo absoluto, per- tencentes a outras tradigoes filosoficas, como o budismo e o islamismo, ou como o pensador cabalista Hasdai Crescas (seculo XIV) e o rabino Schtolomo Hetkhil Eliachoff (se­culo XX) na tradifao judaica, autor de O livro do conheci- mento, encontram-se sintonizados com essa posigao.

responsabilidade e da liberdade. A ffsica pode nos auxiliar nesse esforgo. No meu entender, ela me preparou para aceitar que algumas de mi- nhas experiencias eram ilusorias: se nossas ex­periencias imediatas do espago e do tempo se revelavam inadequadas pelas observagoes das partfculas elementares (que se encontram, por exemplo, simultaneamente em dois lugares), por que nao poderia ocorrer o mesmo com outras ex­periencias? Poder-se-ia, entao, conceber que cer- tas experiencias de nossa vida cotidiana sejam ilusorias mesmo sem suprimi-las.

Em sua epoca, Spinoza afirmava algo seme- lhante: o livre-arbftrio e uma ilusao ligada a nossa ignorancia das verdadeiras causas. Lon- ge de pensar que ele pregava a morte de qual­quer tipo de moral, ele intitulou sua obra-pri- ma de Etica. Por meio de suas ideias, podemos reencontrar um outro modo de pensar a liberda ̂de, que esteja mais de acordo com os avangosatuais da biologia e das ciencias humanas.

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3 .

[Determinismo e livre necessidade]

Torna-se urgente retornar a seguinte questao filosofica: em um mundo inteiramente determi­nado, pode ainda existir uma liberdade, uma vida em sociedade e uma moral? Para os estoicos, para Spinoza e certos cabalistas, essa questao as vezes e formulada de outra maneira: o mun­do e perfeito, pois nao poderia ter sido diferen- te do que e, e no entanto ainda pode ser aperfei- goado; a vocagao especffica da especie humana e buscar sempre mais perfeigao. A intuigao fun­damental de uma dada perfeigao e acompanha- da de uma etica ou de uma exortagao para que se percorra o caminho dos justos, ou seja, de uma busca da salvagao que visa uma forma de perfeigao maior ou diferente da inicial. Parado- xo identico consiste em afirmar um determinis­mo absoluto que concede ao livre-arbftrio ape­nas o lugar de ilusao ao asseverar a reaiidade da

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liberdade. Para isso, e necessario considerar a liberdade como algo radicalmente diferente de nossa experiencia imediata do livre-arbftrio — como quando nos confrontamos com uma es- colha e optamos por um caminho em vez de outro. Compreendamos bem: nao se trata aqui de se contentar em simplesmente olhar o livre- arbftrio como uma forma ingenua e degradada de liberdade, a ponto de nao ser instrufdo pela razao pratica universal e de nosso julgamento permanecer obscurecido pelas paixSes e pela opiniao.

Para a maioria dos filosofos posteriores a Kant, apenas as escolhas elaboradas pela razao e que obedecem ao imperativo moral seriam li- vres, enquanto as demais seriam determinadas pela forga das pulsoes ou pela busca de interes- ses. Mas e a propria distingao entre escolha ra­tional e escolhas impulsivas — se a considerar- mos como radical e absoluta do ponto de vista de suas determinagoes causais — que as cien- cias cognitivas, tanto as neurologicas como as psicologicas, revelam como parcialmente ilu- soria. O exercfcio da razao nao e desencamado; necessita do corpo e de suas paixoes. Alem dis- so, em que sentido a escolha dos fins no proces-

so de decisao rational e livre? Ela nao e ditada tambem pelas leis do desejo e de suas determi- nagdes biologicas e psicossociais — como o mimetismo e a inveja por exemplo? Para alguns, o conhecimento que podemos ter adquirido acer- ca dessas determinagdes permite que nos libe- remos delas. Em todo caso, ele nos da a sensa- gao de poder agir livremente sobre as causas e as motivag5es de nossos desejos e de nossa von- tade. Mas como nao ver que af ocorre uma re- gressao ao infinito, a nao ser admitindo, como fazem as filosofias kantiana e pos-kantiana, um domfnio “supra-sensfvel” da liberdade, fora do mundo e de seus determinismos ffsicos? O su­jeito livre constituiria uma origem absoluta, um primeiro agente capaz de criar causas primei- ras, que iniciaria a partir do nada novas cadeias causais independentes do resto do mundo. E o homem visto como um “imperio em um impe- rio”, imagem ja ridicularizada por Spinoza, numa epoca em que a descoberta dos mecanis- mos pelos quais os corpos, vivos ou nao, se movem encontrava-se em seus primordios.

Essa moral pos-kantiana constitui o funda- mento da moral humanista. De um certo ponto de vista, que antecipo aqui, ela e anti-humanis-

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ta. Reivindico essa posigao. Mas recuso-me a pensar, como Sloterdijk por exemplo, que se nao e mais possfvel ser humanista, e necessario admitir a imoralidade. Existe uma denuncia de certos aspectos do humanismo como moral bur- guesa ocidental e opressiva, postura com a qual me identifico. O humanismo classico condu- ziu a horrores morais (colonialismo, guerra). Recuso-me, sobretudo, a conceder ao homem o lugar de imperio num imperio, pois ele me pa- rece determinado como todos os outros seres da natureza. O homem do humanismo, o Ho­mem com H maiusculo, nao consigo ver sim- plesmente o que ele e. Esse Homem com um grande H nao existe, ha apenas indivfduos e su- jeitos em devir. Uma frase e incessantemente repetida nos dias atuais: o futuro e incerto e o Homem deve escolher. A primeira parte da fra­se e inegavel, mas a segunda e insensata, pois quem e esse sujeito que poderia escolher? Como estamos vendo, a capacidade de escolher e no mfnimo sujeita a discussao, assim como este Homem e inexistente. O humanismo colocou o homem no lugar de Deus. Ele padece hoje dos mesmos defeitos que a teologia. Creio que e pos­sfvel se livrar desse humanismo assim como foi

feito com a teologia, sem, no entanto, negar a etica e o reconhecimento do sujeito.

A revolugao que devemos empreender e mui­to mais ampla. Precisamos comegar a aceitar o que encontramos todos os dias em nossa cien­cia dos determinismos, a saber, que nossa cons- ciencia subjetiva da livre escolha e cada vez mais desmentida por nosso conhecimento objetivo de causas e leis impessoais que determinam tais escolhas e mostram com clareza que elas nao sao livres como acredita vamos. Ao inves de prio- rizar inicialmente a experiencia cotidiana e afetiva do livre-arbftrio e tentar acomoda-la a nossa experiencia cognitiva, ou ao nosso conhe­cimento cada vez maior dos mecanismos, pro- cedamos inversamente. Vamos esquecer por um tempo nossas experiencias do livre-arbftrio e partir do postulado de que hoje conhecemos apenas parte de uma infinitude de determinis­mos; consideremos a hipotese de um mundo in- teiramente determinado. Dito de outro modo, vamos deixar de nos debater com as lacunas do determinismo e admitir de uma vez por todas que ele nao existe mais.

Essa reviravolta impoe imediatamente uma outra. Spinoza nos servira mais uma vez de guia.

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A liberdade, cuja realidade ele assevera, identi- fica-se no comedo de sua ontologia com a livre necessidade que caracteriza a obra de Deus — ou seja, da Natureza — e, com a liberdade hu- mana, como aparece no final da sua Etica. A verdadeira liberdade e, antes de tudo, a de Deus, compreendido como essa natureza infinita que se exprime, para nos, sob dois aspectos, o da extensao e o do pensamento. Sua realidade cor- responde a sua natureza autoprodutora. A liber­dade absoluta, a de Deus, coincide com a auto- produ9ao daquilo que existe na natureza pela natureza e com o conhecimento infinito de seu determinismo absoluto. “Diz-se que uma coisa e livre quando ela existe pela simples necessi­dade de sua natureza, e quando e determinada a agir unicamente por si mesma, mas diz-se que uma coisa e necessaria, ou melhor, coagida, quando ela e determinada por uma outra a exis- tir e a agir segundo uma lei particular e deter­minada.”1 Longe de ser uma capacidade de es-

1. Spinoza, Etica, parte 1, definifao VII. [Benedictus de Spinoza, col. Pensadores, trad. Joaquim de Carvalho. Sao Paulo, Abril Cultural, 1. ed. 1973.] A explica§ao VII cons- tante do elenco das Defini^oes diz integralmente o seguinte: "Diz-se livre o que existe exclusivamente pela necessidade

colha arbitraria, a liberdade tem a ver aqui com o fato de nao ser determinada por nada alem de sua propria lei. A liberdade humana representa assim a chegada de um caminho: o filosofo des- cobre progressivamente como se desapegar de sua servidao passiva, na qual e mantido por uma submissao irrefletida aos afetos e as causas ex- teriores, e como se determinar ele proprio cada vez mais, a medida que tem acesso ao conheci­mento adequado das coisas e de si mesmo.2 Um

de sua natureza e por si so e determinado a agir; e dir-se-a necessario, ou mais propriamente, coagido, o que e deter­minado por outra coisa a existir e a operar de certa e deter­minada maneira”, pp. 84-85. [N. T.]

2. Para Spinoza, a perfeijao humana, assim como a do restante da natureza, nao se da como possibilidade, mas como realidade ou, mais precisamente, como parte da realidade. Essa parte aumenta ou diminui na mesma medida que o conhecimento adequado das causas das afecfoes, pois esse conhecimento amplia o numero de ideias adequadas pro- duzidas pelo espfrito e nele contidas. Por isso mesmo, au­menta o poder de ordenar suas afec§oes segundo a ordem das razoes, ou seja, a for5 a de agir, por opositjao ao simples fato de sofrer as afecgoes produzidas por causas exteriores, que o conhecimento inadequado possibilita interiorizar. O conhecimento racional permite englobar as causas dos fe- nomenos por meio de sua compreensao. O conhecimento intuitivo, considerado de terceiro genero — que nao se pode

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homem e tanto mais livre quanto mais e deter­minado a agir pela unica necessidade de sua natureza, e nao pela necessidade de outras par­tes da natureza das quais dependem sua exis­tencia e suas afecgoes. O conhecimento infinito do determinismo coincidiria com uma liberda­de total. Nosso ser seria, entao, confundido com o nosso saber, e podenamos perceber em nos mesmos o poder e a eficiencia da “causa de si”. Dito de outro modo, gragas a esse conhecimen­to infinito, cada um de nos poderia ser em si- mesmo a causa de si e, nesse sentido, agente verdadeiramente livre, ja que produzido por sua propria determinagao. E evidente que nao me refiro aqui a nosso conhecimento efetivo, pois jamais temos acesso a esse conhecimento infi­nito. Trata-se de um horizonte, e ninguem, nem Spinoza nem Freud, pretendeu concluir essa pesquisa. Estamos apenas no caminho em dire- gao a esse saber infinito e a essa liberdade total. A existencia humana que se desenvolve na du- ragao pode ser a ocasiao de uma busca de per-

atingir fazendo economia do conhecimento rational, ou seja, sem primeiramente conhecer pela razao as leis universais da natureza — , vai ainda mais longe, no que diz respeito a sua compreensao das coisas singulares.

feigao cada vez maior, de uma historia de sal- vagao e liberdade, em que as exigencias maio- res da etica possam reunir a experiencia e o conhecimento das leis da Natureza.

Em contrapartida, esse postulado e necessa­rio a qualquer empreendimento de conhecimen­to. O simples fato de iniciarmos uma pesquisa de causas, ou de razoes, ou ainda de leis natu- rais, significa evidentemente que admitimos a existencia de causas, razoes e leis naturais.3

3. Cada vez mais, a pesquisa das causas revela-se inade- quada e tende a ser substitui'da por uma busca das leis. A fi'sica matematica implodiu a no^ao de causa. Nos dias atuais, os fenomenos ffsicos sao descritos por meio de leis mate- maticas, ou seja, por equafoes que, a partir de um estado dado de um corpo, permitem prever o que serao os estados subseqiientes. A no§ao classica de causa desapareceu na maneira de descrever esses fenomenos. Para Wittgenstein, a cren§a na realidade de uma relafao de causa e efeito experi- mentada no tempo era apenas supersti9 ao. Em fi'sica, essa evolu9 ao e dificilmente contestavel, porque ela e formaliza- da, “matematizada”. No que diz respeito as outras ciencias, a biologia, as ciencias humanas, a medicina, e diffcil chegar ate esse ponto, e ainda se buscam causas. Seria prudente aplicar a distin9 ao spinoziana entre causa adequada e inade- quada, entre causa parcial e causa total. Em biologia e em medicina infelizmente ainda ha muita confusao, com efei- tos deleterios e, por vezes, catastroficos. O exemplo mais

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O determinismo absoluto apresenta-se aqui como postulado inicial. Sua hipotese constitui simultaneamente um postulado metodologico, que precede qualquer experiencia de conheci- mento, e um postulado ontologico, que funda a

tristemente conhecido nos remete aos anos cinqiienta: havia sido observado que mulheres com abortos espontaneos re- correntes apresentavam uma taxa de estrogenos urinarios mais baixa do que a normal. Com base numa fraca correla- $ao estatfstica, deduziu-se que essa era a causa dos abortos e passou-se a prescrever as mulheres um medicamento, um estrogeno de sfntese denominado dietilestilbestrol. Os hor- monios estavam na moda. Vinte anos mais tarde, muitas fi- lhas que nasceram dessas gravidezes desenvolveram gravi's- simos canceres de vagina ou de ovario. Escandalo: um estu- do estati'stico havia constado apenas uma correlafao. Outro estudo deveria ter pesquisado a porcentagem das mulheres que abortavam entre aquelas que tinham uma taxa de estrogenios mais baixa que a normal. Mas esse estudo mais consistente nao fora feito. Mais tarde, demonstrou-se que a correla?ao era decorrente de uma causalidade em dire^ao oposta: a repetifao dos abortos e que causa a baixa na taxa de estrogenio. Uma relajao de causalidade tinha sido deduzida sem razao. Dois erros se acrescentam a isso: pri- meiro, uma confusao entre correlagao estatfstica e causali­dade; depois, uma confusao entre causa parcial e causa total. Ha uma especie de superstifao nessa pesquisa das causas a qualquer pre^o e nessa incapacidade de aceitar que um acon- tecimento possa existir sem que sua causa seja conhecida.

possibilidade de nossa liberdade. Nao podemos atingir e nem possuir o conhecimento infinito. Mas isso basta para reverter completamente a relagao entre conhecimento e liberdade. A ver- dadeira liberdade e assintotica. Ela e projetada no horizonte de um conhecimento infinito das coisas, dos outros e de si. Desse ponto de vista, nossos conhecimentos sao percebidos e nossa existencia e vivida como projegdes e recupera- goes parciais, nas quais o carater infinito das coisas e do pensamento se exprimiria e se pro- duziria em seus modos finitos. Ainda que seja apenas um horizonte, essa projegao esclarece nossas escolhas, nao nos aspectos em que elas seriam menos determinadas, mas naqueles que se inscrevem na livre necessidade da potencia infinita — causa de si em cada um de nos — e que sao vividas enquanto tais.

Apesar disso, a experiencia dessa liberdade nao se resume a resignagao e a aceitagao passi- va de um determinismo que cairia sobre nossas cabegas. Conhecer sua natureza implica, antes de tudo, saber o que me determina, assim como a qualquer outro ser humano, para em seguida perceber como esses determinismos comuns se singularizam em mim. Se nao podemos modifi-

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car as coisas de modo arbitrario, ao nosso bel- prazer, por outro lado somos conscientes de nossos atos no momento em que os efetuamos; nos os compreendemos. A experiencia dessa li­vre necessidade supoe, ao contrario, uma inten- sa atividade de nosso espi'rito e de nosso corpo. Podemos experimentar essa liberdade em cer­tos momentos privilegiados, como, por exem- plo, ao compreendermos alguma coisa. E quan­do sou ativo que tenho a experiencia de ser su­jeito daquilo que sou e daquilo que fago. Sou sujeito, nao como um imperio em um imperio, que escapa ao determinismo, mas enquanto compreendo e conhe§o os determinismos da natureza que agem em mim e que me fazem agir. E nessa atividade que me constituo enquanto sujeito.

Nao somos realmente habituados a um tipo de pensamento que desminta tambem nossa ex­periencia afetiva. No tempo de Spinoza, os co- nhecimentos cientificos eram extremamente reduzidos, e postular a hipotese de um deter­minismo absoluto era algo ousado demais. Ele pagou essa audacia com a acusa9ao mais gra­ve de sua epoca, a de ateismo. Para ele, a liber­dade de Deus nao era mais compreendida como

um livre-arbftrio absoluto que supunha um com- ponente arbitrario de sua vontade.

Restam nossa existencia temporal e nossas escolhas cotidianas. O conhecimento, a com­preensao que podemos ter das leis da natureza, nos faz adentrar de certa maneira em uma reali­dade intemporal. Nao ha nada de mistico ou ne- buloso nisso. E a experiencia de qualquer fisico ou matematico. A expressao matematica de uma lei da natureza na qual o tempo intervem como variavel tem como conseqiiencia imediata o de- saparecimento do tempo. A partir do momento em que se pode prever um evento futuro por meio de uma lei, de algum modo ele ja existe no conhecimento que se tem dele e o futuro nao acrescentara nada mais do que isso. Existe ain­da aqui uma diferen9a de nivel entre nossa exis­tencia, espacial e temporal — que experimen- tamos por meio das percep9oes sensoriais e de nossa memoria — , e o conhecimento abstrato e racional. De certo ponto de vista, e quando uma previsao cientffica se realiza que devenamos nos admirar. O mais surpreendente e que a expe­riencia sensivel coincida com o que foi previsto de modo abstrato. Na vida cotidiana, a novida- de existe sempre, pois, nunca podemos sair do

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tempo; o futuro traz consigo algo que nao exis- tia ontem, mesmo que fossemos capazes de pre- ve-lo. A certeza teorica nao suprime nossa ex- pectativa curiosa pelo resultado da observagao. Em caso de confirmagao, damo-nos evidente- mente por satisfeitos, mas permanecemos um tanto surpresos por “tudo ter andado bem”. Ape­nas a afirmagao geral de que “tudo esta previs- to” e de que “nao ha nada de novo sob o sol” nao suprime nossa experiencia do tempo que passa e da novidade que o acompanha. Inteira- mente intemporal, o conhecimento infinito do determinismo nao se opoe a esta liberdade como horizonte, mas, bem ao contrario, constitui seu fundamento.

Ha uma maneira mais simples e comum de vivenciar essa forma de liberdade. Compare o comportamento de uma crianga e o de um adul- to. Quando a crianga quer algo, nao e dificil para o adulto que a observa perceber que ela nao es- colhe de verdade, mas se deixa influenciar por um desejo, uma sugestao ou um habito. A crian­ga tem a sensagao de ser livre, tem a impressao de fazer o que quer. Seus desejos sao vistos como caprichos, decisoes arbitrarias e nao como o exercfcio de uma real liberdade. O adulto, ao

contrario, tem a sensagao de exercer sua liber­dade com total conhecimento de causa. Ele nao se engana totalmente, pois tem uma compreen­sao, maior que a da crianga, de seus proprios determinismos e dos determinismos do mundo no qual vive. Na California dos anos 1967-1968, os hippies tambem acreditavam que a liberdade se exprimia integralmente por meio da espon- taneidade do desejo e da expansao de todas as suas possibilidades. Quando se perguntava a esses jovens qual era o sentido da liberdade, eles respondiam: “fazer o que queremos”; e a per- gunta “o que voces querem?”, respondiam de modo caricaturalmente circular: “sermos livres”. Essa experiencia se assemelha a da crianga que tem a impressao de ser livre. Sabemos, entre- tanto, que ela e determinada, inclusive nos mes- mos podemos leva-la a agir de determinada maneira. Existe uma diferenga significativa en­tre esta experiencia infantil ilusoria e a que te- mos quando acumulamos um certo conhecimen­to e tentamos determinar nossos comportamen- tos por meio de uma analise racional das conse- qiiencias eventuais. Uma vez que esse conheci­mento e parcial e limitado, a experiencia e, po- rem, forgosamente ilusoria em relagao a liber-

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dade total que temos em mente, mesmo que sua magnitude seja menor que a da crianga. Encon- tramo-nos diante de uma notavel mudanga de ponto de vista: contrariamente a ideia que nos foi transmitida, conhecer cada vez mais os de- terminismos que nos govemam nos permite por em pratica uma maior liberdade. O direito res- ponde ao mesmo princfpio, ao afirmar que so considera responsavel uma pessoa que tenha capacidade de discemimento. Em tal modo de ver as coisas, o conhecimento serviria, porem, unicamente para fomecer os meios da escolha, que permaneceria inteiramente indeterminada. Imporfamos nossa opgao de modo definitivo. Na perspectiva que pretendo adotar, a escolha nao se separa arbitrariamente desse conhecimento, mas, ao contrario, e determinada por fatores que ele pode, as vezes, nos ajudar a descobrir. En- tretanto, a atitude corriqueira das escolhas in- fantis nos mostra que uma outra visao da liber­dade nao nos parece tao estranha.

Ainda que, ao prego de um esforgo intelec- tual raro, seja possfvel conceber uma liberdade identificada com a livre necessidade, isso nao resolve por enquanto o problema de nossa ex­periencia cotidiana. Mesmo tendo, de tempos

em tempos, uma experiencia intemporal, como no caso do conhecimento matematico, ainda assim nunca poderemos escapar da experiencia de nossa propria duragao. No transcorrer de uma vida, e as vezes mesmo de um dia, nossa expe­riencia do tempo e da duragao nao deixa de va- riar. Uma hora de aborrecimento nao equivale jamais a uma hora consagrada a uma atividade apaixonante. Nossa experiencia do tempo nao e uma experiencia absoluta. Se somos capazes de considera-la em sua relatividade, por que nao poderfamos dirigir o mesmo olhar para as esco­lhas que fazemos? Alias, nao seria algo muito facil de ser realizado, uma vez que a prova des- sa relatividade nos e dada a cada vez que a des- coberta de um determinismo vem contradizer nossa impressao de ter escolhido livremente?

Ha ainda duas maneiras de ver as coisas, uma maxima, outra minima, poderfamos dizer. De acordo com a primeira, seria necessario separar as coisas. Ha o mundo cognitivo, no qual pode­mos nos aproximar de uma liberdade total, ex­periencia da livre necessidade, pelo desenvol- vimento de nosso intelecto e de nossa compreen- sao. Depois ha o mundo em que vivemos, feito de conhecimentos parciais, no qual estamos sub-

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mergidos pelas paixSes e pelos sentimentos que se desenvolvem no tempo e nos permitem reali- zar experiencias de escolhas livres. Dito de ou­tro modo, estariamos diante de dois dommios, um mais nobre do que o outro. Quando refleti- mos sobre as causas que nos fazem agir, nos damos conta de que nao somos agentes livres, mas, em nossa experiencia pessoal e em nossas relagoes sociais, continuamos a agir “como se” o fossemos e a nos considerar responsaveis pelo que fazemos. E uma experiencia irredutivel, apesar do conhecimento eventual de nossas de­term inates. Embora seja capaz de prever o fu­turo, sempre instauro a experiencia da novida- de. Mesmo que, em teoria eu saiba que sou de- terminado, ainda assim construo a experiencia da livre escolha.

Tentemos ampliar nossa argumentat^ao. Nos­sas experiencias de escolhas livres nao pode- riam permitir que nos aproximassemos da livre necessidade? Por que nao ve-las como signos ou sfmbolos da verdadeira liberdade? Por mais ilusorias que sejam, essas experiencias nos dao uma ideia da livre determina§ao. De algum modo, elas prefiguram a experiencia-limite da liberdade que serfamos capazes de levar a cabo

se tivessemos acesso ao conhecimento infinito dos determimsmos naturals. Pode-se, entao, visualiza-las como imagens empobrecidas, flui- das, inadequadas, mas, apesar disso, imagens da livre necessidade. Reconhecemos essa liber­dade ilusoria que nos e dada como um logro quando observamos uma crian?a. Tudo se pas- sa como se, ao crescer, esquecessemo-nos de que ela continua ilusoria e forjassemos a con- vicgao de ter chegado a uma idade em que ela nao o e mais. O duplo sentido do termo “sujei­to”, em sua rela§ao com o possivel, pode ser esclarecedor.4 De um lado, o sujeito ativo, o “su­jeito de”, o sujeito de suas a£oes e de sua histo- ria; de outro, o “sujeito subordinado a algo”, submetido ao que lhe acontece, a sua historia e ao que ele faz, ou melhor, ao que se faz por meio de suas a§oes. Para o sujeito como agente — ou ainda, para o agente que se percebe como sujei­to — , o possivel e real, enquanto possibilidade de agir ou de nao agir, de agir em um sentido e

4. Tomo de emprestimo essa distimjao entre condifoes de existencia e de inexistencia do possivel de Hasdai Crescas, Or Hachem, livro II, quinta parte. [Jerusalem, Makor publications, 1970.] [N. T.]

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ou em outro. Ao experimentar a realidade dessa possibilidade em nosso foro fntimo, nos consti- tufmos, num primeiro momento (digamos no tempo da infancia), enquanto sujeito responsa- vel. Na realidade das coisas, porem, o possfvel nao existe, pois o mesmo sujeito e sujeito da- quilo que lhe acontece e da necessidade causal que o determina a escolher isso ou aquilo. Num segundo momento (no tempo do adulto e da lu- cidez), quando temos acesso ao conhecimento objetivo, nos vemos incomodados entre o que esse saber nos ensina e nossa subjetividade, que e igualmente portadora de realidade. Mas, por meio do desenvolvimento do intelecto, pode­mos, simultaneamente, adquirir experiencias dessa outra liberdade. Nossos exercfcios de li­vre escolha sao mais do que imagens. Eles nos permitem passar da experiencia corrente, em que pensamos escolher de modo indeterminado, a outras experiencias nas quais, no proprio mo­mento em que escolhemos, podemos ser cons- cientes das causas que nos levam a escolher. Tomamos consciencia de tudo o que nos deter­mina a fazer uma escolha, mesmo que nao co- nhegamos os detalhes. A medida que temos acesso mais preciso a esses determinismos, nos-

so sentimento de liberdade se modifica. Da sen- sagao infantil de poder fazer escolhas arbitra- rias, passamos, pouco a pouco, a aceitagao da- quilo que se faz em nos. E essa anuencia que vai propiciar a experiencia da verdadeira liber­dade. Quanto mais aumenta nosso conhecimen­to, mais a experiencia que temos de nossa livre escolha se aproxima, assintoticamente, da ex­periencia de uma verdadeira liberdade. Aos pou- cos, gragas a progressao do conhecimento das causas, vai desaparecendo o hiato entre a liber­dade vivida e a liberdade teorica. Sempre finito e limitado, nosso conhecimento cria de algum modo um espago, ilusorio se acreditarmos que e real, mas real pela experiencia que temos dele.

Spinoza e Crescas, cada um a seu modo, nos ajudam a compreender como a verdadeira liber­dade se encontra na consciencia cada vez mais ativa desse determinismo em si e no “amor in- telectual” dele resultante.5 Pareceria que algo escapa ao determinismo da cadeia infinita das causas e seria isso justamente a maneira de com-

5. Desenvolvo essa argumenta§ao em Les etincelles de hasard, tome II, Atheisme de I’ecriture. Paris, Editions du Seuil. 2003.

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preende-lo e utiliza-lo, a adesao consciente ao questionamento que ele desencadeia, seu apro- fundamento como comego de sabedoria e, fi- nalmente, a alegria que em si mesmo esse pro- cesso fornece. Um determinismo externo — por causas exteriores — e substitui'do por um inter- no, a “virtude”, no sentido spinoziano do ter- mo, que define o determinismo das ideias ade- quadas. Um exemplo disso nos e dado pelas ca- deias de violencias e contra-violencias, ou pe­las situagoes sociais ou politicas que produzem crimes, seguidos de repressoes que provocam outros crimes etc. A existencia de causas nao suprime a responsabilidade de seus autores, como veremos a seguir. A compreensao e a in- vocagao dessas causas nao pode servir de justi- ficagao. Mais ainda, essas cadeias causais po- dem as vezes ser interrompidas por uma toma- da de consciencia salvadora, por um retorno sobre si e, em algumas ocasioes, pelo perdao. Com certeza, o perdao e o retorno sobre si tam- bem sao determinados, embora em cadeia cau­sal diferente, interna, ordenada de outro modo, proxima do que Spinoza denomina “a ordem das razSes”. E isso que as primeiras proposigoes da quinta parte da Etica afirmam explicitamente.

A associagao entre a ordem causal das coisas da natureza e a ordem das ideias dessas coisas retorna de tal modo que o encadeamento das ideias pode tornar-se predominante. “Tomando como pressuposto que os pensamentos e as ideias das coisas se ordenam e se encadeiam no Espfrito, exatamente da mesma maneira as afecgoes do corpo, ou seja, as imagens das coi­sas, se ordenam e se encadeiam no corpo”.6 A experiencia do determinismo que se toma do- minante representa a experiencia ativa da refle- xao consciente sobre si-mesmo e sobre as coi­sas e o feliz consentimento que a acompanha.

Uma outra imagem possibilitara que compre- endamos melhor como podemos vivenciar es­sas experiencias diferentes: a imagem do jogo.

6. Spinoza, Etica, volume I. A citagao se refere explici­tamente a Proposifao I da parte V da Etica intitulada: “Da potencia, da inteligencia ou da liberdade humana”. Funda- menta-se em dois axiomas: “I. Se, no mesmo sujeito, sao excitadas duas afoes contrarias, devera necessariamente pro- duzir-se, em ambas ou numa s6, uma mudanga, ate deixa- rem de ser contrarias. II. A potencia de um efeito e definida pela potencia de sua causa, na medida em que a essentia dele e explicada ou definida pela essentia da sua causa”. Spinoza, Benedictus de, Etica, op. cit., p. 287. [N. T.]

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Uma mesma pessoa pode jogar tenis ou basquete sem que por isso seja esquizofrenica; em cada atividade, ela simplesmente aplica as regras do jogo ao qual se dedica. Ninguem imaginaria jogar um com as regras do outro ou inventar uma especie de “metajogo” reunindo todas as regras. A sfntese entre os jogos ocorre, aqui, no nfvel do sujeito que os pratica e que seria, enquanto tal, diferente caso se dedicasse, por exemplo, apenas a um dos dois. Longe de ser teorica, a sfntese dessas diferentes experiencias pertence a ordem do vivido. De modo semelhante, vive- mos as vezes num domfnio regido pelas paixoes, as vezes em um domfnio no qual essas mesmas paixoes se integram em uma intelec§ao.

Uma formula resume de modo fantastico essa realidade. No Tratado dos pais,1 um dos textos fundamentals da moral judaica, encontra-se es- crito: “Tudo esta previsto e a permissao — ou possibilidade — esta dada.” Pode-se entender a primeira parte da frase como a afirma?ao de um

7. O Tratado dos Pais e um tratado de moral que se en- contra no Talmude. As vezes ele e intitulado Tratado dos princi'pios, porque em hebraico, a mesma palavra significa “pai” ou “princfpio”.

A CIENCIA E INUMANA? 53

determinismo absoluto. Mas logo se percebe cla- ramente que a propria permissao faz parte dele.8 O livre-arbftrio e uma ilusao do ponto de vista do conhecimento das causas, embora, nao deixe por isso de ser uma experiencia real para qual- quer ser humano finito. Faz parte de nossa rea­lidade, mesmo que nossa liberdade consista tam- bem em tomar consciencia de que e ilusorio acreditar que nos determinamos as coisas. O determinismo absoluto em que “tudo esta pre­visto” se exerce por meio de nossas proprias escolhas, que nos sao dadas como possibilida­de, sem que, por isso, possam mudar o que quer seja na cadeia das causas. Temos a altemativa de simular que somos livres, tendo consciencia de que se trata de uma ilusao. E nesse espa?o limitado que etica e polftica se desenvolvem. Mesmo que nao passe de um mal-entendido sa-

8. Crescas comenta a segunda parte da frase do seguin- te modo: “E quando ele diz ‘a possibilidade esta dada’, ele testemunha acerca do segredo da escolha e da vontade, a saber, que a possibilidade de escolher e dada a todo ser humano a partir de seu proprio ponto de vista, de modo que a injungao — dos mandamentos da lei — nao recai sobre alguem que, de qualquer maneira, seria coagido e forgado.”

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ber que nao somos livres, devemos proceder como se, de fato, o fossemos.

Quanto a liberdade polftica, ela e tao dife- rente do livre-arbftrio quanto da aquiescencia ativa. Nao nos preocupamos em saber se um indivfduo tem consciencia das causas, mas ape­nas se ele e levado a agir por algo de que tem consciencia, e nao pela forga ou pela coergao exercidas por outros individuos. Ou seja, a rei- vindicagao da liberdade polftica nao contradiz em nada a afirmagao de um determinismo ab- soluto da natureza; a defesa da democracia nao e enfraquecida pela tomada de consciencia das causas de nossos comportamentos. A liberdade polftica opoe-se a coergao, ao poder de um cer­to numero de individuos sobre outros.

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4 .

[A responsabilidade]

Como escapar da questao da responsabilida­de, uma vez que se afirma a dupla possibilidade de um determinismo absoluto e de uma liberda­de sem livre-arbftrio? Toda a tradigao moral da qual somos herdeiros diz praticamente o con- trario: se nao ha livre-arbftrio, entao nao ha li­berdade, nem responsabilidade, nem mesmo moral. Assim como e possfvel conceber uma liberdade diferente do livre-arbftrio, e possfvel pensar uma responsabilidade e uma moral no seio do determinismo. Quanto mais se desco- bre que os homens sao levados a agir por multi- plas causas, que sao ou nao conhecidas por eles, menos se resolve facilmente, de modo tradicio- nal, a questao da responsabilidade. Todos os no- vos conhecimentos colocam em questao a con- cepgao classica da responsabilidade, na teoria, certamente, mas tambem na pratica, como no domfnio jurfdico, por exemplo.

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O exemplo atual e mais flagrante pode ser identificado na jurisdigao francesa relativa a crimes cometidos por doentes mentais. Tradi- cionalmente, a pena se dirige a criminosos co- muns reconhecidos por agir nao apenas com conhecimento de causa, mas tambem livremen- te, no sentido classico do termo. A penalidade responde, portanto, a um suposto uso do livre- arbftrio. Em contrapartida, se um psiquiatra che- ga a demonstrar que o indivfduo agiu sob o co- mando de uma pulsao, de uma mudanga de es- tado que o deixou inconsciente de seus atos, ele sera declarado irresponsavel perante a lei. A te- rapia passa, entao, a substituir a pena. Os casos de criminosos sexuais e um exemplo entre ou- tros que mostra o grau da dificuldade em esta- belecer solidamente essa distingao. Freqiiente- mente nao se pode considerar que eles agiram sem saber o que faziam, pois muitos premedi- tam seus atos nos mfnimos detalhes. Mas sabe- se, igualmente, que eles sao levados a agir por pulsoes as quais e mais diffcil resistir do que a outras, por um desajuste hormonal ou psicolo- gico. Nesse caso, sao passfveis de pena, de uma condenagao perante um tribunal, mas tambem tem necessidade de terapia. Nenhum psiquiatra

afirmara que o criminoso agiu sem discemimen- to: sustentar-se-a mesmo o inverso disso, mas sera enfatizado que, no momento do ato, ele foi determinado por um conjunto de fatores, dos quais alguns sao conhecidos e outros nao. A le- gislagao de 19941 deveria facilitar a tarefa dos psiquiatras. Entre o indivfduo plenamente res- ponsavel e aquele reconhecido como total ir­responsavel, por ter agido sem discernimento, foi criada uma categoria intermediaria, que rea- grupava indivfduos que teriam agido com dis- cemimento alterado. Inumeros psiquiatras optam

1. O novo codigo penal (artigo 122-1) introduz uma dis­tingao entre “aboligao do discernimento” e “altcragao do dis­cernimento”, pensada para indivfduos submetidos a uma con­denagao, mesmo atenuada. O resultado e que os psiquiatras se dispoem cada vez menos a diagnosticar uma “aboligao do discernimento” preferindo referir-se a sua alteragao. Essa distingao propiciou uma queda drastica do numero de pes- soas que se beneficiaram de um nao-lugar para a irrespon- sabilidade penal, que passou de 611, em 1989, para 190, em 1997. Ha uns dez anos, cada vez mais pessoas que sao con- sideradas borderline pelos especialistas sao reenviadas aos tribunais, antes de serem condenadas a penas de prisao fe- chada. Essa modiftcagao do codigo penal apenas agravou o problema, pois conserva o mesmo quadro procedural: pede- se sempre a psiquiatria uma definigao dos estados de cons- ciencia que justificariam uma ausencia de responsabilidade.

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atualmente por essa decisao menos definida. O resultado e tristemente conhecido: ha cada vez mais doentes mentais nas prisoes, que certamen- te conservam um certo grau de consciencia quanto a seus atos, e que sao julgados, conde- nados e presos como os outros criminosos.2 Re- centemente, essa jurisdifao passou por uma ver- dadeira revolu§ao: a institui§ao de uma pena denominada “acompanhamento terapeutico”. Ao confundir puni§ao e terapia, esta proposi- ?ao constitui uma heresia medica e jurfdica. Nem adequadamente justificada ela e. Nao diz nada mais do que isso: o indivfduo e considerado como responsavel juridica e penalmente, mes­mo que tenha sido determinado a fazer o que fez.

2. Depois do tern'vel acontecimento ocorrido em Tours (um homem atirou contra pedestres, matou quatro pessoas e feriu outras sete), Jean-Michel Dumay escreveu no Le Mon­de de 4 de novembro de 2001: “O que causa espanto e que sendo obrigada a fazer uma escolha binaria entre cuidar e punir, a sociedade, por sua tendencia a preconizar a prisao para doentes mentais, acaba, no final das contas, negando ou minimizando sua qualidade de doente (em Auxerre, nin- guem colocou a minima questao a respeito do sofrimento paroxi'stico do paranoico que vive como um “rato de labora- torio”). O que pensar de uma sociedade que nao reconhece mais seus doentes?

Quanto a questao da culpabilidade e da pena eventuais, ela deve ser modulada e separada do problema da responsabilidade, pois essa nao se confunde com a culpa. A declara^ao de Georgina Dufoix concemente ao processo do sangue con- taminado, de que ela se sentia “responsavel mas nao culpada” enfatizava justamente essa distin- 9&0 e nao merecia ter provocado as gargalhadas que provocou. A responsabilidade nao supoe ne- cessariamente a culpabilidade. Basta lembrar todas as coisas que fazemos que nao implicam nenhuma culpa e pelas quais, no entanto, pode­mos eventualmente ser chamados a responder. Por outro lado, admite-se essa distinsao essen- cial em materia de responsabilidade civil, mas parece que ela e esquecida quando se trata de responsabilidade penal.

Devemos aprender a distinguir entre duas formas de responsabilidade: a primeira, que se pode qualificar de ontologica, e a responsabi­lidade a priori. Ela significa: sou responsavel porque assumo o encargo de alguma coisa. Aqui nao se trata apenas de questao de crime. Devo simplesmente responder pelo que fa£o, mesmo que nao seja crime, assim como devo responder pelo que sou. Essa responsabilida-

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de, absoluta e incondicional, e ligada a nature- za humana e as suas capacidades de representa- gao — tudo aquilo que nao depende da nature - za da tomada de decisao, nem da execugao e dos eventuais efeitos. Trata-se, enfim, de uma reivindicagao maxima da natureza humana: con- tinuo um ser humano quaisquer que sejam meus atos, portanto sou responsavel. Minha dignida- de nao pode ser diminuida pelo fato de eu po- der ser levado a fazer coisas que nao tenha es- colhido. Alguns criminosos que foram conside- rados irresponsaveis manifestaram um senti- mento de indignidade que os invadiu e declara- ram que preferiam ter sido julgados. A respon­sabilidade nao se reduz a uma categoria jurfdi- ca ou a um sentido sobre o qual se fundaria o julgamento moral. Ela e primordialmente um dado da condigao humana. Encarregar-se de algo implica a eventualidade de ter de responder por sua execugao, seu sucesso ou seu fracasso, e suas eventuais conseqiiencias, inclusive os detalhes que nao foram imaginados e muito menos es- colhidos. Essa exigencia de resposta e o corola- rio de um poder de agir, “permissao” ou “possi- bilidade” de se constituir enquanto sujeito, dado a qualquer ser humano.

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A responsabilidade ulterior se situa no domf- nio de nossa existencia contingente, no qual somos levados a exercer essa capacidade pro­pria a todo ser humano. Ela intervem quando estou implicado como uma causa, entre outras, em um dado acontecimento. Tenho, entao, que responder por um conjunto de fatos e, por isso, sou submetido a um julgamento moral e/ou ju- rfdico. A questao se coloca sob forma dramati- ca no caso de uma das conseqiiencias de minha agao ter sido prejudicial a outrem. E essa res­ponsabilidade ulterior que envolve a questao da culpa que hoje se encontra em ma situagao por causa da descoberta dos inumeros determinis- mos que nos governam. Se nao nos eximem de qualquer responsabilidade, esses determinismos nos mostram os limites de uma relagao muito estreita entre responsabilidade e livre-arbitrio. Somos todos responsaveis pelo que fazemos, inclusive pelas coisas feitas por nosso interme- dio sem que as tenhamos escolhido. Por exem- plo, somos responsaveis pelas agoes de nossos filhos mesmo que nao as tenhamos desejado. Por definigao, sou igualmente responsavel pe- los atos cometidos por pessoas que se encon­tram colocadas sob minha responsabilidade.

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A consciencia que o corpo humano tem de si mesmo, ou melhor, os diferentes estados de consciencia de si que acompanham sua existen­cia, decorrentes essencialmente da complexida- de do cerebro, estao entre as caracterfsticas da especie humana. Pelo menos, assim como a po- sigao ereta e a linguagem articulada, contribuem para organizar as sociedades humanas de modo especffico, diferentes das sociedades animais, mesmo as mais evolufdas. O domfnio da etica e o do direito, e as nogoes de responsabilidade a eles ligadas, sao produzidos pelos diferentes nfveis de complexidade que caracterizam a or- ganizagao do corpo humano, de seus diferentes estados de consciencia e da vida social, proprios a especie humana. E por isso que se uma res­ponsabilidade total e incondicionada e ligada a priori a natureza humana, uma responsabilida­de ulterior pode ser definida de modo diferente, relativa aos estados de consciencia que pude- ram preceder, acompanhar e seguir o desenro- lar da agao.

Pode-se tratar de um ato reflexo, “indepen- dente da minha vontade”. No outro extremo, ao contrario, e possfvel ser confrontado com um ato premeditado, longamente amadurecido. As

deliberagoes que o precederam produzem o sen- timento de uma escolha livre, e nenhuma filo- sofia do determinismo absoluto consegue supri- mi-lo. Se o livre-arbftrio nao determina o enca- deamento das causas, a consciencia das esco­lhas e um certo grau de aquiescencia o acompa­nham. O sentimento de liberdade que acompa- nha a agao voluntaria e bastante real enquanto estado de consciencia, mesmo que coincida com uma representagao errada do mecanismo da agao. Ainda que o livre-arbftrio seja uma apa- rencia, a aquiescencia dos indivfduos com o que sua vontade — determinada pelas causas inter- nas e extemas — lhes impoe e bastante real.3 Essa aquiescencia tambem constitui um dado irredutfvel da natureza humana em sua finitude e deve ser levada em conta, mesmo num mun­do totalmente determinado. Toda a riqueza da existencia humana tende ao infinito que con-

3. Por meio dessa nogao de aquiescencia, Crescas concilia as escolhas humanas com o determinismo. A eficacia da esco­lha sobre o resultado permanece ilusoria, mas sao reais a cons­ciencia do esforgo e da vontade que acompanham nosso com- portamento quando nao nos sentimos coagidos, ou, ao con­trario, a consciencia de uma passividade, ate mesmo de uma oposigao a nossa vontade quando nos sentimos coagidos.

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cebemos e a finitude que vivenciamos. A no- gao de pessoa, no sentido jurfdico, moral e gra- matical, encontra-se estreitamente ligada a esse estado de consciencia. A conside'ragao do senti- mento de livre-arbftrio dos indivfduos e a supo- sigao de que uma livre escolha preside suas agoes possibilitaram a constituigao de socieda- des compostas por sujeitos morais responsaveis. Mas, ainda nesse caso, a existencia de uma ou­tra liberdade e perceptfvel. Quando a delibera- gao e rapida, temos sempre a impressao de que nao poderfamos ter feito outra escolha. Em con- trapartida, se e demorada e racional, nosso sen- timento de livre escolha se toma simultaneamen- te enfraquecido e reforgado. Enfraquecido por- que percebemos as razoes que nos levam a es- colher, as vezes ate a pretender “nao haver es­colha”; reforgado pelo sentimento de que nao se trata mais de um decreto arbitrario de nossa vontade.

Quer dizer que reencontramos, por vias trans- versas, as nogoes habituais de responsabilidade ou irresponsabilidade? Nao, ha uma grande di- ferenga nesse caso. A questao esta deslocada e nao se resume mais aquela do tudo ou nada: res­ponsavel, portanto culpado e condenavel, ou ir-

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responsavel, logo, inocente. Vimos que a psi- quiatria pode cada vez menos encontrar respos- tas para essa questao e seria melhor deixa-la de lado. Em termos absolutos, o louco criminoso que mata em virtude de uma circunstancia deli- rante e tao responsavel quanto Landru4 que pla- neja seus crimes e sua dissimulagao, ou o jo- vem delinqiiente que mata durante um assalto a banco. Mas a pena ou o tratamento nao serao os mesmos. O problema tera a ver com a gradagao dos estados de consciencia e a acessibilidade a sangao e ao tratamento. Em um piano diferente, se o diretor de uma empresa, ou um ministro, ou um general, tomam uma decisao complexa — eventualmente sugerida por assessores — , que resulta em uma catastrofe por causa de fa- tores imprevisfveis ou falha em sua execugao, a questao pertinente nao e: quem e o responsa­vel? Se, para identificar a falha e condenar um culpado, for preciso procurar o responsavel no sentido habitual, de quem causou o prejuizo, o fracasso esta garantido, pois cada um so podera

4. Henri Desiree Landru (1869-1922) foi acusado de as- sassinar dez mulheres e um adolescente. Embora durante o julgamento tenha negado os crimes, foi condenado a morte e executado. [N. T.]

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desempenhar o papel de causa parcial. Nesse sentido, a responsabilidade e dilufda ao ponto de desaparecer. Por outro lado, ao reconhecer inicialmente que todos sao responsaveis (com relagao a seus cargos e a hierarquia), a questao e deslocada para as circunstancias e o modo pelo qual cada um exerceu essa responsabilidade.

Da mesma forma, o medico ou a enfermeira sao evidentemente sempre responsaveis por suas atividades, quaisquer que sejam as circunstan­cias em que eles as exercem. A obrigagao de informagao ao paciente tende hoje a um ideal de decisao compartilhada, que suporia uma res­ponsabilidade tambem dividida. Isso nao signi- fica, em nenhum caso, que a responsabilidade do medico diminua na proporgao inversa a do doente que participa da decisao. O risco de uma desresponsabilizagao do medico e, entretanto, muito real se tivermos uma visao contratual da relagao paciente-medico e buscarmos a qualquer prego um responsavel-culpado. No caso de um erro medico ou de um prejuizo infligido ao doen­te, a questao nao reside em saber quem e o res­ponsavel, ja que todos os envolvidos o sao a priori, pelo simples fato de que estavam la e par- ticiparam da agao. Trata-se mais de investigar

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se as condigoes nas quais o medico ou a enfer­meira exerceram suas responsabilidades permi- tem aparecer um erro ou uma culpa eventual, considerando seus estados de consciencia e, principalmente, o saber medico de que dispu- nham e a avaliagao dos riscos.5

Enfim, o pesquisador cujas descobertas pro- piciam aplicag5es criminals inicialmente impre- visfveis e evidentemente responsavel por seu trabalho e pelas conseqiiencias que acarreta. Os desenvolvimentos tecnologicos e suas repercus- soes sociais, politicas e economicas, mobilizam inumeros atores, nao apenas os especialistas, mas todos os que expressam o desejo da opi- niao e contribuem para formula-lo. Em caso de descontrole — projeto Manhattan e langamen- to da bomba sobre Hiroshima e Nagasaki, ape- sar da abertura de negociagdes ou das aplica- goes criminosas da genetica — , a busca do ou dos culpados nao pode se limitar a identifica-

5. O direito & saude contem uma dimensao institucional que ultrapassa a individualidade dos membros do corpo me­dico. A repara§ao do prejuizo sofrido pode, por vezes, ser assumida pela sociedade. A nogao de responsabilidade sem culpa pode, entao, aplicar-se coletivamente.

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gao dos responsaveis pelas descobertas iniciais. A nogao de responsabilidade cientffica se im- pos com a tomada de consciencia da responsa­bilidade a priori dos cientistas, ligada ao exer- cfcio de suas atividades, quaisquer que sejam as conseqiiencias. Essa responsabilidade nao su- poe a culpa de modo automatico. Mas obriga os pesquisadores e outros atores sociais a desen- volverem uma reflexao etica, jurfdica e polftica acerca do exercfcio da responsabilidade a priori. Os comites de etica originaram-se dessa toma­da de consciencia.

Quando se busca o culpado, a questao que se coloca nao tem nada a ver com a livre escolha ou com a responsabilidade original; diz respei­to a analise das causas. Ela e ainda mais delica- da quando nao sou eu o unico envolvido, o que ocorre freqiientemente. Pode-se, entao, falar de responsabilidade compartilhada? A responsabi­lidade do agente deve ser estimada proporcio- nalmente a probabilidade, necessariamente sub- jetiva, de que ele seja a causa do prejufzo? Essa diffcil questao nao cessa de ser colocada, desde que decisoes, cada vez mais numerosas, sao to- madas e aplicadas, as vezes coletivamente, em situagoes nas quais os riscos sao incertos.

O famoso princfpio da precaugao, tao evoca- do nos dias atuais, parece entao ser o unico guia. Vejo nele apenas um desafio. O desejo de tomar precaugoes pode e deve acompanhar a agao e modera-la, mas, sem duvida, nao deve servir como o princfpio a partir do qual as boas deci­soes seriam deduzidas sistematicamente, pois seus efeitos podem ser catastroficos em alguns casos. Referimo-nos a ele em situagoes incertas nas quais se percebe um risco sem poder avalia- lo com precisao e nem quantifica-lo. (Caso con­trario, nao se trataria mais de precaugao, pro- priamente dito, mas de prevengao, baseada na gestao e avaliagao do risco.) Colocado nesse contexto, e perturbador observar como o prin­cfpio de precaugao se destroi a si mesmo en- quanto princfpio. Procura-se sempre evitar o pior, mas, quando o pior nao pode ser previsto, ha o risco de que a decisao prescrita por esse princfpio tenha conseqiiencias ainda piores do que as que teriam sido imaginadas sem ele. O princfpio de precaugao impoe, entao, que ele proprio nao seja aplicado! “Na duvida, abste- nha-se”, nao evite sempre o pior. Nao seria pos­sfvel tirar partido disso para justificar uma de­cisao ou uma incriminagao. Tudo o que pode e

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deve ser feito e decidir e agir com a prudencia preconizada por Aristoteles, nos domfnios da etica em que “a regra nao pode fornecer deter- mina?ao precisa”.6 A prudencia nao constitui um princfpio, pois ela e uma virtude que acompa- nha a a^ao, pelo menos tao diffcil de quantificar quanto a inteligencia e o bom senso. O exercf- cio da prudencia consiste, entre outras coisas, em progredir a pequenos passos, para evitar o irreversfvel tanto quanto possivel, em perma- necer a espreita diante de novos indfcios, sem- pre pronto a mudar de rumo.

Na Fran9a, podemos associar o caso do san- gue contaminado com a tomada de consciencia

6. Etica a Nicdmacos, V, x, 7. [Aristoteles, Estagira, 384.a.C. — Caleis, 322. fctica a Nicdmacos. Trad. Mario da Gama Kury. Brasilia, Universidade de Brasilia, cl985,4. ed. 2001. No livro V da edigao brasileira e a seguinte a citagao completa (pp. 109-110): “De fato, a lei nao preve todas as situafoes porque 6 impossi'vel estabelecer uma lei a proposito de algumas delas, de tal forma que as vezes se torna necessario recorrer a um decreto. Com efeito, quando uma situagao e indefmida, a regra tambem tem de ser inde- finida, como acontece com a regua de chumbo usada pelos construtores em Lesbos; a regua se adapta a forma da pedra e nao 6 rigida, e o decreto se adapta dos fatos de maneira identica”. [N. T.|

da necessidade de se aplicar um tal princfpio. Encarando, porem, as coisas com um pouco mais de aten9ao, damo-nos conta de que as dis- fungoes, nesse caso, poderiam ter sido evitadas sem que se recorresse, de modo algum, a tal prin­cfpio. Os responsaveis do Centro Nacional de Transfusao Sangufnea priorizaram, deliberada- mente, imperativos economicos, antes de se pre- ocuparem com a inocuidade dos produtos e a seguranga dos doentes. Trata-se de uma falta profissional grave, condenavel e condenada, sem referenda ao princfpio de precau5ao. O nume- ro de contamina9oes resultou tambem da nao aplica9ao da circular ministerial que recomen- dava rejeitar doa9oes de sangue de grupos de risco, como homossexuais e toxicomanos. Exis- tia uma forte pressao social, amplamente com- partilhada por doentes e medicos, para que nao se estigmatizassem certos grupos, ainda mais no contexto frances das doa9oes gratuitas, sfm- bolo da solidariedade. As prisdes continuaram a ser os locais privilegiados de coleta de san­gue, enquanto os prisioneiros constitufam po- pula9oes de risco, em virtude da reabilita9ao mo­ral ligada a essa doa9ao gratuita. Houve um erro funesto de julgamento: sub-avalia9ao do perigo

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de contaminagao em relagao ao da exclusao. Trata-se de uma avaliagao comparativa dos ris- cos e nao das conseqiiencias evidentes que po- deriam ter sido deduzidas de um princfpio de precaugao instituido como preceito de agao.

Se uma grande ligao pode ser tirada desse dra­ma nacional, e a necessidade de se levar em conta a ignorancia. O progresso contmuo da biologia e da medicina desde o infcio do seculo acabaram gerando uma certa arrogancia. O que nao era conhecido, simplesmente nao existia. A Aids e a sucessao de erros, faltas e crimes co- metidos pelos profissionais da saude provoca- ram um verdadeiro terremoto. Invocar hoje um princfpio de precaugao, que se respeitado teria evitado esses dramas, nao passa, porem, de uma mistificagao suplementar. Fazer crer que o prin­cfpio da precaugao e suficiente para que se leve em conta a parte de ignorancia inerente ao co­nhecimento cientffico constitui um engodo. Apoiar-se em tal preceito pode, alem disso, acar- retar conseqiiencias deploraveis: esquivar-se das responsabilidades alegando sua aplicagao con­sensual. Os exemplos recentes da vaca louca e da febre aftosa infelizmente ilustram bem esse desvio. A decisao de massacrar todos esses ani-

mais parecia inatacavel pela simples razao de que o governo se abrigava sob o princfpio da precaugao. E o medo que os homens de gover­no tem de serem julgados “responsaveis e cul- pados” que comanda tais decisoes.

O mal-estar e as manipulagoes que o acom- panham sao mais uma vez decorrentes da con­fusao entre os dois sentidos da responsabilida­de. A prudencia, que leva a agir com precaugao independentemente do risco implicado, nao pas- sfvel de ser avaliado, implica a responsabilida­de total sobre o conjunto de circunstancias en- volvidas. A precaugao, falsamente erigida em princfpio, tem a pretensao de evitar conseqiien- cias desastrosas. Situamo-nos aqui no nfvel da responsabilidade ulterior e da culpabilidade eventual. Sob risco de injustiga, estabelecer a responsabilidade implica em responder a ques­tao: quem e responsavel de que, e diante de quem? A resposta e muito diferente se colocada no contexto da responsabilidade de situagao ou da responsabilidade ulterior. No segundo caso, uma resposta muito precisa deve ser dada: o res­ponsavel e uma pessoa ou um grupo de pessoas bem especffico, que tomou uma decisao em con- digoes bem determinadas, produzindo uma agao

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conduzida de um certo modo. Em resumo, os responsaveis sao assim definidos diante de pes- soas determinadas que sofreram os efeitos pre- judiciais de suas ag5es. Por outro lado, no caso da responsabilidade a priori, a resposta a ques­tao “quern?” e “cada um”, visto que, estando em situagao de agir, a abstengao tambem e uma forma de agao. A questao de que ? , a resposta e “de toda sua existencia e dos efeitos de seus atos”; “diante de quem?", “diante de todos, in­clusive de si mesmo, potencialmente expostos a esses efeitos” . Erigir a precaugao como prin­cfpio diretor da agao consiste em aplicar a res­ponsabilidade ulterior, o que pertence ao domf- nio da responsabilidade a priori.

5 .

[Tecnologia e etica]

Toda essa discussao enfatiza a importancia de renovar e aprofundar a reflexao filosofica como pratica de pensamento e de vida. Nao nos podemos contentar em repetir o que vem sendo repetido ha varios seculos nas escolas, como se nada houvesse mudado.

De um lado, e necessario retomar as coisas exatamente onde elas se encontravam antes das mudangas que marcaram os grandes perfodos da humanidade. Refiro-me primeiramente ao fim do mundo antigo e de seu comercio com o mundo dos deuses e, depois, a revolugao cientf- fica do seculo XVII. Encontramo-nos hoje em um novo perfodo desse tipo e ninguem sabe que humanidade emergira dele.

Por outro lado, e necessario entrar no detalhe das situagoes, nao se contentar com conceitos

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gerais, cujo pensamento exphcito e rigoroso e, sem duvida, necessario, mas nao suficiente. Pode-se assim matar dois coelhos com uma uni- ca cajadada. A primeira vantagem dessa inicia- tiva e nos fazer descobrir que um conhecimento detalhado do determinismo conduz a um apro- fundamento moral, contrariamente ao que se acreditou durante muito tempo.

A segunda vantagem, que nao e das meno- res, consiste em nos salvaguardarmos dos de­bates de palavras. Os problemas de etica colo- cados pelas biotecnologias requerem ainda mais essa atitude. Um conhecimento cada vez mais amplo dos determinismos naturais, eventual- mente substitufdos pelas tecnicas, toma-se in- dispensavel para se assumir as responsabilida- des que emergem das situa9oes novas criadas pela evolugao dessas tecnicas. E muito comum serem lan9adas acusa9oes globais, como a do eugenismo por exemplo. Seria importante en- trar no detalhe das tecnicas que envolvem me­canismos muito precisos, para conhecer bem o assunto, antes de analisar o mais amplamen- te possivel aquilo que esta em jogo, inclusive em pianos simbolicos, nas utiliza9oes dessas tecnicas.

Um exemplo recente diz respeito aquilo que se denomina incorretamente de clonagem nao- reprodutiva ou terapeutica. O debate sobre essa questao e freqiientemente apresentado como uma altemativa entre reificar ou instrumentali- zar o embriao humano, de um lado, ofendendo a dignidade humana, de outro, entravando a pes- quisa e, portanto, retardando progressos even- tuais, terapeuticos, cientfficos ou economicos. Formulado nesses termos, o debate etico pare- ce fechado, opondo uma preocupa9ao moral a uma busca da utilidade e do lucro. Mas esse modo de colocar o problema e resultado de multiplas confusoes ligadas ao uso abusivo dos termos clonagem e embriao. Lembremos que se trata simplesmente da transferencia de um nucleo — proveniente de tecido adulto — para um ovulo cujo nucleo foi previamente retirado. A celula assim obtida constitui um mero artefa- to, que nao existe em nenhum lugar na nature­za. Sabe-se, entretanto, que esse ovulo modifi- cado pode ser estimulado, dividido, desenvol- ver-se em meio adequado, em laboratorio e, as­sim, produzir celulas com propriedades de ce- lulas embrionarias mesmo sem fecunda9ao. Para melhor — ou para pior — , sabemos agora, des-

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de o nascimento de Dolly, que se esse artefato celular for implantado num utero, ele pode, sob certas condigoes ainda nao inteiramente contro- ladas e com uma probabilidade ainda muito fra- ca, desenvolver-se como embriao e produzir um organismo adulto. Devemos, por isso, falar em embriao, se a questao nao consiste simplesmente em implanta-lo num utero feminino, e se a tec- nica se reduz a manipulagoes de laboratorio que nao poderiam criar nada mais do que linhagens de celulas? E essa questao de definigao que de- veria, antes de mais nada, ser debatida. Em vez disso, consideramo-la adquirida e nos opomos a instrumental izagao do embriao. O problema resume-se precisamente no fato de que nao ha nenhum problema aqui. Quero defender a tese de que se trata de uma instrumentalizagao, mas de artefatos celulares produzidos sem fecunda­gao, e nao de embrioes, mesmo que esses arte­fatos possam, sob certas condigoes, apresentar propriedades comuns as de embrioes em de- senvolvimento. Essa distingao me parece mui­to importante, sobretudo se respeitamos a po- sigao daqueles que, seguindo os ensinamentos da Igreja Catolica, consideram que um embriao humano e uma pessoa desde a fecundagao. Por

que entao falar de embriao, e ainda mais de ser humano, quando nao ocorreu fecundagao, a nao ser pela preocupagao com uma rotulagao forgada? Por que querer defmir a qualquer pre- go o que e um ser humano, o que e uma pes­soa, o que e um embriao, com palavras escle- rosadas, de forma imutavel, quando tudo isso tem a ver com processos evolutivos e com se­res em devir?

Antes do nascimento de Dolly, nao teria ocor- rido a ninguem considerar o produto da transfe- rencia de nucleo somatico num ovulo inocula- do como um embriao. Pois (quase) todos os bio­logos consideravam impossfvel o desenvolvi- mento de uma celula desse tipo em um organis­mo adulto. A partir de Dolly e de ovelhas, ratos e porcos que a sucederam, mais ou menos nor- mais, passou-se a considerar, que, um ovulo cujo nucleo foi substitufdo e um embriao. Diz-se que, mesmo nao sendo exato de um ponto de vista estritamente biologico, pelo menos “eticamen- te” deve ser entendido como um embriao, pois pode se tomar um. Ora, nao existe nada mais obscuro do que essa nogao de potencialidade. Um germe pode se transformar numa arvore. Sementes podem produzir uma colheita. Isso

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quer dizer que um germe e eticamente uma ar- vore, ou as sementes uma colheita antes mesmo que ela ocorra? Muito pelo contrario, nao vejo o que haveria de etico em colocar de lado o es- forgo da natureza (e dos homens) que transfor­ma o germe e as sementes em arvore ou em colheita. No caso que nos diz respeito, e ainda pior: trata-se da potencialidade de um embriao, ou seja, da potencialidade de uma potencialida­de! Se considerarmos que um embriao e uma pessoa, ou mesmo uma potencialidade de pessoa desde a fecundagao, seria muito mais coerente opor-se a utilizagao de sobrenumeraveis em­brioes — que sao verdadeiros embrioes gera- dos por fecundagao — do que a utilizagao de celulas produzidas pela transferencia de nucleos somaticos nos ovulos.1

1. Existem varias possibilidades para preparar celulas- tronco embrionarias. Nos dias atuais, um procedimento e particularmente explorado: a utilizagao de celulas-tronco com propriedades de celulas embrionarias, normalmente presentes em pequenas quantidades em tecidos adultos. Se essa tecnica se revelar aplicavel, provavelmente seria a me- lhor do ponto de vista das aplicagoes terapeuticas e,_sem duvida, a mais consensual do ponto de vista etico. Observe- mos que as tentativas de transferencia de nucleos somaticos humanos em ovulos de vacas ate o presente foram cercadas

Esses processos tecnicos demonstram ate que ponto a preocupagao por definigoes simples — que permite afixar rotulos definitivos sobre o que e um embriao, uma pessoa humana etc. — fracassa quando se consideram os processos evolutivos, nos quais o que nao e algo ou al- guem pode se transformar nessa coisa ou nessa pessoa. Dito de outro modo, a tentativa de defi- nir, utilizando como recurso aquilo que seria a essencia imutavel de uma coisa, de um animal,

de insucessos. O que aconteceria se uma compreensao me- lhor dos mecanismos de reprogramagao de um nucleo adul- to pelo citoplasma de um ovulo tornasse possfvel cultivar celulas-tronco embrionarias a partir de tais celulas artificiais? Seus genes seriam identicos aos do doador ou da doadora doente e os fatores citoplasmicos seriam de origem animal. Essas celulas artificiais nao levariam jamais ao desenvolvi- mento de nenhum organismo, nem humano nem animal. Na verdade, nao e possfvel entender como poderiam ser quali- ficadas de embrioes, mesmo que tivessem algumas proprie­dades comuns com celulas embrionarias e pudessem ser uti- lizadas para fins terapeuticos ou simplesmente para fins de pesquisa. Certas pessoas se insurgem contra essa transgres- sao da barreira das especies. Mas enquanto essas tecnicas dizem respeito apenas a celulas e moleculas, essa barreira — que nao e a unica — e transgredida todos os dias pela utilizagao de celulas de origem animal, bacteriana, ou hfbri- da, na produgao de medicamentos ou pr6teses, sem que isso represente o menor problema etico.

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de um ser humano, cai por terra diante da uni- dade da natureza considerada em sua evolugao. Sem duvida, sao as tecnicas e a fabricagao de artefatos vivos que contribuem para a implosao de definigoes essencialistas, mas a tecnica so pode ser bem-sucedida uma vez que ela se sub- meta as leis da natureza, mesmo que seja para transforma-la. Uma ligao pode ser tirada de tudo isso: aceitemos renunciar a definigoes essencia­listas e procuremos mais definigoes evolutivas. Para retomar nosso problema, o que nao e um embriao pode transformar-se em um embriao, o que nao e uma pessoa humana pode, sob cer- tas condigdes, transformar-se em uma pessoa humana. O debate etico encontra-se deslocado para as condigoes desses devires. Nesse caso, em particular, a implantagao ou nao no utero feminino nao e um “detalhe” da tecnica que nao modificaria em nada os dados do problema.

Encontramo-nos hoje confrontados com pro- blemas eticos, sociais e politicos que nao en- contram solugao apenas nos meios fomecidos pelas tecnicas. E indispensavel saber do que se trata para compreender o problema e a fortiori propor uma solugao. Uma das tarefas mais im- portantes consiste na maior difusao dos sabe-

res, para que os debates nao fiquem unicamente restritos a especialistas. Mas a divulgagao de um saber e a reflexao filosofica sobre ele sao tare­fas muito diffceis porque supoem a cooperagao dos cientistas, da mfdia — intermediarias entre os cientistas, o grande publico e os politicos que devem decidir — e do grande publico, que deve se esforgar em receber de maneira crftica o que dizem os cientistas e a mfdia. Propus2 que a de- mocracia nesse domfnio se traduz por uma di- visao tripartite dos poderes da palavra: politico, cientffico, midiatico. Esses tres poderes nao de­vem ser apenas separados, mas sobretudo pre- cisam se criticar mutuamente. Esse e hoje um dos desafios a ser enfatizado.

Nesse contexto, como vimos, questoes filo- soficas muito antigas, como o determinismo e a liberdade, se recolocam de uma maneira nova, diante de acontecimentos que exigem o reexame de certas evidencias.

2. Henri Atlan. Tout, non, peut-etre. Paris, Ed. du Seuil, 1991. [Tudo, nao, talvez■ Educagao e verdade. Trad. Fati­ma Gaspar e Carlos Gaspar.] Lisboa, Instituto Piaget, 1993. [N. T.]

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84 HENRI ATLAN

HENRI ATLAN e medico especialista em biolo­gia molecular, diretor de estudos em filosofia da biologia na Escola de Altos Estudos em Ciencias Sociais, professor de biofisica na Universidade de Paris VI; criador de um centra de pesquisas em biologia humana no Centro Medico Hadass, de Jerusalem e membra do conselho consultivo nacional de Etica da Franga (1983-2000).

Suas reflexoes no campo da Etica problema- tizam o papel e o lugar do determinismo no mundo contemporaneo, desfazendo a ilusao de que somos inteiramente livres para decidir so­bre nossas agoes, quaisquer que sejam elas. Munido de um referencial multiplo que passa por Hasdai Crescas e Baruch Spinoza, para ape­nas citar dois pensadores cruciais em suas ar- gumentagoes, Atlan mostra como as filosofias e as tradigoes exigem um permanente trabalho de decifragao e intercrftica, como aparece em seus dois ultimos livros: Les etincelles du hasard, tomes 1 e 2, respectivamente La connaissance espermatique e L ’atheisme de I’ecriture, pu- blicados em 1999 e 2003, [As centelhas do aca- so, 2 tomos, O conhecimento espermatico e o Ateismo da escrita] ainda sem previsao de lan- gamento no Brasil.

COMPLETE SUA COLEQAO1. FORMAQAO DE PROFESSORES: P B ISA R E FAZERHilda Alves (org.)2. MATEMATICA E EDUCAQAO: ALEGORIAS, TECNOLOGIA E T tM A S A R N S Nilson Jose Machado3. MAGISTERIO E MEDIOCRIDADEEzequiel Theodora da Silva4. O PA SSA D O SEMPRE PRESENTEClarice Nunes (org.)5. MOVIMENTOS SO Q AIS E EDUCAQAOMaria da Gloria Gohn6. ALFABETIZAQAO DOS ALUNOS DAS CLASSES POPULARES Regina Leite Garcia (org.)7. CRISE DO M ARXISM O E IRRAQO N AU SM O POS- MODERNO Joao E. Evangelista8. EDUCAQAO POPULAR NA ESCOLA PUBUCA

Ana Maria do Vale9. S0CI0L0GIA POLfTlCA DA EDUCAQAOCartos Alberto Torres10.0 DIREITO A VELHICE Eneida G. M. Haddad11. DIMENSOES SOCIAIS DO ESPORTE Manoel Jose Gomes Tubino12. ADMIN1STRAQA0 EDUCACIONAL EM CRISEWalter Garcia13. A IM P O R T A N C E DO ATO DE LER Paulo Freire14. REFLEXOES SOBRE ALFABETIZAQAOEmilia Ferreira15. UQOES DO PRINCIPE E OUTRAS LIQOES

Neidson Rodrigues16. ETICA E COMPETENQA Terezinha Azeredo Rios17.0 BARNABE: CONSCIENCIA P0LTT1CA DO PEQUENO FUNC10NARI0 PUBUCOBarbara Heliodora Franqa18.0 PODER DA PART1CIPAQA0 Antonio Faundez19. EDUCAQAO E CIDADANIA: QUEM EDUCA 0

□DADAO? Buffa: Arroyo: Nosella20. CRISE DO SOCIALISMO E OFENSIVA NEOLIBERAL Jose Paulo Netto21. PLANEJAMENTO E EDUCAQAO NO BRASIL

Kuenzer Calazans; Garcia

22. SOCIAL DEMOCRAQA E EDUCAQAOGuiomar Namo de Mello23. P0L1T1CA E EDUCAQAO: ENSAIOS Paulo Freire24. ESCOLA QDADA Moacir Gadotti25. EDUCAQAO C0MUN1TARIA E ECONOMIA POPULAR Moacir Gadotti: Francisco Gutienez (orgs.)26. FORMAQAO DE PROFESSORES OE CIENCIASAnna Maria Pessoa de Carvalho: Daniel Gil-Perez27. ENSINO NOTURNO: REAUDADE E ILUSAO Celia Pezzolo de Carvalho28. LER E DIZER Elie Bajard29. CONSTRUTIVISMO E MUDANQA Sanny S. da Rosa3 0 . 0 INDIVIDUO EM FORMAQAO Bartara Freitag31. CLASSES SOCIAIS E REPRESENTAQAOMarcelo Ridenti32. IMAGENS E SONS - A NOVA CULTURA ORALMilton Jose de Almeida33. CRISE DO SOCIALISMO E M OVIM BITO OPERARIO Celso Frederico34. ASCENSAO E QUEDA DO PROFESSOREurize Caldas Pessanha35. A CRISE DOS PARADIGMAS E A fflUCAQAOZaia Brandao (org.)36. EDUCAQAO E POUTICA NO BRASIL DE HOJELucia Maria Wanderley Neves37. IDEOLOGIA NO UVRO DIDATICO

Ana Lucia Goulart de Faria38. MEIO AMBIENTEE FORMAQAO DE PROFESSORES Heloisa Oupas Penteado39. AUTORIDADE DO PROFESSOR Lucia M . Teixeira Furlani40. SEXUALIDADE ONTEM E HOJE Jean-Philippe Catonne41. MEIO AMBIENTE E REPRESENTAQAO SOCIAL

Marcos Reigota42. PESQUISA EDUCACIONAL: QUANT1DADE- QUAUDADE Silvio Sanchez Gamboa (org.)43. BRINQUEDO E CULTURA Gilles Brougere44. OIRCULDADES NA APRBIDIZAGEM DA

LHTURA Nunes: Buarque 8 Bryant45. M ISERIA DA BIBUOTECA ESCOLAR Waldeck Cameiro da Silva

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46. MEDOS, MITOS E CAST1G0SAli'pio de Souza Filho47. LETBAMENTO E ALFABETIZAgAOLeda Veniiani Tfouni48. BRINCAR NA PRE-ESCOLA Gisela Wajskop49. SOQOLOGIA POLfTTCA MARXISTAAntonio Carias Mazzeo50. A TRANSFORMACAO SOCIAL: EDUCAgAO POPULAR NO FIM 00 SECULO M aito Raul Mejia51. PROFESSORES E ATIVISTAS DA ESFERA PUBLICA Marcelo Ridenti52. REP0ISANOO 0 ENSINO DE HISTORIA Sonia M. Leite Nikitiuk (org.)53. M A X WEBER. OENQA E VALORES Rolando Lazarte54. DA MISTIRCAQAO DA ESCOLA A ESCOLA NECESSARIA Neidson Rodrigues55. EDUCAQAO E IM PRENSA Rosa Maria Tom s56.0 MODELO NEOLIBERAL E A S P0LIT1CAS EDUCAQONAIS Roberto Gerardo Bianchetti57 .0 PROFESSOR E 0 COMBATE A AUENAQAO IMPOSTA Ezequiel Theodora da Silva58. OS (DES)CAMINHOS DA ESCOLA Ezequiel Theodora da Silva59. ANTROPOLOGIA ECOLOGICA Walter Neves60. UNIVERSIDADE NA AMERICA LATINA Afranio Mendes Catani (org.)61. INFANQA. E D U C A T E NEOUBERALISMO Paulo Ghiraldelli Jr. (org.)62. MUNDIALIZAQAO E POLTTICA EM GRAMSCI Alex Ruza de Mello6 3 .BISINO MEDIO E PROFISSIONAL: AS POLfTICAS DO ESTADO NEOLIBERAL Acacia Kuenzer64. REPENSANDO 0 ESTADO PARA0 DESENVOLVIMENTO SOCIAL Bernardo Kliksberg65. NEOUBERALISMO: A TRAGEDIA DO NOSSO TEMPO Malaguti 8 Carcanholo (orgs.)66. DEMOCRAQA E ENSINO MIUTAR NO BRASIL Antonio Carlos Will Ludwig67. ADEUS PROFESSOR, ADEUS PROFESSORA?Jose Carlos Libaneo68. BRINCAR. CONHECER. ENSINAR Sanny S. da Rosa

69. MICRO-EMPRESA NA ERA DA GLDBAL1ZAQA0Carlos Montano70. ESCOLA RURAL URBANIZAQAO E POLfTICAS EDUCAQONAIS Sergio Celani Leite71. EDUCAgAO NAO FORMAL E CULTURA POLTTICA Maria da Gloria Gohn72. SETE ENSAIOS SOBRE 0 COLLEGE DE FRANCE Afranio Mendes Catani & Paulo H. Martinez (orgs.)7 3 .0 ESTADO CAPITAUSTA CONTEMPORANEO Flavio B. de Farias74. TV ESCOLA: DISCURSOS EM CONFRONTOGlaucia Guimaraes75. METODOLOGIA DE AVALIAQAO DE POLfTICAS PUBUCAS Belloni; Magalhaes: Costa76. ARQUITETURA DA IDENT1DADE: SOBRE EDUCACAO, ENSINO E APRENDIZAGEMSuely Galli Soares77. FORMAQAO DOCENTE E PRORSSIONALFrancisco Imbemon78. CUSTOS SOCIAIS DO AJUSTE NEOUBERAL NA AMERICA LATINA Laura Tavares Soares79. ARTE, HISTORIA E ENSINO DulceOsinski80. COMPUTADORES DE PAPEL Robinson Moreira Tenorio81. LITERATURA E COMUNICAQAO NA ERA DA ELETRONICA Fabio Lucas82 .0 FIM DO NORDESTE 8 OUTROS MITOS Michel Zaidan Filho83. A GLOBALIZACAO E 0 ESTADO COSMOPOLITA: A S ANTINOMIAS DE JURGEN HABERMASFlavio Bezerra de Farias84. CONSELHOS GESTORES E PARTICIPAgAO SOCIOPOLfllCA Maria da Gloria Gohn85. PRORSSIONAIS DA HJUCAQAO INFANT1L FORMAQAO E CONSTRUgAO DE IDENTIDADES Isabel de Oliveira e Silva86. J U S T IC E EDUCAgAO Carlos Estevao87. IDENTIDADE DO PROFESSOR NO

ENVELHECIMENTO Rita de Cassia M . T. Stano88. PARA QUEM PESQUISAMOS, PARA QUEM ESCREVEMOS: 0 IM PASSE DOS INTELECTUAIS Antonio Flavio Moreira: Magda Soares; Roberto A. Follari 8 Regina Leite Garcia (orgs.)

89. TEMPO, DURAQAO E CMLiZAQAO: PBICURSOS BRAUDELIANOS Carlos Antonio Aguirre Rojas90. QDADAO E PROFESSOR EM FLORESTAN FERNANDES Jiron Matui91. U M LEGADO DE ESPERANQA Moacir Gadotti92. QUESTAO AGRARIA. PESQUISA E MST Bernardo Mangano Fernandes9 3 .0 TROTE NA UNIVERSIDADE: PASSAGENS DE UM RITO DE INIQAQAO Antonio A. S. Zuin94. GRAMSCI E 0 BRASIL RECEPgAO E DIFUSAO DE SUAS IDRAS Lincoln Secco95. PASSADO E PRESENTE DOS VERBOS LER E ESCREVER Emilia Feneiro96. INFORMATICA NA EDUCAgAO: REPRESENTAgOES SOCIAIS DO C0T1DIAN0 Raquel Carneiro97. ORgAMENTO PARTIQPATIVO: TEORIA E PRATICA Felix Sanchez98. PROFESSORAS DE EDUCAgAO INFANT!:ENTRE 0 FEMININO E 0 PRORSSIONAL Ana Beatriz Cerisara99. ANTROPOLOGIA CONTEMPORANEA EDGAR A SSIS DE CARVALHO Edgar Assis de Carvalho100. QUESTOES DO SECULO XXIEduardo Santos e Jose Eustaquio Romao (orgs.)

\L

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QUESTOES DA NOSSA EPOCA. NOVA FASENovos temas e autores

46. MlAlipio47. I f Leda V48. Bfi49. SO Antonii50. A '

POPUL 101. A (DES)QUAUHCAQAO DA EDUCAQAO

51- PH BRASILERA Ramon de Oliveira

p™ c 102. COLEGIAOO ESCOLAR: ESPAQO DE

52-.RB PARTICIPAQAO DA COMUNIDADE

f Monica Abranchesf W 103. DEM O CRAQ A E PARTICIPAIJAO NA

“ REFORMA DO ESTADO Use Gomes SilvaNE[fS! 104. PROFESSORES REF lfX IVO S EM U M A5 5 2 ) 1 ESCOLA REFLEXIVA Isabel Alarcao

a ' 0 | 105. DIALETICA DO A M O R PATERNO

EDUCAI Moacir Gadotli57. o p 106. GLOBAUZAQAO E DIVERSIDADE CULTURAL

IMPOSl Hassan Zaoual58. OS 107. C IENQAS HUM A N A S E PESQUISA:Ezequiel LH IU R A S DE M IHKAIL BAKHTIN M ana Teresa59. A N Freitas. Solange Jobim e Souza. Sonia Kramer60. UNI (orgs.)

Afranio 108. TEM POS POS-MODERNOS: A

6,INF| GLOBAUZAQAO E A S SOCIEDADES POS-Pauln G IND USTR IAL Fernando MagalhaesB2MU1 109. A CATEGORIA "QUESTAO SOCIAL"Alex Fm63. B IS DOEST/64. REP 0 DESET65. NEOjg y p g 112. M ODERNISM O E ENSAIO HISTORICO

66 DEM Andre M oyses GaioAntonio 113. AMEAQA DE IDENTIDADE E PERMANENCIA

67. ADE DA PESSOAJose Cai Lindinalva Laurindo da Silva68. BRir 114. HISTORIAS (RE)CONSTRUIDASSanny S. Antonio Teodoro

EM DEBATE Alejandra Pastorini 110.0 QUE PE N SA M OS ALUNOS SOBRE A

ESCOLA NOTURNA Vilma Abdalla

111. RLOSO RA POLfrlCA DA AMERICA

115. SERTAO DE JOVENS: ANTROPOLOGIA

EEDUCAQAO Vanda Silva116. EDUCAQAO CONTINUADA NA ERA DIGITALMaria Helena Bettega117. A CIENCIA E IN U M A N A ?Henri Atlan1 1 8 .0 EDUCADOR APRENDEDOR?Paulo Perisse

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quadrimotor ciencia-tecnica-industria-pro- gresso converteu-se em paradigma domi- nante destes tempos de modernidade Ii-

quida em que vivemos. Parece inevitavel que teremos de assumir responsabilidades bioeticas cada vez mais amplas, isso se quisermos que a mundializagao do humanismo, a cidadania ter- restre e a cultura da paz se efetivem para valer. Seremos verdadeiramente livres para realizar esse objetivo ou permaneceremos determinados por causas desconhecidas e pulsoes recalcadas? A ciencia e inumana?, ensaio sobre a livre neces­

sidade, reexamina as questoes do determinismo e da liberdade sob nova otica e acredita que a ciencia pode ainda representar um fator insubs- tituivel de humanidade, desde que destronada de seu carater prometeico. Representa uma re- flexao imprescindivel para o aprimoramento da vida democratica e para as praticas de liber­dade, de pensamento e de vida de que tanto necessitamos.