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António Mota
A Casa das Bengalas
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O avô estava sentado na borda da cama daquele quarto acanhado e a cheirar a mofo. E não retirava o olhar do quadro que decorava a parede branca, golpeada aqui e ali pela negrura da humida-de. Encaixilhado em grossa moldura, onde os bichos da madeira já pastavam, o quadro, com o vidro esta- lado, mostrava uma mulher rechonchudinha e quase sorri den te, dona de duas formidáveis arrecadas pen-duradas cada uma em sua orelha pequenina. O cabe-lo muito esticado rematava num carrapito que mal se via e o resto do corpo, tirando os longos e finos dedos das mãos entrelaçadas sobre o peito, só se adivinha va, e disso era culpado o vestido, feito com muitos folhos e muitas rendas, que tudo cobria.
Da cozinha, minha mãe gritou: – Vá tomar banho, meu pai.
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E eu ali de pé, em frente do avô. E eu ali, de costas voltadas para os restos do sol daquela tarde de Outubro que entravam pela janela de guilhotina. E eu ali, de braços cruzados, a olhar para aquela cara lavrada de rugas e barba rala com mais de oito dias.
– Se deixasse crescer a barba, até lhe ficava bem.
O avô fez de conta que não ouviu. Aprendi com ele a arte da surdez. O velho ensinou-me que não é importante ouvir tudo, o que é preciso é saber escutar o que nos interessa. Foge de quem muito fala e tudo sabe, dizia ele.
Tenho pena de não ter registado todas as sen-tenças que ele trazia engatilhadas para disparar no momento certo.
Às vezes o avô aborrecia-me com aquelas cantilenas.
Muitos são os que ouvem e poucos os que escutam.
– Uma vez deu-me na jerica que também havia de ter um bigode. Mas a Laurinda disse que não me ficava bem. Tive de o mandar cortar. Só manda quem pode. Chega-me os dentes.
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A dentadura estava dentro de um copo verde, de plástico, meado de água, poisado em cima do tampo riscado da mesinha-de-cabeceira. Peguei nele e dei-o ao avô. Ele pescou os dentes com aqueles dedos muito grossos, com a pele grossa e gretada, e encaixou-os na boca depois de andarem lá dentro a dançar.
– Os dentes foram caros. Nem sei se valeu a pena comprá-los.
– Mas fazem-lhe jeito. – Às vezes não prestam. Com eles encaixados
aqui dentro não posso comer figos, que é a fruita da minha paixão.
A fruita... Por que é que agora já ninguém diz fruita?
Nervos, paixões, modas, sapatos, ferraduras e juramentos duram até acabar.
– A Laurinda adaptou-se lindamente aos den-tes. Coitada, pouco tempo se serviu deles. Estão aí dentro da gaveta, embrulhados num papel.
A Laurinda. Sempre a Laurinda. Por tudo e por nada, a
Laurinda.
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Laurinda foi a mulher dele durante quarenta e oito anos. Foi-se embora no segundo dia de um Janeiro enregelado. Quando isso aconteceu, eu era pequeno, mas ainda me lembro dela: muito alta, magra, usava arrecadas e aventais floridos, muito compridos e com peitilho.
Os ovos estrelados que ela me dava tinham um sabor bem diferente dos que a minha mãe servia. Os ovos estrelados da minha avó levavam, mesmo no centro da gema, sal e uma colher bem cheia de açú-car. Um petisco.
Meses depois de a minha avó ter partido, o avô cha mou -me à cozinha e disse-me que também sabia estrelar ovos com açúcar.
– É fácil. Põe-se a sertã por cima do lume, deita-se para dentro um bocado de azeite, deixa-se ferver e depois parte-se o ovo e espera-se que frite. Queres ver?!
A gema esborrachou-se na sertã e o ovo dei-xou de ter graça.
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Na porta entreaberta do quarto apareceu o rosto de minha mãe.
– Está pronto para o banho? O avô não respondeu. – Tem de ser. Não quero que apareça lá a
cheirar mal. É preciso que vá lavadinho e apresentá-vel.
– Eu não cheiro mal! Ainda não mijo nas cal-ças. E se mijasse, era fruita da época...
– Tem de cortar a barba, meu pai.– Se as minhas vistas fossem mais firmes, já eu
a tinha rapado. A minha navalha é muito boa, marca espanhola. O meu pai, que Deus o tenha em des-canso, serviu-se dela a vida inteira e depois calhou--me na herança. Assim, trôpego das vistas, tenho de esperar pelo Vinagre, o barbeiro, lembras-te dele?
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Antes aparecia cá todos os sábados, agora não sei o que é que se passa, só vem aqui quando lhe apetece. E olha que eu pago-lhe bem e sempre lhe dei um copinho de aguardente.
– Uma máquina de barbear era o ideal para o avô – disse eu.
– Que é isso? – É uma máquina eléctrica que corta a barba.
É muito prática. – E eu ia pôr electricidade na minha cara,
não?! Para levar um choque e morrer como um pas-sarinho?!...
Calei-me. Não valia a pena estar a contra-riar o velho. Eu bem via que ele estava muito tenso.
– Tenho de lavar o rabo?! Se não lavar o tra-seiro, não me deixam entrar?
– Não é preciso estar com esses modos, meu pai. Passe um pano molhado pelo corpo todo e depois enxuga-se. Não custa nada.
O badalo do enorme sino da torre da igreja, ali perto, bateu quatro vezes.
– Quatro da tarde. Vou buscar a água, meu pai?
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– Se tem que ser assim... Mas então é melhor cortar a barba em primeiro lugar. O Tião pode fazer isso.
Minha mãe olhou para mim. Eu nunca tinha cortado a barba a ninguém.
Engoli em seco. Meu pai é que podia fazer esse tra-balho, sempre estava mais habituado. Mas sua exce-lência, depois do almoço, disse que ia ali e já vinha e ainda não voltara. O costume.
– Está bem, eu corto-lhe a barba. Mas não sei se fica bem.
– Eu ensino-te. Vai buscar as ferramentas ao armário.
A um canto da sala havia um armário na pare-de. Por baixo, o lavatório antigo, de ferro, pintado de azul, com o espelho rectan gular, a bacia e o balde esmaltados, uma toalha e, ao lado, o jarro com água.
Abri uma das portas do armário e numa das prateleiras encon trei as tais ferramentas: dentro duma caixinha de folheta enferrujada estava a navalha de barba, embrulhada num pedacinho de jornal. Também lá havia um pincel muito gasto, uma mal-guinha esbotenada e ainda um pedacinho de tábua,
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com a forma de um estreito rectângulo, com lixa num lado e couro escurecido no outro.
– Como é que faço, avô? – Molha o sabão que está na tigelinha e com
o pincel faz muita espuma. Assim fiz. O pincel ficou obeso de espuma
branca. – Agora vai buscar a toalha, põe-na à volta do
meu pescoço e ensaboa-me a cara. A cara do velho ficou testa de espuma. – Agora é que é mais difícil, avô!... – Não custa nada. Passa o fio da navalha pelo
assentador.Não entendi. Ele explicou-me que aquele
pedacinho de madeira forrado a couro e lixa chama-va-se assentador. Passei o gume pelo couro e apren- di a segurar a navalha. Depois comecei a cortar a barba do velho. Era tanto o medo de o golpear que o gume mal tocava na pele.
– Tens a mão levezinha! Arranja um bocado de papel e dá-mo para a minha mão.
Ia arrancar uma folha de um calendário de 1974 que tinha círculos feitos a lápis à volta dos dias
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em que começavam as fases da lua. Marcas do avô. – Não estragues, não estragues. Esse calendá-
rio pode fazer jeito. Nunca se deve deitar o tempo fora.
– Estamos em 1994, avô. O calendário já tem vinte anos.
– Mas deixa-o estar. Eu quero que ele esteja aí. Cada doido com a sua mania.
O velho tinha razão. Nas paredes da sala, no quarto e na cozinha havia calendários desde 1950. Ao todo eram quarenta e quatro calendários, com as marcas do meu avô. O de 1980, além dos inevitáveis círculos à volta dos dias das fases da lua, tinha outro círculo a aprisionar o dia 28 de Fevereiro, quinta--feira: a data do meu nascimento.
Arranjei um bocado duma página dum jornal e pu-la na mão esquerda do avô. O velho ficou a segurar um papel que dizia “Público”, segunda-feira, 22 de Novembro de 1993, “FC Porto ganha em Alvalade (0-1), Benfica perde no Bonfim (5-2). E a vermelho: “QUATRO NA FRENTE”.
Limpei o sabão e os pêlos no pedacinho do jornal e voltei a rapar a cara rugosa do avô. O mais
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difícil foi o corte do bigode e a barba do queixo. Quando acabei o trabalho, doíam-me os
olhos e o braço direito. O avô passou as mãos pela cara barbeadíssima
e os seus olhos azulíssimos, humedecidos, enfrenta-ram os meus.
– Os barbeiros sempre aprenderam na cara do cliente.
Ríamo-nos quando a minha mãe entrou no quarto com um balde cheio de água morna. Era ali que ele tinha de se despir e lavar. A casa do avô só tinha uma retrete de tábuas ao fundo do quintal, junto de uma cerejeira imensa, podre, onde os pica--paus escavavam afinca da mente quando lhes dava vontade. A minha mãe dizia que era “o elevador”; retrete era um nome feio. O avô chamava-lhe “a secreta”.
Meti a navalha, convenientemente embrulha-da em papel, na caixinha de folheta e prepara va-me para a ir pôr, juntamente com a outra ferramenta, dentro do armário. Mas não o fiz. Porque o avô disse em voz baixa:
– Tião, agora a navalha é tua. Usa-a quando
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tiveres barba. E não a estragues, porque ainda pode servir para os teus filhos.
Pelo espelho do lavatório, vi que os olhos da minha mãe borbulhavam.
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