a canção tapera de lorenzo fernandez, ou a ambiguidade das imagens brasileiras
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Neste trabalho, realizo um estudo sobre a canção “Tapera”, de Lorenzo Fernandez, a fim de observar como o compositor traduz o poema em música e como poema e música interagem na canção. Como suportes teóricos utilizo conceitos de intermidialidade, a semiologia da música, teorias literárias de tradução e a imagem como operação de leitura. O trabalho me permite concluir que obras artísticas, em particular esta canção, podem apresentar-se como resposta e proposta ao momento histórico em que se inserem."TRANSCRIPT
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Revista Brasileira de Estudos da Cano ISSN 2238-1198Natal, v.1, n.1, jan-jun 2012. Disponvel em: www.rbec.ect.ufrn.br
A cano Tapera de Lorenzo Fernandez, ou a ambiguidade das imagens brasileiras
Mnica Pedrosa98
Resumo: Neste trabalho, realizo um estudo sobre a cano Tapera, de Lorenzo Fernandez, a fim de observar como o compositor traduz o poema em msica e como poema e msica interagem na cano. Como suportes tericos utilizo conceitos de intermidialidade, a semiologia da msica, teorias literrias de traduo e a imagem como operao de leitura. O trabalho me permite concluir que obras artsticas, em particular esta cano, podem apresentar-se como resposta e proposta ao momento histrico em que se inserem.Palavras-chave: Traduo; Interpretao Musical; Semitica; Cano de Cmara; Lorenzo Fernandez; Imagens.
Abstract: In this paper, I carry out a study about the song Tapera, by Lorenzo Fernandez, aiming at observing how the composer translates the poem into music and how poem and music interact within the song. As a theoretical basis I use concepts from intermediality, musical semiology, translation literary theories and image as a reading operation. This investigation allows me to conclude that artistic works, in particular this song, can be read as a response and as a proposition to the historical moment where it is inserted. Keywords: Translation; Musical Interpretation; Semiotics; Chamber Music; Lorenzo Fernandez; Images.
1. Introduo
Este artigo volta-se para as canes de Lorenzo Fernandez, em particular para a
cano Tapera, escrita em 1929, a partir de poema de Cassiano Ricardo99.
As canes de Lorenzo Fernandez, por sua elaborao e pela poca em que se
inserem, constituem um corpus importante para pensarmos as canes de cmara de uma
forma geral, e, em particular, as canes brasileiras. Essas canes pintam quadros sonoros
de paisagens brasileiras dos sertes, das praias, das cidades, de antigas fazendas de escravos,
sugerem dedilhados de viola, serestas, batuques. Sua msica se apropria de muitas vozes
98 Professora adjunta na Escola de Msica da UFMG. Graduada em Canto por essa instituio, possui Mestrado pela Manhattan School of Music e Doutorado em Literatura Comparada pela UFMG. Atua como solista e concertista, e dedica-se especialmente pesquisa, divulgao e registro da cano de cmara brasileira. Gravou, em 2010, o CD Canes da Terra, Canes do Mar, com o violonista Fernando Arajo.99 Cassiano Ricardo foi poeta neossimbolista e neoparnasiano. Com o modernismo nas artes ligou-se corrente nacionalista denominada Verde-amarelismo, juntamente com Menotti. Com seu livro Vamos caar papagaios, de 1926, entra na temtica do Brasil indgena e do Brasil colonial, sentidos, nos dizeres de Alfredo Bosi (1979, p.366), como estados de alma primitivos e csmicos. Com Deixa estar, jacar (1931) e Martim Cerer (1928) suas preferncias nacionalistas centram-se cada vez mais na temtica paulista, seja indgena, bandeirante ou ligada penetrao cafeeira, explorando um Brasil primitivo e colorido (cf. BOSI, 1979, p.366).
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brasileiras, pois so vrios os personagens que povoam sua obra, como o tropeiro, o caboclo,
o seresteiro da cidade, o violeiro do serto, a me dgua, a senhora da casa grande e a
escrava.
O perodo histrico constitudo pelo modernismo nacionalista conturbado e
apresenta contradies. A atitude paternalista com relao populao rural contrasta com a
atitude de afastamento das manifestaes populares urbanas; a modernizao nas artes
convive com o retorno s formas arcaicas do folclore e com a retomada das tradies
clssicas musicais. Por sua vez, as camadas mais altas da sociedade se aproximam das classes
populares por meio das manifestaes artsticas. Conflito, discrepncia e desordem,
resultados da convivncia pouco amistosa entre segmentos dspares da sociedade, contrastam
com a unio em torno de objetivos comuns, verificada no apenas nos meios da arte culta,
como tambm nos democrticos ambientes do teatro de revistas e, posteriormente, das rdios,
nos quais as finalidades artsticas, aliadas aos objetivos capitalistas visando ao lucro, seriam
mais fortes que os preconceitos. Unio, ordenao e sntese tambm no podem deixar de
existir nos momentos em que os intertextos musicais, formados a partir das encruzilhadas
diversas, se constituem como amalgamento de tradies perdidas, modificadas,
transformadas.
Nesse panorama, interessante verificarmos como as canes de Lorenzo Fernandez
dialogam com o perodo histrico, ao responder e ao mesmo tempo propor questionamentos.
Alfredo Bosi (2004, p.12), ao mencionar as relaes do poema com os tempos da sociedade,
nos diz que importa trazer luz da conscincia as respostas muitas vezes tensas que a obra
potica d s ideologias dominantes, venham estas do mercado, do poder do Estado ou das
vrias instituies senhoras da palavra. Uma das questes que pretendo abordar neste artigo
refere-se a como a elaborao artstica do compositor esteve ligada s ideologias dominantes
das correntes nacionalistas que imaginavam uma realidade brasileira integrada e homognea.
Antes de voltar a minha ateno para a cano Tapera, julgo necessrio desenvolver
alguns tpicos que nos daro sustentao terica para o aprofundamento neste trabalho. O
primeiro diz respeito prpria cano de cmara, como se constitui esse objeto e como pode
ser percebido. O segundo aborda, ainda que em linhas gerais, a ideia de traduo, retirada das
teorias literrias e usada para pensarmos a interpretao das canes.
Neste artigo, proponho ir alm da anlise descritiva e estabelecer conexes no apenas
entre as linguagens musical e literria que compem a cano, como entre a obra e o seu
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tempo, ciente de que meu olhar para a produo realizada no passado apoia-se em minha
contemporaneidade, minhas vivncias, meus conhecimentos, minhas percepes.
Desta forma, utilizo a semiologia da msica como suporte para estabelecer conexes
entre a obra e elementos externos a ela, o que podemos denominar referncias extrnsecas100.
A partir da semiologia, utilizo tambm a proposta, que desenvolvi em minha tese de
doutorado e artigos (2009, 2010), de que uma cano, por meio de seus elementos musicais e
poticos, cria imagens de modalidades sensoriais diversas. Segundo o neurocientista Antnio
Damsio (2002, p.123), o conhecimento factual chega mente sob a forma de imagens.
Portanto, neste trabalho, emprego os princpios de uma metodologia transdisciplinar para o
estudo da cano de cmara, que consiste no estudo integrado de msica e literatura, tendo a
imagem como conceito transversal que perpassa as duas disciplinas. Verifico como possvel
perceber nas canes a visualidade, a plasticidade, o movimento, a espacialidade, a
temporalidade, e, por fim, os diferentes sentimentos responsveis pela criao de imagens
ligadas aos nossos vrios sentidos.
Em resumo, pretendo, neste artigo, observar como Lorenzo Fernandez realiza a
traduo do poema, como poema e msica interagem na cano e como a cano reflete
questes socioculturais e afetivas do Brasil nacionalista.
2. Cano, obra multimdia
Para pensar a cano, trabalho com conceitos de intermidialidade, que podem, a
princpio, acarretar certa confuso. Segundo Irina Rajewsky (2005, p.43), o termo
intermidialidade surgiu nos anos 90 e sua popularidade deu origem a um grande nmero de
terminologias utilizadas em textos sobre o assunto, como, por exemplo, multimidialidade,
plurimidialidade, cross-midialidade, inframidialidade, convergncia miditica ou
hibridizao. Para Claus Clver, em seu texto Inter textus / Inter artes /Inter media (2006, p.
11-41), intermidialidade diz respeito no s quilo que designamos como artes (Msica,
Literatura, Dana, Pintura e demais Artes Plsticas, Arquitetura, bem como formas mistas,
como pera, Teatro e Cinema), mas tambm s mdias e seus textos, j costumeiramente
assim designadas na maioria das lnguas e culturas ocidentais, como as mdias impressas,
como a Imprensa, e tambm o Cinema, a Televiso, o Rdio, o Vdeo, bem como as vrias
mdias eletrnicas e digitais surgidas mais recentemente. Embora interessante e
100 Referncias intrnsecas so aquelas que relacionam elementos musicais entre si, e referncias extrnsecas so responsveis pela criao de uma infinidade de interpretantes que relacionam a msica a aspectos da vida humana e da realidade que nos cerca. A esse respeito, remeto o leitor a NATTIEZ (1990, 2002).
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extremamente atual, esta no uma discusso que pretendo desenvolver na brevidade deste
artigo. Considerarei como mdia qualquer sistema de signos, e, consequentemente, a cano,
como a unio de dois sistemas semiticos distintos ou de duas mdias, a literria e a musical.
A cano de cmara ou cano erudita normalmente escrita a partir de um texto
literrio, geralmente um poema, de autor determinado ou annimo. Poderia pensar, num
primeiro momento que, do ponto de vista da sua produo, a cano de cmara seria a
transposio de uma obra concebida na linguagem literria para uma obra concebida na
linguagem musical. Neste caso, estaramos diante de uma transposio intersemitica, ou
melhor dizendo, de uma traduo intersemitica. A cano, entretanto, pode ser vista como
mais do que uma transposio do texto literrio para o texto musical, ou seja, a transposio
de uma mdia a outra. A cano ela prpria uma obra musical original que recria e ambienta
o texto potico com os elementos musicais elaborados pelo compositor, quais sejam, a
melodia, a harmonia, o ritmo ou a instrumentao empregada.
Considero ainda, valendo-me das classificaes formuladas por Cluver (2006) para
obras formadas por vrias mdias, a cano como um texto multimdia, composto por textos
separveis e separadamente coerentes, o texto verbal e o texto musical.
Em resumo, na cano, temos que o poema e a msica pertencem a sistemas
semiticos diferentes, cada qual com suas distintas maneiras de permitir a expresso. Em
segundo lugar, a produo da cano envolve a traduo de um sistema semitico a outro, ou
seja, a traduo de elementos da poesia em elementos musicais, que podemos chamar de
traduo intersemitica. Mas implica na criao de um novo original, a cano propriamente,
na qual se encontra o poema traduzido como letra de cano. O poema e a msica resultam
no objeto cano que , em suma, uma mtua fecundao. Dentro de uma cano, a msica e
o poema se fecundam, dialogam, opem-se, interferem um no outro. Interferncia no
necessariamente correspondncia ou analogia. Entre eles h um incessante refluxo.
Interpretar implica em perceber como se d esse refluxo na conformao da cano e como se
inter-relacionam seus diversos elementos.
3. Traduo, interpretao, semitica
A construo de uma cano de cmara resulta de mltiplos processos
interpretativos que ocorrem em etapas distintas. Valho-me ento de algumas ideias sobre
traduo encontradas nas teorias literrias para pensar sobre essas etapas. Assim sendo,
considero tanto a produo quanto a recepo de uma cano como instncias tradutrias: o
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poeta se coloca como tradutor de imagens, ideias, sentimentos; o compositor, como o
primeiro tradutor do texto potico; o intrprete musical, por sua vez, tradutor dos signos
escritos em sons ou tradutor desses sons em linguagem verbalizada, assumindo, ao mesmo
tempo, os papeis de performer, fruidor e crtico, e, por fim, a percepo do ouvinte, o ouvinte
como tradutor.
A traduo pode ser vista, de uma forma geral, como uma tarefa que possibilita
interaes e trocas do sujeito com o mundo que o cerca. A todo o momento necessitamos da
atividade tradutria. Entretanto, no simples gesto de responder a uma criana sobre o
significado de uma palavra, j nos damos conta da dimenso oscilante, frgil, instvel,
imprecisa e muitas vezes frustrante da tarefa tradutria. Otvio Paz (1981, p.9) quem
afirma que a traduo opera por um movimento contraditrio e complementar. Para o
autor, a traduo suprime as diferenas entre uma lngua e outra; por outro lado as revela
mais plenamente: graas traduo nos inteiramos de que nossos vizinhos falam e pensam de
um modo diferente do nosso.
A prpria linguagem, como traduo de nossos pensamentos, lida com a
impossibilidade, mas oferece a contrapartida da criatividade. O pensamento em si j opera
por traduo. interessante observarmos como semioticistas como Charles Sanders Pierce se
valem da ideia de traduo. Para o filsofo americano (2005, p.270), todo signo-pensamento
transladado para ou interpretado num signo-pensamento subsequente ou, no jogo
caleidoscpico de palavras de Jlio Plaza (1987, p. 18), todo pensamento traduo de
outro pensamento, pois qualquer pensamento requer ter havido outro pensamento para o qual
ele funciona como interpretante. Assim concluo que, quando pensamos, traduzimos para ns
mesmos aquilo que se apresenta conscincia.
A primeira instncia de traduo da cano consiste, ento, no prprio poema como
traduo de uma ideia, de um pensamento que reflete o mundo das coisas, a relao do
homem com o real. O poeta francs Paul Valry101 (apud Campos, 1985) nos fala, com
propriedade, do poeta como um tradutor e da inexatido inerente a essa tarefa da traduo.
bastante curiosa a maneira como esse poeta se expressa, ao relatar que o que temos em mente
no constitui exatamente o resultado final de nossa elaborao. Para Valry, o trabalho do
poeta consiste menos em buscar palavras para suas ideias do que em buscar ideias para suas
palavras e seus ritmos preponderantes.
101 As ideias do poeta francs Paul Valry sobre traduo encontram-se em seu texto introdutrio para suas tradues das Buclicas de Virglio, de 1944. Suas ideias so comentadas por Haroldo de Campos em seu texto Paul Valry e a potica da traduo.
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A leitura de um poema evocar, na mente daquele que o l, imagens, sentimentos,
circunstncias diversas, lembranas do passado, expectativas, nomes, pessoas, estados
corporais, ou, nos dizeres de Peirce (2005, p. 169), elementos que servem como signos
presentes na conscincia. Um compositor, em seus pensamentos, traduz para si mesmo esses
signos, e os veicula para o exterior atravs de uma sequncia de som e silncio, que
chamamos msica. Mas a linguagem do compositor, como podemos deduzir pelas afirmaes
de Valry, muito mais do que um veculo de comunicao dos seus pensamentos para o
mundo exterior. Como traduo que , ela no mimetiza o pensamento, no sentido de restituir
o seu duplo, um seu igual. Alm do mais, ela est sujeita s normas e convenes da
linguagem musical. A linguagem possibilita ao mesmo tempo em que limita o fazer do
compositor.
Podemos observar que a traduo uma prtica criativa, pois jamais produzir uma
cpia perfeitamente igual, seja dos pensamentos, de um poema ou de uma partitura de uma
cano. Paz (1981, p. 16) afirma que traduo e criao so operaes gmeas. Chegamos
aos limites da criao a que se pode chegar numa traduo. A este respeito, o pensamento
nuanado e cambiante de Haroldo de Campos (1984, p. 7) assume um de seus mais
veementes momentos em seu texto Para alm do princpio da saudade. O autor se permite
reverter a funo anglica do tradutor numa empresa luciferina. Campos passa a ameaar
o original com a runa da origem, transformando o original na traduo de sua traduo.
Segundo Plaza (2005, p.1) a operao tradutora como trnsito criativo de linguagens
nada tem a ver com a fidelidade, pois ela cria sua prpria verdade. Ao compositor abrem-se
possibilidades. Sua traduo intersemitica poder ser concordante com o poema,
contraditria, poder buscar efeitos anlogos, ser transgressora, apenas tangenciar o sentido
do original. Isso porque diferentes necessidades, desejos, aspiraes movem a passagem da
poesia msica, da palavra escrita e falada ao canto. Um jogo de foras vital e imperativo se
encontra presente nessa transmutao. isto, exatamente, o que pretendo observar no estudo
da cano Tapera, ao verificar a traduo que Lorenzo Fernandez realiza do poema, e, enfim,
como interagem os elementos poticos e musicais na cano, que uma obra original.
Nesse processo, tambm me coloco como tradutora ao realizar escolhas entre as vrias
maneiras criativas de traduo da cano Tapera, elegendo, priorizando ou valorizando
determinados elementos. Interpretaes crticas, escritas ou faladas, constituem uma outra
face da interpretao. Um intrprete pode verbalizar ocorrncias literais e descrever estruturas
sonoras, mas pode tambm adentrar um vasto campo simblico que, em ltima anlise,
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conforma e dirige suas interpretaes. A interpretao de uma cano passa pela percepo
de suas estruturas e tambm pela articulao de uma cadeia de interpretantes ligando essas
estruturas a elementos diversos pertencentes nossa experincia de mundo. No tecido
significante da cano, a msica est ligada palavra, o que, de certa forma, orientar a
formao de uma cadeia de interpretantes e permitir uma entrada mais objetiva em sua trama
de signos-significantes. A msica, ao ser compartilhada com o texto potico, amplia as
possibilidades de significao em ambos os domnios. No se trata mais de opor som ao
sentido, mas de integr-los em nossa percepo, isto , de perceber o som como sentido.
Concluindo, a cano um todo intrincado de palavras e sons; um texto multimdia
atravessado pelos textos e contextos dos autores e dos intrpretes. A interpretao de uma
cano depender, em sntese, de selecionarmos e acionarmos em conjunto uma srie de
variveis. O intrprete inserido em sua contemporaneidade constri suas redes pessoais de
significao num trabalho de traduo, que implica criatividade e mtodo. Dessa forma, a
atribuio de significaes aos elementos da cano se baseia em parmetros que podem ser
discutidos e at contestados.
Em meu entender, lidamos com trs questes fundamentais que pudemos perceber nas
teorias tradutrias: a impossibilidade da expresso exata por meio da linguagem, a no
restituio do original; a atitude criativa que supre a impossibilidade; o mtodo para
estabelecer prioridades. Esta interpretao da cano Tapera, longe de propor uma imagem
realista da cano, revelando-lhe a essncia, torna-se construo que seleciona, no seu
objeto, um certo nmero de aspectos considerados como adequados, no tanto para explicar
a obra, mas para traduzir a obra em palavras, o que posteriormente certamente guiar uma
performance musical, ou a traduo da partitura em sons.
Um dos principais legados das teorias tradutrias certamente a prtica criativa. Ao
meu ver, esta prtica criativa aliada ao estudo histrico e analtico permite ao intrprete se
responsabilizar por suas escolhas, tanto no momento de verbaliz-las como em sua prtica de
performance. Se a traduo envolve criao, o intrprete, como criador, coautor. Tomando
para si a responsabilidade de permitir a metamorfose e renovao do original que, como bem
nos demonstra Walter Benjamin, se modifica em sua pervivncia (1992, p.x), intrpretes
das canes realizam a traduo da traduo. Mais do que interpretar busca-se traduzir, com
todas as consequncias que advm do ato tradutrio.
4. Paisagens e personagens: a cano Tapera
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Na cano Tapera veremos o interior agreste e desolado do Brasil na imagem de uma
casa em runas e os personagens humanos ou no: o vento, a noite, o caboclo. Nessa cano,
procurarei demonstrar, por meio de imagens que sugerem paisagens e personagens, a maneira
pela qual Lorenzo Fernandez traduziu o poema em msica, e as interlocues que se
estabelecem entre as diferentes mdias da cano. Vejamos o poema:
Aquela casa de sap com a tinta nova do luartem qualquer cousa que parece recordaro tempo em que possua o seu terreiro de cafe o seu pomar.
Agora, junto s janelasviam flores de abboramuito amarelas.E, em moutas verdes cruasnascem protuberantes gravats,e trepam pela cerca as flores roxasde misteriosos maracujs...
E quando a noite vem, com o seu vestido de noivado,derramar pelo vo do teto esburacadoum punhado de fitas brancas l por dentro,o vento canta pelas frinchas do telhado,o ltimo choro do caboclo apaixonado...
4.1 O poema
O poema de Cassiano Ricardo, Tapera, musicado por Lorenzo Fernandez em
1929, retrata uma paisagem brasileira, uma paisagem colorida em dois momentos distintos, o
noturno e o diurno, derramando profuses de imagens, visuais, sonoras, cinticas, que pouco
a pouco vo formando uma imagem particular, um quadro em movimento, uma cena de uma
casa e de seu entorno, no interior do Brasil.
O ttulo do poema nos conduz a uma primeira imagem: a tapera uma casa em
runas, abandonada. Pensar em uma tapera pensar em uma fazenda solitria, no meio do
nada.
Os versos livres da primeira estrofe possuem, a princpio, uma acentuao
regular, quaternria, com incio em anacruse. O impulso anacrstico inicial nos leva
diretamente palavra casa. Os acentos se sucedem nas palavras sap, nova e luar. Seguindo
os acentos regulares nosso olhar mental visualiza a casa, dirige ento a ateno ao detalhe do
sap, percebe a transformao em nova e cai sobre o agente da transformao: o luar. O
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poema nos d a construir esta primeira imagem da casa iluminada pela luz do luar. Estranho
quadro de degradao e beleza. A tapera veste-se de nova e apresenta-se ao olhar com uma
nova tinta: a tinta pintada pela luz.
Aquela casa de sapcom a tinta nova do luartem qualquer cousa que parece recordar
A mtrica regular que dirigia a ateno do leitor quebrada na palavra tempo. Em
tempo em que possua a acentuao ternria e posteriormente binria destas palavras
diminuem o andamento da frase num ralentando. A mudana no tempo do compasso prepara
a mudana para o tempo da memria e lana o leitor numa outra poca A tapera com sua
nova roupagem remete ao tempo de fartura, de terreiro de caf e pomar.
o tempo em que possua o seu terreiro de cafe o seu pomar.
Em o seu terreiro de caf e seu pomar, a frase retoma seu andamento inicial. A
sonoridade das rimas aproxima as palavras luar, recordar e pomar. A longa frase e a
reiterao da sonoridade aberta e sustentada pela consoante r ao final dos versos desenham
lentamente o arco da reminiscncia fixada no tempo.
Na segunda estrofe, o corte busco do agora nos traz de volta a realidade diurna.
Runas...enfeitadas de cores!... O mato invade a paisagem, invade a casa e o entorno de flores
amarelas das abboras, do verde das moitas, dos gravats coloridos e do roxo das flores de
maracuj. O Verde-amarelismo de Cassiano Ricardo recupera a beleza perdida, em runas,
com o colorido agreste da natureza.
Agora, junto s janelasviam flores de abbora muito amarelas.E, em moutas verdes cruasnascem protuberantes gravats,e trepam pela cerca as flores roxasde misteriosos maracujs...
Toda a rtmica desta estrofe diferente da anterior. Alternando ritmos binrios,
ternrios e quaternrios, sempre com acentuao anacrstica, as frases constroem imagens de
movimento. A acentuao irregular torna o movimento, entretanto, instvel, remetendo-nos
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irregularidade com que as plantas tomam conta da paisagem, cada uma a seu modo. O olhar
em movimento salta das janelas para as moitas, das moitas para as cercas e acompanha o
desorganizado crescimento das plantas.
A paisagem sonora iluminada pela presena de assonncias de variadas vogais
abertas como e e a. Pronunciadas aliteraes em s ao longo dos versos e em suas terminaes
criam unidade dentro de um movimento sibilante constante.
Verbos de ao remetem luz e vida: viam, nascem, trepam. A conjuno e
liga as frases do longo perodo num grande contnuo de terminaes suspensas.
Entretanto, a estranheza da situao, momentaneamente esquecida, retomada
sutilmente: a cor roxa das flores e o mistrio encerrado nos maracujs. Reticncias ralentam
o final da frase e abrem espao para que esse mistrio encontre ressonncia na durao do
silncio que se segue entre as estrofes.
A prxima estrofe se instala brandamente, iniciando-se com a conjuno e,
numa sequncia da estrofe anterior, seguida do advrbio de tempo quando, que no afirma
a temporalidade. A sonoridade branda e sustentada das nasais e a sustentao voclica do
ditongo na palavra noite encontram como primeiro ponto de repouso o verbo vem, a partir do
qual as frases retomam a mtrica regular quaternria. Essa regularidade rtmica quebrada
em derramar pelo vo, em um punhado de fitas e em o ltimo. Nesses momentos, devido
acentuao ternria, as palavras apresentam-se mais espaadas no tempo, conferindo a esta
estrofe um interessante jogo rtmico de dilatao e contrao: movimentos espasmdicos da
noite e seu amante, do canto do vento, do choro do caboclo.
E quando a noite vem, com o seu vestido de noivado,derramar pelo vo do teto esburacadoum punhado de fitas brancas l por dentro,o vento canta pelas frinchas do telhado,o ltimo choro do caboclo apaixonado...
A acentuao em vem, vestido e noivado, aliada recorrncia da sonoridade da
consoante v, une essas palavras num contnuo sonoro que desenha a lenta chegada da noite,
como uma noiva. Esta metfora nos conduz, da paisagem externa, atravs do teto
esburacado, para o interior da tapera, por meio da bela imagem das fitas brancas que agora
preenchem o interior da casa. As aliteraes em v introduzem sonoramente a figura do vento.
Personificao do poeta, o vento canta. As fendas no telhado, como os furos de um
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instrumento, permitem seu canto. Permitem seu encontro amoroso com a noite. Esse jogo de
personificaes e personagens, resqucios do neossimbolismo de Cassiano Ricardo, nos
permite associar o vento com o canto, o canto com o poeta, o poeta com o caboclo, o caboclo
apaixonado com a noiva, a noiva com a noite.
O ufanismo verde-amarelo de Cassiano Ricardo encontra na desolao a beleza,
de noite, a claridade do luar mascarando as runas, de dia, a exploso agreste das cores, numa
criao pautada pelo sensorial: imagens dirigidas ao olhar, audio, percepo de
movimento (cinestesia), e at ao olfato (plantas, flores) e ao tato (vento, calor do dia, sol,
natureza exuberante). O poema nos sugere movimentos iniciais e finais lentos e escuros,
entremeados por um movimento rpido e claro. A primeira e a terceira estrofes do poema,
com suas imagens da noite, com seus longos versos e sua sonoridade sustentada, pedem pelo
desenrolar lento e contnuo do tempo para se sustentar. A segunda estrofe, vvida de cores,
desorganizadamente articulada, cria imagens claras e rpidas.
4.2 A cano Tapera
Por meio da leitura que realizei do poema de Cassiano Ricardo, seria de se
esperar que Lorenzo Fernandez escrevesse uma cano em movimentos lento, rpido e lento,
em tonalidades alternadas, escura, clara, escura. E exatamente isso o que ele no faz.
Lorenzo Fernandez inicia a cano com um ritmo vivo de embolada102, que logo
nos remete s divertidas cantorias dos repentistas nordestinos. Os textos cmicos, satricos,
por vezes carregados de insultos dos cantadores, entretanto, nada tm a ver com a buclica
paisagem noturna descrita no poema, antes, justape a ela um novo quadro, uma memria
alegre e brincalhona de uma poca em que a fazenda respirava prosperidade e fartura. Essa
voz que Lorenzo Fernandez acrescenta cano cria tamanho contraste com o poema, que o
resultado final da justaposio de imagens praticamente anula a voz melanclica deste
ltimo. Destroi o belo do agora, que no nada mais que uma iluso. A tinta nova do luar se
dilui na rapidez da enunciao, ressoando apenas debilmente na prosdia absolutamente
correta empregada pelo compositor. Como no poema, a palavra tempo enfatizada
102Gnero musical originrio do nordeste brasileiro, onde especialmente popular. Consiste em uma melodia declamatria, em valores rpidos e intervalos curtos, entoada por uma dupla de cantadores que respondem um ao outro de forma improvisada, ao som de um pandeiro. Neste desafio, o cantador tenta denegrir a imagem do outro que lhe faz dupla com versos ofensivos, famosos pelos palavres e insultos utilizados. O metro normalmente em redondilha maior ou em versos de seis slabas. As letras so geralmente cmicas, satricas ou descritivas. Ver Dicionrio Cmara Cascudo ou o Dicionrio Cravo Albin da Msica Popular Brasileira (2002).
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ritmicamente e, consequentemente, as palavras seguintes, terreiro de caf e pomar ganham
fora, presentificando o passado, que soa como um agora (Exemplo 15).
Exemplo 15: Tapera, compassos 4 a 11.
Para a primeira seo desta cano, podemos pensar a princpio na tonalidade de
L bemol maior, mas a sonoridade da escala pentatnica faz-se notar na melodia do canto e
sintetizada na prpria harmonia da tnica com sons acrescentados que so originados da
pentatnica de L bemol maior. A cano constitui-se assim como um misto de tonalidade,
pentatonismo e modalidade, criando uma mescla peculiar de colorido harmnico. Essa
primeira seo, toda ela com funo de tnica, escrita sobre um pedal de L bemol. Lorenzo
Fernandez utiliza uma base funcional harmnica extremamente simples, bem ao estilo da
cantoria popular. O ostinato rtmico-harmnico remete ao acompanhamento invarivel dos
desafios. A harmonia , entretanto, extremamente colorida, pois o compositor empregar
predominantemente acordes com sons acrescentados 103 que se equilibram com a simplicidade 103 Acordes com adio de segundas. Os sons acrescentados desempenham principalmente uma funo colorstica, variando sobretudo a textura em lugar da funo de uma estrutura harmnica bsica. Mais do que simples ornamentos, os sons acrescentados so verdadeiros membros de cor que rivalizam com a tera do
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da base funcional harmnica. Lorenzo Fernandez traduz, de maneira paradoxal, com cores e
movimento, o panorama noturno da primeira estrofe do poema. E ainda finaliza essa primeira
parte da cano com uma seo de transio nos compassos de 14 a 20, indicada como
clarineta, que tem um ar brincalho, divertido, jocoso, com seus saltos e escalas descendentes
maneira de uma gargalhada (Exemplo 16).
Exemplo 16: Tapera, compassos 14 a 21.
Ento, estranhamente, essa gargalhada desemboca no F menor da prxima
seo, escrita numa regio mais grave na parte do piano, com o baixo agora em quintas
paralelas. O compositor, nos compassos introdutrios da nova seo, cria uma expectativa
peculiar com a sequncia harmnica e o crescendo molto dos compassos at a dinmica forte,
que se confirma na nova tonalidade de F menor na mo esquerda, mas que, ao mesmo
tempo, desestabilizada pela dinmica piano sbita, pelo incio da linha vocal na dominante
da nova tonalidade e pelo acorde de D menor com stima (acorde de sobretnica) da mo
direita do piano, apesar da presena do pedal de tnica em quintas. Imprime assim,
acorde em potncia de colorido, aumentando o interesse e a densidade harmnica (Cf. PERSICCHETTI, 1961, p. 109-120).
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subitamente, cano, exatamente na palavra agora, uma instabilidade inesperada, num tom
mais grave e melanclico.
No agora do poema, o ritmo alegre e movimentado da embolada cede lugar a um
ritmo calmo com um leve impulso devido ligadura do tempo fraco ao tempo forte do
compasso. Existe um embalo suave nas tercinas da linha do canto, em linha modinheira. Se
no poema a imagem era viva e rpida, movimentada pela descrio das plantas que cresciam
muito coloridas tomando conta da tapera, a imagem musical mais lenta e escura, apesar de a
cor do L bemol maior ainda predominar na linha da voz. O colorido dado pelas quintas dos
acordes do piano novamente remete a um tempo antigo, imemorial. A narrativa do agora
salta para um passado sem data e mergulha profundamente em algum lugar recndito da
memria. Dois contracantos melanclicos em desenho descendente soam em meio ao ostinato
rtmico, agora com movimentao harmnica, no registro mdio do piano: melodias na
pentatnica menor de F. Novamente, aqui, a escala pentatnica, escala dos tempos remotos,
dos tempos idos. Onde estaro as cores das flores? As cores das plantas quase no importam.
Na parte da mo esquerda, no compasso 27, a presena do Sol b na linha descendente do
baixo em quintas paralelas (Sib, Lab, Solb, F) sugere o modo frgio, com seu acentuado
carter de descida. Os contracantos e o baixo descendente, sempre to ligado s imagens
tristes, se contrapem exploso de vida, sublinhando de forma paradoxal o nascimento dos
coloridos gravats nas moitas verdes (Exemplo 17).
Exemplo 17: Tapera, compassos 25 a 29.
Assim, tambm, ao roxo das flores dos maracujs se justape uma nova imagem,
um novo contracanto, agora na regio mais grave do piano. E os maracujs se perdem na
distncia da linha meldica suspensiva, na qual a nota F sustentada pela harmonia de
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subdominante, ligando-se ao novo contracanto, memria do contracanto inicial (Exemplo
18).
Exemplo 18: Tapera, compassos 30 a 38.
Uma breve seo de extenso da seo anterior, com funo de transio, prepara
o retorno ao L bemol, sublinhando musicalmente a gradual transio entre as estrofes do
poema, como se o ir e vir dos tempos da memria, do passado e do presente, ocorresse
gentilmente. O verso e quando a noite vem inicia-se livremente, quase como se numa
continuao da seo anterior, para depois, subitamente, retomar a embolada junto com o
ostinato rtmico-harmnico, numa recapitulao variada da seo inicial. As belas imagens
poticas da noite, como uma noiva, aparecem de forma fugaz na entonao rpida e viva.
Mas aqui, ao vento, o tratamento harmnico dado j diferenciado, na tonalidade do
homnimo menor de L bemol (Exemplo 19).
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Exemplo 19: Tapera, compassos 54 a 56.
Ouvimos novamente o contracanto em tercinas da seo anterior. Agora sim,
podemos relacion-lo ao canto do vento, j tornado presente por Lorenzo Fernandez na seo
anterior. O choro nostlgico do caboclo acompanhado pelas quintas paralelas que
reaparecem, sempre to vazias pela ausncia das teras do acorde, to distantes no tempo.
Um cantarolar de leve vai sumindo aos poucos (Exemplo 20).
Exemplo 20: Tapera, compassos 62 a 69.
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4.3 A traduo de Lorenzo Fernandez
Se Cassiano Ricardo, em suas convices ligadas ao movimento Verde-Amarelo,
imprime beleza incondicional ao panorama degradado da realidade rural brasileira, a leitura
de Lorenzo Fernandez causar tal estranhamento que as relaes harmoniosas de calma,
beleza e alegria do poema se transformam, adquirindo novas significaes. A paisagem
brasileira nos mostrada por Lorenzo Fernandez em toda a sua beleza contraditria,
carregada de imagens contrrias e complementares alegres e tristes, rpidas e lentas, claras
e escuras, vvidas e sombrias que se justapem compartilhando os mesmos lugares. Ainda,
extraordinria a maneira como o compositor altera, transforma os momentos temporais do
poema e lida com as imagens da memria, embaralhando-as, rompendo com o agora ao
levar-nos s lembranas do passado e a um tempo imemorial, com as escalas pentatnicas e o
modo frgio, destruindo o recordar ao nos arrastar para a cantoria alegre e satrica do
presente.
Essa cano nos captura por sua beleza estranha. Impossvel a tristeza da noite ou
a alegria do dia, os sentimentos se misturam. A justaposio das imagens dos versos com as
imagens musicais cria um choque, um atrito, uma contradio, e, ao mesmo tempo, uma
completude, pois sua resultante a ambiguidade. Existe assim um estado de denncia
realizada por um compositor que no se contenta com a beleza que mascara a degradao,
no se satisfaz com a exploso de cores, com o mundo das riquezas naturais, primitivas,
tomadas como um trunfo do Pas. Lorenzo Fernandez pe a descoberto essas relaes,
valendo-se do estranhamento em sua traduo luciferina, criando novos sentidos, criando
sua prpria verdade, sensivelmente sintonizada com as contradies do pas.
E o que dizer dos personagens brasileiros que povoam essa cano? O vento
canta o canto do caboclo apaixonado, num resqucio de um romantismo no qual a falta se
manifesta pela ausncia da amada. Lorenzo Fernandez, com sua voz e sua interpretao, d
ao caboclo uma voz singular. Poderamos aqui pensar com Bakhtin (1981, 1992) que a voz
do compositor dialoga com a voz de seu personagem. Neste dilogo procurar-se-ia distinguir
os fios de cada voz no tecido da cano. Em nosso percurso, porm, no essa distino
que importa. Existe mais do que dilogo. Existe um embate de foras e uma resultante, uma
nova cor formada pela justaposio das imagens. Um novo personagem numa nova paisagem,
humano, conflituoso, complexo, multifacetado. Como queramos averiguar neste trabalho,
por meio das imagens criadas pela cano verificamos que paisagem e personagens dialogam
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com o Brasil de Lorenzo Fernandez, tambm complexo, tambm conflituoso, tambm
multifacetado. Personagem emblemtico, o caboclo personifica uma memria que entrelaa o
interior do Pas com suas aluses a um tempo de prosperidade, s mudanas sociais ocorridas,
degradao do espao rural e falta de recursos, mas tambm reflete a busca da identidade,
a beleza na desolao, o potencial luminoso. Nas associaes do poeta com o caboclo, o
canto e a noite assumem a funo de suplncia diante da terra abandonada e da ambiguidade
das paisagens que se lhe apresentam. No jogo de imagens dessa cano, muitos encontros: o
dentro e o fora, a paisagem e o personagem, o passado e o presente, as runas e a beleza.
5. Concluses
So diversas as formas de traduo de Lorenzo Fernandez, por vezes
concordantes com o texto potico, como em canes como A saudade ou Vesperal, por vezes
contraditrias, como em Tapera, mas sempre suplementares, sempre conferindo s suas
canes novos e surpreendentes resultados ou significaes. Pode-se dizer que a voz musical
de Lorenzo Fernandez, na elaborao de uma cano, mais do que buscar correspondncias
com a linguagem literria do poema, trabalho de criao musical que traduz de forma
pessoal e extremamente criativa o texto potico, ao mesmo tempo em que com ele dialoga no
interior da cano.
A leitura que Lorenzo Fernandez realiza do poema Tapera intrigante e nada tem
de bvia. Longe de se constituir como um jogo especular, sua traduo se opera por um
movimento ao mesmo tempo paradoxal e complementar, que sistematicamente ope imagens
de naturezas contrrias ao poema de Cassiano Ricardo. E aqui podemos nos lembrar das
tradues de Haroldo de Campos e seus momentos luciferinos mencionados nos primeiros
tpicos deste artigo. Sua traduo fazer humano resgatado da subservincia hiertica a um
original, apenas tangenciando o sentido do poema. Um canto paralelo em sua atitude
transgressora, exatamente porque sensvel ao ambiente brasileiro, revelando com isso suas
contradies. Sua traduo adquire status de trnsito criativo entre linguagens, criando sua
prpria verdade, sua prpria denncia, sua prpria expresso.
As canes de Lorenzo Fernandez assumem um estado de denncia de uma
realidade, de um contexto, de situaes e sentimentos, percebidos tanto nos temas como nas
formas de expresso do seu estilo, e a sua traduo, por vezes concordante, por vezes
contrria ao texto dos poemas musicados, assim ocorre por uma postura inconformada em
traduzir ambientes brasileiros de forma simplesmente bela, estvel ou sem conflitos.
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Essas canes so povoadas de paisagens, personagens e sentimentos que
refletem o universo heterogneo do Brasil da poca em que foram escritas. So muitas as
vozes que se levantam nas canes de Lorenzo e com elas o compositor dialoga. Ao traduzir
o texto potico em msica, o compositor se posiciona, revela sua face, recria a paisagem e o
personagem. As imagens criadas pelo texto potico no interior da cano interagem com as
imagens musicais, criando novas e surpreendentes resultantes, novos tipos de efeito e sentido.
Entretanto, no obstante ser um nacionalista convicto, perfeitamente imbudo do
esprito que guiava a inaugurao de uma nova condio da literatura musical no pas,
Lorenzo Fernandez captou, de alguma forma, a ambiguidade, a tenso e a instabilidade que se
estabelecem nas linguagens literrias e musicais quando da proposta de unificao, em uma
mdia homognea, das diferentes manifestaes culturais dos diversos segmentos da
sociedade, dspares e em estado de segregao. Por outro lado, as canes de Lorenzo
Fernandez podem, em alguns momentos, nos desvelar momentos lricos e ternos. Choques
instveis e snteses harmoniosas coloridas com a marca da ambiguidade. Isto as relaes
intertextuais em suas canes nos revelaram.
O sentido de brasilidade nas canes de Lorenzo Fernandez encontra-se, portanto,
alm da simples distino de clulas rtmicas e melodias populares. O sentido de brasilidade,
para citarmos o prprio compositor (apud AQUARONE, 1944, p. 49) (...) o sentido
ntimo que toda obra nossa deve ter, essa qualidade de nascer da nossa terra. O sentido de
brasilidade um universo de espaos, cores, luzes, movimentos e sentimentos em sintonia
com aspectos de um Brasil de um momento, percebidos e transmitidos por um compositor
extremamente sensvel aos ambientes de sua poca.
Referncias
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