a canção tapera de lorenzo fernandez, ou a ambiguidade das imagens brasileiras

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Revista Brasileira de Estudos da Canção – ISSN 2238-1198 Natal, v.1, n.1, jan-jun 2012. Disponível em: www.rbec.ect.ufrn.br A canção “Tapera” de Lorenzo Fernandez, ou a ambiguidade das imagens brasileiras Mônica Pedrosa 98 [email protected] Resumo: Neste trabalho, realizo um estudo sobre a canção “Tapera”, de Lorenzo Fernandez, a fim de observar como o compositor traduz o poema em música e como poema e música interagem na canção. Como suportes teóricos utilizo conceitos de intermidialidade, a semiologia da música, teorias literárias de tradução e a imagem como operação de leitura. O trabalho me permite concluir que obras artísticas, em particular esta canção, podem apresentar-se como resposta e proposta ao momento histórico em que se inserem. Palavras-chave: Tradução; Interpretação Musical; Semiótica; Canção de Câmara; Lorenzo Fernandez; Imagens. Abstract: In this paper, I carry out a study about the song “Tapera”, by Lorenzo Fernandez, aiming at observing how the composer translates the poem into music and how poem and music interact within the song. As a theoretical basis I use concepts from intermediality, musical semiology, translation literary theories and image as a reading operation. This investigation allows me to conclude that artistic works, in particular this song, can be read as a response and as a proposition to the historical moment where it is inserted. Keywords: Translation; Musical Interpretation; Semiotics; Chamber Music; Lorenzo Fernandez; Images. 1. Introdução Este artigo volta-se para as canções de Lorenzo Fernandez, em particular para a canção Tapera, escrita em 1929, a partir de poema de Cassiano Ricardo 99 . As canções de Lorenzo Fernandez, por sua elaboração e pela época em que se inserem, constituem um corpus importante para pensarmos as canções de câmara de uma forma geral, e, em particular, as canções brasileiras. Essas canções pintam quadros sonoros de paisagens brasileiras dos sertões, das praias, das cidades, de antigas fazendas de escravos, sugerem dedilhados de viola, serestas, batuques. Sua música se apropria de muitas vozes 98 Professora adjunta na Escola de Música da UFMG. Graduada em Canto por essa instituição, possui Mestrado pela Manhattan School of Music e Doutorado em Literatura Comparada pela UFMG. Atua como solista e concertista, e dedica-se especialmente à pesquisa, divulgação e registro da canção de câmara brasileira. Gravou, em 2010, o CD Canções da Terra, Canções do Mar, com o violonista Fernando Araújo. 99 Cassiano Ricardo foi poeta neossimbolista e neoparnasiano. Com o modernismo nas artes ligou-se à corrente nacionalista denominada Verde-amarelismo, juntamente com Menotti. Com seu livro Vamos caçar papagaios, de 1926, entra na temática do Brasil indígena e do Brasil colonial, sentidos, nos dizeres de Alfredo Bosi (1979, p.366), como “estados de alma primitivos e cósmicos”. Com Deixa estar, jacaré (1931) e Martim Cererê (1928) suas preferências nacionalistas centram-se cada vez mais na temática paulista, seja indígena, bandeirante ou ligada à penetração cafeeira, explorando um Brasil primitivo e colorido (cf. BOSI, 1979, p.366). 109

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Neste trabalho, realizo um estudo sobre a canção “Tapera”, de Lorenzo Fernandez, a fim de observar como o compositor traduz o poema em música e como poema e música interagem na canção. Como suportes teóricos utilizo conceitos de intermidialidade, a semiologia da música, teorias literárias de tradução e a imagem como operação de leitura. O trabalho me permite concluir que obras artísticas, em particular esta canção, podem apresentar-se como resposta e proposta ao momento histórico em que se inserem."

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  • Revista Brasileira de Estudos da Cano ISSN 2238-1198Natal, v.1, n.1, jan-jun 2012. Disponvel em: www.rbec.ect.ufrn.br

    A cano Tapera de Lorenzo Fernandez, ou a ambiguidade das imagens brasileiras

    Mnica Pedrosa98

    [email protected]

    Resumo: Neste trabalho, realizo um estudo sobre a cano Tapera, de Lorenzo Fernandez, a fim de observar como o compositor traduz o poema em msica e como poema e msica interagem na cano. Como suportes tericos utilizo conceitos de intermidialidade, a semiologia da msica, teorias literrias de traduo e a imagem como operao de leitura. O trabalho me permite concluir que obras artsticas, em particular esta cano, podem apresentar-se como resposta e proposta ao momento histrico em que se inserem.Palavras-chave: Traduo; Interpretao Musical; Semitica; Cano de Cmara; Lorenzo Fernandez; Imagens.

    Abstract: In this paper, I carry out a study about the song Tapera, by Lorenzo Fernandez, aiming at observing how the composer translates the poem into music and how poem and music interact within the song. As a theoretical basis I use concepts from intermediality, musical semiology, translation literary theories and image as a reading operation. This investigation allows me to conclude that artistic works, in particular this song, can be read as a response and as a proposition to the historical moment where it is inserted. Keywords: Translation; Musical Interpretation; Semiotics; Chamber Music; Lorenzo Fernandez; Images.

    1. Introduo

    Este artigo volta-se para as canes de Lorenzo Fernandez, em particular para a

    cano Tapera, escrita em 1929, a partir de poema de Cassiano Ricardo99.

    As canes de Lorenzo Fernandez, por sua elaborao e pela poca em que se

    inserem, constituem um corpus importante para pensarmos as canes de cmara de uma

    forma geral, e, em particular, as canes brasileiras. Essas canes pintam quadros sonoros

    de paisagens brasileiras dos sertes, das praias, das cidades, de antigas fazendas de escravos,

    sugerem dedilhados de viola, serestas, batuques. Sua msica se apropria de muitas vozes

    98 Professora adjunta na Escola de Msica da UFMG. Graduada em Canto por essa instituio, possui Mestrado pela Manhattan School of Music e Doutorado em Literatura Comparada pela UFMG. Atua como solista e concertista, e dedica-se especialmente pesquisa, divulgao e registro da cano de cmara brasileira. Gravou, em 2010, o CD Canes da Terra, Canes do Mar, com o violonista Fernando Arajo.99 Cassiano Ricardo foi poeta neossimbolista e neoparnasiano. Com o modernismo nas artes ligou-se corrente nacionalista denominada Verde-amarelismo, juntamente com Menotti. Com seu livro Vamos caar papagaios, de 1926, entra na temtica do Brasil indgena e do Brasil colonial, sentidos, nos dizeres de Alfredo Bosi (1979, p.366), como estados de alma primitivos e csmicos. Com Deixa estar, jacar (1931) e Martim Cerer (1928) suas preferncias nacionalistas centram-se cada vez mais na temtica paulista, seja indgena, bandeirante ou ligada penetrao cafeeira, explorando um Brasil primitivo e colorido (cf. BOSI, 1979, p.366).

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    brasileiras, pois so vrios os personagens que povoam sua obra, como o tropeiro, o caboclo,

    o seresteiro da cidade, o violeiro do serto, a me dgua, a senhora da casa grande e a

    escrava.

    O perodo histrico constitudo pelo modernismo nacionalista conturbado e

    apresenta contradies. A atitude paternalista com relao populao rural contrasta com a

    atitude de afastamento das manifestaes populares urbanas; a modernizao nas artes

    convive com o retorno s formas arcaicas do folclore e com a retomada das tradies

    clssicas musicais. Por sua vez, as camadas mais altas da sociedade se aproximam das classes

    populares por meio das manifestaes artsticas. Conflito, discrepncia e desordem,

    resultados da convivncia pouco amistosa entre segmentos dspares da sociedade, contrastam

    com a unio em torno de objetivos comuns, verificada no apenas nos meios da arte culta,

    como tambm nos democrticos ambientes do teatro de revistas e, posteriormente, das rdios,

    nos quais as finalidades artsticas, aliadas aos objetivos capitalistas visando ao lucro, seriam

    mais fortes que os preconceitos. Unio, ordenao e sntese tambm no podem deixar de

    existir nos momentos em que os intertextos musicais, formados a partir das encruzilhadas

    diversas, se constituem como amalgamento de tradies perdidas, modificadas,

    transformadas.

    Nesse panorama, interessante verificarmos como as canes de Lorenzo Fernandez

    dialogam com o perodo histrico, ao responder e ao mesmo tempo propor questionamentos.

    Alfredo Bosi (2004, p.12), ao mencionar as relaes do poema com os tempos da sociedade,

    nos diz que importa trazer luz da conscincia as respostas muitas vezes tensas que a obra

    potica d s ideologias dominantes, venham estas do mercado, do poder do Estado ou das

    vrias instituies senhoras da palavra. Uma das questes que pretendo abordar neste artigo

    refere-se a como a elaborao artstica do compositor esteve ligada s ideologias dominantes

    das correntes nacionalistas que imaginavam uma realidade brasileira integrada e homognea.

    Antes de voltar a minha ateno para a cano Tapera, julgo necessrio desenvolver

    alguns tpicos que nos daro sustentao terica para o aprofundamento neste trabalho. O

    primeiro diz respeito prpria cano de cmara, como se constitui esse objeto e como pode

    ser percebido. O segundo aborda, ainda que em linhas gerais, a ideia de traduo, retirada das

    teorias literrias e usada para pensarmos a interpretao das canes.

    Neste artigo, proponho ir alm da anlise descritiva e estabelecer conexes no apenas

    entre as linguagens musical e literria que compem a cano, como entre a obra e o seu

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    tempo, ciente de que meu olhar para a produo realizada no passado apoia-se em minha

    contemporaneidade, minhas vivncias, meus conhecimentos, minhas percepes.

    Desta forma, utilizo a semiologia da msica como suporte para estabelecer conexes

    entre a obra e elementos externos a ela, o que podemos denominar referncias extrnsecas100.

    A partir da semiologia, utilizo tambm a proposta, que desenvolvi em minha tese de

    doutorado e artigos (2009, 2010), de que uma cano, por meio de seus elementos musicais e

    poticos, cria imagens de modalidades sensoriais diversas. Segundo o neurocientista Antnio

    Damsio (2002, p.123), o conhecimento factual chega mente sob a forma de imagens.

    Portanto, neste trabalho, emprego os princpios de uma metodologia transdisciplinar para o

    estudo da cano de cmara, que consiste no estudo integrado de msica e literatura, tendo a

    imagem como conceito transversal que perpassa as duas disciplinas. Verifico como possvel

    perceber nas canes a visualidade, a plasticidade, o movimento, a espacialidade, a

    temporalidade, e, por fim, os diferentes sentimentos responsveis pela criao de imagens

    ligadas aos nossos vrios sentidos.

    Em resumo, pretendo, neste artigo, observar como Lorenzo Fernandez realiza a

    traduo do poema, como poema e msica interagem na cano e como a cano reflete

    questes socioculturais e afetivas do Brasil nacionalista.

    2. Cano, obra multimdia

    Para pensar a cano, trabalho com conceitos de intermidialidade, que podem, a

    princpio, acarretar certa confuso. Segundo Irina Rajewsky (2005, p.43), o termo

    intermidialidade surgiu nos anos 90 e sua popularidade deu origem a um grande nmero de

    terminologias utilizadas em textos sobre o assunto, como, por exemplo, multimidialidade,

    plurimidialidade, cross-midialidade, inframidialidade, convergncia miditica ou

    hibridizao. Para Claus Clver, em seu texto Inter textus / Inter artes /Inter media (2006, p.

    11-41), intermidialidade diz respeito no s quilo que designamos como artes (Msica,

    Literatura, Dana, Pintura e demais Artes Plsticas, Arquitetura, bem como formas mistas,

    como pera, Teatro e Cinema), mas tambm s mdias e seus textos, j costumeiramente

    assim designadas na maioria das lnguas e culturas ocidentais, como as mdias impressas,

    como a Imprensa, e tambm o Cinema, a Televiso, o Rdio, o Vdeo, bem como as vrias

    mdias eletrnicas e digitais surgidas mais recentemente. Embora interessante e

    100 Referncias intrnsecas so aquelas que relacionam elementos musicais entre si, e referncias extrnsecas so responsveis pela criao de uma infinidade de interpretantes que relacionam a msica a aspectos da vida humana e da realidade que nos cerca. A esse respeito, remeto o leitor a NATTIEZ (1990, 2002).

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    extremamente atual, esta no uma discusso que pretendo desenvolver na brevidade deste

    artigo. Considerarei como mdia qualquer sistema de signos, e, consequentemente, a cano,

    como a unio de dois sistemas semiticos distintos ou de duas mdias, a literria e a musical.

    A cano de cmara ou cano erudita normalmente escrita a partir de um texto

    literrio, geralmente um poema, de autor determinado ou annimo. Poderia pensar, num

    primeiro momento que, do ponto de vista da sua produo, a cano de cmara seria a

    transposio de uma obra concebida na linguagem literria para uma obra concebida na

    linguagem musical. Neste caso, estaramos diante de uma transposio intersemitica, ou

    melhor dizendo, de uma traduo intersemitica. A cano, entretanto, pode ser vista como

    mais do que uma transposio do texto literrio para o texto musical, ou seja, a transposio

    de uma mdia a outra. A cano ela prpria uma obra musical original que recria e ambienta

    o texto potico com os elementos musicais elaborados pelo compositor, quais sejam, a

    melodia, a harmonia, o ritmo ou a instrumentao empregada.

    Considero ainda, valendo-me das classificaes formuladas por Cluver (2006) para

    obras formadas por vrias mdias, a cano como um texto multimdia, composto por textos

    separveis e separadamente coerentes, o texto verbal e o texto musical.

    Em resumo, na cano, temos que o poema e a msica pertencem a sistemas

    semiticos diferentes, cada qual com suas distintas maneiras de permitir a expresso. Em

    segundo lugar, a produo da cano envolve a traduo de um sistema semitico a outro, ou

    seja, a traduo de elementos da poesia em elementos musicais, que podemos chamar de

    traduo intersemitica. Mas implica na criao de um novo original, a cano propriamente,

    na qual se encontra o poema traduzido como letra de cano. O poema e a msica resultam

    no objeto cano que , em suma, uma mtua fecundao. Dentro de uma cano, a msica e

    o poema se fecundam, dialogam, opem-se, interferem um no outro. Interferncia no

    necessariamente correspondncia ou analogia. Entre eles h um incessante refluxo.

    Interpretar implica em perceber como se d esse refluxo na conformao da cano e como se

    inter-relacionam seus diversos elementos.

    3. Traduo, interpretao, semitica

    A construo de uma cano de cmara resulta de mltiplos processos

    interpretativos que ocorrem em etapas distintas. Valho-me ento de algumas ideias sobre

    traduo encontradas nas teorias literrias para pensar sobre essas etapas. Assim sendo,

    considero tanto a produo quanto a recepo de uma cano como instncias tradutrias: o

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    poeta se coloca como tradutor de imagens, ideias, sentimentos; o compositor, como o

    primeiro tradutor do texto potico; o intrprete musical, por sua vez, tradutor dos signos

    escritos em sons ou tradutor desses sons em linguagem verbalizada, assumindo, ao mesmo

    tempo, os papeis de performer, fruidor e crtico, e, por fim, a percepo do ouvinte, o ouvinte

    como tradutor.

    A traduo pode ser vista, de uma forma geral, como uma tarefa que possibilita

    interaes e trocas do sujeito com o mundo que o cerca. A todo o momento necessitamos da

    atividade tradutria. Entretanto, no simples gesto de responder a uma criana sobre o

    significado de uma palavra, j nos damos conta da dimenso oscilante, frgil, instvel,

    imprecisa e muitas vezes frustrante da tarefa tradutria. Otvio Paz (1981, p.9) quem

    afirma que a traduo opera por um movimento contraditrio e complementar. Para o

    autor, a traduo suprime as diferenas entre uma lngua e outra; por outro lado as revela

    mais plenamente: graas traduo nos inteiramos de que nossos vizinhos falam e pensam de

    um modo diferente do nosso.

    A prpria linguagem, como traduo de nossos pensamentos, lida com a

    impossibilidade, mas oferece a contrapartida da criatividade. O pensamento em si j opera

    por traduo. interessante observarmos como semioticistas como Charles Sanders Pierce se

    valem da ideia de traduo. Para o filsofo americano (2005, p.270), todo signo-pensamento

    transladado para ou interpretado num signo-pensamento subsequente ou, no jogo

    caleidoscpico de palavras de Jlio Plaza (1987, p. 18), todo pensamento traduo de

    outro pensamento, pois qualquer pensamento requer ter havido outro pensamento para o qual

    ele funciona como interpretante. Assim concluo que, quando pensamos, traduzimos para ns

    mesmos aquilo que se apresenta conscincia.

    A primeira instncia de traduo da cano consiste, ento, no prprio poema como

    traduo de uma ideia, de um pensamento que reflete o mundo das coisas, a relao do

    homem com o real. O poeta francs Paul Valry101 (apud Campos, 1985) nos fala, com

    propriedade, do poeta como um tradutor e da inexatido inerente a essa tarefa da traduo.

    bastante curiosa a maneira como esse poeta se expressa, ao relatar que o que temos em mente

    no constitui exatamente o resultado final de nossa elaborao. Para Valry, o trabalho do

    poeta consiste menos em buscar palavras para suas ideias do que em buscar ideias para suas

    palavras e seus ritmos preponderantes.

    101 As ideias do poeta francs Paul Valry sobre traduo encontram-se em seu texto introdutrio para suas tradues das Buclicas de Virglio, de 1944. Suas ideias so comentadas por Haroldo de Campos em seu texto Paul Valry e a potica da traduo.

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    A leitura de um poema evocar, na mente daquele que o l, imagens, sentimentos,

    circunstncias diversas, lembranas do passado, expectativas, nomes, pessoas, estados

    corporais, ou, nos dizeres de Peirce (2005, p. 169), elementos que servem como signos

    presentes na conscincia. Um compositor, em seus pensamentos, traduz para si mesmo esses

    signos, e os veicula para o exterior atravs de uma sequncia de som e silncio, que

    chamamos msica. Mas a linguagem do compositor, como podemos deduzir pelas afirmaes

    de Valry, muito mais do que um veculo de comunicao dos seus pensamentos para o

    mundo exterior. Como traduo que , ela no mimetiza o pensamento, no sentido de restituir

    o seu duplo, um seu igual. Alm do mais, ela est sujeita s normas e convenes da

    linguagem musical. A linguagem possibilita ao mesmo tempo em que limita o fazer do

    compositor.

    Podemos observar que a traduo uma prtica criativa, pois jamais produzir uma

    cpia perfeitamente igual, seja dos pensamentos, de um poema ou de uma partitura de uma

    cano. Paz (1981, p. 16) afirma que traduo e criao so operaes gmeas. Chegamos

    aos limites da criao a que se pode chegar numa traduo. A este respeito, o pensamento

    nuanado e cambiante de Haroldo de Campos (1984, p. 7) assume um de seus mais

    veementes momentos em seu texto Para alm do princpio da saudade. O autor se permite

    reverter a funo anglica do tradutor numa empresa luciferina. Campos passa a ameaar

    o original com a runa da origem, transformando o original na traduo de sua traduo.

    Segundo Plaza (2005, p.1) a operao tradutora como trnsito criativo de linguagens

    nada tem a ver com a fidelidade, pois ela cria sua prpria verdade. Ao compositor abrem-se

    possibilidades. Sua traduo intersemitica poder ser concordante com o poema,

    contraditria, poder buscar efeitos anlogos, ser transgressora, apenas tangenciar o sentido

    do original. Isso porque diferentes necessidades, desejos, aspiraes movem a passagem da

    poesia msica, da palavra escrita e falada ao canto. Um jogo de foras vital e imperativo se

    encontra presente nessa transmutao. isto, exatamente, o que pretendo observar no estudo

    da cano Tapera, ao verificar a traduo que Lorenzo Fernandez realiza do poema, e, enfim,

    como interagem os elementos poticos e musicais na cano, que uma obra original.

    Nesse processo, tambm me coloco como tradutora ao realizar escolhas entre as vrias

    maneiras criativas de traduo da cano Tapera, elegendo, priorizando ou valorizando

    determinados elementos. Interpretaes crticas, escritas ou faladas, constituem uma outra

    face da interpretao. Um intrprete pode verbalizar ocorrncias literais e descrever estruturas

    sonoras, mas pode tambm adentrar um vasto campo simblico que, em ltima anlise,

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    conforma e dirige suas interpretaes. A interpretao de uma cano passa pela percepo

    de suas estruturas e tambm pela articulao de uma cadeia de interpretantes ligando essas

    estruturas a elementos diversos pertencentes nossa experincia de mundo. No tecido

    significante da cano, a msica est ligada palavra, o que, de certa forma, orientar a

    formao de uma cadeia de interpretantes e permitir uma entrada mais objetiva em sua trama

    de signos-significantes. A msica, ao ser compartilhada com o texto potico, amplia as

    possibilidades de significao em ambos os domnios. No se trata mais de opor som ao

    sentido, mas de integr-los em nossa percepo, isto , de perceber o som como sentido.

    Concluindo, a cano um todo intrincado de palavras e sons; um texto multimdia

    atravessado pelos textos e contextos dos autores e dos intrpretes. A interpretao de uma

    cano depender, em sntese, de selecionarmos e acionarmos em conjunto uma srie de

    variveis. O intrprete inserido em sua contemporaneidade constri suas redes pessoais de

    significao num trabalho de traduo, que implica criatividade e mtodo. Dessa forma, a

    atribuio de significaes aos elementos da cano se baseia em parmetros que podem ser

    discutidos e at contestados.

    Em meu entender, lidamos com trs questes fundamentais que pudemos perceber nas

    teorias tradutrias: a impossibilidade da expresso exata por meio da linguagem, a no

    restituio do original; a atitude criativa que supre a impossibilidade; o mtodo para

    estabelecer prioridades. Esta interpretao da cano Tapera, longe de propor uma imagem

    realista da cano, revelando-lhe a essncia, torna-se construo que seleciona, no seu

    objeto, um certo nmero de aspectos considerados como adequados, no tanto para explicar

    a obra, mas para traduzir a obra em palavras, o que posteriormente certamente guiar uma

    performance musical, ou a traduo da partitura em sons.

    Um dos principais legados das teorias tradutrias certamente a prtica criativa. Ao

    meu ver, esta prtica criativa aliada ao estudo histrico e analtico permite ao intrprete se

    responsabilizar por suas escolhas, tanto no momento de verbaliz-las como em sua prtica de

    performance. Se a traduo envolve criao, o intrprete, como criador, coautor. Tomando

    para si a responsabilidade de permitir a metamorfose e renovao do original que, como bem

    nos demonstra Walter Benjamin, se modifica em sua pervivncia (1992, p.x), intrpretes

    das canes realizam a traduo da traduo. Mais do que interpretar busca-se traduzir, com

    todas as consequncias que advm do ato tradutrio.

    4. Paisagens e personagens: a cano Tapera

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    Na cano Tapera veremos o interior agreste e desolado do Brasil na imagem de uma

    casa em runas e os personagens humanos ou no: o vento, a noite, o caboclo. Nessa cano,

    procurarei demonstrar, por meio de imagens que sugerem paisagens e personagens, a maneira

    pela qual Lorenzo Fernandez traduziu o poema em msica, e as interlocues que se

    estabelecem entre as diferentes mdias da cano. Vejamos o poema:

    Aquela casa de sap com a tinta nova do luartem qualquer cousa que parece recordaro tempo em que possua o seu terreiro de cafe o seu pomar.

    Agora, junto s janelasviam flores de abboramuito amarelas.E, em moutas verdes cruasnascem protuberantes gravats,e trepam pela cerca as flores roxasde misteriosos maracujs...

    E quando a noite vem, com o seu vestido de noivado,derramar pelo vo do teto esburacadoum punhado de fitas brancas l por dentro,o vento canta pelas frinchas do telhado,o ltimo choro do caboclo apaixonado...

    4.1 O poema

    O poema de Cassiano Ricardo, Tapera, musicado por Lorenzo Fernandez em

    1929, retrata uma paisagem brasileira, uma paisagem colorida em dois momentos distintos, o

    noturno e o diurno, derramando profuses de imagens, visuais, sonoras, cinticas, que pouco

    a pouco vo formando uma imagem particular, um quadro em movimento, uma cena de uma

    casa e de seu entorno, no interior do Brasil.

    O ttulo do poema nos conduz a uma primeira imagem: a tapera uma casa em

    runas, abandonada. Pensar em uma tapera pensar em uma fazenda solitria, no meio do

    nada.

    Os versos livres da primeira estrofe possuem, a princpio, uma acentuao

    regular, quaternria, com incio em anacruse. O impulso anacrstico inicial nos leva

    diretamente palavra casa. Os acentos se sucedem nas palavras sap, nova e luar. Seguindo

    os acentos regulares nosso olhar mental visualiza a casa, dirige ento a ateno ao detalhe do

    sap, percebe a transformao em nova e cai sobre o agente da transformao: o luar. O

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    poema nos d a construir esta primeira imagem da casa iluminada pela luz do luar. Estranho

    quadro de degradao e beleza. A tapera veste-se de nova e apresenta-se ao olhar com uma

    nova tinta: a tinta pintada pela luz.

    Aquela casa de sapcom a tinta nova do luartem qualquer cousa que parece recordar

    A mtrica regular que dirigia a ateno do leitor quebrada na palavra tempo. Em

    tempo em que possua a acentuao ternria e posteriormente binria destas palavras

    diminuem o andamento da frase num ralentando. A mudana no tempo do compasso prepara

    a mudana para o tempo da memria e lana o leitor numa outra poca A tapera com sua

    nova roupagem remete ao tempo de fartura, de terreiro de caf e pomar.

    o tempo em que possua o seu terreiro de cafe o seu pomar.

    Em o seu terreiro de caf e seu pomar, a frase retoma seu andamento inicial. A

    sonoridade das rimas aproxima as palavras luar, recordar e pomar. A longa frase e a

    reiterao da sonoridade aberta e sustentada pela consoante r ao final dos versos desenham

    lentamente o arco da reminiscncia fixada no tempo.

    Na segunda estrofe, o corte busco do agora nos traz de volta a realidade diurna.

    Runas...enfeitadas de cores!... O mato invade a paisagem, invade a casa e o entorno de flores

    amarelas das abboras, do verde das moitas, dos gravats coloridos e do roxo das flores de

    maracuj. O Verde-amarelismo de Cassiano Ricardo recupera a beleza perdida, em runas,

    com o colorido agreste da natureza.

    Agora, junto s janelasviam flores de abbora muito amarelas.E, em moutas verdes cruasnascem protuberantes gravats,e trepam pela cerca as flores roxasde misteriosos maracujs...

    Toda a rtmica desta estrofe diferente da anterior. Alternando ritmos binrios,

    ternrios e quaternrios, sempre com acentuao anacrstica, as frases constroem imagens de

    movimento. A acentuao irregular torna o movimento, entretanto, instvel, remetendo-nos

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    irregularidade com que as plantas tomam conta da paisagem, cada uma a seu modo. O olhar

    em movimento salta das janelas para as moitas, das moitas para as cercas e acompanha o

    desorganizado crescimento das plantas.

    A paisagem sonora iluminada pela presena de assonncias de variadas vogais

    abertas como e e a. Pronunciadas aliteraes em s ao longo dos versos e em suas terminaes

    criam unidade dentro de um movimento sibilante constante.

    Verbos de ao remetem luz e vida: viam, nascem, trepam. A conjuno e

    liga as frases do longo perodo num grande contnuo de terminaes suspensas.

    Entretanto, a estranheza da situao, momentaneamente esquecida, retomada

    sutilmente: a cor roxa das flores e o mistrio encerrado nos maracujs. Reticncias ralentam

    o final da frase e abrem espao para que esse mistrio encontre ressonncia na durao do

    silncio que se segue entre as estrofes.

    A prxima estrofe se instala brandamente, iniciando-se com a conjuno e,

    numa sequncia da estrofe anterior, seguida do advrbio de tempo quando, que no afirma

    a temporalidade. A sonoridade branda e sustentada das nasais e a sustentao voclica do

    ditongo na palavra noite encontram como primeiro ponto de repouso o verbo vem, a partir do

    qual as frases retomam a mtrica regular quaternria. Essa regularidade rtmica quebrada

    em derramar pelo vo, em um punhado de fitas e em o ltimo. Nesses momentos, devido

    acentuao ternria, as palavras apresentam-se mais espaadas no tempo, conferindo a esta

    estrofe um interessante jogo rtmico de dilatao e contrao: movimentos espasmdicos da

    noite e seu amante, do canto do vento, do choro do caboclo.

    E quando a noite vem, com o seu vestido de noivado,derramar pelo vo do teto esburacadoum punhado de fitas brancas l por dentro,o vento canta pelas frinchas do telhado,o ltimo choro do caboclo apaixonado...

    A acentuao em vem, vestido e noivado, aliada recorrncia da sonoridade da

    consoante v, une essas palavras num contnuo sonoro que desenha a lenta chegada da noite,

    como uma noiva. Esta metfora nos conduz, da paisagem externa, atravs do teto

    esburacado, para o interior da tapera, por meio da bela imagem das fitas brancas que agora

    preenchem o interior da casa. As aliteraes em v introduzem sonoramente a figura do vento.

    Personificao do poeta, o vento canta. As fendas no telhado, como os furos de um

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    instrumento, permitem seu canto. Permitem seu encontro amoroso com a noite. Esse jogo de

    personificaes e personagens, resqucios do neossimbolismo de Cassiano Ricardo, nos

    permite associar o vento com o canto, o canto com o poeta, o poeta com o caboclo, o caboclo

    apaixonado com a noiva, a noiva com a noite.

    O ufanismo verde-amarelo de Cassiano Ricardo encontra na desolao a beleza,

    de noite, a claridade do luar mascarando as runas, de dia, a exploso agreste das cores, numa

    criao pautada pelo sensorial: imagens dirigidas ao olhar, audio, percepo de

    movimento (cinestesia), e at ao olfato (plantas, flores) e ao tato (vento, calor do dia, sol,

    natureza exuberante). O poema nos sugere movimentos iniciais e finais lentos e escuros,

    entremeados por um movimento rpido e claro. A primeira e a terceira estrofes do poema,

    com suas imagens da noite, com seus longos versos e sua sonoridade sustentada, pedem pelo

    desenrolar lento e contnuo do tempo para se sustentar. A segunda estrofe, vvida de cores,

    desorganizadamente articulada, cria imagens claras e rpidas.

    4.2 A cano Tapera

    Por meio da leitura que realizei do poema de Cassiano Ricardo, seria de se

    esperar que Lorenzo Fernandez escrevesse uma cano em movimentos lento, rpido e lento,

    em tonalidades alternadas, escura, clara, escura. E exatamente isso o que ele no faz.

    Lorenzo Fernandez inicia a cano com um ritmo vivo de embolada102, que logo

    nos remete s divertidas cantorias dos repentistas nordestinos. Os textos cmicos, satricos,

    por vezes carregados de insultos dos cantadores, entretanto, nada tm a ver com a buclica

    paisagem noturna descrita no poema, antes, justape a ela um novo quadro, uma memria

    alegre e brincalhona de uma poca em que a fazenda respirava prosperidade e fartura. Essa

    voz que Lorenzo Fernandez acrescenta cano cria tamanho contraste com o poema, que o

    resultado final da justaposio de imagens praticamente anula a voz melanclica deste

    ltimo. Destroi o belo do agora, que no nada mais que uma iluso. A tinta nova do luar se

    dilui na rapidez da enunciao, ressoando apenas debilmente na prosdia absolutamente

    correta empregada pelo compositor. Como no poema, a palavra tempo enfatizada

    102Gnero musical originrio do nordeste brasileiro, onde especialmente popular. Consiste em uma melodia declamatria, em valores rpidos e intervalos curtos, entoada por uma dupla de cantadores que respondem um ao outro de forma improvisada, ao som de um pandeiro. Neste desafio, o cantador tenta denegrir a imagem do outro que lhe faz dupla com versos ofensivos, famosos pelos palavres e insultos utilizados. O metro normalmente em redondilha maior ou em versos de seis slabas. As letras so geralmente cmicas, satricas ou descritivas. Ver Dicionrio Cmara Cascudo ou o Dicionrio Cravo Albin da Msica Popular Brasileira (2002).

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    ritmicamente e, consequentemente, as palavras seguintes, terreiro de caf e pomar ganham

    fora, presentificando o passado, que soa como um agora (Exemplo 15).

    Exemplo 15: Tapera, compassos 4 a 11.

    Para a primeira seo desta cano, podemos pensar a princpio na tonalidade de

    L bemol maior, mas a sonoridade da escala pentatnica faz-se notar na melodia do canto e

    sintetizada na prpria harmonia da tnica com sons acrescentados que so originados da

    pentatnica de L bemol maior. A cano constitui-se assim como um misto de tonalidade,

    pentatonismo e modalidade, criando uma mescla peculiar de colorido harmnico. Essa

    primeira seo, toda ela com funo de tnica, escrita sobre um pedal de L bemol. Lorenzo

    Fernandez utiliza uma base funcional harmnica extremamente simples, bem ao estilo da

    cantoria popular. O ostinato rtmico-harmnico remete ao acompanhamento invarivel dos

    desafios. A harmonia , entretanto, extremamente colorida, pois o compositor empregar

    predominantemente acordes com sons acrescentados 103 que se equilibram com a simplicidade 103 Acordes com adio de segundas. Os sons acrescentados desempenham principalmente uma funo colorstica, variando sobretudo a textura em lugar da funo de uma estrutura harmnica bsica. Mais do que simples ornamentos, os sons acrescentados so verdadeiros membros de cor que rivalizam com a tera do

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    da base funcional harmnica. Lorenzo Fernandez traduz, de maneira paradoxal, com cores e

    movimento, o panorama noturno da primeira estrofe do poema. E ainda finaliza essa primeira

    parte da cano com uma seo de transio nos compassos de 14 a 20, indicada como

    clarineta, que tem um ar brincalho, divertido, jocoso, com seus saltos e escalas descendentes

    maneira de uma gargalhada (Exemplo 16).

    Exemplo 16: Tapera, compassos 14 a 21.

    Ento, estranhamente, essa gargalhada desemboca no F menor da prxima

    seo, escrita numa regio mais grave na parte do piano, com o baixo agora em quintas

    paralelas. O compositor, nos compassos introdutrios da nova seo, cria uma expectativa

    peculiar com a sequncia harmnica e o crescendo molto dos compassos at a dinmica forte,

    que se confirma na nova tonalidade de F menor na mo esquerda, mas que, ao mesmo

    tempo, desestabilizada pela dinmica piano sbita, pelo incio da linha vocal na dominante

    da nova tonalidade e pelo acorde de D menor com stima (acorde de sobretnica) da mo

    direita do piano, apesar da presena do pedal de tnica em quintas. Imprime assim,

    acorde em potncia de colorido, aumentando o interesse e a densidade harmnica (Cf. PERSICCHETTI, 1961, p. 109-120).

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    subitamente, cano, exatamente na palavra agora, uma instabilidade inesperada, num tom

    mais grave e melanclico.

    No agora do poema, o ritmo alegre e movimentado da embolada cede lugar a um

    ritmo calmo com um leve impulso devido ligadura do tempo fraco ao tempo forte do

    compasso. Existe um embalo suave nas tercinas da linha do canto, em linha modinheira. Se

    no poema a imagem era viva e rpida, movimentada pela descrio das plantas que cresciam

    muito coloridas tomando conta da tapera, a imagem musical mais lenta e escura, apesar de a

    cor do L bemol maior ainda predominar na linha da voz. O colorido dado pelas quintas dos

    acordes do piano novamente remete a um tempo antigo, imemorial. A narrativa do agora

    salta para um passado sem data e mergulha profundamente em algum lugar recndito da

    memria. Dois contracantos melanclicos em desenho descendente soam em meio ao ostinato

    rtmico, agora com movimentao harmnica, no registro mdio do piano: melodias na

    pentatnica menor de F. Novamente, aqui, a escala pentatnica, escala dos tempos remotos,

    dos tempos idos. Onde estaro as cores das flores? As cores das plantas quase no importam.

    Na parte da mo esquerda, no compasso 27, a presena do Sol b na linha descendente do

    baixo em quintas paralelas (Sib, Lab, Solb, F) sugere o modo frgio, com seu acentuado

    carter de descida. Os contracantos e o baixo descendente, sempre to ligado s imagens

    tristes, se contrapem exploso de vida, sublinhando de forma paradoxal o nascimento dos

    coloridos gravats nas moitas verdes (Exemplo 17).

    Exemplo 17: Tapera, compassos 25 a 29.

    Assim, tambm, ao roxo das flores dos maracujs se justape uma nova imagem,

    um novo contracanto, agora na regio mais grave do piano. E os maracujs se perdem na

    distncia da linha meldica suspensiva, na qual a nota F sustentada pela harmonia de

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    subdominante, ligando-se ao novo contracanto, memria do contracanto inicial (Exemplo

    18).

    Exemplo 18: Tapera, compassos 30 a 38.

    Uma breve seo de extenso da seo anterior, com funo de transio, prepara

    o retorno ao L bemol, sublinhando musicalmente a gradual transio entre as estrofes do

    poema, como se o ir e vir dos tempos da memria, do passado e do presente, ocorresse

    gentilmente. O verso e quando a noite vem inicia-se livremente, quase como se numa

    continuao da seo anterior, para depois, subitamente, retomar a embolada junto com o

    ostinato rtmico-harmnico, numa recapitulao variada da seo inicial. As belas imagens

    poticas da noite, como uma noiva, aparecem de forma fugaz na entonao rpida e viva.

    Mas aqui, ao vento, o tratamento harmnico dado j diferenciado, na tonalidade do

    homnimo menor de L bemol (Exemplo 19).

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    Exemplo 19: Tapera, compassos 54 a 56.

    Ouvimos novamente o contracanto em tercinas da seo anterior. Agora sim,

    podemos relacion-lo ao canto do vento, j tornado presente por Lorenzo Fernandez na seo

    anterior. O choro nostlgico do caboclo acompanhado pelas quintas paralelas que

    reaparecem, sempre to vazias pela ausncia das teras do acorde, to distantes no tempo.

    Um cantarolar de leve vai sumindo aos poucos (Exemplo 20).

    Exemplo 20: Tapera, compassos 62 a 69.

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    4.3 A traduo de Lorenzo Fernandez

    Se Cassiano Ricardo, em suas convices ligadas ao movimento Verde-Amarelo,

    imprime beleza incondicional ao panorama degradado da realidade rural brasileira, a leitura

    de Lorenzo Fernandez causar tal estranhamento que as relaes harmoniosas de calma,

    beleza e alegria do poema se transformam, adquirindo novas significaes. A paisagem

    brasileira nos mostrada por Lorenzo Fernandez em toda a sua beleza contraditria,

    carregada de imagens contrrias e complementares alegres e tristes, rpidas e lentas, claras

    e escuras, vvidas e sombrias que se justapem compartilhando os mesmos lugares. Ainda,

    extraordinria a maneira como o compositor altera, transforma os momentos temporais do

    poema e lida com as imagens da memria, embaralhando-as, rompendo com o agora ao

    levar-nos s lembranas do passado e a um tempo imemorial, com as escalas pentatnicas e o

    modo frgio, destruindo o recordar ao nos arrastar para a cantoria alegre e satrica do

    presente.

    Essa cano nos captura por sua beleza estranha. Impossvel a tristeza da noite ou

    a alegria do dia, os sentimentos se misturam. A justaposio das imagens dos versos com as

    imagens musicais cria um choque, um atrito, uma contradio, e, ao mesmo tempo, uma

    completude, pois sua resultante a ambiguidade. Existe assim um estado de denncia

    realizada por um compositor que no se contenta com a beleza que mascara a degradao,

    no se satisfaz com a exploso de cores, com o mundo das riquezas naturais, primitivas,

    tomadas como um trunfo do Pas. Lorenzo Fernandez pe a descoberto essas relaes,

    valendo-se do estranhamento em sua traduo luciferina, criando novos sentidos, criando

    sua prpria verdade, sensivelmente sintonizada com as contradies do pas.

    E o que dizer dos personagens brasileiros que povoam essa cano? O vento

    canta o canto do caboclo apaixonado, num resqucio de um romantismo no qual a falta se

    manifesta pela ausncia da amada. Lorenzo Fernandez, com sua voz e sua interpretao, d

    ao caboclo uma voz singular. Poderamos aqui pensar com Bakhtin (1981, 1992) que a voz

    do compositor dialoga com a voz de seu personagem. Neste dilogo procurar-se-ia distinguir

    os fios de cada voz no tecido da cano. Em nosso percurso, porm, no essa distino

    que importa. Existe mais do que dilogo. Existe um embate de foras e uma resultante, uma

    nova cor formada pela justaposio das imagens. Um novo personagem numa nova paisagem,

    humano, conflituoso, complexo, multifacetado. Como queramos averiguar neste trabalho,

    por meio das imagens criadas pela cano verificamos que paisagem e personagens dialogam

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    com o Brasil de Lorenzo Fernandez, tambm complexo, tambm conflituoso, tambm

    multifacetado. Personagem emblemtico, o caboclo personifica uma memria que entrelaa o

    interior do Pas com suas aluses a um tempo de prosperidade, s mudanas sociais ocorridas,

    degradao do espao rural e falta de recursos, mas tambm reflete a busca da identidade,

    a beleza na desolao, o potencial luminoso. Nas associaes do poeta com o caboclo, o

    canto e a noite assumem a funo de suplncia diante da terra abandonada e da ambiguidade

    das paisagens que se lhe apresentam. No jogo de imagens dessa cano, muitos encontros: o

    dentro e o fora, a paisagem e o personagem, o passado e o presente, as runas e a beleza.

    5. Concluses

    So diversas as formas de traduo de Lorenzo Fernandez, por vezes

    concordantes com o texto potico, como em canes como A saudade ou Vesperal, por vezes

    contraditrias, como em Tapera, mas sempre suplementares, sempre conferindo s suas

    canes novos e surpreendentes resultados ou significaes. Pode-se dizer que a voz musical

    de Lorenzo Fernandez, na elaborao de uma cano, mais do que buscar correspondncias

    com a linguagem literria do poema, trabalho de criao musical que traduz de forma

    pessoal e extremamente criativa o texto potico, ao mesmo tempo em que com ele dialoga no

    interior da cano.

    A leitura que Lorenzo Fernandez realiza do poema Tapera intrigante e nada tem

    de bvia. Longe de se constituir como um jogo especular, sua traduo se opera por um

    movimento ao mesmo tempo paradoxal e complementar, que sistematicamente ope imagens

    de naturezas contrrias ao poema de Cassiano Ricardo. E aqui podemos nos lembrar das

    tradues de Haroldo de Campos e seus momentos luciferinos mencionados nos primeiros

    tpicos deste artigo. Sua traduo fazer humano resgatado da subservincia hiertica a um

    original, apenas tangenciando o sentido do poema. Um canto paralelo em sua atitude

    transgressora, exatamente porque sensvel ao ambiente brasileiro, revelando com isso suas

    contradies. Sua traduo adquire status de trnsito criativo entre linguagens, criando sua

    prpria verdade, sua prpria denncia, sua prpria expresso.

    As canes de Lorenzo Fernandez assumem um estado de denncia de uma

    realidade, de um contexto, de situaes e sentimentos, percebidos tanto nos temas como nas

    formas de expresso do seu estilo, e a sua traduo, por vezes concordante, por vezes

    contrria ao texto dos poemas musicados, assim ocorre por uma postura inconformada em

    traduzir ambientes brasileiros de forma simplesmente bela, estvel ou sem conflitos.

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    Essas canes so povoadas de paisagens, personagens e sentimentos que

    refletem o universo heterogneo do Brasil da poca em que foram escritas. So muitas as

    vozes que se levantam nas canes de Lorenzo e com elas o compositor dialoga. Ao traduzir

    o texto potico em msica, o compositor se posiciona, revela sua face, recria a paisagem e o

    personagem. As imagens criadas pelo texto potico no interior da cano interagem com as

    imagens musicais, criando novas e surpreendentes resultantes, novos tipos de efeito e sentido.

    Entretanto, no obstante ser um nacionalista convicto, perfeitamente imbudo do

    esprito que guiava a inaugurao de uma nova condio da literatura musical no pas,

    Lorenzo Fernandez captou, de alguma forma, a ambiguidade, a tenso e a instabilidade que se

    estabelecem nas linguagens literrias e musicais quando da proposta de unificao, em uma

    mdia homognea, das diferentes manifestaes culturais dos diversos segmentos da

    sociedade, dspares e em estado de segregao. Por outro lado, as canes de Lorenzo

    Fernandez podem, em alguns momentos, nos desvelar momentos lricos e ternos. Choques

    instveis e snteses harmoniosas coloridas com a marca da ambiguidade. Isto as relaes

    intertextuais em suas canes nos revelaram.

    O sentido de brasilidade nas canes de Lorenzo Fernandez encontra-se, portanto,

    alm da simples distino de clulas rtmicas e melodias populares. O sentido de brasilidade,

    para citarmos o prprio compositor (apud AQUARONE, 1944, p. 49) (...) o sentido

    ntimo que toda obra nossa deve ter, essa qualidade de nascer da nossa terra. O sentido de

    brasilidade um universo de espaos, cores, luzes, movimentos e sentimentos em sintonia

    com aspectos de um Brasil de um momento, percebidos e transmitidos por um compositor

    extremamente sensvel aos ambientes de sua poca.

    Referncias

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