a bela senhora

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  A bela senhora (Romance)  ebecca argo

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Romance

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  • A bela senhora

    (Romance)

    Rebecca Fargo

  • 2

    Sumrio

    Captulo 1 - A bela senhora ................

    Captulo 2 O escritor .......................

    Captulo 3 A terra estrangeira .........

    Captulo 4 Um crime ......................

    Captulo 5 Desconfiana .................

    Captulo 6 Evaso ..........................

    Captulo 7 Volta pro aconchego.........

    Captulo 8 O precipcio .....................

    Captulo 9 O best-seller ....................

    Captulo 10 Revival .......................

  • 3

    Captulo 1

    A bela senhora

    Um movimento suspeito despertou do

    sono a dona solitria do palacete. Seria um rato

    como tantos outros naquele lugar ridiculamente

    chato de se arrumar? Ela, que ali morava desde que

    fora agraciada pelo prmio da aplice, assim, sem

    nenhum auxlio, quase acostumara com essas

    intruses. Mas naquele dia o sono lhe custou a vir,

    estava ainda exausta da ltima viagem de negcios.

    Difcil era continuar naquele esprito; contudo, sem

    nenhum representante que lhe resolvesse a vida

    que ora se encaminhava, era a nica com quem

    poderia contar sempre: foi uma promessa que fizera

    perante seu Senhor. Teve, ento, que desprender-

    se daquela reflexo preguiosa para verificar o

    estrondo. E logo outro pde ouvir. E depois outro

    mais cauteloso. Acendeu o candelabro, fitou-se no

    espelho, suspirou, e, de pisar leve, saiu do quarto

  • 4

    rumo ao corredor a sua esquerda que dava para o

    hall frontal de onde os barulhos surgiram.

    Corajosamente inspecionou cada canto e porta.

    E quando o medo parecia comear a lhe

    consumir pela terrvel falta de respostas, seguiu at

    ltimo cmodo da parte baixa, e l presenciou, sem

    surpresa, um banquete de ratazanas e outros bichos

    em sobra farta de comida esquecida na mesa

    principal. Riu-se disso com prazeres na carne. E

    voltou-se, gargalhando de tudo, para seu descanso,

    sem deixar de mirar-se outra vez no cristal: Como

    sou porca! - Naquela cidadela longe do mundo,

    quem a conhecesse certamente a descreveria assim

    mesmo.

    Num desdm de conformismo, fechou os olhos

    e dormiu. Dormiu que sonhou. E no seu sonho, tudo

    era sempre igual: s, num palacete, entre ratos e

    comidas, tendo uma cama de respeito pra rir at o

    sono vir. Sem saber que um intruso, alm de bichos

    e sujeira, de fato, havia ali o tempo todo.

    - Bonito. Quem escreveu?

  • 5

    - No sei. Encontrei este manuscrito no

    campus. Estava dentro de um livro de

    hermenutica.

    Lourdes guardava o papel como relquia. E

    sempre que possvel o mostrava a algum. Na

    verdade, queria entender melhor aquele achado,

    que mais lhe parecia um aviso do alm. Talvez um,

    ou outro pudesse lhe aliviar a tenso provocada

    pelo assombro do conto. Um enigma existia ali que

    lhe perturbava, e mesmo que aquele amigo ou

    outro ignorassem tais prerrogativas, elas existiam

    latentes. Quem poderia estar ali junto com a

    Senhora em seu palacete sem que esta soubesse?

    Nestas reflexes foradas a que ela se submetia

    masoquisticamente, somente a hora fatdica podia

    lhe trazer brandura: Todos os dias uma moa de

    branco chegava gentil at Lourdes trazendo-lhe

    remdios. Um para as dores do corpo, outro para as

    dores da alma estas que ela bem conhecia em

    flashes rpidos, confusos, de uma noite, uma

    pessoa que acenava e sumia.

    Essas lembranas lhe vieram depois, dois ou

    trs anos mais tarde, sempre do mesmo jeito e na

  • 6

    mesma motivao: era s estar com algum que

    revirasse suas emoes secretas.

  • 7

    Captulo 2

    O escritor

    Eu queria escrever um romance que falasse

    de amor. Mas no seria aquele amor clich que a

    gente v noutros romances da onda. Na verdade,

    no seria necessariamente de amor, aquele de

    nosso costume. No sei bem explicar que tipo de

    amor seria. O que sei que duas pessoas se

    encontrariam num clube, partilhariam um chope

    numa mesa para dois, olhar-se-iam e, em seguida,

    dirigir-se-iam a um hotel pequeno na Augusta para

    uma transa de quinze a vinte minutos. Depois

    trocariam telefone e nunca mais se encontrariam.

    Talvez, passados dias ou anos de

    esquecimento, sem telefones ou qualquer contato,

    um andasse numa rua deserta, esquecida, cruzasse

    com algum que o desejasse abraar, ameaador, e

    de medo, fugisse sem olhar de quem, at t-lo

    distante e isto o fizesse lembrar de algo

    casualmente semelhante.

  • 8

    Outro, por sua vez, numa trilha de parque,

    sentasse pra descansar e iniciasse um longo papo

    com outros dois que j ali estavam, falando sobre o

    fracasso do Palmeiras no ltimo campeonato. De

    repente um assalto, dois mortos e uma bala alojada

    nas suas costas, deixando-o imobilizado tronco

    abaixo. No haveriam pistas. O Notcias Populares

    traria na capa uma manchete vermelha do ocorrido.

    Renato iria ler e como qualquer um de ns,

    lamentaria a banalidade de tudo aquilo a cada dia.

    Violncia, sangue, sensacionalismo e um suspeito

    que deveras conhecia de algum lugar...

    Guardaria o jornal, receberia uma ligao na

    qual seria informado de uma nova proposta de

    emprego atravs de um amigo. Aquele ms poderia

    ter sido a poca que mais enviara currculos numa

    tentativa desesperada de mudar de emprego:

    - No d mais trabalhar em banco! Pagam

    pouco e exigem demais! ... e acabaria ficando ali

    por mais dois anos at receber um cliente especial:

    - Quanto a taxa de manuteno do banco?

    - 0,2 por cento. - ... e um olhar mais profundo,

    talvez de pena pela cadeira de rodas do cliente, to

    novo!

  • 9

    - Nos conhecemos?

    - Tambm tive esta impresso... Pode assinar

    aqui, por favor?

    - Aqui?

    - .

    - Em quanto tempo liberado?

    - 24 ou 48 horas.

    - Obrigado, ento!

    - Obrigado digo eu!

    Ao tornar de sua distante divagao pelo toque

    gentil da secretria que lhe trazia caf, o escritor

    Allendes decidiu no mais insistir naquele projeto.

    Eram duas e quarenta do dia de seu aniversrio, um

    dia trs de julho, e mesmo naquela data to

    significativa, nem ele e nem a moa conseguiram

    descansar de modo favorvel. Ele tinha dor-de-

    cabea, ela precisava recolher os papeis amassados

    que cobriam o piso do gabinete improvisado. E l

    pelas dez da manh correriam para o aeroporto em

    viagem a um congresso de jornalistas na Rssia.

    No avio, mente a mil por hora, numa

    ansiedade ensurdecedora, Allendes maquinava

    planos rabiscando cada pgina da agenda, enquanto

    Ana tentava recuperar o sono perdido do dia

  • 10

    anterior. Aquele seria seu melhor presente de

    aniversrio, para o qual se preparara todo aquele

    semestre. No entanto, seria corrido como todos os

    outros dias, com um agravante: chegariam no fim

    da vspera, sem tempo para turismo. Fechou tudo

    na pasta que trazia sobre as pernas e se ps a olhar

    a companheira de viagem sua esquerda, que

    naquele momento pegara no sono como que

    dopada. Tinha pena de seu esforo, merecia ser

    recompensada. E nesse pensamento altrusta,

    pareceu dormir por vrios minutos at ser chamado

    por ela outra vez, agora num tom levemente

    suspeito:

    - Pedro, os documentos...!

    - Os documentos...? enterrompe-lhe a fala

    no diga que... no acredito...! - Estavam num

    envelope azul timbrado da agncia!...

    - No, no! Desculpe: esto aqui comigo

    disse a moa aliviada. Era comum esquecerem as

    coisas naquela rotina estressante que levavam. Ele,

    recm-separado alm de recm-desassociado do

    jornal que ajudara a fundar e que fizera parte de

    suas prioridades nos ltimos quinze anos, tinha

    motivos pra ter aquela cabea passvel das piores

  • 11

    proezas do esquecimento. Ela, recm-contratada,

    tentava no vacilar no ofcio, reconhecendo tambm

    suas limitaes e as dificuldades a que fora

    submetida.

    Depois de uma escala em Lisboa, o voo seguiu

    direto para a capital russa, onde permaneceriam por

    uma semana a participarem de uma programao

    dedicada a jornalistas do mundo todo, que inclua

    assembleia com o presidente Putin, de fundamental

    importncia para os novos rumos profissionais de

    Pedro. A viagem fora encomendada por um

    importante editor e financiada por uma companhia

    parceira, de propriedade um grande amigo do

    escritor.

  • 12

    Captulo 3

    A terra estrangeira

    Ao pisar em solo russo, um frio de matar.

    Dirigiram-se ao hotel contratado e l ficaram at a

    hora do compromisso.

    Pedro Allendes era um poliglota muito

    admirado: falava russo, mandarm, hindi, alm de

    italiano, francs e ingls. Esta habilidade lhe abrira

    as portas para a vida pblica como correspondente

    internacional num grande jornal logo que saiu da

    faculdade. Desde ento, no parou mais. Foram

    anos entre grandes empresas jornalsticas, at se

    casar e decidir montar sua prpria empresa. Foi um

    colega de profisso que o instigara. Ento,

    montaram o Dirio Paulistano, que durante anos foi

    um dos cinco mais importantes da metrpolis, sob

    os esforos, inicialmente, dele e de Igncio, e

    depois, de outros trs scios, que somaram

    recursos para lhe ampliar o alcance. Mas nos

    ltimos anos uma crise ocasionada por interesses

  • 13

    opostos causaram sua sada da empresa que criara.

    Tal crise resultou tambm na sua separao da

    mulher com quem fora casado por quase uma

    dcada e sem filhos. Allendes, portanto, no

    titubeava nas propostas de viagem profissional,

    ainda mais naquele momento em que tinha que

    recomear sua carreira. Alm do mais, no

    precisaria preocupar-se com quem deixava em

    casa, nem mesmo queria aquele temor outra vez.

    No congresso, muita gente, flashes, confuso.

    O relgio marcava cinco da tarde e nem sinal de

    Putin, a estrela da festa. Uma entrevista se iniciava

    num campus com um congressista, outra se findava

    na entrada com um magnata, e debates e mais

    debates corriam por espaos do luxuoso hotel. Uma

    crise aportava-se em territrio russo que ameava

    guerra civil. Allendes dedicara-se a uma dessas

    atividades at decidir, de exausto, voltar pro hotel

    da pernoite com Ana. Quando, ento, na sada, foi

    puxado pelo brao por algum. Era um moo jovem

    com um envelope nas mos para lhe entregar. Mas

    o que? Por que? De quem? O jovem no soube

    explicar, mas pareceu a Pedro que algum o

    encomendou aquela ao. Ana pediu para verificar o

  • 14

    envelope, mas o escritor preferiu faz-lo com

    reserva.

    ENQUANTO RELUTO AO VENTO EM SILNCIO

    RENASCE O SONHO SEDENTO RUDE... TRIUNFO

    INDIRETO, INCOMPLETO... TRISTEZA SERVIDA

    MESA COM CALDAS DE DIO... RASKLNIKOV F.

    D.

    Antes mesmo que lesse o contedo do bilhete

    datilografado, Pedro Allendes atentou para a

    assinatura. Quem dentre aqueles milhares de

    homens socialmente bem vestidos seria aquele cujo

    nome homenagearia o famoso personagem de

    Crime e Castigo? Tentou em vo reencontrar o

    jovem entregador de relance, mas ao sinal do

    taxista, foi-se ao hotel. E l, durante toda a noite,

    leu e releu o suposto verso, pois no lembrava de

    tal citao na referida obra. E aquele nome: seria

    prprio ou mera homenagem, visto que a sigla

    remetia ao ortnimo do criador?

    Um gafanhoto saltava no vitr embassado do

    quarto. Na cabea de Pedro parecia ter muitos

    deles, saltando bestiais, misturados a papeis e

    baticuns grficos. Aquela noite no a ser boa,

    pensava. Ento o interfone tocou:

  • 15

    - Sr. Allendes, temos uma encomenda

    destinada a voc aqui na recepo.

    - Encomenda..? Sim! C-claro! Deso a logo.

    E ento, foi receber a tal encomenda. No era

    to formal assim: um envelope com fotos e pginas

    de jornais recortadas endereadas a ele e sem

    remetente. Ana assustou-se com a correspondncia.

    Allendes apenas fuava querendo entender melhor.

    As fotos, a pouco reveladas, eram suas, na coletiva

    da manh; e os recortes eram de matrias

    fresquinhas do evento. Ana pareceu se interessar

    pelo assunto. Despediu-se para sua acomodao

    dizendo-se ir ao banho, mas deviou-se do caminho

    e desceu o piso at o elevador rumo recepo.

    Allendes pde perceber sua deciso, mas

    permaneceu neutro, apostando alguma novidade

    por parte da secretria.

    Antes que abrisse a boca, Ana foi interropida

    por uma mulher idosa que estava no salo de

    acesso, a qual lhe pediu segredo sobre o que iria lhe

    falar.

    Ao retornar, Allendes dormia. Agora era ela que

    no conseguia entender aquela determinao.

  • 16

  • 17

    Captulo 4

    Um crime

    No penltimo dia daquela viagem capital

    russa, Allendes acordou exaurido. O caf estava

    posto, o jornal do dia estava na mesa e junto com

    ele um bilhete de Ana:

    Sr. Allendes, desculpa pelo modo, mas tive

    que sair rpido para resolver uma questo. Ao

    voltar lhe explicarei melhor. Em meia hora estarei

    de volta. Fique tranquilo.

    O prximo evento seria dali a uma hora e meia

    no Salo da Repblica na Rua F do centro de

    Moscou. Enquanto arrumava-se prequioso num frio

    de quatro graus, passava uma a uma as fotos que

    lhe foram enviadas. No sabia se eram cortesia, j

    que aqueles hoteis tinham sempre um quitute pra

    agradar seus clientes. E como tratava-se de terreno

    russo... No so um povo adepto de formalismos ou

    gracejos, pensava.

  • 18

    Passadas as horas previstas, comeou a

    preocupar-se com a demora de Ana. Ento usou o

    interfone para informar-se sobre a sada de sua

    acompanhante:

    - De fato, ela comunicou sua sada, mas foi

    sozinha. disse uma voz jovem da recepo do

    prdio

    - Estranho. Ok. Pea-me um txi em quarenta

    minutos, por favor.

    Nenhum telefonema da assistente Ana, nem

    qualquer notcia na recepo. Ento, o txi chegou e

    esperou. Quando foi comunicado outra vez da

    espera impaciente do servidor, Pedro, que fumava

    num canto do living com uma xcara na outra mo

    do terceiro caf, gelou. Ele tinha uma pssima

    sensao de perda. Desculpou-se propondo pagar a

    taxa do servio dispensado e dirigiu-se at a

    dependncia da moa a fim de encontrar qualquer

    evidncia de seu real destino. L, mexeu na agenda

    sobre a escrivaninha, folheou alguns livros na

    mesinha de cabeceira. Depois foi no banheiro, fuou

    o lixo. Tudo estava impecvel. Ento pensou em

    buscar indcios nas suas prprias coisas.

  • 19

    Tomou novamente nas mos o bilhete recebido

    no congresso. E depois tomou o bilhete deixado por

    Ana. Finalmente teve coragem de descer para

    conversar pessoalmente sobre aquela situao. Com

    o elevador travado, desceu trs pisos pelas escadas

    at o salo de entrada e l foi atendido pela mesma

    senhora que estivera horas antes com Ana.

    Chamavam-na Sra. Kirtsnv. Era uma funcionria

    antiga e respeitada no hotel. Diziam que por sua

    demasiada severidade, no tinha amigos nem

    gostava de t-los. Os colegas aturavam-na

    pacientes, pois sabiam que sua imposio era

    determinante na empregabilidade deles. Era quase

    dona daquele luxuoso ambiente destacado na Rua

    L, prximo Praa do Sol. Gostava de falar e muito.

    Antes que Allendes tentasse expor sua angstia, ela

    desatou a fazer recomendaes:

    - Evite sair nas ruas de Moscou na semana do

    Avivamento, pois h muitos malfeitores solta.

    Aquela moa que estava com voc saiu daqui com

    uma menina de Kuskvna que propagava os

    eventos do Avivamento e no apareceu. E levou

    consigo o carto do estacionamento de que agora

    necessitamos... Voc so ortodoxos, ou o que?

  • 20

    - Senhora, estou muito preocupado pela

    demora de Ana. Quem a moa com que ela saiu?

    Como se aproximaram?

    Kirtsnv no se deixava ouvir, e falava

    descompaadamente. Invocara-se pela indisciplina

    de Ana, e queria a todo custo o carto levado por

    ela.

    Depois daquele dificultoso dilogo, Pedro

    Allendes foi almoar. Perdera todos os caros

    compromissos do dia e tudo o que queria era saber

    o paradeiro da secretria. Queria ao menos uma

    ligao, uma notcia.

    A noite chegou e Pedro teve que insistir no

    assunto do sumio de Ana. Ligaram finalmente para

    a polcia. Em dez minutos um agente russo entrou

    no hotel procurando pelo escritor, que j havia se

    recolhido ao seu apartamento. Trazia consigo fotos

    pavorosas de um assassinato. Allendes teria que

    acompanh-lo para fazer reconhecimento no mdico

    legista.

    A notcia de que uma mulher com as

    caractersticas de Ana havia sido encontrada morta

    num ambiente soturno e distante dali dilacerou o

  • 21

    escritor. Aquilo no estaria acontecendo a ele, era

    um sonho do qual logo acordaria.

    Lutando contra seus pavores, Allendes foi

    quela atividade. Foram duas horas de depoimento,

    at poder encarar aquela torturante realidade: uma

    mulher fora violentada at a morte e jogada entre

    escombros de um prdio demolido h uma dcada,

    no muito longe dali. Mas a mulher era loira, tinha

    marcas naturais no brao esquerdo e outras

    caractersticas que contrastavam com as de Ana.

    Um alvio. No entanto, ainda havia um cruel

    desencontro.

    Allendes voltou ao hotel e tentou dormir.

    quela altura, Ana era procurada pela polcia, e

    j se podia ouvir relatos sobre seu sumio nas

    rdios locais. Enfatizavam com frieza russa as

    origens e descendncia da procurada.

    s duas da madrugada o interfone tocou para

    Allendes, que demorou a atender. Era um dos

    agentes da recepo anunciando a chegada da

    secretria.

  • 22

    Captulo 5

    Desconfiana

    Allendes recebeu Ana com alegria nos olhos.

    Eram muitas perguntas, as quais eram respondidas

    secamente, tendo em vista o aparente cansao da

    moa e o frio cortante que abraava cada metro

    quadrado do hotel.

    Fora convidada a participar de uma reunio

    com membros do Avivamento e, equivocada,

    deixara-se levar por eles at o local sem perceber

    que este ficava numa provncia h 140 quilmetros

    dali, razo porque ficara impossibilitada de se

    comunicar. O convite partira de um residente do

    hotel com o qual iniciara pequenos dilogos de

    corredor.

    O Avivamento a denominao de grupos de

    esquerda do governo russo que propaga campanhas

    e aes anti-governamentais. formado por

    intelectuais, professores, filsofos e estudante que o

    fazem secretamente a fim de evitarem desovas.

  • 23

    Mesmo correndo algum risco, Ana sentiu que

    poderia utilizar a experincia em algum trabalho

    futuro, j que ela tambm pretendia publicar algo

    do gnero. Mas desculpara-se pelo transtorno

    gerado e pela falta de jeito com aquela situao.

    Ainda teria que ir ao oficial justificar sua

    ausncia que gerou buscas policiais pela regio. No

    sabia o impacto que aquela histria poderia causar,

    se aquilo no a caracterizaria como arruaceira,

    terrorista, rebelde. Riram-se de sua histria e foram

    dormir de corao calmo.

    Pela manh, Allendes organizou-se muito cedo

    para o ltimo compromisso naquele pas. Mas no

    tirava da cabea a surpreendente aventura de que

    Ana participara. Passou a observ-la melhor a cada

    minuto daquele dia sempre com uma sensao de

    que tinha consigo uma mulher suspeitvel, qui

    perigosa. O que mais poderia esperar daquela moa

    calada que fora contratada h to pouco tempo para

    ajudar-lhe naquela misso na Rssia em seu mais

    novo projeto? No que poderia ter falhado quando

    decidiu optar por ela como nova contratada? O que

    mais precisaria saber sobre Ana?

  • 24

    Na mesa do caf, no elevador, no txi, em

    qualquer lugar, Allendes no conseguia parar de

    fantasiar aquelas coisas, sempre fazendo referncia

    a mulheres da literatura de Agatha Christie ou Poe,

    indo das bruxas da inquisio at Salom da Bblia.

    Ela tentava prosseguir nos relatos dos equvocos de

    sexta noite, falava de Ramn, de Korskv, de

    tantos nomes e cenrios que Allendes no

    conseguia fazer qualquer relao alm de

    questionar mentalmente a ndole da moa. Ele,

    ento, passou a buscar novos indcios de suas

    suspeitas, seja no olhar, no falar, e mesmo no

    vestir de Ana. No almoo, pareceu-lhe irrestvel

    criar novos caminhos na tentativa de desvend-la:

    - Ana, apelou voc no me disse que se

    interessava pela poltica russa.

    - Devo ter comentado sutilmente sem efeito...

    Mas um gosto sem pretenes profundas. S

    curiosidade mesmo.

    Allendes engoliu o caf queimando-se.

    - Voc foi notcia no rdio. Pensamos que

    estivesse morta.

  • 25

    - Eu sei. Tambm tive medo. Aqui as pessoas

    parecem inconsequentes. Mas no o so. Tudo

    acontece muito sensatamente.

    - Foi um grande risco. Voc saiu sem combinar

    nada comigo, no deixou pistas, ou as deixou

    confusas... Ficou ausente por mais de seis horas...!

    - Sinto muito pelos compromissos perdidos.

    Confesso que me perdi um pouco sim. Pensei que

    estivesse no controle.

    Essas ltimas palavras serviram como uma

    pea em um dos quebra-cabeas que Pedro Allendes

    ideologicamente montava. Ele mesmo olhava-se no

    reflexo do fum, questionava a prpria sanidade

    mental naquele instante por tais pensamentos e

    orava para que eles no lhe sucumbissem. Mas a

    moa tambm passou a nutrir desconfianas desde

    ento, e a partir dali a viagem de txi ao consulado

    teve ares de mata-mata silencioso.

  • 26

    Captulo 6

    Evaso

    preciso encontrar o caminho do mistrio,

    dizia ele, os amigos sorrindo. Sempre que dizia isso,

    fechava os olhos. Quando os abria notava as feies

    dos seus amigos transfiguradas. Aquilo abria-lhe a

    certeza de tudo, de repente. No havia caminho!

    Seus amigos continuavam sorrindo, pois sempre

    souberam disso, apenas ele se dava s utopias

    forjadas em sua alma ingnua. E ento, virou-se

    para a esquerda e caminhou dizendo que jamais

    fitaria feio alguma...

    - No gostei.

    - Por que?

    - No gostei!

    A cama de Lourdes estava feita, mas a vontade

    era de desmanchar tudo pela resposta ingrata

    recebida do irmo. Havia pensado em cada palavra

    para que delas recebesse seu aplauso. Era a quarta

  • 27

    reescrita. Ela tinha trezes anos e ele completava

    naquele dia dezessete.

    A menina crescera assim, esboando reflexes,

    poesias e outras impresses. Por esta atividade era

    tida por chata entre os da sua gerao. No corria,

    no danava, no agia como as outras meninas.

    Este jeito de ser lhe era incmodo, mas no podia

    fugir dele, afinal nascera e crescera assim. Tantas

    vezes fora insultada na escola por aquele

    comportamento. Mas seu pai s enxergava uma

    menina, pensava. Isto, mesmo quando completara

    dezoito anos. Por esta razo, quis sair logo de casa.

    Foi com Jonas, seu primo mais prximo, com quem

    ela conseguiu. Com seus quase vinte anos, ele sabia

    de sua inclinaes, e certamente era o nico que

    compreendia um pouco o esprito conturbado de

    Lourdes. Convenceu os tios a permitir que a moa o

    seguisse para cursar alemo no exterior.

    Morando em Genebra, onde iniciaram namoro e

    posteriormente se casaram, vieram a separar-se

    aps anos de convivncia, rompendo todas as

    relaes que tinham. Suas motivaes ela

    encaixotou-as e as depositou no fundo do oceano

    quando o cruzou na volta ao seu lugar.

  • 28

    Dali, uma nuvem de escurido, que no lhe era

    desconhecida, distanciou-lhe dos seus por quase

    uma dcada. E ento, acordou amarrada com soros

    numa cama de hospital. De onde nunca saiu

    definitivamente.

  • 29

    Captulo 7

    Volta pro aconchego

    A viagem de volta a So Paulo foi muito

    reconfortante para o escritor Allendes e sua

    assistente, e tudo o que queriam era descansar bem

    para a prxima reunio de negcios com os

    investidores do novo projeto. Ana iria pra sua casa

    em Itapevi, onde reveria seu saudoso co Adolfo,

    sobre o qual falara toda a viagem, o que deu a

    Pedro a certeza de que a moa de fato existia. A

    partir dali, falara de seu jardim, de flores, de ps de

    amora e de projetos corriqueiros. Enquanto ele

    sequer sabia se tinha uma casa, o que faria ao

    adentrar nela.

    - Qualquer coisa, me liga, Sr. Allendes!

    - Sim, ligarei. Aproveite o feriado. disse

    enquanto observava o esforo da moa com a

    bagagem de mo a tentar segurar o cabelo do

    vento.

  • 30

    Logo, o escritor tomou o seu txi a caminho da

    Vila Snia.

    No caminho, os costumeiros engarrafamentos.

    Desta vez, uma fila de muitos quilmetros da

    Avenida Rebouas at a Avenida Francisco Morato

    perturbava a todos que queriam chegar em casa

    naquele sbado chuvoso. Como opo para passar o

    tempo, Allendes tomou um dos livros que lhe foram

    presenteados por Ana. Tinha uma capa roxa com

    cones socialistas que ele apenas folheou e logo

    jogou do lado. Mal fizera isso e ouviu do motorista

    uma indagao:

    - O Senhor aquele do Dirio Paulistano?

    - Sim, sou.

    - O que aconteceu? verdade que o Senhor

    desviou dinheiro do grupo para financiar o Partido

    Socialista?

    - No desviei.

    - Desculpa, Senhor! Mas foi o que li no Notcias

    Populares quando houve o fim do seu jornal.

    - Esse jornal uma vergonha, tambm no vai

    resistir por muito tempo.

    - Verdade. muito sensionalista disse o

    rapaz, calando-se at chegar no destino. Allendes

  • 31

    tambm no tinha disposio para aquele tipo de

    conversa. Imagina: desviar dinheiro de sua prpria

    empresa! Que absurdo! Ria-se por dentro sem

    esboar qualquer expresso de confiana.

    Dispensou a ajuda do taxista e subiu levando a

    mala. Acabou esquecendo a bagagem de livros que

    trazia do lado e, em rpido ponderamento, desistiu

    de tentar reav-la.

    Retirou as correspondncias do box e foi

    cumprimentado pelo vigia do prdio.

    No apartamento, tudo estava do mesmo jeito.

    Pegou um pedao de queijo e encheu meia taa de

    vinho. E foi direto pro computador a prosseguir na

    digitao de um dos seus textos:

    ANTNIA - Se eu pudesse contar tudo de

    Antnia sem que isso a privasse da liberdade de ir e

    vir e de poder sonhar com as coisas mais femininas

    que esgotam o suspiro de mulheres como ela, eu

    certamente faria. O fato que em seus cinquenta

    anos ainda lhe vinha o sonho de um casamento

    simples que lhe desse algumas dcadas de

    felicidade, como fora o primeiro - bem, o primeiro

    no fora to feliz assim, num sentido mais amplo da

    palavra felicidade... tiveram filhos, eles cresceram e

  • 32

    tiveram seus prprios filhos... enfim, e uma

    exposio demasiada de tudo o que vivera poderia

    lhe abrir algumas feridas ou matar alguns sonhos, e

    eu prefiro que as cicatrizes sejam muito bem

    lacradas e percam sua forma com o tempo, e que os

    sonhos plantados vinguem...

    Foi justamente no tempo ureo que Antnia

    mais plantou. Literalmente. O trabalho na roa,

    quando muito menina, lhe renderam calos e

    msculo num corpo franzino e plido. Tambm

    pescava, caava e brincava. Era criana.

    - Me, posso ver seus peitos?

    - No! Deixa de salincia!

    Os cabelos brilhavam duros, na lagoa, na

    procura de peixes pro almoo. Eram trs naquela

    tentativa: a me, que escondia as vergonhas

    molhadas de sua curiosidade pueril, e a irm caula

    Francisca. O pai, sempre com um problema de

    garganta razo porque no entrava na lagoa na

    luz do dia - limpava os peixes lisos trazidos pelas

    pescadoras. A me armava uma rede de cansao. E

    de repente, as pequenas pescadoras tambm

    viravam cozinheiras.

  • 33

    Peixe era man. Graas a Deus eles davam em

    certa abundncia. Ou porque ningum os queria, ou

    porque o milagre de Jesus ocorria por ali. Quando

    no era peixe, era pre, que, farejados pela

    Princesa, eram pegos e louvados como prmio.

    Mas almoo bom mesmo era quando iam na

    casa da av. L tinham galinha, cuscuz, batata com

    leite. Ficava h umas trs lguas a p. No caminho

    rezavam por uma carona na estrada carroal.

    Um dia estava l a tia Maura. Ela morava num

    lugarejo por ali havia pouco tempo. E desde ento

    visitava a parentela da redondeza com frequncia.

    Era domingo. Antnia tinha dez anos.

    - T grande! dizia pra aproximar bora

    morar mais eu?

    Antnia se recolhia, mas a ideia lhe parecia

    boa. Comer e viver bem, numa casa de gente

    empregada sempre lhe parecia algo fascinante.

    Quando a tia ia embora, ficava s na vontade.

    - D a bena a teu tio! dizia Maura olhando

    pro recm-marido, um homem magro que, diziam,

    tinha atestado de louco.

    - Bena.

  • 34

    Na casinha humilde que moravam, tinham

    muito pouco, mas era um porto seguro. Corriam no

    terreiro que era aguado de vez em quando pra

    baixar a poeira da tarde. noite, contavam estrelas

    pro sono vir. s vezes dormiam ali mesmo e o pai

    doente as carregava pras redes friinhas armadas no

    corredor.

    Dia seguinte, pela manh, a rotina dos peixes

    ou dos pres. tarde iam pra escola rural. Era

    assim todos os dias e anos.

    O sonho de Francisca era completar doze anos.

    Doze era uma palavra muito bonita em sua boca.

    Significava virar moa, namorar, usar suti. Feito

    isso, sentia-se realizada. Para Antonia, no foi to

    assim, exceto que outra vez a tia Maura com seu

    esposo voltava a visit-los e desta vez a menina

    estava disposta a aceitar o convite. Com cartorze

    anos aquele lugar perdera sua importncia. Queria

    conhecer outras bandas, outras pessoas.

    No quintal, depois do almoo, enquanto os pais

    dormiam, Antonia juntou-se tia que, sentada no

    cho de terra sob a sombra de um velho juazeiro,

    acariciava a nuca do marido escorado em seu

    ventre.

  • 35

    De repente a ateno do casal voltou-se para

    Antonia.

    Refizeram o convite de tantas vezes e contaram

    as vantagens do lugar. Entusiasmada, a menina se

    imaginava cuidando de uma casa maior, dos filhos

    da tia ela esperava o primeiro nen e poderia

    querer ter outros depois. Pensava nas fazendas que

    ganharia pra confeccionar suas roupinhas como

    aprendera da av. Nem pode perceber a mo que

    lhe apalpava as pernas, depois o busto. Era bonita,

    poderia ter o que quisesse.

    Ento foi desperta daquela divagao. A voz

    que ditava era Maura, mas a mo que lhe tocava

    era Chico. E logo, tudo lhe fez sentido. Mas o

    corao de menina lhe palpitava numa excitao

    movida pela novidade assistida. Nunca sentira

    aquilo antes. Era um alvoroo novo, inexplicvel.

    No fim da tarde, todos se despediam, pois o

    caminho noite no era bom. Antonia pegou uma

    sacolinha de pano e ps nela suas coisinhas. O pai

    sara sem rastro. A me tinha pena, mas imaginava

    que seria melhor para a menina, j que era perto da

    cidade e poderia comear a trabalhar. Francisca no

  • 36

    esboou nada. Estava confusa com o pouco que

    presenciara at ali.

  • 37

    Captulo 8

    O precipcio

    Quarta-feira. O salo de reunies da Emritos

    na Avenida Paulista estava lotado. Allendes

    assustou-se quando viu cmeras e reprteres

    apontando para ele. Queriam saber sobre suas

    expectativas sobre os novos rumos do grupo, se era

    majoritrio e, outra vez, como faria para compensar

    o peso do escndalo de 1996. O assunto

    permanecera enterrado at cogitar um revival, j

    que o Dirio Paulistano fora vendido para o grupo

    grfico Emritos, que queria Allendes no casting.

    Estes explicou aos economistas que um novo

    projeto exigiria uma nova perspectiva e que mais de

    uma cabea pensante estariam mapeando a nova

    empreitada considerando todos os possveis riscos.

    Ento, depois da coletiva promocional, os

    envolvidos fecharam-se no salo enquanto a

    imprensa se dissolvia na multido fora da sala do

    edifcio.

  • 38

    L dentro, antes de todo mundo, estava Ana.

    Vestia um sobretudo marrom comprado s pressas

    na viagem Rssia. vista de Allendes, estava

    linda. Olhos bem delineados, coque alto. Mas tinha

    algo estranho no olhar.

    Depois de toda a discusso sobre o formato do

    jornal, filosofia, partido, bandeira, custos, ganhos

    etc., partiram para um coffee-break numa saleta ao

    lado. Allendes no resistiu em perguntar se estava

    bem, se havia algum problema. Ela dizia que no

    havia nada de mais, mas que voltara a ter uns

    problemas gastrointestinais que tivera na

    adolescncia. Com seus trinta e dois anos, Ana, que

    a priori lhe aparentara uma solteirona pouco

    atraente, agora despertava-lhe algo superior. Mas

    ele jurava dentro de si no querer demonstrar

    qualquer interesse e nem mesmo aliment-los.

    Trabalhavam juntos h pouco meses, e ela ainda

    estava em processo experimental; precisava

    conhec-la muito bem como profissional, depois

    como pessoa antes de tom-la como amiga.

    Segundo lhe constava, ela tambm sara de um

    casamento conturbado e tinha uma filha

    adolescente que dependia daquele suporte

  • 39

    financeiro. Tinha que manter a distncia e o

    respeito antes de tudo.

    Enquanto os direitores voltavam pros seus

    lugares, Ana distanciou-se para tomar um de seus

    remdios. Allendes assistia com discrio.

    O cu em So Paulo comeava a mostrar sua

    colorao real quando veio a noite roubar-lhe o

    encanto.

    Um telefonema fez Allendes voltar de sua

    distante contemplao pela janela:

    - Com licena, senhores! ausentou-se rpido

    para atender a ligao. Era um nmero estranho.

    Todos olharam desapontados para o jornalista, visto

    que chegavam num momento crtico daquela

    plenria. Tiveram que fazer uma pausa.

    Ana, agora estabilizada sob efeito de remdio,

    saiu como para o toillete, tomando o rumo da

    escadaria onde Allendes falava ao telefone.

    Ouvira palavras ternas, em baixo tom e depois

    alguns resmungos.

    Quando a conversa pareceu em finalizao, Ana

    decididamente adentrou no toillete e trancou-se por

    vrios minutos.

  • 40

    - Desculpem, senhores! Voltemos pauta

    disse Allendes temeroso aos companheiros que ali

    j se encontravam em torno do mediador, e

    silenciaram os assuntos aleatrios para

    reconduzirem a reunio. Augusto, o mediador,

    falava dos desafios que a nova empreitada

    enfrentaria diante da concorrncia acirrada de

    empresas tradicionais na capital paulistana, de onde

    teriam que arrancar uma grande fatia dos negcios

    se quisessem se consolidar.

    Allendes agora ouvia a tudo com muito

    interesse. Fez anotaes, gesticulou apoio,

    reclamou. Pediu a palavra para falar sobre seus

    projetos. Depois mencionou a viagem. Todas as

    vezes foi interrompido e lembrado de que deveria

    guardar aquelas elocubraes para um momento

    oportuno, visto que ali se discutia a parte

    administrativa do novo Dirio Paulistano, no qual

    era meramente um empregado, que abrira mo de

    seus poderes na tentativa de livrar-se das

    acusaes que quase lhe privaram da liberdade

  • 41

    Captulo 9

    O best-seller

    Era uma manh fria de dezembro. Lourdes,

    com dez anos, sara para um camping escolar.

    Trazia na sacola seus cadernos de versos, seus

    lbuns de fotografia e um livro muito especial

    dedicado pela me ainda em vida. Recebera-o aos

    sete anos, logo que aprendera a ler sem grandes

    pausas. Fora uma promessa que a me lhe fizera.

    Ela morrera de um cncer, muito jovem, deixando

    seus trs filhos, sendo Lourdes a menor. O pai

    mantivera um luto de oito meses at encontrar uma

    substituta para ela. Todos os filhos absorveram a

    estranha, menos Lourdes. Ento, para uma ocasio

    como aquela, a menina no deixava de reunir o que

    pensava ela ter de mais valor.

    Na hora do almoo, uma pequena confuso.

    Assim que a menina ps-se em fila para ser servida,

    deixou cair o bandeijo vazio, o qual fizera um

    grande estrondo na cantina improvisada no stio,

    excitando todas as outras crianas, sobretudo um

  • 42

    garoto repetente da quarta srie a quem ela temia

    muito pelo comportamento agressivo e hostil.

    Ele, ento, passou a ridiculariz-la, puxando a

    maioria em seu apoio.

    No satisfeito com o que havia produzido, o

    moleque tomou da menina a bolsa na qual ela

    carregava seu inestimvel tesouro, em seguida,

    tirando seus pertences de dentro, jogou-os na parte

    profunda do lago.

    Lourdes caiu em pranto eterno. Mesmo

    suspendendo-se o garoto dali como punio pelo

    atentado, e tendo os tutores resgatado parte dos

    objetos encharcados, Lourdes nunca mais voltou a

    sorrir, sobretudo pelo livrinho ganhado

    carinhosamente da me falecida, que, selado nas

    pginas pela crueza da gua, no pode mais ser lido

    por ela.

    Ento, ela o guardou assim mesmo consigo por

    anos. Mas nunca quis voltar escola alguma. Nem

    respondia a qualquer estmulo desde ento. Por

    conta disso, passou a tomar dzias de

    medicamentos em um lar psiquitrico, para onde

    fora conduzida a pedido dos pais.

  • 43

    Saiu dali e voltou vrias vezes. A primeira volta

    foi quando atentara contra a prpria vida, depois,

    quando atentara contra a de Helena, sua madrasta.

    Uma vez, na Chcara, conheceu um rapaz com

    quem se afeioou. Comiam juntos, passeavam,

    conversavam. Diziam que um belo casal estava

    formado. Ento Lourdes teve seu primeiro beijo.

    Ao saber de tais novidades, o pai providenciara

    para ela o retorno.

    Agora seria diferente. Com dezoito anos,

    Lourdes deveria encarar a realidade e viver as

    consequncias de suas escolhas. Talvez novos ares

    ajudassem-na a enxergar seu potncial oculto.

    Lourdes poderia agora escrever sua prpria histria

    com o final que desejasse.

    Aquelas palavras realmente surtiram efeito em

    Lourdes. Assim que pode, viajou com o primo Jonas

    para estudar e nunca mais se soube de nenhum

    retrocesso.

    Escrevia cartas e mandava cartes incrveis de

    todos os lugares por onde andava.

    Montaram uma casa com um belo jardim em

    Genebra e l, se soube, passaram a produzir

    objetos de decorao que vendiam para colegas e,

  • 44

    depois, com o aumento da procura, passaram a

    fornecer para uma loja de departamento.

    - ENQUANTO RELUTO AO VENTO EM SILNCIO

    RENASCE O SONHO SEDENTO RUDE: TRIUNFO

    INDIRETO INCOMPLETO TRISTEZA SERVIDA

    MESA COM CALDAS DE DIO... Legal. Esse

    tambm era da tia?

    - do Versos perversos, que ela publicou

    antes de morrer.

    - Eu tinha doze quando ela se foi.

    - Eu sei concordou Lourdes cabisbaixa. Ao ver

    o rosto da companheira transformar-se com aquele

    tipo de recordao, Jonas mudava de assunto e

    provocava nova excitao:

    - Olha isto! Estamos sendo convidados para

    expor nossas peas no Espao Le Mousse! Vamos

    comemorar?

    Dali, pegaram a bolsa e foram um pub na Rua

    L tomar vodka e comer canaps de salmo.

  • 45

    Captulo 10

    O revival

    A campainha tocou cedo e inesperadamente

    para o escritor Allendes, que pretendia dormir um

    pouco mais naquele domingo. Ao olhar pelo visor,

    outra surpresa: o motorista do txi tomado h

    meses retornara com um pacote.

    - So seus livros, Senhor! H tempos que penso

    em devolv-los, mas nunca tinha a chance de vir

    por esta regio. disse-lhe o homem assim que

    Allendes abriu a porta.

    - Trouxe ainda, a pedido do rapaz da portaria,

    um telegrama. - entregou o motorista, o qual

    continuou falando sobre a facilidade de encontrar

    seu endereo, sobre a indiscrio na ltima vez,

    sobre o modo costumaz das pessoas de esquecerem

    coisas em seu carro e o cuidado que tem de buscar

    a pessoa para devolv-lo, etc. Allendes no ouvia

    nada, s tentava entender aquele telegrama em

    plena dcada de noventa, enviado a ele por sua ex-

  • 46

    esposa a fim de convid-lo festividade de ano

    novo da nova famlia dela. Piada?

    Aps as denncias de m administrao que

    culminaram na expulso de Allendes da empresa

    jornalstica que fundara, Susana pediu o divrcio,

    pois no suportara o impacto daquele escndalo na

    sua vida particular. Allendes sara a uma viagem de

    negcios e quando voltou ela o havia expulsado de

    sua prpria casa com a desculpa de que descobrira

    tambm um suposto romance dele com uma

    secretria. Assim, Allendes assumiu a separao e

    mudou do Morumbi para a Vila Snia.

    Susana ficou com tudo o que tinham e nunca

    mais haviam se falado amigavelmente, exceto em

    ocasies mpares inevitveis, como os eventos

    familiares.

    Mas, passado alguns anos, Susana casou-se

    com um contador e teve um filho, que depois

    passou a ser usado como emblema de sua duvidosa

    masculinidade por aqueles que o conheciam

    distncia.

    Allendes no ligava para calnias e perdoava

    sempre.

  • 47

    Buscou entre amigos em comum um telefone

    para contato e ligou para Susana.

    - Al! era ela do outro lado da linha

    - Susana! Recebi hoje um telegrama em que

    me convidava pro reveilln na sua casa...

    - Sim, gostaria que voc viesse. Soube que tem

    amargado uma solido terrvel por a, ento falei

    com o Marcelo e ele no viu nenhum problema nisso

    e at me aconselhou a insistir no convite.

    - Bom, vou pela gentileza do convite. Agradea

    ao Marcelo por isso. Posso levar uma

    acompanhante?

    - T namorando?

    - No, minha nova secretria.

    - Hahaha... Sei. Pode trazer sim. Tchau!

    - Tchau.

    Aquele riso maldoso de Susana sempre o

    intrigou. Parecia mesmo que ela criara um jogo a

    fim de se beneficiar e quisera fazer dele a pea-

    chave. Sem problema, ele no ligava. Reconstrura

    sua vida outra vez. Voltara a viajar. Realizara o

    sonho de ir Russia. Lanara um novo jornal. Mas

    ainda no queria um novo casamento. Era cedo pra

    jogar tudo pro alto por causa de sentimentalismos.

  • 48

    Ainda assim, ousara ao falar de acompanhante.

    Nem sabia se podia contar com a companhia de

    Ana.

    Nesses pensamentos, Allendes ligou o

    computador e comeou a escrever.

    (Esta obra est incompleta procura de

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