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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP INSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES - MESTRADO A ARTE POPULAR NA INSTITUIÇÃO CULTURAL: desafios postos à mediação EDSON MARTINS MORAES São Paulo 2007

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESPINSTITUTO DE ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES - MESTRADO

A ARTE POPULAR NA INSTITUIÇÃO CULTURAL:

desafios postos à mediação

EDSON MARTINS MORAES

São Paulo 2007

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESPINSTITUTO DE ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES - MESTRADO

A ARTE POPULAR NA INSTITUIÇÃO CULTURAL:

desafios postos à mediação

EDSON MARTINS MORAES

Dissertação apresentada ao

Instituto de Artes da Universidade

Estadual Paulista, para a

obtenção do título de Mestre em

Artes Visuais. Orientação: Prof

Doutor João Cardoso Palma Filho.

São Paulo 2007

MORAES,Edson Martins A arte popular na instituição cultural: desafios postos á mediação / /Edson Martins Moraes. São Paulo, 2007.

174p.

Dissertação apresentada no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista, para a obtenção do Título de Mestre em Artes Visuais Orientador: Professor Doutor João Cardoso Palma Filho

1. Mediações 2. Culturas Populares 3.Pós-modernidade 4. Instituições culturais 5. Culturas Híbridas

AGRADECIMENTOS

Ao Professor Doutor João Cardoso Palma Filho, meu agradecimento pelo apoio, orientação e autonomia.

Ao Professor Doutor Alberto Ikeda, pela disponibilidade em me ouvir, pelo incentivo e contribuição para a minha formação profissional.

Ao amigo Professor Doutor Paulo Sergio Silva, pelas criticas e sugestões.

Agradeço à Selma Maria, Irimar dos Reis e Valdeck de Garanhuns, artistas que acreditam na arte e na educação como projeto de vida.

Aos amigos do SESC Pinheiros agradeço por dividirem comigo angústias e dúvidas conceituais.

Sou grato aos meus queridos Artur, Mayra e Sumaya por terem entendido as minhas falhas e ausências decorrentes dessa pesquisa.

SUMÁRIO

RESUMO

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO 1

DOS TERRITÓRIOS HIBRIDOS À ARTE POPULAR 13

1.1 Culturas híbridas 14

1.2 Culturas populares 20

CAPÍTULO 2

PÓS-MODERNIDADE E O CENÁRIO URBANO 30

2.1 A pós-modernidade 30

2..2 A cidade de São Paulo 35

CAPÍTULO 3

A GÊNESE DA PESQUISA: relatos de experiências

profissionais 47

3.1 Cultura popular na praça 48

3.1.1 Análise 49

3.2 Tia Nenê 50

3.3 Sem praça, sem fogueira, sem luar 52

3.4 Análise 56

CAPÍTULO 4

O ENCONTRO COM ARTISTAS MEDIADORES 59

4.1 Pesquisa qualitativa 60

4.2 Artistas mediadores 61

4.2.1 Selma Maria 62

4.2.2 Irimar dos Reis 64

4.2.3 Valdeck de Garanhuns 65

4.3 Objetivo e problematização 67

4.4 Registros 67

4.5 Roteiro de Entrevista 68

CAPÍTULO 5

COMPARTILHANDO CONHECIMENTOS: o artista mediador 70

5.1 Culturas populares na educação 70

5.2 O artista mediador e o mundo ao redor 82

5.3 A mútua aceitação entre o artista mediador e as

instituições culturais 102

5.4 O artista mediador e o processo pedagógico 119

CONSIDERAÇÕES FINAIS 126

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 131

ANEXO: Entrevistas realizadas com os artistas

mediadores 138

RESUMO

MORAES, Edson Martins. A arte popular na instituição cultural: desafios postos à

mediação. São Paulo, 2002. (Dissertação de Mestrado – Instituto de Artes da

Universidade Estadual Paulista).

Vivemos um momento histórico em constante transformação, marcado por

avanços tecnológicos, excesso de informações, consumo desenfreado e individualismo.

Nas grandes cidades, a paisagem pós-moderna torna-se evidente com o crescimento

desordenado; as características de produção, distribuição e consumo de bens e

serviços; os processos híbridos; a perda de identidades e a ação dos meios de

comunicação de massa, que descarregam, sobre os indivíduos, uma infinidade de

simulacros. As instituições culturais da cidade de São Paulo estão inseridas nesse

contexto, cabendo-lhes o desafio de idealizar e realizar projetos de ação cultural

capazes de contribuir com o desenvolvimento do ser humano e a vida em sociedade.

Nesses projetos incluem-se aqueles relacionados à arte popular. Esta pesquisa coloca

em discussão o significado da mediação da arte popular em instituições culturais nas

grandes cidades, considerando as características da pós-modernidade, as

especificidades das manifestações artísticas e do espaço institucional, o perfil do

público e os modos de agir e pensar de artistas que também atuam como mediadores,

aqui denominados artistas mediadores. Tendo como um dos objetivos investigar como

o artista mediador concebe o processo de mediação da arte popular no espaço

institucionalizado, no atual momento histórico, foram convidados a participar da

pesquisa, concedendo entrevistas, três artistas que trabalham com a arte popular:

Selma Maria, Irimar dos Reis e Valdeck de Garanhuns. O conceito de mediação

desenvolvido ao longo do estudo partiu das reflexões suscitadas pelos depoimentos

dos três artistas e de contribuições teóricas oferecidas por muitos autores, sendo aqui

compreendido como um processo essencialmente pedagógico, por meio do qual podem

ser evidenciados e valorizados elementos pertinentes ao universo da cultura popular,

presentes no cotidiano dos indivíduos e grupos sociais.

Palavras-Chave: Mediações – Culturas Populares – Pós-modernidade – Instituições culturais – Culturas Híbridas

ABSTRACT

MORAES, Edson Martins. Popular art in the cultural institution: challenges

presented to mediation. São Paulo, 2002. (Dissertation: Master of Arts - Arts Institute at

Universidade Estadual Paulista).

The ever changing historical moment in which we live nowadays is marked by

technological advance, information excess, unrestrained consumption and individuality. In big

cities, the postmodern scenario reveals itself through unregulated and unplanned growth;

features of production, distribution and consumption of goods and services; hybrid processes;

the loss of identities as well as the influence of mass media that overload the individuals with a

vast infinitude of simulacra. The challenge for the cultural institutions in the city of São Paulo,

which are inserted into this context, consists of idealizing and setting up cultural action projects

that will be able to contribute to the development of human beings and their lives in society. As a

matter of fact, those projects related to popular art are included in such initiatives. The present

research discusses the meaning of popular art mediation in big cities’ cultural institutions, taking

into account the features of postmodernism, the particularities of both artistic manifestations and

the institutional space, public’s profile as well as the artists’ acting and reasoning modes who

also act as mediators and will thus be named artists-mediators from now on. Since one of our

aims consists of investigating how the artist-mediator views popular art mediation processes in

the institutionalized space, at the present historical moment, Selma Maria, Irimar dos Reis and

Valdeck de Garanhuns, three artists who work with popular art, were invited to take part into this

research via interviews. Not only did the concept of mediation developed throughout this study

derive from reflections aroused by the statements made by such artists, but it also derived from

theoretical contributions offered by many authors. Therefore, as far as this project is concerned,

mediation is understood as an essencially pedagogical process in which both individual and

social everyday life elements that belong to the popular culture universe can not only be made

clear, but also valued.

Key words: mediation – popular culture – postmodern – cultural institutions – hybrid

culture.

INTRODUÇÃO

Na década de 90, o SESC1 Pompéia realizou grandes eventos em

comemoração ao Ciclo Joanino. Para compor a programação, foram trazidas muitas

manifestações da cultura popular do interior e do litoral do Estado de São Paulo.

No ano de 1996, o projeto para o Ciclo Joanino foi ousado. Com o nome de

“São João do Brasil: festa da cultura popular”2, durante três finais de semana, aquela

unidade do SESC acolheu artistas populares de todas as regiões do país,

transformando as suas instalações num cenário onde homens e mulheres cantavam,

dançavam e trabalhavam em ateliês ao ar livre.

Lembro-me de um pantaneiro que segurava em suas mãos uma viola de cocho

com tampão de figueira branca. Uma exposição de arte naïf preenchia os corredores

das oficinas de arte. Ao lado da biblioteca, um artesão talhava a madeira; negros

tocavam “tambor de crioula”; pandeiros gigantes e matracas maranhenses rodeavam os

floridos bois; congadas e marujadas desciam a ladeira em direção a um grande palco

que estava preparado para os cantores Renato Teixeira, Zé Ramalho, Almir Sater entre

outros grandes artistas. Recordo-me também de uma cena inusitada e espontânea, em

que um grupo de gaúchos compartilhava com capixabas o ritmo dos congos.

Alguns anos se passaram desde aquela experiência. Atualmente, integro a

equipe de programação do SESC Pinheiros.

1 O SESC é uma instituição criada e mantida pelos trabalhadores do comércio e serviços, há mais de meio século, como intuito de promover o bem estar social e a melhoria da qualidade de vida de toda a sociedade. O SESC tem se destacado como pólo irradiador de cultura e é amplamente reconhecido pela qualidade de seu trabalho.2 Para melhor compreensão técnica e conceitual, o projeto contou com ajuda do pesquisador e etnomusicólogo Prof. Doutor Alberto T. Ikeda, responsável pelos textos que originaram o catálogo do evento.

Olhando de modo retrospectivo para a minha trajetória profissional no SESC,

observo que sempre realizei projetos na área de cultura popular3, atuando entre o

artista, a ação cultural4 e o público.

Essa posição, que é a posição em que se encontra o mediador, ao mesmo

tempo que favorece uma multiplicidade de olhares para o mesmo fenômeno, impõe a

necessidade de planejamento de estratégias de aproximação entre os vários pólos –

artistas, público e instituição – que primem pela qualidade e respeito às características

das manifestações saídas do universo popular e às necessidades de seus produtores.

Considerando necessário compreender como e o que significa mediar a arte

popular em instituições culturais inseridas na metrópole, somei aos conhecimentos

adquiridos ao longo de minha experiência profissional, teorias que pudessem oferecer

contribuições para a elucidação do panorama contemporâneo, bem como o olhar que

mediadores saídos do universo cultural de origem dessas manifestações - aqui

denominados artistas mediadores - lançam à questão. Assim, dei início à pesquisa que

resultou na presente dissertação.

O conhecimento que adquiri participando de projetos de cultura popular

realizados pelo SESC São Paulo abriram-me possibilidades de atuação também em

outras instituições.5

Fora do âmbito profissional, uma experiência muito importante que trouxe

subsídios à pesquisa e contribuiu com as minhas reflexões sobre a massificação

cultural na cidade de São Paulo, foi a militância política que exerci por ocasião da

3 No SESC São Paulo, fui responsável pela programação dos projetos “Coisas da gente Brasil” (SESC São Caetano – 1999); projetos de festa junina do SESC Itaquera: “Forró para Todos” (2001); “Vale do Jequitinhonha” (2002); “Isto é cá com Santo Antônio” (2003); “Sanfoneiros de Coração” (2004), e no SESC Pinheiros, pela idealização do projeto “Cultura Popular na Praça” (2005). 4 O termo ação cultural é encontrado na obra Dicionário SESC: a linguagem da cultura. Um dos significados trata “[...] do intuito permanente de atrair e integrar indivíduos e grupos de diferentes idades e estratos sociais ao universo artístico-cultural, vinculando-os, na medida do possível, àquelas ações que resolvam ou minimizem problemas comunitários”.Sem dúvida, este é um dos referenciais teóricos que norteiam a minha prática profissional. (CUNHA, 2003). 5 No ano de 2002, fui convidado a participar do projeto Vivências Culturais, idealizado por professores da FAFE - Fundação de Apoio à Faculdade de Educação da USP. Na ocasião, ministrei aulas de cultura popular para grupos de professores da rede municipal de ensino da cidade de São Paulo. No ano de 2003, no SENAC – Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial, trabalhei como professor e pude contribuir para a formação de técnicos de lazer e recreação tendo a cultura popular como eixo central das aulas.

participação no Conselho Deliberativo do Fórum para o Desenvolvimento da Zona

Leste. 6

As reflexões aqui desenvolvidas não seriam possíveis sem a contribuição da

universidade, local que me abastece com conceitos e provoca questionamentos

indispensáveis à minha prática profissional e experiência acadêmica, de onde provém o

arcabouço teórico deste estudo.

No capítulo 1, “Dos territórios híbridos à arte popular”, tendo em vista o cenário

contemporâneo, discuto as possibilidades de abordagem teórica e prática da cultura

popular. Considerei essencial recorrer, ainda que brevemente, a alguns pensadores

que buscam conceituar o termo cultura e arte. Um desses pensadores é Raymond

Williams, que afirma ser necessário perceber que os conceitos básicos de cultura,

tomados como ponto de partida para análises e estudos, são movimentos históricos

ainda não definidos. A roda foi a imagem escolhida para representar a interação das

culturas e das pessoas, o espaço da diversidade, das negociações e conflitos de uma

sociedade. O contexto histórico e social atual é discutido nesse capítulo à luz do

pensamento sobre a pós-modernidade e sobre o hibridismo cultural, a partir da

colaboração de estudiosos como Néstor Garcia Canclini, Peter Burke e Stuart Hall. As

culturas populares são compreendidas como produção da classe trabalhadora, que

confrontam os códigos estéticos dos grupos dominantes. O crítico de arte Mário

Pedrosa, em seus ensaios “Arte culta e arte popular” e “Arte, necessidade vital”, analisa

os dois pólos antagônicos da produção artística: o popular e o erudito, o que em muito

colaborou para a compreensão da problemática da cultura popular na sociedade

dividida em classes. O texto didático do artista e também crítico de arte, Emanuel

Araújo, ao identificar a arte popular com os aspectos da ancestralidade, arcaísmo e

permanência, também colaborou para a compreensão da complexidade do universo

temático do artista popular.

No capítulo 2, “Pós-modernidade e cenário urbano”, ressalto os modos de vida

na pós-modernidade, que se fazem intensamente presentes nas cidades com as 6 No período de 2000 a 2004, fui militante do Fórum de Desenvolvimento da Zona Leste, uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) que abriga várias organizações não governamentais do movimento popular com o intuito de reivindicar, junto ao governo municipal e estadual, o cumprimento das políticas públicas para melhoria da qualidade de vida na região. A Organização tem sua sede no bairro de Itaquera, extremo leste da cidade São Paulo.

tecnologias e o excesso de informação. A análise tem como referência as idéias de

Néstor Garcia Canclini, Stuart Hall, Domenic Strinat, Gilles Lipovetsky e Pedro Goergen.

Ao longo do capítulo, apresento uma síntese sobre as influências dos meios de

comunicação de massa no comportamento dos habitantes de uma metrópole e

evidencio a importância das particularidades dos indivíduos e de sua capacidade de

refletir, agir e construir conhecimentos como fator de resistência e identidade cultural.

No capítulo 3, “A gênese da pesquisa: relatos de experiências”, revelo as

minhas inquietações relacionadas às formas de mediação entre o projeto artístico, a

instituição cultural, o artista, o público e os mediadores. Um diagnóstico para a

realização do projeto “Cultura Popular na Praça” é apresentado junto com duas

situações que ocorreram durante meu trajeto profissional. Por meio de uma análise das

duas situações, considerando os aspectos relacionados ao público, à mediação, à

instituição, ao produtor, ao contexto urbano e à pós-modernidade, concluo que os

projetos de arte popular que são acompanhados por profissionais de uma instituição

cultural carecem de cuidados especiais que preservem a sua genuinidade e os afastem

de padrões pertinentes a grupos e artistas comerciais.

No capítulo 4, “Encontro com artistas mediadores”, apresento a metodologia da

pesquisa, definida pela soma das leituras bibliográficas, experiências profissionais e

participação dos artistas mediadores Selma Maria, Irimar dos Reis e Valdeck de

Garanhuns. Neste capítulo, caracterizo a pesquisa como qualitativa e apresento os três

artistas que foram convidados a participar desse trabalho, suas áreas de atuação, seus

projetos e concepções, bem como a maneira como me aproximei dos mesmos.

O capítulo 5, “Compartilhando conhecimentos com artistas mediadores”,

configura-se na fusão entre o arcabouço teórico, as minhas experiências profissionais

e, principalmente, as narrativas dos artistas que contribuíram com a pesquisa. As

teorias de Henry Giroux sobre a cultura popular e a educação somam-se às noções de

hegemonia e de intelectual orgânico desenvolvidas por Antônio Gramsci. Retomo a

fundamentação teórica dos pensadores Néstor Garcia Canclini, Stuart Hall, Domenic

Strinat, Gilles Lipovetsky utilizadas nos dois primeiros capítulos, desta vez,

relacionando-as aos conteúdos dos depoimentos dos artistas entrevistados. Após ler

rigorosamente o resultado das entrevistas, passei a relacioná-las com as idéias desses

autores e a minha prática profissional. Iniciando a reflexão pela infância e os saberes da

cultura popular transmitidos pelos mais velhos, foram abordados assuntos complexos e

abrangentes. As opiniões e posições dos artistas perante os meios de comunicação de

massa e o estilo de vida pós-moderno foram conteúdos essenciais para um diagnóstico

de como o artista mediador, vinculado ao universo da cultura popular, interpreta o

mundo. No que diz respeito ao relacionamento com as instituições culturais, os artistas

mediadores formulam questões sobre as Leis de Incentivo e patrocinadores e opiniões

a respeito do local onde as manifestações da cultura popular devem ser vistas, se em

seu local de origem ou no espaço institucional.

No que tange as argumentações teóricas sobre os processos de mediação, o

pensamento de Paulo Freire fortalece a proposta empírica desta dissertação. A

perspectiva freireana nos ajuda a compreender a mediação como um processo

pedagógico capaz de contribuir para a compreensão, valorização e resgate dos

elementos da cultura popular que estão presentes no cotidiano e na história de vida de

todos nós.

“A palavra roda guarda, para nós brasileiros, um sentido que talvez

não exista em nenhum outro lugar do mundo: o de que, numa roda,

estamos juntos para nos alegrar ou para confraternizar. Para sentir o

mundo mais por dentro. Um mundo que nos é dado a conhecer por

meio da dança e da música que regurgitam em suas entranhas”.

Antônio Nóbrega

CAPÍTULO IDOS TERRITÓRIOS HÍBRIDOS À ARTE POPULAR

As minhas primeiras idéias procuram, na complexidade do termo cultura,

conexões e congruências para receber novas possibilidades teóricas que contribuam

para o percurso de desenvolvimento e análise do tema central da pesquisa realizada.

As constantes transformações mundiais impulsionadas pela aceleração

tecnológica e científica, pela comunicação à distância em um ritmo antes inconcebível e

pelos intensos movimentos migratórios, levaram-me a pensar sobre a interação entre

as diferentes culturas. O chamado hibridismo cultural constitui-se em um dos eixos

fundamentais nessa dissertação.

A imagem de uma roda como um ritual ou uma brincadeira surgiu no meu

pensamento como uma das mais antigas manifestações da humanidade. Há para os

participantes de uma roda negociações e conflitos. No entanto, penso na imagem de

uma roda opondo-se à intricada contemporaneidade.

Algumas idéias sobre as culturas populares ressaltam e buscam a coerência

nesse estudo. Entendo as culturas populares como uma produção da classe

trabalhadora, em embates e consentimentos com grupos dominantes, em um processo

de constante transformação e no atual contexto histórico e sociocultural. As atenções

aqui dirigidas às culturas populares advêm do modo como penso a arte popular, tema

abrangente, que envolve distintas linguagens, ainda carente de estudos específicos

relativos à mediação e ao mediador.

As reflexões desenvolvidas neste estudo exploram os territórios híbridos, pós-

modernos, urbanos e institucionais, nos quais atua o artista mediador que idealiza

projetos de arte popular.

1.1 Culturas híbridas

O artista Antônio Nóbrega7 enfatiza a importância da roda para os brasileiros mesmo sendo

essa maneira de expressão uma das mais antigas e universais.

A roda, nessa pesquisa, simboliza a fluidez de um mundo em que as pessoas aprendem umas

com as outras durante o ato de comer, conversar, dançar e nos conflitos próprios da natureza humana,

sendo esses necessários à construção do conhecimento para a transformação e rumos da história.

A idéia de uma roda como “[...] um agrupamento heterogêneo de pessoas com

quem se mantém relações8” não por acaso, é um elemento propositor e de abertura

dessa dissertação.

Imagino uma ciranda composta por um grupo de pessoas onde o conflito abre

espaços para as transformações, em que os participantes vão dançando, cantando,

festejando e construindo relações, em um espaço democrático em que todos, mediante

negociações e a aceitação do grupo, podem participar.

No vai e vem de uma ciranda, cada pessoa é uma parte de um todo em

movimento, cada pessoa enxerga o todo e todos enxergam todos. A ciranda é uma

soma de partes que formam o todo. É lúdica, gira em ambos os lados. As contradições

entre as partes e a heterogeneidade no grupo me convidam a pensar em um

conhecimento dinâmico, em constante crescimento.

Em um grupo cada indivíduo constrói seu mundo e troca seus significados por

meio de relações com o outro, “[...] o indivíduo é o representante de, pelo menos, uma

subcultura vergôntea da cultura coletiva do grupo a que pertence. Representa, muitas

vezes, se não regularmente, várias subculturas”. (SAPIR, 1977, p.65).

As rodas estão presentes nas festas populares, nas danças sagradas e nos

rituais de fertilidade, essas manifestações me ajudam a refletir sobre os significados do

termo cultura. Reconheço a complexidade do tema e a extensa bibliografia. Recorro, a

princípio, ao conceito etimológico9 que apresenta significados referentes à natureza.

Mais precisamente ao cultivo de uma lavoura, ao crescimento de uma plantação.

7 A epígrafe deste capítulo consta no folder do evento “Cultura Popular Não é Folclore:” rodas de música, poesia e danças brasileiras” realizado no Centro Cultural Banco do Brasil., São Paulo, 15 –18 de agosto, 2002. 8Significado do verbete – roda – extraído do Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 3ª edição, Curitiba: Positivo, 2004.9 De acordo com o Dicionário Etimológico de Antônio Geraldo da Cunha, o termo culto significa: homenagem à divindade, instruído, civilizado. O termo cultivar significa: fertilizar a terra para o trabalho. O termo cultura significa: ato, efeito ou modo de cultivar.

“Se cultura significa cultivo, um cuidar ativo, daquilo que cresce naturalmente, o

termo sugere uma dialética entre o artificial e o natural, entre o que fazemos ao mundo

e o que o mundo nos faz”. (EAGLETON, 2005, p.11).

A idéia de cultura relacionada aos cultivos agrícolas se faz presente nos

estudos antropológicos e demonstra que essa relação entre homem e natureza, para

agradecer o crescimento das plantas e a boa colheita, estabelecida desde um tempo

muito antigo, anterior a era cristã, persiste até os dias de hoje com a existência dos

rituais de fertilidade compartilhados em grupo.

O cultivo de uma plantação necessita de cuidados, bem como e o que está

dentro de nós e ao nosso redor precisa de cultivo para crescer, florescer e fornecer

alimento para si e para o próximo, conforme nos fala Paulo Freire, “[...] o inacabamento

do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital”.(1996, p. 50).

O ser humano, por ser incompleto, busca e aperfeiçoa materiais, cria

instrumentos para a sua sobrevivência e para dar sentido a vida. Seu conhecimento é

fruto dos conflitos presentes no cotidiano e dos entraves que a natureza lhe apresenta.

De acordo com Raymond Williams (1971, p.19), historicamente, até o século

XVIII, o termo cultura estava relacionado à colheita e aos animais. A partir de então, o

significado do termo toma maior abrangência devido às transformações sociais e

econômicas na Europa em decorrência da Revolução Industrial, das relações

racionalizadas e dos novos valores estabelecidos entre capital e trabalho. Nessa época,

o termo cultura significava civilização10. Ecoavam os pensamentos iluministas

colaborando para difusão das idéias de progresso das sociedades.

Para Raymond Williams (1971, p.19), durante o século XVIII, a palavra

civilização designava uma sociedade já definida, em contraponto ao termo cultura como

sinônimo de alguma coisa em crescimento ou de uma sociedade inacabada, em

desenvolvimento. Configurou-se, então, uma sociedade racionalizada, civilizada, em

oposição a uma sociedade natural com necessidades e impulsos mais humanos. A

sociedade civilizada, ainda segundo Williams, produziu ordem, riquezas, conforto na

vida cotidiana e também, de forma contraditória, a pobreza, a desigualdade social e a

desordem.

10 A palavra civilização, apresentada por Cunha (1999, p. 233) deriva da palavra civil relativo às relações dos cidadãos entre si, também possui o significado de cortês, ordenado, educado; o contrário de bárbaro.

Canclini (2003, p. 18-20) ressalta que as culturas - das tradicionais, às mais

sofisticadas - encontram-se em estado de sobreposição, sendo praticamente impossível

a existência de uma cultura pura ou sem influência de outras culturas. As culturas vão

se entrelaçando e se sobrepõem criando processos híbridos.

As culturas nos países da América Latina, por exemplo, possuem as matrizes

dos países europeus. Diversos elementos constituíram esse processo que, ainda nos

dias de hoje, está em constante formação. Haja vista a construção da sociedade

brasileira com suas matrizes fincadas “na versão lusitana da tradição da civilização

européia ocidental, diferenciada por coloridos herdados dos índios e dos negros [...]

somadas à imigração que introduziu novos contingentes humanos principalmente

europeus, árabes e japoneses” (RIBEIRO, 1995, p. 20 e 21), constituindo-se claramente

como uma sociedade híbrida.

Os vários encontros culturais, ocorridos com maior intensidade durante o século

XX, somados à disseminação de outras culturas por meio dos veículos de comunicação

de massa e dos produtos da indústria audiovisual, romperam com a idéia de cultura

pura, homogênea, fechada e estável.

Canclini entende por hibridação: “[...] processos socioculturais nos quais

estruturas ou práticas discretas que existiam de forma separada, se combinam para

gerar novas estruturas, objetos e práticas”. (2003, p.19). De acordo com essa idéia, as

várias culturas possuem conexões, contatos, apropriam-se umas das outras formando

grupos sociais que sofrem influências e influenciam outros grupos sociais, em um

constante processo de transformação.

Às vezes, isso ocorre de modo não planejado ou é resultado imprevisto dos processos migratórios, turísticos e de intercâmbio econômico ou comunicacional. Mas freqüentemente a hibridação surge da criatividade individual e coletiva. Não só nas artes mas também na vida cotidiana e no desenvolvimento tecnológico. (CANCLINI, 2003, p. 22).

Embora eu reconheça a importância dos processos híbridos, ressalto que

existe, nesta aproximação cultural, a dominação de uma cultura sobre a outra chegando

a desqualificar a cultura dominada.

Os campos de produção cultural no Brasil, principalmente nas grandes cidades,

favorecem estudos sobre o hibridismo porque apresentam cruzamentos de múltiplas

combinações entre o erudito e o tradicional, o popular e o massificado, a hegemonia e a

heterogeneidade, resultando em dinâmicas que envolvem a produção de bens culturais

difíceis de serem compreendidos pelas definições tradicionais de cultura.

Encontros culturais são inevitáveis não existindo, assim, barreiras. Para o

historiador cultural Peter Burke é “[...] conveniente o argumento de que toda a inovação

é uma espécie de adaptação e que encontros culturais encorajam a criatividade”.(2003,

p.17).

Considerar o aspecto híbrido da cultura nos auxilia a compreender a produção

artística desta e de outras épocas, ou seja, nos faz perceber que em um produto

artístico existem matrizes históricas, influências culturais e misturas de toda ordem.

Seria possível avançar mais o conhecimento da cultura e do popular se abandonasse a preocupação sanitária em distinguir o que teriam a arte e o artesanato de puro e não contaminado e se os estudássemos a partir das incertezas que provocam seus cruzamentos. (CANCLINI, 2003, p.245).

Os processos híbridos envolvem o encontro de múltiplas culturas, resultando

em significados diferentes para os grupos envolvidos. Novas abordagens estudadas a

partir do contexto histórico e social propõem a convivência entre o tradicional e as

constantes transformações presentes no início desse século.

A sociedade híbrida que as cidades contemporâneas induzem nos leva a participar de forma intermitente de grupos cultos e populares, tradicionais e modernos. A afirmação do regional e do nacional não tem sentido nem eficácia como condenação geral do exógeno: deve ser concebida agora como a capacidade de interagir com as múltiplas ofertas simbólicas e internacionais de posições próprias. (CANCLINI, 2003, p.354).

Iniciei o trabalho tendo como exemplo didático a roda ou a visão de um grupo

de pessoas em círculo dançando. Simbolizando, assim, o contraste entre a união e as

diferenças e entre os encontros e desencontros que resultam em entrelaçamentos

culturais.

E, para entender um pouco mais sobre o conceito de culturas híbridas,

descrevo a experiência estética narrada pelo cantor e compositor Gilberto Gil, no ano

de 2003. Já como Ministro da Cultura, proferiu um discurso durante a abertura da 3.a

Bienal de Cultura da UNE, narrando um fato que pode nos ajudar a entender melhor a

relação entre cultura popular, processos híbridos e contextos históricos e socioculturais.

Nessa ocasião, relatou uma experiência estética vivida ainda na década de 60, período

de inúmeras transformações mundiais.

Há 35 anos, cheguei aqui ao Recife para fazer uma série de shows organizados pelo Teatro Popular do Nordeste. Os tempos são outros, mas questões importantes para aquela época, e para as pessoas com as quais tive contato em Pernambuco, permanecem atuais, e muitas delas são centrais para esta Terceira Bienal de Cultura da UNE, da qual tenho a alegria de participar. Entre essas pessoas que me convidaram para os shows, havia muitos estudantes universitários, todos interessados em cultura popular. Eles me apresentaram músicas e mais músicas: cirandas e cocos, por exemplo. E me levaram para Caruaru, onde tive uma das experiências estéticas mais importantes da minha vida, ao ouvir a Banda de Pífanos daquela cidade. Chorei quando eles tocaram “Pipoca Moderna”. Aquilo tinha uma aparência de rústico de primário, mas era, na verdade, altamente sofisticado. Era muito moderno, como o título da canção, orgulhosamente anunciava. E aquela composição radicalmente nordestina me fez entender de fato, e pela primeira vez, o “primitivismo” moderno e complexo que soava no ritmo seguro das guitarras do “rock and roll”. Ou seja: a cultura popular pernambucana me ensinou a amar os Beatles. (GIL, 2003, p.29).

O trecho desse discurso mostra um homem diante de um momento revelador

ocorrido em um contexto histórico e sociocultural específico em que músicos populares

tocam uma composição idealizada para instrumentos elétricos. Nesse momento, não a

analisarei de forma ampla, embora reconheça a importância dessa citação nesse

trabalho por ilustrar e antecipar uma discussão que farei brevemente. No entanto, quero

destacar que as misturas e ritmos eram incomuns para a época e, hoje, são freqüentes.

A utilização de guitarras na música popular brasileira gerava constantes protestos de

estudantes universitários.

Na mesma época desse relato, conforme Osmar Fávero (1983, p. 7), a

expressão cultura popular surge no Brasil com maior ímpeto e como bandeira de luta.

No biênio 1963 e 1964, emergiram movimentos a favor da arte e da cultura

popular brasileira como, o CPC (Centro Popular de Cultura) em várias regiões do Brasil.

Cito, especialmente, o CPC – UNE do Rio de Janeiro, o MCP (Movimento de Cultura

Popular) do Recife – PE, o MEB (Movimento de Educação de Base).

Tais movimentos mantinham preocupações em prol de uma cultura nacional

popular que visasse a transformação de toda a sociedade brasileira. “Qualquer outro

tipo de arte desvinculada da militância política e, conseqüentemente da realidade

social, era rejeitada como arte alienada e alienante”.(CATENACCI, 2001, v.15, nº 2, p.

28-25). Esses grupos valorizavam ao máximo a cultura brasileira e viam as pessoas

não como detentoras de saberes, mas sim, como forças revolucionárias capazes de

transformar a sociedade e, para tanto, não podiam valorizar manifestações estrangeiras

que conduziam, no entendimento dos grupos, à alienação11.

Em contrapartida, na mesma década de 60, vários agrupamentos de vanguarda

acreditavam no surgimento de novos fenômenos artísticos que serviriam de rumo para

o Tropicalismo. Movimento esse com “[...] justaposição de elementos culturais

populares e cultos, tradicionais e de vanguarda, com maior ênfase no formalismo do

processo criativo [...]” (CUNHA, 2003, p.650).

Embora o tema tropicalismo seja convidativo para um estudo mais

aprofundando, quero apenas ressaltar, aqui, a sua forma híbrida e composta de

características urbanas e rurais.

Atento a essas idéias, compreendo que a cultura popular, próximo tópico a ser

discutido, constitui um campo vasto de pesquisa ao considerarmos suas manifestações

híbridas e sua presença constante no cotidiano.

1.2 Culturas populares

Ao longo deste trabalho, não pretendo apresentar uma posição inflexível e

definitiva sobre o conceito de culturas populares e, sim, um modo de pensar coerente

com as contribuições teóricas e metodológicas que estiveram presentes no decorrer da

pesquisa. O meu foco inicial refere-se às controvérsias entre as culturas populares e

folclore. 11 Nesse estudo trago à vista a idéia de alienação considerada “[...] como um dos conceitos centrais do marxismo e amplamente usado tanto por marxistas como não-marxistas [...]” (BOTTOMORE, 1983, p. 5) para denominar quando um indivíduo ou grupo social permanecem distantes, afastados, inanimados da situação que está ao redor.

O idealismo folclórico, segundo Canclini, pensa explicar os produtos do povo

como a expressão autônoma do seu temperamento. (1983, p. 12).

De acordo com Ayala, o termo folclore “[...] é aplicado, em geral, com sentido

pejorativo: o que é risível, o que não deve ser levado a sério”. (2003, p. 9).

O artista Antônio Nóbrega compartilha dessa idéia. Para ele “[...] a palavra

folclore presta um desserviço à compreensão do que seja realmente a cultura popular,

porque é uma palavra na qual se cristalizou um significado pejorativo” (2004, p. 34).

Uma das instituições responsáveis pela depreciação do termo folclore é a

própria escola. Durante o mês de agosto boa parte das escolas da rede pública e

particular organiza eventos que abordam as temáticas do folclore brasileiro.12 O

problema está na forma como os eventos são realizados. Geralmente sem

questionamentos, o folclore é transmitido aos alunos como uma cultura estanque, presa

a um passado, como se não pertencesse a contemporaneidade e longe do dinamismo

cultural e da riqueza dos processos híbridos. A escola tende a valorizar a cultura

hegemônica, a arte européia do final do século XIX e início do século XX. Uma arte que

determina o ‘bom gosto’.

[...] teóricos educacionais radicais têm quase ignorado a importância da cultura popular, tanto para desenvolver um entendimento mais crítico da experiência do aluno, quanto para colocar o problema da pedagogia de uma maneira crítica e teoricamente expandida. (GIROUX, 1999, p. 212).

Os conceitos das culturas populares presentes nesse trabalho são contrários às idéias de uma

cultura de invólucros, de algo do passado ou imutável. As culturas populares são parte de um contexto

histórico social dinâmico e em constante transformação, sofrem suas modificações por serem

contemporâneas.

Por considerar o dinamismo e a gama de conhecimentos das culturas populares descrevo,

nesse trabalho, como muitos teóricos já o fazem, o termo no plural: “culturas populares”.

12 A afirmação é decorrente de observação direta. Durante no ano de 2003, participei junto com 30 professores do curso “Folclore” realizado na Casa Sertanista, no bairro do Caxingui, na cidade de São Paulo. Na ocasião, fiquei surpreso com os professores idealizando propostas para comemorar, no mês de agosto, a semana do folclore. Uma outra situação que observei naquele ano foi que no mês de agosto ocorreu na Casa Sertanista, lugar que na época abrigava um pequeno acervo de arte popular, um aumento considerado de visitas de alunos do ensino fundamental decorrente também da semana do folclore.

Os caminhos teóricos aqui delineados apontam para as culturas populares

produzidas pela classe trabalhadora, inseridas no mundo contemporâneo e presentes

no cotidiano dos indivíduos de todas as classes sociais.

As expressões, os modos de trabalhar e jeitos de falar, as manifestações

musicais e religiosas, as danças e a culinária são algumas das formas como são

produzidas e organizadas as culturas populares, seja pela autenticidade do

conhecimento ali presente, seja pelas características dessas manifestações.

Essas formas de produção e organização da classe trabalhadora são

analisadas pelo pensador Henry A. Giroux como um conjunto de articulações de

conteúdos distintos e capazes de propiciar, por meio da subjetividade, a aproximação

entre os indivíduos de uma comunidade. Essa característica difere das formas culturais

encontradas nos grupos burgueses dominantes pela "[...] recusa em se envolver em

práticas sociais definidas por uma racionalidade abstrata [...]”. (1999, p. 222).

Henry A. Giroux também ressalta que no campo cultural as chamadas “culturas

subordinadas” não se confrontam diretamente com a cultura dominante, porém acabam

por influenciá-la. (1999, p.222). As relações ideológicas de poder são definidas pelos antagonismos, como por exemplo, o

popular e o erudito. Desconsiderar os saberes populares presentes no cotidiano é aceitar a

hierarquização concebida pela ideologia dominante.

[...] é preferível falar em culto, elitista, erudito ou hegemônico? Erudito é mais vulnerável, porque define essa modalidade de organizar a cultura pela vastidão do saber reunido, enquanto oculta que se trata em um outro tipo de saber: não são eruditos também o curandeiro e o artesão? (CANCLINI, 2003, p. 21).

Tenho claro que a desigualdade social distancia grupos desfavorecidos economicamente dos

bens culturais, produzidos na sociedade e que, os grupos dominantes, devido a privilégios advindos de

seu poder econômico, possuem acesso rápido e fácil à produção artística e cultural.

Entendo que as culturas de elite como culturas dominantes e as culturas

populares como culturas dos dominados são sempre aspectos de uma mesma

sociedade. Uma influencia a outra por meio das práticas produzidas em locais

específicos e em um cotidiano de conflitos entre grupos de diferentes ideologias. Esse

encontro de culturas resulta em processos híbridos, em construções de novos

significados capazes de alterar as fisionomias e os conteúdos das tradições populares.

Portanto, as culturas populares se fazem presentes em todas as classes sociais.

Algumas situações são comuns, como por exemplo, durante a gravidez uma

mãe escutar prognósticos que relacionam o formato da barriga ao sexo do bebê ou

ainda, frases como ‘Benza Deus!’ e histórias com cegonhas. É possível afirmar que

uma criança cresce escutando canções de ninar, vestindo o fardamento de um time de

futebol, ou bebendo o chá feito pela avó, ou freqüentando a casa de benzedeira, ou

ainda, conhecendo brincadeiras e brinquedos de origem popular. Cresce alimentando-

se da culinária popular e utilizando termos e expressões criadas há séculos nesse

universo.

Henry A. Giroux nos diz que “[...] o terreno cultural da vida cotidiana não é

apenas um local de luta e acomodação, mas um lugar em que a produção da

subjetividade pode ser encarada como um processo pedagógico cujos princípios de

estruturação são profundamente políticos”.(1999, p. 220).

Stuart Hall (2003, p. 246) também entende os conflitos de classes sociais como

relevantes, Para esse teórico, o ponto inicial para o estudo sobre as culturas populares

está historicamente localizado na longa transição entre o capitalismo agrário e o

capitalismo industrial e na luta contínua das classes trabalhadoras que acabam por

revelar “[...] as formas de vida das classes populares [...]”.Esse pensador enfatiza que:

Como uma área de séria investigação histórica, o estudo da cultura

popular é como o estudo da história do trabalho e de suas instituições.

Declarar interesse nele é corrigir um grande desequilíbrio. É apontar uma

significante omissão. Mas, no final, seus resultados são mais reveladores

quando vistos em relação a sua história geral mais ampla. (2003, p. 252).

De acordo com o referencial teórico, aqui apresentado, eu entendo as culturas

populares como práticas culturais de indivíduos e grupos com as seguintes

características: estão inseridos no sistema capitalista; são economicamente

desfavorecidos, dependem da sua força de trabalho para sobreviver e são explorados

por grupos detentores dos meios de produção. Essas especificidades

contraditórias na sua diversidade e nos aspectos ideológicos evidenciam os costumes e

representações produzidas no cotidiano da classe trabalhadora. Ter consciência da

importância das culturas populares na nossa sociedade significa uma nova maneira de

ver o mundo.

Canclini afirma que “[...] o popular não deve por nós ser apontado como um

conjunto de objetos (peças de artesanato ou danças indígenas), mas, sim, como uma

posição e uma prática”.(1983, p. 135) Mesmo que a prática, em sua origem, seja

erudita, ela é assimilada e reconstruída. Isso acontece com muita freqüência na música,

na poesia ou quando a obra de um determinado autor vai sendo revestida pela criação

popular.

Para que um obra ou um objeto sejam populares não importa tanto seu lugar de nascimento (uma comunidade indígena ou uma escola de música) nem a presença ou a ausência de signos folclóricos (a rusticidade ou a imagem de um Deus pré-colombiano), mas a utilização que os setores populares fazem deles. (CANCLINI, 1983, p. 138).

Diante das formas de pensar e estudar as culturas populares, volto as minhas

atenções para a arte popular.13 Tema complexo, abrangente, heterogêneo e que abriga,

nos seus significados, contextos socioculturais diversos que necessitam de estudos

específicos, tanto no seu conteúdo, como também nos aspectos de mediação.

A arte popular reelabora os seus elementos não sendo uniforme e estática, mas

diversificando-se de acordo com a realidade social de seus produtores. É, em si

mesma, uma forma viva de sentir, pensar, viver e estar no mundo e não sucumbe aos

apelos da cultura de massas.

O crítico Mário Pedrosa apresenta no ensaio titulado “Arte, necessidade vital”

uma análise da história da arte construída a partir de regras impostas pelo

Renascimento. Tais regras cristalizaram a arte como glorificação social, como fetiche

de seus possuidores. Com a descoberta de novos mundos, civilizações foram

desvendadas e as culturas dos continentes Americanos, Africanos e Asiáticos,

penetraram na cultura ocidental.

13 Para delimitar o termo arte popular recorri ao sociólogo Antonio Augusto Arantes que apresenta dois aspectos abrangidos pelas culturas populares. “O primeiro refere-se, em geral, a aspectos da tecnologia (técnicas de trabalho, procedimento de cura etc) e de conhecimento do universo. O segundo enfatiza as formas artísticas de expressão como literatura oral, música, teatro, artes plásticas etc.” (1983, p.8). Nesse trabalho, interessa-me tratar do aspecto relacionado às manifestações artísticas.

Com espanto o homem culto do Mediterrâneo constata que eles também têm arte (assim, essa deixa de ser privilégio de raças superiores da Europa Ocidental). A arte não é mais produto de altas culturas intelectuais e científicas. Povos primitivos também a fazem. E como tudo, em arte, se julga pela qualidade, e como a qualidade não se mede, esses produtos artísticos de povos primitivos são fortemente tão legítimos e bons quanto os das civilizações super-requintadas da Grécia ou da França. (1996, p. 43).

Para Mario Pedrosa (1980, p. 22 – 27, passim), a distinção entre arte de elite e

arte popular aparece na época moderna visto que, na arte primitiva, nas pinturas

rupestres das cavernas de Altamira, por exemplo, não é possível distinguir a parte

reservada à arte erudita da parte que seria arte popular. Pode-se dizer o mesmo da arte

egípcia, da arte pré-colombiana ou da arte medieval. A distinção entre ambas nasce

com a sociedade capitalista, com a formação da burguesia e com a sociedade dividida

em classes. Ainda assim, a arte sempre esteve presente e os objetos artísticos

encontrados mostram uma cultura de civilizações antigas.

Durante milênios a arte foi uma linguagem popular na medida em que continha uma mensagem (religiosa, por exemplo, na Idade Média) que deveria ser entendida por todos, inclusive pelos analfabetos. Que a linguagem fosse popular não implicava que fosse diferente da classe dominante ou que expressasse outra coisa que não fosse a ideologia dessa classe. É possível fazer toda uma história da arte mostrando como uma imagem, ao longo do tempo, está destinada a difundir os símbolos do poder e a persuadir o povo a aceitar a autoridade estabelecida. (PEDROSA, 1980, p. 23).

O mesmo crítico (1980, p. 22-27, passim) contextualiza como desde a

Antigüidade até fins da Idade Média, as figuras aparecem em tamanhos diferentes, em

uma escala hierárquica, representando simbolicamente a autoridade. Como por

exemplo, os retratos dos faraós, dos funcionários da Suméria e os do rei Assur como a

imagem de Deus no código de Hamurabi representada maior que a do Rei. Durante o

Renascimento, o que predominava como gênero de pintura era o retrato e o poder era

representado por símbolos e alegorias. No Absolutismo, a tendência é sacralizar o

poder do Rei para assegurar sua supremacia sobre os vassalos.

Com o capitalismo, a arte passa a se vincular a interesses econômicos “[...] a

burguesia instala sobre a sociedade um poder político bastante instável para eternizar

seu poderio econômico. A arte perde suas últimas vinculações com o sagrado. Torna-

se cada vez mais individual e laica, [...]” um objeto lucrativo. (PEDROSA, 1980, p. 24).O pensador britânico Raymond Williams (2000, p.119-132, passim) também analisa a arte de

acordo com o momento histórico e sociocultural ao entender cultura como “[...]experiência ordinária [...]”

de todos. Produto, produção e formas de organização da vida. Para o autor, o artista compartilha com

todos o que chama de “[...] imaginação criativa[...]”, ou seja, a capacidade de encontrar e organizar novas

descrições da experiência e transmiti-las.

Trata-se de um referencial teórico importantíssimo para o estudo da arte popular visto que

Williams analisa a arte em si, seus meios de produção e as relações entre identidade e formas artísticas.

Ao analisar as mediações existentes relacionando-as às condições materiais de produção e às condições

sociais, entende que a arte não pode ser separada da vida social.

Há situações nas quais existem sinais sociais determinados, em que “[...] se vai ter acesso deve

ser encarado como arte”.(WILLIAMS, 2000, p.130). Uma galeria de arte, um teatro, um auditório são

lugares destinados à contemplação da arte. Por outro lado, a arte apresentada em espaços não

convencionais, - espaço público, por exemplo - provoca indagações sobre os propósitos presentes nessa

situação.

As formas de mediação são necessárias e podem contribuir para a

compreensão de identidades culturais na medida que, para a análise de uma obra ou

uma manifestação de arte popular, é necessário conhecer e apresentar ao receptor o

contexto histórico e sociocultural, o cenário onde ocorrem os fenômenos analisados, as

novas culturas absorvidas, os indivíduos e os grupos sociais. Portanto, apenas a

análise formal – cor, ritmo, textura, movimento, som – não seria o suficiente para

promover tal compreensão.

[...] a arte quando feita com plena seriedade e sem presunção de classes e hábitos privilegiados é um elemento dispensável do processo social fundamental da produção humana consciente. E quando encaramos essas tentativas, como processos sociais, podemos prosseguir na investigação, ao invés de interrompê-la. (WILLIAMS, 2000, p.126).

A riqueza e a compreensão da arte popular estão no fazer artístico, no

processo, nas relações e conflitos sociais, no cotidiano e nas circunstâncias das

condições de vida das pessoas. A reciprocidade entre indivíduo e coletivo é presente na

arte popular, transparecida tanto no ato de pesquisar formas e materiais para fazer,

quanto para apreciar uma determinada obra.

Penso que a importância de analisar o contexto histórico e sociocultural de uma

obra ou manifestação artística está em perceber a relação do homem com o mundo.

Em muitos casos, essa análise pode explicitar as condições sociais precárias de uma

comunidade, contestando a classe dominante e negando, assim, a imposição de

valores.

A heterogeneidade, a ambigüidade, as contradições e conflitos da estrutura

social que presidem a relação de dominação e exploração são fatores determinantes na

análise de uma obra ou manifestação de arte popular.

De acordo com Emanoel Araújo (2000, p.36), a arte popular pode ser descrita

diante de três idéias: a ancestralidade ou o conhecimento transmitido de geração para

geração, o arcaísmo, que denota uma motivação mística vista em figuras

antropozoomórficas (como as representações de santos ou animais em atitude de

vigilância), e a permanência, característica de uma arte fixada em uma determinada

região, na qual o artista popular idealiza a sua obra de acordo com o universo temático

de sua gente e utiliza instrumentos concedidos pela natureza que está ao seu redor.

Embora considere que estes três pontos propostos pelo crítico de arte Emanuel

Araújo auxiliam na análise e classificação da arte popular, reforço a necessidade de

atentar sobre os aspectos ideológicos da sociedade de classes. Tais aspectos

determinam uma série de elementos articulados entre si que envolvem o artista, sua

realidade financeira e a organização de sua comunidade.

A arte popular, produzida pela classe trabalhadora ou por artistas que representam seus interesses e objetivos, põe toda a sua tônica no consumo não mercantil, na utilidade prazerosa e produtiva dos objetos que cria, não em sua originalidade ou no lucro que resulte da venda. A qualidade de produção e a amplitude de sua difusão estão subordinadas ao uso, à satisfação de necessidades de conjunto do povo. Seu valor supremo é representação e a satisfação solidária de desejos coletivos. Levada as suas últimas conseqüências, a arte popular é uma arte de libertação. Para isso, deve apelar não só à sensibilidade e à imaginação, mas também à capacidade de conhecimento e ação. Sua criatividade e seu prazer consistem nesse trabalho sobre a linguagem que a potencia até convertê-la numa forma de práxis. (CANCLINI, 1984, p. 50).

A arte popular é produzida pela classe trabalhadora ou por artistas que dela

surgem ou que aderem a seu projeto. O objeto artístico ou manifestação possui

características como, por exemplo, a valorização especialmente do consumo não

mercantil, a oposição às manufaturas advindas de produções seriadas sem propostas

de rupturas, a oposição ao efêmero e aos objetos industriais sem valor histórico ou

afetivo que empobrecem a percepção do receptor e subtraem os processos de criação. A originalidade ou qualidade da obra ou manifestação cultural, assim como a amplitude de sua

difusão, importam na medida em que servem às necessidades coletivas.

A produção de um artista popular revela sua cultura e reinventa os costumes e os desejos da sua

comunidade, apresenta uma beleza própria que se contrapõe ao olhar burguês e estabelece mediações

capazes de transformar a realidade. O artista popular mostra-se distante da produção utilitária e das

imposições do mercado de arte, possui, no seu processo de criação, práticas do cotidiano como fontes

que dão significado aos objetos artísticos. Ele transforma a própria sobrevivência em arte, não

concebendo objetos para obter lucro, inventando formas, criando estilos contemporâneo, não utilitários e

coerentes com o contexto histórico e sociocultural. Torna-se produtor e mediador engendrando em si

mesmo, muitas vezes inconscientemente a sua própria iniciativa de transformação14.

O Brasil possui nas dimensões do seu território uma imensa produção de arte

popular. Nela estão presentes as idéias de origem, identidade e ancestralidade.

Características essas capazes de fazer emergir processos criativos e produções

artísticas existentes em condições mínimas envolvendo, muitas vezes, comunidades

inteiras. 15

Esta produção artística e comunitária é desvinculada do seu contexto, de forma

geral, por atravessadores culturais, sendo muitas vezes encontrada nas vitrines dos

shoppings, nas lojas de turismo, nas galerias de arte, nos palcos e espaços alternativos

de instituições culturais.A arte popular é apropriada de várias formas pelas instituições capitalistas como as de

comunicação de massa. Nos grandes centros urbanos essa apropriação é evidenciada e transformada

em ‘moda’. É o caso, por exemplo, do movimento criado por jovens universitários denominado forró

14 A idéia do artista popular transformando a sua comunidade é presente na obra Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro – século XX, da escritora e crítica de arte Lélia Coelho Frota. Os artistas citados nesta obra relatam a capacidade de transformação por meio de histórias, experiências e produções simbólicas. (FROTA, 2005)15 De um modo geral, os materiais e instrumentos de trabalho do artista popular são encontrados na comunidade e o seus conhecimentos são transmitidos de geração para geração. É o caso dos Santeiros do Piauí que reproduzem em madeira santos, santas, pombas, anjos e demônios, altares e sacrários. Os brinquedos extraídos das palmeiras de Muriti, feitos uma única vez por ano e comercializados durante a fertilidade do Cirio de Nazaré, pertencente ao universo ribeirinha da região de Abaetuba, cidade próxima de Belém, no Pará. O barro, matéria prima utilizada em torneamento ou modelagem, utilizando instrumentos rústicos como forquilha feita de galho, sabugos de milho e folhas de bananeira para a manutenção da umidade das peças, como as figureiras de Taubaté, as bonequeiras do Vale do Jequitinhonha e a escola Vitalino em Caruaru.

universitário. Sobre esse assunto o artista Antonio Nóbrega nos diz que “[...] há uma vulgarização e

muitos destes grupos de classe média, universitários, por falta de conhecimento e por buscar um

caminho mais fácil, partiram para uma coisa mais artificial”. (2004, p. 37). É claro que essa falta de

conhecimento acaba por menosprezar a arte popular, nesse caso o forró.

Concluo, assim, o capítulo enfatizando que, para avançarmos nas mediações

necessárias diante das infinidades de linguagens e nuanças da arte popular, é

necessário compreendemos a relação do homem com o mundo ao redor, ou seja, o

contexto sociocultural, o artista, o público, a comunidade, o atual momento e os

processos híbridos. Elementos, esses, capazes de gerar novos conjuntos e

representações culturais.Tendo como eixo um tema de tamanha amplitude e complexidade, há necessidade de restringi-

lo. Neste sentido, no próximo capítulo, analisarei alguns aspectos da cidade de São Paulo tendo como

mote a pós-modernidade e projetos de arte popular direcionados às instituições culturais.

CAPÍTULO IIPÓS-MODERNIDADE E O CENÁRIO URBANO

A intenção deste capítulo é mostrar um apanhado sobre o estilo de vida pós-

moderno, visível nas grandes metrópoles e nas instituições culturais, onde atuam os

artistas mediadores.

A explosão de informação, a tecnologia, o culto ao simulacro e inúmeras outras

transformações sociais emergentes no século XX, criaram cenários em que as relações

humanas e institucionais tornaram-se efêmeras, precárias e fortalecedoras de uma

época de incertezas.

Discuto nesse capítulo, os meios de comunicação de massa e suas imposições

como forma de poder capaz de determinar o universo simbólico das grandes massas,

padronizando valores e subjugando o cotidiano das pessoas.

Penso que a discussão aqui apresentada é essencial para a compreensão e

construção de alternativas que valorizem projetos artísticos desenvolvidos em

instituições culturais. Haja vista que o artista mediador está no mundo, tanto o modo de

vida pós-moderno quanto a paisagem urbana contribuem para suas reflexões e ações

transformadoras.

O fechamento dessas argumentações sinaliza para as possibilidades de

construções e reconstruções de identidades. O ser humano é único, suas

particularidades se sobressaem e ele é capaz de buscar alternativas nos conflitos

presentes no cotidiano para refletir, agir e construir conhecimentos.

2.1 A pós-modernidade

Os avanços científicos do final do século XIX e início do século XX, a exemplo

das grandes embarcações, do telefone, do cinema, da psicanálise, da teoria da

evolução, do automóvel, do avião, da teoria da relatividade e as descobertas voltadas

ao processo de industrialização marcam uma gigantesca transformação na relação do

homem com o mundo ao redor.

Guardadas as devidas proporções, as mudanças ocorridas nas últimas décadas equiparam-se àquelas da segunda metade do século XIX na Europa. No tratamento das questões contemporâneas, os autores, às vezes, dividem-se entre aqueles que vinculam os processos em curso às forças surgidas com a industrialização e urbanização (desta vez em feições mais pujantes e ameaçadoras) e os que preferem demarcar uma ordem diversa daquela observada no capitalismo industrial. (FRIDMAN, 2000, p. 11).

A pós-modernidade configura-se como uma época de intensa apatia marcada

pela fragmentação e pelos ritmos diferentes, e até mesmo discordantes, das complexas

articulações entre a tecnologia, a economia, a política e a cultura. As vanguardas giram

no vazio, são incapazes de inovações artísticas e reproduzem as grandes descobertas

feitas nas últimas quatro décadas do século XX. As contradições emergem da

incoerência de uma racionalidade funcional regida pela eficiência, utilidade e

produtividade (LIPOVETSKY, 2005, p.64). As origens da pós-modernidade podem ser encontradas nas transformações existentes durante a

primeira década do século XX, principalmente nas áreas de computação, arquitetura e arte (com a pop art

nos anos 60). Tais fatores unem-se à expansão das grandes metrópoles industriais e ao consumo de

produtos da cultura de massa.

É no decorrer da década de 1960 que a pós-modernidade revela suas características maiores com o seu radicalismo cultural e político, com o seu hedonismo exacerbado; revolta estudantil, contracultura, voga da maconha e do LSD, liberação sexual, mas também filmes e publicações pornopop, aumento da violência e da crueldade nos espetáculos, a cultura comum se harmoniza com a liberação, com o prazer e com o sexo. (LIPOVETSKY, 2005, p. 83).

Com o estudo sobre a pós-modernidade, entendo que no momento atual

vivemos a dificuldade de termos uma certeza. Tudo parece relativo, efêmero e precário.

A cultura de massa desmorona sobre os indivíduos uma infinidade de simulacros.

A pós-modernidade é evidenciada em sociedades pós-industriais baseadas na

informação. Está presente no cotidiano com a tecnologia, o consumo e o individualismo.

O indivíduo pós-moderno consome como um jogo personalizado de bens e serviços, do disco a laser ao horóscopo por telefone. O hedonismo, moral do prazer (não de valores) busca a satisfação aqui e agora, é sua filosofia portátil. E a paixão por si mesmo, a glamorização da sua auto-imagem pelo cuidado com a aparência e a informação pessoal, o entregam a um narcisismo militante. (SANTOS, 2006, p. 86).

Não há otimismo na pós-modernidade. A relação entre o homem e o trabalho é pragmática, sem

ilusões ou ideologias. O vazio prevalece e os valores relacionados à ética e à educação tornam-se

ausentes ou cedem lugar para modismos e simulacros.

Outra característica da pós-modernidade é a desterritorialização dos indivíduos e povos. Pessoas

e culturas perdem suas raízes e ficam a perambular pelos shoppings em busca de espelhos para a alma,

tornando-se um único ser em um único mercado. A pós-modernidade descontextualiza as pessoas e

desterritorializa as culturas. “O homem vive o distanciamento dos princípios éticos antigos referentes às

realidades históricas do passado e à carência de novos sentidos e valores”.(GOERGEN, 2005, p. 2).

Tendo como referência o documentário Koyaanisqatsi (REGGIO, 1983),

entendo que a vida na pós-modernidade apresenta-se no centro de um redemoinho,

onde a informação e a tecnologia criam novos engenhos, do navio a vapor à turbina de

um jato, da energia solar à energia nuclear, do telégrafo aos avançados instrumentos

de comunicação, de povoados para à extraordinária explosão demográfica. Cidades

aparecem do dia para a noite e milhões de pessoas são arrancadas de suas

comunidades e obrigadas a viver em metrópoles de ritmos acelerados e com perversos

sistemas de massificação. Nesse documentário, não há lugar para o indivíduo, o ser

humano é padronizado e impotente em relação ao controle da sua própria vida.

As imagens apresentadas no filme Koyaanisqatsi levam-me a reflexões sobre

um falso domínio do homem sobre a natureza e evidenciam o domínio do homem sobre

o próprio homem. “No contexto do sistema econômico neoliberal, ocorre um

distanciamento cada vez maior entre os grupos que colhem às fartas os frutos do

desenvolvimento científico e tecnológico e aqueles que ficam à margem do caminho

condenados à fome e a miséria”.(GOERGEN, 2005, p. 2).

De fato, ao que tudo indica, as expressões de dor e de exploração vão ganhando

variedades de cores na televisão, na internet, nos jornais, nas revistas e no cinema.

Tragédias transmitidas pela televisão transformam-se em espetáculos. As imagens das

guerras no Iraque, Afeganistão e Líbano, ocorridas no início desse século, hipnotizam e

deprimem o telespectador.

O filme Koyaanisqatsi prenuncia o destino do homem pós-moderno. Apático,

melancólico, condicionado ao consumo, impregnado de informações, observando

passivamente a desintegração do coletivo.

O sociólogo italiano Dominic Strinati, no ensaio “Pós-Modernidade e Cultura

Popular”, diz que a idéia de pós-modernidade mostra o nascimento de uma ordem na

qual a cultura de massa impõe formas de relacionamentos entre os indivíduos por meio

de imagens e signos e não pela utilidade e valores educativos, éticos, vitais e de “[...]

integridade ou profundidade intelectual [...]”, mas, sim, pela aparência e individualismo.

(1999, p. 219).

A cultura de massa não dá espaço às experiências e às individualidades. A

mídia dissemina, por meio de especialistas, propagandas com imagens apelativas de

mercadorias que mexem com o sentido e induzem ao consumo.

Para Dominic Strinati, a origem do pensamento pós-moderno surge quando

consumir torna-se mais importante do que produzir (1999, p. 228).

Na pós-modernidade, a idéia de que tudo é mercadoria é consagrada com o

crescimento de grupos corporativos, estatais burocráticas e multinacionais com

sistemas criados para racionalizar a produção e programar a vida dos indivíduos na

sociedade capitalista.

A massa pós-moderna é consumista, classe média, flexível às idéias e nos costumes. Vive no conformismo em nações sem ideais e acha-se

seduzida e atomizada (fragmentada) pelos mass mídia, querendo o espetáculo com bens e serviços no lugar do poder. Participa, sem envolvimento profundo, de pequenas causas inseridas no cotidiano – associações de bairro, defesa do consumidor, minorias raciais e sexuais, ecologia. (SANTOS, p.90).

Um produto novo no mercado consumidor é substituído rapidamente por um

outro produto com mais recursos e mais eficiência. As novas tecnologias, a

comunicação à distância e a instalação de indústrias para a exploração de mão-de-obra

nos chamados países subdesenvolvidos são alguns dos fatores que conduzem à

internacionalização do consumo.

Independentemente da classe social, milhões de pessoas são induzidas na

participação nesse sistema que engloba complexos industriais dominando as artes, a

criatividade e resultando no afastamento entre criadores, artistas e público. Todo esse

processo foi denominado por Theodor W. Adorno e Horkheimer, na década de 30 de

Indústria Cultural. “A partir da década de 50, a sociedade americana e até mesmo a

européia se tornam fortemente presas ao culto do consumismo, do ócio e do prazer”

(LIPOVETSKY, 2005, p.59).

Dominic Strinati afirma que a indústria cultural

[...] modela os gostos e as preferências das massas, formando suas consciências ao introduzir o desejo das necessidades supérfluas. Portanto, pretende excluir necessidades concretas, atitudes e posições políticas de oposição. É tão eficaz nessa tarefa que as pessoas não percebem o que ocorre (1999, p. 70).

A produção da indústria cultural é seriada e o custo dos produtos é

racionalizado para o mínimo gasto possível de matéria-prima, objetivando atingir o

máximo de lucro sobre uma variedade de consumidores em várias regiões do planeta.

Esta racionalização produz objetos sem nenhum traço que identifique pessoas e

comunidades tirando todas as características de um determinado grupo social.

Na cultura de massa, o apelo comercial resulta em produtos parecidos com

originais ou produtos que imitam uma determinada cultura, uma simulação

intensamente presente na vida do homem pós-moderno. Percebemos isso nos

alimentos com os sabores artificiais, nos shopping centers substituindo cidades, nas

imagens trabalhadas pelo computador, nas pessoas produzidas para a televisão e

cinema, dotadas de um padrão de beleza vendável, enfim, o simulacro está presente

principalmente nas imagens. Até mesmo o desempenho sexual tem os seus simulacros

encontrados nos sex shops (DUARTE JUNIOR, 2003).

Na pós-modernidade, a indústria cultural investe uma infinidade de recursos

para vender imagens estandartizadas de ídolos descartáveis fingindo ser aquilo que

não são. “A essência da pós-modernidade está nos simulacros propiciados pelos meios

tecnológicos de comunicação” (SANTOS, 2006, p.12). Esse faz de conta, essa

imitação, está presente nas mais diversas bugigangas de estética grotesca,

padronizada, sem nenhuma inovação.

De acordo com o Strinati,

[...] o indivíduo na sociedade de massa é abandonado à própria sorte, possui cada vez menos comunidades ou instituições com as quais possa se identificar, e tem cada vez menos referências morais, porque a sociedade de massa, devido a sua origem, não é capaz de apresentar soluções adequadas e efetivas para estes problemas (1999, p. 24).

Os meios de comunicação de massa estão presentes na vida cotidiana e

despejam informações esvaziadas de conteúdos sócio-educativos, funcionando como

mecanismos da indústria cultural, alheios ao desenvolvimento da sociedade.

Agnes Heller também alerta: na vida cotidiana existe um terreno fértil à

alienação. “Quanto maior for a alienação produzida pela estrutura econômica de uma

sociedade, tanto mais a vida cotidiana irradiará sua própria alienação para as demais

esferas” (1992, p. 38). Na cotidianidade, parece natural a desagregação, a separação

entre o ser e a essência. Na coexistência e sucessão heterogênea das atividades

cotidianas, não há porque se revelar nenhuma individualidade.O homem devorado por

suas máscaras orienta-se na cotidianidade através do simples cumprimento adequado

de seus papeis. (1992, p. 34). Esta mesma autora, porém, enfatiza que o ser humano e

sua essência não aparecem separados. Há uma margem para que o indivíduo possa

unir as experiências heterogêneas presentes na cotidianidade.

Os aspectos da pós-modernidade possuem maior evidência nos grandes centros

urbanos. Durante os próximos tópicos, busco ampliar essas discussões considerando

as especificidades do local, a cidade de São Paulo. Aonde atuam, os artistas

mediadores que desenvolvem projetos de arte popular, participantes da pesquisa que

deu origem a este trabalho.

2.2 A cidade de São Paulo

O panorama apresentado durante tópico anterior, descreve situações de um

cenário pós-moderno muito recente e presente nos lares e que saltam aos nossos olhos

quando saímos e caminhamos pelas ruas e praças de uma cidade como São Paulo.

Néstor Garcia Canclini (2005, p. 98-111), em sua obra Consumidores e Cidadãos, apresenta o resultado de sua pesquisa realizada nas cidades de São Paulo,

México e Buenos Aires, demonstrando que, a grande concentração de migrantes na

cidade de São Paulo, procedentes de várias regiões do Brasil, evidencia a

heterogeneidade da população paulistana.

A demografia paulistana transformou-se em decorrência do desenvolvimento

industrial. Devido à necessidade de mão-de-obra, a cidade passou a atrair um grande

número de imigrantes e também pessoas das mais diversas regiões do Brasil. Esse fato

distanciou indivíduos de suas comunidades desfazendo laços familiares. O grande

contingente humano existente na cidade de São Paulo fez surgir uma nova paisagem

urbana com periferias e favelas fortalecendo, assim, o fenômeno da segregação social

(DUMAZEDIER, 1980, p.50).

Na cidade de São Paulo as contradições são evidentes, é a “[...] maior

metrópole da América Latina, possui três milhões de pessoas vivendo em cortiços, 1,5

milhões em favelas e 60% das construções na cidade são feitas pelo sistema de

autoconstrução”.(CARLOS, 2001, p.33).

São Paulo não consegue, como em outras metrópoles no mundo, absorver o

imenso contingente de trabalhadores. Esse fato aliado à massificação que invade casas

e dizima tradições, perpetua uma nova situação narrada por Darcy Ribeiro no

documentário O Povo Brasileiro como “[...] marginalização social e econômica que

passa a ser também cultural [...]” (FERRAZ, 2005), cujas conseqüências levam à

alienação ao anonimato, às mecanizações nas relações, à perda da identidade, à

submissão, ao apego aos meios de comunicação de massa e à perda do sentimento de

pertencer a algum lugar. Os seres humanos excluídos perderam os seus postos de

trabalho para a tecnologia e hoje são vistos como uma grande massa sem função

produtiva, distanciando-se, cada vez mais, da denominação “exército industrial de

reserva” 16.

As condições de produção determinam as relações das classes sociais. O

indivíduo inserido na economia burguesa é pressionado a competir e a inovar sempre.

O que impressiona, ao meu ver, é o papel de aceitação passiva perante

situações caóticas, como por exemplo, a deterioração de algumas regiões da cidade de

São Paulo, locais onde a massificação cultural e a miséria impregnam os olhos e se

incorporam ao cotidiano dos habitantes. Os distúrbios, a anormalidade, as adversidades

e as confusões do meio urbano são vistas como algo natural.

Ao caminhar na Praça da República, região central da cidade de São Paulo,

vislumbro uma paisagem que evidencia os modos de vida da pós-modernidade. Escuto

os vários aparelhos de som, volume alto, estilos de músicas diferentes insistentes nas

barracas de camelôs e nas lojas. Escuto também o soar estridente dos autofalantes

vendendo produtos e serviços. Sinto uma variedade de odores, desde o monóxido de

carbono despejado dos escapamentos, até a fumaça de churrasco vendido na calçada.

Vejo, nas bancas de jornal, CDs, DVDs, clássicos da literatura como Jorge Amado e

Dostoievski, convivendo ao lado de muitas fotografias de mulheres nuas e inúmeras

revistas de assuntos especializados. Meu olhar é capturado pelos luminosos eletrônicos

nas paredes dos prédios e um ambulante tenta me convencer da qualidade dos

produtos ‘piratas’. Vejo também moradores de rua dormindo sem colchões, sem

cobertores e catando restos de comida no lixo17. Homens invisíveis18, anônimos,

16 Karl Marx chamou de exército industrial de reserva a existência de forças de trabalho desempregadas. A concorrência obriga os capitalistas a adotarem métodos de produção que substituem trabalhadores por máquinas. A miséria, seres humanos abaixo da linha da pobreza, a exploração de mão de obra em países onde são baixos os salários e a expulsão de imigrantes de países desenvolvidos são alguns dos fatores que geram o exército industrial de reserva. (BOTTOMORE, 1983, p. 144). 17 O filme Powaqqatsi, dirigido por Godfrey Reggio, USA, George Lucas e Francis F. Coppolla/Golam Globus, 1988, relata através de imagens a condição de subsistência e o modo de produção do ser humano que vive nas grandes metrópoles. Numa determinada cena o filme mostra pessoas que sobrevivem do lixo urbano.18Conceito desenvolvido por Fernando Braga da Costa, psicólogo que conviveu durante 10 anos com garis da Cidade Universitária - USP e escreveu a obra Homens Invisíveis: relatos de uma humilhação social. São Paulo: ed. Globo, 2004.

substituíveis, cobertos por placas anunciam produtos e empregos. Num espaço em

constante construção, contemplo os buracos, os caminhões, as britadeiras, as

escavadeiras, os operários e os tapumes de madeira revestidos de pichações

indecifráveis, monocromáticas e iguais ao asfalto, enaltecendo o cinza e escondendo as

crateras que ligam a estação República de metrô a uma nova estação. Nesse espaço, o

ato de caminhar perde o seu significado óbvio - o de uma simples locomoção.

Em casa ou no trabalho, o modo de vida pós-moderno é composto de

conversas ao celular, internet facilitando a reprodução e envio de idéias para todas as

partes do mundo, televisão aberta e a cabo disputando espaço e atenção e mais uma

parafernália de equipamentos eletrônicos que despejam informações e alimentam o

desejo de consumo. Tais benefícios resultantes das novas tecnologias induzem ao

questionamento sobre o uso doméstico e profissional de aparelhos eletrônicos que

intensificam a dependência e, para muitos, são imprescindíveis para a “continuidade da

vida”.

Nos grandes centros urbanos, de forma geral, os moradores das periferias e até

mesmo de regiões centrais, convivem com problemas de toda ordem. Desde a falta de

atendimento de políticas públicas essenciais para a sobrevivência – saneamento,

habitação, saúde, educação, segurança – até a escassa oferta de projetos de fomento

à cultura e locais para a prática do lazer. A violência predomina nos noticiários,

ocupando o lugar da solidariedade e a segurança tornou-se parte da extensa pauta de

reivindicações dos movimentos populares. A indústria da segurança enriquece

fornecendo exércitos particulares, construindo condomínios fechados e implantando,

inclusive em vias públicas, câmeras de monitoramento.

A atual paisagem urbana existe em razão do crescimento desordenado da

cidade. Duas situações podem justificar esse fato. A primeira é que a cidade deixou de

ser o foco privilegiado da produção tornando-se espaço do comércio e prestadoras de

serviço. A segunda situação é a expansão demográfica que fez diminuir as

características do centro da cidade como ponto de partida de uma organização. O

distanciamento entre o centro histórico da cidade e a periferia é compensado pelos

meios de comunicação de massa.

Na verdade, a ausência de políticas públicas para o fortalecimento

principalmente das instituições responsáveis pelas áreas de educação e cultura,

contribui para a massificação cerceando expressões culturais espontâneas e

elementares, sem as quais uma comunidade não consegue estabelecer trocas que

valorizem a diversidade e fortaleçam as identidades.

Nas ruas da cidade de São Paulo estão expostas as identidades fragmentadas

de seus habitantes

[...] à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar ao menos temporariamente (HALL, 2005, p.13).

É ingênuo afirmar que o cotidiano, repleto de situações com o predomínio da

cultura de massa, não influencia na nossa identidade. O contrário disso pressupõe a

existência de uma cultura “pura” e de um ser humano vivendo isolado dos outros, da

sociedade.

Recorro, novamente, ao pensador argentino Néstor Garcia Canclini quando diz

que não é possível considerar os membros de uma sociedade como participantes de

uma cultura homogênea, com identidade única, em razão das transformações

contemporâneas, tais como, as imagens e informações veiculadas em todo o planeta

pelos meios de comunicação, a difusão em vários países de estilos de vida oriental e

latino-americano e o número de exilados, refugiados e imigrantes espalhando-se pelos

cinco continentes (2005, p. 297).

No atual momento não é possível uma definição de identidade associada a uma

Nação porque a interculturalidade configura-se não só pelas diferenças entre culturas,

mas também pelas formas desiguais de apropriação e transformação (CANCLINI, 2005,

p.131).

Ao escrever sobre a roda nas primeiras páginas do trabalho antecipei essa

discussão. Penso que a consciência dessas múltiplas identidades e seus conflitos e

contradições é essencial para que as práticas socioculturais da cultura popular,

intrínsecas nas pessoas, sejam valorizadas.

As identidades estão em constantes diálogos com as culturas, nascem das

tradições e transformam-se no cotidiano. São construídas e reconstruídas nas práticas

culturais coletivas.

Entendo que as formas de estudo para conceituar identidades podem ser

encontradas nos processos híbridos, na heterogeneidade, nas várias representações

existentes nos grupos sociais e em um só indivíduo.

Benjamin Abdalla Júnior destaca a seguinte idéia a respeito do assunto:

Individualmente, a mesma pessoa pode ser, ao mesmo tempo, mulher, negra, trabalhadora, latina etc. e ainda prestar solidariedade a outras categorias. É, a partir de valores comunitários, que será possível estabelecer projetos de instituições sociais que coloquem a tecnologia sob o controle das necessidades e dos desejos das pessoas e não apenas como veículo de uma automação que implique competitividade e exclusão (ABDALLA JÚNIOR, 2004, p.13).

Uma pessoa pode, assim, possuir várias identidades com características

diferentes, interagir com grupos sociais em um constante processo de construção e

pertencer a mais de um grupo social. Na pós–modernidade, é possível encontrar uma

pessoa que seja ao mesmo tempo esportista, homossexual, umbandista, ecologista,

vegetariana e com diversas outras participações sem sustentação, sem metas brandas

e variadas conforme a programação do dia.

Domenic Strinati, ao analisar a teoria pós-moderna, cogita a hipótese de que:[...] um limitado e seguro conjunto de identidades coerentes começou a se fragmentar em uma série de identidades competitivas, distintas e instáveis. A erosão de uma antiga e segura identidade coletiva conduziu a uma fragmentação crescente das identidades pessoais. (1999, p. 230).

A citação reafirma que as matrizes de identidades, a exemplo da família, da

religião, da política, dos grupos de interesses comuns de uma comunidade, sofrem com

as rápidas transformações e com a falta de referências, de memórias e construções

socioculturais.

Para a filósofa Agnes Heller, o ser humano é, ao mesmo tempo, particular e

coletivo. Particular porque busca satisfazer as necessidades do “Eu”. O “Eu” sente

dores físicas e emocionais. Também o coletivo está presente no homem nas suas

relações sociais e na sua integração com outras coletividades (1992, p. 20). “O homem

nasce já inserido na sua cotidianidade. O amadurecimento do homem significa, em

qualquer sociedade, que o indivíduo adquire todas as habilidades imprescindíveis para

a vida cotidiana da sociedade em questão” (1992, p. 18).

É no cotidiano que transparecem todos os sentidos, capacidades intelectuais,

habilidades, emoções, idéias, atribuições e ideologias. A vida cotidiana é, em grande

parte, heterogênea e exige do ser humano uma atuação e fruição intensa. Está no

centro dos acontecimentos e não é possível diferenciar o que é do que não é cotidiano

(HELLER, 1992, p. 18 e 26).

Agnes Heller também alerta: a vida cotidiana existe em um terreno fértil para a

alienação. “Quanto maior for a alienação produzida pela estrutura econômica de uma

sociedade, tanto mais a vida cotidiana irradiará sua própria alienação para as demais

esferas” (1992, p. 38). Na cotidianidade, parece natural a desagregação, a separação

de ser e essência. Na coexistência e sucessão heterogênea das atividades cotidianas,

não há porque se revelar nenhuma individualidade unitária, o homem, devorado por

suas máscaras, orienta-se na cotidianidade através do simples cumprimento adequado

desses papéis. A mesma autora, porém, enfatiza que o ser humano e sua essência não

aparecem separados. Há uma margem para que o indivíduo possa unir as experiências

heterogêneas presentes na cotidianidade (1992, p. 34).

Acredito que a relação do homem com o mundo ocorre no cotidiano. Para o

migrante, viver em uma cidade como São Paulo significa ter sua identidade cultural

modelada aos padrões pós-modernos de alimentação, vestuário, trabalho e diversão.

Por outro lado, os mesmos grupos sociais trazem a diversidade e valores da cultura

popular para o cotidiano da metrópole, intensificando, assim, a dinâmica e o hibridismo

cultural.

Baseado na análise feita até o momento, compreendo que a perda de

identidade ou a fragmentação de identidades no cenário urbano e pós-moderno é

explícita e altera comportamentos e costumes. Compreendo também que o cotidiano e

os encontros entre os membros de uma comunidade nas instituições culturais de

caráter público ou privado, ou conquistadas pela mobilização popular, servem como

ponto de referência para a construção e reconstrução de identidades coletivas e

individuais.

O modo de vida pós-moderno intenso no contexto urbano, descrito durante

esse tópico, não implica uma situação conformista ou uma posição letárgica de

indivíduos aguardando a sua própria evaporação na massa.

Algumas possibilidades não fatalistas podem ser encontradas na própria

história da cidade de São Paulo e podem iluminar as forças contraditórias ao estilo de

vida pós-moderno.

O respeito às experiências, aos valores e aos conhecimentos das culturas

populares, trazidas e compartilhadas por centenas de indivíduos que viveram ou vivem

na cidade de São Paulo, somados aos vínculos afetivos e ao desejo de alimentar um

passado social e pessoal, são alguns dos fatores que podem conduzir o habitante da

metrópole a outras formas de viver o cotidiano na pós-modernidade.

A viabilidade da pesquisa encontra-se justamente nas contradições. Existem

formas de relacionamentos sociais que em virtude da diversidade cultural, conferem um

caráter qualitativo à metrópole. E isso ocorre apesar da massificação cultural impondo a

homogeneização, do formato comum com que os serviços da cidade de São Paulo se

organizam, das tecnologias, do meio urbano hostil deflagrado pela violência, das

desigualdades sociais e das entranhas abertas da pós-modernidade.

Volto-me agora para essas contradições. De outra forma não faria sentido esse

trabalho.

Quero ressaltar que, ser conivente com a ideologia dominante que utiliza os

mecanismos da cultura de massa é acreditar que as pessoas não são capazes de

exercer o potencial criativo e estão à mercê de entretenimentos anestesiantes.

Um dos apontamentos do trabalho é que a arte e os saberes da cultura popular,

presentes na memória dos habitantes das metrópoles, são necessários para a

individualidade e à oposição aos padrões impostos por uma cultura dominante.

À luz da poesia de Carlos Drumond de Andrade (1990, p.144), é possível sentir

a ineficácia da homogeneização cultural e de uma cultura de massa que trata todos

como iguais. IGUAL-DESIGUAL

Eu desconfiava: todas as histórias em quadrinhos são iguais.

Todos os filmes norte-americanos são iguais.

Todos os filmes de todos os países são iguais.

Todos os best-sellers são iguais

Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são iguais.

Todas as mulheres que andam na moda são iguais.

Todos os partidos políticos são iguais.

Todas as experiências de sexo são iguais.

Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas, rondós, são iguais e todos, todos

os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.

Todas as guerras do mundo são iguais.

Todas as fomes são iguais.

Todos os amores são iguais, iguais, iguais.

Iguais todos os rompimentos.

A morte é igualíssima.

Todas as criações da natureza são iguais.

Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.

Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa.

Ninguém é igual a ninguém.

Todo o ser humano é um estranho ímpar.

De fato, movido pelos conflitos, o soldado, o operário, o camponês, o jagunço, o

retirante, o revolucionário, fizeram a história do século XX, foram personagens

propulsores da Indústria Cultural, desde as artes plásticas, na música, no teatro, no

cinema, no rádio, na televisão até nos grandes romances.

O indivíduo, esse estranho ímpar que fala o poeta, reconhece a sua história no

local onde mora. É nos bairros, no nome das casas, das ruas e das praças que surgem

as histórias dos homens.

O homem comum não existe para si, apropria-se de alguma identidade através das palavras dos poetas e dos cantores populares; só eles permitem que o inconsciente das cidades e de seus habitantes infames ganhe voz, contorno, imagem [...] (KEHL, 2004, p.10).

O ser humano é único, possui sua individualidade e é capaz, desde que lhe seja

apresentado alternativas de questionamento, de construir conhecimento por meio da

sua relação com os conflitos presentes no cotidiano.

Nas grandes cidades existem grupos sociais organizados nas suas

comunidades que se expressam sobre as suas próprias experiências, seus sofrimentos,

suas alegrias, seu imaginário, suas esperanças e expectativas. Criam ações

socioculturais utilizando os mais diversos meios, desde depoimentos, poemas e

canções, peças de teatro, dança e obras de arte. Demonstram que a produção cultural

pode ser também um meio de esclarecimento, desalienação e libertação.

As articulações políticas com os poderes locais (subprefeituras, empresários,

religiosos, imprensa local, vereadores, entre outros), são formas que os movimentos

populares encontram para o atendimento de suas reivindicações e para a realização de

encontros e festas. A letra da composição Comunidá19 escrita por Gilberto Gil (2002, p.

343) ilustra essa afirmação.

COMUNIDÁ

Vê se quem faz a comida é o ouro

E quem traz a bebida

E quem prepara o salão

Um troco do sindicato é o ouro

Uns cem do candidato

Uns dez da associação

Luz, pede pra prefeitura, é o ouro

Pede uma viatura

Com Cosme e Damião

Vê se esse novo bicheiro é ouro

Pode ser o patrono

E acabar dando uma mão

Comunidá

Camaradagem, todas cores

Comunidá

19 Música Comunidá, composta em 1992, é de Celso Fonseca e a letra é de Gilberto Gil. (GIL, 2002)

Na hora da dificuldade, eu sei

Comunidá também

Na festa, na titica de felicidade, amém.

A música trata de uma festa organizada pelos membros de uma comunidade.

Para a festa acontecer há uma união dos poderes locais que são o sindicato, o

candidato, a associação de bairro, a prefeitura, a viatura e o bicheiro. No entanto, a

festa só acontece com a organização da comunidade “que faz a comida, traz a bebida e

prepara o salão”.

Tive a oportunidade de participar como militante cultural durante um período de

quatro anos, 2000 – 2004, no Conselho Deliberativo do Fórum para o Desenvolvimento

da Zona Leste20 - organização não governamental sediada no bairro de Itaquera, na

cidade de São Paulo.

Observei, durante o período citado, que as adversidades propiciam encontros

confiáveis e criam novos sinais e formas de expressão que identificam o grupo.

Peculiaridades do cotidiano e ações culturais localizadas que, assim, geram

mobilizações populares fortes, são capazes de consolidar núcleos comunitários e

associações de bairro. Essas representações fortalecem um sentimento coletivo de

pertencer a um grupo, a um local e colaboram para a construção, na metrópole, de

identidades.

A vida cotidiana está carregada de alternativas, de escolhas. “[...] o

compromisso pessoal com o coletivo, na decisão acerca de uma alternativa está acima

da cotidianidade” (HELLER, 1992, p.24).

Constatei, com o crescimento e atuação do Fórum, que os espaços onde

aconteciam reuniões passaram a servir de local para as festas da comunidade, com

músicos, poetas, grupos de teatro e exposições de artes visuais de moradores.

Participei da organização de eventos e apresentações artísticas influenciadas pela

cultura de massa e com incorporações simbólicas surgidas na relação com a metrópole

contendo, assim, novas representações e referências locais, citando acontecimentos ou

20 O Fórum de Desenvolvimento da Zona Leste atualmente é uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) que abriga várias organizações não governamentais do movimento popular, com o intuito de reivindicar, junto ao governo municipal e estadual, o cumprimento de políticas públicas para melhoria da qualidade de vida na região.

fazendo parodias dos moradores. “Os grupos sociais da periferia saem pouco de seus

espaços, regiões; fecham-se e ocupam as ruas do bairro” (CANCLINI, 2001, p. 286).

Antecedendo-se à discussão, o crítico de arte Mario Pedrosa afirma que a

identificação do indivíduo com o coletivo nasce da luta para melhorar a infra-estrutura

básica de uma região e, nessa situação, são estabelecidos os laços de amizade e

solidariedade (1982, p. 25).

Também o historiador e antropólogo Michel de Certeau afirma que a

organização dos moradores de um bairro surge nas reivindicações para a melhoria de

qualidade de vida.

A atenção volta-se, hoje, para os movimentos populares que tentam instaurar uma rede de relações sociais necessárias à existência de uma comunidade e que reagem contra a perda do direito mais fundamental, o direito de um grupo social formular, ele próprio, seus quadros de referência e seus modelos de comportamentos (1995, p. 39).

Apesar das limitações impostas pela ausência de políticas públicas e da

imposição de uma cultura massificada, os moradores das grandes cidades constroem

as suas próprias representações, manifestam seus anseios e individualidades na

conversa de bar, no futebol de várzea, na quermesse da igreja, na roda de samba, na

roda de capoeira, no movimento hip hop, na escola de samba e em locais propícios aos

encontros.

O Fórum de Desenvolvimento da Zona Leste e outros movimentos populares

que se destacam pelas pautas de reivindicações e consolidação de grupos sociais são

exceções. Representam uma pequena parte da sociedade que, movida pelos conflitos

sociais do excludente sistema capitalista transformam comunidades e seus moradores,

fazem história no cotidiano e assumem identidades procedentes de um bairro, rua,

associação, escola de samba, entre outras.

Nos grandes centros urbanos, de forma geral, os indivíduos se relacionam nos

espaços institucionais (escola, família, trabalho, religião), embora em alguns casos

ocorra a ocupação de praças e ruas.

O espaço institucional de convivência de arte, de educação e de produção

cultural constitui-se em uma alternativa, contrapondo-se, então, ao mero entretenimento

imediato de apelo comercial oferecido pela cultura massiva.

Procurei, até o presente momento, dissertar sobre algumas complexidades da

dinâmica cultural, do pensamento pós-moderno, da massificação, do meio urbano e das

possíveis lacunas existentes no cotidiano para a atuação de artistas mediadores. Essas

alternativas serão discutidas durante os próximos capítulos, com argumentos

provenientes da minha experiência profissional e da colaboração de três artistas

mediadores.

As situações narradas aqui, somadas às críticas, às narrativas, aos desejos e

aos projetos dos artistas mediadores que participaram a pesquisa, me abastecem e me

ajudam a aperfeiçoar a minha forma de trabalho e o meu compromisso como mediador

e como pesquisador. Segue no próximo capítulo três situações extraídas da minha

vivência profissional e sua posterior análise.

CAPÍTULO IIIA GÊNESE DA PESQUISA: relatos de experiências profissionais

O acompanhamento de projetos de arte popular pode significar um grande

desafio para o mediador que esta à frente de ações dessa natureza. No primeiro

momento surgem as seguintes questões: por que convidar um grupo de arte popular

para se apresentar? Qual o tema para uma exposição de arte popular? Por que

convidar artistas populares? Em que contexto esses artistas devem ser convidados?

Como viabilizar o seu transporte? Como divulgar uma exposição de arte popular?

Quem acompanhará o grupo na intermediação com os órgãos fiscalizadores, tais como

ECAD, OMB, SBAT21? Qual empresa será convidada para a cenografia de uma

exposição de arte popular? E, durante essa análise, vão surgindo novas perguntas que

estimulam a reflexão e orientam as decisões.

De fato, o deslocamento da arte popular (danças dramáticas ou objetos

artísticos) dos locais de origem para o espaço institucional, determina novas situações.

A mais evidente é que esse deslocamento transforma as produções artísticas de uma

comunidade em produções e produtos culturais institucionalizados, adaptados ao

espaço, ao um tempo e às formas de recepção padronizada de uma instituição cultural.

Durante o capítulo revelo, as minhas inquietações sobre as formas de mediação

entre o projeto artístico, a instituição cultural, o artista, o público e um grande número

de pessoas que são chamadas de mediadores. Para tanto, relato e analiso dois

momentos de minha prática profissional e uma situação que favoreceu o diagnóstico de

um projeto. Os relatos referem-se a situações que vivenciei trabalhando com projetos

de arte popular que ajudam a compreender as variáveis decorrentes das características

específicas dos eventos, preocupação essa que está na gênese da dissertação.

3.1 Cultura popular na praça

Você já foi ao SESC Pinheiros? Na entrada principal há, no jardim florido, uma

serpente com os seus ovos. A mim me parece que ela sai dos subsolos do prédio, de

um afluente subterrâneo do rio Pinheiros, um lençol freático. Sai da terra para defender

os seus ovos dos olhares daqueles que chegam e sentam em um grande banco. Trata-

se de uma obra do escultor Francisco Brennand.

Esse espaço de convivência, chamado também de praça, é vigiado por uma

serpente, delimitado de um lado por um banco em forma de meio círculo e de outro lado

por um muro de vidro. Sentado nesse banco eu posso olhar através do muro de vidro e

observar a rampa de acesso para deficientes físicos, estruturas de alumínio, paredes

21 ECAD – Escritório Central de Arrecadação e Distribuição. SBAT – Sociedade Brasileira de Autores Teatrais. OMB – Ordem dos Músicos do Brasil

revestidas de granito sustentando paredes de vidro e gigantescas colunas com

pastilhinhas azuis.

Busco o distanciamento do prédio e, da calçada, aponto lentamente o meu nariz

para o céu. Observo o jardim florido suspenso e as imensas faces de vidro, que

conduzem o meu olhar ao teto com estrutura de metal em meia lua.

O prédio imponente, idealizado pelo arquiteto Miguel Juliano é virtuoso e está

localizado em uma região de efervescência cultural, próximo à Cidade Universitária e

dos bairros Butantã, Jardins e Vila Madalena. O Instituto Cultural, Ohtake Cultural, o

Centro Brasileiro Britânico, o Teatro Brincante e a FENAC estão nos arredores do

SESC Pinheiros.

Caminho pela rua Paes Leme fugindo do odor do rio Pinheiros. É abundante o

comércio de ferragens e madeiras. Pequenos bares e lanchonetes expõem cardápios

padronizados. Nas duas ruas que contornam o SESC Pinheiros – a rua Paes Leme e a

rua Butantã – existem prostíbulos, casas de forró e albergues. Mendigos acampam na

porta da igreja Mont Serrat.. Lojas de comércio popular colocam vendedores nas

calçadas disputando o pouco espaço com os ambulantes. Ao chegar ao Largo de

Pinheiros, vejo a cratera da futura estão do metrô, casas de umbanda, casas de

produtos típicos da região nordeste do Brasil e algumas barracas de ervas medicinais.

O narrador de histórias e escritor Daniel L’ Homond é um francês que veio ao

Brasil a convite do SESC São Paulo para participar do encontro internacional de

contadores de história.22 Hospedou-se próximo ao SESC Pinheiros e durante uma

semana vislumbrou essa paisagem no trajeto entre o hotel e o SESC. Nos confessou o

seu encantamento com a diversidade dizendo que a região é pulsante e mais

interessante que Paris.

3.1.1 Análise

22 Trata-se do evento Boca do Céu – II Encontro Internacional de Contadores de História, ocorrido no período de 12 a 21 de maio.

De fato, as regiões centrais da cidade de São Paulo permitem observações

sobre os processos híbridos, a massificação cultural, a perda de identidades, a situação

da metrópole e os modos de vida na pós-modernidade, como observou o contador de

histórias.

Um olhar reflexivo e uma caminhada no entorno do SESC Pinheiros, me

propiciou uma análise local que subsidiou as justificativas para a elaboração do projeto

“Cultura Popular na Praça”, que tem como objetivo principal aproximar o público dos

artistas populares e das manifestações da cultura popular, como por exemplo, o jongo,

o batuque de umbigada, o moçambique, o teatro de mamulengos, a Dança de São

Gonçalo, a Folia de Reis, dentre outras.

As contradições entre os grupos de cultura popular, o espaço institucional e a

metrópole indicaram a necessidade de atenções que os mediadores têm para a

realização de eventos com esses grupos.

Uma delas é que o mediador, respeitando as tradições populares, deve

considerar que há um dia, uma hora, um motivo e um local na comunidade de origem

desses grupos para que as manifestações aconteçam. A recepção do grupo, o respeito

para com os seus mestres, os espaços para descanso e camarins também são outros

fatores de atenção e cuidado. Além disso, a instituição deve trabalhar com produtores

de confiança do grupo, de preferência pessoas que pesquisam as culturas populares. O

retorno que o evento proporcionará para a comunidade é de interesse da instituição

cultural e serve como medida de valor da ação cultural.

É importante para a instituição cultural um projeto sobre mediação entre a

produção artística e o público de preferência elaborado em conjunto com o produtor ou

com artistas mediadores. Esses são os propósitos desse estudo.

Relatarei a seguir, duas situações que vivenciei, mostrando as variáveis que

acontecem em eventos dessa natureza.

3.2 Tia Nenê

Fotografias reproduzidas, ampliadas, plotadas em painéis de PVC e datadas do

início do século XX mostravam as origens do carnaval paulista na exposição “Carnaval

em branco e preto”23, realizada durante o mês de fevereiro de 2003, na Sede Social do

SESC Itaquera24. O público de aproximadamente 40 pessoas estava dividido entre

aqueles que contemplavam à exposição e aguardavam a apresentação do grupo

“Samba de Lenço de Mauá”25, marcada para às 15 horas, e aqueles interessados na

diversão e no domingo de carnaval.

Duas horas antes da apresentação verifiquei as necessidades técnicas e

operacionais: sistema de som, camarim, espaço de apresentação, alimentação do

grupo e instrumentos de mediação (folder, banners). Enfim, constatei que estava tudo

certo para garantir a comodidade do público e dos artistas.

Às 15h30, o ônibus chegou ao SESC Itaquera trazendo o grupo Samba de

Lenço de Mauá. O grupo desembarcou com 35 minutos de atraso e lentamente

caminhou até o camarim. Olhei para o meu relógio e gritei para que todos ouvissem:

“Vocês estão 40 minutos atrasados! Por favor, vamos nos apressar! O público

está esperando”.

Os componentes do grupo proseavam e com carinho ajeitavam as roupas, os

instrumentos... Crianças, jovens e idosos... Três gerações... O ônibus de 45 lugares

havia transportado, no mínimo, 60 pessoas da comunidade. Famílias e amigos do

grupo “Samba de Lenço de Mauá”. As pessoas que estavam no camarim agiram com

naturalidade e ignoraram os meus pedidos.

Com exatamente uma hora de atraso, o grupo se posicionou na Sede Social, no

espaço destinado à apresentação, bem próximo à exposição.

“Muito bem. Podemos começar?”

“Muito bem. Podemos começar?” Perguntei novamente.

23 Projeto expositivo apresentado ao SESC Itaquera, em fevereiro de 2003, pelo antropólogo e produtor cultural Marcelo Manzarti.24 A situação descrita fez parte da minha experiência profissional no SESC Itaquera, localizado no extremo leste da cidade de São Paulo, é uma das 30 Unidades do Serviço Social do Comércio – (Regional de São Paulo), ocupando uma área de 400.000m².25 O grupo Samba de Lenço de Mauá possui aproximadamente 30 pessoas, chamado simplesmente de Samba ou Batuque por seus dançadores e de Samba Rural ou Samba de Bumbo por alguns folcloristas, mantém as suas tradições e consagra-se como um dos mais respeitáveis grupos de Samba e cultura popular. Essa manifestação sobrevive nas cidades de Pirapora do Bom Jesus, Santana do Paraíba e Mauá, Estado de São Paulo (DIAS, 2003, p. 60).

As pessoas do grupo me olharam com expressões de quem diz:

“Óbvio! Não podemos começar”.

Não havia tempo. Eu sabia... Algo estava errado.

Olhei para o técnico de som. Ele estava aflito com o horário, estava cobrando o

início da apresentação. Naquele domingo, pelo atraso do grupo, o técnico de som, os

seguranças, os técnicos da programação, o pessoal da lanchonete, dos caixas, a

equipe de apoio e os gerentes da unidade chegariam mais tarde nas suas casas.

Pela expressão facial do grupo eu sabia: algo estava errado. Porém, não havia

mais tempo. Eu decidi fazer a apresentação.

Olhei novamente para o técnico de som, para o meu chefe que prometia uma

longa conversa, para o grupo que proseava e para o público. O público!

O SESC Itaquera possui um parque aquático imenso. As pessoas costumam

sair das piscinas às 16h. Os boleiros de final de semana deixam as quadras e os

campos de futebol também às 16h. O fluxo de público nesse horário segue direto para a

portaria. Porém, em um domingo de carnaval como aquele, o “boca a boca”, ou o

popularesco “rádio peão”, divulgou que na Sede Social ocorreria um grande show de

samba.

O público que, a princípio era de 40 pessoas, multiplicou-se progressivamente.

Todas estavam prontas para “pular” o carnaval. As pessoas que saíram de casa e

foram para o SESC Itaquera (acredito que umas 20 pessoas), exclusivamente para

contemplar a exposição e assistir ao grupo “Samba de Lenço de Mauá” sumiram em

meio àqueles que estavam ali para ver o show de samba.

Ainda nos segundos que antecederam a apresentação, eu olhei para o meu

relógio. Eram 16h10. Iniciei a apresentação:

“Boa tarde! A apresentação que veremos compõe a programação integrada da

exposição Carnaval em Branco e Preto. O objetivo é mostrar um pouco das origens do

carnaval paulista.

“E agora o SESC Itaquera apresenta o grupo “Samba de Lenço de Mauá”.

Esperei enquanto ouvia o rumorejo de 300 pessoas aguardando ansiosas para

assistir ao tão divulgado show de samba.

Esperei...

Quem trabalha com espetáculos musicais sabe o poder que tem o técnico de

som. Meu olhar para o técnico de som dessa vez foi de súplica. Como se ele tivesse a

força de ligar o grupo.

Entrei no espaço cênico.

O rumorejo do público transformara-se em protestos de foliões, de

domingueiros saídos das piscinas, dos campos de futebol e famílias recompostas do

churrasco querendo dançar e brincar o carnaval.

No espaço cênico elegi uma moça. Sua explicação foi direta e evidente.

Nós só podemos começar quando a Tia Nenê apitar.

Naquele momento a Tia Nenê, uma senhora de mais de noventa anos estava

amparada pelos amigos e familiares a caminho da sede social. Ainda levou uns dez

minutos para que chegasse ao espaço de apresentação e se recompor.

Tia Nenê apitou.

3.3 Sem praça, sem fogueira e sem luar

O horário de verão possibilita a realização de atividades e espetáculos no final da

tarde em áreas externas, ao ar livre e utilizando a luz natural de um pôr-do-sol atrasado

em uma hora, ainda por cima, há uma vantagem de estarmos do lado oeste da cidade.

“O Batuque de Umbigada de Tietê, Piracicaba e Capivari” é composto de um

grupo de pessoas com cerca de 60 anos. Segundo Dias, essa manifestação cultural é:[...] uma dança em duas filas confrontantes, uma de homens, outra de mulheres, após diversos galanteios, batuqueiros e batuqueiras trocam umbigadas entre si. A umbigada foi notada por alguns autores em danças cerimoniais de fertilidade e núpcias [...] (2003, p. 57).

Programado para acontecer no dia 21 de novembro de 2006 às 18horas na

Praça de Eventos do SESC Pinheiros, durante o intervalo do III Encontro Internacional

da Associação Brasileira de Etnomusicologia – ABET, o “Batuque de Umbigada” era

aguardado por pesquisadores, estudantes e especialistas em música étnica de várias

regiões do Brasil.

Das escotilhas do prédio do SESC Pinheiros é maravilhoso apreciar o pôr-do-

sol. Na Praça de Eventos, o pôr-do-sol não é tão agradável: é acompanhado por uma

sinfonia de buzinas e motores de automóveis e motocicletas. A partir das 18h, a rua

Paes Leme, bem como a maioria das ruas da cidade de São Paulo, tem o tráfego

parado. Quando a situação não é normal, os congestionamentos vão aumentando e a

normalidade nessa cidade é rara.

O sol ia embora bem devagar... Levava a sua luz natural. A luz natural do

“Batuque de Umbigada” estava sumindo. O crepúsculo...

A pós-modernidade tem o seu lado positivo. Graças aos avanços tecnológicos é

possível a comunicação à distância por meio de aparelhos celulares. Liguei para o

celular do responsável pelo grupo “Batuque de Umbigada” e ele me comunicou: o

ônibus estava preso em um congestionamento na Marginal Pinheiros.

Avisei ao público do imprevisto e, como se tratava de um público específico,

conhecedor do assunto, as pessoas compreenderam.

Pedi aos técnicos que providenciassem torres de luz. Não é nada fácil a

montagem de uma hora para outra de torres de luz. Ainda mais naquela situação aonde

o espaço cênico é compartilhado com o público e as luzes estão no mesmo plano que

os artistas. Mas sem a iluminação, teríamos que cancelar a apresentação e o público,

especialista e crítico, não teria tanta compreensão dessa vez.

Como resolver o problema? A apresentação foi pensada para as 18horas do

horário de verão para utilizar a luz solar e aproveitar o intervalo do III Encontro da

ABET. A equipe não imaginou que o grupo ficaria preso no transito da cidade. As torres

estavam na frente do grande banco, uma de cada lado. Os oito refletores, cada

lâmpada de 1000 wts, quatro por torre, estavam praticamente no espaço cênico. O foco

não abria e as luzes estavam muito fortes. Não havia segurança e quem se encontrava

no meio da Praça de Eventos ficava cego pela luminosidade intensa. Solicitei gelatinas

e, ao colocá-las nos refletores, fiz da Praça de Eventos uma grande danceteria. 26

A Praça de Eventos do SESC Pinheiros é parcialmente coberta por um pé-

direito de 10m e, lá no alto, existem placas de alumínio que captam as luzes das

lâmpadas intencionalmente polarizadas para o teto. A incidência de luz direcionada

26 Gelatina é o nome de uma folha plástica colorida e utilizada para alterar a temperatura de determinada fonte de luz, afixada sobre os refletores. www.fazendovídeo.com.br

para a placa e refletida na Praça de Eventos é mínima. Mas, com esse olhar percebi

que virando os oito canhões luzes para o alto a Praça de Eventos seria iluminada.

Lá estava um simulacro de luar clareando um simulacro de praça. Sentei no

grande banco, acenei positivamente para o técnico de luz e lembrei do poeta Mario

Quintana.

“Não gosto da arquitetura nova. Porque a arquitetura nova não faz casas

velhas... Não riam, por favor, que o poema é triste”. 27

O ônibus trazendo o grupo estacionou em frente ao SESC às 19h35. O tambor

é a essência do “Batuque de Umbigada”.

O referencial ritmo básico é dado pela matraca, que são dois paus batidos no corpo do tambu, um enorme tambor cônico, e pelos guaiás (chocalhos) empunhados por cantores e dançadores. O interprete do tambu “cavalga” seu instrumento e improvisa comentários rítmicos para a melodia da moda, valendo-se das grandes possibilidades timbrísticas deste tambor. Ao mesmo tempo, o jogo de contraste entre a beirada (agudo) e o ronco (grave) do tambu permite ao tambuzeiro fazer a marcação da dança, orientando o momento exato de bater- aplicar a umbigada (DIAS, 2003, p. 56).

O ônibus abriu a porta e os mestres carregando os seus tambores foram

recebidos pelo público. Estudiosos e pesquisadores da música étnica, militantes da

cultura popular: um público crítico e preparado para bater os seus umbigos.

Novamente fui objetivo ao utilizar o microfone:

O atraso do grupo ocorreu devido ao trânsito na Marginal Pinheiros. O grupo,

nesse momento, irá ao camarim e dentro de alguns minutos daremos início ao evento.

O técnico de som gesticula pedindo ajuda.

Eles querem saber aonde vão fazer a fogueira?

Fogueira? Que fogueira?

Precisa de uma fogueira para afinação dos tambores. Com calor do fogo o

couro do tambor estica tornando-se afinado. Com o couro frouxo é impossível tocar o

tambor, é como bater em um travesseiro.

Paredes de granito, chão de ardósia, grandes colunas com pastilhinhas azuis,

muro de vidro seguro por colunas em alumínio, jardim suspenso e florido com a

27 QUINTANA, Mario. Na volta da esquina. Rio de Janeiro, Ed. Globo, s/d.

escultura do artista Francisco Brennand. Como fazer uma fogueira? Aonde encontrar

gravetos, madeira? E o bombeiro do prédio? Vai autorizar? Eu mesmo sou membro da

brigada de incêndio do SESC Pinheiros... Assim, de repente, não dá para fazer uma

fogueira.

Foi quando lembrei. Em 1999, em São Caetano eu vivenciei essa situação

durante a apresentação de um grupo que representava um dos atos da festa do boi e

precisava esticar o couro de gigantescos pandeiros. Em uma rua movimentada, com

intenso comércio, coberta por telhas de plástico e com um grande número de

passantes, também não seria possível fazer uma fogueira. Naquele momento em São

Caetano, a solução foi apresentada pelo técnico de som que disparou o foco de luz

para os pandeiros gigantes e o calor dos refletores esticou o couro.

Com o atraso do grupo o sol foi embora e levou a luminosidade vespertina.

Precisei de luzes e consegui uma penumbra, um falso luar. Agora essas mesmas luzes

seriam a minha fogueira.

Naquele dia o público, de aproximadamente 40 pessoas, composto de

estudiosos, pesquisadores e militantes da cultura popular, dispensava a mediação. Eles

eram os próprios mediadores, conheciam pessoalmente os mestres e eram

familiarizados com os toques dos tambores. Há, duas horas, aguardavam o batuque.

Como que vocês do SESC não providenciaram a fogueira?

É um desrespeito com o artista popular?

Se fosse artista da elite... Teria tudo.

Mas a solução... Com a ajuda dos técnicos os refletores de 1.000 wts, após

esticarem o couro dos tambores voltaram a servir de luar.

O “Batuque de Umbigada de Tietê, Piracicaba e Capivari”, programado para as

18h, intervalo do III Encontro Internacional da Associação Brasileira de Etnomusicologia

– ABET, iniciou sua apresentação por volta das 20h15, horário interessante porque

serviu de fechamento do Encontro e pôde unir os umbigos dos pesquisadores,

estudiosos e militantes da cultura popular com os umbigos dos batuqueiros e

batuqueiras, num local onde não existe praça, nem fogueira e muito menos luar.

3.4 Análise

Públicos diferentesO público no primeiro relato não estava preocupado com as origens do grupo e

não era, nesse dia, esperado pela instituição. Porém, acompanhou e conheceu, graças

ao atraso do grupo, tanto a exposição quanto o “Samba de Lenço de Mauá”. No

segundo relato, o público de especialistas cobrou, de forma impaciente, soluções para

os problemas. Ficou em defesa do grupo e parte dele ajudou na afinação dos tambores.

Nas duas situações o público se incorporou ao evento transformando o espaço

cênico e a platéia um único local.

MediaçãoA exposição “Carnaval em Branco e Preto”, com textos plotados e folhetos

explicativos, serviu de instrumento de mediação para o público espontâneo conhecer o

grupo “Samba de Lenço de Mauá”.

Os pesquisadores que participavam do III Encontro Internacional da Associação

de Etnomusicologia – ABET trocavam impressões sobre o “Batuque de Umbigada”

tecendo críticas ao espaço institucional, confirmando, assim, que a instituição é

mediadora de produções artísticas.

InstituiçãoOs participantes de um grupo de congada, moçambique, jongo, batuques e

samba, possuem o seu próprio tempo. Como já foi apontado anteriormente, as

manifestações têm dia e local para a sua realização. Transportar as manifestações da

cultura popular de suas comunidades para o espaço institucional, não significa que os

componentes dos grupos estarão cumprindo horários e compreendendo os propósitos

institucionais da ação cultural. Atrasos, demora nos camarins, famílias e amigos da

comunidade superlotando os ônibus, fogueira que precisa ser acesa, o respeito e a

importância dos mais velhos iniciarem os trabalhos, são exemplos de situações que

devem ser vistas com muito cuidado pelos mediadores que trabalham em uma

instituição cultural. Portanto, a recepção dos grupos de cultura popular, não pode

configurar-se como um padrão rotineiro. Não podem ser usadas as mesmas formas

utilizadas para receber artistas profissionais.

Um outro fator a ser observado, além dos aspectos de mediação e recepção

dos grupos, é o contexto. Nas duas situações os grupos estavam inseridos em projetos

específicos. Essa também é uma preocupação institucional, porque envolve divulgação,

instrumentos de mediação (cartazes, banners, folhetos explicativos etc), formação de

público, grupos de interesse e formas de apresentação que valorizem os grupos e as

manifestações da cultura popular.

ProdutorO produtor também é um mediador. Ele ocupa o papel de intermediário entre a

instituição cultural, os órgãos fiscalizadores, os profissionais que atuam na instituição e

o artista. No caso de grupos de manifestações da cultura popular, o produtor possui

meios de resolver situações burocráticas que envolvem o pagamento de cachê artístico

e a emissão de notas fiscais. A presença de um produtor é muito importante pra a

instituição cultural. É o produtor que vai informar as necessidades técnicas do grupo é

ele que ampara, cuida e providencia a alimentação e o transporte. Enfim, ele

acompanha todo o processo, inclusive as repercussões. Nesse contexto ele é tão

importante que necessita de conhecimentos específicos – antropológicos, sociológicos,

pedagógicos – para atuação junto ao grupo. Ele precisa também de comprometer-se

com o desenvolvimento do grupo e da comunidade.

Contexto urbano e a pós-modernidadeSão muitas as contradições entre as culturas populares e o estilo de vida pós-

moderno. Ao mesmo tempo, porém, as culturas populares trazidas ao espaço

institucional e ao contexto urbano podem colaborar com os objetivos institucionais

relacionados à ação cultural. A formação de um público crítico, as reuniões de grupos

de interesse, a construção e reconstrução de identidades e as reflexões sobre as

culturas populares são alguns dos fatores que colaboram para a ampliação do universo

cultural de indivíduos e grupos sociais. No entanto, as compreensões e os

questionamentos a respeito das culturas populares e suas múltiplas linguagens

artísticas estão atreladas às formas de mediação.

CAPÍTULO IVO ENCONTRO COM ARTISTAS MEDIADORES

Um caminho levou-me de um ponto a outro durante o desenvolvimento da

dissertação. Da participação em uma roda ao entrelaçamento das culturas, das

informações acessíveis ao reconhecimento do mundo ao redor, da presença das

culturas populares no cotidiano à pós-modernidade, da metrópole à instituição cultural,

do projeto artístico ao público, do artista à mediação, do teórico ao empírico. Estar no

meio do caminho nesse trabalho significa criar novos caminhos unindo o modo de

pensar, com o modo de estar e o modo de fazer.

A questão inicial nesse capítulo é como decidir por um caminho que me leve a

algum lugar. E, nesse caso, o itinerário está diretamente ligado ao meu cotidiano

profissional. Adquiro conhecimento, experiência e transcrevo situações vividas

buscando responder algumas inquietações que sinto como educador inserido em uma

instituição cultural e trabalhando, também, com projetos de arte popular.

Dessa forma, a busca de um método para a dissertação, de um caminho pelo

qual se possa atingir um objetivo, me conduz a uma rotatória com diversas vias,

algumas sem pavimento. O tempo escasso impossibilita o reconhecimento de cada

uma delas. Então, devido às descobertas, às várias transformações e às novas

articulações de conteúdo escolho seguir apenas uma via.

Durante a pesquisa não fui um caminhante solitário. Estive acompanhado de

três artistas que me ajudaram a desenvolver algumas idéias sobre a importância do

mediador, da mediação e de projetos de arte popular em instituições culturais.

Não seria possível avançar no conhecimento sem a participação dos artistas

entrevistados. Eu constatei, durante a análise da bibliografia específica, que não existe

uma definição clara do conceito de mediação em arte popular. Portanto, a participação

dos artistas tornou-se uma condição sine qua non dessa pesquisa, ainda mais

evidenciada quando trato da questão das instituições culturais no contexto pós-

moderno. Os artistas mediadores que participaram desse trabalho ajudaram-me a

construir idéias que acredito serem importantes para as pesquisas nas áreas de arte e

mediação.

Tenciono que os resultados obtidos nessa pesquisa abram vias ascendentes e

rotas alternativas que levem a sua continuidade e ao necessário procedimento de

avaliação das mediações em projetos de arte popular.

4.1 Pesquisa qualitativa28

28 O livro Pedagogia Cidadã. Cadernos de Formação: metodologia de pesquisa científica educacional, publicado pela UNESP. Universidade Estadual Paulista constituiu-se na fonte principal para as definições sobre pesquisas qualitativas.

A pesquisa realizada configurou-se como qualitativa em virtude das seguintes

características:

a) Possui uma avaliação, um registro e uma interpretação.

b) Considera a abordagem histórico-social.

c) Entende o ser humano como participante do processo histórico e como

criador de idéias perante a dinâmica cultural.

d) Descreve a minha própria experiência profissional;

e) Possui o objetivo de aperfeiçoar ações de mediação entre a arte e o público.

f) A fundamentação teórica e o trabalho de campo não correspondem a uma

visão pragmática.

g) A pesquisa é aberta e propõe a continuidade de novas idéias.

h) Valoriza as posições particulares e as situações subjetivas que

transpareceram dos sujeitos envolvidos que certamente ajudaram no

entendimento do contexto, na análise dos dados e na elaboração das

categorias.

i) Tem como um dos pontos relevantes na interpretação dos fenômenos

pesquisados a cumplicidade entre o pesquisador e os artistas entrevistados;

j) A pesquisa de campo estruturou-se na fundamentação teórica e na lógica

natural do processo de investigação.

k) Permitiu a articulação de idéias e formulação de questões, considerando as

possibilidades de novas revelações.

l) O local onde os fenômenos apareceram29 foi também pesquisado.

m) A minha presença no local da pesquisa foi permanente.

n) Considerei o contexto histórico e sociocultural.

o) Não tive a preocupação de encontrar respostas definitivas, minhas atenções

foram voltadas para os conteúdos processuais e dissertativos.

p) A pesquisa qualitativa possibilitou o aparecimento dos fenômenos analisados.

Quero também ressaltar três características da pesquisa qualitativa presentes nessa dissertação,

de acordo com a Professora Alda Judith Alves. (1991, p. 53-61).

29 Nesse trabalho as instituições culturais correspondem ao local onde o artista popular apresenta o seu trabalho.

a) Visão holística: entendimento de que o objeto de pesquisa, ou da manifestação artística,

surge de um contexto histórico e sociocultural.

b) Indução: as categorias de interesse apareceram durante o processo de análise de dados.

c) Naturalista: minha intervenção no contexto analisado foi mínima.

4.2 Artistas mediadores

Iniciei, efetivamente, o trabalho de campo dessa pesquisa no ano de 2005 com a

elaboração do projeto ‘Cultura Popular na Praça’ concebido por meio de uma análise

local. Considerei o entorno do SESC Pinheiros aonde a presença da cultura popular é

fortemente diluída diante da metrópole e da massificação imposta pelo contexto pós-

moderno.

Acompanhei durante projeto vinte e três grupos. Partindo da leitura de release,

das negociações de contrato, da divulgação, dos acompanhamentos técnicos da

produção e da apresentação e dos encaminhamentos na pós-produção. Esse trabalho

possibilitou-me a proximidade com o fenômeno investigado e permitiu que observasse

uma variedade de espetáculos, como danças dramáticas, teatro de rua, espetáculos de

mamulengo, ritmos do maracatu, música de pífanos, violas, congados, esquetes com

palhaços, trapezistas, grupos de repentistas, cenários coloridos de estandartes,

exposições de arte popular, paus de fita entre outros.

Graças ao projeto desenvolvido, meus contatos com artistas que trabalham o

tema culturas populares foram ampliados e somados a outras ações norteadas pelas

linguagens da arte popular.

E diante das diversas formas de pensar e produzir arte popular, (das geringonças

do Mestre Molina30 (SESC, 2003) - à cantoria no pé-de-parede31) após acompanhar e

observar projetos de arte popular no período de janeiro de 2005 a junho de 2006,

durante o projeto ‘Cultura Popular na Praça’ e, de forma geral, em toda a programação

30 Manoel Molina, artista de formação genuinamente popular adotou o nome de geringonças para denominar a sua obra. As geringonças são vistas como brinquedos e retratam as pessoas do campo e das pequenas cidades. O Mestre Molina construiu mais de mil personagens e dezenas de cenários sobre grandes bancadas.31 � Pé-de-parede é um local onde existe o repentismo nordestino, em que dois contadores improvisam com suas violas diversas melodias e temas propostos pela platéia. www.teatrodecordel.com.br

do SESC Pinheiros, convidei três artistas comprometidos com o público, preocupados

com a mediação, com os processos pedagógicos e atuantes em diversas linguagens

artísticas como a dança, as artes visuais, a música, a literatura, o teatro, entre outras.

Dessa forma, os participantes da pesquisa não foram determinados

antecipadamente. “Numa metodologia de base qualitativa o número de sujeitos que

virão a compor o quadro das entrevistas não pode ser determinado a priori [...]”

(DUARTE, 2004, p.111).

Portanto, para contribuir com o objetivo deste estudo e sua questão motivadora,

entrevistei, no ano de 2006, os artistas mediadores Valdeck de Garanhuns, Selma

Maria e Irimar dos Reis. (ANEXO)

4.2.1 Selma Maria

Selma Maria é arte-educadora e pesquisadora com formação em artes plásticas pela FAAP

(Fundação Álvares Penteado), desde 1986. Viaja pelo interior do Brasil pesquisando brinquedos da

cultura brasileira e há três anos viaja para o sertão de Minas Gerais desenvolvendo trabalhos com as

crianças das comunidades do Morro da Garça, de Cordisburgo e de Andrequicé. Selma Maria foi a

curadora da exposição “Meninos Quietos”.

Segundo a artista, uma frase de João Guimarães Rosa, em que o escritor expressa seu desejo

de escrever um pequeno tratado para meninos quietos, inspirou-a na concepção da exposição, realizada

durante o período de 19 de abril a 04 de julho de 2006, gratuitamente, de terça a domingo (inclusive

feriados), no SESC Pinheiros – SP.

Nela estavam reunidos os brinquedos das crianças do sertão de Minas Gerais, presentes

também na obra de João Guimarães Rosa. Esses brinquedos, trazidos do local onde o escritor nasceu e

se inspirou para escrever sua obra, revelam uma cultura primitivamente universal, presente não somente

no dia-a-dia das crianças que vivem nessa região e interagem com a natureza ainda viva do cerrado, mas

também no imaginário infantil como um todo.

A concepção cenográfica, assinada pela artista plástica Anne Vidal, traduziu em sete núcleos –

Brincar de pensar, Brincar de sensações, Brincar de criar, Brincar de olhar, Brincar de geografia, Brincar

de colecionar e Brincar de segredos – o universo infantil, com o intuito de sensibilizar as pessoas para a

importância das criações do cotidiano e despertar o gosto pela preservação de suas memórias mais

simples.

Os visitantes penetraram em um ambiente mágico onde seus sentidos e sentimentos foram

estimulados por meio de cantigas e histórias populares, bonecas e bichos feitos de milho, cabaça e pano,

fotografias, pinturas, esteiras de palha, banquinhos de madeira, sementes, gravetos e pedrinhas. Arte e

brinquedo se confundiram na exposição que contou também com uma programação integrada de música,

teatro, dança, contação de histórias, literatura, cinema, cultura digital e oficinas de construção de

brinquedos. A exposição contou com a monitoria orientada pela curadora da exposição.

O trabalho é fruto de uma longa pesquisa desenvolvida por Selma Maria que explica em

entrevista concedida à Revista Idiossincrasia32, como surgiu a idéia da exposição.

...eu me convidei para ir com a Anne para o sertão. Viajamos juntas muitas vezes. Ela

desenvolvendo o trabalho com caiação e eu sempre envolvida com os brinquedos, com as crianças. Um

dia a Marily Bezerra (cineasta que promove muitos eventos ligados à obra de Guimarães na cidade de

Morro da Garça) falou da idéia do Guimarães de escrever o livro de brinquedos para meninos quietos.

Isso foi em Andrequicé, durante a "Semana Manuelzão". Ali caiu a bomba na minha cabeça... Pensei:

"vou escrever esse livro!". Foi assim que nasceu o projeto. Não consegui patrocínio para a edição, mas

surgiu a proposta da exposição Meninos Quietos em abril de 2005. Falei para o pessoal do SESC que

eles foram os únicos que apoiaram o projeto e agradeci dizendo que "só os pinheiros acreditaram nos

buritis". Outra pessoa importante foi o Willian da Elástica que tirou a idéia do papel e conseguiu deixar a

exposição tridimensional. Para finalizar, o José Mindlin33, que me apoiou nos momentos difíceis, me

acalmando quando eu achava que "minha frágil vereda ia ser engolida pelos eucaliptos" que é o que

ocorre com o cerrado hoje em dia.

4.2.2 Irimar dos Reis

Irimar dos Reis é natural do Vale do Jequitinhonha/MG. É cantor, compositor, ator e pesquisador

do folclore. Iniciou sua carreira no circo e teatro. Também é o idealizador do grupo “Folias e Folguedos”.

Apresenta espetáculos musicais interativos com a proposta de difundir a cultura tradicional brasileira a

partir de sua pesquisa pessoal, de vivências e experiências diretas com as manifestações populares e

seus mestres. Nos seus espetáculos, Irimar apresenta um roteiro específico para cada ciclo de festas e

comemorações populares. Como por exemplo, Folias Brasileiras - ciclo carnavalesco, Folias de São João

- ciclo junino, Folias e Congos, comemorações da Festa do Rosário e Folias Sagradas - Santos Reis -

ciclo natalino.

32 Revista hospedada no endereço eletrônico www.potalliteral.terra.com.br 33 José Mindlin é advogado, jornalista e industrial. Dono da maior biblioteca particular do Brasil, ocupa cadeira nas academias brasileira e paulista de letras. José Mindlin investe em projetos culturais. www.vejinha.com.br

Também realiza espetáculos como o Terreiro de Folia – show em que os participantes cantam,

dançam e manipulam bonecos tradicionais confeccionados por mestres artesãos (Burrinhas, Cavalinhos,

Ema, Boi, Cazumbá, Capitão do Mato, Maria Manteiga, Jaraguá, Zabelê, Caiporas, Cobra Grande, Urso,

Bernúncia, Cabeções, Pigmeus e outros personagens do imaginário popular). O Brasil que Canta e

Dança – show interativo com danças e músicas tradicionais de norte a sul do Brasil e Folias de um

Cantador – show interativo com modas-de-viola, repentes, roda de versos e causos.

Irimar dos Reis tem apresentado os seus projetos em diversas instituições:

• Unidades do SESC São Paulo - Interlagos, Piracicaba, Carmo, Santos, São Caetano,

Pinheiros, Vila Mariana, Ipiranga, Campinas, Ribeirão Preto, Rio Preto e Birigui.

• Secretaria Municipal de Educação – Projeto Recreio nas Férias.

• Escolas públicas e particulares como o Colégio Rio Branco (Unidade Granja Viana) -

Colégio Rio Branco (Unidade Higienópolis) - Instituto Mackenzie (Tamboré) - Fundação

Bradesco (Osasco, Campinas) - Escola da Vila - Colégio Santa Cruz - Colégio Magno -

Colégio Pueri Domus - Colégio Assunção - Escola Carandá - Colégio Pio XII - Colégio

Friburgo - Colégio Waldorf Rudolf Steiner - Colégio Waldorf Micael - Colégio N. Sª. das

Graças (Itaim-Bibi) - Escola Nova Lourenço Castanho - Colégio Miguel de Cervantes -

Red Brick - Educ.Infantil - Esporte Clube Pinheiros - Educ.Infantil - Clube Paulistano -

Educ.Infantil - Colégio Santo Américo e nos CEU’S - Centros Unificados de Educação -

Aricanduva, Vila Atlântica, Pêra Marmelo, Alvarenga e São Mateus.

• Escola Aberta, o Espaço Cultural Veja São Paulo - Riviera de São Lourenço - Projeto

Brasil, 500 anos de festas! Escola Nova Lourenço Castanho - Secretaria da Criança e

Adolescente/SP - Criança faz Arte/SP - Terra é Nossa/ Osasco - Criança da Terra/SP -

Esporte Clube Satélite - AABB - Associação Atlética Banco do Brasil - Festa do Folclore -

Prefeitura de Vargem Grande Paulista

4.2.3 Valdeck de Garanhuns·

Valdeck de Garanhuns carrega pelo Brasil uma mala forrada por mais de 30 bonecos criados

por ele e sua esposa durante 20 anos de história no mamulengo. É um artista multifacetado que se

sobressai com destreza em campos arte como poeta de improviso ou de bancada, ator, pintor,

desenhista, compositor, xilogravador, violeiro e contador de histórias. Valdeck de Garanhuns já se

apresentou na Europa e nos Estados Unidos. Algumas de suas obras integram o acervo do Museun für

Völkerkunder de Frankfurt na Alemanha. A arte abraçada e desenvolvida por Valdeck de Garanhuns é

uma arte praticamente extinta no Brasil, já que são poucos os mamulengueiros ou artífices da arte do

mamulengo em atividade. Contam-se nos dedos, confirma com certa tristeza o mestre Valdeck.

O teatro de mamulengo, oriundo do catolicismo alegórico da Idade Média, segundo o folclorista

Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), chegou a Pernambuco por volta do século XVI. De Pernambuco

estendeu-se por mais alguns Estados entre eles estão o Rio Grande do Norte, Sergipe e Ceará.

A brincadeira do Mamulengo tem início quando se arma uma barraca, ou então quando o

boneco é simplesmente manipulado pelo mestre. O ingrediente fundamental é a imaginação.

Transmitir idéias através dos bonecos e histórias é parte integrante do trabalho do artista

Valdeck de Garanhuns: Cada um de nós é um agente cultural. Eu sempre tento passar informações

sobre cidadania pra tentar melhorar a vida das pessoas. É preciso ter este contexto educativo. Mas, além

da educação, o Mamulengo é principalmente um teatro do riso e bonecos estereotipados são

fundamentais para transformar em graça temas tratados de forma dura. Por exemplo, tem um boneco

que é um americano e ele tenta quebrar nossa cultura, vem querendo comprar tudo o que é nosso,

chega mandando. É meio Bush, diz Valdeck.

Pernambuco é o único estado onde se pode acompanhar com mais precisão a história e o

desenvolvimento do mamulengo no Brasil. Existem vários mamulengueiros ou titereiros famosos no

Estado como o Doutor Babau, Cheiroso, Mestre Ginú e outros. Segundo Valdeck só no estado que se

encontra esse tipo de manifestação. Mas o mamulengo mudou nos últimos anos e segundo ele as

pessoas estão sem tempo para apreciar a arte destes atores e bonecos. Quando perguntado sobre o que

mudou no teatro de mamulengo dos tempos de sua criação para hoje, o Mestre não hesita: a alegria. E

justifica: antigamente a gente brincava muito mais. Hoje em dia as pessoas não param para ver o

mamulengo. A linguagem moderna da televisão não permite mais isso.

4.3 Objetivo e problematização

As leituras bibliográficas, a minha experiência profissional e a participação dos

três artistas convidados buscam atingir o seguinte objetivo:

Investigar como os sujeitos participantes deste estudo, aqui chamados de

artistas mediadores, compreendem os processos de mediação no espaço

institucionalizado, em relação às interferências da própria instituição e ante ao momento

histórico social em que vivem.

O questionamento que motiva e impulsiona esse trabalho provém do seguinte

problema:

Como os artistas mediadores aqui entrevistados compreendem, a partir do

contexto histórico e sociocultural em que vivem, a mediação na idealização e realização

de projetos de arte popular em instituições culturais inseridas na metrópole?

4.4 Registros

Essa dissertação reuniu os seguintes materiais:

a) Bibliográfico: composto de livros, revistas e materiais especiais como CD e

DVD.

b) Materiais recolhidos da minha experiência profissional como fotos, relatórios,

catálogos, programas e outros.

c) Entrevistas realizadas com os artistas, devidamente transcritas e analisadas.

4.5 Roteiro de entrevista

O instrumento utilizado na aproximação entre o trabalho de campo e o arcabouço

teórico desta dissertação foi o roteiro de uma entrevista, meio importante para a

pesquisa qualitativa. (CRUZ NETO, 1994, p. 57). Esse roteiro foi composto das

seguintes questões:1) Onde você nasceu? Quais as influências que a sua infância e o local onde você nasceu exercem

no seu trabalho?

2) Como você entende o seu projeto artístico cultural diante do mundo contemporâneo?

3) Como você avalia o produto cultural oferecido pelos meios de comunicação (Mídia)?

4) Qual a sua visão da Indústria Cultural e dos modelos de consumo dessa indústria?

5) Qual a sua percepção ou entendimento que você tem da brasilidade diante do mundo atual (pós-

modernidade)?

6) Como cultivar a tradição dentro da pós-modernidade?

7) Qual a sua fonte de idealização (criação) para a elaboração de projetos de arte popular e quais

os seus objetivos?

8) Na sua opinião, qual a repercussão do seu trabalho no público em relação ao seu trabalho?

9) Quais as dificuldades e desafios que você têm para mostrar o seu projeto de arte popular?

10) Como você avalia as instituições culturais (públicas e privadas) da cidade de São Paulo?

11) Qual a sua opinião quanto ao papel dessas instituições frente aos produtos culturais da mídia e

da cultura popular?

Obtive informações contidas nos aspectos subjetivos por meio de uma conversa

com objetivos bem definidos.

A biografia consultada para a elaboração teórica dessa dissertação é

evidenciada na análise das entrevistas e do material coletado.

Mesmo tendo um roteiro de perguntas abertas deixei o entrevistado a vontade

para abordar o tema proposto, me mantive atento ao rumo da conversa fazendo as

intervenções necessárias.

As entrevistas foram dinâmicas como uma conversa, um “bate papo”. “Em geral

esse tipo de entrevista flui muito mais tranqüilamente na residência da pessoa

entrevistada. Por essa razão essas costumam ser entrevistas mais longas e, de modo

geral, mais densas e produtivas” (DUARTE, 2004, p.111). Assim, seguindo as

orientações, as entrevistas aconteceram na residência dos artistas, em um local

tranqüilo sugerido pelo próprio e foram registradas por meio de uma câmera de vídeo

fixada em um tripé. Estive, durante a entrevista, ao lado do entrevistado e fora do foco

da câmera.

Após a transcrição das gravações iniciei a leitura crítica, a classificação dos

temas abordados durante a entrevista e as suas relações com o problema investigado.

Nessa imersão analisei os cruzamentos de informações, interpretei respostas e

relacionei as narrativas dos artistas entrevistados com a bibliografia utilizada no

trabalho.

As ações, valores, idéias, atitudes, trajetórias de vida e as formas de relação

entre os artistas entrevistados, as instituições e o público, emergiram da fala desses

artistas, bem como as complexas relações entre os processos híbridos, as culturas

populares, a cultura de massa, as formas de mediação e o próprio projeto dos

entrevistados ante a pós-modernidade.

No próximo capítulo tratarei do artista mediador a partir das contribuições

obtidas por meio das entrevistas, à luz das reflexões propiciadas pelas teorias.

CAPÍTULO VCOMPARTILHANDO CONHECIMENTOS:

o artista mediador

Iniciei a pesquisa de campo munido do roteiro de entrevista. As respostas às

primeiras questões fizeram transparecer, por meio das narrativas dos entrevistados, os

primeiros contatos com o mundo, a infância distante do meio urbano, a relação direta

com a natureza e os saberes da cultura popular transmitidos pelos mais velhos. Temas como a relação entre os processos pedagógicos e a mediação foram citados

indiretamente, bem como a necessidade de se trabalhar com conteúdos da cultura popular na sala de

aula foi destacada.

Os artistas mediadores foram transparentes quando os assuntos abordados estavam

relacionados à mídia, às leis de incentivo e às instituições culturais. As críticas dirigiram-se à questão da

massificação cultural e aos critérios adotados para conseguir patrocínios para os projetos de arte popular.

Situações de negociações e consentimentos aparecem quando o artista

apresenta o seu projeto para uma instituição cultural. Um debate eminente também

ocorre a partir da questão: As manifestações da cultura popular devem ser vistas no

seu local de origem ou no espaço institucional?

Relevante em todas as entrevistas foi o relacionamento que o artista mediador

possui com o público que, a meu ver, parece superar as questões estéticas do seu

projeto.

A leitura das entrevistas concedidas pelos artistas foi feita à luz da linha teórica

desenvolvida neste trabalho e das reflexões advindas da minha experiência

profissional. As diversas fontes de conhecimento aqui utilizadas contribuíram para as

reflexões que serão apresentadas a seguir.

5.1 Culturas populares na educação

As narrativas dos artistas mediadores entrevistados trazem nas suas trajetórias

um rico afeto familiar os ensinamentos transmitidos de geração para geração, os

lugares próximos da natureza, o contato com a arte, com os artistas populares e com o

mundo que motivou a vontade de conhecer, aprender e fazer.

Passei a infância num sítio acordando cinco horas da manhã pra ir pra escola... Meu pai veio do

interior do Paraná. Ele gostava e gosta muito do mato, de morar no meio do mato. E a gente acabou indo

morar num lugar que não tinha luz, não tinha água, não tinha nada. [...] isso foi uma base muito forte pra

mim. Esse contato que eu tive com a natureza, de ver todo dia o sol nascer na janela, de ir pra escola

cinco horas da manhã. A gente pegava estrada no escuro pra chegar até outra estrada pra pegar um

ônibus. [...] essa vivência com a agressividade da natureza... Tomar chuva pra ir pra escola, passar muito

frio de manhã, ver muita árvore, muito canto de passarinho, muita semente, brincar muito na terra, muito,

muito, muito... (Selma Maria)

Nasci em Garanhuns. Meu pai foi para Recife... [...] morava em Recife... E eu fiquei entre

Garanhuns e Recife, quer dizer: entre o agreste e o litoral, passando pela Zona da Mata. Conheci o

sertão por causa de Garanhuns... Então com meu avô, ele era caçador. Eu gostava de caçar naquela

época com meu avô. Meu avô me levava e explicava o que era jurubeba... E meu avô era poeta e me

ensinou poesia. Em Garanhuns eu vivia toda aquela coisa rural, eu ia para a feira e na feira encontrava

violeiro, encontrava sanfoneiro.. (Valdeck de Garanhuns)

Meu nome é Irimar Afonso dos Santos. Vulgo Irimar dos Reis. Porque eu fiz um batismo para os

Santos Reis. Eu fiz uma promessa para os Santos Reis e cumpri esta promessa. Sou mineiro do

Jequitinhonha, norte de Minas. Nasci naquela terra lá embrenhado no meio dos vales, numa região de

muitos cantadores, muitas rezadeiras, muitos violeiros, onde têm muitas brincadeiras de rodas, cantigas,

canto de trabalho. [...] porque quando você pensa viver na infância... Como eu vivi... Com essa carga de

valores... Aprendi com meu avô, com meu pai que era sanfoneiro e violeiro. Então isso influenciou muito

meu trabalho e hoje eu sou o que sou... (Irimar dos Reis)

No livro A importância do ato de ler, o educador Paulo Freire descreve suas

lembranças repletas de sons, imagens e lugares. Nos fala a respeito da casa onde

nasceu, no Recife, do quintal, das sombras das árvores, do vento na copa, do canto

dos pássaros, dos frutos e das almas penadas andando na penumbra das ruas. Fala

dos riscos de subir nos galhos e como essas aventuras foram importantes na sua vida.

A linguagem dos mais velhos na infância mostrava-lhe um outro lado de crenças,

costumes, receios e valores. Paulo Freire foi alfabetizado pelos seus pais à sombra das

mangueiras, com palavras do seu mundo, no quintal, tendo o chão como quadro negro

e gravetos como giz (1996 p. 11-15).

Pensar a infância, da maneira como construo essa pesquisa, é encontrar

formas de refletir sobre o passado, estabelecer relações com o momento atual e com

as possibilidades de transformações.

Os artistas mediadores entrevistados nessa pesquisa viveram suas infâncias

distantes do meio urbano. As imagens da infância narradas mostram uma gama de

valores intensos. São artistas que trazem nas suas produções os saberes da cultura

popular, os ensinamentos afetuosos dos familiares e o encontro com a arte popular,

que, nessa fase da infância, determinaram sua formação e destino.

Eu canto, danço, brinco, transmito as brincadeiras e os brinquedos nos shows... [...] gente leva

isso, para o público, de forma espontânea. Como eu aprendi, da forma como eu aprendi e a gente

provoca nas pessoas este sentimento, esta alegria, esta emoção de conviver com a música, com a

dança... [...] isso tá muito carregado dentro das minhas apresentações devido à espontaneidade e esse

aprendizado que eu tive com os mestres. (Irimar dos Reis)

Em Recife, ia no mercado de São José, ia com onze, doze anos. Meu pai era viajante e mamãe

mandava eu receber o dinheiro dele (só quando ele tava viajando) e fazer feira, toda esta coisa, então de

quinze em quinze dias, eu ia lá receber o dinheiro dele. [...] ficava vendo os violeiros e os emboladores

de coco. E também, desde pequeno quando eu tinha uns três, quatro, cinco anos, mamãe me levava pra

gente ver o mamulengo. Então você vê: a minha convivência com a arte... Com uns três anos de idade

eu já via isso. Com uns três e meio, quatro anos, eu já estava no palco fazendo teatro na igreja, no palco

representando e vivi toda a minha vida assim. Aos cinco anos de idade participava... Olha só! Eu

participava ao mesmo tempo do canto orfeônico, marcenaria e também fazia teatro. Então... A minha vida

foi essa, foi povo, foi cultura popular, foi cultura junto com o povo. (Valdeck de Garanhuns)

Na sociedade contemporânea, principalmente no meio urbano, é perceptível a

relação fragilizada dos primeiros contatos de uma criança com o mundo, com a

natureza, com a sabedoria dos mais velhos. Nas grandes cidades, os espaços foram

ficando cada vez mais escassos, o contato com a natureza foi interrompido, os gestos

inibidos e o ato de brincar tornou-se incerto.

Eu lembro do meu pai trazendo muita coisa pra eu poder mexer, pra poder fazer. Ele ia no rio

pegar argila e eu ficava lá horas fazendo colar, panela, fazia todos os meus brinquedos pras bonecas... A

minha mãe costurava muito e... E eu peguei isso desde cedo, de fazer roupinhas também pras minhas

bonecas. A criança vê o adulto fazer coisas no dia-a-dia. Era isso que eu via nos meus pais. Fazendo

coisas que na cidade você já não faz, porque você tem a facilidade de comprar. Então eu acho que essa

formação do fazer, eu acho que foi determinante na minha profissão. Eu acho que o artista plástico ele...

Ele precisa ver, mas ele precisa fazer. Senão eu escolheria uma outra profissão mais teórica. Mas assim,

de pegar a mão na massa, de ir lá e ter que fazer a coisa... Eu acho que tem essa coisa do artesão...

(Selma Maria)

[...] eu brinquei muito, brincava muito com os bonecos de Vitalino34, brinquei com os boizinhos...

...jogava fora as coisas de Vitalino. Ia para Caruaru e tava lá cheio de boizinho Vitalino... (Valdeck de

Garanhuns)

Compartilho de recordações com os meus entrevistados. Há tempos não havia

tantos brinquedos prontos, havia formas de fazê-los com o espaço, a imaginação e

materiais da natureza. Arrumava-se barro, galhos de árvores no terreno baldio, subia-se

34 “Nascido nos arredores de Caruaru, PE, Vitalino morreu por haver contraído varíola, aos 54 anos de idade. Criou uma verdadeira escola de ceramistas “[...] passou para os companheiros de profissão suas novas conquistas técnicas, deixava-se observar trabalhando. Em 1947 expõe suas obras no Rio de Janeiro a convite de Augusto Rodrigues. Em seguida no Museu de Arte de São Paulo. Hoje suas obras encontram-se no Museu do Homem do Nordeste, Museu Castro Maia e Museu de Belas Artes no Rio de Janeiro. O Alto do Moura, Caruaru, é considerado pela UNESCO o maior centro de arte figurativa das Américas, 170 famílias vivem hoje da profissão de ceramista.” (FROTA, 2005, p.410).

em muro para testar o equilíbrio e com bambu, papel e cola de farinha de trigo fazia-se

pipa. Os brinquedos industrializados eram raros apenas alguns podiam adquirir. Diante

do não ter, transformava-se aquilo que estava ao redor. A lata de óleo presa em um

toco de madeira virava um trator, o cabo de vassoura um cavalo, os pneus dos carros

tornavam-se grandes brinquedos. Jogava-se queimada, futebol, bolinha de gude,

amarelinha, rouba bandeira... Colecionavam-se tampinhas, figurinhas, pedras. Havia a

festa junina, comunitária e com músicas exclusivamente juninas, as histórias e

conselhos dos mais velhos, a benzedeira, o chá da avó, a presença da mãe, do pai, do

tio... Havia as chácaras e o medo do homem do saco, do bebê diabo, da loira do

banheiro... A rua como espaço de convivência, descoberta e crescimento foi pouco-a-

pouco deixando de existir.

[...] as cidades cresceram, incharam, a população aumentou, os terrenos sumiram, o campo foi se afastando, as distâncias em São Paulo se tornaram imensas, o perto ficou longe. Caíram as casas e se ergueram os prédios e à medida que a especulação imobiliária avançou, o que antes era infinito foi se reduzindo, tornando-se milimétrico (BRANDÃO, 1994, p.10).

A casa dos avós, com enfeites na parede, espaços secretos e fogão à lenha para

a rica culinária popular brasileira, foi desaparecendo rapidamente. Na pós-modernidade

a racionalidade predomina inclusive nas nossas moradas, local prático de trabalho, com

móveis funcionais geometricamente retos e embutidos nas paredes para o

aproveitamento do pouco espaço. Com os minúsculos apartamentos são projetados,

nas áreas de lazer, playgrounds com brinquedos funcionais e horários para brincar. Os

condomínios desintegram a relação comunitária, pela forma de construção e pelas finas

paredes permeáveis a todos os tipos de ruídos. São locais de conflitos e tensões dos

seus moradores. (DUARTE JUNIOR, 2003, p. 80).

Então, o educador ele carrega essa bandeira todos os dias. De lidar num espaço que não é o

mais agradável pra você trabalhar. Normalmente as janelas das salas de aula estão acima da linha do

horizonte da criança. Então isso... Ela já não consegue admirar a paisagem que está aí fora. Ela já não

tem essa, essa... É tudo muito enfurnado. É tudo muito dentro de caixas, a criança sai da escola é uma

caixa, vai pro apartamento é uma caixa, vai pro shopping é outra caixa. Parece que aqui neva o ano

inteiro! Não é um país tropical. A arquitetura teria que ser muito... [...] revista em função disso. (Selma

Maria)

Além da arquitetura funcionalista padronizando os lares, as escolas,

concomitante à falta de espaço, há, também, nesses tempos pós-moderno, pais e mães

buscando ascensão profissional ou simplesmente condições financeiras melhores para

os seus filhos.

Agora devido ao espaço que a criança não tem, esse movimento do adulto de

trabalhar, de ter que ir atrás e ter que deixar a criança num espaço... [...] ele não tá

mais perto dela, por questões de sobrevivência. Antigamente tinha a mãe em casa, o

pai um pouco mais próximo, mas não tão distante. Hoje em dia são os dois fora. (Selma

Maria)

De fato, uma infância vivida com espaço para a brincadeira e com afetividade

contribui para o início de uma relação saudável com o mundo. É uma relação

essencialmente lúdica e envolve sentimentos diversos – do medo do desconhecido ao

colo materno, da vertigem à coragem, do desbravamento às dificuldades e superações,

das orientações dos mais velhos ao aprendizado com as outras crianças – em um

ensaio cotidiano para a vida adulta.

Acredito que têm coisas na nossa formação da nossa personalidade que

passam por isso... Por essa descoberta, por esse fazer, por esse encantamento das

coisas. É sair e pegar um gravetinho, não largar aquilo, se afeiçoar por aquilo e não

saber por que se afeiçoou. E a natureza taí. Ela oferece milhões de materiais. (Selma

Maria)

Dos instrumentos que a vida lhe ofereceu, dos materiais e diante de uma leitura

própria de mundo, o poeta Patativa do Assaré, estudou só seis meses e mesmo tendo

durante a sua vida condições mínimas para se desenvolver na literatura, escreveu

muitas poesias, como esta que segue:

Neste globo terrestre

apresento os versos meus

porém eu só tive um mestre

e esse mestre é Deus.

Eu nasci ouvindo o canto

das aves de minha serra

e vendo os belos encantos

que a mata bonita encerra

foi ali que eu fui crescendo

fui vendo e fui aprendendo

no livro da natureza

onde Deus é mais visível

o coração mais sensível

e a vida tem mais pureza.

Sem poder fazer escolhas

de livro artificial

estudei em lindas folhas

do meu livro natural

e, assim, longe da cidade

lendo nessa faculdade

que tem todos os sinais

com esses estudos meus

aprendi a amar a Deus

na vida dos animais.

Quando canta o sabiá

sem nunca ter tido estudo

eu vejo que Deus está

por dentro daquilo tudo

aquele pássaro amado

no seu gorjeio sagrado

nunca uma nota falhou

na sua canção amena

só canta o que Deus ordena

só diz o que Deus mandou.

Patativa do Assaré

Nos versos, o poeta deixa transparecer os ensinamentos colhidos da natureza,

sua leitura de mundo e de tudo aquilo que está ao seu redor. O poeta atribui o seu

talento a uma onipotência mediadora: Deus.

Entendo que, na pesquisa, os processos de mediação entre o artista mediador,

projetos de arte popular, instituições culturais e o público implicam uma ação educativa

estruturada nas articulações entre o indivíduo e o mundo ao redor. “A leitura do mundo

precede a leitura da palavra” (FREIRE, 1996, p. 11) e nos acompanha durante a

infância até a compreensão crítica de ler as palavras e ler o mundo.

Ao pensar sobre a ação educativa existente nos processos de mediação dos

projetos de arte popular dos artistas entrevistados, trago à vista alguns pressupostos

emergidos da colaboração desses artistas ante as situações deflagradas pelo contexto

pós-moderno.

Quando afirmo que os processos de mediação entre o produto artístico e o

público são processos pedagógicos, vislumbro a necessidade de discutir a ação

educativa inserida neles. Tenho clara a importância de iniciar a discussão tecendo

algumas considerações sobre o espaço escolar.

Há diferenças nítidas entre os aprendizados advindos da sabedoria dos mais

velhos, da natureza, do espaço de brincadeiras e dos conteúdos da cultura popular e

dos conteúdos programáticos dos currículos escolares.

A escola é transmissora dos conhecimentos acumulados pela humanidade. É

uma outra forma de aprender, uma forma sistemática, diferente da forma exercida

livremente no meio urbano ou no meio rural, mas, mesmo assim, é uma forma

importante de aprendizado, muito embora, “[...] o sistema escolar, de qualquer

sociedade, é o reflexo fiel da política e da ideologia dos grupos governantes e dos

partidos políticos no poder”.(GUTIÉRREZ, 1988, p.17). Na escola deveria haver espaço

para o exercício da imaginação e a criatividade. Acredito que os educadores sejam

criadores de acontecimento ou de possibilidades para que a educação aconteça.

Acredito na instituição escola como um local onde a criança, o jovem e o adulto

desenvolvem suas capacidades para o enfrentamento do mundo.

O pensador Henry A. Giroux, afirma que as experiências da cultura popular

devem ser consideradas na formação dos indivíduos.

Os educadores que se recusam a reconhecer a cultura popular como base importante para o conhecimento freqüentemente desvalorizam os alunos, recusando-se a trabalhar com o conhecimento que eles realmente têm. (1999, p. 213).

Penso que a ação educativa deve partir da realidade dos alunos e que deve ser considerada a

diversidade cultural e as constantes transformações da nossa sociedade. Amparado também na

experiência que tive como professor da FAFE (Fundação de Apoio à Faculdade de Educação da USP),

durante o curso “Vivências Culturais”, realizado no ano de 2002, proponho algumas estratégias para o

professor estabelecer no espaço escolar relações entre a cultura popular e o momento atual, como por

exemplo:

• Reconhecer as diversas linguagens artísticas da cultura popular, como a literatura, as artes

visuais, o teatro, a música e a dança.

• Mostrar os processos híbridos da arte popular e o quanto as linguagens artísticas, na sua

grande maioria, oferecem cruzamentos, por exemplo, a xilogravura e a literatura de cordel.

• Pesquisar a comunidade escolar e suas atividades de cultura popular.

• Conversar com os moradores antigos dos bairros para saber sobre as transformações e

receber ensinamentos

• Buscar relações entre as manifestações da cultura popular e o contexto histórico social,

econômico, político e cultural.

• Relacionar a cultura popular com a cultura erudita desmistificando barreiras ideológicas.

O reconhecimento da comunidade escolar e seu do entorno, é essencial para a atribuição de

significados aos conteúdos trabalhados em sala de aula.

...uma árvore que tem muito em cidades é aquela pata-de- vaca35. Ela tem uma vagem. Uma

professora me ensinou que aquilo ali era um brinquedo. Então com certeza existem ‘milhões’ dessas

árvores na frente da escola, no quarteirão da escola, dentro da escola, na calçada próxima, no quarteirão

próximo a essa escola que não é explorado. Então essa vagem ela tem uma particularidade que você

abrindo ela um pouco assim na... ...você faz um brinquedo de estalar, né? Quer dizer, eu acho isso

interessante, não sei. Pra mim, eu acho, quando eu descobri aquilo eu fiquei encantada... (Selma Maria)

Os locais, os relacionamentos comunitários, as práticas sociais e suas interferências na vida

escolar são fatores importantes para a construção do entendimento sobre o contexto sociocultural do

aluno. Esse amplo olhar do educador permite uma maior aproximação com a realidade do aluno e os

significados de suas vidas. (GIROUX, 1999, p.213).

De acordo com Ana Mae Barbosa, a cultura popular na ação educativa é tão importante quanto

outras formas particulares de culturas que foram subtraídas através do poder ideológico da classe

dominante. Nesse sentido, as contribuições de mediadores são absolutamente necessárias, tanto para a

ação educativa desenvolvida na escola, quanto para a ação educativa nos processos de mediação entre

produção artística e público, no sentido do indivíduo construir, diante do hibridismo cultural,

representações de si mesmo e do mundo do qual é parte.

O intercruzamento de padrões estéticos e o discernimento de valores deveriam ser o princípio dialético a presidir os conteúdos dos currículos na escola, através da magia do fazer, da leitura deste fazer e dos fazeres dos artistas populares e eruditos, e da contextualização destes artistas no seu tempo e no seu espaço. (BARBOSA, 2005, p. 34).

Quando eu estava no espaço-escola, a minha grande batalha era o fazer da criança. Então o

que isso significava pro diretor da escola? Pra diretora... Era que o produto ia sair mal acabado e não ia

ser um produto que ia deleitar a maioria dos pais. Isso na visão da maioria das escolas. Claro, sempre

aparecia alguém fazendo produtos de artesanato de revista. Coisas bonitinhas que mal a criança punha a

mão naquele material, mas depois vinha aquela coisa: feito pelo seu filho. Uma grande mentira.

Lembrancinha de Páscoa, de dia das mães, dia dos pais, que você vê que tem pouco ali a mão do teu

filho. Enfim, mas tinha que sair um resultado bonito porque o pai tava ali pagando, enfim, tava investindo

de alguma forma e a escola tinha que dar esse retorno aos pais. Então a minha batalha era essa de

mostrar que o fazer era importante pra criança, se sujar e descobrir, enfim... Não importava o resultado

pra mim. Não era importante o resultado. O resultado era o processo. Quer dizer... Aquele ano ia fazer

daquele jeito, outro ano ela ia entender o processo melhor. Mas assim; o tempo dela é diferente. É muito

mais lento do aquele que a escola propunha. Então minha grande luta era essa. Além do que, como 35 Bauhinia é um gênero com vários representantes da família das leguminosas (Caesalpinioideae). No total, são mais de 200 espécies. São árvores muito ornamentais devido às suas flores vistosas e por isso são muito utilizadas no paisagismo e na arborização urbana. São conhecidas popularmente por Unha-de-vaca, Pata-de-vaca e Casco-de-vaca, por causa do formato de suas folhas. http://pt.wikipedia.org/wiki/Pata-de-vaca

formada em artes plásticas, havia uma cobrança que eu desse aulas só de Van Gogh, Picasso, de

Chagall, Matisse, artistas que trabalham o popular, mas pra nós, brasileiros, já tem outra leitura. Artistas

europeus que estão nos museus de arte contemporânea e que é importante as crianças saberem.

Também acho importante. Mas, só eles não. Mas, não são só eles. Outras coisas outros ensinamentos

que no meu caso eram muito ligados... [...] coisas de natureza, de descobrir o brinquedo popular, de

descobrir a brincadeira. Então foi começando a criar um choque muito grande, uma resistência no meu

trabalho. Até que chegou um dia que a dona da escola falou: Olha ou você volta a dar aulas de Van

Gogh ou você tá fora do nosso esquema. Eu falei: então tchau.

Mas a partir daí, desse momento que foi de ruptura com a instituição, eu fui começar uma

pesquisa particular que foi daí que nasceu todo esse trabalho dessa pesquisa. E depois dos brinquedos

com a literatura de Guimarães Rosa que trabalhava muito também a cultura popular do Sertão. Eu tinha

certeza que era esse o caminho, que não tinha mais volta. Eu admiro quem... Ah... Eu admiro essas

pessoas que dão aulas de Picasso, de Van Gogh, mas eu acho que já tinham muitas pessoas pra dar

essa aula, esse tipo de aula. E muito mais capacitadas que eu e eu tinha certeza que esse era meu

caminho. Eu não tive uma formação dentro de um museu, de uma família intelectual, foi uma formação

mais voltada com coisas da... Da natureza e, eu acho que daí que vem essa preocupação da natureza

em relação a natureza do homem né? Mais humanista... E não uma questão só intelectual. (Selma Maria)

O objetivo do ensino de arte na escola não é formar artistas, mas sim contribuir

para a formação de indivíduos capazes de agir com conhecimentos e com postura

crítica em relação ao mundo. O aluno poderá até transformar-se em um grande artista,

mas a intenção é que ele tenha conhecimentos, que ele seja um fruidor de experiências

estéticas, um freqüentador de instituições culturais. Porém, eventos culturais como

concertos, espetáculos de balé, museus e exposições de arte estão restritos a uma

minoria, a uma parcela da nossa sociedade, uma elite. É papel da escola possibilitar o

acesso aos bens culturais e às produções artísticas da humanidade. Tanto as

produções da cultura da elite quanto as produções da cultura popular. A escola é a

instituição que pode tornar possível o entendimento dos códigos estéticos de diferentes

grupos sociais. No entanto, “o que vemos é que, para o povo, o carnaval, o candomblé,

o bumba-meu-boi” - a negação das experiências estéticas da classe dominante. A elite,

por ser dominante já possui acesso e participação na produção da cultura popular.

(BARBOSA, 2005, p. 32 e 35).

Para o antropólogo Gilberto Velho, o termo cultura é definido de acordo com

interesses específicos, com o pressuposto básico para a identificação de produções e

representações socioculturais que possam ser diferenciadas ou comparadas com

outras formas de produções. As culturas são subdivididas para efeito de estudo,

portanto podemos falar de forma ampla, por exemplo, cultura ocidental, da cultura

grego-romana, ou ainda de forma mais específica, como a cultura guarani, a cultura

paulistana, a cultura da criança etc. (1999, p.64).

Tem uma evolução, isso é evolução, o povo que está ligado na sua cultura é um povo que está

evoluindo. Que tem este sentimento maior, que tem uma inspiração, e tem uma relação espiritual...

Porque a ancestralidade também abrange tudo, as nossas raízes, então isso é caminhar, conviver

conscientemente, porque tem uma consciência maior, uma cultura maior, que hoje até está se falando

em cultura da paz, e a gente entende que a cultura popular brasileira é a cultura da paz, é a cultura do

bem., é um bem material e imaterial. (Irimar dos Reis)

A arte popular não pode realmente ser segmentada, porque o ser humano ele não é

segmentado. Quer dizer, ele tenta se fazer. A indústria tenta segmentar, mas quando você vê uma

pessoa inteira, na sua grandeza, feliz, ela não é... Naquele momento ela não é segmentada. A gente

pode dançar, cantar, pode criar poesia, nesse momento a gente pode tudo. (Selma Maria).

[...] o balé nacional de Recife, são dançarinos que estudaram dança erudita... O que é erudito?

O que não é? Porque está assim, ninguém sabe onde começa uma e termina outra. Beethoven, quase

abortado pela mãe, no entanto gênio da música. Então não importa se ele nasce na burguesia ou se ele

nasce na favela, porque quando ele nasce para ser intelectual, espiritualmente, ele brota das cinzas, das

pedras, ele surge... Então... Coloca um balé bem bonito lá no palco, na praça, num dia de domingo. Você

acha que vai acontecer o que? As pessoas vão com todo o respeito. As pessoas vão ficar deslumbradas.

Não cobra ingresso para você ver uma coisa. Põe as escolas para assistir ao concerto da Orquestra de

São Paulo. Gratuito. Aí sim! Isso para mim é formar. Porque as pessoas não têm acesso ao Teatro

Municipal. Ah... Não! O Municipal é uma coisa... é intocável, é uma coisa da elite, é elegante... Eu não sei

quem classifica isso, (popular e erudito) porque isso é classificação sociológica. Aqui é isso. Aqui é

aquilo. Esta classificação sociológica das coisas... Não natural. (Valdeck de Garanhuns)

5.2 O artista mediador e o mundo ao redor

Enfatizo a importância da cultura popular, especificamente no aspecto artístico,

enxergo como os artistas entrevistados, ou melhor, eles me ajudaram a localizar como

as divisões e subdivisões dos vários conceitos de cultura implicam definições

ideológicas. Assim, retomo os primeiros conceitos de cultura apresentados.

O pensador Raymond Williams considera que o conceito de cultura incorpora

questões e contradições, funde e confunde experiências diferentes da formação do

próprio conceito. Analisa a formulação dos conceitos de “sociedade” e “economia”,

como relativamente recentes e estruturados como conceito por meio da interação com

a história e experiências em transformação. Afirma que parte do mundo moderno

constrói a sua forma de pensar, desconsiderando a formação e os problemas não

resolvidos dos mesmos conceitos. Como os conceitos de “sociedade” e “economia”

possuem problemas não resolvidos, eles repercutem no conceito de “cultura”. O autor

questiona: “Devemos compreender cultura como as artes? Como um sistema de

significados e valores? Como todo um modo de vida? E como relacioná-lo com a

sociedade e a economia?” (1979, p.19)Raymond Williams diz que o conceito de cultura visto no contexto histórico social é amplo e

evidencia que os outros conceitos são limitadores. Isso parece ajudar na definição do conceito de cultura

porém, a abrangência causa dificuldades tanto na definição, quanto na compreensão. O autor pontua,

brevemente, algumas determinações do conceito de cultura perante a história. “Até o século XVIII o

conceito de cultura era objetivo: cultura de alguma coisa – colheitas, animais, mentes”. Para o autor, os

significados dos novos conceitos de cultura só podem ser entendidos se examinarmos um novo conceito

surgido no séc. XVIII: o conceito de civilização. Ele expressa dois sentidos: um Estado contrastando com

a barbárie ou em pleno desenvolvimento, em progresso histórico. “Foi essa a nova racionalidade do

iluminismo”. De fato, ocorreu no séc. XVIII, um avanço significativo ante a perspectiva evolutiva da

História Universal. Porém, na prática, a civilização metropolitana da Inglaterra e França julgava-se um

Estado realizado. “A racionalidade chegava a um ponto onde se poderia dizer que a civilização havia sido

alcançada”. (1979, p.19)

Raymond Williams, ao fazer um apanhado geral do contexto histórico no qual desenvolveu-se o

termo cultura, contrapõe duas formas antagônicas de pensar cultura ainda no final do século XVIII. O

termo civilização como um estado artificial (predomínio de uma racionalidade) em contraposição, a um

estado natural tendo o termo cultura, como cultivo (predomínio de impulsos mais humanos). Foi essa

contraposição, segundo esse pensador, que forneceu a base para o entendimento de cultura associado à

religião, às artes, à família, à vida pessoal e em distinção, ou mesmo oposição, à civilização e à

sociedade.

O autor afirma a complexidade do termo cultura na vida intelectual, nas artes, nos modos de

vida. “Em qualquer teoria moderna de cultura, mas talvez especificamente na teoria marxista, essa

complexidade é motivo de grande dificuldade.” A intervenção marxista no conceito de cultura como

civilização está na crítica específica à sociedade burguesa criada pelo modo de produção capitalista e

como essa sociedade transformou países “bárbaros” em dependentes dos países civilizados. A

civilização, constituída nos padrões burgueses produziu riquezas e também pobreza em razão do

domínio dos meios de produção e da mão de obra da classe trabalhadora. (1979, p. 23)

Um outro ponto sobre a teoria marxista abordado por Raymond Williams, corresponde “à

rejeição do que Marx chamou de historiografia idealista” em referência ao Iluminismo, que excluía o

contexto histórico. Raymond Williams apresenta os conteúdos marxistas “do homem que se faz a si

mesmo, pela produção de seus próprios meios de vida” como o mais “importante avanço intelectual em

todo o moderno pensamento social”. Essa nova maneira de ver o mundo aproximou as idéias entre o

artificial e o natural, descobrindo novas relações constitutivas entre sociedade e economia. (1979, p. 24).

Retomei às argumentações teóricas de Raymond Williams buscando, por meio de uma análise

histórica do autor, formas de estruturar melhor um dos conceitos de cultura proposto na pesquisa.

As produções culturais de uma sociedade são resultados de uma complexa relação entre

homem e mundo e que as estruturas materiais meios de produção determinam nessa relação.

Ao agir diante do cotidiano, tendo como suporte uma análise crítica da realidade ou uma

produção cultural própria, o indivíduo assume diante do mundo uma atitude de não indiferença, opõe-se

aos padrões impostos por ideologias dominantes e constrói, por meio da sua própria experiência de vida,

uma gama de valores voltados para a transformação da sua comunidade e do grupo social do qual faz

parte.

[...] vão mexendo com a memória, e aí que a gente acaba com a esta coisa da modernidade, do

moderno, do contemporâneo, cheio das complexidades, das estéticas, de valor, de... Então agente leva

esta riqueza, estas cantigas para tocar para as pessoas, no sentimento dela, na alma, no espírito porque

é, na sociedade quem é do terreiro, quem convive com festa... Você não larga o pé. [...] mesmo com

toda esta modernidade, com esta complexidade, com esta tecnologia, internet, tudo, os botões que tem

que ser apertados para acessar a vida, a gente não deve abandonar aquilo que nos move. O que nos

leva a evolução, por exemplo, a nossa sociedade, as nossas culturas, as nossas raízes, a gente não

deve abandonar... a gente deve estudar, buscar, conviver, reviver, rememorizar, a cultura popular

brasileira. (Irimar dos Reis)

Considero que a cultura popular, seus conhecimentos e manifestações

artísticas, intrínsecas ao comportamento e à memória dos habitantes de uma cidade

como São Paulo, podem ajudar no entendimento entre as culturas locais e as globais, a

tradição e a pós-modernidade, situações nas quais permeiam as relações sociais dos

indivíduos e dos seus coletivos.

O cenário urbano é composto por processos híbridos e pelo estilo de vida pós-

moderno. É um local onde a desigualdade revela todos os dias a pobreza humana e os

meios de comunicação de massa desprezam as singularidades, as construções

coletivas e o cotidiano do homem comum. No palco da urbanidade, atuações

pragmáticas e funcionais que organizam e determinam as forças produtivas. É um

cenário que se modifica rapidamente e possui vários ângulos de análise. Hoje, o

cenário urbano não pode ser visto apenas como um local de habitação e trabalho.

Na cidade de São Paulo ocorrem eventos que estão em conexão com o mundo,

são espetáculos de arte, rituais religiosos, eventos esportivos, atos reivindicatórios,

passeatas contra os preconceitos, convenções, encontros de lideranças mundiais.

Enfim, acontecimentos históricos e decisivos para a política, a economia e a cultura. Historicamente, a idéia de progresso e riqueza misturada com o dinamismo urbano e outras

inúmeras razões da atualidade impulsionam migrações e distanciam as pessoas dos seus locais de

origem, criando conflitos de identidade.

Eu vim para São Paulo, cheguei aqui em oitenta e cinco, e vim, trouxe meu violão, trouxe outras

coisas e trouxe quatro bonecos de uma peça que era uma peça inspirada no mamulengo que tocava no

coração. E sem compromisso, porque eu gostava de boneco, e quando cheguei aqui, eu comecei com os

quatro bonecos que eu trouxe. Eu ia para os forrós e comecei a montar os bonecos lá, daí o pessoal

gostava e eu comecei a fazer, peguei boneco, fui fazendo boneco aqui, fui comprando boneco, e aí

estou aqui até hoje.(Valdeck de Garanhuns)

É uma tarefa... É uma tarefa nada fácil. Você chegar num lugar novo, conhecer o novo. A gente

que está muito... Eu estou muito, estou muito, muito ligado às ancestralidades, das festas. Então você

vem de um lugar no interior. Onde você é meio matuto, meio caboclo. Então o novo, o moderno, ele te

choca muito, assim, te assusta. Então, quando eu cheguei na grande São Paulo, por exemplo, me

chocou, quando eu não vi as montanhas, quando eu não vi as festas. Ah! Então aí, uai! Quando você

está aberto para buscar um novo mundo... Eu acho que as pessoas me receberam muito bem. A

principio quando eu cheguei aqui, eu me recordo que meu primeiro ano foi muito difícil. Mais depois as

portas foram se abrindo. Então com essas vivências, com estas experiências de vida que eu tive lá no

Jequitinhonha, enfim, dentro do sertão. (Irimar dos Reis)

Para o indivíduo que chega à cidade de São Paulo para morar e trabalhar, a vida urbana,

entremeada por todos os lados pela pós-modernidade, estabelece novas relações sociais, que sintetizam

elementos urbanos com rurais. Esse homem híbrido incorpora também, pela falta de referência e novos

valores, padrões da cultura de massa. Na cidade de São Paulo, os meios de comunicação de massa

estão em toda parte. A cidade é narrada diretamente pelos jornais e pelos programas de rádio e

televisão. Há programas, como o “Brasil Urgente” 36, que oferecem ao espectador espetáculos

sensacionalistas com acidentes de carro, enchentes, desmoronamentos e assassinatos. Toda a

cobertura dos acontecimentos da cidade é feita por helicópteros e por um número expressivo de

jornalistas.

As relações sociais são intermediadas pelos meios de comunicação de massa e pela alta

tecnologia, ambos contribuindo para a reprodução da ordem social. Por outro lado, é importante destacar

as transmissões de rádio e da televisão, bem como as matérias de jornais e revistas que mostram

protestos e reivindicações em benefício de uma comunidade. Sem dúvida são pautas importantes para a

cidade.

A pós-modernidade é norteada pelo excesso de informação e pelo consumo preconizado pelos

meios de comunicação de massa. A estrutura pós-moderna enfatiza a importância da diversidade e não

deve ser entendida como ruptura à discussão dos conflitos entre grupos dominantes e grupos dominados,

mas, sim, como uma forma de pensamento que visa à realidade que se pretende analisar.

A diversidade existente no espaço urbano condiciona e impulsiona o indivíduo na busca de

construções e reconstruções de identidades.

O estudioso inglês Stuart Hall analisa as conseqüências do momento atual sobre as identidades

diante de três situações: a) as identidades nacionais estão se desintegrando como resultado da pós-

modernidade global; b) as identidades locais são reforçadas pela resistência à globalização; c) novas

identidades híbridas surgem no lugar das antigas identidades nacionais. (2005, p.69).

O autor afirma que a globalização altera identidades fechadas e centradas em si mesmas e

desloca as idéias no tempo, lugar e história. Entretanto, ressalta que há, juntamente com o impacto

global, o interesse pelo local e suas novas identidades. A globalização possui um efeito que pluraliza as

identidades e produz novas posições de identificação.

[...] a minha família sempre disse, olha você é um cabra do mundo, cabra do mundo ele tem

que girar, e o cabra quer girar, ele vira, gira e vive e aprende muita coisa né, então o que é que a gente

leva, o que é que a gente leva nesta bagagem? Neste fardo, leva felicidade para as pessoas. Dai e que

eu acho que onde a gente chega, as pessoas vão se identificando, “nossa mas essa cantiga é lá do

36 O pioneiro desse modelo foi o “Aqui agora”, veiculado no SBT, mas a sua fórmula foi copiada pela Rede CNT, através do “190 – Urgente”; pela Rede Record de Televisão, com “Cidade alerta”; e Rede Manchete de Televisão, com “Rota do crime” e outros mais. Todo material é elaborado na forma de um drama, e o apresentador utiliza uma entonação própria de suspense e um ar de corre-corre, com o claro objetivo de fazer o telespectador ficar ansioso com o que está por vir. http://www.versoereverso.unisinos.br

interior de Minas”, “mas essa coisa de... “, “mas estes cururus lá do mato grosso”, “nossa, que bacana,

minha mãe cantava”, “minha vó que mora aqui em São Paulo, canta isso até hoje”, a gente brinca com

estas cantigas da gente mineira lá do Jequitinhonha, ou lá de Pernambuco, canta este côco, então, esta

identidade, esta identificação, a gente leva as pessoas a, elas vão se encontrando... (Irimar dos Reis)

Stuart Hall desenvolve o conceito de tradução que é referente às pessoas que atravessam para

outras regiões levando consigo formações de identidades, são possuidoras de fortes vínculos com as

suas tradições. Cientes que estão longe da sua terra natal são obrigadas a negociar com as novas

culturas em que vivem. Essas pessoas assimilam a nova cultura e oferecem ao local onde vivem

tradições, linguagens e histórias. Para o autor, essas pessoas são obrigadas a se abster de qualquer

intenção de recuperar uma cultura pura. (2005, p.67-89)..

[...] tanto é que você viu agora para mim foi à afirmação do meu trabalho, esta mostra no SESC

AV. Paulista. Então foram dez apresentações, dez histórias diferentes. Um folder muito bonito que

fizeram e estava lotado todos os dias. Dia de chuva, frio garoa... O espaço lá tava lotado, todo mundo foi

assistir, não teve um dia que tivesse menos de cinqüenta, sessenta pessoas no espaço. Cem pessoas,

setenta, oitenta, lá no espaço, era lotado. Fazia do lado de fora, nos dias de sol e ficava gente parada no

meio da rua, lá na Paulista. Todo mundo parado assistindo, os táxis paravam, os carros paravam e isso é

que é sucesso para mim. Porque eu lutei para conseguir isso, eu lutei, vai fazer vinte e um anos que eu

estou aqui em São Paulo este ano. É coisa de muita luta, junto com sofrimento com alegria é a luta, de

toda uma vida. Mas, eu hoje sou feliz com a minha família, com o meu trabalho. E São Paulo é uma

cidade que é ao mesmo tempo, maravilhosa e ao mesmo tempo cruel. Porque ela te cobra. Ela, se você

não cuidar dela, ela te engole e engole mesmo! Porque você desaparece na rua, ninguém sabe quem é

você, acabou-se desapareceu, e ninguém sabe não. Mas, também se você deixar, ela te eleva, te leva à

tona, você vai subindo com ela. Você quere saber? Viver aqui, lidar com São Paulo... São Paulo é difícil,

é uma megalópole muito complicada, cheia de problemas e também cheia de coisas boas. Então, eu

soube e sei conviver. E tô aqui e continuo. E cada dia mais o meu trabalho tá sendo bem quisto e tá

sendo sucesso. Hoje, meu trabalho é bem aceito, mas mesmo assim ele ainda sofre umas... E não é o

trabalho, é a cultura popular brasileira (Valdeck de Garanhus)

A cultura popular abriga, na sua vasta área de ação, produções tradicionais. No entanto, ante a

pós-modernidade, essas produções tradicionais são transformadas rapidamente.

Paira no ar uma paradoxal relação entre a des-construção de muitos valores tradicionais e a aspiração por novos princípios orientadores da ação e do comportamento humano. O homem vive o distanciamento dos princípios éticos antigos, referentes a realidades históricas do passado e a carência de novos sentidos e valores. (GOERGEN, 2005, p.9).

Meu objetivo não é exaltar as tradições, no entanto, também não quero negá-las. Acredito que

as tradições são importantes e complementam a contemporaneidade. São compostas por referências

históricas, bases culturais sólidas e capazes de permitir as aproximações de outras culturas,

conhecimentos que passam de geração para geração e momentos socioculturais vividos, mantidos e

construídos ao longo do tempo. Elas formam sustentações para a criação do novo.

[...] então o Brasil tem a vaquejada e tem o caubói, a festa de peão. Só que a vaquejada é uma

festa típica o nordeste, inspirada até na cavalhada. A cavalhada, então, que você vai pendurar num

cordel... E o que é a vaquejada? É que você coloca o boi à distância, solta o boi aqui na esteira, que é o

que não deixa o boi correr que nem doido, porque senão ninguém pega. Aí pega no rabo dele e depois

derruba, é isso. E não tem esta coisa de rodeio. Agora por exemplo: se pegasse o rodeio e ele fosse feito

aqui de uma maneira diferente ai tudo bem. Mas os caras importam roupa, cinto e chapéu. Amarram as

coisas do touro, que dizem que é para o touro pular muito... [...] do jeito que este rodeio surgi: do caubói

que ia lá para montar o cavalo, a vaquejada também. Porque a vaquejada surgiu do vaqueiro ir pegar o

boi no mato, quando a boiada tava aqui e um boi se desgarrava para a caatinga. E tem estas histórias de

Boi Leição37, boi que desapareceu, mamulengo, boi, a gente faz uma festa para ver quem pega o boi,

porque às vezes ele fica um ano, dois, no mato, o boi, sabia? É, e um monte de vaqueiro procurando, e

haja. Hoje ele também já não fica porque a caatinga acabou com tudo, tem aquelas caatingas cerradas,

mas o vaqueiro não pode entrar porque o couro do boi é duro. Esta história do coronel que faz uma festa

e quem pega, um torneio, de quem pegar meu boi casa com a minha filha, é por isso. E juntava os

vaqueiros da região, os mais destemidos, iam buscar o boi do coronel e quem chegava com ele o coronel

dava a mão da filha dele, e ainda dava um prêmio em dinheiro. E disso ai surgiu o esporte da vaquejada:

ia para pegar, tinha que derrubar o boi, laçar e trazer. Os caubóis também que iam domar um cavalo. E

eles iam, apertavam o bicho e ele pulava e a vaquejada ia buscar o boi. Agora essas coisas aí, você

pegava as coisas aí, eu solto, por exemplo, não sei se é verdade: Vaquejada de motocicleta. Pelo amor

de Deus! (Valdeck de Garanhuns)

Se as pessoas se organizam nas suas comunidades, para eventos de tradição cultural, como é

o caso das vaquejadas38 e também de dezenas de outras tradições da cultura popular, é porque elas são

necessárias e possuem significados importantes para a continuidade na vida coletiva e sociocultural das

mesmas

Eu aqui (na cidade de Cotia-SP) já desde doze anos que eu moro aqui. Quando eu vim morar

aqui em Cotia, eu acabei por curiosidade...Fui ao encontro dos mestres. E com essas pessoas, eu

conheci algumas pessoas que fazem Folia de Reis. Conheci seu Benedito do congado, comecei a fazer

parte do congado, daquela família, do congado e da família dos Reis também. [...] onde várias pessoas

37 Referência ao conto tradicional recolhido por Câmara Cascudo (1998).38 A vaquejada surgiu da necessidade do fazendeiro recuperar o gado solto na mata cerrada. Hoje, ela se tornou um grande evento organizado por empresários e fazendeiros. www.vaquejada.com.br

que comungavam a cultura popular brasileira. E, a partir daí, destas minhas experiências e desta prática

de estar lá nas festas, fazendo compromisso religioso, ora social, ali com eles, ora como pesquisador,

ora como amigos. Daí nasceu também a Companhia de Santo Reis que é uma companhia nova, que sai

com bandeira, sai cantando de porta em porta e já faz a sua jornada religiosa. Sai todo ano, seguindo,

então: tem mestre, tem contramestre direitinho, tem os foliões, os palhaços. (Irimar dos Reis)

As produções culturais contemporâneas são frutos daquilo que é preservado fisicamente e

mentalmente. As tradições que são mantidas nas lembranças dos mais velhos aguardam para serem

expostas ou resgatadas pelos mais jovens.

Acredito que se as tradições deixarem de existir ficaremos sem apoio, sem passado e

vulneráveis ao modo de vida na pós-modernidade.

Diante destas transformações contemporâneas que relativizaram os fundamentos das identidades nacionais, alguns setores crêem encontrar nas culturas populares a última reserva das tradições, as quais poderiam ser julgadas como essências resistentes à globalização. (CANCLINI, 2005, p.197).

De fato, a cultura popular abriga muitas formas tradicionais entre os mais variados campos do

conhecimento, que são construídas sobre estruturas de sustentação com valores, parâmetros,

referências históricas e socioculturais.

O meu propósito é este: o de manter a tradição. Manter a tradição não tem nada a ver com a

terra que veio. Porque isso é ridículo, é outra coisa. Manter a tradição é as religiões, ir buscar a santa lá

em Israel, olha a santa que veio do lado de lá, então manter a tradição significa manter uma raiz. Porque

numa planta, numa planta, você pega... Lá em Recife, tem uma mangueira que bota manga rosa e

manga espada, é enxertada, do mesmo pé ela bota manga rosa e manga espada, tá lá. Mas a raiz é a

mesma. É ou não é? Não tem raiz que bota a mesma manga rosa e espada. Porque, aí vem e aqui ela

se destrincha, se reunifica e bota manga rosa e manga espada. Mas a raiz que está lá embaixo é a

mesma. A roseira, o manacá. Sabe aquele pé que dá um monte de rosinha branquinha. Né? Então ela é

branca, depois ela fica cor de rosa, roxinha, mas a raiz é branca. Porque elas estão ali sempre no mesmo

núcleo como se diz. Então manter a tradição é isso... Por quê? Por que eu não posso manter o

mamulengo de uma tradição rural aqui dentro de uma cidade urbana como é São Paulo? (Valdeck de

Garanhuns)

A palavra híbrido provém das ciências biológicas e significa o “originário do cruzamento de

espécies diferentes”39. Duas espécies da fruta manga, por exemplo, enxertadas introduzida uma parte

39Significado do verbete – híbrido – extraído do Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa correspondente à 3ª edição, Curitiba: ed. Positivo, 2004.

viva em outra parte viva produz em duas espécies de manga: a espada e a rosa. Na maioria dos casos o

enxerto é capaz de produzir outra espécie de um vegetal. Retirado das ciências biológicas o termo foi

adaptado para as humanidades.

Os processos híbridos, abordados logo no primeiro capítulo do trabalho constituem-se na idéia

de que as culturas se encontram e acabam originando novas culturas. A importante colaboração do

artista mediador Valdeck de Garanhus permitiu-me o questionamento sobre o quanto esses processos

interferem nas tradições e o quanto as raízes culturais continuam a fornecer bons frutos. Como por

exemplo, a rosa branca que com o tempo fica roxa, mas tem a sua raiz branca.

As incertezas geradas pelos processos híbridos são muitas e nesse trabalho, não tenho a

intenção de obter resultados conclusivos e determinantes. Os meus questionamentos são decorrentes da

união entre as leituras bibliográficas, a minha experiência profissional e a participação desses três artistas

mediadores. Consciente trago apenas algumas colaborações e muitas dúvidas. Penso que uma ruptura

entre o tradicional e o contemporâneo equivale a perdas significativas. Os processos híbridos existem e,

no caso do Brasil, formam uma nação com diversidade excessiva.

E uma coisa que também é determinante nessa coisa de cultura popular é porque nós somos

um povo mestiço e, nunca, como Darcy Ribeiro fala: nós nunca fomos recriminados, nós nunca... É...

Nunca fomos recriminados por sermos mestiços, né? Existem povos que não puderam ser mestiços... E

nós não. A nós foi dado esse direito, da mistura, da junção. E eu acho... Por isso que ela é tão rica, essa

cultura. (Selma Maria)

No nosso Brasil pode vir gente do mundo inteiro. Aqui você têm os italianos com a sua cultura,

você têm os japoneses com a sua cultura, você têm os árabes com a sua cultura, você têm os alemães,

os chineses, coreanos... Então, tem muita coisa dos portugueses que veio pela miscigenação que é

maravilhoso. Os holandeses, antes de deixar Recife, deixaram um grande legado cultural... Agora...

Alguém te força a comer pizza? Não. Porque você experimenta, gosta, vê que é bom e come. Então...

Mas, ter que engolir country, haloween, porque a mídia fica em cima de você, martelando que aquilo é

bom! Hoje tem estes Rebeldes40, com aquelas gravatas ridículas, aquelas saias curtas... Sabe e as

menininhas contra escola, contra os professores, então isso aí... (Valdeck faz sinal negativo com a

cabeça).

Agora receber cultura dos outros povos, claro que sim! É bacana ver acoplado, englobado

naturalmente, se a gente se sente bem. Agora, eu te obrigar a comer buchada de bode?. Você vai comer

a buchada se você gosta. (Valdeck de Garanhuns)

40 Valdeck de Garanhuns faz referência à Banda mexicana RBD, composta por jovens “atores, cantores e dançarinos” que se tornou um sucesso no Brasil, por meio da novela “Rebeldes” exibida, durante o ano de 2006, pelo SBT (Sistema Brasileiro de Televisão).

Um outro ponto de questionamento é que os processos híbridos não estão limitados apenas à

simples fusão cultural. Há uma questão de poder, ideológica a qual se refere à forma desigual em que

grupos dominantes se apropriam de elementos culturais de várias comunidades transformando-os e

combinando-os com outros elementos culturais (CANCLINI, 2005, p.131).

Evidentemente, os processos híbridos ocorrem em regiões de conflitos, locais que se defrontam

as classes sociais. Situações do cotidiano onde são explicitas as desigualdades, circunstâncias onde o

poder impõe formas culturais de domínio.

Canclini salienta também que há cumplicidades e relações recíprocas entre grupos dominantes

e grupos dominados (2003, p. 207). O entendimento dessa relação torna-se essencial para as discussões

sobre o artista e a relação com as instituições e com os meios de comunicação de massa.

Nessa perspectiva, recorro aos pensadores Henri Giroux e Domenic Strinati e à suas análises

sobre o conceito de hegemonia proposto por Gramsci.

No ensaio denominado “A hegemonia como processo pedagógico” Henry Giroux descreve que

a obra de Antônio Gramsci é fundamental para o avanço nas discussões sobre a cultura popular e sua

importância pedagógica e política diante dos conflitos sociais e de dominação. Para o autor, a teoria

sobre a hegemonia proposta por Gramsci redefine as relações entre as classes dominantes e

subordinadas porque o exercício de controle das classes dominantes se caracteriza pela liderança

hegemônica, que busca obter o consentimento dos grupos subordinados e, dessa forma, garantir a

ordem social existente. Gramsci aponta as complexidades pelas quais o consentimento é organizado na

vida cotidiana. Há um processo pedagógico para elaborar e reelaborar o terreno cultural ideológico dos

grupos subordinados. Giroux também argumenta que o conceito de hegemonia interpreta o

consentimento como uma série de relações marcadas por uma luta política contínua sobre diferentes

concepções e visões de mundo. Para Giroux, a luta cotidiana entre dominantes e dominados não se

caracteriza pelas polaridades da cultura dominante opressiva, contra a cultura “fraca” e de “menor valor”.

Gramsci, ao declarar a importância pedagógica e política da relação hegemônica, evidencia que o bloco

dominante só poderá se envolver considerando o interesse dos grupos subordinados. O conceito de

hegemonia proposto por Gramsci, e analisado por Giroux, faz alguns esclarecimentos sobre como o

poder cultural é capaz de penetrar nos conflitos dos poderes presentes no cotidiano e que, a noção de

consentimento que está no cerne do processo de hegemonia permite a análise das possibilidades

pedagógicas existentes nas culturas e que servem para a ação de vários grupos sociais (1999, p. 217-

220).

A análise de Dominic Strinati é muito próxima da análise de Henry Giroux. Ele interpreta o

conceito de hegemonia de Antônio Gramsci como meios culturais e ideológicos, com os quais os grupos

dominantes mantém o seu cotidiano por meio do consentimento dos grupos subordinados. Existe um

campo das negociações construídas no âmbito político e ideológico que incorporam tanto o grupo

dominante como o grupo dominado. Strinati afirma que a cultura de uma sociedade é o resultado da

hegemonia, da aceitação consensual das idéias e dos valores do grupo dominante. Evidentemente os

conflitos sociais são mantidos, mas as idéias de Gramsci colocam em oposição o consentimento dos

grupos subordinados com coerção e força exercida pelos grupos dominantes. A teoria sobre hegemonia

de Gramsci é assegurada pela aceitação dos grupos subordinados e não pela indução física e mental,

nem tão pouco por doutrinas. Com as concessões de um grupo em favor do outro manifestam-se os

valores e os interesses do grupo subordinado.

Para Strinati, a idéia de hegemonia de Gramsci surge dos grupos sociais e instituições dentro

da sociedade capitalista. A sociedade civil seria a responsável pela produção, reprodução e

transformação da hegemonia e o Estado seria o responsável pela coesão. Strinati descreve que essa

equação é razoavelmente simples. O Estado exerce a repressão e a sociedade civil a hegemonia,

representando um conjunto controverso e mutável de idéias nas quais os grupo dominantes procuram

assegurar o consentimento dos grupos subordinados. Domenic Strinati ressalta, também, que Gramsci

considera a hegemonia um trabalho de intelectuais. Nesse sentido, para Gramsci, todos os envolvidos

nesse processo são intelectuais. O trabalho nas instituições civis e nos grupos sociais, seus conflitos e

soluções, são fundamentados no trabalho desses intelectuais “[...] todos os homens são intelectuais, mas

nem todos têm, na sociedade, a função de intelectuais” (GRAMSCI apud STRINATI, 1999, p.168). Cada

intelectual possui uma forma de atuação no processo hegemônico. Alguns produzem idéias, outros

aperfeiçoam-nas outros as executam, mas todos possuem funções. Dessa forma, a teoria de hegemonia

de Gramsci possui uma abordagem baseada em realidades históricas e concretas sem dogmatismos,

determinismos e outras variantes do pensamento marxista. Domenic Strinati afirma que, o conceito de

hegemonia proposto por Gramsci, não busca explicar a cultura popular apenas pelo conflito de classes

porque também é possível explicar a cultura pelo conflito de idéias. Porém, esse pensador destaca que a

hegemonia favorece aos grupos dominantes. (1999, p. 163-173).

Recupero a lógica do quanto é importante para o artista mediador o entendimento e a constante

reflexão para uma posterior ação na sua realidade. E essa realidade é movida por conflitos sociais que

estão presentes no cotidiano. De acordo com a análise de Henry Giorux e Domenic Strinati sobre o

conceito de hegemonia proposto por Gramsci, existe em um sentido amplo, por parte de grupos

dominantes concessões e por parte dos grupos subordinados existe o consentimento.

Essas negociações ocorrem nas mais diversas situações e lugares fazendo parte dos conflitos

e acertos existentes no cotidiano. Trata-se de confluências que aparecem, tanto nas manifestações da

cultura popular apropriadas pelos grupos dominantes, como no sentido inverso: o da apropriação de

tecnologias para a disseminação de produções de grupos subordinados. Um exemplo claro é a indústria

fonográfica41 e, principalmente, a indústria do turismo. Diante do hibridismo cultural e da idéia de

hegemonia, a cultura popular extrapola os limites de uma comunidade. Grupos dominantes possuem

interesses em conhecimentos populares na culinária, nas festas, nas artes visuais, no artesanato, nas

41 Refiro-me à produção de CDs sobre manifestações espontâneas da cultura popular, como por exemplo, o CD - Termo da Folia de Reis de Alto Belo, CD Festa do Divino de Mogi das Cruzes, CD Dona Edith do Prato, CD Banda de Congo Mirim da Ilha, CD Coral das Lavadeiras de Almenara, dentre outros.

danças e para tanto abrem espaços de negociação. A música Baticum (Gilberto Gil e Chico Buarque) fala

de uma festa que, com o tempo, incorpora novos valores e significados. No caso do Baticum há

consentimentos e concessões que ocorrem em uma festa popular surgida espontaneamente em uma

comunidade.

BATICUM(1989)

Música de Gilberto GilLetra de Chico Buarque

Bia falou:“Ah, claro que vou”Clara ficou Até o sol raiarDadá também SaracoteouDidi tomouO que era pra tomarAinda bem Que Isa me arrumouUm barco bomPra gente chegar láLelê tambémFoi e apreciouO baticumLá na beira do mar

Aquela noiteTinha do bom e do melhorTô lhe contando que é pra lhe dar água na boca

Veio ManéDa ConsolaçãoVeio o BarãoDe lá do CearáUm professorFalando alemãoUm aviãoVeio do CanadáMonsieur DupontTrouxe o dossierE a BenettonTopou patrocinarA SanyoGarantiu o somDo baticumLá na beira do mar

Aquela noite Quem tava lá na praia viu

E quem não viu jamais veráMas se você quiser saberA Warner gravouE a Globo vai passar

Bia falou:“Ah, claro que vou”

ara ficou Até o sol raiarDadá também SaracoteouDidi tomouO que era pra tomarIsso que é Pepe se chegouPelé pintouSó que não quis ficarO campeãoDa formula 1No baticum Lá na beira do mar

Aquela noiteTinha do bom e do melhorEu só tô lhe contando que é pra lhe dar água na boca

Zeca pensou:“Antes que era bom”Mano cortou“Brother, o que é que há?”Foi a G.E.Quem iluminouE a MacintoshEntrou com o vatapáO JBFez a críticaE o cardeal Deu ordem pra fecharO CarrefourDigo, o baticumDa Benetton

Não,

da beira do mar.

O interesse econômico de multinacionais e empresas na área de comunicação, ou seja, grupos

dominantes, transformaram, com o consentimento dos grupos subordinados, a festa Baticum em um

evento capaz de atrair personalidades famosas e novos valores estéticos. O Baticum pode ser

interpretado como um batuque na beira do mar. Ao final porém, o participante confunde o nome da festa,

chamando-a de Carrefour, realiza a correção e, logo em seguida, troca o nome do local por Benetton e,

novamente , corrige: “Não, da beira do mar”. Embora exista o consentimento, o que predomina são os

interesses dos grupos dominantes.

Existem na luta pela liderança hegemônica e se abastecendo do neoliberalismo, muitos grupos

dominantes. Dentre eles estão os que compõem os meios de comunicação de massa. Iniciei os

questionamentos sobre esse tema no capítulo II e retomo agora essa análise a partir das reflexões

suscitadas pelas entrevistas com os artistas mediadores.

Os meios de comunicação de massa possibilitam, por exemplo, o comércio de tudo e qualquer

bem de consumo, a criação de simulacros e a disseminação de imagens e idéias utilizando aparatos

tecnológicos.

A cultura popular e suas manifestações, seus mestres e a produção cultural fazem parte de

uma sociedade de consumo definida como “[...] o conjunto de processos socioculturais em que se

realizam a apropriação e os usos dos produtos” (CANCLINI, 2005, p.60). Refere-se a um sistema no qual

o ciclo inicia-se com os meios de produção e exploração da força de trabalho, na alimentação, habitação,

vestuário, lazer e transporte produtos básicos para a sobrevivência e produtos desejados para a

satisfação pessoal. Esses produtos estão atrelados a um sistema econômico preocupado em garantir o

baixo custo da força de trabalho e o aumento da lucratividade em um mercado global.

Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições... (HALL, 2005, p. 75).

Na minha opinião, formulada a partir do estudo realizado, muitas situações geradas pela

sociedade de consumo aparecem com evidência no entorno e no cotidiano do artista mediador. O

simulacro é uma delas. Vejo como é necessário, embora pareça redundante, reforçar a idéia de que o

termo simulacro possui sinônimos como imitação, falsidade, fingimento e disfarce. O simulacro é uma

coisa que finge que é mas não é. Está impregnado nos meios de comunicação de massa, principalmente

no rádio e na televisão.

E o que é que acontece quando você pega este tipo de coisa? Fala que é sertanejo. Aí você

pega o cara e ele não é sertanejo, ele canta música... [...] não é a música que os sertanejos cantam lá.

Tudo bem... Então isso se chama mascarar a música... Eles cantam uma música e o povo fica achando

que aquela música é que é cantada no sertão. Então, música sertaneja é que se canta o sertão. E aqui?

(na cidade). Não tem sertão? Aonde é que tem sertão aqui? O sertão se caracteriza por vegetação de

cactos, espinhos, abrolhos, pedras, seca... Sertão é isso, pode ver. Então estas bandas, por exemplo,

estes forrós universitários, os Kalypsos42 da vida... ...a Tati Quebra Barraco43... Então o que é que a

mídia faz? Coloca na mídia e diz que é muito bom. Uma ova! Aí o povo gosta. Nossa é muito bom. Olha

a Folha de São Paulo tá dizendo. A Globo tá dizendo. Tá todo mundo dizendo. (Valdeck de Garanhuns)

Quando a pessoa se aliena aí com os “sertanojos”... [...] isso é que massifica a cabeça do ser

humano. Esta mídia, ela predomina e fica aquela coisa infernal. Aonde você vai... Até nas festas

populares... Tem uma congada ali acontecendo. Mas as pessoas não estão respeitando, ficam dançando

Kalypso, estes “sertanojos”, “breganejos”, aquelas músicas americanas, aquela coisa que é horrível.

(Irimar dos Reis)

Os meios de comunicação de massa, por meio da televisão, rádio, jornais e revistas, estipulam

o controle dos conteúdos estéticos que serão vinculados, determinam o que se deve escutar, ler, assistir,

comer e sentir. Há, em mercados específicos, uma constante disputa por consumidores, como o

exemplo, a música sertaneja, o axé, o pagode, os filmes de ação, as novelas e as partidas de futebol.

“Essa lógica é tão forte que os consumidores acreditam assistir ao que gostam e ouvir o que apreciam, o

que na maioria das vezes não passa de anestesiamento dos sentidos [...]”. (LOUREIRO, 2003, p. 39).

Os produtos da cultura de massa são impostos de forma sutil. Se existe o consentimento e

aceitação é por que as massas não se dão conta dessa manipulação. O que importa é a satisfação

pessoal e a alegria. na vida cotidiana. de assistir, na televisão, o futebol, a novela, ou de ler uma revista

mostrando os prazeres na Ilha de Caras.44

O artista mediador nos territórios da pós-modernidade encontra-se em um mundo de

simulacros, tecnologias, informações e meios de comunicação interativos, repletos de imagens.

A televisão possui o poder de transmitir informações e imagens ao vivo 24 horas por dia, dos 42 Kalypso é um grupo músical originado do Estado do Pará que mistura ritmos paraenses à lambada ao funk e ao rock. As músicas tocam insistentemente nos rádios e o grupo é assíduo freqüentador dos programas de televisão. 43 Tatiana dos Santos Lourenço, a MC Tati Quebra-Barraco, ganhou esse apelido graças ao seu primeiro sucesso intitulado Barraco 1. Com o estilo do funk carioca, em seu repertório estão as músicas: Techno Tchuchuco, Assadinha e Soca Tcheca. http://ofuxico.uol.com.br/Materiais/Noticias/noticia

44 Local em Angra dos Reis, cidade do Estado do Rio de Janeiro, que recebe artistas convidados pela Revista Caras. Essa revista é dedicada às curiosidades na vida de celebridades.

lugares mais longínquos do planeta e para dentro das casas. Em geral, as pessoas ficam satisfeitas com

a transmissão e com a opinião de supostos especialistas.

[...] somos uma geração que passou por um processo industrial. [...] nós tínhamos a televisão

que era o momento só de desligar ou ficar absorvendo o que era mostrado por aquela telinha... Se a

criança está ali parada na televisão... Se propõe alguma coisa legal pra ela, ela sai. A primeira coisa que

ela faz é desligar porque o que ela quer é carinho. Ela quer o contato. Isso é uma coisa humana, todos

nós queremos. (Selma Maria)

Para Dominic Strinati, a televisão é um meio pós-moderno por seus próprios méritos: “O fluxo

regular de imagens e de informações, diurno e noturno, vinculado pela televisão traz, simultaneamente,

partes e fragmentos de todos os lugares, construindo a sua programação por meio de bricolage e de

simulações aparentes.” (STRINATI, 1999, p.224). Existe uma crescente produção de imagens vinculadas

em TVs abertas e a cabo, na internet com o orkut, youtube, blogs, jogos virtuais.

A televisão, ela não precisa, não precisa trazer o maracatu rural para dançar na televisão.

Certo? Mas ela pode muito bem... ela vai lá faz a reportagem e divulga. É isso que eu quero dizer.

Entendeu? Então não precisa trazer o maracatu para dançar aqui, mas eles podem fazer uma matéria,

fazer um Globo Repórter sério. Certo? Fazer um documentário arretado com estas culturas... [...]

incentiva este turismo, incentiva esta cultura, incentiva o Brasil... Então vai lá! Mostra, incentiva, faz um

documentário, faz um por mês, faz uma série. (Valdeck de Garanhuns)

Eu acho que o que se precisa fazer é democratizar a mídia, ter a democratização da mídia.

Acho que tinha que ter aí uma visão melhor do que se produzir neste pais e não empurrar como a mídia

faz. Empurra as culturas que vem de fora. Sabe o Brasil tem a beleza que tem, a história, o patrimônio...

e não tem acesso a mídia. A mídia é um grande veículo para fazer chegar na casa das pessoas através

de um produto educativo... A gente tinha que ter esta produção da cultura popular, porque as

comunidades tem as suas festas e, esta produção, acontece somente naqueles mesmos locais. Então...

Já imaginou se a gente tem lá todo uma rede preocupada em documentar e transmitir isso? Seria bom

para o país. A gente não iria ter esta lesão na memória. Acho que falta isso ai: esta democratização da

mídia. Acho que o que falta é isso, porque foi como eu disse: a cultura ela existe, ela esta aí, ela é viva,

ela é presente, ela é atuante. As festas estão acontecendo e falta esta oportunidade.

Cito também que uma produção cultural que tem na cidade de São Paulo, que é bem bacana,

que é uma produção agro-cultural que é o Revelando São Paulo45. É. Já chega a ter mais de 300 mil

45 O Revelando São Paulo é um programa que congrega e fornece instrumentos à expressão da cultura popular no Estado de São Paulo. É um evento realizado no Parque Dr. Fernando Costa (Água Branca) com a duração de nove dias e com a participação massiva dos municípios do Estado de São Paulo. Essa participação tem gerado, gradualmente, a apropriação do Revelando São Paulo como um programa do Estado de São Paulo por mais de meio milhão de pessoas (equivalente a 5% da população de São

pessoas visitando este evento. E a mídia não expõe isso, não tem uma matéria, não tem documentário...

[...] tá toda a arte popular, tá tudo lá. Estão estes objetos, esta arte, todo este povo... Eles tinham que

estar na mídia. Isso tinha que ter uma divulgação. Isso tinha que chegar até a escola. Tinha que chegar

na casa das pessoas. Que esta festa está acontecendo. É a festa da cultura popular brasileira, da cultura

regional, enfim, da arte, do artesanato brasileiro. É... E o dia que este país acordar e perceber que a

gente tem toda esta cultura, esta riqueza e ter acesso a isso através da mídia, este país será um outro

país. Porque um país que não tem cultura, não tem memória... Que país é este? Não é um país, não tem

memória. Você entendeu? Nunca vai ser um povo, vai ser sempre um dominado. Os dominadores vão

estar sempre... [...] a mídia dominadora, os americanos, os clipes americanos, é as novelas vão

predominar, e acho que isso só desalimenta as pessoas, acho que isso deseduca. Padroniza

comportamento, deseduca as pessoas. (Irimar dos Reis)

O artista mediador possui uma visão crítica do mundo, defende formas de expor e divulgar as

suas idéias nos veículos de comunicação, defende honestamente o que acredita, possui inquietações e

não é conformado com as imposições dos meios de comunicação de massa, com a lógica do sistema

capitalista e tão pouco com os modos de vida na pós-modernidade. Concebe projetos de arte popular

contendo, na mediação, ações educativas. É possível também afirmar que o artista mediador é um

intelectual orgânico.

Retomo o conceito de hegemonia agora como a essência de uma relação pedagógica e tendo

como pressuposto que a tomada de consciência não é espontânea. São necessários meios externos ao

indivíduo, bem como a sua predisposição ao aprendizado.

De acordo com Antônio Gramsci, todo o homem é um intelectual e pode conciliar atividades

manuais à atividades intelectuais. Não é possível a distinção entre intelectual e não intelectual, se há uma

tentativa dessa separação pode se referir exclusivamente à profissão, ou seja, cabe dizer que uma

pessoa é intelectual pelo trabalho e isso significa que é possível falar em intelectuais pelos graus diversos

da atividade que ele exerce. No entanto é impossível falar de não intelectuais porque não existem não

intelectuais.

Em suma, todo o homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um filósofo, um artista, um homem de bom gosto, participa de uma concepção de mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para promover novas maneiras de pensar. (GRAMSCI, s/d, p. 11).

O intelectual orgânico proposto por Gramsci não demonstra superioridade perante os outros

indivíduos porque também os vê como intelectuais, independentemente das suas atividades profissionais.

Paulo) que o realizam e prestigiam, pelas autoridades públicas que o reconhecem como acontecimento apropriado para estreitamentos regionais e pelas empresas socialmente responsáveis que, a cada ano, identificam o Festival como espaço qualificado à associação de seus produtos.http://www.darc.sp.gov.br/oque_e_rsp.htm

O intelectual orgânico surge dentro da própria estrutura criada pelos grupos dominantes.

Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e no político: o empresário capitalista cria consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito etc. (GRAMSCI, s/d, p. 7).

Seguirei com as próximas idéias visando estimular algumas questões a respeito dos processos

de mediação no espaço institucionalizado. O artista mediador é um intelectual orgânico e trabalha em

uma instituição junto com outros intelectuais orgânicos.

5.3 A mútua aceitação entre o artista mediador e as instituições culturais

As instituições culturais são responsáveis pela realização de projetos nas mais

variadas áreas do conhecimento, que tencionam ampliar o universo temático de

indivíduos e grupos sociais. Um projeto de ação cultural idealizado para uma instituição

tem a sua gênese na pesquisa.

Tinha já essas idas minhas ao Sertão de Minas Gerais, esse encantamento

com as obras do Guimarães Rosa... Eu chamei a Ane Vidal que é uma artista plástica

que acompanha e desenvolve um projeto no sertão de Minas Gerais. A nossa

preocupação era trazer a simplicidade presente na obra do Guimarães Rosa. Isso era

assim, fundamental. O descobrimento de como ele tratava a alma infantil, nas suas

histórias, como ele conseguia realmente ler o que era uma criança... Ele tinha, assim,

um aprofundamento muito grande do que era o ser humano. Isso o velho, a criança, o

homem, a mulher, as relações, a relação mística que têm as obras, enfim. Tudo era

muito bem, tudo é muito bem apresentado. E nunca ninguém tinha feito uma pesquisa

em cima da criança na obra do Guimarães. E eu também nunca tinha escutado o

Guimarães voltado para o brinquedo. [...] fazia a pesquisa, Cordisburgo, Morro da

Graça e Andrequicé. E aí, nessas viagens me falaram que ele tinha tido essa idéia, que

ele queria fazer, mas ele não realizou esse sonho. E isso transformou totalmente o meu

processo. Se eu tava vindo pra cá, com essa frase: fazendo meu pequeno tratado de

brinquedos para meninos quietos, essa frase foi a grande transformadora. Foi aquilo

que me deu base pra tudo aquilo que eu já pensava. Apesar de eu ser artista plástica,

eu não me encantava só com o forma do brinquedo, eu não me encantava só com as

cores, as formas. Eu me encantava com a história que tinha levado a criança a fazer

aquele brinquedo, né?E o Guimarães coloca isso. Ele coloca toda uma história até

chegar no brinquedo. Ele coloca toda geografia, todo o envolvimento da criança, pra

chegar ali e apresentar o brinquedo. Ou seja, não apresenta o brinquedo só como o

artista plástico vê, que é a coisa da forma sem se preocupar com o contexto daquilo.

(Selma Maria)

O projeto pode ter repercussões mesmo após o seu encerramento. O material

gerado em um projeto, por exemplo, catálogos, folhetos, release, fotos, CDs, DVDs e

processos administrativos são experiências documentais, e servem como continuidade

ou ponto de partida para um novo projeto e, também, podem transformar-se em produto

cultural.

É, então, eu acho que é o começo desse trabalho dos “Meninos Quietos”. É o

começo, tem muita coisa. Me abriu muitas frentes, né? Músical, teatral, literatura, artes

plásticas. Eu acho que ele tem uma necessidade de ter multilinguagens. E tomara que

dê certo o livro, tomara que dê certo o CD. Nenhum dos dois têm patrocinador, mas eu

acho que se não for “meninos quietos” outro projeto, mas a gente tem, meu trabalho

pelo menos, a necessidade de sempre continuar. (Selma Maria)

São muitas etapas, detalhes, dificuldades e satisfações envolvendo a realização

de um projeto de ação cultural em uma instituição. Os aspectos da mediação de um

projeto de ação cultural também são abrangentes. Posso mencionar, como propósitos

de mediação de um projeto de ação cultural, os catálogos, cartazes, filipetas, folhetos e

programas; além dos materiais encaminhados para a assessoria de imprensa como

release, fotos, projeto e cito também, a instituição com os seus suportes e seus

espaços arquitetônicos e o compromisso com entidades de classe como Ordem dos

Músicos do Brasil, Sindicatos, órgãos fiscalizadores de direitos autorais; entre outros.

Elaborando e executando os propósitos de mediação, estão artistas,

produtores, atravessadores, técnicos de luz e som, animadores culturais, curadores,

acadêmicos, financiadores, patrocinadores, divulgadores, assessores de imprensa,

além de outros intelectuais que trabalham efetivamente ou prestam serviços para uma

instituição cultural.

Algumas instituições culturais na cidade de São Paulo46 elaboram

programações com o intuito de contribuir para o fortalecimento de identidades e para a

retomada da memória e de valores outrora esquecidos diante da massificação cultural e

dos modos de vida pós-modernos.

Cabe aqui apontar, mesmo que de forma breve, algumas diferenças, as mais

evidentes, entre as instituições civis, as governamentais e as privadas responsáveis

pela produção cultural na cidade de São Paulo.

• As instituições civis descritas no trabalho, durante o tópico “A cidade de São

Paulo”, são aglutinadoras e constituídas de espaços de reunião e

convivência.

• As instituições governamentais, a exemplo das casas de cultura, oficinas

culturais, teatros, museus, clubes e bibliotecas são parte das políticas

públicas no âmbito Federal, Estadual e Municipal. A maioria dessas

instituições possui instalações precárias devido a falta de recursos,

competências administrativas e a incapacidade de atender à demanda.

46 Existem diversas instituições culturais na cidade de São Paulo que realizam projetos de arte popular. Entre elas estão as Organizações Não Governamentais, instituições como Centro Cultural Banco do Brasil e Instituto Cultural Itaú financiadas pelas Leis de Incentivo de caráter Federal e Municipal. Instituições públicas como oficinas culturais, bibliotecas, teatros e casas de cultura. Instituições de caráter privativo sem fins lucrativos como é o caso do SESC São Paulo.

• Empresas do sistema S47. À frente de ações socioculturais está o Serviço

Serviço Social do Comércio – SESC. Ele é uma outra categoria de

instituição, de caráter privado e patronal.

• Agências bancárias, multinacionais, hipermercados, redes de televisão e

universidades particulares abrem os seus Centros Culturais investindo suas

imagens em eventos e produções beneficiados pelas leis de incentivo.

A grande maioria das instituições culturais de caráter privado está estruturada

em uma política cultural que isenta essas grandes empresas do pagamento de

impostos, resultando, assim, no surgimento de profissionais competentes em marketing

e na captação de recursos financeiros.

E aí eu elaborei o projeto e elaborei na forma original como um livro. Era um livro e um CD. Só

que... O projeto foi aprovado na “Lei Rouanet”, mas eu não consegui patrocinador, não consegui

nenhuma instituição que pudesse estar patrocinando esse trabalho. As empresas... Uma das empresas

que eu estive visitando, ela tava voltada pra Amazônia. Porque o que tem dado retorno lá fora, é falar da

Amazônia. Elas (as empresas) não descobriram ainda o cerrado. O cerrado tem plantas que se não

catalogar logo, ninguém vai conhecer. Mas as empresas como ainda não descobriram, e vão demorar

pra descobrir, isso... (Selma Maria)

Eu poderia produzir muito mais gravuras, eu poderia produzir muito mais esculturas, se eu

tivesse subsídios. Se eu fosse patrocinado por alguém. Tem empresas aí milionária. Esses bancos que

ganham horrores de dinheiro. Agora você pega os que já têm nome e eles patrocinam. Porque tá pronto.

É o produto pronto. Tá pronto, tem nome. .Se faz sozinho e depois não precisa mais patrocinar.

Patrocinar o que se você se fez sozinho? Eu quero agora! Então eu estou precisando de patrocínio agora

e não quando eu ficar famoso. Por que Chitãozinho e Xororó precisa de patrocínio de alguém? Não

precisa. Rapaz! Esses caras têm avião, têm fazenda, se fizeram e agora são patrocinados. (Vadeck de

Garanhuns)

Hoje eu te confesso que com 20 anos de carreira e historia com a cultura popular eu não pude

47 As instituições que compõem o Sistema S são: SENAC - Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial - Educação profissional para trabalhadores do setor de comércio e serviços; SESC - Serviço Social do Comércio; SENAR - Serviço Nacional de Aprendizagem Rural; SENAT - Serviço Nacional de Aprendizagem em Transportes; SEST - Serviço Social de Transportes; SEBRAE - Serviço Brasileiro de Apoio às Pequenas e Médias Empresas; SESCOOP - Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo; SENAI – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial; SESI – Serviço Social da Indústria. http://www.senai.br/br/ParaVoce/faq.aspx

fazer uma produção fonográfica... Eu tenho um acervo imenso de pesquisa e de vida. Eu não consegui

fazer ainda uma produção porque faltam parceiros. Falta espaço para você expor o trabalho. Apesar de

que eu já avancei muito nestes vintes anos. Eu já viajei por este Brasil levando a cultura popular, mas é

muito pouco. Com produção eu poderia chegar no Brasil com CD, com livro, com vídeo, com tudo. Já

procurei, já mandei projetos que não foram aprovados. Já mandei projeto ao Ministério, já mandei projeto

para a Petrobrás e não foi aprovado. Olha, eu acho que, primeiro, falta parceria. Eu, tenho dificuldade em

algumas produções. Eu, como artista, como pesquisador... Eu tenho sim, dificuldades de realizar minhas

produções, porque eu sinto que é difícil você escrever um bom projeto, para você aprovar um projeto

numa Petrobrás, numa instituição dessa ai... Tem que estar muito bem escrito. Você tem que ter muitos

parceiros. (Irimar dos Reis)

As instituições culturais na cidade de São Paulo, de fato, possuem

complexidades e características diferentes. Não tenho como objetivo o detalhamento e

estudo aprofundado de temas, como por exemplo, as políticas culturais adotadas pelo

governo brasileiro com as leis de incentivo, uma análise profunda sobre o SESC São

Paulo, Instituto Cultural Itaú, Centro Cultural Banco do Brasil, Pinacoteca do Estado, um

apontamento sobre a produção cultural em organizações não governamentais e

diversos outros assuntos, que provavelmente ofuscariam a questão principal dessa

dissertação.

Essas instituições culturais, mesmo sem conseguir atender à demanda da

população, apresentam aos seus freqüentadores programações que surpreendem pela

qualidade e pelos preços acessíveis. É bom esclarecer que, quando me refiro à preços

acessíveis, tenho claro que a produção cultural de bens artísticos está atrelada aos

processos de produção do sistema capitalista, ou seja, há um produto cultural que

possui um preço e há clientes dispostos a comprá-lo.

No caso de eventos culturais gratuitos, é possível afirmar que esses são

acompanhados de obstáculos, por exemplo, a falta de estacionamento e de transporte

público, a grande quantidade de pessoas em razão da própria gratuidade, a imponência

dos prédios intimidando o público com suas fachadas repletas de seguranças

engravatados, o excesso de marketing e materiais promocionais, a exploração de

outros serviços como lanchonetes e a venda de souvenires.

O pesquisador Flávio Desgrages (2003, p.21) aponta algumas dificuldades para

o público usufruir dos projetos artísticos que compõem as programações das

instituições culturais, “[...] nas grandes cidades, a falta de segurança pública, a

inexistência de estacionamentos, a carência de espetáculos que despertem o interesse

das platéias, a ausência de projetos de formação de platéia e o predomínio de uma

cultura audiovisual estandartizada [...] ” são algumas das características das cidades

pós-modernas como São Paulo que quais dificultam a participação e consolidação de

um público fiel à instituição.

Preocupado com a formação de público em salas de teatro, o professor Flávio

Desgranges propõe uma pedagogia do espectador, dada a “urgência de uma tomada

de posição crítica diante das representações dominantes, pela necessária capacitação

do indivíduo-espectador para questionar procedimentos e desmistificar códigos

espetaculares e hegemônicos”. (2003, p.38).

Para a constituição de um público crítico desvinculado da massa e capaz de se

opor ao pensamento hegemônico, são relevantes os compromissos do artista e das

instituições culturais com a construção de projetos artísticos com propostas de

mediação.

A mediação possui atributos para a formação de um público crítico capaz de

consumir, produzir arte e, acima de tudo, questionar o momento atual que vivemos

diante da massificação cultural. Sem dúvida, o público é o pólo mais importante de todo

o processo estabelecido durante a trilogia arte, mediação e público. É o sentido da

existência da instituição e também do projeto artístico.

Uma instituição sobrevive sem o artista, o artista sobrevive sem a instituição,

mas ambos, instituição e artista, não sobrevivem sem o público. “O espectador é este

sujeito construtor daquilo que percebe, uma espécie de co-autor de tempo integral da

realidade. Se lhe propõem continuadamente enigmas que não decifra tende a se

afastar.” (KATZ, 2002, p.39).

O artista, ao apresentar um projeto para uma instituição cultural deve ater-se

aos processos de mediação e formação de público.

O público e a massa podem ser distinguidos mais facilmente pelos seus modos predominantes de comunicação: numa comunidade de públicos, a discussão é o meio de comunicação fundamental, e os veículos de comunicação de massa, quando existem, apenas ampliam e animam a discussão, ligando um público básico com as discussões de outro. Numa sociedade de massa, o tipo de comunicação dominante é o veículo

formal, e os públicos se tornam apenas simples mercados de veículo formal, expostos que são ao conteúdo dos veículos de comunicação de massa. (MILL, 1962, p.311).

De fato, a desvinculação do público do processo de massificação cultural só é

possível por meio da educação. Portanto, os processos de mediação são, antes de tudo

processos pedagógicos que envolvem situações de análise constante entre a arte, a

mediação e o público.

Uma instituição cultural por meio de seus profissionais, desde educadores,

artistas até agentes culturais, estrutura física e administrativa, por si só, constituí-se em

um espaço de mediação. A mediação em uma instituição cultural inicia-se na escolha

de um determinado projeto artístico. Evidentemente, quando o projeto artístico é

concebido no espaço institucional com os seus profissionais assumindo a curadoria, a

situação apresenta-se de acordo com as diretrizes técnicas e administrativas da própria

instituição, o que não isenta a instituição da mediação, já que, certas situações até

reforçam esse aspecto. Profissionais das instituições, como curadores, podem decidir

quais os artistas que participarão de grandes projetos.

Atualmente, as instituições culturais da cidade de São Paulo constituem-se em

um lugar de acolhimento de projetos de arte popular48. A gênese desse trabalho surge

da gama desses projetos e como as instituições se preparam para receber e realizá-los

considerando a necessidade da mediação.

As discussões e conceitos sobre a mediação e mediadores foram apresentados

de forma ainda mais clara durante o capítulo IV.

No entanto, quero me antecipar nesse momento, e esclarecer que nesse

trabalho utilizo o termo artistas mediadores. De forma ampla defino os artistas

mediadores como os profissionais que trabalham para uma instituição cultural e estão

comprometidos na criação de estratégias para a aproximação entre o público e a

produção de arte popular.

48 A informação é constatada pelas programações das instituições culturais divulgadas nos jornais, revistas e catálogos de instituições culturais:

O artista mediador, idealizador de um projeto de arte popular49, quando

apresenta suas idéias em uma instituição, está entrando em um campo delicado onde

ocorrem tensões e atenções.

Na prática, uma instituição cultural, por fornecer estrutura física e orçamentária,

pode determinar como acontecerá o projeto e influenciar o processo de criação do

artista mediador. Um curador, um produtor cultural, um marchand, um crítico de arte,

um empresário ou patrocinador, o dono de uma galeria e, até mesmo os profissionais

que sugerem alternativas técnicas de som, luz e cenário, são responsáveis pelas

alterações de um projeto artístico. Há uma relação tênue entre o idealizador do projeto

artístico e os profissionais de uma instituição.

Apresentei a idéia ao SESC Pinheiros. E aí foi um ano de idéia e de convencimento que essa

idéia tinha um encantamento e tinha fôlego pra se fazer uma amostra grande, de mostrar não o

Guimarães, mas todo o povo que ele retratou. Então, esse era o grande desafio. O processo de

negociação... Bom... Primeiro eu tinha que fazer com que as pessoas entendessem o que era aquilo que

eu estava apresentando. Que era uma coisa assim muito fácil pra mim me expor. Porque na verdade,

quando você se expõe você ouve também coisas que você não quer tá ouvindo na verdade. Então, essa

coisa de me expor, de ter coragem de falar, expressar minhas idéias pra uma instituição que tem

sessenta anos... Então... Não foi fácil eu ter... Arrumar essa coragem. Não sei onde eu arrumei. ...tentar

convencê-las do que era o projeto. Desde arquitetura, desde cor, desde......eu tinha que lidar com a

arquitetura, eu tinha que lidar com luz, com cores, os brinquedos, o texto, a música, a paisagem sonora.

Quer dizer, tudo isso tinha que ir para um único lugar que era esse espaço que eu imaginava. Que

infelizmente era eu e a Ane que conseguíamos imaginar, porque éramos as duas únicas pessoas que

tinham feito a pesquisa. A Ane com a parte da arquitetura e eu com a parte da criança, o brincar, os

brinquedos, a literatura do Guimarães, a infância dessas crianças...

Então... Além da instituição que foi todo um aprendizado lidar com isso, do que é uma

instituição, o que a instituição quer, foi também lidar com a família (a artista refere-se à família de

Guimarães Rosa, detentora de direitos autorais) que é outra instituição tão difícil quanto. E esse

aprendizado tinha que ser feito um dia porque eu tinha dificuldade de mostrar. Mas o projeto pra mim era

tão forte, tão verdadeiro. Eu queria que as pessoas conhecessem esse trabalho. E eu realmente me

empenhei de aprender a lidar com uma instituição, de aprender a expor idéias o mais claro possível, de

ter paciência de lidar com todo o processo burocrático. Porque uma instituição ela não caminha com a

49 O texto, neste tópico especificamente, trata da relação entre artista mediador e instituição cultural e foi construído de acordo com a minha experiência. As idéias são amplas e correspondem aos artistas e produtores que desenvolvem projetos nos mais diversos estilos e linguagens artísticas. Evidentemente, o meu foco e as minhas reflexões voltam-se para o artista mediador que realiza projetos de arte popular.

palavra de uma pessoa só, que é a pessoa que tá ali na sua frente fazendo a reunião. O que tem por trás

daquela pessoa que você tá conversando é muito maior até que o próprio projeto. Então toda essa

burocracia, todo esse esperar, todo esse... ah... É tudo um jogo de paciência mesmo. (Selma Maria)

Eu tive contato com uma gravadora, têm umas pessoas me querendo... eu recebi uma proposta

do pessoal da TV Cultura. Eles querem fazer umas coisas na TV Cultura, mas eu estava relutando

porque tem que reduzir o show para dois minutos, três minutos...

Graças a Deus eu sempre fui convidado. [...] peguei minha viola e cantei e de repente eles me

chamaram para contar história50. Agora a produção está atrás de mim, dizendo que eu vou fazer o

trabalho com eles, e que eles estão só esperando isso se acertar, então a gente está conversando e eu

acredito que vou ser muito bem recebido... Eu lhe digo uma coisa: eu não bato em portas. Não por

orgulho, de maneira alguma, mas eu não aprendi a bater em portas. Eu não sei bater em portas. Quando

você bate em portas, você está sujeito a receber um grande não. Então, eu vou por aí e não fico

chorando espaço .

E eu não sei se eu gravo as minhas músicas, ou se eu gravo um CD infantil. Editora... Eu estou

com um negócio muito legal. Porque eu e o César Obeid ilustramos através da Editora Moderna. O César

Obeid51 é um amigo meu e você deve conhecer, toca viola também junto comigo, escreveu um livro...

Não de cordel, mas com versos e disse: Olha eu quero este livro ilustrado com xilogravuras... O livro

ganhou um prêmio no Rio de Janeiro, na Fundação Nacional do Livro.

A editora me convidou para fazer um livro sobre lendas e mitos brasileiros, Ai, como eu queria

uma coisa diferente, tem a prosa porque onde eu falo da lenda eu estico mais, por exemplo: eu falo do

saci-pererê, e conto a lenda em prosa. [...] e já tá na mão da editora. Lendas e mitos brasileiros em prosa

e verso. Já está, eles estão contentes e já me propuseram escrever sobre folguedos nesse mesmo estilo.

E depois eu propus um outro nome que é: ‘Histórias que o povo conta’ porque eu tenho muita coisa que

eu acabo pesquisando e eles querem isso. Então eu fui bem recebido pela editora, e estou então na

editora e vou ilustrar sim. E estou atrás da gravadora. (Valdeck de Garanhuns)

Em Cotia, infelizmente, aqui, não tem políticas públicas, não tem política de incentivo à cultura.

Têm as faculdades que podiam ser grandes parceiras da gente para apoiar a cultura. Elas alegam que

não têm dinheiro, mas estão abarrotados de alunos, que não têm verba para apoiar a cultura. E têm as

empresas aqui, tem empresa aqui multinacional, aí você vai lá e fala: Olha nós temos aqui estas festas,

precisamos de apoio. Mas se você não tiver um projeto que vá pelo interesse deles para abater o

imposto de renda, para beneficiar, não te dão o apoio, então você fica assim... (Irimar dos Reis)

50 Valdeck de Garanhuns contava histórias na TV Cultura, cujo programa originou o DVD Lá vem a história: mais histórias do Folclore Brasileiro com Vadeck de Garanhuns, editado pela mesma emissora de televisão.51 César Obeid é cordelista, repentista e contador de histórias. http://www.tetrocordel.com.br

Entendo que o artista não pode ficar esperando para ser descoberto em seu

ateliê, na sua casa, na universidade ou restrito a uma ação na sua comunidade. O

artista necessita da instituição cultural para a divulgar o seu trabalho, aproximação com

o espectador e realização dos seus sonhos. No caso, uma instituição cultural pode até

existir sem os artistas tornando-se apenas um espaço de convivência sem o brilho da

sua própria existência, mas uma instituição cultural sem artistas é uma instituição sem

alma.Eu acho assim, esse um ano de conversa, esses três anos (de pesquisa) ao meu ver, houve um

entendimento de que eu preciso deles (dos profissionais e da instituição) e eles precisam de mim. [...]

que nem você vê muitos museus públicos que têm lá acervos e não têm...Vida, né? Então, o trabalho que

o SESC faz realmente é muito vivo.Trazer artistas, eles interpretando, ali, ao vivo. E essa é uma

preocupação que eu tinha, de trazer os artistas de lá. [...] se expressando. As pessoas verem não só o

trabalho delas que ali estava contado pelos brinquedos, pelos depoimentos de algumas pessoas.... Mas

a necessidade de trazer a alma dessas pessoas que fazem história. (Selma Maria)

Aceitar ou não aceitar o artista mediador e sua proposta depende de uma série

de variáveis. Porém, acredito ser de vital importância para o artista mediador o pré-

requisito de entender as diferentes opiniões técnicas e conceituais a fim de fazer a

instituição e todos os envolvidos compartilharem de seus sonhos, mantendo, assim, a

autenticidade e os objetivos do projeto.Há uma outra situação que ocorre na relação entre artista mediador e instituição cultural. Refiro-

me à documentação exigida para os encaminhamentos de um contrato de prestação de serviços entre

uma instituição cultural e um artista ou um grupo de artistas. É necessária a apresentação de uma série

de documentos52 que comprovem as obrigações perante os órgãos responsáveis por arrecadações de

direitos autorais, sindicatos e entidades de classe, além de documentos atrelados a arrecadação de

impostos e seguridade social.

Essas condições são necessárias para o processo de contratação de curadores, artistas,

acadêmicos, esportistas, consultores e demais profissionais. Evidentemente, essas exigências variam de

instituição para instituição, obedecendo a um processo lícito que segue a legislação vigente e acabam

determinando o surgimento de produtores especializados em projetos de arte popular. Minha atuação

profissional permite que eu teça me possibilita tecer algumas considerações a respeito.

Observo que, em muitas situações para efetivar uma contratação e solucionar problemas

burocráticos, as próprias instituições culturais sugerem a presença de um produtor. Profissional capaz de

intermediar a relação entre artistas, mediadores e a instituição e cuidar, também, dos artistas

52 CPF, ISS, CNPJ, nota fiscal e outros documentos que variam de instituição para instituição.

participantes garantindo, por exemplo, o transporte, a alimentação, a hospedagem e demais pontos

importantes para o êxito de um evento.

Esse trabalho pode apontar algumas formas de agir nessa delicada condição envolvendo

artistas mediadores, produtores, instituição, projeto artístico e público. Portanto, trago à tona uma questão

que julgo de muita importância: qual o compromisso que um produtor tem com os aspectos de mediação

de um projeto de arte popular?

Entendo que essa pergunta propicia outros questionamentos uma vez que há, de fato,

especificidades no tratamento do produtor com os artistas populares, os artistas mediadores, a instituição

e o público. O produtor torna-se, quase sempre por uma questão de acaso, um intermediário dentro de

um processo estabelecido entre o artista mediador e a instituição cultural. É possível afirmar, de acordo

com a minha experiência, que a maioria dos produtores, por meio de suas empresas e seus contatos,

viabiliza eventos em diversos estilos artísticos, como por exemplo, o jazz, a dança contemporânea, a

música erudita, palestras, aulas de gastronomia, saraus literários e a arte popular.

Ah! Isso aí! Tem gente que lucra e explora... [...] tinha cabra lá ganhando duzentos e cinqüenta

reais e sabe qual é o discurso? Nós não podemos pagar mais não, porque pode modificar a cabeça

deles. Eles podem gostar muito de dinheiro. Pelo amor de Deus! Escutei! O discurso é este. Claro, está

fadado o mestre a viver lá. (Valdeck de Garanhuns ironiza) Porque para ser popular tem que ser sem

dente. Falar pruque. Nóis vai. Para eles é assim. Para estes pseudo-intelectuais. Entendeu? O popular

ele tem que falar: nóis vai, nóis fumu, nóis vamo. Ter um dente furado. Morar numa casinha bem simples

e se vestir de chita. Se mudar uma coisinha... Não, não pode. Ah, isso não pode. (Valdeck de Garanhuns)

Portanto, são exceções os produtores que trabalham especificamente com a cultura popular.

Não é raro o produtor de eventos em arte popular ser o próprio artista mediador, porém, esses são os

profissionais capazes de negociar com as instituições culturais os cuidados e atenções que o artista

popular, o artista mediador e o público necessitam. Observo que o produtor é também um pesquisador.

Ele está próximo do artista em associações, nas cooperativas, na comunidade e acompanha a arte

popular em relação aos meios de produção, fatores condicionados ao sistema capitalista e ao mercado

cultural.

Atualmente, percebo que os artistas populares, produtores, agitadores culturais e

atravessadores53, estão se organizando em associações, cooperativas, organizações não

governamentais e com o governo54, com o objetivo de atender às necessidades das instituições e

53 A palavra atravessador possui nesse trabalho pesquisa o significado literal, extraído do Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, ou seja, aquele que compra mercadorias com um preço baixo para revende-las obtendo um grande lucro. É comum a figura do atravessador em eventos e projetos de arte popular.54 Com o objetivo de revitalizar a produção de arte popular foi criado pelo Governo Federal, na gestão de 1998 a 2002, o Programa Capacitação Solidária que influenciou diretamente no processo criativo de artistas populares. Este fato é constatado na criação de cooperativas para a geração de renda.

também obter formas de dominar os mecanismos burocráticos e neoliberais para a prestação de serviço

e venda no mercado cultural de objetos e manifestações da cultura popular.

Segundo Canclini, “[...] o estudo da cultura como produção supõe a consideração não apenas

do ato de produzir, mas de todos os passos de um processo produtivo: a produção, circulação e a

recepção”. (1983, p. 33).

Ainda baseado na minha atuação profissional, observo o desejo e a ansiedade do artista e dos

grupos de arte popular em mostrar e vender o seu trabalho. Muitos grupos de danças dramáticas55

possuem ou querem possuir CDs. Interpreto o desejo de converter uma manifestação de arte popular ou

um objeto artístico em um produto a ser vendido como um resultado natural de um processo de produção

determinado pelo sistema capitalista.

Concordo que, em uma “[...] festa religiosa organizada por uma família, ou um ‘show folclórico’,

patrocinado por uma instituição pública ou privada.” (AYALA, 2003, p.61), as danças dramáticas perdem

a sua vitalidade. A inexistência de um instrumento de mediação pode acarretar ao público interpretações

equivocadas. Uma dança dramática tem o seu contexto, a sua funcionalidade, hora e local para começar

e terminar56 e, por essa lógica, está na contramão do mercado cultural.

Grupos e artistas populares devem manter certa cautela ao ingressar no mercado cultural uma

vez que esse mercado segue as normas do sistema capitalista.

[...] os processos ideais (de representação ou reelaboração simbólica) remetem a estruturas mentais, a operações de reprodução ou transformação social, a práticas e instituições que, por mais que se ocupem da cultura, implica uma certa materialidade. E não é só isto: não existe produção de sentido que não esteja inserida em estruturas materiais. (CANCLINI, 1983, p. 29).

Ao considerar o mercado cultural é preciso atenção e preocupação especial quanto aos

processos de mediação. A necessidade de procurar pessoas capazes de elaborar formas para que os

conteúdos presentes no objeto artístico ou na manifestação cultural estejam próximos da realidade de

origem, do contexto histórico e sociocultural, para que ocorra o entendimento e a valorização do público.

Por exemplo, um CD contendo músicas de congado, marujadas e folias de reis necessita de um encarte

detalhando o contexto sociocultural daquela manifestação.

Para Ayala:

Trata-se de analisar a organização de determinada prática cultural popular, atentando para o tipo e o grau de controle que têm os

55 Américo Pellegrini Filho (1986, 76p.) realiza um amplo levantamento bibliográfico descrevendo as diferenças entre dança folclórica e folguedo popular. Embora reconheça tais diferenças, esse trabalho, pela lógica e linha teórica, utiliza a expressão danças dramáticas, termo utilizado por Mario de Andrade.(1982, p. 23).56 Participei do curso ”Folclore”, no ano de 2003, na Casa do Sertanista, bairro do Caxingui, na cidade de São Paulo. A afirmação sobre as características das danças populares provém das anotações realizadas durante as aulas da professora e folclorista Maria do Rosário Tavares de Lima.

produtores e os consumidores habituais (ou tradicionais) sobre a sua realização, no presente, isto é, no momento em que está sendo observada. (2003, p.63).

O deslocamento de uma manifestação da cultura popular implica na sua descontextualização.

Acaba sendo vista como uma pequena amostra daquilo que uma comunidade produz. Nesse caso, tenho

as seguintes questões: seria melhor assistir a uma congada, a uma marujada, a uma folia de reis no seu

próprio local de origem? As instituições culturais agem de forma correta trazendo de outras localidades

do Brasil o artista popular e a sua arte?

[...] esta cultura toda, que tem esta dinâmica, que tem esta diversidade. ...a gente tem que ter

um olhar mais profundo para ela e para estes valores. Porque às vezes o que se faz numa comunidade

não se pode fazer num palco e às vezes eles esquecem que estão ali. Puxa eu quero declamar aqueles

versos e quero continuar cantando. Então, não tem muito esta noção do tempo de apresentação... Mas é

uma produção e que precisa chegar, porque só assim que as pessoas vão poder reconhecer, valorizar. É

só vendo um espetáculo de uma congada que você vai ter acesso. Quem não tem acesso a uma

comunidade, a uma festa popular, só vai ter esta oportunidade assim mesmo, em instituição, numa

escola, de ver no SESC, numa casa de cultura, é aí... (Irimar dos Reis)

Eu não tenho as respostas à essas questões, apenas me atenho ao fato de que

as instituições culturais da cidade de São Paulo realizam projetos de arte popular e que

os processos de mediação precisam de ser aperfeiçoados.O Grupo de “Congada de Cordisburgo” – MG, junto com o grupo “Miguilim”, percorreu as ruas

do bairro de Pinheiros – SP em um cortejo que fez parte da programação integrada da exposição

“Meninos Quietos”, realizada no SESC Pinheiros. A artista Selma Maria narra esse episódio:

Foi muito interessante. Que é aquele cortejo? Como as pessoas do bairro, os moradores, como

eles foram vendo essas caminhadas literárias... Tinham lugares fixos pra ir parando e falando trechos de

histórias. Então isso é muito interessante porque eram contos que falavam de Deus, que falavam de

inferno. Eu via aquelas senhoras, moradoras antigas ali do bairro, saindo no portão para ouvir a história,

depois indo acompanhar o cortejo como se fosse uma procissão mesmo, né? Que ia dar na igreja, aí os

mendigos ali da igreja, os moradores da calçada, ali, interagindo com os personagens que iam falando a

história . Então, assim, pra mim, teve um encanto especial. Apesar de todas as outras vezes eu ter

acompanhado as caminhadas literárias em MG, né? Como eles fazem muito... Fazer em São Paulo teve

um encanto especial, porque primeiro o Guimarães fala, falava: “o sertão tá em todo lugar”. É o sertão de

São Paulo, é o sertão de... E essas pessoas que vivem desse jeito, que vivem ali nesse, nessa

marginalidade, os moradores da igreja e do entorno, os vendedores acompanhando aquilo, foi

maravilhoso porque é uma coisa feita pro povo. A congada que é uma mistura de cultura africana, de

cultura... De religião africana com a Nossa Senhora do Rosário que é ocidental, igreja católica,

cristianismo. Então essa mistura foi muito interessante. E mesmo porque o Guimarães já tratava... Todos

os personagens dele são marginais, né? Só trata... Todos os personagens dele são os velhos, são os

loucos, são as crianças, são os... É... Ah! São as pessoas que não estão com o juízo... Não tão

contentes... Enfim, tão passando por um processo muito grande de questionamentos, a vida não se

coloca fácil pra nenhum... Pros personagens dele, né? Esses personagens tavam ali vivos. O cortejo foi

passando realmente pelo cenário que é a obra, né? Tanto que um dos moradores de rua interviu no meio

da caminhada literária, ele começou a falar, ele tava num espaço dele e ele não teve constrangimento

nenhum de falar. Ele começou a falar e também alto. (Selma Maria)

Nesse contexto de trazer ou não trazer grupos da cultura popular, como por

exemplo, jongueiros, congadeiros e brincantes para o espaço institucional ou para a

metrópole o artista Valdeck de Garnhuns enfatiza:

Mas, para trazer um boi do Maranhão... Quem é que traz? Porque tem trezentas pessoas.

Porque um boi do maranhão é composto por trezentas pessoas. Então não tem condição. Então vai lá!

Vai ver lá! Entendeu? Vai ver lá! Entendeu? Não quer ver o boi do Maranhão? Tem que ir ver lá. Porque

trazer o boi pra cá? Quer ver o boi no Maranhão tem que ver lá. Não tem pra que divulgar. Quer

preservar a cultura? Então vai lá e dá uma grana...

Cultura popular se manifesta lá no local. Ela se manifesta lá no local. E eu sempre aconselho

as pessoas a verem a cultura popular lá onde ela se manifesta, porque quando você tira ela do local

modifica. Queira ou não queira, nenhum boi, nenhum maracatu, nenhum mamulengo, nem nada, vai se

apresentar do mesmo jeito. Quando você tira ele do seu reduto, quando você tira ele seu lugar ele

modifica. Ele passa por um processo. Não que ele vai apresentar diferente. Ele vai apresentar igual, mas

é que não está lá.

Como se você saísse da sua casa e vai dormir na casa de uma outra pessoa. Você sente a

diferença. Porque a cama é diferente, o lençol é diferente, o colchão é diferente. Você vai comer a

comida que aquela pessoa vai te oferecer. Você vai dormir de uma maneira diferente, não é verdade?

Quando você viaja. Se você viaja com o seu carro dirigindo é uma coisa, se você viaja de ônibus é outra,

se você viaja de avião, tudo é diferente.

Então você chega lá e não vai poder ter esta cena. E às vezes o que acontece até isso...

Porque modifica também. Porque você não pode trazer o boi que brinca três, quatro horas lá, para

brincar aqui. Não tem condição. Você não pode trazer um mamulengo que brinca cinco horas lá no sítio.

Vai brincar lá no pátio do SESC Vila Mariana durante cinco horas?

Não tem cabimento. Ninguém agüenta. Ninguém assiste. As pessoas não estão acostumadas.

Tem que trazer para ele fazer uma mostra. Então mostrar e vai embora. Agora se não é para mostrar...

Você diga as pessoas: Vai assistir lá.

Eu quando converso com o público... O que é que eu faço? Quando eu me apresento eu falo:

Quem gostou do que viu aqui? Quem já foi lá no Recife? Pois quem não foi, vá. Vai ver o maracatu, vai

ver os caboclinhos, vai lá ver estas manifestações... Aí eles vão lá se quiser. Porque eles queriam o quê?

Trazer o povo todo para São Paulo? Não dá! Porque isso é de lá, as tradições gaúchas, nordestinas...

Agora o que é que o brasileiro faz? Vai pra Miami!

O que é isso? Vai ver o Brasil. Vai pro americano. Lá pro tio Sam que pega teu dinheiro e bota

no bolso. Peça na outra encarnação para nascer lá.

Porque não é possível uma coisa dessas...Uma coisa linda desta que a gente tem... Um país

maravilhoso, um país cosmopolita, um país antropofágico... (Valdeck de Garanhuns)

Tenho claro que objetos e manifestações de arte popular são importantes no

espaço institucional para a divulgação, valorização, construção e reconstrução de

identidades, formação de público crítico e para o reconhecimento de novas formas e

estilos de vida contrários aos padrões estabelecidos pela pós-modernidade. No entanto,

são necessários cuidados e atenções ao serem apresentados ao público, evitando,

assim, o risco de uma visão deturpada que possa desvalorizar a arte popular.

Portanto, acredito na importância da mediação como um processo pedagógico

e como uma das alternativas para a ampliação do universo temático dos participantes

de um projeto de arte popular. As experiências estéticas e a proximidade com o artista

mediador são estímulos para o conhecimento e são capazes de despertar o espectador

para o fazer artístico, para a construção da sua identidade e para o questionamento

crítico dos padrões impostos por ideologias dominantes.

5.4 O artista mediador e o processo pedagógico

Como já foi dito, o artista mediador trabalha para uma instituição cultural e está

comprometido na criação de estratégias de aproximação entre o público e a produção

de arte popular. Portanto, a princípio, a mediação de um projeto artístico implica o tripé

composto pela produção artística, o público e o mediador que são, dependendo do

projeto, os “[...] orientadores de oficinas, museólogo, monitores de exposição de arte,

animadores culturais, curadores, artistas e profissionais de diversas áreas que

constituem um centro cultural” (COELHO NETTO, s/d, p. 248).

De acordo com a professora Miriam Celeste Martins, o conceito de mediação

“[...] pode ser visto envolvendo dois pólos que dialogam por meio de um terceiro, um

mediador, um medianeiro, o que ou aquele que executa os desígnios do intermediário”.

(2002, p.56). Ela alerta, também, que há muito ainda a ser pesquisado sobre o papel

dos mediadores e da mediação.

Com a participação e ajuda dos artistas mediadores Selma Maria, Valdeck de

Garanhuns e Irimar dos Reis, somados às minhas experiências profissionais e as

leituras constantes da bibliografia durante a pesquisa, procurarei especificar um pouco

mais desse tema buscando algumas probabilidades para o questionamento principal

descrito no capítulo IV da seguinte forma:

Como os artistas mediadores aqui entrevistados compreendem a mediação, a

partir do contexto histórico social em que vivem, na idealização e realização de projetos

de arte popular em instituições culturais inseridas na metrópole?

Essa questão ainda inconclusa favoreceu ampliação e o surgimento de algumas

outras questões, entre elas a de que o artista mediador possui projetos artísticos que

extrapolam a intenção de aproximação do público com a produção da arte popular. É

uma opção de vida, uma dedicação à cultura popular, que vêem uma alternativa para a

transformação do coletivo.

Eu amo meu trabalho! Amo. Eu faço por amor, porque eu admiro, eu gosto. Minha casa é

aberta, tá tudo pendurado, mas eu ainda não coloquei tudo porque não deu tempo. Cada vez que eu olho

tem uma coisinha aqui, ali e todo dia eu olho estas coisas. Eu acho bonito! Eu não me desacostumo, eu

não enjôo, isso é verdadeiro. Eu não coloco para enfeitar... Eu me sinto bem com isso aqui, então todo

lugar que você for tem coisas da cultura popular, tem no meu quarto, tem no banheiro, tem em todo

canto. (Valdeck de Garanhuns).

Eu me entrego completamente no que eu faço, no que eu gosto. Então, eu sou movido muito

por emoção do meu trabalho, mas eu espero que esta emoção possa fazer a diferença no outro. Tocar

no sentimento, nas pessoas, para que elas possam ter uma visão melhor do mundo da arte, da

brasilidade, das festas. A gente procura fazer com a alma e tocar na alma das pessoas com um pouco da

experiência que a gente tem de bagagem, a gente leva para as pessoas este, vou voltar a falar, este

sentimento. Porque gosto, porque respiro a cultura popular todos os dias na minha casa, aonde eu vou.

O ar que eu respiro é cultura popular, posso até ser piegas a estar dizendo isso ou estar sendo muito,

sendo muito ideológico, mas é porque eu sou assim, eu sou deste jeito, eu vivi assim, a minha vida assim

com a cultura popular brasileira. Então, eu carrego esta bandeira desta forma também. (Irimar dos Reis

Eu acho que essa cultura da criança, a história que toda criança faz, a criança de toda idade e

ligada à literatura, ao universo literário do autor (Guimarães Rosa) e da onde vieram essas histórias,

essas pessoas que foram retratadas e sempre buscando essa cultura popular que é o que me encanta. É

vida, né? Sem isso não tem razão de viver. (Selma Maria)

Essa mistura entre o projeto artístico – advindo das culturas populares – com

vida cotidiana do artista mediador é um contraponto ao atual imediatismo gerado pela

pós-modernidade e atribui novos significados aos acontecimentos do presente. Em

outras palavras, mais do que trabalhar para uma instituição cultural tendo um projeto

artístico e sendo um elo de ligação entre esse projeto e o público, o artista mediador

está entre57 o público, a instituição, a metrópole, os meios de comunicação de massa,

os processos híbridos, as hegemonias e, dessa forma, consciente da sua presença no

mundo, orienta o seu trabalho para uma práxis transformadora. “Estar no mundo implica

necessariamente estar com o mundo e com os outros”. (FREIRE, 2001, p.20).

O projeto do artista mediador tem o ápice na sua ação, na sua prática, no

momento que se relaciona com o público. Sua reflexão provém da forma como se

relaciona com o mundo diante do atual contexto histórico social. Essa prática contida no

seu projeto artístico e a consciência do mundo ao redor propiciam uma dialética de

ação e reflexão, o artista mediador vê o mundo e constantemente refaz a sua prática, o

seu projeto artístico e as suas formas de interação com o público.

Esses processos de mediação são baseadas nos valores das culturas

populares pertencentes à formação integral dos artistas mediadores e constituem-se de

situações estéticas que levam os indivíduos para uma reflexão sobre o atual contexto

histórico.

O homem, diferente dos animais, não está simplesmente no mundo. Pelo

contrário, pode ir mais além da mera situação de estar no mundo, pode transformar,

criar, acrescentar, produzir e decidir o rumo da história. (FREIRE, 1981, p. 66).

[...] eu faço diferente. A diferença no meu trabalho é a interatividade. porque a nossa cultura é 57 A idéia de mediação estando entre diversas situações encontradas no mundo é presente no periódico Mediações: provocações estéticas. V 1, n. 1, nov. 2005, na página 55, resultado dos trabalhos do Grupo de Pesquisa Mediação.

interativa, a música é dinâmica, o meu trabalho é dinâmico. Então, as pessoas participam, elas se

contaminam junto. Então é esta a minha proposta. ...a gente com a cultura popular que leva isso para o

público tem que ter percepção. Olha como é que é este trabalho, como é a produção, o tempo disso...

Esta satisfação, ela que importa. Você tá entendendo? A alegria das pessoas, de transmitir uma coisa

para elas que seja um bem para a alma, para a vida, que desperte nelas, um sentimento de brasilidade,

de identidade. Então, graças a Deus, aonde nós vamos, aonde eu vou com o Grupo Folias e Folguedos...

É... A gente é muito bem recebido. As apresentações, os comentários, assim, as pessoas não fazem

uma crítica, porque não é um trabalho assim, não é um trabalho para se fazer uma crítica. (Irimar dos

Reis)

Uma coisa é você brincar com Benedito (Valdeck de Garanhuns usa de sua habilidade como

ventríloquo para manipular o boneco Benedito) no teatro e a outra coisa é você brincar com ele na rua.

Eu fui para Minas Gerais por dois anos e levei o mamulengo. Você precisa ver o Benedito conversando

com o povão! Essas coisas eu faço no meio do povo. O povo vai pro teatro e fica sério, mas no final é

aquela brincadeira onde as crianças entram no palco pra dançar frevo, invadem tudo e eu só tomo

cuidado para não quebrar os bonecos, mais o resto pode brincar. Eu também explico. Porque eu gosto

do Benedito por causa daquelas piadas que ele conta. Mas, quando eu vou começar eu explico: ‘Olha o

teatro de mamulengo é assim, é brincado assim, assim, assim, assim, isso é assim.’ Então esta é a

interação e depois eu coloco o Benedito que é o encerramento da primeira parte. Depois eu coloco a

tenda e ele também interage com a platéia brincando se divertindo e a platéia com ele. Então é assim. Eu

preparo a platéia, porque eu digo: vocês façam de conta que vocês estão na rua assistindo. Dentro do

teatro eu faço isso, tem que brincar... Porque isso de seriedade, ficar sério... Isso aqui é um brinquedo,

como se vocês estivessem na rua. Aí eu pergunto: posso brincar embaixo? Eu armo a barraca. (fora do

palco e próximo à platéia) Só não armo quando o som não dá porque fica muito distante. Mais eu peço

pra brincar embaixo. Bem com o povo, quero o povo em cima de mim....

Quem conhece o trabalho acha bonito. Rapaz! Uma velhinha veio aqui... Uma velhinha de

setenta e oito anos que fez questão de conhecer a gente. Ai, ela foi lá me conhecer. A filha dela foi junto

porque ela fez questão de me conhecer. Ela me deu um beijo me abraço e disse: ‘Olha eu nunca vi uma

coisa dessas na minha vida’. Setenta e oito anos, nunca tinham visto um mamulengo na vida, nunca

tinha visto. ‘Nunca vi uma coisa dessas na minha vida. Você me encantou, eu fiquei encantada.’ E, no

outro dia veio assistir de novo, entendeu? Ela assistiu no sábado e voltou no domingo. No SESC Paulista

teve gente que assistiu todas as dez apresentações. Assistiu num dia, no outro dia, no outro dia. Porque,

porque isso aí, a gente não brinca para se exibir para ninguém. Não é espetáculo é a brincadeira.

Entendeu? (Valdeck de Garanhuns)

Em relação ao público o que eu mais escutava, assim era que eu achei demais interessante,

eram as pessoas falando: “Olha, eu nunca tive nesse lugar, mas é como se eu já tivesse”. Então, era

uma necessidade de falar da sua infância, contar história... Porque ali todo mundo tava contando história.

Cada um falava um pouco do seu imaginário, da sua infância, do que era pra cada um ser um menino

quieto. E quando eu acompanhava as pessoas na exposição todos, sem exceção, se identificavam com

as coisas: “Isso eu já vi”; “isso tinha na minha infância”.. Se não era aquilo era próximo, alguns, muitos,

falando: “Eu não tive infância”. Era muito interessante porque eu percebi que o trabalho, não só meu

quando acompanhava as pessoas, mas dos próprios monitores, era abrir o ouvido e ter paciência porque

as pessoas iam contar histórias. Muitas falavam que aquilo não era brinquedo pra elas que o brinquedo

era aquilo que elas viam na loja, mas elas abandonavam a infância muito cedo e iam pra roça. E na roça

encontravam aqueles brinquedos que ali, naquele momento, naquela exposição elas estavam vendo que

eram brinquedos reunidos. Choravam porque ali elas se viam. Elas viam que tinham... Que alguém tinha

dado um valor praquilo que pra elas era uma vergonha porque era brinquedo de pobre. Que o grande

brinquedo era aquele que fazia brilho, vinha dentro de uma caixa plástica, enfim, fazia barulho... O

brinquedo pra elas, de verdade, não era isso. E, quando elas vêm pra cidade, aí, mais ainda elas querem

esconder tudo isso. E esses depoimentos eram muito fortes, as pessoas, elas de repetiam, várias e

várias e várias pessoas. E era uma monitoria de ouvir. (Selma Maria)

O artista mediador que concebe e realiza projetos de arte popular, entende a

mediação não apenas como uma forma de promover a apreciação estética, mas como

um processo pedagógico de conscientização capaz de contribuir para que as pessoas

resgatem elementos da cultura popular presentes em seus cotidianos e histórias de

vida. Quanto maior a compreensão “[...] mais se desvela a realidade, mais se penetra

na essência fenomênica do objeto, frente ao qual nos encontramos para analisá-lo.”

(FREIRE, 1980. p. 26). Esses processos de mediação não se alimentam somente da

teoria, mas, sobretudo da vivência e da expressão criadora do artista. Nesse processo pedagógico, o artista mediador busca uma ação educativa por meio do diálogo:

fala com o público e não para o público. Escuta histórias de vida, propicia reflexões conjuntas, é acolhido

e também acolhe. Em muitos casos, o público transforma-se em protagonista. Dançando, cantando ou

simplesmente conversando acaba por dividir com o artista o mesmo espaço cênico. Em outras situações,

o próprio artista faz da platéia o seu espaço cênico. Esse aspecto da aproximação diferencia o artista

mediador que trabalha com projetos de arte popular de outros mediadores e formas de mediação.

No âmbito da arte popular, essa forma de mediação só tem sentido como ação educativa

alimentada pela expressão criadora dos artistas, no início, durante ou no final de um projeto artístico.

Portanto, os processos de mediação da arte popular desenvolvidos por artistas vinculados a esse

universo, são sustentados pela interação entre eles e o público, tanto no espaço expositivo quanto no

espaço cênico e são capazes de estimular a participação direta e a retomada de experiências

significativas da cultura popular.

E se você não tiver um cuidado de como levar (o projeto artístico) e onde, como, em que

momento... As pessoas às vezes passam batido. E se você não tiver uma dinâmica, se você não for um

educador, se você não disser: ‘Oh! Isso é daquela, daquela comunidade, pertence a isso, pertence a tal

criação, pertence a tal festa.’ Se você não der esta informação, aquilo passa despercebido, passa, passa

despercebido. Ai, aproximo das pessoas porque tem a linguagem do corpo, tem a música, tem a dança...

Tem troca com as pessoas porque você faz um bate e volta com as pessoas. Então esta é uma

comunicação. A comunicação da integração, de estar integrado, junto. E daí a identificação da cultura. O

público se identifica com a música, com a dança, com o objeto, com a forma de se expressar, com a

alegria, com a verdade com que está fazendo aquilo, o prazer... ...e depois do show vem a troca, as

pessoas conversam e contam a sua história e eu conto a história, a minha historia para eles e fica aquela

troca. É atuação, ali naquele momento você vai explicando o trabalho. É vai explicando e falando. É e as

pessoas vão se identificando, vão me entendendo, vão falando porque a cultura... A cultura, eu acho que

assim... Você compreende ela melhor, quando você participa. Na dança, como no caso na roda... Se

você não entrar numa roda, como você vai entender a roda?A arte popular não tem nada disso, você é

você e tem que vivenciar. Então, você vive ali, você conversa, você come junto, você comunga junto.

Então, na cultura popular têm estas possibilidades de vivência, você se irradia se contamina, você canta,

dança junto... Então... E este conjunto é que mexe com as pessoas, é que faz a diferença. Tem gente

que chega em mim e a primeira coisa é: “Nossa! Como é que você adquiriu isso?” “Como você fez isso?”

“Que detalhe!” “Que capricho!”. Como eu vou a muita festa popular, eu viajo, eu trago sempre,

artesanato, eu tenho um acervo na minha casa de vários objetos, de artistas, têm até vários artistas

populares que moram aqui na capital. Tem muita coisa dos mestres, das minhas viagens e este conjunto

da indumentária, da pesquisa, da vivência, ela faz muita diferença na forma como você atua. Como você

interpreta isso faz a diferença. Graças aos mestres que me deram a oportunidade, souberam me receber,

me receberam bem da mesma forma que as platéias me recebem em São Paulo, nas escolas, nos

SESCs, nas instituições... (Irimar dos Reis)

O artista mediador compreende e refaz a sua própria prática em uma crítica

constante ao mundo em que vive, a proximidade com o público concede autenticidade

às formas de mediação. Não há uma relação de superioridade entre o artista e o

público, o que existe é a vontade de “aprender ensinando e o de ensinar aprendendo”.

É nessa relação estabelecida no espaço institucional, no qual o público é parte de um

projeto artístico, que acontece a interação com mundo no sentido de resgatar o

homem comum, o intelectual, o trabalhador, o criador, o homem e sua dignidade

diante dos conflitos sociais.

As culturas populares não são apenas contemplativas. São tocáveis, atingíveis.

São representadas pelos artistas mediadores diante do público, com a sua

subjetividade que detonam, assim, processos de transformação e permitem a

descoberta, a produção, a criação e a consciência de mundo. Próximo ao objeto

artístico e podendo dialogar com os artistas, o participante de um projeto de arte

popular torna-se um fruidor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não é meu objetivo apresentar uma conclusão definitiva do estudo realizado. A

frase é enfática e demonstra que há uma grande lacuna na tríplice relação entre arte

popular, artista mediador e público. Ou seja, há um campo vasto e fértil para pesquisas

sobre esses temas ainda a ser explorado.

Penso que uma conclusão não definitiva possibilita que novas idéias, textos,

metodologias e práticas sejam agregadas às reflexões aqui desenvolvidas.

Desse modo, minha intenção, nestas páginas finais, é fazer alguns

apontamentos que possam vir a colaborar com novas pesquisas sobre a mediação da

arte popular.

Esse estudo foi possível devido a três fatores: as contribuições teóricas de

muitos autores, entre eles, Raymond Williams, Néstor Garcia Canclini, Peter Burke,

Stuart Hall, Mário Pedrosa, Domenic Strinat, Gilles Lipovetsky, Pedro Goergen, Henry

Giroux, Paulo Freire, Antônio Gramsci; os conhecimentos práticos e teóricos adquiridos

com a minha experiência profissional, trabalhando, há uma década, com ação cultural

no SESC São Paulo e as reflexões suscitadas pelos depoimentos dos três artistas

mediadores: Valdeck de Garanhuns, Irimar dos Reis e Selma Maria.

As idéias sobre os processos de mediação desenvolvidas neste estudo provêm, principalmente,

da maneira com que os artistas mediadores entrevistados se relacionam com as instituições culturais e

do modo como interagem com o mundo ao redor.

As entrevistas tiveram como foco a seguinte questão: que concepções de mediação orientam o

artista que é também mediador e como ele lida com aspectos relacionados com o contexto histórico e

social ao idealizar e realizar projetos de arte popular em instituições culturais localizadas nos grandes

centros urbanos?

A partir da análise dos depoimentos, pude perceber que os três artistas viveram

sua infância muito próximos da natureza; receberam ensinamentos dos mais velhos e

tiveram contatos com artistas populares, condições determinantes para a sua formação,

que motivaram e enriqueceram seus aprendizados.

Eles entendem que o espaço escolar deve conectar-se com o seu entorno, já

que os elementos da cultura popular, presentes na comunidade escolar, podem dar

mais significado aos conteúdos trabalhados em sala de aula.Um outro aspecto que pude observar é que o artista que trabalha com a arte popular e também

se percebe mediador acompanha as transformações do mundo e sabe das influências que os contextos

histórico e sociocultural exercem em seu projeto. Além disso, ele reconhece que, no atual momento, as

relações humanas e institucionais tornaram-se efêmeras, precárias e fortalecedoras de uma época de

incertezas. Por isso, sabe da importância de seu trabalho ante o modo de vida pós-moderno e a

paisagem urbana, por meio do qual pode contribuir para que os sujeitos desenvolvam ações

transformadoras.

O estilo de vida pós-moderno é um dos pontos norteadores desta dissertação, porém, não deve

ser entendido como uma ruptura à discussão dos conflitos entre grupos dominantes e grupos dominados.

A pós-modernidade é uma forma de pensamento sobre a realidade, é visível nas metrópoles, na

arquitetura das instituições culturais, no excesso de informações, no consumo e nos meios de

comunicação de massa, que em muito contribuem para o esvaziamento estético e simbólico do cotidiano

das pessoas.

O artista mediador possui uma visão crítica do mundo, defende formas de expor e divulgar suas

idéias nos veículos de comunicação e acredita na democratização desses veículos. Os simulacros

expostos na mídia, a exemplo da “música sertaneja”, são vistos por ele como uma afronta e falta de bom

senso.

Irimar dos Reis e Valdeck de Garanhuns foram bem acolhidos na cidade de São Paulo e ambos

usufruem da agenda cultural da cidade. Pude observar pelos seus depoimentos que eles preservam as

tradições apreendidas com seus mestres, ainda que concebam espetáculos de arte popular com

linguagens adaptadas ao meio urbano e institucional. Ou seja, o teatro de mamulengo de Valdeck de

Garanhuns é diferente do teatro de mamulengo tradicional, encontrado no mercado de Recife. As danças

dramáticas apresentadas por Irimar dos Reis não são as mesmas encontradas pelo Brasil afora.

Conscientes de que a metrópole de São Paulo e suas instituições exigem outras formas de

espetáculos, os dois artistas assimilaram a nova cultura e, com isso, podem oferecer aos seus

espectadores a fusão entre saberes aprendidos com seus mestres e aqueles advindos de sua própria

experiência.

Um apontamento originado das minhas experiências profissionais foi confirmado

por Selma Maria. A Artista relatou que, durante as negociações e montagem da

exposição “Meninos Quietos”, compreendeu as diferentes opiniões técnicas e

conceituais, as quais colaboraram com os objetivos do projeto. Fato semelhante

aconteceu com o artista Valdeck de Garanhuns ao negociar apresentações na TV

Cultura, ou com a editora, por ocasião da publicação de seu livro sobre lendas e mitos

brasileiros.Na realidade, os três artistas estabelecem relações com as instituições culturais por meio de

consentimentos e negociações. Dessa forma, conseguem compartilhar idéias com outros profissionais

sem abandonar seus processos de criação. Por conseguinte, passam a ver a instituição como um meio

para atingir o público. A relação estabelecida entre artista e instituição cultural é, sem dúvida, uma

relação de mútua necessidade.

Os processos de mediação em uma instituição cultural têm início com a escolha do projeto, ao

que se segue uma série de etapas envolvendo negociações, análises técnicas e administrativas. Uma

etapa muito importante na mediação é a confecção de cartazes, folder, programas, catálogos, encartes

de CD etc. Objetos que se configuram como valiosos instrumentos de mediação.

Entre um projeto de arte popular e uma instituição cultural, há profissionais que podem influenciar

e até mesmo decidir os processos de mediação, dentre eles estão: atravessadores, técnicos de luz e

som, animadores culturais, curadores, acadêmicos, financiadores, patrocinadores, divulgadores,

assessores de imprensa e produtores, entre outros.

Na relação entre artista e instituição cultural, a presença de um produtor é muito comum. Ele

responsabiliza-se pelo transporte, alimentação, hospedagem e fornecimento de nota fiscal, entre outros

aspectos importantes para o êxito de um evento.

Com este estudo, pude compreender que o produtor capaz de cuidar de projetos de arte popular

deve ser um pesquisador e estar próximo da comunidade do artista ou do grupo de artistas. E, em muitos

casos, ele nem necessário é, pois é o próprio artista mediador o responsável pela produção de seus

projetos.

Os processos de mediação são necessários para a formação de um público

crítico, capaz de consumir e produzir arte e, acima de tudo, questionar o momento atual

em que vive, profundamente marcado pela massificação cultural.

Sem dúvida o público é o pólo mais importante de toda ação cultural

desenvolvida por uma instituição tendo um projeto artístico como ponto de partida. Por

isso, a instituição deve organizar ações culturais voltadas à desvinculação do público ao

processo de massificação cultural. E isso só é possível por meio da educação.

Portanto, os processos de mediação são, antes de tudo, processos pedagógicos, e

assim devem ser compreendidos por aqueles que estão à frente das ações culturais

nas instituições.

Todo artista deve ter a intenção de aproximar o público da sua produção, uma

vez que a arte tem um caráter social. A diferença que existe entre o artista que se

assume mediador e artistas que se voltam tão somente para as suas produções é que

aquele não se preocupa somente com a recepção do público. Extrapola essa intenção

ao unificar seu projeto artístico ao seu projeto de vida, vivendo, em seu próprio

cotidiano, o universo simbólico de suas produções, de onde saem suas ações, suas

práticas, suas reflexões e conhecimentos.

O artista mediador vive o seu momento histórico, relacionando-se com o público,

a instituição, a metrópole, os meios de comunicação de massa. E, assim, consciente da

sua presença no mundo, orienta seu trabalho, refaz sua prática, seu projeto artístico e

suas formas de interação com o público. Muito próximo da perspectiva freireana, esse

artista, de fato, compreende a mediação da arte popular como um processo pedagógico

de conscientização. Nessa mesma perspectiva, sua ação educativa se dá por meio do diálogo, da interação com o

público no espaço cênico ou expositivo. Ela fala com o público e não para o público, escuta histórias de

vida, propicia reflexões conjuntas, é acolhido e também acolhe. Essa forma de mediação ocorre antes,

durante e depois da realização do projeto artístico e corresponde a uma nova experiência tanto para ele

quanto para o público, que pode ser despertado para valores significativos da cultura popular.

Por fim, é bom lembrar que este estudo teve origem em minha prática

profissional, quando, diante do desafio de mediar projetos de arte popular em diversas

unidades do SESC, percebi que esses eventos exigiam cuidados especiais. Com estas

últimas reflexões, quero destacar o meu aprendizado decorrente deste estudo, os quais

já estão fazendo parte de meu cotidiano.

Creio que a integração entre artista e público é essencial nos processos de

mediação. Por essa razão, as instituições devem compreender a necessidade de

preparar o espaço cênico ou expositivo para a experiência genuína que se

desenvolverá entre os artistas e o público, antes, durante e depois do evento.

Para isso, os instrumentos da mediação (cartazes, banners, folhetos explicativos

etc) são indispensáveis porque levam ao público conteúdos informativos sobre o

evento, o grupo ou o artista, preparando-os para a fruição.

O produtor também deve se ver como um mediador. Esse novo papel impõe-lhe

a necessidade de adquirir conhecimentos específicos – antropológicos, sociológicos,

pedagógicos e artísticos – para atuar entre os artistas, o público e a instituição.

As culturas populares e suas artes são um pólo antagônico à pós-modernidade,

o que aumenta a importância de eventos de arte popular no espaço institucional e no

contexto urbano.

A aproximação do público com os artistas mediadores colabora com os objetivos

institucionais relacionados à ação cultural e pode acionar tanto nos indivíduos quanto

nos grupos sociais um processo de questionamento sobre suas identidades,

favorecendo suas construções e/ou reconstruções no mundo cada vez mais

massificado.

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Brás Cubas), 2003.

CD Termo da Folia de Reis de Alto Belo. Pequizeiro Produções Artísticas. 1995.

CD Dona Edith do Prato: vozes da purificação. Sapapuí Produções Artísticas Ltda.

2004

CD Banda de Congo Mirim da Ilha Centro Cultural Caieiras, 2004.

CD Coral das Lavadeiras de Almenara. Estúdio Via Sonora, 2004.

Comunidá. Gal Costa. CD Gal. Faixa 8, RCA, 1992.

ANEXOENTREVISTAS REALIZADAS COM OS ARTISTAS MEDIADORES

Entrevista com Selma Maria – Dia 28/07/2006

Edson: Vou pedir pra você falar o seu nome, onde você nasceu...Selma Maria: Selma Maria. Eu nasci em São Paulo mesmo aí na Casa Verde, depois mudei pra Itu num sítio também. Passei a infância num sítio acordando cinco horas da manhã pra ir pra escola, depois voltei de novo na adolescência pra São Paulo.Edson: Quais as influências que o seu trabalho têm hoje que vêm da sua infância? Você viveu num sítio... Passou a infância num sítio, não é?Selma Maria: É... Então, meus pais são do interior e, principalmente meu pai, ele veio do interior do Paraná, então ele tinha uma vida sertaneja muito forte e, apesar de ter vivido em São Paulo e ter passado por aquele processo todo, que a cidade enruste quem vem do interior... Mas, enfim, ele gostava e gosta muito do mato, de morar no meio do mato. E a gente acabou indo morar num lugar que não tinha luz, não tinha água, não tinha nada. Minha mãe louca, enlouquecida. Mas isso foi uma base muito forte assim pra mim, porque eu... Esse contato que eu tive com a natureza, de ver todo dia o sol nascer na janela, ia pra escola cinco horas da manhã, o carro do meu pai sempre tava quebrado, a gente pegava estrada no escuro pra chegar até outra estrada pra pegar um ônibus... Então essa vivência com a agressividade de, mesmo, da natureza... Passar por... Tomar chuva pra ir pra escola, passar muito frio de manhã, ver muita árvore, muito canto de passarinho, muita semente, brincar muito na terra, muito, muito, muito... Meu irmão... A gente passou a infância toda brincando de cipó, rio. Então isso foi muito marcante assim. Eu falo que a Mata Atlântica é minha mãe, assim, né? Mas depois eu acabei indo procurar no primo dela, que é o cerrado, mais elementos ainda.Edson: E a sua formação é em que área? Selma Maria: Eu fiz artes plásticas, né? Eu me formei como arte-educadora e exerci a profissão: dei aula em escola.Edson: Essas influências todas de morar no interior, de brincar na terra, de enfrentar os perigos da natureza... O que lhe ajudou na busca por essa profissão? O que a conduziu a fazer artes plásticas?Selma Maria: Olha eu já... Bom, como eu te falei desde pequena eu era muito ligada à natureza, a ver as coisas. Eu lembro do meu pai trazendo muita coisa pra eu poder mexer, pra poder fazer. Ele ia no rio pegar argila e eu ficava lá horas fazendo colar, panela, fazia todos os meus brinquedos pras bonecas... A minha mãe costurava muito e... É, eu peguei isso desde cedo, de fazer roupinhas também pras minhas bonecas, né? Enfim, mas eu esqueci o que você perguntou... Da formação de artes plásticas... Então isso tudo, esse fazer que o sertanejo, que o pessoal do interior tem, eu vejo muito isso lá em Minas: a pessoas têm que fazer senão ela não vai ter o pão. Não tinha condição de ir todo dia na padaria, então tinha que fazer o pão. Não tinha assim, coisas, lojas a todo momento ao seu dispor. Então você fazia roupa. Então tinha toda essa preocupação do fazer. Edson: E as crianças faziam os próprios brinquedos...Selma Maria: Faziam os brinquedos. Então eu acho que esse... A criança vê o adulto fazer coisas no dia-a-dia né? Era isso que eu via nos pais né? Fazendo coisas que na cidade você já não faz, porque você tem a facilidade de comprar né? Então eu acho que essa formação do fazer, eu acho que foi determinante na minha profissão. Eu acho que o artista plástico ele... Ele precisa ver, mas ele precisa fazer. Senão eu escolheria uma outra profissão mais teórica. Mas assim, de pegar a mão na massa, de ir lá e ter que fazer a coisa, eu acho que tem essa coisa do artesão, né? É esse trabalho específico, né? Que eu faço com as crianças, na verdade elas são pré-artesãs. A criança ainda não é uma artesã, de enxergar um acabamento muito elaborado né? Na peça, no que ela faz. Ela tá preocupada em fazer, ela não ta preocupada no resultado, né? É a ação. Essa ação pra mim é o meu grande estudo.

Edson: Como você avalia o seu papel como arte-educadora diante da questão da mídia influênciando as crianças? É quase uma batalha cotidiana com o aquilo que é imposto pela mídia, não é? Como é que você vê este seu trabalho de aproximar as crianças das coisas mais simples, de fazer seus próprios brinquedos, utilizando materiais simples que estão próximos, diante de todo o que já vem pronto e diante do desejo de consumo dessas crianças? Selma Maria: É eu acho que acaba diminuindo a infância né? Eu acho que a infância é... É aquele brilho do... Da descoberta, né? O que isso traz? Nós já somos uma sociedade de... Diferente da sociedade do começo, do final do século, do começo do século, né? Quer dizer já somos uma geração que passou por um processo industrial. Na infância, então eu acho que a criança, ela não tendo, quer dizer, nos ainda tínhamos a televisão que era o momento só de desligar e ficar absorvendo o que era mostrado por aquela telinha. Agora, devido ao espaço que a criança não tem, né? Esse movimento do adulto de batalhar, de ter que ir atrás e ter que deixar a criança num espaço que ele não tá mais perto dela, por questões de sobrevivência mesmo, né? O adulto... Antigamente tinha a mãe em casa, o pai um pouco mais próximo, mas não tão distante, né? Hoje em dia são os dois fora, né? E eu acho que é uma agressão. Eu não sei aonde que isso vai dar, mas eu vejo o encurtamento da infância. Não é uma coisa pra mim positiva pra evolução do homem ou acredito que têm coisas na... Na nossa evolução, formação da nossa personalidade que passam por isso né? Por essa descoberta, por esse fazer, por esse encantamento das coisas. É sair e pegar um gravetinho, não largar aquilo, se afeiçoar aquilo e não saber por que se afeiçoou. E a natureza taí. Ela oferece milhões de materiais, né?Edson: O problema é que essa natureza está ficando cada vez mais difícil de se ter acesso, não é? Você falou que a criança perdeu o espaço da rua, que a televisão acabou ganhando mais espaço e os pais ficam mais ausentes...Selma Maria: Mas a criança em si ela não perdeu ainda, eu acho. Eu acho que ela não perdeu porque basta, se a criança está ali parada na televisão, se propõe alguma coisa lega pra ela, ela sai. A primeira coisa que ela faz é desligar porque o que ela quer é carinho. Ela quer o contato. Isso é uma coisa humana, todos nós queremos, né?Edson: Fala um pouquinho do seu trabalho como arte educadora. Eu sei que você trabalha com a formação de professores também. Eu queria entender um pouco mais como você atua com essa proposta de arte educação como uma linguagem voltada à arte popular e diante desse mundo maluco que nós estamos vivendo. Selma Maria: Quando eu estava no espaço escola, a minha grande batalha era o fazer da criança né? Então o que isso significava pro diretor da escola? Pra diretora... Era que o produto ia sair mal acabado e não ia ser um produto que ia deleitar a maioria dos pais, né? Isso na visão da maioria das escolas, né? E o que acontecia? Claro que sempre aparecia alguém fazendo produtos de artesanato de revista, né? Coisas bonitinhas que mal a criança punha a mão naquele material, mas depois vinha aquela coisa: feito pelo seu filho. Uma grande mentira. Desde desenho mimeografado até lembrancinha de páscoa, de dia das mães, dia dos pais, que você vê que tem pouco ali a mão do teu filho. Enfim, mas tinha que sair um resultado bonito porque o pai tava ali pagando, enfim tava investindo de alguma forma e a escola tinha que dar esse retorno aos pais, né? No caso. Então, a minha batalha era essa: de mostrar que, sim, aquele produto simples. Que o fazer era importante pra criança, se sujar e descobrir, enfim. Não importava o resultado pra mim. Não era importante o resultado. O resultado era o processo. Quer dizer, aquele ano ia fazer daquele jeito, outro ano ela ia entender o processo melhor. Mas assim; o tempo dela é diferente, né? É muito mais lento do aquele que a escola propunha. Então minha grande luta era essa. Além do que, como formada em artes plásticas, havia uma cobrança que eu desse aulas só de Van Gogh, Picasso, de Chagal, Matisse, artistas que trabalham o popular, mas pra nós, Brasileiros, já tem outra leitura. Artistas europeus que estão nos museus de arte contemporânea e que é importante as crianças saberem. Também acho importante, mas só eles não, né? Mas não são só eles. Outras coisas outros ensinamentos que no meu caso eram muito ligados ao... À coisas de natureza, de descobrir o brinquedo popular,

de descobrir a brincadeira. Esse envolvimento com a cultura da criança, né? Então foi começando a criar um choque muito grande, uma resistência no meu trabalho. Até que chegou um dia que a dona da escola falou: “Olha ou você volta a dar aulas de Van Gogh, ou você tá fora do nosso esquema”. Eu falei: “Então tchau”. E eu não sabia o que eu poderia tá fazendo a partir dali porque já fazia muitos anos que eu dava aula na escola, gostava muito do meu trabalho, das minhas crianças. Mas eu via que a escola, a instituição ela tinha que caminhar muito ainda pra chegar a esse, entendimento da cultura da criança, né? O que é a cultura da criança, que ela traz a cultura dela e que isso é muito importante pra formação dela, né? Que é um estímulo que vem... Estímulo que vem de dentro pra fora e não um estímulo que vem de fora pra dentro de uma informação que o adulto tem que ele acha importante que ela saiba naquele momento. Eu acho que ela vai saber daquilo. Ela pode ter essa informação, mas às vezes não precisa ser naquele momento, pode ser um pouco mais para a frente. Ela pode ainda trabalhar com a cultura dela, com o brincar dela, né? Mas, a partir daí, desse momento, que foi de ruptura com a instituição, eu fui começar uma pesquisa particular que foi dai que nasceu todo esse trabalho dessa pesquisa. E depois dos brinquedos com a literatura de Guimarães Rosa que trabalhava muito também a cultura popular do Sertão.Edson: Quer dizer, de certa forma essa questão da escola trabalhar com modelos prontos, com planejamento até repetitivo acabou impulsionando você para outros projetos?Selma Maria: É, acabou sendo né? Eu tinha certeza que era esse o caminho, que não tinha mais volta. Eu admiro quem... Tive um grande professor na faculdade que era o professor “Tüshins” que ele foi, assim, uma pessoa que deu uma formação muito grande assim pros seus alunos, ele trabalhava muito com isso... Ele viajava muito, né? Pra vários países, mas sempre nas viagens... É... As viagens que ele fazia ele... Ele buscava o olhar dele, né? Então ele buscava o olhar das pessoas, de como as pessoas tinham uma noção errada de como elas se movimentavam, mostrava também os museus... Enfim, toda a arte contemporânea, mas tinha essa visão muito específica do ser humano, né? De como que o ser humano via tudo isso que estava sendo mostrado a ele. Então é... O que me chamou atenção como educadora foi... Foi isso mesmo, como eu te falei, eu admiro essas pessoas que dão aulas de Picasso, de Van Gogh, mas eu acho que já tinha muitas pessoas pra dar essa aula, esse tipo de aula, né? E muito mais capacitadas que eu e eu tinha certeza que esse era meu caminho. Que pela minha formação, eu não tive uma formação dentro de um museu, de uma família intelectual. Foi uma formação mais voltada com coisas da natureza. E eu acho que daí que vem essa preocupação da natureza em relação à natureza do homem, né? E não... Mais humanista... E não uma questão só intelectual.Edson: Você desenvolve trabalho com educadores também?Selma Maria: Também... Também.Edson: Qual a sua preocupação em relação à formação do educador?Selma Maria: Então, o educador ele carrega essa bandeira todos os dias, né? De lidar num espaço que não é o mais agradável pra você trabalhar. Normalmente as janelas das salas de aula estão acima da linha do horizonte da criança. Ela já não consegue admirar a paisagem que está aí fora, né? Ela já não tem essa, essa... É tudo muito enfurnado, né? É tudo muito dentro de caixas, a criança sai da escola é uma caixa, vai pro apartamento é uma caixa, vai pro shopping é outra caixa. Parece que aqui neva o ano inteiro, não é um pais tropical... A arquitetura teria que ser muito revisi... Revista em função disso. Mas o educador... Ele fica naquela posição em que ele não pode ir tanto pro pátio, ele não pode sair da escola e visitar um parque todos os dias, né? Então de repente eu venho com essa proposta do brincar, da cultura da criança... Ele fala: “Ah! Ta bacana, mas e aí? Onde eu vou usar isso?” Então, o grande desafio é mostrar pra ele que é possível, dentro da limitação do espaço que ele trabalha. Ele, no caso específico dos “meninos quietos” que é minha pesquisa hoje em dia, você tem milhões de brinquedos que você necessariamente não precisa sair da sala de aula. Esses brinquedos passam... O grande desafio também em descobrir esses brinquedos que não... Não precisam

da cola, da tesoura... Do material que às vezes o educador não dispõe, né? Não têm à mão, então são os brinquedos de ação, né? Edson: E o brincar, ele começa na busca de material, não é? É o material que está próximo. Se não estiver, a criança que vai procurar para montar.Selma Maria: Fica difícil. Por isso que há, eu acho, existe um pouco de falta de estímulo a esses educadores. O meu processo é estimulá-los, né? É ver que é possível nas... Cê vê nas cidades uma árvore que tem muito em cidades, por exemplo, que é aquela pata-de-vaca. Ela tem uma vagem que uma própria professora me ensinou que aquilo ali era um brinquedo. Então com certeza existem milhões de dessas árvores na frente da escola, no quarteirão da escola, dentro da escola, na calçada próxima, no quarteirão próximo a essa escola que não é explorado. Então, essa vagem ela tem uma particularidade que você abrindo ela um pouco assim na metade, você faz um brinquedo de estalar, né? Quer dizer, eu acho isso interessante, não sei. Pra mim, eu acho, quando eu descobri aquilo eu fiquei encantada... Inda mais vindo de uma professora.Edson: Vamos falar do seu trabalho, da exposição “meninos quietos”. Assim, eu participei, sou suspeito pra falar, mas é completo: literatura, artes plásticas, música, teatro, congada, não é? Cultura popular... E o que me deixou muito feliz foi envolver todas essas linguagens num único projeto, tendo a frente essa questão do brinquedo. Eu queria saber como é que você idealizou esse trabalho.Selma Maria: Eu acho que... Uma coisa particular assim, eu até evito falar pras pessoas senão parece uma coisa de... Eu tenho uma amiga que é também pesquisadora da cultura da criança, do brinquedo da criança, ela falou: “Se a gente começar a falar das entrelinhas do nosso trabalho parece coisa de Testemunha de Jeová”, mas é interessante como eu acho... Uma vez eu escutei isso, eu acho muito relevante, assim, que não é a gente que escolhe nosso trabalho, né? O trabalho que escolhe a gente. Então esse trabalho dos “meninos quietos” eu acho que foi isso. Acho não, tenho certeza. Claro, tinha um trabalho aí de vinte anos como educadora, mas eu acho que houve uma fome com a vontade comer do meu lado, mas não sei como do Guimarães Rosa de colocar alguém no caminho dessa idéia dele aí. E não sei como isso se processou, essas coisas pra mim são... É essa coisa mística, essa coisa toda, eu não sei lidar muito bem com isso. Mas, enfim. Minha preocupação era trazer, minha só não, mas quando eu idealizei a exposição eu... Eu chamei a Anne Vidal que é uma artista plástica que acompanha e desenvolve um projeto no Sertão de Minas também. E a minha... A nossa preocupação era trazer a simplicidade presente na obra do Guimarães. Isso era assim, fundamental. Esse trabalho... Esse trabalho tá passando. Então eu... E foi muito interessante o processo porque as pessoas que foram entrando durante o processo, não era uma visão sertaneja que geralmente as pessoas têm... Quando entrou realmente a equipe que precisava, botou... Botou de pé as idéias, né? Apresentei... A idéia do... Bom, deixa eu começar do começo. Tinha já essas idas minhas ao Sertão de Minas, esse encantamento com as obras do Guimarães, essa... O descobrimento de como ele tratava a alma infantil, nas suas histórias, como ele conseguia realmente ler o que era uma criança e ele foi uma pessoa genial, uma pessoa que sabia ler a alma de qualquer tipo de pessoa. Ele tinha, assim, um aprofundamento muito grande do que era o ser – humano, né? Isso o velho, a criança, o homem, a mulher, as relações, a relação mística que tem as obras, enfim. Tudo era muito bem, tudo é muito bem apresentado. E nunca ninguém tinha feito uma pesquisa em cima da criança na obra do Guimarães. E eu também nunca tinha escutado o Guimarães voltado pra essa linha de brinquedo. Mas foi uma surpresa pra mim descobrir isso: que ele também tinha, além de tudo que ele conseguir tratar na obra, falar nessa imensa obra que ele fez, que ele também fez, lembrou da criança, né? Só que ele morreu muito cedo e não teve tempo de realizar essa idéia que era falar sobre os brinquedos especificamente, sobre os brinquedos da infância dele. Que foi uma infância sertaneja em Cordisburgo, Minas Gerais. Que é onde eu ia, já fazia a pesquisa, Cordisburgo, Morro da Graça e (inaudível). E aí, nessas viagens, me falaram que ele tinha tido essa idéia, que ele queria

fazer, mas ele não realizou esse sonho. E isso caiu, não foi uma bomba, não foi a Rosa de Hiroshima do Japão, mas foi a Rosa do Sertão que caiu como uma bomba na minha cabeça. E isso transformou totalmente o meu processo, se eu tava vindo pra cá, com essa frase: “fazendo meu pequeno tratado de brinquedos para meninos quietos”, essa frase foi a grande transformadora. Foi aquilo que me deu base pra tudo aquilo que eu já pensava, que apesar de eu ser artista plástica, eu não me encantava só com a forma do brinquedo, eu não me encantava só com as cores, as formas. Eu me encantava com a história que tinha levado a criança a fazer aquele brinquedo, né?E o Guimarães coloca isso. Ele coloca toda uma história até chegar no brinquedo. Ele coloca toda geografia, todo o envolvimento da criança, pra chegar ali e apresentar o brinquedo. Ou seja, não apresenta o brinquedo só como o artista plástico vê, que é a coisa da forma sem se preocupar com o contexto daquilo. E aí eu elaborei o projeto e elaborei na forma original como um livro. Era um livro e um CD. Só que... O projeto foi aprovado na “Lei Rouanet”, mas eu não consegui patrocinador, não consegui nenhuma instituição que pudesse tá patrocinando esse trabalho. Então é... Eu tive uma idéia de levar por uma instituição. Então, assim, de apresentar a idéia da exposição pra outra instituição não teve, o primeiro foi o SESC Pinheiros, né? Então... E foi interessante porque o Jaime e a Denise na hora toparam a idéia, né? Acharam interessante. E aí foi um ano de idéia e de convencimento que essa idéia tinha um encantamento e tinha fôlego pra se fazer uma amostra grande, de mostrar não o Guimarães, mas todo o povo que ele retratou. Então esse era o grande desafio. Eu não queria só mostrar o Guimarães como muitos artistas já faziam, que era mostrar o Guimarães na íntegra, de buscar o literalmente o que ele escreveu, mas de fazer uma releitura do que ele via, né? O brinquedo, o brincar, a criança e mostrar de um jeito diferente. Normalmente as pessoas mostram Guimarães que é assim, é lendo trechos da obra. Eu não queria só isso, eu queria, eu queria... Mostrar as crianças que eu já pesquisava há três anos indo lá pro Sertão. Em relação à instituição, ã...Edson: E um projeto que você fez para a “Lei Rouanet”, mas só isso não bastava, não é? Você precisava buscar recursos, precisava buscar instituições que se interessassem. Eu acho que pela sensibilidade das pessoas que viram seu trabalho, o SESC Pinheiros acolheu de primeira.Selma Maria: Sim. O SESC tem uma linguagem de já... De fazer exposições lúdicas, de a criança poder interagir com aquilo que ela tá vendo, né? Eu achei que o SESC seria um, era o ideal praquilo que eu pensava. A exposição que seria uma exposição onde as pessoas pudessem tocar, pudessem brincar...Edson: E como foi a busca de outras instituições, instituições privadas, não sei... Empresas... Como que foi? Como você foi acolhida? Selma Maria: Então o que as empresas me davam de retorno: “a pesquisa é linda, parece muito embasada, mas nós estamos com nossa verba toda voltada pra área músical” e eu falava: “mas Guimarães Rosa... Você Guimarães Rosa é uma música, né?” Ele é todo músical. Meu convencimento era... Eu tentava convencer essas pessoas que era importante, né? A criança conhece Guimarães Rosa que é uma das vertentes, um dos objetivos desse projeto é esse também. Não apresentar Guimarães Rosa só na frente, só na época do pré-vestibular, que é o adolescente. O que ele menos quer na vida é ler Guimarães Rosa nessa fase. Com razão, porque cê precisa de uma concentração muito grande. O meu objetivo com esse trabalho é apresentar o Guimarães ludicamente pra criança. Eu falo que gostaria que a criança não visse Rosa só como nome de flor, de cor, mas também como um autor que soube falar dela. Então, meu convencimento era esse pras empresas, que era importante conhecer Guimarães. Que era importante mostrar essa outra versão. Que as pessoas veiculam a obra do Guimarães a obra do “Grande Sertão: Veredas”, somente essa visão dos jagunços, muito embasada também no seriado que foi feito pela Globo, enfim, tem essa visão porque é uma grande obra, né? “O grande Sertão: Veredas” é a obra Brasileira mais divulgada, é considerada o maior romance Brasileiro mesmo por críticos lá de fora. Mas, enfim, as empresas falavam que era interessante, tudo, mas que não acreditavam porque elas não conhecem. Aí é que tá, quer dizer, já é... Eu

tava lidando com todos os preconceitos num projeto só: que é o trabalho com a criança, as empresas hoje em dia estão indo mais pra adolescentes, né? Por uma questão política, por um retorno mais rápido daquilo que elas têm investido. Investir em criança é muito demorado, porque aí elas vão demorar muito pra ter o retorno, né? Então já tinha isso: tinha o desconhecimento da obra, da região desse Sertão que as pessoas confundem com o Sertão nordestino que é mais divulgado. Então esse Sertão que ele foi inspirado, que ele nasceu nunca foi colocado assim na mídia o que é realmente. Então é um total desconhecimento. As pessoas se interessavam, achavam bonitinho, mas não... Não... Não era um produto de mídia, não era um produto que eles acreditavam que pudesse impulsionar, fazer uma boa imagem, né? Na verdade eles achavam que eu era uma louca achando que dava pra juntar um monte de coisa em um produto.Edson: E a questão do livro e do CD como é que está? Você está procurando apoio? Está na mesma batalha que você acabou de falar ou...Selma Maria: Não, então é... Eu acabei conseguindo a... Uma empresa que trabalha com leis de incentivo e que publica muitos livros, né? E eles se interessaram pelo projeto, eles foram na exposição e se interessaram em publicar. Então, assim, eles têm um projeto aprovado pra publicação de um livro aprovado pela “Lei Rouanet”. Então, atualmente a gente tá preparando um material pra apresentar prum patrocinador. Então o que faltava também nesse processo de “Lei Rouanet” era ter uma empresa de confiança também que pudesse apresentar pro patrocinador, entendeu? Que tivesse uma história com esses projetos de leis de incentivo, né? Porque pra empresa isso é importante porque ela tá colocando também o nome dela e lidando com um dinheiro que na verdade não é dela, é do governo. Então esse processo burocrático da lei de incentivo ele é muito é... É perigoso porque eu que não tô lidando com dinheiro meu.Edson: Quer dizer, o artista não sabe lidar com isso, aí ele precisa procurar alguém que entende disso. Houve interferência no trabalho? Na idéia propriamente dita? Você acha que você abriu negociação ou você conseguiu manter esse trabalho na íntegra sem negociar nada?Selma Maria: Então, eu esqueci de te falar que nesse meio tempo houve o interesse de uma editora e essa sim entrou falando: “Olha eu quero isso e isso. Eu não quero nada muito disso que cê ta pensando do que é um livro de meninos quietos. Eu quero que você faça isso”. Eu acabei tentando fazer, mas eles queriam uma história infantil contando e entravam esses brinquedos no meio da história, mas teria que ser uma historinha infantil, né? Eu acho que cabe, claro, uma historinha infantil, mas existe todo um trabalho de pesquisa de três anos que eu quero mostrar. Mas pra eles por conveniência... Porque eles são uma editora que trabalham só com livros infantis, historinhas sem muita produção. Não são livros caros, né? De produção cara, quer dizer, livro no Brasil é sempre caro, mas digo a produção não sairia tão cara porque iria lidar só com texto e algumas ilustrações. Mas não iria mostrar realmente o projeto como um todo que é isso que eu quero mostrar. Então, na verdade, assim acabei não aceitando o trabalho com essa editora porque ia ser um detalhamento do meu trabalho. E a função desse, o objetivo desse trabalho é lidar com a linguagem da criança, mas também a linguagem que o adulto entra também como criança. O adulto ele não perde, eu acredito que ele não perde o lúdico a tal ponto que ele não consegue mais ler um livro sobre brinquedos, né? Acho que ficou provado isso na exposição, quantos adultos foram e se emocionaram, né? Então essa minha preocupação de, como artista, atingir vários públicos, claro que a editora não quer. Então a primeira coisa que a editora fez foi retalhar porque ela quer dirigir o livro pra tal faixa etária porque é assim que funciona. Vai tá a estante da livraria e vai colocar onde? Qual setor vai colocar, então é essa a pergunta que eles me faziam, né? E eu falava: “Não, mas eu quero um livro que tenha todas as linguagens, que o adulto possa ler, que a criança possa ler, que o adulto possa ler junto com a criança, enfim”. E aí essa empresa, que é de uma pessoa que eu conheço há muitos anos veio e se interessou e a gente tá fazendo o projeto pra apresentar. Ele veio e... É interessante que ele veio falando: “Não. Eu quero esse livro, esse seu trabalho. Ele fala tanto pra adulto quanto pra criança. Esse produto tem que ser para os dois, um livro só que

fale para dois. A gente não pode subestimar o lúdico do adulto”. Aí eu falei: “Puxa, mas era isso que eu queria e você vem me falar que você quer fazer isso? Então vamos, né?”. Quer dizer, por enquanto tá nesse pé a questão do livro.Edson: Você acha que apesar de todo desgaste, cansaço em buscar patrocinadores e ter que formatar um projeto com uma linguagem burocrática - que é o projeto das leis de incentivo - de bater de porta em porta, de quererem alterar o projeto, ainda existem empresas e instituições conscientes em relação ao trabalho do artista e respeitam isso?Selma Maria: Eu acho que têm. São raras né? Mas com certeza no meio desse projeto eu vou ter que abrir concessões e eles também. Porque é uma negociação. Acho que a vida é isso. A vida é negociável, né? A gente tá sempre negociando...Edson: Não dá para o artista chegar com um projeto numa instituição e dizer: “eu quero que seja dessa forma” porque a instituição por si só já é mediadora, não é?Selma Maria: Sim. Eu acho que às vezes o... Também a gente tem uma visão muito poética de às vezes coisas que não são...Edson: Que tem um momento de análise de projeto até pela... Lógico, depende de instituição, da sensibilidade das pessoas que elas se emocionam com o projeto, deixam extravasar a emoção, né? “Nossa! Maravilhoso!”. Só que pra concretizar essa idéia, tem uma série de negociações que o artista precisa é... Negociar, né? Selma Maria: É. É um amadurecimento que a gente passa durante o processo, né? Acho que esse um ano que eu tive negociação com o SESC, ã...Edson: E o... E o tempo até você encontrar essa empresa que disse: “olha que idéia ótima!” Quanto tempo foi isso?Selma Maria: Da primeira empresa em relação ao livro?Edson: É, em relação ao livro, até o momento que você achou essa empresa, assim. Do momento que você saiu com a sua pesquisa, do trajeto que você fez e pessoas querendo alterar... Enfim, até o final, até o momento em que falaram: “olha...”.Selma Maria: Cê tá falando dessa empresa agora? Edson: Dessa empresa agora.Selma Maria: Três anos.Edson: Três anos. Porque é livro, CD, é exposição e na exposição houve desdobramentos de outras coisas.Selma Maria: É, são muitas frentes, né? Eu quis abrir muitas frentes e aí no fim tá difícil assim, pra mim, como mentora do projeto administrar o meu ciúme que eu tenho das pessoas se apoderando dos meninos quietos. Tem uma questão músical, o autor colocou lá “meninos quietos”, aí tem um outro que já gravou um CD e colocou lá a música “meninos quietos”. Quer dizer, então isso tomou uma proporção que é do mundo mesmo, né? É aquele filho que se faz e depois ele vai embora e se faz... Mas isso foi duro assim, mesmo a questão do SESC de “realização SESC” em todos os panfletos. Quer dizer, essa foi uma etapa muito difícil, esse apoderamento da coisa do artista que não é famoso. O artista que não é famoso então fica com a sua autoria meio camuflada. No caso da exposição acabou que aconteceu isso.Edson: A exposição “meninos quietos” eu acompanhei e vi a literatura como música, a literatura como teatro, a literatura como dança e fora toda a questão do universo infantil. A estética da exposição, a plasticidade. Eu queria que você falasse um pouco dessas misturas que a cultura popular têm. E se você puder falar um pouco da identificação das pessoas em relação à memória, em relação à infância dos adultos vendo ali a infância, ou objetos que remetem a um universo ou a uma região em que ele viveu...Selma Maria: Então é... Essa região que ele viveu e que as pessoas se identificaram muito na exposição, vem muito dessa coisa que o Guimarães já falava né? “O Sertão ta em todo lugar, o Sertão vive dentro da gente”. Isso é muito forte. E por isso que essas pessoas foram, por isso que esses artistas todos que se apresentaram se identificaram com aquilo que viram e se identificaram com a proposta e por isso que tiveram lá se apresentando. Porque o Sertão, ele é

esse vazio que a gente tem dentro da gente que precisa ser preenchido que alguma forma e é uma necessidade humana de preencher esse... Com alguma linguagem. E a proposta era buscar a linguagem vinda do povo mesmo. Que foi a própria proposta da obra inteira do Guimarães. Então ele como um diplomata viajando o mundo inteiro, poderia falara de vários assuntos. Mas não, ele procurou falar da onde ele veio, da essência dele. Eu acho que esses artistas que... Que... Primeiro que todo mundo já foi criança, né? Eu acho muito linda essa música do Arnaldo Antunes que fala que todo mundo já foi criança. Que Hitler já foi criança, Nietsche, Salomé... Quer dizer a gente não imagina que Fernandinho Beira-Mar já teve medo. Eu acho que lidar com o projeto “meninos quietos” ele lida com coisas que são essência mesmo do ser humano. Quem nunca foi um menino quieto? Todo mundo é um menino quieto de alguma forma, sente medo, imagina coisas, imagina seus brinquedos, imagina suas histórias, né? Dança toscamente alguma coisa, canta no chuveiro. E a preocupação dos artistas que se apresentaram era buscar a simplicidade desses elementos do dia-a-dia, do povo, né? Que fazem parte dessa... Do movimento da vida, né? Eu acho que a arte popular ela busca isso. O povo é isso. O Ariano Suassuna Tem uma definição muito bonita pra mim do que é o carnaval, né? Essa festa maravilhosa que... E ele fala que pro povo o carnaval é um momento de glória, né? É o momento de sair da rotina daquele dia-a-dia duro, tosco que a gente vive, desse espaço sem brilho. E que o carnaval é um dos únicos momentos que o povo tem a oportunidade de ver e de sonhar. Então ele adverte pra que as pessoas não recriminem essas pessoas tão humildes que gastam o dinheiro do ano inteiro pra construir suas fantasias que se sobrar isso delas, vai sobrar o quê? Ele fala que pra mim... Pra ele tem muito mais valor os vidrilhos colados naquelas fantasias que as jóias de ouro. É muito mais real. Brasil real é aquilo. Não o Brasil oficial dos políticos, da burocracia. Então ele acha que o Brasil é isso, o Brasil é essa festa o Brasil é esse... Esse... Essa transformação que do nada você consegue fazer tudo. E o projeto “Meninos quietos” ele consegue passar por isso. Desde o começo a criança do nada consegue fazer o seu brinquedo. Desde ver as nuvens no céu procurar as esculturas efêmeras, quer dizer, com tão pouco você consegue ser feliz. Eu acho que isso é a essência do Brasileiro, eu acho que por isso que esse projeto toca tanto porque é através da simplicidade mesmo. E esses artistas que foram, essas linguagens que a arte popular abraça, ela não pode realmente ser segmentada, porque o ser humano ele não é segmentado. Quer dizer ele tenta se fazer. A indústria tenta segmentar. Mas quando você vê uma pessoa inteira, na sua grandeza, feliz ela não é... Naquele momento ela não é segmentada. A gente pode dançar, cantar, pode criar poesia, nesse momento a gente pode tudo. E a arte popular ela abre caminhos pra que essas pessoas possam de alguma maneira se expressar, né? Porque essa...Edson: Junta a simplicidade de criar coisas através do nada como você falou e toda essa mistura dentro da gente, não é? Sem ter essa preocupação de ter essas caixinhas fechadas: aqui é música, aqui é teatro...Selma Maria: É tudo junto, né? É tudo aquilo no mesmo momento, agora já falava. E uma coisa que também é determinante nessa coisa de cultura popular é porque nós somos um povo mestiço e, nunca, como Darcy Ribeiro fala: “nós nunca fomos recriminados, nós nunca... É... Nunca fomos recriminados por sermos mestiços, né? Existem povos que não puderam ser mestiços, o próprio Hitler queria uma raça pura. E nós não. A nós foi dado esse direito, da mistura da junção”. E eu acho... Por isso que ela é tão rica, essa cultura, essa...Edson: Uma cidade como São Paulo tem instituições culturais que, na minha visão, inibem as pessoas. Centros culturais, como por exemplo, o Centro Cultural Banco do Brasil, que tem uma fachada que desencoraja a pessoa de entrar, mesmo prédios, instituições na Avenida Paulista, como a Casa das Rosas, Centro Cultural Itaú, o próprio SESC...Selma Maria: Acho que o único que salva é o Pompéia. O Pompéia você cai lá dentro, cê cai de boca ali.Edson: O SESC Pinheiros, que é o que eu trabalho, está uma região totalmente popular. É muito próximo do Largo da Batata. É muito alegre ali, com o comércio de ambulantes, camelôs,

gente vendendo plantas medicinais, Casa do Norte, casa de umbanda, casa de prostituição, casa de forró, aquela pirataria toda... E tem um prédio como o SESC, aquela arquitetura, com o popular em volta, com uma arquitetura moderna onde todos os espaços são funcionais, uma arquitetura funcionalista onde tudo é muito certinho. E levar projetos de cultura popular pra essa arquitetura é... É um desafio mostrar que, de certa forma, as coisas simples têm a sua beleza. E eu queria ouvir de você, como você entende o projeto “meninos quietos” dentro de instituições como o SESC, que, como essas que eu citei, tem um espaço tão imponente?Selma Maria: Pra mim, apresentar no Pinheiros foi, além de ter a Denise que é minha amiga, temos os filhos na mesma escola, né? Além disso, eu tenho paixão por esse bairro. Eu acho esse bairro, assim, um encanto. Essa parte baixa que é justamente o que você tava falando, dos ambulantes da... Dessa coisa viva mesmo né? Parece ali que cê tá numa feira do Nordeste aí essa poluição visual, essa carteira de motorista, atestado médico, “conseguimos pra você”, um monte. Ouro... Eu sou apaixonada por essas histórias que acontecem.Edson: E a paisagem atual tem britadeira, escavadeira, caminhões passando...Selma Maria: O metrô... É duro, né? Porque isso... Esse som cruel, né? Então, e essas pessoas que convivem ali, que fazem esse comércio, elas entram no SESC? Elas costumam entrar? Cê vê, assim, elas indo, tendo curiosidade de entrar?Edson: Só convidando mesmo, mas ali onde eu trabalho, o multimeios, é um espaço bem democrático. Recebemos muitas pessoas dos albergues. Pessoas que dormem em albergue, mas não têm o que fazer de dia e acabam se distraindo com o que a gente oferece.Selma Maria: E isso é muito legal, né? E eu percebi isso na exposição que tinha um público fixo de adolescentes que iam brincar um pouco na exposição, mas que tavam ali no computador, tavam no xadrez, tavam lendo gibi e participando da programação.Edson: Fale um pouco de sua visão como espectadora. Como você viu, por exemplo, a congada que você propôs, que veio de Cordisburgo, e que, na tarde de domingo, fez parte daquela paisagem, passou pela rua e atravessou até a igreja?Selma Maria: Foi muito interessante. Que é aquele cortejo, como as pessoas do bairro, os moradores, como eles foram vendo essas caminhadas literárias tinham lugares fixos pra ir parando e falando trechos de histórias. Então isso é muito interessante, porque eram contos que falavam de Deus, que falavam de inferno. Eu via aquelas senhoras, moradoras antigas ali do bairro, saindo no portão para ouvir a história, depois indo acompanhar o cortejo como se fosse uma procissão mesmo, né? Que ia dar na igreja, aí os mendigos ali da igreja, os moradores da calçada, ali interagindo com os personagens que iam falando a história. Então, assim, pra mim, teve um encanto especial apesar de todas as outras vezes eu ter acompanhado as caminhadas literárias em MG, né? Como eles fazem muito. Fazer em São Paulo teve um encanto especial, porque primeiro o Guimarães fala, falava: “o Sertão ta em todo lugar”. É o Sertão de São Paulo, é o Sertão de... E essas pessoas que vivem desse jeito, que vivem ali nesse, nessa marginalidade, os moradores da igreja e do entorno, os vendedores acompanhando aquilo foi maravilhoso porque é uma coisa feita pro povo, a congada que é uma mistura de cultura africana, de cultura... De religião africana com a nossa senhora do Rosário que é ocidental, igreja católica, cristianismo. Então essa mistura foi muito interessante. E mesmo porque o Guimarães já tratava... Todos os personagens dele são marginais, né? Só trata... Todos os personagens dele são os velhos, são os loucos, são as crianças, são os... É... Ã São as pessoas que não estão com o juízo... Não tão contentes, tão... Enfim, tão passando por um processo muito grande de questionamentos, a vida não se coloca fácil pra nenhum é... Pros personagens dele, né? Esses personagens tavam ali vivos. O cortejo foi passando realmente pelo cenário que é a obra, né? Tanto que um dos moradores de rua interviu no meio da caminhada literária, ele começou a falar, ele tava num espaço dele e ele não teve constrangimento nenhum de não falar. Ele começou a falar e também alto. Então, só uma entidade que pode proporcionar isso, né? Desde a vinda de tantas pessoas que foi trazer tanta gente pra São Paulo, né?

Edson: Então, eu sei que você já falou um pouquinho, talvez a gente não tenha concluído o assunto. Mas é sobre esse processo de negociação. Você estava falando sobre o processo de negociação com a equipe, que é um processo de negociação com a instituição, com a equipe de montagem...Selma Maria: Então, é... É o processo de negociação. Bom, primeiro eu tinha que fazer com que elas entendessem que era aquilo que eu tava apresentando. Que era uma coisa assim muito fácil pra mim me expor. Porque na verdade quando você se expõe você ouve também coisas que você não quer tá ouvindo na verdade. Então, essa coisa de me expor, de ter coragem de falar, expressar minhas idéias por uma instituição que tem sessenta anos. Então, não foi fácil eu ter... Arrumar essa coragem. Não sei onde eu arrumei e tentar convencê-las do que era o projeto. Eu achei muito engraçado quando inaugurou a exposição e meu marido falou: “nossa, eu não tinha idéia do que era o projeto, só agora eu tô tendo...” Eu falei: “puxa, mas como? Eu voltei tantas vezes de Minas, contei todas as histórias, você via cada vez mais chegando brinquedo nessa casa e você não tinha idéia do que era?” E é assim, uma pessoa que me acompanha de perto há quase vinte anos, me conhece bem e não entendia do que era. Imagine então por uma instituição ou pra outras pessoas. Aquele exército de pessoas que foram entrando e davam opiniões absurdas, né? Desde arquitetura, desde cor, desde... E achando que tavam realmente certas e falando de... Sabedoria porque conhecem o Brasil, conhecem aquela região, porque já viram no cinema o Sertão, né?Edson: Você teve calma suficiente para entender essas pessoas e não permitir que elas se impusessem tanto nesse trabalho? Aí entra a questão até técnico de som, de luz...Selma Maria: É então, porque... Toda a questão eu tinha que lidar com a arquitetura, eu tinha que lidar com... Luz, com cores, os brinquedos, o texto, música, paisagem sonora. Quer dizer, tudo isso tinha que ir para um único lugar que era esse espaço que eu imaginava. Que infelizmente era eu e a Anne que conseguíamos imaginar, porque éramos as duas únicas pessoas que tinham feito a pesquisa. A Anne com a parte da arquitetura e eu com a parte da criança, o brincar, os brinquedos a literatura do Guimarães, a infância dessas crianças, tudo. Mas assim, traduzir isso no tridimensional pras pessoas, mostrar que... O grande choque mesmo foi, um dos grandes choques foi mostrar que aquilo não era nordeste. Tanto que o público, muitos depoimentos do público falavam: “que bom vocês terem trazido um Sertão do nordeste”. Porque ainda é muito desconhecido, por uma questão política, ainda esse Sertão de Minas Gerais. Ele é muito desconhecido porque o governo federal, ele investe muito nos roteiros turísticos de Minas, mas da Minas que a gente conhece, que é a do ouro, das cidades históricas e essa região ela é esquecida completamente. E ela tem particularidades arquitetônicas, visuais, cores, luz que são só dela. Ela não é um sertão tão árido, quanto o do nordeste. Ela é um sertão, mas ao mesmo tempo tem verde. Então é o cerrado, o cerrado ele é muito especial. Têm os buritis, têm as veredas. Então têm coisas que se você não vai lá ver, cê não acredita que existem. Você pode ver na foto, mas a junção desses elementos e essa geografia particular do cerrado ela... Que ela faz? Só ela é a matriz desses brinquedos porque a criança não têm recursos. Se a criança daquela região não têm recursos e ela procura na natureza os recursos pra ela fazer seu brinquedo e é uma região muito específica que é o cerrado. Então esses brinquedos só existem lá, muitos deles só existem lá. Então convencer as pessoas que isso é, essa memória imaterial vai se perder que o cerrado tá morrendo, também por uma questão política, o eucalipto invadiu o cerrado. As veredas e os brotos d’água se acabaram porque o eucalipto se adaptou demais ao cerrado. O eucalipto ele puxa muito a água, né? Numa região muito rica, é a segunda biodiversidade do mundo. A primeira é a Amazônia e a segunda o cerrado. E as empresas, aí voltando pra instituição, elas... As empresas, uma das empresas que eu estive visitando, ela tava voltada pra Amazônia porque é o que tem dado retorno lá fora, é falar da Amazônia. Elas não descobriram ainda o cerrado, o cerrado tem plantas que se não catalogar logo, ninguém vai conhecer. Mas as empresas como ainda não descobriram e vão demorar pra descobrir isso, essas empresas que lidam com a

natureza, com a biodiversidade, com o sustentável, trabalhar as comunidades da importância dessa riqueza, né? Então eu não sei, acho que vai acabar. Uma preocupação minha é justamente essa com esse trabalho. Vai acabar, isso vai morrer.Edson: Quer dizer, além de ter a questão da cultura popular, ainda tem toda a questão ambiental também.Selma Maria: Ambiental. Então, em relação ao público, o que eu mais escutava, assim era, que eu achei de mais interessante, eram as pessoas falando: “Olha, eu nunca tive nesse lugar, mas é como se eu já tivesse”.Quer dizer, pra mim eu traduzo que esse lugar é um espaço interior, né? É um espaço emocional que todos nós temos. O espaço da exposição ele era geográfico, ele era definido geograficamente, né? Uma região do Brasil, mas ele é uma região universal porque quando você trata da emoção das pessoas, as pessoas têm pontos em comum, têm emoções que são coletivas, né? Quer dizer, todo mundo sente tristeza, todo mundo sente alegria vendo certas imagens. Então é... Isso foi muito interessante porque eu não esperava isso tão forte, eu esperava... Eu tinha a visão que ia ser o que foi, eu sabia que ia tocar as pessoas, mas eu não esperava que ia ser tão... Tantas pessoas fazendo o mesmo discurso.Edson: Interessante que a exposição por si só gerou uma interpretação. As pessoas tiveram um entendimento da exposição sem ninguém interferir ali com explicações sobre a exposição. Mas houve alguns momentos em que você fez monitoria ou conduziu grupos pela exposição. Como é que você sentiu as pessoas durante a sua mediação?Selma Maria: Então, era uma necessidade de falar da sua infância, de contar história... Porque ali todo mundo tava contando história. Cada um falava um pouco do seu imaginário, da sua infância, do que era pra cada um ser menino quieto, que era ser menino quieto. Então era assim, pra começo de conversa, menino quieto ficava muito claro assim pra eles que não tinha nada de timidez. Não tinha falta de expressão. Era pro público ficar muito claro que era um espaço onde que as pessoas tinham uma quietude, porque estavam fazendo aquilo que gostavam, né? E quando eu acompanhava as pessoas na exposição, todos, sem exceção, se identificavam com as coisas: “Isso eu já vivi”; “isso tinha na minha infância”. Se não era aquilo era próximo. Alguns, muitos, falando: “eu não tive infância”. Mas é...Edson: Estávamos falando da exposição, a exposição que por si despertou a memória das pessoas, despertou o mundo interno das pessoas, levou-as a se emocionar. Eu tinha perguntado a respeito da monitoria que não foi nem uma monitoria propriamente dita. Não foi uma mediação propriamente dita, mas foi um diálogo, foi um bate-papo. Eu lembro que antes de dar esse problema técnico você disse que as pessoas falaram muito, conversaram muito com você...Selma Maria: Era muito interessante porque eu percebi que o trabalho não só meu quando acompanhava as pessoas, mas dos próprios monitores, era abrir o ouvido e ter paciência porque as pessoas iam pra contar histórias, né? Aquele ambiente todo trazia essa... Ali elas se sentiam seguras. Parecia que ali era um porto seguro onde ali elas podiam se abrir. Realmente abriu um vão, alguém abriu um vão pra que elas pudessem contar essas histórias, né? E foi muito interessante assim, uma das histórias... É assim, foram vários depoimentos, né? E um dos depoimentos marcantes assim da própria filha do Manuelzão, um dos personagens do Guimarães, conviveu com o Guimarães. Ela, a Dona Maria Nadi, me contou durante a minha etapa da pesquisa que ela... Quando a mãe morreu, ela teve que cuidar dos irmãos mais novos. Isso foi determinado pelo pai – o Manuelzão – ela pra não lembrar mais, não sofrer, ela uma criança ainda, ela jogou todas as bonecas no assis terra porque assim ela ia realmente ter a segurança que ela não ia mais lembrar da infância, Então, esses depoimentos falando dessas rupturas que as pessoas tem que ter na vida com a infância. E ali elas podiam falar desse tempo tão rico na vida das pessoas. Muitas falavam que aquilo não era brinquedo pra elas, que o brinquedo era aquilo que elas viam na loja, né? Mas elas abandonavam a infância muito cedo e iam pra roca. E na roça encontravam aqueles brinquedos que ali, naquele momento, naquela exposição elas tavam vendo que eram brinquedos reunidos. Ali esses materiais da natureza

que eram: o talo da rosca vira flauta, o talo do mamão que vira outra flauta, o buriti que vira caminhão, que vira tantos outros brinquedos, enfim, todo esse... Todo esse lidar com a roça que pra criança isso também... É muito cedo, né? Que ela precisa ir acompanhar os pais. Eu percebo que nascem os brinquedos dessa convivência, né? Desses momentos de ruptura. E por isso que as pessoas iam na exposição e choravam. Choravam porque ali elas se viam. Elas viam que tinham, que alguém tinha dado um valor praquilo que pra elas era uma vergonha porque era brinquedo de pobre. Que o grande brinquedo era aquele que fazia brilho, vinha dentro de uma caixa plástica, enfim, fazia barulho... O brinquedo pra elas de verdade não era isso, e, quando elas vêm pra cidade aí mais ainda elas querem esconder tudo isso, né? Então muitas pessoas falavam que elas não tiveram infância, ou então, outro depoimento que era muito comum era: “eu nunca tive nesse lugar, mas é como se já tivesse”. Que é aquela coisa que o Guimarães fala, que o Sertão tá em todo lugar, que o Sertão tá dentro da gente. Então esse espaço anterior que se deu na infância delas é um espaço anterior que existem em qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo. Porque é um brincar de imaginar porque você imagina coisas com as coisas mais insignificantes do mundo que viram brinquedos nas mãos de uma criança. E isso é uma capacidade do ser - humano, né? Leonardo da Vinci fazia isso na Idade Média, na Europa pobre, não industrializada... Quer dizer, como Leonardo brincava? Brincava assim, como a gente, como essas pessoas brincavam. A história do homem conta que o homem brincava assim, não precisa de tantos recursos. E esses depoimentos eram muito fortes, as pessoas, elas se repetiam várias e várias e várias pessoas, né? E era uma monitoria de ouvir.Edson: De ouvir, de aprender... Interessante. Você tinha falado dessa batalha de três anos procurando uma empresa que entendesse o que é o livro, o que é o CD; mais de um ano aguardando a agenda pra exposição. Eu queria que você avaliasse essa sua perseverança, essa sua dedicação e o resultado do teu trabalho de insistir, de teimar, de querer que esse projeto atingisse o maior número de pessoas. Eu não tenho os dados estatísticos, mas eu tenho certeza que atingiu mais de cinqüenta mil pessoas. Tenho certeza disso. Selma Maria: O que você falou em relação à perseverança, além de ter toda essa perseverança junto à instituição, houve também a perseverança junto à instituição família. Que é também outro capítulo, que é você lidar hoje com os herdeiros dos artistas, que é, no caso, os filhos do Guimarães. Mas assim, de todos os outros herdeiros, porque herdeiro virou profissão. Então isso... A família não quer. A família, no caso do Guimarães, não queria mostrar que ele era sertanejo. O que eles vendem, a imagem que eles vendem do Guimarães Rosa é que ele se baseou no Sertão pra escrever a obra, não que ele era um sertanejo, né? Então, quando eu propus na família que eu iria fazer uma exposição, a reação foi completamente negativa. Porque você falar de um escritor com o nome que ele tem dizendo que ele era sertanejo, que ele brincava com esses brinquedos tão simples ia traduzir que ele foi pobre e não é verdade. A pobreza não ta ligada a isso, né? Então, além da instituição, que foi todo um aprendizado lidar com isso, do que é uma instituição, o que a instituição quer, foi também lidar com a família que é outra instituição tão difícil quanto. E esse aprendizado tinha que ser feito um dia porque eu tinha dificuldade de mostrar. Mas o projeto pra mim era tão forte, tão verdadeiro. Eu queria que as pessoas conhecessem esse trabalho que eu realmente me empenhei de aprender a lidar com uma instituição, de aprender a expor idéias o mais claro possível, de ter paciência de lidar com todo o processo burocrático que é. Porque uma instituição ela não caminha com a palavra de uma pessoa só, que é a pessoa que tá ali na sua frente fazendo a reunião. O tem por trás daquela pessoa que você tá conversando é muito maior até que o próprio projeto, né? Então toda essa burocracia, todo esse esperar, todo esse... É tudo um jogo de paciência mesmo, né? Eu acho que tudo isso traz um entendimento que uma... Que a nossa cultura precisa de muito empenho pra ser valorizada. A própria instituição às vezes a gente percebe que não acredita tanto nisso. Às vezes ela cambaleia diante das propostas de outros artistas contemporâneos, ou propostas vindas de fora, de museus importantes. Enfim. Às vezes a gente percebe que o

peso é maior pras esses trabalhos mais contemporâneos. E que a arte popular precisa de pessoas empenhadas em mostrar seu valor, né? Não só pras pessoas da cidade, pras instituições, pras pessoas que vieram do interior dessas regiões, desses sertões e vieram pra cidade. Mostrar a elas o valor delas, mas também levar para essas instituições, dos locais da onde essas pesquisas vieram, né? Essa volta, eu acho muito importante, porque senão o artista fica como um parasita que vai pega pra ela e não dá o retorno. Eu sempre tive essa preocupação durante esses três anos indo lá dando oficinas pras comunidades e querendo que essa exposição vá pra lá, né? Pra eles verem o quanto eles são importantes e o quanto as instituições não estão fazendo nada por eles, por essas pessoas. Que é muito importante quando essas exposições que acontecem no Brasil, a gente teve o caso daquela exposição da Amazônia que depois viajou, foi pra França, o ano do Brasil na França, em Paris. Quer dizer, o quanto isso é impactante para quem é de fora, né? Há pouco tempo teve um curador francês aqui no Brasil e ele falando o quanto na França tem de importado arte e o quanto se tem feito pouco pelos artistas franceses. Uma crise de crise de criatividade dos artistas franceses atualmente na França e isso é interessante de se ver, né? Não só no Brasil, quer dizer, no Brasil é o contrário, né? Uma criatividade sem fim, mas são as instituições muitas vezes que não dão o valor, né? Mas é claro que existem algumas que estão trazendo artistas e trazem artistas de tudo quanto é canto e apresentam isso pras pessoas das metrópoles, né? Eu acho o trabalho fundamental, sem eles a gente não sobrevive mesmo, né? Eu acho assim, esse um ano de conversa, esses três anos ao meu ver houve um entendimento de que eu preciso deles e eles precisam de mim.Edson: É exatamente isso. A instituição, se ela funciona sem o artista ela funciona como um centro incomunicável né? Um centro onde as pessoas se encontram. A instituição precisa do artista senão ela fica sem alma. Uma instituição sem alma.Selma Maria: É que nem você vê muitos museus públicos que têm lá acervos e têm... Vida, né? Então o trabalho que o SESC faz realmente é muito vivo, né? Trazer artistas, eles interpretando ali, ao vivo. E essa é uma preocupação que eu tinha, de trazer os artistas de lá se expressando. As pessoas verem não só o trabalho dela, que ali tava contado pelos brinquedos, pelos depoimentos de algumas pessoas que foram imaginadas, mas a necessidade de trazer a alma dessas pessoas que fazem história. Edson: Você gostaria de falar mais alguma coisa?Selma Maria: É, então, eu acho que é o começo esse trabalho dos “meninos quietos”. É o começo, tem muita coisa. Me abriu muitas frentes, né? Músical, teatral, literatura, artes plásticas. Eu acho que ele tem uma necessidade de ter multilinguagens. E tomara que dê certo o livro, tomara que dê certo o CD. Nenhum dos dois tem patrocinador, mas eu acho que se não for “meninos quietos” outro projeto, mas a gente tem, meu trabalho pelo menos, a necessidade de sempre continuar. Eu acho que essa cultura da criança, a história que toda criança faz, a criança de toda idade e ligada a literatura, ao universo literário do autor e da onde vieram essas histórias, essas pessoas que foram retratadas e sempre buscando essa cultura popular que é o que me encanta.Edson: Puxa, que ótimo que você está pensando em continuar. Que é só um começo. Muito bom.Selma Maria: É vida, né? Sem isso não tem razão de viver.Edson: Bom, hoje é dia 28 de julho, a gente começou a entrevista às 14h45m e estamos terminando às 17h35m. Obrigado, Selma.Selma Maria: Obrigada você, Edson.

Entrevista com Irimar dos Reis. Dia 18/08/2006

Edson: Gostaria que você falasse um pouco sobre você e o seu trabalho.

Irimar dos Reis: Meu nome é Irimar Afonso dos Santos, vulgo Irimar dos Reis porque eu fiz um batismo para santos reis e então eu fiz uma promessa pra santos reis e cumpri esta promessa. Sou mineiro do Jequitinhonha, norte de Minas, né? Nasci naquela terra lá, embrenhado no meio dos Vales onde é uma região de muitos cantadores, muitas rezadeiras, muitos violeiros, onde têm muitas brincadeiras de rodas, cantigas, canto de trabalho.Edson: Você passou por tudo isso. E o que é que isso influenciou no seu trabalho? Eu já assisti algumas apresentações que você faz, que você traz para o meio urbano, para esta metrópole que é a cidade de São Paulo, toda esta sensibilidade, esta simplicidade no modo de dizer. A gente fala simplicidade e acaba por confundi-la com coisas comuns, mas não é isso. Há uma complexidade nas coisas que vêm de uma forma muito natural do povo, não é?Irimar dos Reis: É porque quando você pensa viver a infância como eu tive, com essa carga de valores o seu trabalho só tende a... Você ser um artista assim mesmo de carregar esta bandeira de trazer aquilo que você aprendeu com seu avô, com meu pai que era sanfoneiro, meu pai que era violeiro... Então, isso influenciou muito meu trabalho e, se hoje eu sou... Se eu canto danço brinco, transmito as brincadeiras e os brinquedos nos nossos shows a gente leva isso para o público de forma espontânea, como eu aprendi. Da forma como eu aprendi e a gente provoca nas pessoas este sentimento, esta alegria esta emoção de conviver com a música, com a dança, né? Isso tá muito carregado dentro das minhas... Das minhas apresentações devido à espontaneidade, a esse aprendizado que eu tive com os mestres, de prender com eles. Edson: Eu tive a oportunidade de passar pelo Vale do Jequitinhonha. Passei lá por Itaobim, Santana do Araçuaí, Araçuaí... Então, é muito rica a região do ponto de vista cultural. Embora seja uma das regiões economicamente mais pobres do país, lá se produz muita coisa, artesanato, muita música...Irimar dos Reis: Muita música. A produção cultural do Jequitinhonha tem muitos artistas... E artistas de nome como Saulo Laranjeira, Rubinho do Vale e artistas que tiveram até uma grande abertura para chegar com a mídia. Produção com shows, com CDS e estes artistas abriram um leque para novos talentos como eu e muitos outros, né? Eles foram uma porta... Abriram... Eles abriram uma porta para a cultura do Vale. Eles abriram uma porta para chegar à cultura do Vale nas grandes metrópoles. Então é isso...Edson: Essa questão do artista sair da sua região e ir para uma grande metrópole... Como é que você vê isso em relação à adaptação, de ter de chegar e arrumar um lugar para ficar, de ir em busca do seu espaço, porque significa uma grande mudança na vida, não é?Irimar dos Reis: É uma tarefa... É uma tarefa nada fácil, né? Você chegar num lugar novo, conhecer o novo. A gente que está muito... Eu estou muito, estou muito, muito ligado às ancestralidades das festas. Então, você vem de um lugar no interior onde você é meio matuto, meio caboclo. Então o novo, o moderno, ele te choca muito assim... Te assusta. Então quando eu cheguei na grande São Paulo, por exemplo, me chocou, quando eu não vi as montanhas, quando eu não vi as festas, quando não vi aquele (inaudível). E aí depois você vai...Ah, então, aí, uai! Quando você está aberto para buscar um novo mundo... Eu acho que as pessoas me receberam muito bem. A princípio quando eu cheguei aqui, eu me recordo que meu primeiro ano foi muito difícil, mas depois as portas foram se abrindo, porque é como eu te falei: o caboclo que traz, você traz na sua vida o dom de cantar divertir as pessoas transmitir e (inaudível). Isso como cultura para o povo, as portas vão se abrir. Vão se abrir. Tem que se abrir. Porque você é um mensageiro de luz, de paz de energia e você traz toda uma bagagem com você que as pessoas vão ter que te receber, porque você tem coisas boas para mostrar, porque você ta ali para trazer o bem. Então com estas vivências, com estas experiências de vida que eu tive lá no Jequitinhonha, enfim, dentro do Sertão, eu fui muito bem acolhido, fui muito bem recebido em São Paulo... Foi contaminando isso foi expandido, as portas foram se abrindo, aí, além de fazer os shows nas instituições, como privadas, públicas, eu fui para as escolas também, privadas, públicas e este leque foi se aumentando de pessoas que tinha

amizade.Edson: Aqui em São Paulo tem gente de todo o mundo. Não é só gente de todo o Brasil, mas é gente de todo o mundo que mora aqui, que vive aqui na cidade. E as pessoas vão alterando seus valores, vão se modificando porque há uma influência muito grande sobre elas. Elas acabam enfrentando estas situações da metrópole, situações típicas do momento atual... Como é que você vê o seu trabalho com cantigas que envolve a cultura do norte, do nordeste e de todo o Brasil?Irimar dos Reis: Bom, todo o Brasil, é diário. Isso vem porque a bagagem das viagens... Na verdade, a minha família sempre disse: ”olha você é um cabra do mundo, cabra do mundo... Ele tem que girar e o cabra quer girar. Ele vira, gira, vive e aprende muita coisa né?”. Então o que é que a gente leva? O que é que a gente leva nesta bagagem? Neste fardo? Leva felicidade para as pessoas. Daí é que eu acho que onde a gente chega, as pessoas vão se identificando “nossa mas essa cantiga é lá do interior de Minas”, “mas essa coisa de...“, “mas estes cururus lá do mato grosso”, “nossa, que bacana, minha mãe cantava”, “minha vó que mora aqui em São Paulo, canta isso até hoje”... A gente brinca com estas cantigas da gente mineira lá do Jequitinhonha ou lá de Pernambuco. Canta este coco... Então, esta identidade, esta identificação, a gente leva as pessoas, elas vão se encontrando...E vão mexendo com a memória e aí que a gente acaba com a, esta coisa da modernidade, do moderno, do contemporâneo cheio das complexidades, das estéticas, de valores, de...E as coisas não têm mais valor, porque passam muito rápido. Então, a gente leva esta riqueza, estas cantigas para tocar para as pessoas, no sentimento delas, na alma, no espírito porque é na sociedade quem é do terreiro, quem convive com festa... Você não larga o pé. Aquele negócio é a mãe. Ela é nossa mãe, ela está sempre com a gente e a gente leva isso para as pessoas. Esta carga, este peso da mídia que leva informação para as pessoas. É a nossa função é essa de poder, de transmitir isso para uma, uma certa... Uma certa... Como? Perdi a palavra... Com sensibilidade, mas com alguma coisa mais ativa... Que não seria a palavra ativa... É acompanhando, porque eu quero falar que se você está ali com uma ancestralidade, mas você está acompanhando o tempo, você não está ali estável. Ali, você está acompanhando a modernidade, o tempo. Então, a atuação nossa, o nosso objetivo, o meu objetivo, de quem trabalha com cultura e educa é que as pessoas se sociabilizem, se integrem. Que possam se integrar, fazer a integração, a sociabilização, se integrar com o universo da música, da brincadeira... Que é um universo gostoso e imaginativo. E neste imaginário é aquele imaginário... É aquele que move os sentimentos para um novo mundo que vai regendo uma nova forma de vida. Porque quem não for criativo vai ser engolido por este mundo de (inaudível). Edson: Importante isso que você está falando. Porque muita gente vê a cultura popular como uma forma cultural estagnada, parada, antiga, velha, chata de se ver.Irimar dos Reis: Aí é que eu faço diferente. A diferença do nosso trabalho é esta interatividade. Porque a nossa cultura é... Ela é interativa. A música é dinâmica. Então, o nosso show... Eu queria dizer que o nosso show, nosso trabalho... É um trabalho dinâmico. Então as pessoas elas se integram, participam, elas se contaminam junto. Então é esta a nossa proposta. Edson: Esta pesquisa que eu estou fazendo é relacionada à mediação. Quando a gente leva uma manifestação da cultura popular, como uma folia de reis, para um espaço institucional, as pessoas têm uma visão de espetáculo, de produção. Estou te falando isso porque outro dia eu levei no SESC Pinheiros uma folia de reis e o Bastião ficou declarando uma poesia e ficou declamando e não parava de declamar... Quarenta minutos e não parava. Mas está certo. As pessoas têm que ver...Irimar dos Reis: É, porque aquilo é a produção daquela arte. É criação dele, é a produção artística dele, daquela arte... E vai a gente ter um olhar, se vai respeitar, se é chato, se é brega, não sei. Eu sei que a gente com a cultura e a gente como mediador, que leva isso para o público tem que ter esta percepção... Olha como é que é este trabalho, como é sua produção, o tempo disso...Porque às vezes eles... O que se faz numa comunidade, não se pode fazer num

palco e às vezes eles esquecem que estão ali. “Puxa! Eu quero declamar aqueles versos!” E quer continuar cantando... Então não tem muito esta noção do tempo de apresentação... Mas é uma produção e que precisa chegar porque só assim que as pessoas vão poder reconhecer, valorizar, é só vendo um espetáculo de uma congada, que você vai ter a, quem não tem acesso a uma comunidade, a uma festa popular, só vai ter esta oportunidade assim mesmo, em instituição, numa escola, de ver no SESC, numa casa de cultura, é ai... E nós temos aquela responsabilidade de como as pessoas vão entender isso. Entendeu. A questão educativa assim.Edson: Então, mas eu queria voltar só um pouquinho. O seu trabalho é um trabalho de resistência porque você está indo contra a mídia e contra a massificação cultural. Você consegue incorporar as manifestações da cultura popular, as manifestações religiosas, as manifestações que têm uma determinada função, que acontecem num lugar especifico, que acontecem numa cultura, comunidade... Você consegue incorporar isso, converter num espetáculo e transformar isso em forma de arte que não é um espetáculo de forma nenhuma ligado ao que a gente vê é na mídia.Irimar dos Reis: A gente faz uma leitura, a gente procura fazer uma leitura artística, uma produção, criação, ou que se possa dizer até uma recriação. Nós somos recriadores neste universo, né? A gente tem uma apropriação da cultura. Eu falo isso porque eu tenho experiências com os mestres e esta apropriação me dá o direito de interpretar ela, de mediar ela seja na classe média ou seja na periferia... Em qualquer lugar. É dessa forma que a gente dá certa dinâmica para os espetáculos que fica (inaudível) de percepção a ponto de você ver a cultura, receber, alimentar e entender num tempo de um espetáculo normal...De uma hora e meia mais ou menos, mas esta produção neste sentido, né?Edson: O público vê um espetáculo muito próximo do que é feito no interior do Brasil.Irimar dos Reis: Sabe por quê? Porque esta identidade que a gente leva é uma identidade das pessoas. Deste reconhecimento, destas culturas. E se você não tiver um cuidado de como levar isso e onde, como, em que momento, as pessoas, às vezes, passam batidos. Se você não tiver uma dinâmica, se você não for um educador, se você não disser “oh, isso é daquela, daquela comunidade, pertence a isso, pertence a tal criação, pertence a tal festa”, se você não der este, esta informação, você... Aquilo passa despercebido. Passa, passa despercebido e aí, pronto! As pessoas não absorvem. Então os nossos shows são... As minhas... As minhas atrações são totalmente educativas, todos os meus shows, todos os shows que eu faço, por exemplo, eu vou fazer um show amanhã numa praça é para povão, lá no, no, Campo Limpo. Vou fazer um show numa praça lá, praça Luis Gonzaga. É povão. Vou cantar pra (inaudível), para uma massa que eu não sei que massa que vai tá lá... Que curti pagode, rap... Se é o povo dos então que está lá. Mas eu vou preservar aquilo que eu sei fazer e vou fazer. Vou cantar congada, vou contar Moçambique, vou fazer catira, vou fazer chula. Vou fazer isso porque eu tenho que ser fiel ao que eu faço e esta fidelidade é o que... Eu vou mexer com a memória das pessoas. E vou fazer aquilo que eu sei. Porque o fato de você ser um batalhador uma pessoa que está na batalha, na luta contra tudo aquilo que é imposto pela mídia, o que é imposto pelos meios de comunicação de massa, seu trabalho como educador. É um trabalho que exige muita determinação porque você mexe com a sensibilidade das pessoas. Você mexe com a memória, né? E assim é, principalmente a juventude e às vezes tem aquela questão de passar de geração para geração uma folia de reis, um (inaudível), uma congada... E as novas gerações não querem porque estão interessados na mídia, no hip- hop, interessados em dançar... Hip-hop é bom porque é um movimento importante, o rap, o hip hop são movimentos de rua, de luta social, racial, de denúncia. O pior é quando se aliena aí com os Calypsos da vida... Os sertanejos, né? Isso é que massifica a cabeça do ser-humano. Esta mídia ela predomina. Aí fica aquela coisa infernal, aonde você vai até nas festas populares, tem uma congada ali acontecendo, mas as pessoas não estão respeitando, ficam dançando Calypso, estes sertanejos, “breganejos”... Aquelas músicas americanas, aquela coisa que é horrível. Eu acho que o que se precisa fazer é

democratizar a mídia, ter a democratização da mídia. Acho que tinha que ter aí uma visão melhor, do que se produz neste país, do que dar para o povo... E não empurrar como a mídia faz. Empurra as culturas que vem de fora. Sabe, eu observei os nossos conteúdos, a riqueza que o Brasil tem, a beleza que tem, o histórico, o patrimônio, que não tem acesso a mídia... E isso, a mídia que é um grande veículo, isso chegar até as casa das pessoas através de um produto educativo, né? Como a gente tem as TVs educativas que produzem grandes programas, documentários, filmes, né? Mas também a gente tinha que ter esta produção cultural popular, porque as comunidades tem as suas festas e isso é produção e esta produção acontece somente naqueles meios a comunidades. Então já imaginou se agente tem lá todo uma rede preocupada em documentar e transmitir isso, seria bom para o país, a gente não iria ter esta lesão que agente tem de memória.Edson: Veja são poucas as empresas na televisão e eu acompanhei o trabalho destas empresas pelo Brasil, mas acompanhei porque eu sou assinante de uma rede de TV a cabo e o programa passa na TV Futura. Então são poucos os espaços em que o artista tem para mostrar o trabalho, para atingir um grande público, não é?Irimar dos Reis: São faltas de oportunidades, falta de projetos, falta de políticas públicas... Vou falar agora, acho que falta isso aí. Esta democratização da mídia. Acho que o que falta é isso porque foi como eu disse: a cultura ela existe, ela esta aí, ela é viva, ela é presente, ela é atuante. As festas estão acontecendo e falta esta oportunidade, a gente acaba vendo o Antonio Nóbrega que é um grande, ele é um grande artista, um grande mediador da cultura popular Brasileira, um grande representante, porque ele tem o acesso, ele enquanto Antonio Nóbrega. Ela tem acesso a grandes produtoras, né? As produções dele já têm um certo apoio, porque ele tem uma certa exposição, mas e quanto o resto da produção cultural do país? Ninguém conhece os violeiros, têm violeiros grupos, as festas, ninguém conhece. A gente cita também que uma produção cultura que tem na cidade de São Paulo, que é bem bacana, que é uma produção agro cultural, que é o Barretos, na cidade de São Paulo. Mas é um evento que reúne muita gente. É já chegou a ter mais de 300 mil pessoas no interior de São Paulo, muito mais, num dia, mas isso é investimento. É a mídia não expõe isso, não tem uma matéria, não tem documentário. Carro de boi, atividade, artesanato. Vaqueiro tá tudo lá, tá toda a arte popular, tá tudo lá. Então, estes objetos, esta arte todo este povo, eles tinham que estar na mídia. Isso tinha que ter uma divulgação, isso tinha que chegar até a escola, tinha que chegar na casa das pessoas, que esta festa esta acontecendo, é a festa da cultura popular Brasileira, da cultura regional, enfim, da literatura Brasileira, da arte, do artesanato Brasileiro. Quando a gente fala assim, parece que a gente está levantando bandeira partidária, ideológico revolucionário. O dia que este país acordar e perceber que a gente tem toda esta cultura, esta riqueza e ter acesso a isso através da mídia, dos bairros, nos centros urbanos, este país será um, um outro país. Porque um país que não tem cultura, não tem memória, que país é este? Não é um país, não tem memória. Você entendeu? Nunca vai ser um povo, vai ser sempre um dominado, os dominadores vão estar sempre. A mídia dominadora, os americanos, os clipes americanos... E as novelas vão predominar e acho que isso só alimenta as pessoas, acho que isso deseduca. Padroniza comportamento, deseduca as pessoas, porque as pessoas não têm olhos para outra coisa. Gente o universo da brincadeira, da cantiga, que esta criançada podia brincar aprender, através da mídia, e chegar estes CDS, chegar com fácil acesso... E hoje eu te confesso que, com 20 anos de carreira e história com a cultura popular, eu não pude fazer uma produção fonográfica neste país e eu tenho um acervo imenso de pesquisa e de vida,eu não consegui fazer ainda uma produção porque falta... Falta parceiros, falta parceria, falta de espaço para isso, para você expor o trabalho, para você levar... Apesar de que eu já avancei muito nestes vintes anos, eu já viajei por este Brasil levando a cultura popular, mas é muito pouco, enquanto que com esta produção, eu poderia chegar no Brasil, com CD, com livro, com vídeo, com tudo. Já procurei, já mandei projetos que não foram aprovados, já mandei projeto a nível de ministério, já mandei projeto para instituição, como a Petrobrás e não foi aprovado.

Edson: Vamos tocar neste assunto, porque aquele artista que fez muito pela cultura popular é uma referência, principalmente no estado de São Paulo, então temos você como referência, mas você já chegou ao ponto em que consegue viabilizar os seus projetos e como você analisa assim, você com os projetos que você tem, com o repertório que você tem, a bagagem cultural que você tem, toda esta vivência, como é que você analisa o fato de você não conseguir o espaço para publicar um livro, ou publicar um CD, como é que você vê isso?Irimar dos Reis: Olha, eu acho que primeiro falta parceria, eu não tive parceria ainda... Acho que ainda falta projetos e eu, assim, eu tenho dificuldade em algumas produções, eu particularmente. Enquanto artista, enquanto pesquisador, eu tenho sim, dificuldades de realizar minhas produções, porque eu sinto que é difícil você escrever um bom projeto, para você aprovar um projeto numa Petrobrás, numa instituição dessa aí, tem que estar muito bem escrito, você tem que ter muitos parceiros e tem que estar de interesse também com aquele com os parceiros... Se você tem padrinho, não tem, tem projetos que tem patrocinadores que apóiam o cara, três, empresas especializadas em escrever projetos, eu ainda não consegui estes parceiros, quem souber quem quiser me indicar, estou procurando, vocês que queiram me ajudar a fazer projeto, comprar projeto, pagar projeto, porque eu ainda não consegui, e eu tenho um sonho, de realizar, de levar para o país, pra o Brasil inteiro, toda esta minha vivência, esta experiência prática de educação e escolas, e que eu queria oficializar isso com um produto, e eu estou buscando parceria para ver realizar este sonho, ver esta cantigas que eu canto do fandango, isso chegar no sul, no norte, no nordeste, dentro de uma escola, e ver uma criança cantar uma cantiga, as brincadeiras, os brinquedos populares, pode até achar que isso é muito utopia, não é? A questão é que as políticas culturais no Brasil são muito... Elas exigem hoje. Você têm leis de incentivo a cultura, agora para você obter estes incentivos que vêm da lei, você precisa montar uma empresa. Uma empresa que vá te apadrinhar, que vai ajudar você a construir isso.Edson: A sensação que eu tenho é que essas empresas acabam influênciando o trabalho do artista, não sei se você já viu isso, se já sentiu na pele.Irimar dos Reis: Já eu já, eu já vi e já percebi que têm alguns grupos aí que estão com tudo aprovado, estas companhias de teatro aí, tem companhia que é em tudo, é no fomento, é nas culturas, as mesmas companhias, se você abre uma concorrência, tá lá as mesmas companhias, porque os caras têm as empresas que montam os projetos e que viabilizam os projetos deles com uma certa facilidade. Não sei, eu ainda confesso, não consegui essas empresas e estes parceiros ainda, eu sei que eles existem por aí, mas eu ainda não consegui, então a minha produção cultural, eu sinto que ela também não chega muito nos lugares por falta destas possibilidades de espaço enfim.Edson: Você também falou do trabalho que você iniciou aqui na cidade de Cotia. Irimar dos Reis: Eu estou aqui já desde os doze anos que eu moro aqui. Quando eu vim morar aqui em Cotia, eu acabei por curiosidade e fui ao encontro destes mestres. E com essas pessoas eu conheci algumas pessoas que fazem folia de reis. Conheci seu Benedito do congado, comecei a fazer parte do congado, daquela família, do congado e da família dos reis também e onde várias pessoas que comungavam a cultura popular brasileira, e a partir daí, destas minhas experiências e desta prática de estar lá nas festas, fazendo compromisso religioso, ora social ali com eles, né? Ora como pesquisador, ora como amigos. Daí nasceu também a Companhia de Santos Reis que é uma companhia nova, que sai com bandeira, sai cantando de porta em porta e já faz a sua jornada religiosa. Sai todo ano, seguindo. Então tem mestre, tem contramestre direitinho, tem os foliões, os palhaços.Edson: Há a aproximação dos políticos da região, associação de bairro, alguma associação assim ou da comunidade?Irimar dos Reis: Não. É mais a comunidade isolada em Cotia, infelizmente. Aqui não tem políticas públicas, não tem política de incentivo a cultura, aí você tem as faculdades que podiam ser grandes parceiros da gente para apoiar a cultura, elas alegam que não tem dinheiro e estão

abarrotados de alunos, que não tem verba para apoiar a cultura, então você fica assim, e tem as empresas aqui, tem empresa aqui multinacional, aí você vai lá e fala olha nós temos aqui estas festas, precisamos de apoio, mas se você não tiver um projeto que vá pelo interesse deles também para beneficiar para abater o imposto de renda, para beneficiar, não te dão o apoio. Então, você fica assim, graças a deus, isto tá mudando. Esta plataforma tá melhorando hoje aqui em Cotia. Nós podemos falar, fomos até a câmara municipal, eu fui a câmara municipal, seu Benedito foi homenageado, na câmara municipal, o presidente da câmara, os vereadores estiveram presentes. Então nós temos estas festas, nós temos estes mestres, quanta riqueza, nós precisamos cuidar disso, então nós precisamos criar leis de incentivo público, porque aqui inclusive não tem. Então foi que é que nós estamos organizando agora, estamos organizando agora no segundo semestre, depois de outubro, nós já vamos nos reunir para fazer um fórum de cultura social, aqui em Cotia, para abranger todas as comunidades, Embu, é Carapicuíba. A gente vai fazer um fórum regional de cultura popular que é justamente para poder comprar esta briga num âmbito mais oficial, porque é de direito, das comunidades, dos mestres, é assim é direito assistido, que você tem que ter este apoio oficial, o poder público tem que estar juntos, as ONG’s. A instituição social, o poder público tem que estar junto, isto não dá para a ficar a comunidade sozinha isolada aqui nestes centro urbano. Edson: Têm muitos condomínios em Cotia e o número está crescendo ainda mais. Você vê que há um potencial de fruição do seu trabalho pela classe média aqui na região, e, junto com ela, das escolas particulares, tanto as faculdades quanto as escolas de ensino fundamental e médio?Irimar dos Reis: Na nossa região, aqui, são poucas, você pode contra mão as escolas, que têm, de vez em quando, um olhar para a cultura popular, então você pode contar nas mãos, mas tem uma imensidão de escolas particulares e uma imensidão de condomínios, e realmente são poucas as que te contratam e levam a congada, levam a folia de reis, são poucas. Até pouco tempo, como estas tradições, são tradições aqui da região, elas saem pelas ruas, então elas têm que passar dentro do condomínio, não é? Ela tem que passar no meio desta sociedade e, às vezes, ela era mal vista, né? Então como aquela coisa menor, pobre, aquela coisa simples, simplória, mas eu não sei, é que aqui, esta comunidade que mora aqui na Granja Viana, ela não tem muito olhar para a cultura, para as artes em geral, né? Ela é de uma cultura do sítio, do lazer, do bem estar social, mas num âmbito de poder, de poder, e não de conhecimento, de poder material e não espiritual, porque aqui nós termos muitas festas e eles vão e conhecem estas festas, mas eles não sabem que a folia de reis existe, São Sebastião, eles não sabem que existe o São Gonçalo, que existe um grupo de catira, que existe aqui o, congado, três folias de reis, da uma, uma linguagem diferente, não sabem, não sabem mesmo. Você pode conversar e eles não sabem, eles não olham, não se enxergam nisso, então eu acho que é ai que entra os parceiros, os âmbitos de parceiros, as ONGs, as instituições, as comunidades civis, o poder público, as comunidades de bairros, as empresas, a faculdade que tem, que alertar para isso, porque é um patrimônio. São patrimônios que precisam ser protegidos, então fica aqui o meu protesto porque eu acho que tem que ser, as pessoas precisam ter um olhar para a arte e para a cultura deste país, pela riqueza que nós temos, a diversidade cultural que este país tem. E graças a deus, eu vou afirmar, que hoje nós temos, até a nível de ministério, já tem um, a nível de ministério, um ministério que esta cuidando da cultura Brasileira, do patrimônio Brasileiro. Mas que está faltando mais parcerias aí. Nós temos dois parceiros aqui para a cultura popular, o SESC, uma grande instituição, que apóia a cultura popular Brasileira, que trás os artistas as festas, é a nossa mídia, uma das mídias, que a gente consegue fazer, com a produção, a produção cultural do SESC, este é um grande parceiro, mas nós temos uma secretária da cultura, nós temos do estado, do município, a secretaria de educação. E cadê este pessoal? São parceiros, as empresas, que dizem que tem aí, que tem por obrigação sua cota para o social, tem sua cota para a área social, para fazer... Cadê esta cota? Cadê esta verba? Aonde que estão estas verbas? A gente podia estar investindo,

apoiando, estimulando na comunidade, o aprendizado da cultura, nas escolas, a formação, deste artistas, a capacitação deles, para poder construir projetos como (inaudível). Conseguiu seus projetos, as parcerias dele, ele hoje é um artista nacional e internacional, porque ele teve estas parcerias, se estes nossos, estes mestres, estes artistas, como eu e muitos outros não tiverem estas parcerias, nós não vamos chegar lá, a gente vai ficar de formiguinha, a gente vai ficar como formiguinha.Edson: Eu queria saber do seu trabalho. Do teu relacionamento com o público. Nós falamos que você tem esta missão, pela sua origem, de compreender as manifestações da cultura popular na essência e transformar estas manifestações em espetáculo. Aí você apresenta teus projetos artísticos para instituições, para escolas, para o SESC e você tem dificuldades. A gente já conversou sobre isso: a questão da imposição da mídia, a falta de parceiros, que você relatou... Quando o seu trabalho é apresentado, como é que você sente a reação do público?Irimar dos Reis: Olha Edson... É a reação das pessoas é de uma total satisfação assim, aonde a gente apresenta que é a brincadeira popular. Você vê as pessoas contentes alegres, satisfeitas, por ter presenciado, por ter participado, agente vê uma certa satisfação de ter tido contato com aquele momento, com a cultura Brasileira, com a música, com a cultura, com os brinquedos, com os meus brinquedos que eu chamo, de brinquedos, o boi, a ema, o Jaraguá, os bonecos todos que eu tenho, esta satisfação, ela que importa. Você tá entendendo a alegria das pessoas, de transmitir uma coisa para elas, que seja bem para a alma, para a vida, que desperte nela, um sentimento de Brasilidade, de identidade. Então, graças a deus, aonde nós vamos, aonde eu vou, com o grupo folias e fogueiros... É, a gente é muito bem recebido, as apresentações, os comentários, assim as pessoas não fazem uma crítica, porque não é um trabalho assim, não é um trabalho para se fazer uma crítica, e as pessoas fazem comentários, “nossa que bacana isso, que bacana, isso, como é que você aprendeu, de onde é isso?”. Aí você conta, olha eu vi em disco, eu vivi isso lá. Aprendi desta forma, tô transmitindo assim, então a gente vê uma felicidade plena das pessoas, as crianças todas contagiadas, elas ficam enfeitiçadas, porque é um momento criativo, é um momento, é uma produção que é uma produção criativa, você tá num envolvimento com a brincadeira, com o imaginário, porque estes bonecos são todos do imaginário popular é toda um fantasia, né? Que mexe com os sentimentos, com a emoção das pessoas, crianças e adultos, que está nos assistindo. E quem está junto, tá participando está prestigiando. Então eu vejo assim, esta satisfação, que pode ser uma coisa bem prática mais que as pessoas tão brincando junto, a sensação de poder estar junto, de poder brincar junto então só a sensação do espetáculo, né? Então tem esta aproximação. E é intenso esta aproximação das pessoas, é muito próximo. Graças a deus, fomos bem recebidos em todas as escolas, SESC, prefeituras, praças, aonde a gente foi. As pessoas acabam no começo que é espetáculo observando, elas têm um sentido de complexidade e ai elas partem para a participação direta. É interessante que há ali a contemplação do trabalho artístico. Então quando você inicia o espetáculo depois de alguns instantes, as pessoas estão participando, estão dançando junto com você e isso é muito interessante. Como você vê o, o, ou pensa do seu trabalho, neste sentido de imediação de possibilitar que a pessoas entendam o seu trabalho, porque como ela esta participando destes momentos, destes estágios, de olhar, entender, e participar. Participar porque foi convidada a participar assim, você convida as pessoas a participar, neste caso mesmo que elas não sejam convidadas elas acabam espontaneamente participam, entrando ou cantando junto, né?Edson: E como é que você conversa com as pessoas durante o seu espetáculo, como você fala do seu trabalho durante o espetáculo?Irimar dos Reis: Olha, tem várias formas de se falar né? E você tem uma comunicação clara com as pessoas, um sentimento claro, do que você quer fazer do que você tá fazendo, primeiro assim, eu vou falar novamente, você tem que ter a verdade, ser verdadeiro, no que você esta fazendo, então é uma comunicação, é uma das comunicações, não é uma das percepções, então as pessoas percebem que você está fazendo um trabalho legal um trabalho bacana,

interessante e de curiosidade. Então aí você aproxima das pessoas por que você tem, porque você tem a linguagem do corpo, você tem a música, tem a dança, você troca com as pessoas porque você leva faz um bate e volta com as pessoas né? Então esta é uma comunicação, a comunicação da integração, de estar integrado junto, é uma comunicação, o show nosso tem esta, essas possibilidades de você comungar junto, de você fazer parte daquele irmandade naquele momento. Então estas... Estas... Esta comunicação, ela integra as pessoas e daí, a identificação da cultura, né? Você se identifica com a música, com a dança, com o objeto, com a forma de se expressar, com a alegria, com a verdade que você está fazendo aquilo, o prazer, o prazer de fazer também é uma comunicação, o prazer de estar lá, levando uma coisa bem bacana para as pessoas, então esta é comunicação, e depois do show vem a troca, as pessoas conversam, e contam a sua história, e eu conto a história, a minha história para eles, e esta fica aquela troca. É atuação, ali naquele momento você vai explicando o trabalho. É e as pessoas vão se identificando, vão me entendendo, vão falando, porque a cultura, a cultura, eu acho que assim, você compreende ela melhor, quando você participa. É quando você participa, no caso da cultura popular, da dança. Você em que ter estas possibilidades. Da dança, como no caso da roda, se você não entrar numa roda, como você vai entender a roda? Não desmerecendo outros níveis culturais, mas você assiste uma orquestra que é mais sofisticada, que tem um violino, e lá instrumentos eruditos, composições do século XVI, século XVIII. tal, neste sentido de contemplação, depois você tem que estudar não que a cultura, você não tem que estudar, você tem que se intera, e esta participação ela facilita muito o entendimento.Facilita, é porque esta arte que você falou é uma arte erudita. Ela está muito preocupada com a estética e o conteúdo que está sendo apresentado. Já a arte popular não tem nada disso, você é você e tem que vivênciar e acabou. Então você vive ali, você conversa, você come junto, você comunga junto, então na cultura popular tem estas possibilidades, de você dizer a coisa, e não forçar só como espectador, ou ali como ouvinte, pensando a coisa. Você vive a coisa. Então você vive você vivência você se irradia se contamina, você canta, dança, junto. Tudo isso, todas estas linguagens juntas, então não é o espetáculo, o espetáculo de luzes, é este conjunto. Esta riqueza. Então e este conjunto é que mexe com as pessoas, é que faz a diferença. O detalhe de cada coisinha dessa do papel, né? É um espetáculo, uma pessoa, tem gente que chega em mim e a primeira coisa é “nossa, como é que você adquiriu isso, como você fez isso, que detalhe que capricho”. Às vezes, eu faço alguns, às vezes eu compro, eu trago, às vezes, eu ganho, como eu vou a muita festa popular, eu viajo, eu trago sempre, artesanato, eu tenho um acervo na minha casa de vários objetos, de artistas, tem até vários artistas populares que moram aqui na capital, mas tem muita coisa dos mestres, das minhas viagens... E este conjunto da indumentária, da pesquisa da vivência, ela faz muita diferença, da forma como você atua, como você interpreta isso, faz a diferença. E esta diferença, esta beleza, esta simplicidade, deste contexto, ela mostra que ela tem um outro universo de uma riqueza incalculável que não dá para você olha, este figurino esta dança, eles tem uma, tem todo um histórico antes disso, porque vem das festas, o que vem do congado, às vezes, é um instrumento antigo que está ali, que é da tradição de lá de trezentos anos. Aquela mesma indumentária ela esta sendo revivida de muitos tempos, ela esta se perpetuando, você consegue dançar (inaudível) que os pretos velhos dançavam e todas aquelas caixas, antigas e estes detalhes. Estes detalhes, fazem do nosso espetáculo, um espetáculo gostos de se ver, de participar e de entender, a cultura Brasileira. Então, a gente procura levar esta bandeira desta forma assim, que é uma bandeira que a gente acredita que ela é transformadora, transformador, que as pessoas acabam dando uma idéia cultural, um sentimento, uma razão, né? É por isso que eu estou há 20 anos... Eu vou, eu estou há vinte anos... E quantos anos eu viver eu vou viver com isso, porque gosto, porque respiro a cultura popular todos os dias na minha casa, aonde eu vou, o ar que eu respiro é cultura popular, posso até sendo piegas a estar dizendo isso, ou estar sendo muito, sendo muito, ideológico, mas é porque eu sou assim, eu sou deste jeito, eu vivi assim, a minha vida assim com a cultura popular Brasileira... Então eu carrego esta bandeira, desta forma também.

Graças aos mestres que me deram à oportunidade, souberam me receber me receberam bem, da mesma forma que as platéias me recebem em São Paulo, nas escolas, nos SESC, nas instituições... Lá os mestres me receberam muito bem, porque quando você quer aprender, quer entender, a vida das pessoas, fazer parte da vida delas, você tem que estar aberto para isso, para receber, para trocar, para doar e esta nossa missão. Entende? Eu me entrego completamente no que eu faço, no que eu gosto... Então, eu sou movido muito por emoção do meu trabalho, mas eu espero que esta emoção é que possa fazer a diferença no outro. Tocar no sentimento nas pessoas, para que elas possam ter uma visão melhor de mundo de arte, de Brasilidade, de festas... Então a gente procura fazer com a alma, e tocar na alma das pessoas, com um pouco da experiência, que a gente tem de bagagem. A gente leva para as pessoas este, vou voltar a falar, este sentimento. Esta idéia, talvez esta idéia. (O telefone tocou) Edson: Eu queria fazer a seguinte questão para a gente encerrar. Como você, que trabalha com a cultura popular vê este mundo que a gente está vivendo? Irimar dos Reis: O que eu tenho a dizer é que esta cultura toda, que tem esta dinâmica, que tem esta diversidade, a gente tem que ter um olhar mais profundo para ela, e para estes valores, mesmo quem estuda, quem pesquisa, quem tá fazendo matérias, como doutorado, precisa mesmo ter um olhar de profundidade, para as festas, para as produções, para a produção artística, tanto dos mestres e dos artistas que fazem a arte popular... E fugiu aqui alguma coisa para poder falar assim, porque esta aproximação, ela tem que ser uma coisa mais humana, assim... Esta relação que seja uma relação de busca e que ela seja mais humana. E que a gente não deve deixar de abandonar as nossas ancestralidades. Porque a gente, mesmo com toda esta modernidade, com esta complexidade, com esta tecnologia, internet, tudo, os botões que têm que ser apertados para acessar a vida, a gente não deve abandonar aquilo que nos move o que nos leva a evolução, por exemplo, a nossa sociedade, as nossas culturas, as nossas raízes, a gente não deve abandonar e brigar, e estudar e buscar e conviver, reviver, rememorizar, né? A cultura popular Brasileira tem uma evolução, isso é evolução... O povo que está ligado na sua cultura é um povo que está evoluindo. Que tem este sentimento maior, que tem uma inspiração e tem uma relação espiritual, porque o (inaudível) pode caminhar, porque a ancestralidade também, abrange tudo, as nossas raízes, então isso é caminhar... Conviver conscientemente porque tem uma consciência maior uma cultura maior, que hoje até esta se falando em cultura da paz e a gente entende que a cultura popular Brasileira é a cultura da paz, é a cultura do bem, é um bem material e imaterial, mas eu deixo um abraço no coração e o Brasil para ser independente, de como diz aquele nosso, (inaudível), o Brasil para ser independente, é preciso ter mais consciência, a cultura como uma ciência, que dá valor e desenvolve muita gente. A cultura do povo é resistente é esta força ninguém não pode negar, tem brinquedo, brincando, brincar, a cantiga, a cirando, é o cirandeiro, é a viola, o violeiro, é o cantador o batuqueiro, é o rezador, a rezadeira, inocentemente no coração. E viva o povo Brasileiro!

Entrevista com Valdeck de Garanhuns – Dia 30/08/2006

Edson: Fala um pouco sobre a sua infância, qual a influência que teve no seu trabalho?Valdeck de Garanhuns: É a primeira pergunta que os caras me fazem. Assim, eu vivi, eu nasci em Garanhuns, até por isso eu falei do Lula, mas fui bem pequeno para Recife, mas meu pai foi para Recife, tanto que eu nasci lá, porque meu pai e minha mãe é de Garanhuns. Como papai morava em Recife, papai falou vamos morar em Recife, tudo bem. E eu fiquei entre Garanhuns e Recife, quer dizer o agreste e o litoral, passando pela zona da mata e conheci o Sertão, por causa de Garanhuns... Passava um mês dois em Garanhuns... Então, férias no mês de junho e dezembro, porque naquela época, passava até março, passava dezembro, janeiro, fevereiro, e março. Então, com meu avô, ele era caçador, então ele ia caçar, gostava de caçar naquela

época com meu avô. Então em Garanhuns eu vivia toda aquela coisa rural... Eu ia para a feira e, na feira tinha sanfoneiro, encontrava toda uma... Eu brinquei muito, brincava muito com os bonecos de Vitalino. Brinquei com os boizinhos e, assim, a gente quebrava, aquilo ali... Ninguém nem emendava. Imagina, jogava fora as coisas, os bonecos de Vitalino! Você ia para Caruaru, e tava lá cheio de Vitalino, que o pessoal fazia... Então, teve isso aí também. Então, eu vivia assim e em Recife e meu avô era poeta. Foi o cara que me ensinou poesia, ele era poeta e eu trocava rimas com ele, com meu avô, assim: ventilador, professor, liquidificador. Assim: caminhão, monte, não sei o que... Então, eu aprendi a lidar com palavras, com palavras, porque eu não conseguia fazer versos. Depois que eu comecei a fazer versos. Aí, em Recife, eu ia no mercado de São José, ia com onze doze anos. Meu pai era viajante e minha mãe mandava eu receber o dinheiro dele, só quando ele tava viajando. “Vai fazer feira!”. Toda esta coisa... Então eu ia e pegava dinheiro, porque naquele mês não tinha cheque, não tinha bancos nem nada, guardava tudo em casa. Não tinha inflação nem nada, guardava tudo em casa. Aí, eu pegava o salário, o que eu fazia? Ia no correio, pagava a passagem, ia falava com seu Zé e o dinheiro todo enfiado no sapato, descalçava ao sapato e nem tinha problema de ser roubado nem nada... Então eu marcava com seu Zé, mas, às vezes, eu me atrasava com os compromissos com a minha mãe, porque eu ficava vendo os violeiros, desembolador de coco, batucando e tal... E também quando eu tinha a idade do meu filho, uns três, quatro, cinco anos, mamãe me levava pra gente ver o mamulengo. Historicamente eu não me lembro, porque quando eu morava em Garanhuns, o mamulengo do mestre Ginu era o mais antigo. Então, você vê a minha convivência com a arte. Com uns três anos de idade eu já via isso, com uns três e meio, quatro anos, eu já estava no palco fazendo teatro na igreja, no palco representando. E vivi toda a minha vida assim, na universidade. Eu fiz artes plásticas. E aos cinco anos de idade participava, olha só, eu participava ao mesmo tempo do canto orfeônico, estudava lá com o professor da marcenaria, das artes plásticas também e fazia teatro. Fazia três coisas ao mesmo tempo, participava da marcenaria no colégio, cantava com o orfeônico e participava do grupo de teatro. Então a minha vida foi essa, foi povo, foi cultura popular, foi cultura junto com o povo. Recife era isso. Porque um cara fala: “não você não encontra mais em Recife isso e aquilo...” Como você encontra? Todo dia na republica... Vai lá no mercado São José, tem embolador lá todo dia, tá o cara comendo prego... Eu falo todo dia com minha, mãe, meu pai, falo com meus amigos, tô bem informado e Recife tá do mesmo jeito. Aí quando eu vim pra São Paulo, fiz teatro, fiz teatro. Chegou o pessoal da equipe de cinema de São Paulo lá e para fazer um comercial para o Banco Norte que não existe mais hoje, era o banco nacional do norte. Então, eu estava na fundação e tive que pedir licença do Estado, como concursado do estado, Eu era professor de educação artística. Aí pintou esta oportunidade e fui fazer um teste para fazer os comerciais para o Banco Norte. Eu fui lá. Fiz o teste e fui o ator principal do filme. Dos filmes publicitários, eu tenho aí os filmes. Quero ver se eu consigo passar para DVD. Porque tem isso também, eles se acabam... Aí fiz estes filmes e fui para Recife, foi um sucesso imenso. Viajei muito, fiz muitos shows e a gente mandava (inaudível), e saia viajando. Quando acabou a campanha em oitenta e cinco, outubro, sei lá, mais ou menos... A campanha saiu do ar. Ficou quatro anos no ar, 84, e pouco 85, saiu do ar e aí eu vim para São Paulo. Vim para cá em 85 e trouxe meu violão, trouxe outras coisas e trouxe quatro bonecos de uma peça, que tocava o coração. E, sem compromisso... E assim eu aprendi, e quando cheguei aqui eu comecei com os quatro bonecos que eu trouxe, e eu ia para os forrós, e comecei a montar boneco lá... Daí o pessoal gostava e eu comecei a fazer, fui fazendo boneco aqui, fui comprando boneco, e aí estou aqui até hoje.Edson: Você é um artista que o trabalho foi bem acolhido? Você não sentiu um pouco de rejeição?Valdeck de Garanhuns: Rejeição sim, até pelo não conhecimento da cultura, como até hoje tem. Tem uma escola que a diretora nos contratou e eu mandei o trabalho para lá pelo correio. Porque naquela época não tinha nem e-mail, isso há uns dez anos atrás. E a diretora me olhou

dos pés a cabeça... Todas as manifestações populares, numa escola, e quando começou o forró, ela ficou feliz. Rapaz! E reconheceu o trabalho. Então, não conhece o trabalho, porque as pessoas não conhecem o Brasil, e ainda hoje a gente sente. Eu coloquei duas propostas com os bonecos em escolas, para fazer o trabalho, para oferecer o trabalho e era umas doze, umas treze festas populares ao meu redor, quer dizer: era um festival de festas populares. E o festival de (inaudível) não fui nenhuma vez, porque as pessoas lá tem preconceito. E porque? Se o mamulengo é um boneco popular. Se o mamulengo é um boneco... Porque ele não tem que estar numa festa das nações, tem que estar... Entendeu? Então isso é discriminação. E discriminação dessa que eu sofri. A cultura popular sofreu e sofre. Algumas pessoas na sociedade... Aqui em São Paulo sempre fui acolhido. O SESC sempre me acolheu, entendeu? O SESC, mas mesmo assim, mesmo depois que eu fui ao SESC, ainda tem gente que fica com um pé atrás, sabia? Porque em todos os lugares tem este tipo de gente, em todo lugar, gente que não entende das coisas. E quando, naquela época que eu cheguei aqui, eu fazia um mês um, dois três meses e me esqueciam. Depois é que eu comecei, hoje faço todo dia. Eu fui o primeiro que botei na televisão, o primeiro a colocar o mamulengo na televisão. Em São Paulo gravei história, gravei o programa “Lá vem História”. Inclusive eu fiz vinte programas. Tenho ali a fita. Eu esqueço o nome do outro rapaz. Eu, graças a Deus, que o meu trabalho tem grande sucesso. Eu não procuro fama e nem quero e hoje de manhã... Aqui em casa nós somos todos espiritualistas. Você tem que ser ético, o resto não importa. Um pão com banana e uma casinha bem simples. Porque para quem quer buscar isso. Aliás, a vida... Nós estamos aqui passando uma fase. Você pode buscar o seu conforto. Você pode buscar coisas materiais, porque você está num corpo material. Quando eu vim para São Paulo eu vim pela fama, eu queria fazer televisão, cinema, eu queria palco, queria que as pessoas me reconhecessem... Acabei com tudo isso graças a Deus! Então, a fama se ela vem ela pode ser uma conseqüência do fruto do trabalho, porque em primeiro lugar está o trabalho. Tanto que eu faço, durante as férias, eu vou lá para São Miguel Paulista e divulgo em escolas que ninguém conhece. Porque eu acho que é ali que está o trabalho e não em cima do palco com ah... Então, você fala: sucesso é uma coisa e fama é outra. Então se você fala de sucesso. Aonde eu vou o trabalho é bem aceito. Então o sucesso é uma coisa e a fama é outra. Tanto é que, você viu, agora, para mim, foi a afirmação do meu trabalho esta mostra do SESC Paulista de Teatro de boneco. Então foram 10 apresentações, 10 histórias diferentes, um folder muito bonito que fizeram e estava lotado todos os dias, dia de chuva, frio garoa... Você conhece São Paulo. O espaço lá tava lotado, todo mundo foi assistir. Não teve um dia que tivesse menos de 50, 60 pessoas no espaço. 100 pessoas, 70, 80 lá no espaço. Era lotado. E a gente fazia do lado de fora. Nos dias de sol e ficava gente parada no meio da rua. Lá na Paulista. Todo mundo parado assistindo. Os táxis paravam, os carros paravam... E isso é que é sucesso para mim. Porque eu lutei para conseguir isso, eu lutei, vai fazer 21 anos que eu estou aqui em São Paulo este ano, né? É coisa de muita luta, junto com sofrimento com alegria é a luta, de toda uma vida. Mas eu hoje sou feliz com a minha família, com o meu trabalho. E São Paulo é uma cidade que ao mesmo tempo cruel, porque ela te cobra, ela, se você não cuidar dela, é ate engole... E engole mesmo, porque você desaparece na rua, ninguém sabe quem é você, acabou-se desapareceu, e ninguém sabe não. Mas também se você deixar, ela te eleva, te leva à tona. Você vai subindo com ela. É você querer saber viver aqui, lidar com São Paulo é difícil, é uma megalópole muito complicada, cheia de problemas e também cheia de coisas boas. Então eu soube sei conviver. E tô aqui e continuo, e cada dia mais o meu trabalho tá sendo bem quisto e tá sendo sucesso. Hoje meu trabalho é bem aceito. Mas mesmo assim ele ainda sofre umas... E não é o trabalho. É cultura popular Brasileira, não é o meu trabalho que é rejeitado. É a cultura. Sofro eu, sofre Danilo, sofre Sandro... Se vem pra cá o Zé Divino, ele morre de fome. Edson: Como é que você analisa estes grupos que são produzidos? Vamos pegar um exemplo assim dos sertanejos, que usam, se apropriam de elementos populares. Como você vê este produto?

Valdeck de Garanhuns: Primeiro eu digo que é uma pena, uma pena porque você tem uma coisa falseada... Nós discutimos, inclusive, como eu falei para você, na Metodista. No curso de redação. Eu discuto isso. O Balé Nacional de Recife. São dançarinos e estudam dança erudita. Que é outra discussão que a gente teve outro dia, o que é erudito, o que não é, porque está assim, ninguém sabe onde começa uma e termina outra, porque tá assim, totalmente popular. Bethovem quase abortado pela mãe... No entanto gênio da música, então não importa se ele nasce na burguesia ou se ele nasce na favela, porque quando ele nasce para ser intelectual, espiritualmente, ele brota das cinzas, das pedras, ele surge e quando não é ele dá um salto... Tem tudo e depois pode apagar... Porque ninguém reconhece. Entendeu? E o que é que acontece quando você pega este tipo de coisa... Fala sertanejo, aí você pega o cara, e ele não é sertanejo. Ele canta música, porque tem música sertaneja, tem! Tem música sertaneja tem. Mas isso não é música que os sertanejos cantam lá. Tudo bem, então isso se chama mascarar a música, se você quer que isso vire aquilo. É o contrário, então olha agente está modificando. Agora a música sertaneja vai ser isso e acabou a história. Mas eu não vejo este discurso. Eles cantam música sertaneja e o povo fica achando que aquela música é que é cantada no Sertão. Então música sertaneja é que se canta o Sertão. E aqui não tem Sertão. Aonde é que tem Sertão aqui? Sertão se caracteriza por cactos, espinhos, abrolhos, pedras, seca, Sertão é isso, pode ver.Edson: Isso vem da cultura norte-americana?Valdeck de Garanhuns: Ah! Aí sim! Não pode misturar, aí é outra coisa. Então o Brasil tem a vaquejada e tem a festa de peão. Porque a vaquejada é uma festa típica do nordeste, inspirada até na cavalhada. A cavalhada, então que você vai pendurar num cordel... E o que é a vaquejada? Você coloca o boi à distância, solta o boi aqui na esteira, o boi corre que nem doido, porque senão ninguém pega. Aí pega no rabo dele e depois derruba e não tem esta coisa de rodeio. Agora por exemplo: se pegasse o rodeio e ele fosse feito aqui de uma maneira diferente... Aí tudo bem. Mas os caras importam igual, roupa, cinto, chapéu, amarram as coisas do touro, que dizem que é pára o touro pular muito. Porque os caubóis que montavam em cavalo bravo, eles levam como esporte... Então, tudo é assim, do jeito que este rodeio surgiu do caubói que ia lá para montar o cavalo... A vaquejada também, porque a vaquejada surgiu do vaqueiro ir pegar o boi no mato. Quando a boiada tava aqui e um boi se desgarrava para a caatinga da boiada... Então, a gente fica ali, contendo a boiada e ele entra no mato para pegar aquele boi. E têm estas histórias de boi, boi que desapareceu, boi, a gente faz uma festa para ver quem pega o boi, porque às vezes ele fica um mês dois, no mato... É, e um monte de vaqueiro procurando e haja! Hoje ele também já não fica porque a caatinga acabou... Tem aquelas caatingas serradas, mas o vaqueiro não pode entrar, porque o couro do boi é duro... Esta história de coronel que faz uma festa, e “quem pegar meu boi casa com a minha filha”, é por isso. E juntava os vaqueiros da região, os mais destemidos, ia buscar o boi do coronel e quem chegava com ele o coronel dava a mão da filha. Surgiu o esporte da vaquejada, ia para pegar, tinha que derrubar o boi, laçar e trazer. Os caubóis iam de cavalo e aí eles apertavam e o bicho pulava... [...] não sei se é verdade. Vaquejada de motocicleta, pelo amor de Deus! Entendeu? Eu não concordo. Então estas bandas, por exemplo, este forró universitário, forró não sei de que... Forró pé de serra, porque tava num pé de serra. Quase toda a quarta e quinta feira, ai tá certo, porque toca sanfona. E não era nem forró, era mais samba. Coisa de carioca que diz que o samba nasceu no rio é conversa mole. O samba, batuque africano, samba, gesto do pandeiro, é forró samba. Tudo ali misturado, praticamente a mesma da raiz. Então a raiz do samba é o forro. E quando você diz isso, falam que é mentira. Como que uma pessoas que fazem isso podem dizer que é mentira. Então analisa o gesto do pandeiro. Analise, aquele lá de Pernambuco... É, meu Deus! Qual é o nome dele? Veja pra você ver, então... A mídia... A mídia é que divulga estas coisas. Como a Tati Quebra Barraco, e eu falei isso na faculdade, porque se ela, surgisse lá no rio,

naquelas favelas, do rio, como ela surgiu nos morros e lá ela ficasse, sem divulgar, ela seria sucesso nacional. É lógico, ela iria nascer lá e morrer lá. Entendeu. Ela não iria ter este respaldo nacional. Então o que é que a mídia

faz: traz ela de lá e coloca na mídia, e diz que é muito bom. Ai o povo gosta. “Nossa ela é muito boa! Olha a folha de

São Paulo ta dizendo. A globo tá dizendo. Tá todo mundo dizendo!” Então, é o que acontece. E ai fica lá. Então é o

que acontece. Ai vem estes Calypsos da vida, que nem o Mel com Terra, Calypso... Tudo isso ai, é fruto da

divulgação. Porque não pega o mamulengo e começa a colocar na televisão, para ver se não influi? Em um mês trinta

grupos de mamulengo estão ai. Faz isso. Porque é que não tem cinqüenta orquestra sinfônica em São Paulo? Porque

para você fazer uma orquestra sinfônica é preciso estudo, é preciso competência, agora para fazer uma banda

Calypso... Canta tudo a mesma coisa. Quer dizer quantas orquestras sinfônicas têm? Cinco, seis, a OSESP, a Jazz

Sinfônica, são poucas... Porque tem que ler partitura, e tem que estudar, estudar... Agora para pegar um violão, que

nem o cabra do Falamansa, e ta, ta, ta, só toca assim, nessa posição, nem dedilha é só assim. Rapaz! Então, você tem

mais de cinqüenta, cem, duzentos que tocam violão deste jeito. Esta é a minha opinião entendeu?

Edson: E voltando: Em relação ao seu trabalho... Porque você tem diversos trabalhos? Qual a dificuldade que você tem em relação à produção de CD e de seu livro, como é que você é recebido, por exemplo, por uma editora, por uma gravadora?Valdeck de Garanhuns: Eu tive contato com uma gravadora, tem umas pessoas me querendo. Inclusive eu recebi uma proposta do pessoal da TV cultura. Eles querem fazer umas coisas na TV Cultura. Então... Porque eles querem fazer alguma coisa assim da TV Cultura... Mas eu estava relutando porque tem que reduzir o show para dois minutos, três minutos... Eu, como compositor, tenho algumas músicas [...] eu não bato em portas, não por orgulho, de maneira alguma, mais eu não aprendi a bater em portas, eu não sei bater em portas. É quando você bate em portas, você está sujeito a receber um grande não.E quem bate em portas tá pedindo não é orgulho, não é orgulho. Porque graças asa deus eu sempre fui convidado. Quantas vezes eu fui lá espontaneamente, peguei minha viola, e cantei, e de repente eles me chamaram para fazer o “Lá vem história”, agora mesmo, a produção está atrás de mim, dizendo que eu vou fazer o trabalho com eles, e que eles estão só esperando isso se acertar. Porque eu trabalho em conjunto com a minha mulher, que faz as partes femininas. Então a gente está conversando, e eu acredito que eu vou bater lá, vou ser muito bem recebido, mais eu não fui... E até por causa disso, porque eu sou recebido aonde eu quero... Porque quando o artista vai buscar a lei de incentivo e o projeto é aprovado, só que ele tem que buscar uma empresa. Então eles querem...É complicado. Esta política é egoísta. Então, eu vou por ai e não fico chorando espaço... Conversei com o Vidal França e ele disse: Você não tem CD? Eu não. Mais como é que pode você não tem CD ainda, gravado? E eu não sei se eu gravo as minhas músicas, ou se eu gravo um CD infantil. Mas tudo saiu dentro do certo. Entendeu. Editora. Editora eu estou com um negócio muito legal. Porque eu e o César Obeid ilustramos um livro através da editora do moderna. O César Obeid é um rapaz amigo meu e você deve conhecer. Toca viola também, junto comigo, então escreve, escreveu o livro. Não de cordel, mais com versos, e disse: eu quero este livro ilustrado com xilogravuras.Edson: Que ótimo!

Valdeck de Garanhuns: Vê só. A moderna tá bom. O Agnaldo e a Maristela me ligaram, são os editores da moderna e disseram: olha o César tá aqui e ele quer que você ilustrar o livro dele. E eu disse: eu quero... [..] então ilustramos o livro. E o livro ganhou um prêmio no Rio de Janeiro, da Fundação Nacional... Fundação Nacional do Livro não sei de que... É uma fundação que avalia os livros, e ganhou este prêmio de menção honrosa. Melhor livro recomendável. Eu queria fazer um livro de poesia, porque eu tenho um livro pronto, e ai levei para o Agnaldo e a Maristela. Então eu falei das lendas, das minhas histórias... E eu vou e ela me chamou. Eu e a Regina, para ilustrar outro livro chamado: “vida e morte da onça [...]” Um intelectual da Faculdade do Rio de Janeiro, ele adorou o livro e já está na Fundação, ai a moderna me convidou, para fazer um livro sobre lendas e mitos brasileiros. Mas por que? Porque eu tinha este trabalho que eu fiz desde o “Lá vem historias”. Porque no “Lá vem histórias”, era um violão, a parte de prosa e a parte de versos, e isso eu tinha feito com as gravuras, as xilogravuras, porque as exposições que eu tinha feito em São Paulo de xilogravuras, mostraram lendas que eu entalhei. Eu fiz o poema, ai eles liam a lenda e ao lado o poema. E eu trouxe os folguedos coco, cavalhada... Ai eu peguei e fiz um texto... Eu peguei e escrevi cavalhada é isso, assim, assim, e contei para as pessoas que não conhecem, e realmente não conhecem mais na exposição eles vêm cavalhada e ficam imaginando. Cavalhada. Então eu escrevi um texto e ai a pessoa olhava e via o que era aquilo. Ai eu fiz todas as historias... Então resumindo: o livro é assim, vai se chamar “Lendas e mitos brasileiros em prosa e verso”. E eu relutei para escrever, porque mito e lenda não se escreve que raio de livro é este. Porque como eu vou escrever um livro de lenda, todo mundo já contou e recontou o que é que eu vou fazer. Ai como eu queria uma coisa diferente, tem a prosa, porque onde eu falo da lenda eu estico mais, por exemplo, eu falo do saci-pererê e conto a lenda em prosa, e tá, conto a história dizendo: o saci pererê, um primo meu saiu para entregar uns bijus na casa da tia e no meio do caminho encontrou uma sacizada e invés de ir para a casa, ele foi ver de perto e os sacis pegaram ele, rasgaram a roupa dele toda, passaram [...] na cara dele e quase mataram o homem de cócegas. Lobisomem, meu avô desafiou um lobisomem. Mula sem cabeça, meu tio desafiou. Esta é a parte de prosa, depois tem a parte de versos, que são todos inspirados em no ritmo coqueiro da Bahia. Então estes mitos todos que eu conheço... Então, por exemplo, saci pererê: Saci pererê, neguinho safado, muleque... Entendeu, é isso ai. E tem mais um verso que eu esqueci, são três, e todos eles são com as estrofes populares. E depois explico o que é assim, assim, assado, a métrica é tal, a rima é tal, rima a,b,c,d. E depois com a partitura, porque ai eu vou na apresentação... E já tá na mão da editora.. Edson: Qual vai ser o nome?Valdeck de Garanhuns: “Lendas e mitos brasileiros em prosa e verso”. Já está, eles estão contentes e já me propuseram escrever sobre folguedos neste mesmo estilo e depois eu propus um outro nome que é “Histórias que o povo conta” porque eu tenho muita coisa que eu acabo pesquisando e eles querem isso. Então eu fui bem recebido pela editora, e estou então na Moderna e vou ilustrar sim, e estou atrás da gravadora.Edson: Você ensina tudo isso?Valdeck de Garanhuns: Ensino nos barracões e nas oficinas que me convidam por ai. Agora mesmo eu vim de [...] começar a formar e a cultivar as coisas.Edson: Só mais uma informação em relação a estas perguntas que eu te fiz, das gravadoras e editoras. Pelo que eu

percebo você é mais por si só, que é uma postura que você tem, eu respeito muito e que eu acho que é exemplo para

outros artistas. Mas como é que você vê os outros artistas, na busca de espaço em uma instituição, gravadora, ou uma

editora?

Valdeck de Garanhuns: [...] são discípulos meus, porque eu tenho discípulos. Como o Roberto, foi discípulo meu, tá brincando muito bonzinho, ele brinca bem. E ele pode dizer que ele [...]. Porque o meu propósito é este o de manter a tradição, manter a tradição não tem nada a ver com a terra que veio. Porque isso é ridículo é outra coisa. Manter a tradição, é as religiões, ir buscar a santa lá em Israel, olha a santa que veio do lado de lá, então manter a tradição significa manter uma raiz. Porque numa planta, numa planta, você pega a mangueira e vai com ela no meio, lá em Recife, tem uma mangueira que bota manga rosa e manga espada, é injetada, do mesmo pé ela bota manga rosa e manga espada, ta lá. Mais a raiz é a mesma. É ou não é. Não tem raiz que bota a mesma manga rosa e espada, porque ai vem e aqui ela se destrincha para você ver, não é? Se reunifica, e bota manga rosa e manga espada, mais a raiz que está lá embaixo é a mesma. A roseira, o manacá, sabe aquele pé que dá um monte de rosinha branquinha, né? Então ela é branca... Ela depois, ela fica cor de rosa, roxinha, mais a raiz é branca, porque elas estão ali sempre no mesmo núcleo, como se diz: então manter a tradição é isso, a sua raiz ta aqui, é a mesma. Por que? Porque eu não posso manter o mamulengo de uma tradição rural, aqui dentro de uma cidade urbana como é São Paulo. Porque, eu duvido... [...] nós estivemos lá na sexta feira, passamos de manha aqui, sei lá, passamos tocando forró e comendo feijão de corda e conversando. E a gente chegou a esta conclusão. Eu digo estas pessoas, elas têm que se manter assim, a modificação que vem ela é espontânea. Somos contra esta questão de glorificação de neoliberalismo, que quer enfiar goela abaixo na gente. Sabe, não é assim, qual é o país do mundo, me diga, que mais absorveu as culturas de fora. Edson: Acho que é o nosso país.

Valdeck de Garanhuns: O nosso Brasil. Pode vir gente do mundo inteiro aqui, que é cada um com a sua cultura. Os italianos, com a sua cultura forte, os japoneses com a sua cultura, os árabes com a sua cultura. Tem os alemães, os chineses, coreanos, os nordestinos... Porque cultura muda de país para país. Então tem muita coisa dos portugueses que veio pela miscigenação que é maravilhoso. Os portugueses levavam nosso ouro, nossas pedras tudo isso. Entendeu? É muito diferente. Isso tem que ser dito. Os holandeses antes de deixar recife, deixaram um grande legado cultural, então isso você tem que manter. Por que alguém te força a comer pizza? Não. Porque você experimenta, gosta ver que é bom e come. Então sabe a cultura americana, incluir haloween. Sabe hoje esta mídia fica em cima de você. Hoje tem este Rebeldes, com aquelas gravatas ridículas, aquelas saias curtas e as menininhas, contra escola, contra os professores, então isso ai pessoal... Agora receber cultura dos outros povos, claro que sim, é bacana, ver acoplado, englobado, naturalmente se a gente se sente bem. Porque a gente gostando de árabes, aliás aqui brasileiro e a gente não gosta de coisas diversas. Agora eu te obrigar a comer buchada de bode não pode. Você vai comer a buchada se você gosta. Posso lhe oferecer. Olha Edson vê se você gosta. Então é assim. (Posso sair para levar a Regina. Eu volto logo, vocês ficam aqui um pouquinho).Valdeck de Garanhuns: Ai qual é o nome da cidadezinha? Acho que é... Ficamos horas assistindo o cavalo marinho, porque o cavalo marinho a musica é muito legal, tem um ator principal que muda de máscaras, varias máscaras [...]Edson: Isso lá né?Valdeck de Garanhuns: Isso lá no local, agora você tira isso do local, ninguém agüenta.

Por que? Porque isso ai a gente não brinca para se exibir para ninguém.Edson: Não é espetáculo?Valdeck de Garanhuns: Não é espetáculo é a brincadeira. É como se você vê, crianças jogando bolinha de gude e depois você tira ali e pega aquelas crianças e tira e leva para um campeonato de bolinha de gude para ficar assistindo. Quem quer assistir bolinha de gude?

Bolinha de gude só interessa para quem está jogando. O balé de São Paulo estuda isso, ai ele vai e vai fazer disso um espetáculo de cultura popular. No caso de uma apresentação do cavalo marinho está fazendo um número de dez minutos. Aí sim, pa,pa,pa, ai sim cantou, dançou, brincou, cantou e pum. Porque não é a coisa dele do natural, lá não. O mamulengo, ele brinca cinco, seis horas, lá nos sítios, para um pouquinho e começa a brincar um pouquinho, toma uma coisa na bodega, manda continuar, agora?Edson: Então como é que seria então trazer essas manifestações da cultura popular? Estas culturas populares de origem mesmo tradicional? Como é que o SESC e as outras instituições, deveriam fazer? O que é que seria o ideal?Valdeck de Garanhuns: Eu acho que não precisa divulgar não. Eu acho que quer divulgar? Então traz um grupo para se apresentar ali na praça um pouco e paga um cachezinho para eles. “Vocês não querem ir brincar lá em São Paulo” “Então tá. queremos”. Então pega eles traz pra cá. E não traz por que? Porque um grupo deste tem... Trazer um boi do maranhão, quem é que traz? Porque tem trezentas pessoas. Porque um boi do maranhão é composto por trezentas pessoas, duzentas... Então não tem condição. Então vai lá, vai ver lá, vai ver lá, entendeu? Não, quer ver o boi do maranhão, tem que ir ver lá. Por que trazer o boi pra cá? Quer ver o boi do maranhão tem que ver lá. Não tem pra que divulgar. Quer preservar a cultura, então vai lá. Dá uma grana pro pessoal... Brinque com seu boi aqui. Melhore seu boi alguém divulga isso? Quem é que pode trazer dançar aqui em São Paulo, não é verdade? E o que é que os carnavalescos fazem, pegam uma grana e dão para cada instituição, para a agremiação, caboclinho, maracatu, para eles brincarem, continuarem a brincar e eu acho que incentivo é isso, não é trazer para a televisão. Porque eu acho que não precisa. Isso é utopia.Ah. Ah... Isso ai. Tem gente que lucra e explora. Vou te contar um caso. Agora no festival do SESI, certo e isso todo mundo sabe, os cachês estavam entre mil e quinhentos, sei lá, grupo ganhando, dois mil, três mil, nem sei, só sei que meu cachê foi este. Uma pessoa certo, trouxe e agenciou os mamulengueiros de Pernambuco. Você sabe quanto eles vieram ganhando de cachê? Duzentos e cinqüenta reais. E aí? E os duzentos e cinqüenta para uma oficina. O produtor ganhou...Então quer dizer: a pessoa que eu quero preservar ... O mestre de mamulengo que lá, por exemplo, ganhe quinhentos reais, trezentos reais... “Tá bom, vou levar você para São Paulo, para fazer dez apresentações, vou lhe pagar duzentos cada uma, porque eu vou lhe dar passagem, hospedagem, alimentação, imprensa, e tudo”. Você acha que ele não vai? É claro que ele vem. Ai faz cinco apresentações de graça para um grupo de seis pessoas. Ai ele vai no SESC e diz que o cachê é de mil e quinhentos reais. Entendeu? Ele tá pagando duzentos, então, quer dizer, duzentos por cinco apresentações da quanto? Então não pode. Isso para mim não é divulgar entende. Quem faz isso para mim é ridículo. Não tem que fazer isso, quer trazer as pessoas... Valdeck de Garanhuns: Quer um minutinho?Edson: Dá um minutinho aqui. Valdeck de Garanhuns:Ele foi publicado, uma brochurazinha, publicado pela UNISA, a respeito de... entrei no computador, que é a história da Capela do Socorro, a história que o povo conta. De duzentas estrofes, tudo versos, que o livro tem, então isso conta das japoneses que chegaram aqui na Capela do Socorro, depois mudaram para Itapecerica. Assim e de todos os versos eles rimam sabe... Muito interessante eu trabalhei na prefeitura já trabalhei na casa de cultura e tem quem quer que eu faça um negócio para ele. Edson: Então eu quero novamente voltar no seu trabalho. Você é um artista múltiplo, posso dizer assim. Tem trabalho de música, trabalho de gravura, trabalho em literatura, tem muita coisa que você faz e como é que você analisa a cultura popular. Na cultura popular você tem música, tem artes plásticas nos figurinos, você tem dramaticidade no caso do boi, por exemplo, quer dizer você tem tudo ali. Como é que você vê essa, essa mistura toda da cultura popular? E

eu queria te fazer uma outra pergunta: por que você falou do folclore e como é que você diferencia esta questão do folclore e cultura popular e isso tudo? Valdeck de Garanhuns: É a gente tá falando assim: cultura popular ela se manifesta lá no local, ela se manifesta lá, lá no local. E eu sempre aconselho as pessoas a verem a cultura popular lá onde ela se manifesta. Porque quando você tira ela do local, modifica. Queira ou que não queira, nenhum boi, nenhum maracatu, nenhum mamulengo, nem nada, vai se apresentar do mesmo jeito. Quando você tira ele do seu reduto, quando você tira ele seu lugar. Ele modifica, ele passa por um processo, não que ele vai apresentar diferente, ele vai apresentar igual, mais é que não está lá, sabe? Como se você saísse da sua casa e vai dormir na casa da pessoa. Você sente diferença, porque a cama é diferente, o lençol é diferente, o colchão é diferente. Você vai comer a comida que aquela pessoa vai te oferecer, você vai dormir de uma maneira diferente, não é verdade. Quando você viaja. Se você viaja com o seu carro dirigindo é uma coisa. Se você viaja de ônibus é outra. Se você viaja de avião, tudo é diferente. Então, você chega lá e não vai poder ter esta cena ou esta, e às vezes o que acontece até isso, porque modifica também. Porque você não pode trazer o boi que brinca três, quatro horas lá, para brincar aqui. Não tem condição. Você não pode trazer um mamulengo, que brinca cinco horas lá no sitio, e vai brincar lá no pátio do SESC Vila Mariana, durante cinco horas. Não tem cabimento, ninguém agüenta, ninguém assiste, as pessoas não estão acostumadas. Tem que trazer para ele fazer uma mostra, então mostrar e vai embora, agora se não é para mostrar... Você diga às pessoas: Vai assistir lá. Eu quero fazer um encontro aqui, que eu já tentei fazer muitas vezes, para eles irem brincar nas praças, nos SESC, ou nos municípios, coisa assim. Mas uma coisa é brincar quarenta minutos. Uma coisa assim para mostrar o trabalho dele. Mais a cultura popular ela deve ser brincada, lá, no seu local. No seu local, no seu habitat, e quando você pega isso, quando alguém se apropria disso, isso para mim é folclore. Porque folclore para mim é quando alguém se apropria e mostra diferentemente. Ai para mim, vira folclore, porque senão folclore me dá a impressão que é um negócio falso que não é o verdadeiro. E até inclusive, até existe uma coisa pejorativa, sobre folclore, quando acontece alguma coisa: “Ah! Isso é folclore” Nossa isso daí já é folclore”. Quer dizer uma coisa que não é real. É falsiado. Entendeu? Não é o certo, o autêntico. Isto existe. As pessoas, é como dizer assim: Ah! Você não tem cultura. Todo mundo tem cultura. Não existe pessoa sem cultura. Sabe este cara é sem educação, não todo mundo tem educação, podem ter níveis de educação. Porque um tá aqui, o outro tem educação nisso, mais não tem naquilo, o outro tem nisso e não naquilo. Mas educação todo mundo tem. Então educação existe é um processo de vida das pessoas como esta coisa de sem educação? Mal educado, bem educado, menos educado, mais educado, igual à cultura, nunca ninguém é sem cultura. Agora pode ser que um tem esta cultura, outro tem esta cultura, fulano, tem esta cultura, sicrano tem esta cultura. Então é outra coisa. Então para mim é assim: é folclore. Porque não tem ninguém sem cultura, mas sem folclore tem. Eu não tenho folclore. Porque tem aquela coisa de folclore no meu trabalho, sou folclorista... Eu não sou nada disso. Eu não tenho folclore, eu sou um cara que vivo da minha cultura, faço cultura popular, é outra coisa. Este folclore é teu. Então, se tem alguém sem folclore, este cara sou. Eu nem gosto de ser candidato de folclore. É o povo, é uma manifestação do povo. Do povo. Certo? Uma manifestação do povo. E se não for uma manifestação do povo... É uma elite das artes plásticas, e outra coisa. Eu não sei quem classifica isso, porque isso é classificação sociológica, não natural. Porque isso é popular, é fazer a arte do povo, do povo, na comunidade. Ele mora na comunidade, porque ninguém mora isolado. Ele está num lugar onde ninguém alcança, não, é dele porque ele quer, mais é do povo. Agora o mal é que estas pessoas subestimam as outras e ai pega um artista como Siron Franco, ou Rembrandt, ou como o Salvador Dali. Então montam um balé bem bonito lá no palco e mandam tocar um dia de domingo lá. Você acha que vai acontecer o que? E isso vai ser o que. As pessoas vão com todo o respeito. As pessoas vão ficar deslumbradas rapaz. Agora vai lá no Teatro Municipal pagar cem reais para você assistir, ai é que só vai dar elite. Mas a elite o que? A elite

mandatária e não a elite intelectual como eles querem. Eles forçam esta coisa, Entendeu? Não cobra ingresso para você ver uma coisa, põe as escolas para assistir o conserto da OSESP gratuito, ai sim, isso para mim é formar. Toda a arte para as pessoas, a arte que você fala que é erudita. Então porque as pessoas não têm acesso no Municipal. Ah! Não Municipal, é uma coisa, é intocável, é uma coisa da elite, é elegante. Quem é que disse? Então sou eu que faço isso, você, não. São eles que fazem esta distribuição, esta distribuição, esqueci até a palavra para dizer agora, essa... Classificação.Edson: Ideologia.Valdeck de Garanhuns. É esta classificação sociológica, aqui é isso, aqui é isso, esta classificação sociológica, das

coisas. Então este negócio de vamos ajudar... Porque tá cheio de reunião ai do pessoal da cultura. E eu não sei o que

este pessoal da cultura quer. Não sei o que eles querem. Porque quer ajudar as culturas populares, então pega a e vai

lá ver a cultura do fulano, lá e deixa o turista ir lá olhar, mas espontaneamente. Não é pegar o fulano e fazer ele se

apresentar para turista ver. Tá obrigando ele a se apresentar. Deixa ele na dele. Ele tá brincando, deixa ele lá fazendo

o showzinho dele lá. Faz anos que ele brinca com aquilo lá. O povo do maranhão todo sai, não sai. Então quer ajudar

dá uma melhorada lá no trabalhinho deles lá. Porque que é que não vem alguém aqui e me dá cinco mil por mês, 10

mil por mês, para eu produzir, então eu pagaria a minha água... Isso é incentivo cultural. Isso sim, eu pagaria água,

eu não quero luxo, eu quero é esperança, eu quero produzir. É para pagar meus transportes. Me dava dinheiro para

produzir e ai eu não ficava louco, preocupado atrás de espetáculo. Me patrocina em tal canto, me ajuda a montar meu

ateliê. Contratado. E ai o que é que você tem que fazer? Você tem que participar de tal festa, você tem que produzir

isso e isso. Pesquisar, se apresentar nas escolas grátis. Então faz isso. Eu duvido. Quem é que quer ajudar a cultura

popular. Quer me levar para um canto e me pagar duzentos reis, como eu já disse na brincadeira aqui. Graças a Deus

isso não foi comigo. Mas tinha cabra lá ganhando duzentos e cinqüenta reais. E sabe qual é o discurso? Não nós não

podemos pagar mais. Não porque pode modificar a cabeça deles, eles podem ficar, gostar muito de dinheiro. Pelo

amor de Deus.

Edson: Você escutou isso?

Valdeck de Garanhuns: Escutei não, isso é o que se dá, o discurso é este. Este é o discurso? Na verdade as pessoas têm a noção daquilo que... Claro, está fadando o mestre a viver lá, porque para ser popular tem que ser sem dente, fala pruque, nois vai, para eles é assim, para estes pseudo-intelectuais, entendeu? O popular ele tem que falar, nois vai, nos fumu, nois tamo, ter um dente furado, morar numa casinha bem simples e se vestir de chita. Se mudar uma coisinha, não, não pode. Ah, isso não pode? Porque vai ser corrompido. Não é bem assim. E eles botam aqui, porque eles botam a grana na mão deles para eles trabalharem direitinho e muita gente é contra isso que eu falo, sabia? Mas tudo bem. Eu provo. Eu provo. E outra coisa. Ajuda-los a administrar seriamente, né. Seriamente, porque não é pegar um milhão e toma. Para o cara não sabe administrar seriamente, ele não entende desta parte, então você vai lá e diga: “Vamos fazer assim, o que é que vai fazer, como, precisa de quanto, vai lá e pergunta,

você quer quanto?” Existe prestação de contas, existe tudo. E porque não tem que ser caro? Não adianta. Olha eu quero saber onde você gastou. E quanto é que você precisa. Para mim é isso. Não é ficar com cacaca, quiquiqui. Porque quer trazer para a televisão, trazer para São Paulo, isso para mim é vivência, é ajudar. Entendeu.Valdeck de Garanhuns: Eu amo meu trabalho, amo, eu faço por amor, porque eu admiro, eu gosto, minha casa é aberta, tá tudo pendurado, mas, eu ainda não coloquei tudo porque não deu tempo. Cada vez que você olha tem uma coisinha aqui, ali, e todo dia que eu olho estas coisas, eu acho bonito. Eu não me desacostumo, eu não enjôo, isso é verdadeiro. Eu não coloco para enfeitar, para alguém chegar aqui e dizer... Eu me sinto bem com isso aqui, então todo lugar que você for tem, tem no meu quarto, tem no banheiro, tem em todo canto.Edson: Então, nestas apresentações, como você acha que o público vê o seu trabalho?Valdeck de Garanhuns: Vê assim com bons olhos, eu nunca vi problema. Porque todo mundo tem o direito de criticar o trabalho de todo mundo. Porque quando você se apresenta... Mas eu não tenho este problema e sabe por quê? Porque o meu trabalho em si... É este trabalho. Por exemplo, a televisão, ela não precisa, não precisa trazer o maracatu rural para dançar na televisão. Certo? Mas ela pode muito bem, certo, encontrar espaço na televisão, mas ela vai lá faz a reportagem e divulga. É isso que eu quero dizer, entendeu, porque eu nunca vi ele em programa de televisão. Então não precisa, o SESC ir lá, ou alguém e trazer o maracatu para dançar aqui. Mas eles podem ir e fazer uma matéria, fazer um globo repórter sério. Certo? Vamos dizer... Vai pegar e fazer um documentário arretado, com estas culturas e dizem: “Vão lá ver isso” e incentiva este turismo, incentiva esta cultura, incentiva o Brasil a ir lá ver isso de perto. Não pode fazer isso? Eu tava vendo a guerra dos mascates na globo, porque não faz uma novela da guerra dos mascates, discutindo o problema da emancipação do recife, da luta dos desarmados. E quem eram chamados de mascates? Sabe, e a Amazônia? Cheia de miséria. Já viu algum programa obre a vitória régia?Jjá viu algum filme contando a história do negrinho do pastoreio? Duvido que faça, não faz. Todo, todo dia você abre o jornal e vê alguma coisa estrangeira, quase todo dia, todo dia, absurdo. Então vai lá. Mostra, incentiva, faz um documentário, faz um por mês, faz uma série.Edson: Quer dizer, a televisão poderia ser uma mediadora de arte popular?Valdeck de Garanhuns: Claro.Edson: E quem mais que pode ser mediador?

Valdeck de Garanhuns: Todos. Todos os órgãos, mais para que eles fiquem lá no cantinho deles. E para que isso se prolifere lá e continue proliferando lá. Nasceu lá, tem que continuar lá. Porque se tirar morre. Porque o povo quer começar a mexer e este que é o problema. Ah! Tira daqui, vai pra li, e ai? Ai acaba.Edson: Acaba.Valdeck de Garanhuns: E’ porque ele vai se transformando. É’ isso aqui, isso ali, e não tem problema. Então tem que incentivar lá e mostrar para as pessoas irem assistir lá. Não precisa trazer, porque eles estão lá. Ninguém traz a Amazônia pra cá, tem que ir lá.Edson: Você acha que quando você se apresenta as pessoas ficam com vontade de ir lá e ver o mamulengo do Recife?Valdeck de Garanhuns: Eu acho que ficam. Porque eu faço isso. Eu quando converso com o público, por exemplo, o que é que eu faço? Quando eu me apresento eu falo, quem gostou do que viu aqui? Quem já foi lá no Recife? Pois quem não foi, vá. Vai ver o maracatu, vai ver os caboclinhos, vai lá ver estas manifestações todas. Ai eles vão lá se quiser. Porque eles queriam o que? Trazer o povo todo para São Paulo, não dá. Porque isso é de lá, as tradições gaúchas, nordeste... Agora o que é que o brasileiro faz, vai ver Miami. Que é absurdo né? O que é isso? Vai ver o Brasil. Mas não, vai pro americano lá pro tio San que pega teu dinheiro e bota no bolso. Vai pra Miami. Vai lá, porque seu país não presta. Peça na outra encarnação para nascer lá. Porque não é possível uma coisa dessas. Uma coisa linda dessa que a gente tem. Um país

maravilhoso, um país cosmopolita, um país antropofágico, não a gente se deixa iludir pelos outros. Que é isso rapaz? Edson: Então você incentiva as pessoas a irem até lá, e o que as pessoas falam com você?Valdeck de Garanhuns: Quem conhece o trabalho acha bonito. Rapaz... Uma velhinha veio aqui e viu um espetáculo que eu fiz a semana passada. Uma velhinha de setenta e oito anos. Que fez questão de conhecer a gente. Ai ela foi lá me conhecer, a filha dela foi junto, porque ela fez questão de me conhecer. “Fala um pouco mais alto” “A senhora gostou?” “Oh, meu filho, eu vi aquilo e posso lhe dar um beijo”. Ela me deu um beijo, me abraçou. “Olha eu nunca vi uma coisa dessas na minha vida”. Setenta e oito anos, nunca tinham visto um mamulengo na vida, nunca tinha visto. “Nunca vi uma coisa dessas na minha vida”. “Você me encantou, eu fiquei encantada”. “E eu fiquei...” E no outro dia veio assistir de novo. Ela assistiu no sábado e voltou no domingo. No SESC Paulista teve gente que assistiu todas as dez apresentações. Assistiu num dia no outro dia, no outro dia. “E a semana que vem é o que?” “Eu venho, eu venho”. Então qualquer um se encanta, porque não dá pra assistir na televisão.Valdeck de Garanhuns: Um desordeiro qualquer, que era meio malandro, chamado coca-cola. E o boneco de Augusto apelidava todo mundo, porque a gente vai pegando o nome das pessoas. Pergunta pra poder brincar... Ai Augusto começou a mexer com o coca-cola. Porque num sei o que, não sei o que lá, o coca-cola... E ai o cara veio de lá e pá, deu no boneco. Ai Augusto pegou o boneco e ah, coca-cola, ficou bravo e não sei o que, mais também não brincou mais. Depois foram tomar uma cerveja no bar e o coca-cola tava lá, e o foi lá e começou a conversar. E quando Augusto chegou ele foi logo dizendo: Rapaz, gostei daquele teu negócio, o coisa boa aquele teu brinquedo. O coca-cola, que tava dando patada no boneco. E ai Augusto falou: “vamos fazer uma coisa, tu ficou bravo com o boneco lá, do que ele falou e tal”. E o coca-cola disse: “não rapaz, tu não tem nada a ver com isso não. Se aquele boneco falasse eu dava nele de novo”. A raiva era do boneco, não era de Augusto e fale a verdade, isso não é um negócio louco?Então isso não é para assistir na televisão. A pessoa tem que ir assistir lá, como é que alguém vai fazer isso no SESC. Como é que vocês vão, indo lá pro SESC com os bonecos, se o público não gostar vai embora. O cara não gostou, ele vai embora. Mas com o povo não, o povo se manifesta mesmo rapaz. Sabe chegar e dar no boneco de Augusto. Lá na Praça da Sé, aqui em São Paulo, o cabra agrediu o boneco. Aquilo ali sim é a cultura popular brasileira.Edson: A comunicação direta. Valdeck de Garanhuns: Acontecendo. Entendeu, acontecendo, por isso é que o mamulengo é o negócio da rua, ali, muito bom. Edson: O BeneditoValdeck de Garanhuns: E olha que eu consigo isso muito dentro dos SESC, por onde eu ando, até nos teatros. Porque eu preparo a platéia, porque eu digo: “vocês, façam de conta que vocês estão na rua assistindo”, aqui no teatro não é assim. Eu até costumo brincar: ”Pode perturbar com o boneco” e ai o boneco vai logo pra cima deles. Dentro do teatro eu faço isso. Tem que brincar, porque isso de seriedade, ficar sério... Isso aqui é um brinquedo como se vocês estivessem na rua. Porque, ai eu pergunto: Posso brincar embaixo? E armo a barraca. Só não armo quando é o som não dá, porque fica muito distante. Mais eu peço pra brincar embaixo. Bem com o povo, quero o povo em cima de mim. Ai as crianças vão invadir, mexer, pode brincar. Edson: E o Benedito conversando com a platéia?Valdeck de Garanhuns: O Benedito faz assim,Edson: Ele faz papel de mediador?Valdeck de Garanhuns: É, porque uma coisa é você brincar com Benedito no teatro e outra coisa, é você brincar com ele na rua. Eu fui para Minas Gerais por dois anos e levei o mamulengo e você precisa ver Benedito conversando com o povão. Caçula trabalha com o sanfoneiro, aqui no Embu e numa apresentação tava aquela dupla, é uma dupla antiga, que era

o pai e o filho, e agora, eram dois irmãos agora ta o pai e o filho. Mas é uma dupla destas sertanejas mais autêntica. Matoso e Matozinho? É outra depois eu lembro. E eles estavam lá. Aqui no Embu. Aqui na feira de Santa Cruz é cidade do interior E Benedito. E eu nem percebi que botei Benedito, depois botei o mamulengo, e tava o povo todo dando risada e quando eu botei Benedito lá sentado na cadeira e depois fui no banheiro e um dos caras disse: “Esta porra de boneco fudeu meu show!”. Quarenta e cinco minutos apresentando esvaziou a platéia do cara e disse que eu passei quarenta e cinco minutos só com o boneco e eu nem lembro se eu passei. Precisa ver caçula contando. E eu nem me lembro se eu passei porque o dia foi tão bom. Essas coisas. Eu faço no meio do povo, mais não tem mais graça. Entendeu. No teatro dá aquela risadinha chocha, outras já dão risada maior, porque, o povo vai pro teatro e fica sério. Edson: Ah um distanciamento?Valdeck de Garanhuns: [..] aquela brincadeira onde as crianças, entraram no palco pra dançar frevo, invadem tudo e eu só tomo cuidado para não quebrar os bonecos, mais o resto pode brincar. Eu também explico, porque eu gosto de Benedito por causa daquelas piadas que ele conta. Quando eu vou começar eu explico: “Olha o teatro de mamulengo é assim, é brincado assim, assim, assim, assim, isso é assim...” Tiro onda com os músicos, porque eles tocam. Então esta é a interação e depois eu coloco o Benedito. Depois eu coloco a barraca e ele também interage com a platéia, brincando se divertindo e a platéia com ele. Então é assim.Edson: Bom quero te agradecer muito. Esta entrevista vai colaborar muito comigo, com o meu trabalho.Valdeck de Garanhuns: Eu quero dizer a você que foi um prazer e eu que gostaria de colaborar mais com o nosso país. Eu faço o que eu posso, porque é como eu falo para você, eu poderia produzir muito mais gravuras, eu poderia produzir muito mais esculturas, se eu tivesse subsídios, se fosse patrocinado por alguém. Tem empresas ai milionárias estes bancos que ganham horrores de dinheiro. Mas, eu, é difícil. Agora você pega os que já tem nome, e eles patrocinam. Porque tá pronto. É o produto pronto. Ta pronto, tem nome. Você se faz sozinho e depois não precisa mais patrocinar, patrocinar o que se você se fez sozinho. Eu quero agora. Então eu estou precisando de patrocínio agora e não quando eu ficar famoso. Entendeu? Não sei se eu vou ter mais fama. Porque o camarada quer mais fama, porque ai se junta e ai vai ficar mais famoso e ganhar mais dinheiro, e ai já não precisa mais. Porque você acha que Chitãozinho e Xororó precisam de patrocínio de alguém?Edson: Não precisa.Valdeck de Garanhuns: Não precisa, rapaz, esses caras tem avião, tem fazenda, se fizeram e agora são patrocinados. Você acha que os globais Fernanda Montenegro, Regina Duarte, Paulo Autram, precisam de patrocínio? Mas agora eles são patrocinados e tem mais de dez empresas patrocinando. Eu não tenho uma. Então eu estou apresentando um trabalho, é como eu te falei, minha visão é outra, é para quem quer assistir, e pra dizer é assim, assim, nem sei se tem gente que tem respeito pelo nosso país, eu tenho respeito pelo país. E você também tem, tanto que você está aqui para isso. Eu é que te agradeço pela oportunidade e vamos continuar contribuído para o nosso país, para que o nosso país mantenha, e continue esta coisa maravilhosa, como é este país. E que assim seja. Obrigado.

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