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A arte de contar o caos: o narrador contemporâneo no romance urbano
Eliane Cristina Chieregatto (UNEMAT)
Resumo: Pretende-se neste artigo abordar a configuração da narrativa brasileira
contemporânea sob o viés do romance urbano, para isso, tomaremos por objeto de estudo a
obra, O Cambista, do escritor mato-grossense, Eduardo Mahon. A obra se estrutura em torno
de uma narrativa não linear, composta por cinquenta e um fragmentos. Segundo a crítica, a
representação do narrador na narrativa contemporânea tem rompido com a composição
patriarcal da literatura brasileira. Ao mesmo tempo, a teoria da narrativa tem assinalado a
necessidade de aprofundar estudos sobre o narrador. Theodor Adorno, por exemplo, aponta
para a importância desta premissa, uma vez que o romance contemporâneo concorre com todo
arsenal da indústria cultural, para ele, “O romance precisaria se concentrar naquilo de que não
é possível dar conta por meio do relato”. Assim coube ao narrador da contemporaneidade, o
desafio de contar o caos dos tempos ditos modernos como um memorialista, cuja voz permita
ecoar a degradação, o sofrimento humano, e até a negatividade, sendo, contudo, um narrador
que utilize a linguagem como um elemento para transformação.
Palavras-chaves: narrador; urbano; contemporâneo; romance.
Abstract: This article intends to approach the configuration of the contemporary Brazilian
narrative under the bias of the urban romance, for this, we will take as object of study the work,
“O Cambista”, by the writer Eduardo Mahon. The work is structured around a non linear
narrative, composed of fifty-one fragments. According to criticism, the representation of the
narrator in the contemporary narrative has broken with the patriarchal composition of Brazilian
literature. At the same time, narrative theory has pointed out the need to deepen studies about
the narrator. Theodor Adorno, for example, points to the importance of this premise, since the
contemporary novel competes with every arsenal of cultural industry, for him, "The romance
would need to focus on what it is not possible to account for through the account." Thus, the
contemporary narrator was faced with the challenge of telling the chaos of modern times as a
memoirist, whose voice allows to echo degradation, human suffering, and even negativity, but
is a narrator who uses language as an element for processing
Keywords: Narrator; urban; contemporary; romance.
O romance “O Cambista” teve sua primeira edição publicada no ano de 2014, trata-se
também do primeiro romance do escritor mato-grossense, Eduardo Mahon. É, portanto, um
romance recém lançado à contar a trajetória literária romanesca no Brasil. Nele, forma e
conteúdo dialogam com as características do romance contemporâneo seja, quanto à estrutura
narrativa pela quebra da linearidade e imprecisão dos marcos temporais, seja pelo narrador que
configura um memorialista, seja também pelo utilização de técnicas narrativas como monologo
e monologo interior que circunstancialmente intercala vozes em terceira e primeira pessoa
amalgamando no discurso indireto a fala do narrador com a dos personagens. O narrador, este
mediador adentra nas entranhas, nos sonhos dos personagens desvelando pensamentos e
devaneios. Quanto ao conteúdo, o romance confere um mergulho na profundeza humana de
onde busca extrair a verdade, revelando a essência oculta de cada um dos personagens. É um
romance que se constrói totalmente no ambiente urbano, corroborando assim, com a
fragmentação das relações e subsequentemente a configuração de máscaras características
intrínseca na representação do contemporâneo.
No Brasil, o romance urbano é fruto da configuração de uma nação desejosa de
modernidade. As sementes embrionárias desta modernidade começaram a brotar ainda num
Brasil colônia, com o advento das primeiras Academias de Letras, que traziam a perspectiva
de uma literatura brasileira, ou seja, uma literatura que começava soltar-se das amarras do
colonizador. O movimento das Arcádias marca o florescimento deste desejo. Antônio Candido,
indica uma fissura entre os ideais do colonizador e a posição ideológica dos colonizados
brasileiros, isso na metade do século XVIII. Conforme Candido, a descentralização dos
primeiros centros urbanos, o amadurecimento dos homens cultos e dos poetas contribuíram
para que esta cisão se efetivasse. Portanto, segundo o crítico:
Na literatura sobressai um grupo de poetas que nasceram ou viveram em
Minas Gerais e no Rio de Janeiro, quase todos marcados pelo espírito
renovador da Arcádia Lusitana, e alguns deles realmente modernos pela
escrita e a atitude mental”. (CANDIDO. 1999, p.30),
Assim, o Arcadismo brasileiro, representa esta fenda entre ideais, reconhece-se,
portanto, dois períodos distintos, uma movimento poético que retoma a tradição,
sobressaltando um retorno à mitologia. E um segundo momento que é marcado pela visão
ideológica favorecendo uma crítica aos desmandos das elites econômicas e religiosas. Então o
bucolismo, ou seja, a louvação à paisagem rural, indica um aspecto sobre a cidade, como se na
cidade as pessoas não conseguissem viver o amor. O amor enquanto ideal de totalidade.
Este processo de amadurecimento de que trata Candido, foi sendo moldado
especialmente entre os poetas. Para a prosa, no entanto, um marco importante na história da
literatura no país acontece em 1808, com a chegada da Família Real Portuguesa, trazendo um
pouco mais de modernidade para o campo das publicações, visto que até então, os materiais
bibliográficos que aqui chegavam eram impressos em Portugal, Espanha e França. Por isso,
com o advento das primeiras tipografias, das escolas de nível superior, e do retorno dos
intelectuais ao país, houve o favorecimento de uma produção cultural brasileira que já
conseguia dialogar com as produções de outros centros. Todo esse processo de modernização
e amadurecimento ideológico favoreceram a independência do país em 1822.
O Romantismo, por sua vez, favoreceu o processo de rompimento rumo a uma literatura
brasileira já iniciado no Arcadismo. Antônio Candido descreve desta maneira esse momento
de inovação da literatura brasileira.
No Romantismo predomina a dimensão mais localista, com o esforço de ser
diferente, afirmar a peculiaridade, criar uma expressão nova e se possível
única, para manifestar a singularidade do país e do Eu. Daí o desenvolvimento
da confissão e do pitoresco, bem como a transformação do tema indígena em
símbolo nacional, considerado conditio sine qua para definir o caráter
brasileiro e portanto legítimo do texto. (CANDIDO.1999, p. 38).
É preciso entender, contudo, que os processos que determinam uma cisão não são
delimitados, portanto, o Arcadismo e o Romantismo caminharam juntos ainda por algum tempo
conforme esclarece Antônio Candido:
Devido à continuidade entre Arcádia e Romantismo, não espanta que tenha
havido um momento de transição onde os primeiros românticos parecem
árcades retardados, assim como alguns árcades pareciam românticos
antecipados. Apesar do manifesto de 1836, só dez anos depois surgem obras
que podem ser consideradas de fato românticas. (CANDIDO. 1999 p.38)
Evidentemente o romantismo estava mais carregado de ideias transformadoras, pois foi
um movimento incrustado num país independente. Mas a dialogicidade entre o romantismo e
o arcadismo especialmente na poesia traçou um percurso de produções literárias oscilantes
entre as estruturas perpetuadas pelo colonizador ao longo de praticamente dois séculos e o tom
revolucionário dos poetas que tencionavam desvestir a literatura do domínio deste colonizador
na perspectiva de uma língua e uma literatura nacional.
O romance como gênero surgiu no Brasil por volta de 1840, mas ascendeu um pouco
depois. Nas décadas de cinquenta e sessenta se pode falar com mais precisão de uma
representação romanesca com a publicação de, A Moreninha, de Joaquim Manoel de Macedo,
que marca a inventividade do romance urbano, aquele que vai descrever a vida urbana, os
costumes dos homens e das mulheres na corte. São romances que logo ganham o sabor de
serem devorados por um público que gostava de se ver representado na prosa romanesca.
No Brasil reconhecidamente como patrono do romance urbano, a crítica aponta, José
de Alencar, talvez por ter sido um escritor que não se abateu ao posicionamento ideológico das
elites, escreveu evidenciado os problemas humanos, sociais, econômicos de uma época, e
sobretudo defendendo a soberania nacional na produção literária.
Na década de setenta a modernidade dava indícios de efetividade tanto na economia,
quanto na produção literária. Anunciava-se uma era incomparável em termos de avanços
tecnológicos, as cidades começavam a se modernizar. No campo literário os primeiros
estudiosos em literatura inauguravam a tradição dos estudos literários, e como define Candido
(1999) “Havia inclusive um começo de amadurecimento na consciência crítica”.
O romance e seus trejeitos pendia para o regionalismo, talvez na expectativa de
descentralizar a produção literária dos centros, Bahia, Rio de Janeiro. Quem pontuou de forma
mais pertinente esse fato foi, Franklin Távora. Na década de setenta, Távora, tentou chamar
atenção da crítica ao que era produzido fora dos grandes centros. Contudo ainda hoje, se pode
dizer que este estigma não está rompido. Por isso, a necessidade de investigar obras produzidas
fora dos grandes centros, ou seja, as literaturas periféricas como ainda se pensa, por exemplo,
da literatura mato-grossense.
O período seguinte aproxima-se da queda da monarquia. Trata-se de uma mudança na
organização política de um país ainda jovem. As ideias abolicionistas suscitaram o surgimento
de romances como, Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães. Mas é de fato Machado de Assis
que inaugura a consolidação efetiva da literatura brasileira.
Machado foi um escritor versátil, soube lidar com as características dos mais diferentes
gêneros da literatura, e se acomodou também na crítica literária como ensaísta. Sua produção
emitia um olhar crítico sobre as contradições sociais. O próprio Antônio Candido categorizou,
Machado, como um escritor sempre “moderno”.
Machado representou a fase mais amadurecida da literatura brasileira, porque ele foi
também estudioso dela. A modernidade dos tempos machadianos já representava o surgimento
efetivo de uma crítica literária distinta. Nem por isso foram tempos suaves, as lutas ideológicas
se acentuaram e a narrativa romanesca absorveu de fato os contextos e transições literárias de
forma que o estudo sobre a escrita romanesca, o narrador, e a narrativa constituíram um campo
inesgotável de pesquisa desde então.
Entre as décadas de oitenta e noventa do século XIX o Parnasianismo e o Simbolismo
buscaram espaço na literatura brasileira, rompendo com os ideais românticos. Foram
movimentos que ascenderam mais as questões estruturais da língua, que as questões
ideológicas as quais tinham pontuado os românticos, portanto, embora não tenham
revolucionado a literatura brasileira como os românticos, permaneceram apoiados pela elite de
uma classe média que já fazia distinguir os rumos econômicos e literário no país.
Uma literatura elitizada originou um distanciamento entre as elites e o povo. Antônio
Candido num esclarecimento mais preciso diz que:
Do ponto de vista da literatura, foi uma barreira que petrificou a expressão,
criando um hiato largo entre a língua falada e a língua escrita, além de
favorecer o artificialismo que satisfaz as elites, porque marca distância em
relação ao povo; e pode satisfazer a este, parecendo admiti-lo a um terreno
reservado. (CANDIDO. 1999, p. 43).
A prosa romanesca essencialmente elitizada absorveu este hiato o que parece ter
agradado a elite brasileira naquele contexto.
Contra estes e aqueles, irromperam os modernistas, já em meados do século XX, assim
como o romantismo, o modernismo emanava uma carga revolucionária que suscitou na Semana
da Arte Moderna. Não foi um movimento que se apaziguou com os anteriores, foi antagônico
a muito do que se havia caricaturado como representação na literatura romântica.
O modernismo estrangulou as fronteiras entre os gêneros, e a prosa absorveu então,
outros gêneros literários. Por fim o romance moderno assimilou a ambiguidade da vida social,
já embrenhada no capitalismo porque o movimento, veio ancorado ao desenvolvimento da
indústria como consequência da guerra.
A modernidade transformou a cidade em lugar de trabalho. O trabalho por sua vez
compartimentou as relações. Mas o que é a cidade, senão um espaço onde o contraditório se
realiza. Ao mesmo tempo que suscita a aglomeração, irrompe com os vínculos, individualiza,
e como consequência desta individualização gera o desconhecimento do outro,
desconhecimento no sentido de que o outro se torna irreconhecível, logo sendo irreconhecível
não partilha da noção de comunidade. A cidade condensa a noção de uma homogeneidade.
Uma homogeneidade em fragmentos. A literatura trata desta noção representando personagens
em estado de isolamento, solidão, mesmo a pequena comunidade, a família, se despedaça neste
contexto, por isso, Santos (1999), define a cidade como a Babel moderna. Porque, entre outros
fatores, a comunicação na cidade torna-se inconciliável.
Dalcastagne, (2012) pontua a diferença da terminologia da palavra cidade, originária
do grego polis que contemplaria a ideia de sociabilidade, “lugar de encontro”. Mas tomando o
conceito de Babel, expresso por Santos (1999) a autora aponta para a imagem da “desarmonia
e confusão”, responsáveis pelo fascínio que a cidade exerce sobre as pessoas, o que justificaria
também o efeito “Babel”.
Segundo Dalcastagne “A narrativa brasileira contemporânea também paga seu tributo
a esse fascínio...”. O tributo é transformar a cidade, em personagem. Para Santos (1999) a
cidade não se resume ao um cenário. Em defesa desta ideia ele argumenta que “Nos mapas
literários, busca-se delinear a imagem urbana impossível; impossível porque não cabe na
imagem, porque procura constantemente deslocar as convenções que viabilizariam o
mapeamento. Mapa do que não é mapeável. Cartografia desafiada. (SANTOS, 1999, p.137).
Assim, para Santos(1999) o escritor da literatura contemporânea terá que considerar
os riscos ao produzir a significação do espaço urbano, porque é um espaço que oscila entre o
opacidade e a transparência, não basta reproduzir este espaço, é preciso cria-lo. Por isso diz
“cartografia desafiada”, porque embora o romance urbano configure a cidade enquanto
personagem, deve-se levar em conta o desvirtuamento da cidade como personagem passivo.
Posto que a cidade enquanto personagem se permite consumir e ser consumida conforme se
pode observar em “O Cambista” no seguinte trecho:
Voltou à poltrona para pegar o guia parisiense. Do sumário, percorreu os
endereços dos bares e discotecas. Não o agradaram muito. Tudo muito
limpinho, bem sofisticado. Ludmila que iria gostar dessa afetação, pensou um
instante. O que havia ali grafado como bordel era, na verdade, casas de show
para turistas. Nada disso interessava Erick, que pretendia a autenticidade
urbana daquela cidade famosa. Isso aqui é um teatro para apanhar nosso
dinheiro... (MAHON, 2014, p.18).
Considerando as diferenças terminológicas entre cidade e urbano, ainda que conceitos
indissociáveis, o urbano realiza-se efetivamente nas relações comerciais, porque o urbano
ocupa espaço no campo dos desejos, logo, a cidade encanta ou desencanta, impressiona, ou
não. Mas é o urbano que faz despertar o desejo, por isso, talvez a relação do urbano com a
mercantilização seja tão proeminente. O urbano é imaterial ao passo que a cidade é material,
com ruas, estacionamentos, espaços culturais. A cidade está permanentemente prenhe, carrega
no ventre, o embrião do urbano, como o lugar dos desejos. Portanto, a cidade é o chamariz,
conforme se verifica no seguinte trecho de “O Cambista”:
O chofer que ficou conversando longamente com Stern no bar do hotel, ligou
para a firma avisando que iriam chegar em vinte minutos e deu partida no
motor do carro. Vidros fechados ou abertos? procurou saber Pierre, Stern não
disse nada. Plum pediu que o vidro permanecesse abaixado. Queria ver a
efervescência que tanto diziam que era Paris. Mas não viu. Cidade suja, de
ruas estreitas, muito turista, nada de tão especial assim, concluiu em voz alta. (MAHON, 2014, P. 31).
Tendo o romance urbano a primazia de configurar na prosa o mundo circundante, em,
O Cambista, acontece a instauração de um mundo caótico. O romance é compreendido em
torno da lógica do negócio de penhores, contudo o que o depositante comercializa não é um
bem material, é um bem imaterial, ou seja, um segredo, que pode ser pessoal ou alheio. O
narrador em “O Cambista”, explica da seguinte maneira:
A base do negócio era a mesma do penhor qualquer pessoa, desde que fosse
maior de idade, poderia chegar à loja e contar um segredo para um vendedor,
que o avaliaria e o registraria, colhendo a assinatura do confidente, como era
chamado o cliente. Emitiam um documento, que era a apólice com nome,
número, endereço e faziam com que o confidente assinasse a via da empresa,
no campo ao lado do dia do resgate. Depois do prazo determinado pela loja,
ou o segredo era levantado ou se tornaria propriedade do dono do negócio,
que poderia fazer o que quisesse com a informação, inclusive vender para
terceiros. (MAHON, 2014, p. 25).
O segredo é a moeda de troca entre o desejo e a necessidade latente que impulsiona o
ser humano depois do advento do capitalismo, porque o mundo urbano desperta para as
necessidades e o ambiente da cidade favorece o consumo, assim se pode dizer que modernidade
instaurou ainda uma nova relação do homem com o espaço urbano, esta nova relação
representada na obra de Eduardo Mahon coloca essencialmente o homem, em condição de
mercadoria. O ambiente, cidade, na obra poderia representar uma grande metrópole de qualquer
país, por isso o romance não configura uma cidade ideal, o que a narrativa conforma, é a
experiência da vida urbana. O trabalho e a família estão engendrados em compartimentos, o
campo ético que determina as relações está comprometido e anui a total deterioração do ser
que busca apenas a satisfação do desejo ou da necessidade.
Em “O Cambista”, o desejo corresponde ao apagamento subsequente de qualquer
resquício da alteridade como sugere o seguinte trecho:
Depois que percebeu o potencial lucrativo da empresa, pensava em como ficar
rico. Rico não bastava. Pensava em ficar milionário, bilionário, trilionário. O
Sonho era torrar dinheiro. Ter tanto que não se importasse mais com ele”. (MAHON, 2014, p.35).
Contudo, a satisfação dos desejos não significa plenitude, ainda que perseguindo os
ideias capitalistas que direcionam o ser para o ter, quando o ser se depara com a futilidade da
satisfação de todos os desejos é que começa perceber a força da alienação social mistificada
por esses ideais, e no romance isto fica evidente nos seguintes trechos:
Olhou ao lado uma banheira de pedra em que cabiam quatro pessoas, nunca
havia sido usada. As toalhas que mandara a secretária comprar eram grandes
demais e, depois de molhadas, ficavam muito pesadas. Então pegava as
antigas, bem gastas...Seguiu para o quarto de vestir. Deparou-se com um
enorme closet repleto de sapatos de couro que, francamente, apertavam
demais o pé do rapaz. Ternos de lapela estrita, gravatas curtas de crochê e
cintos finos: tudo estava pendurado sem atenção de Erick Plum, que teimava
em usar jeans e camiseta e, por cima, uma camisa larga
desbotada...Prometeu-se que, naquele dia, nada iria estragar a sensação de
gozar a vida de rico. Sim fiquei rico, mas não aproveito nada, ruminou.
(MAHON, 2014, p. 124/125).
A consciência da futilidade imposta pelos ideais materialista desvela também a relação
entre o homem e a produção artística, embora a indústria cultural como fruto do capitalismo
tenha modificado a relação do homem com a arte, a arte não perdeu a essência, neste sentido,
embora o romance, como definiu Benjamin, não tenha o mesmo princípio das narrativas orais
com relação a noção de comunidade, no romance a noção de comunidade não deixa de existir
ela é estratificada pelo capitalismo, logo o romance como ecos da palavra impressa foi também
estratificado pelas novas conformações sociais. O romance expressa a partir de então a
consciência do mundo, e o mundo romanesco é uma configuração de máscaras. Assim, a
produção artística embora pareça ser influenciada pelos ideais do capitalismo não se deixa
perverter da sua função de trazer amalgamada na representatividade a essência humana.
O mundo configurado em “O Cambista” é um mundo que torna subversiva as relações.
A primeira relação estilhaçada, é a relação familiar. A família, tida como a primeira e mais
importante unidade da sociedade, representa neste caso o princípio da dissolução da estrutura
social. A Segunda relação fraturada corresponde, ás relações de trabalho que imbrica também
na relação ética, pois ambas, com o advento do capitalismo, passam a obedecer as lei do
mercado, e estas se sustentam pelo princípio da oferta e da procura. Talvez não aja lei mais
cruel que a esta, expressamente identificada na realidade que cerceia o romance, porque
ninguém é obrigado a nada, mas está sujeito a tudo. Por fim a relação mais sofrível, é a relação
que o homem precisa manter consigo mesmo, o homem tendo que lidar com a própria
consciência imerso num mundo em que os desejos são insaciáveis.
Todas estas relações amalgamadas no romance indicam a destituição total do homem
moderno da sua condição humana, o rompimento definitivo com a essência origina então a
fragmentação, a essência se reflete no conjunto de estilhaços, mas este conjunto não poderá
voltar a homogeneidade, o romance torna-se espaço de contradição, o mundo circundante é
contraditório, porque a modernidade é contraditória e porque contraditórios são os desejos que
movem cada ser humano.
Talvez se possa dizer que o romance urbano no contemporâneo é um experimento social
de como as pessoas lidam, com os dilemas, com o poder, com o dinheiro, com a solidão.
Quando em “O Cambista” se constitui a grande metáfora do segredo, o segredo representa o
que permanece oculto, ou seja a essência, por isso o personagem confessa “Todos nós
queremos ser o que aparentamos, mas dizemos muito mais por aquilo que escondemos”
(MAHON. 2014, p. 123). A essência está no oculto, o que permanece visível são as máscaras
e a máscara, é um instrumento de disfarce.
O contemporâneo está repleto de disfarces. O Filosofo Agamben, em “O que é o
contemporâneo” fala de uma provável incapacidade de enxergar o que está oculto, pois para o
filosofo o luzeiro que acomete a contemporaneidade representa o engodo que submete o
contemporâneo a imersão nas situações alienantes. Trata-se neste caso da desconstrução do
lugar da verdade, o filosofo atenta que a verdade está no obscuro, para isso é preciso neutralizar
as luzes. Assim, o espaço urbano em “O Cambista”, como representação destas situações
alienantes, não cintila apenas pela luz artificial da cidade, mas pelo desejo daquilo que é
artificial e sendo artificial, torna artificiais as relações, o segredo escapa à luz, por isso, o que
é contemporâneo, deve procurar a verdade no que está escondido. Assim Agamben
compreende, o que é contemporâneo, como aquele que desmistifica o que é apenas aparente,
para ele:
Isso significa que o contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o
escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele que
dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-
lo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de
‘citá-la’ segundo uma necessidade que não provém do seu arbítrio, mas de uma
exigência à qual ele não pode responder. É como se aquela invisível luz, que
é o escuro do presente, projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado
por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do
agora” (AGAMBEN, p.72).
Tomando o romance memorialista de Eduardo Mahon, como projeção do olhar que
reconhece o passado como o lugar de onde se poder ver as futuras, por intermédio de um
narrador que recupera em “O Cambista” a memória da experiência alheia, e, considerando a
singularidade consequente da modernidade, narra em acordo com as experiências humanas
vivenciadas neste mundo caótico, a configuração da memória remete à configuração do mundo
em estilhaçado. Segundo Halbwachs "...cada memória individual é um ponto de vista sobre a
memória coletiva, [...] este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e [...] este
lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios." (HALBWACHS,
1990, p. 51). Oras, o narrador presente em “O Cambista”, é também aquele que peregrina entre
o povo, logo narra conforme percebe a configuração do mundo, buscando trazer talvez a
compreensão sobre o caos. Pois a é memória coletiva, segundo Halbwachs, compreende a
memória de um grupo, logo memória se trata de uma memória consensualizada que faz gerar
as sementes da lembrança daquilo que foi experimentado por aquele grupo, o narrador narra
então recordações daquilo em que também foi ator.
Dito isto, convêm relembrar que a narrativa clássica era sustentada pelo campo
ético, por isso carregava as células embrionárias dos ensinamentos. O romance rompe com o
campo ético, estas células embrionárias são abortadas, o que sobra na narrativa romanesca é
esfacelamento. Walter Benjamin (1985), assegura que: “A arte de narrar está definhando,
porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção.” O romance vem confrontar
a verdade, e a veracidade implícita ao épico, é desconstruída no romance, a verdade do romance
é sempre duvidosa, embora o romance tem a pretensão de forjar a verdade.
A verdade está oculta no que é segredo, e descobrir o segredo é expor a verdade de cada
um, entre a manutenção do sigilo e o desvelamento dele, o romance Mahoniano constrói na
trajetória memorialística o lugar da verdade, que é o lugar onde se estabelece o oculto, ou seja
a essência.
Assim, temos em “O Cambista” a representatividade do urbano como lugar de
alienação, de onde não se pode ver a verdade ou onde a verdade está oculta, porque este espaço
urbano é permeado pelo desejo. A cidade, naturalmente indissociável do urbano corrobora com
os efeitos alienantes, ela tanto expõe aos olhos os objetos de desejo, quanto arrasta o homem
para a profundeza das necessidades. Se por um lado estes objetos frutos da alienação tornam-
se prioritários pela força do desejo, a frustração econômica inclina o homem à miséria.
Tanto o desejo quanto à necessidade destitui do homem a ética, logo fragiliza a noção
de comunidade, uma vez desconectado desta comunidade, o homem torna-se incapaz de
enxergar o outro, portanto, se não toma ciência da humanidade do outro, a verdade oculta torna-
se mercadoria. No romance, o que resta ao homem é negociar a alma, porque tudo mais já lhe
foi tirado, isto fica evidente no seguinte trecho:
Responda apenas isso: que mercadoria vamos comprar? O que vamos ter para
negociar? Poliadov abriu um sorriso macabro: almas. Vamos negociar as
almas, Greg somos a última alternativa para esses miseráveis; os clientes vão
deixar de fazer pactos com o diabo para começar a fazer conosco. (MAHON,
2014 p.214).
Contudo, há que se considerar que engendrada no romance, está a perspectiva de
envolver a comunidade humana, talvez caiba, ao gênero vincular nesta trajetória as sementes
da humanização. Neste caso o romance pode ser tomado como o farol que permite enxergar na
escuridão, desmistificando sinais alienantes que a sociedade não consegue reconhecer, devido
aos luzeiros consequentes do capitalismo brutal, que torna de fato miseráveis todos os homens.
Partindo dessa premissa, entenda-se então o romance como mecanismo que pode neutralizar
as luzes, como propôs o filósofo Giorgio Agamben, pois o romance permite ao homem inclinar
mesmo a vertebra renhida sobre tempo e enxergar na origem a possibilidade de reinterpretar o
que passou e o que ainda está por vir.
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