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Entre conflitos armados: memórias de descendente de gregos provenientes da Ásia
Menor
DIÓGENES NICOLAU LAWAND*
O interesse, por parte do pesquisador, pela população de etnia grega vinda ao Brasil, oriunda
da perseguição dos turcos que originou a “troca de populações” entre Grécia e Turquia na
década de 1920, é o que motivou a apresentação de parte da pesquisa.
1. O contexto histórico: a “Troca de Populações” entre Grécia e Turquia
A “Troca de Populações” entre Grécia e Turquia está no contexto do processo de
estabelecimento do Estado Nação Turco, a Turquia, e, contraditoriamente, da queda do
Império Otomano.
Essa contradição pode ser entendida pois o período é posterior ao final da Primeira Guerra
Mundial (que durou de 1914 até 1918), o que gerou o equacionamento geográfico pelos
interesses dos países líderes “vencedores” da guerra.
O Império Otomano foi derrotado na guerra, mas o discurso instituído foi que, com o fim da
guerra, a Grécia foi impetuosa para a conquista de territórios dominados pelo Império
Otomano. Territórios, estes, que estavam sob o domínio do Império Bizantino antes da
dominação Otomana (século XV), com a presença grega muito forte.
Outra perspectiva é que, como no genocídio Armênio, a população grega, nos territórios
dominados pelos Otomanos, foi exposta a violência e perseguição, particularmente a partir de
meados do século XIX.
Para nossa pesquisa é importante considerar que: a Igreja (Católica) Ortodoxa Grega foi um
elemento que possibilitou a unidade cultural da população de origem grega, durante o
domínio Otomano (do final do século XV em diante); a independência do território grego que
conhecemos atualmente se deu na década de 1820.
Voltando para a década de 1920, dois tratados indicam aspectos da configuração dos
territórios da Turquia e da Grécia, em relação às disputas internacionais e às disputas internas
* Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO) - USP e Secretaria da Educação do Estado de São Paulo
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de cada país (consolidando certos princípios dos ideais de Estado Nação). São eles: O Tratado
de Sèvres, assinado em 10 de agosto de 1920, entre os “vencedores” e o governo do que hoje
chamamos de Turquia, não ratificado e substituído pelo Tratado de Lausanne, assinado em 24
de julho de 1923. O primeiro possibilitava conquista de territórios por parte da Grécia. O
segundo, descaracterizando o primeiro, foi o que garantiu o estabelecimento do Estado
Nacional Turco, mantendo seu território herdado do Império Otomano. Em ALMEIDA
(2013) pode-se aprofundar tais questões.
Em 30 de janeiro de 1923, meses antes da assinatura do Tratado de Lausane, que estava em
preparação, há a assinatura da Convenção sobre a “troca de populações” gregas e turcas,
assinadas pelos governos da Grécia e da Turquia. Ela envolveu a troca de gregos cristãos, que
estavam em território do que conhecemos hoje como Turquia, por muçulmanos, que viviam
na Grécia.
Em maio de 1923 a “troca de populações” foi oficialmente iniciada. Mas, em relação à
população grega, o deslocamento já tinha iniciado na prática bem antes. Isto pelo estado de
violência e pânico levantado, até pelas condições vividas pelos Armênios.
2. O Pesquisador, sua Família e a Pesquisa
O interesse para tal temática tem base na vivência do pesquisador com sua família (Família
Perides), que tem sua origem em gregos que vieram ao Brasil no processo da “troca de
populações”. Em julho de 1923 a Família Perides, natural da cidade de Adana, chegou ao
Brasil, depois de passarem por outros países, estabelecendo-se na cidade de São Paulo. Cabe
destacar que, segundo CONSTANTINIDOU (2009), os gregos fazem parte da vida brasileira
há quase 180 anos.
A vivência do pesquisador foi ancorada em narrativas de sua mãe (Melpomene Perides
Lawand) que, com elas, enriquecia o pequeno cardápio tornando-os verdadeiros banquetes.
Não eram somente narrativas da “troca de populações”, envolviam as memórias de práticas
culturais. As vivências (escutas) influenciaram, mesmo que inconscientemente, o pesquisador
na escolha da carreira profissional: Graduação em História. O destaque é que a pesquisa sobre
a família não foi aberta, objetivamente, na graduação e nem no mestrado sobre Memória e
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ensino de História (LAWAND, 2004). Mas tais vivências geraram no pesquisador o interesse
por Memória e História Oral.
Como Professor de Ensino Fundamental e Médio, repercutiu a vivência e a formação
acadêmica, que possibilitaram o desenvolvimento da dissertação de mestrado (LAWAND,
2004).
Por fim, como o pesquisador está envolvido (sua mãe é a entrevista inicial, o ponto zero da
pesquisa; é descendente de gregos oriundos do processo de “troca de populações” e seu pai é
sírio), tomamos como referencial para esta questão os trabalhos de:
- NOVINSKY (2002):
“Do ponto de vista histórico há uma comunidade de destino da qual Míriam e eu
participamos. Sou descendente de imigrantes judeus. Por parte de pai, minha
família fugiu dos pogrons na Rússia e, por parte de mãe, do anti-semitismo na
Polônia. O pai de Míriam é judeu alemão que ficou preso, por algumas semanas em
Büchenwald, e depois fugiu para o Brasil. Sem dúvida essa “comunidade de
destino” foi uma circunstância que estimulou e facilitou nosso encontro e nossa
comunicação”.
- e de MACIEL (2013):
“Foi na convivência com as colaboradoras da minha pesquisa que, juntas,
construímos as narrativas que serão tomadas como corpus documental, a serem
interpretadas nesta pesquisa. A pesquisa em História Oral de Vida adotada foi
baseada na experiência de vidas de pessoas que vivenciaram seringais na
Amazônia, tendo sido concebida a partir da vivência estabelecida com minha avó
materna que, tendo habitado o espaço do seringal, me contava histórias que se
remetem a esse ambiente, como a história do seu avô que brigou com a onça, dentre
muitas outras. Embora a temática esteja ligada à minha afetividade, sua
representação envolve experiências de uma coletividade”.
3. História Oral e a Pesquisa
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O vínculo com o Núcleo de Estudos em História Oral da USP (NEHO), criado e dirigido pelo
Professor José Carlos Sebe Bom Meihy, levou o pesquisador ao aprofundamento dos
procedimentos em História Oral.
“Através dos séculos, o relato oral sempre constituiu na maior fonte humana de conservação
e difusão do saber, o que equivale a dizer sempre ter sido a maior fonte para as ciências em
geral”. (Maria Isaura Pereira de Queiroz apud MEIHY, 2002: 21)
A pesquisa é realizada a partir dos procedimentos de história oral desenvolvidos por MEIHY
(2002). Assim, estabelecemos que:
- A pesquisa tem o interesse de ouvir descendentes de gregos que vieram ao Brasil no
processo de “troca de populações” entre a Grécia e a Turquia.
- Queremos entender como tais imigrantes e seus descendentes construíram o cotidiano aqui
no Brasil.
- Situações de deslocamentos populacionais motivados por conflitos armados, que não
respeitam as crenças e as possibilidades de relacionamento humano com dignidade,
continuam a acontecer, e o caso atual na Síria é um exemplo comparativo para o caso da
“troca de populações” entre Grécia e Turquia.
Mas, tais populações, as que conseguem sobreviver, estabelecem cotidianos que podemos
analisar na perspectiva de análise de CERTEAU (1996 e 2001) e de CHARTIER (1991).
Cabe ressaltar que a pesquisa nasce pelo valor à memória compartilhada para a sociedade
contemporânea e para o conhecimento histórico. Neste sentido, conceitos que envolvem a
relação entre memória e história serão trabalhados.
- Obviamente é uma pesquisa com fins acadêmicos, entretanto a defesa que fazemos é que
toda pesquisa em história oral tenha um retorno para a comunidade. No nosso caso, temos
como foco “imigrantes” em geral, refugiados e sobretudo “imigrantes” e familiares que estão
no Brasil e tiveram que se submeter a “troca de populações” entre Grécia e Turquia.
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- As entrevistas construirão a tese de doutorado. Além disso, pretendemos a partir das
relações com as comunidades de imigrantes gregos desenvolver ações para a preservação de
suas memórias.
- Pretendemos a gravação em audiovisual, sem excluir a necessidade de pesquisa documental
a partir das necessidades que a pesquisa apresentar. Entretanto, será a partir das entrevistas
que a pesquisa será realizada.
Vamos trabalhar na perspectiva da História Oral de Vida: “trata-se de narrativa com aspiração
de longo curso (...) e versa sobre aspectos continuados da experiência de pessoas” (MEIHY,
2011: 82)
Estabelecida como ponto zero, entrevistada que estabelece relações para as entrevistas
posteriores, a entrevista inicial foi com Melpomene Perides Lawand, que é a mãe do
pesquisador. Os pais de Melpomene, originários de Adana (na Micrasia, como preferem
denominar a Ásia Menor), por força do acirramento de perseguições por parte dos turcos (eles
se consideravam gregos), se deslocaram para o Líbano, para Alexandria (Egito), passaram
pela Itália e de lá para o Brasil. Aqui no Brasil acolheram outros gregos, sobretudo familiares,
e a Igreja Católica Ortodoxa foi o local de desenvolvimento de relações entre estes
“imigrantes” e outros que viveram situações parecidas.
A partir da entrevista com Melpomene, solicitaremos que indique outro ou outros
entrevistados. Também, a comunidade da Igreja Católica Grega, da rua Bresser em São Paulo
(comunidade que a Família Perides esteve vinculada) será outra possibilidade de
relacionamento com possíveis entrevistados.
Assim, se dará a organização:
- da colônia: “o conceito colônia se liga exclusivamente ao fundamento da identidade cultural
do grupo” (MEIHY, 2002: 166);
- da formação da rede ou redes: “rede é uma subdivisão da colônia e visa a estabelecer
parâmetros para decidir sobre quem deve ser entrevistado e quem não se deve entrevistar”
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(MEIHY, 2002: 166). Opções como, entrevistar somente mulheres ou somente homens;
entrevistar mulheres e homens; entrevistar os mais velhos etc.
Sabemos que o trânsito será na comunidade grega ligada à Igreja Ortodoxa Grega de São
Pedro, na cidade de São Paulo. A procura é por descendentes de pessoas que viveram a “troca
de populações”. Assim, podemos ter um perfil para traçar a colônia. Mas, mesmo assim, o
estabelecimento de colônia e da rede (ou redes) se dará no processo da pesquisa.
A entrevista, tomando sempre como base MEIHY (2002) é uma etapa do projeto que possuí
três momentos: pré-entrevista, entrevista e pós-entrevista. Não estamos falando de entrevista
jornalística que o “furo” é o que importa. Não. Em história oral é a memória que importa.
O contato inicial com o possível entrevistado é importantíssimo para deixar claro o objetivo
da pesquisa. Não temos que esconder os objetivos. Não queremos pegar de surpresa o
entrevistado. Neste sentido, o conceito desenvolvido pelo Professor José Carlos Sebe Bom
Meihy é fundamental: o entrevistado é COLABORADOR. Ele deve estar presente em todos
os momentos da construção da narrativa. Não é objeto de pesquisa.
Não está em discussão a veracidade ou não da narrativa. É uma versão dos fatos. E daí a
importância de o Colaborador narrar do seu modo, com sua sequência. Os estímulos devem
produzir o efeito do Colaborador narrar.
Para isso o entrevistador deve desenvolver habilidades em saber ouvir o Colaborador. Com
atenção, respeito e respeitando as lágrimas e os silêncios, que são eloquentes. THOMPSON
diz: “Aprender a escutar é uma habilidade humana fundamental” (2006: 41 – 42). A história
oral não se faz sem a relação humana.
Em situação de entrevista, não podemos esperar a espontaneidade do Colaborador. Daí a
importância dos estímulos, de forma simples e sem atropelamento. Temos que ter abertura
para colocações do Colaborador, que não estão em nossos estímulos e não surgiu durante a
entrevista. Para isso, ao final da entrevista é necessário abrir a possibilidade para algo que o
Colaborador queira falar e não foi destacado durante a entrevista.
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Possibilitar, durante a entrevista, que o Colaborador em confiança compartilhe suas crenças e
suas verdades, seus sonhos e suas realizações. E muitas vezes, estes conceitos são
considerados outros pelo Colaborador. O que pensamos ser um sonho, por exemplo, para o
Colaborador foi ou é uma realização.
O pós-entrevista envolve uma série de ações em colaboração com quem concedeu a
entrevista, que denominamos de Colaborador:
- Transcrição; - Textualização; - Transcriação; - Conferência; - Autorização (Validação).
A transcrição é a ação de registrar por escrito o que foi gravado. Palavra por palavra, inclusive
as perguntas e interrupções. Com os erros gramaticais e as repetições. Na textualização,
elimina-se as perguntas e, sem descaracterizar o estilo do Colaborador, realizar uma correção
gramatical e o excesso de repetições. Por fim, a transcriação (baseada nos estudos de Augusto
e Haroldo de Campos) que expõe não a importância das palavras como elas foram ditas e sim
o significado no conjunto da mensagem. É do modo como é realizada a tradução.
Posteriormente, volta-se ao Colaborador e realiza-se a leitura do texto e, em processo de
negociação, altera-se o que o Colaborador considera inadequado. Assim, pode-se dar a
validação e a carta de cessão de autorização.
4. Memória e Temporalidades
A história oral potencializa trabalhos voltado à memória. Esta pesquisa estabelece diálogo
entre memória e história com diferentes autores.
Para GUARINELLO (1994), o historiador é um produtor de memória, e a produção
historiográfica faz parte da memória coletiva. A oposição entre memória e história oculta uma
outra oposição entre cultura erudita e cultura popular. É o mito de cultura erudita (ou
abastada) melhor que a cultura popular (ou corriqueira) - isto é cultura correta e cultura
incorreta.
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MENESES (1998) pensa que o historiador não tem a missão de produzir memória; no
entanto, ele trabalha com as memórias produzidas. A memória, segundo esse autor, não é
objetivo da história e sim objeto da história.
NORA (1993) apresenta diversas oposições entre memória e história, entre as quais a de que a
memória está em grupos vivos, enquanto a história é a reconstrução do que não existe mais. A
memória é um fenômeno atual. A história demanda análise e discurso crítico.
Na concepção do pesquisador, a memória é viva e a história pode ser o estudo científico do
passado, a partir das preocupações do presente. A memória vem à tona no presente e com
reflexões do presente. E a história estuda a memória. Não são opostas. Elas se integram.
Memória e história possuem a mesma matéria-prima, que é o passado. Portanto, a relação
entre tempo e memória fornece condições para entendermos os diversos conceitos de
memória.
Pierre LÉVY (2000) apresenta três temporalidades diferentes e coexistentes. Há a
temporalidade cíclica das sociedades de transmissão oral em que a palavra tem importante
função para a memória social. É o tempo do eterno retorno, o tempo circular em que a
preservação cultural é feita por meio da guarda de todas as aprendizagens na memória. É o
tempo da natureza. Há também o tempo linear e contínuo das sociedades da escrita, dos
calendários, das datas, dos anais e dos arquivos. É preciso estocar a memória. É o tempo do
relógio. Finalmente, o tempo pontual das sociedades informatizadas é o da memória curta,
que salta de um ponto a outro, organizado como rede.
Os vários tempos coexistem e isso pode ser notado com relação a diversos elementos que
apresentam marcas do tempo circular, do tempo linear e do tempo pontual. Vejamos um
exemplo:
Peter Pal Pealbart, em “Rizoma Temporal” (Educação, Subjetividade e Poder. Porto Alegre:
UFRGS, n. 5, vol. 5, p. 60-63, julho 1998),
“exemplifica a coexistência de tempos passados que se presentificam: um carro,
mesmo que contenha o futuro, na forma como é veiculado pela propaganda, contém
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tempos muito antigos, como a roda, a tecnologia do pneu, que foi descoberto há
mais de 10 mil anos. O tempo, portanto, que vai configurando uma Memória, com
as diferentes relações tecnológicas constituídas na História”.
As construções históricas se fazem em determinados tempos e lugares, assim como também
os conceitos de memória dependem do tempo e do lugar. Na contemporaneidade temos
sociedades em que a tradição oral não se subjugou frente à necessidade tecnológica do tempo
presente. As diversas culturas trazem em si diversas concepções de tempo e, portanto, de
memória. Na nossa pesquisa, a comunidade está em contexto de tempo da comunidade e
tempo exigido à comunidade.
5. Narrativas de Melpomene Perides Lawand
Vamos analisar algumas narrativas das memórias de Melpomene, nascida em 1928, sobre
situações da família nos conflitos armados, na cidade de São Paulo, em 1924 e 1932.
Considerando que o pesquisador realizou a entrevista com sua mãe, Melpomene Perides
Lawand refere-se às tias do pesquisador, que são irmãs dela, e tias dela, denominando-as
todas por Titia ou Titias; os avós do pesquisador, que são os pais dela, e as avós de
Melpomene, denominando-os como Vovó ou Vovô. Poderia esclarecer no próprio texto,
substituindo por “minha mãe”, “meu pai”, “minha avó”, “minha tia”, ou algo semelhante, que
a transcriação permite. A opção foi por não fazer para a demonstração da relação entre
Entrevistador/Filho e Colaboradora/Mãe. Vamos escutar uma parte da entrevista de
Melpomene Perides Lawand, em relação a Família Perides:
Eles vieram para o Brasil em 1923. Em 1924, a Titia Vitória já tinha nascido. Então,
moravam numa casa que o quintal... o... a cozinha ficava fora, num barracão. Então, a Vovó
Maria estava fazendo aquela comida, parece o didabur, que precisa mexer, com lentilha que
faz, mexendo enquanto cozinha para não queimar no fundo da panela. Se lembra daquela
sopa que eu fazia? Então a Vovó estava cozinhando lá. A Sogra dela, minha Avó, a Titia
Vitória, que era pequeninha, a Titia Athina estavam dentro de casa. Aí começou os aviões
desceram, fazer aquele barulho de avião, a Vovó Maria logo saiu da cozinha, largou, correu,
subindo para casa. Na hora que ela subiu caiu uma bomba que derrubou todo o barracão,
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panela de comida, tudo. A bomba. Ai! Quando o Vovô escutou, eles estavam na cidade, os
homens, logo que escutaram todos vieram. O Vovô Nicolau disse “Ah, vamos sair de São
Paulo, vamos sair de São Paulo”. Sabe, vieram de uma guerra lá, vêm aqui outra bomba!
Então, eles tomaram um trem, na Estação da Luz, foram para Campinas, toda a Família. E
justo estavam as minhas Tias Natália, Efrô e Olímpia, Irmãs da minha Mãe, da Penha vieram
visitar a Vovó e aconteceu isso, e o Vovô as pegou também e levou todo mundo para
Campinas. E foram num amigo deles, que tinha uma casa bem novinha ainda, recém
construída e mandou “Fica aí enquanto vocês estão de passagem, podem ficar morando.”
Olha só! Uma casa nova. Aí eles falavam “Não mexe, não desarruma, não sei o quê”.
Ficaram não sei quanto tempo lá. Logo em São Paulo, logo acabou bomba, tudo, terminou.
São Paulo já ficou em calmaria. Aí o Vovô disse: “Já que estamos aqui vamos passar uns
dias aí”. Só rindo! Olha!
Melpomene refere-se ao que alguns autores consideram como “Revolta Paulista de 1924” e
outros como “Revolução Paulista de 1924”. O evento foi um conflito armado, dentro do
contexto do Movimento Tenentista e luta contra o regime oligárquico brasileiro, e teve
duração de 23 dias. Segundo ASSUNÇÃO (2015) o conflito aterrorizou a população civil e
cerca de 300 mil pessoas saíram da cidade de São Paulo, refugiando-se no interior do Estado.
Um ano antes a Família Perides fixava-se na cidade de São Paulo, “imigrantes” perseguidos
em sua terra natal, vítimas de conflito armado. São, em 1924, vítimas também de conflito
armado em terra de imigração/refúgio. Os dois conflitos são semelhantes em relação à
constituição de Estado Nacional. Na terra natal era o estabelecimento do Estado Nacional
Turco, com a interferência de outros países o que gerou a questionável “troca de populações”.
No Brasil, já estabelecido o Estado Nacional, a luta era para definição de valores
republicanos, buscando apoio da população a violência aos civis, pensavam, estava
justificada.
A Família Perides é sobrevivente de ambos conflitos e criaram condições para desenvolverem
seus cotidianos. No caso específico, estabelecendo redes de sociabilidade onde encontraram
moradia na cidade de Campinas, por exemplo. Melpomene, nascida em 1928, narra os
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acontecimentos que lhe foram transmitidos pela oralidade. Isto não a distância do olhar, sobre
o mesmo evento, da pesquisa de ASSUNÇÃO (2015). Pela luta de poder “Nacional”,
podemos descartar a população. Finalizando com Melpomene, “só rindo. Olha!”
Mas temos memórias e narrativas de Melpomene de evento ocorrido após o seu nascimento.
O caso é relativo a Revolução Constitucionalista de 1932. Vamos escutá-la:
Em 1932 eu tinha três ou quatro anos. Só que teve a revolução aqui em São Paulo e a escola
que morávamos perto, na Rua São Caetano, foi tomada pelo quartel, o Grupo Escolar
Prudente de Moraes, aí não podia mais estudar. A Titia Athina e a Titia Vitória, minhas duas
Irmãs, ficaram um ano em casa. Então minha mãe pôs no Colégio São José, na Rua da
Glória, fica na Liberdade, e elas fizeram o primário lá. Tomava o bonde, dava a volta pela
Liberdade, pela Rua Libero Badaró, descia até na Rua da Glória, perto da Praça João
Mendes. E elas iam e voltavam de bonde, pequenas. Até o Quarto Ano do Primário elas
fizeram lá, mas ali aprende muito bordado. Podiam ir para o Colégio Santa Inês, que era
mais perto para nós, mas tinha que passar no Jardim da Luz. A Vovó não gostou. Tinha que
passar pelo Jardim da Luz, era perto não precisava de bonde. Aí ela preferiu o São José.
Tomavam bonde em frente da loja do meu Pai, na rua Florêncio de Abreu, naquele tempo.
Ele colocava no bonde e elas desciam perto do Colégio.
O objetivo da Revolução de 1932 era para que o Governo Provisória não se “eternizasse” no
poder, convocando uma Assembleia Constituinte. Militarmente os Paulistas forma derrotados.
Mas nas ideias saíram vencedores. Em 1934 a Constituição foi promulgada. O evento ainda
está envolvido na luta pelos valores republicanos, a partir de diversas perspectivas. Influiu no
cotidiano da população. Conforme a narrativa de Melpomene vemos a relação da influência
na educação escolar: Grupo Escolar, modelo dos ideais republicanos na educação escolar,
transformado em quartel militar. Cabe ressaltar que o Grupo Escolar referido, Prudente de
Moraes, tinha como nome inicial Escola Modelo da Luz.
Podemos refletir sobre a relação entre os modelos propostos pelos Estados Nacionais e o
cotidiano da população. Para isso tomamos os pressupostos teóricos da história cultural, em
Certeau (táticas) e em Roger Chartier (representação e lutas de representações). CERTEAU
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(2001: 100-101) apresenta as possibilidades dos sujeitos históricos, que apesar de estarem em
posições de não poder, possuem seus poderes:
“A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno
que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha (...) Tem que
utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na
vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar
onde ninguém espera. É astúcia.”
O cotidiano da Família Perides, depois de 9 anos de estabelecimento no Brasil, passa pelo
segundo conflito armado na cidade de São Paulo. Com as redes de sociabilidade, constroem o
cotidiano para a sobrevivência e no processo de inserção na sociedade brasileira, conforme
podemos verificar nas palavras de Melpomene sobre a educação escolar, salientando que a
educação escolar era uma referência importante para os republicanos, que na escola queriam
formar o cidadão. Entretanto, por força das opções (táticas) vinculam-se a uma escola
católica, vinculação que o discurso republicano queria acabar.
Família Perides, de etnia grega, no Brasil, relacionando-se com vários grupos da Igreja
Ortodoxa, no centro espacial dos conflitos armados indicados por Melpomene (bairro da Luz
na cidade de São Paulo), apropriando-se de elementos da cultura brasileira, construindo
representações (veja abaixo CHARTIER, 1991: 183-184), no narrar de Melpomene “Ele
colocava no bonde e elas desciam perto do Colégio”, o trajeto, o impulso foi dado pelos
sobreviventes da “troca de populações”.
“Uma dupla via abre-se assim: uma que pensa a construção das identidades sociais
como resultando sempre de uma relação de força entre as representações impostas
pelos que detêm o poder de classificar e de nomear, e a definição, de aceitação ou
de resistência, que cada comunidade produz de si mesma; outra que considera o
recorte social objetivado como a tradução do crédito conferido à representação que
cada grupo dá de si mesmo, logo a sua capacidade de fazer reconhecer sua
existência a partir de uma demonstração de unidade. Ao trabalhar sobre as lutas de
representação, cuja questão é ordenamento, portanto a hierarquização da própria
estrutura social, a história cultural separa-se sem dúvida de uma dependência
demasiadamente estrita de uma história social dedicada exclusivamente ao estudo
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das lutas econômicas, porém opera um retorno hábil também sobre o recorte social,
pois centra a atenção sobre as estratégias simbólicas que determinam posições e
relações e que constroem, para cada classe, grupo ou meio, um ser-percebido
constitutivo de sua identidade.”
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