a alienação e o ambiente virtual: das abstrações à consciência

44
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – USP ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES – ECA CURSO DE GESTÃO INTEGRADA DA COMUNICAÇÃO DIGITAL EM AMBIENTES CORPORATIVOS A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência FABIANA GHANTOUS São Paulo 2012

Upload: phamque

Post on 08-Jan-2017

219 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – USP

ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES – ECA

CURSO DE GESTÃO INTEGRADA DA COMUNICAÇÃO DIGITAL

EM AMBIENTES CORPORATIVOS

A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

FABIANA GHANTOUS

São Paulo

2012

Page 2: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

FABIANA GHANTOUS

A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

Monografia apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo em cumprimento parcial às exigências para obtenção do título de Especialista em Gestão Integrada da Comunicação Digital, sob orientação da Profa. Ms. Else Lemos.

São Paulo

2012

Page 3: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

FABIANA GHANTOUS

A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

Monografia apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo em cumprimento parcial às exigências para obtenção do título de Especialista em Gestão Integrada da Comunicação Digital.

Orientadora: Profa. Ms. Else Lemos

COMISSÃO EXAMINADORA

_______________________________________________

Assinatura: _____________________________________

_______________________________________________

Assinatura: _____________________________________

_______________________________________________

Assinatura: _____________________________________

São Paulo

2012

Page 4: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

AGRADECIMENTOS

Agradeço à Professora Else pela paciência, conselhos e apoio

nos momentos necessários.

Agradeço ao amigo Flávio que se pôs ao meu lado e muito

contribuiu para um melhor Abstract.

Agradeço aos meus irmãos, aos queridos amigos e ao meu

companheiro que, mesmo à distância, estiveram presentes –

graças às tecnologias digitais ou pelo sentimento e motivação –

e que compreenderam e respeitaram o período curto, porém

necessário, de isolamento e imersão nas abstrações do mundo

simbólico da linguagem escrita.

Agradeço especialmente aos meus pais que me acolheram e

proporcionaram o ambiente perfeito para estar alheia à

homeostase básica e mergulhada nos sentidos da consciência,

necessidades dessa primeira jornada monográfica.

Page 5: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

“Não é este ainda o meu poema o poema da minha alma e do meu sangue

não eu ainda não sei nem posso escrever o meu poema

o grande poema que sinto já circular em mim

O meu poema anda por aí vadio no mato ou na cidade

na voz do vento no marulhar do mar no Gesto e no Ser.

O meu poema anda por aí afora

envolto em panos garridos vendendo-se

vendendo “ma limonje ma limonjééé”

(...)”

António Jacinto, Poema de Alienação

Page 6: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

RESUMO

Este estudo pretende compreender a relação entre o processo de alienação humana

e o ambiente virtual a partir das análises dos conceitos de alienação, tecnologia

como extensão do homem, cibercultura, sociabilidade e socialidade, consciência e

tautismo. O processo de alienação humana, ou seja, o processo de transferir para

fora de si a propriedade de partes ou funções do homem, está presente no

desenvolvimento da humanidade, desde a subjetivação até a produção de cultura. A

criação de tecnologias não escapa a isso. Infiltradas na vida pós-moderna, as

tecnologias digitais a representam quase em sua totalidade. Estão nas relações do

homem com o homem e do homem com a natureza. São a extensão do homem no

mundo e daquilo que nos é mais abstrato, nossa subjetividade. A alienação humana

no ambiente virtual pode ter como consequência a alienação dos sistemas

responsáveis pela manutenção da vida humana, e essa constatação dá maior

relevância à questão.

Palavras-chave: alienação; tecnologia de mídias digitais; virtual; cibercultura;

sociabilidade; socialidade; consciência; tautismo.

Page 7: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

ABSTRACT

This study aims to understand the relationship between the process of human

alienation and the digital age, from the analysis of the concepts of alienation, of

technology as an extension of human beings, cyberculture, sociability and sociality,

consciousness and tautism. The process of human alienation is present in the

development of humanity, from subjectivity to culture production. The invention of

technology is no exception. Digital technologies are interlocked in postmodern life in

such a way that they almost represent it entirely. They are present in the relationship

among humans and between humans and nature. They are the extension of human

activities in the world, and of what is most abstract in humanity: subjectivity. Human

alienation in the digital age may also cause alienation of the systems responsible for

the maintenance of human life. This finding enhances the relevance of the issue.

Keywords: alienation; digital technologies; virtual; cyberculture; sociability; sociality;

consciousness; tautism.

Page 8: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

SUMÁRIO

Introdução ... 10

Alienação ... 14

Origem Etimológica e Conceituação ... 14

Tecnologias de Mídias Digitais e o Ambiente Virtual ... 20

O conceito de Tecnologia e as Mídias Digitais ... 20

Cibercultura e Sociabilidade (ou Socialidade) ... 23

A Alienação e o Ambiente Virtual ... 27

Alienação e Tecnologias de Mídias Digitais, Cibercultura e Socialidade ... 27

A Consciência na Alienação em Ambientes Virtuais ... 35

Considerações finais ... 40

Referências ... 42

Page 9: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

"Sua condição é a de um homem que apenas adormeceu ao amanhecer: primeiro, tem ótimos sonhos; depois, uma sensação de preguiça; e, finalmente, uma desculpa perfeita para continuar na cama." Søren Kierkegaard, em The Present Age – On the death of rebellion (tradução nossa)1

1 Do original: “Its condition is that of a man who has only fallen asleep towards morning: first of all come great dreams, then a

feeling of laziness, and finally a witty or clever excuse for remaining in bed.”

Page 10: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

10

INTRODUÇÃO

A palavra alienação, na língua portuguesa, traz hoje forte carga pejorativa e

estreita relação com loucura, demência. Entende-se por ser humano alienado aquele

que perdeu a sua racionalidade, que está absorto e alheio de sua condição

sociocultural. Entretanto, o processo de alienação humana está presente no

desenvolvimento da humanidade, desde a subjetivação até a produção de cultura e

tecnologia.

No início deste estudo havia uma percepção: existe comportamento alienado no

ambiente virtual, no uso das tecnologias de mídias digitais. Mas era uma percepção

etérea, sensitiva, vinda do choque ao se ouvir tantas vezes exclamações de

surpresa sobre o que há por trás dessas tecnologias e como elas funcionam, sobre o

quanto estamos expostos nelas e reféns a elas, sobre a quantidade de informações

que salpicamos por onde passamos virtualmente, sobre a facilidade com que se

pode juntar todas essas informações e o que pode ser feito com tudo isso por

aqueles que tiverem acesso, poder. Muitas vezes, essas exclamações de surpresa

eram transformadas em feições de ira quando arrematava – com um certo grau de

agressão, confesso – que as centenas (ou milhares) de amigos coletados nas redes

sociais digitais não eram de fato amigos.

A impressão que havia era de que o uso das tecnologias digitais era instintivo,

para satisfazer impulsos de necessidades individuais, sem reflexão ou consciência

dos sentidos e consequências. A ironia de Dostoiévski na leitura de Memórias do

Subsolo (2000) apenas reforçou a sensação. Não se trata apenas do estar alheio,

mas do fato de perdemos a referência com relação ao sentido das ações e

comportamentos no que diz respeito ao ambiente virtual.

Repito, repito com insistência: todos os homens diretos e de ação são ativos justamente por serem parvos e limitados. Como explicá-lo? Do seguinte modo: em virtude de sua limitada inteligência, tomam as causas mais próximas e secundárias pelas causas primeiras e, deste modo, se convencem mais depressa e facilmente que os demais de haver encontrado o fundamento indiscutível para a sua

Page 11: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

11

ação e, então, se acalmam; e isto é de fato o mais importante. (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 29)

Essa percepção era seguida da indignação: mas como se pode ser tão alheio a

coisas que dizem respeito a si, à sua individualidade? A extensão de partes do ser

humano ou de suas habilidades através de uma tecnologia e a posterior alienação

daquilo que foi estendido já foi descrito por McLuhan (1969). Poucos sabemos, por

exemplo, de todos os mecanismos que implicam no funcionamento de um

automóvel, principal extensão do sistema de locomoção do ser humano na

atualidade. Mas se trata de extensão de uma parte física do homem e não

chegamos a substituir completamente nossas pernas e pés por essa tecnologia. E

mesmo quando isso fazemos, como na utilização de próteses e pernas mecânicas,

não se perde a referência de que aquilo é uma prótese ou perna mecânica, que se

trata de uma representação do corpo.

As tecnologias de mídias digitais estão presentes em todas as relações da

sociedade pós-moderna. Não apenas nos meios de transmissão de informações,

mas também nas transações econômicas, nos controles de transporte, nos acessos

aos ambientes públicos e privados, nos relacionamentos dos cidadãos com o

estado, dos clientes com as empresas, dos amigos e familiares entre si. É a

digitalização do homem no mundo, a virtualização das relações do homem com o

homem e do homem com a natureza, virtualização do que nos é mais abstrato,

nossa subjetividade. A alienação no ambiente virtual é a alienação dos sistemas

responsáveis pela manutenção da vida humana e isso traz maior peso para a

questão. Ficamos vulneráveis a possíveis manipulações daqueles que se

apropriarem do que alienamos.

Esse estudo se propõe a elaborar um panorama geral e uma análise introdutória

desse contexto, ou seja, a perceber o processo de alienação humana no ambiente

virtual. O tema, por enquanto, conta com escassa referência direta. Portanto, é

tarefa um tanto ambiciosa e cuja relevância reside no fato de apontar as

características e motivações da alienação em ambiente virtual e contribuir para a

reflexão sobre os impactos do ambiente virtual na humanidade e iniciar um possível

caminho para futuras análises e aprofundamentos na construção do entendimento

da alienação do homem no ambiente virtual.

Page 12: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

12

O estudo pretende identificar como o processo de alienação está presente no

uso das tecnologias digitais e se existem características comuns ao processo de

alienação e ao ambiente virtual que facilitam, fomentam ou aceleram o

desenvolvimento de ambos. Ainda objetiva investigar as formas da alienação

humana no ambiente virtual e as motivações para que isso aconteça, sugerir

consequências da inserção alienada no ambiente virtual e apontar possibilidades

para que o processo se dê de forma positiva.

Para tanto, o estudo tem forma de ensaio, vale-se de conhecimento prévio e da

exploração bibliográfica hipotético-dedutiva e pretende refletir sobre o tema com

base na Cibercultura e em estudos desenvolvidos nas áreas da Filosofia, Psicologia,

Sociologia, Comunicação e Neurociência.

A seleção de autores delimita a estrutura do estudo e foi feita a partir de

conceitos analisados pelos autores que poderiam de alguma forma se relacionar

com os conceitos de alienação humana e de ambiente virtual e respaldar a linha de

argumentação do estudo. Por isso, Karl Marx (apud MÉSZÁROS, 2006), István

Mészáros (2006), Newton Duarte (2004), Marshall McLuhan (1969), Michel Maffesoli

(2010), António Damásio (2011) e Lucien Sfez (2007) sustentam o eixo norteador do

estudo, que transpassa os paradigmas Conflitual-Dialético, Culturológico,

Midiológico, da Pós-Modernidade e Horizontal-Interacionista.

Marx é escolhido por sua reconhecida teoria de alienação humana, Mészáros

pelo estudo que fez dela e Duarte pela sua contextualização psicológica e

comportamental. McLuhan sustenta o conceito de tecnologia como extensão do

homem e do meio como mensagem, e tudo que se desdobra desses conceitos.

Maffesoli surge para explicar as motivações do ser humano na pós-modernidade,

com seus conceitos de sociabilidade e socialidade. Damásio faz a ponte da

sociologia e psicologia para a biologia na explicação da consciência humana. E Sfez

traz o termo “tautismo” para o contexto cibercultural da comunicação, e que será

relacionado com consciência no ambiente virtual.

O estudo é dividido em três capítulos. O primeiro busca compreender as origens

do conceito de alienação e descrevê-lo tendo como referência definições

etimológicas e teorias filosóficas e psicológicas desenvolvidas a partir do conceito. O

segundo capítulo destina-se a descrever o ambiente digital a partir da definição de

Page 13: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

13

tecnologia de mídias digitais, tendo como referência teórica o autor McLuhan, e a

analisar as características da cibercultura, da sociabilidade e da socialidade

buscando respostas para as motivações do usuário com relação a essas

ferramentas tecnológicas.

O terceiro e último capítulo é o que se depreende dos capítulos anteriores. Nele,

relaciona-se o conceito de alienação aos conceitos de tecnologia, cibercultura e

socialidade. Para isso, vale-se de estudos e exemplos do comportamento humano

no uso de tecnologias digitais. Além disso, tendo como referência o autor Damásio,

discute a relação da consciência no processo de alienação em ambiente virtual e a

relaciona ao conceito de tautismo, cunhado por Sfez.

Por ser um estudo introdutório do tema, pretende-se concluir, com base em tudo

que foi referenciado anteriormente, se de fato há alienação no comportamento

humano em ambiente cibercultural. Também tenciona compreender os processos,

características e motivações que constroem esse cenário e apontar possíveis

caminhos para que o processo se conclua de forma a contribuir para a evolução da

humanidade. O objetivo primordial deste estudo é formar o primeiro degrau, ou

camada de abstração, em direção a futuras análises do tema.

Page 14: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

14

1. ALIENAÇÃO

1.1 Origem Etimológica e Conceituação

A palavra “alienação” tem origem etimológica no Latim (alienatio, -onis), derivada

do adjetivo alienus (relativo ao outro, no Português: alheio), e significa a ação de

transferir para outrem o domínio de alguma coisa.

O Dicionário Michaelis (1998-2007) atrela algumas definições à palavra: 1 Ação

ou efeito de alienar; alheação. 2 Cessão de bens. 3 Desarranjo das faculdades

mentais. 4 Arrebatamento, enlevo, transporte. 5 Indiferentismo moral, político, social

ou mesmo apenas intelectual. Alienação mental: loucura.

Alienado seria o objeto da ação de alienação. Ou seja, aquilo cujo domínio foi

transferido para outrem. Michaelis o define enquanto adjetivo como: 1 Transferido ou

cedido a outrem. 2 Afastado, desviado, separado. 3 Arrebatado, absorto, enlevado. 4

Endoidecido, enlouquecido. E, como substantivo: Indivíduo atacado de alienação

mental.

Neste estudo, trataremos do ser humano como objeto da alienação, seja

alienando a si próprio ou sendo alienado por outrem. Algumas ciências da

humanidade valeram-se de um conceito de alienação para compreender processos

ou situações humanas. Na Psiquiatria, o surgimento do conceito de alienação

humana está estritamente relacionado à apropriação, definição e categorização da

loucura. Ela deixa de atuar no campo místico para estar relacionada à racionalidade

humana, ou ainda, à perda desta.

A história da loucura nos séculos XVIII e XIX é quase sinônimo da história de sua captura pelos conceitos de alienação e, mais tarde, de doença mental. (...) No processo de apropriação da loucura pela medicina o conceito de alienação tem um papel estratégico, no momento em que torna-se sinônimo de erro; algo não mais da ordem do sobrenatural, de uma natureza estranha à razão, mas uma desordem desta. A alienação é entendida como um distúrbio das paixões humanas, que incapacita o sujeito de partilhar do pacto social. Alienado é o que está fora de si, fora da realidade, é o que tem alterada a sua possibilidade de juízo. (TORRE & AMARANTE, 2001, p.74-75)

Page 15: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

15

Na Filosofia, o principal autor de um conceito de alienação humana é Karl Marx.

Sua teoria de alienação estrutura a defesa marxista das relações de dominação

humana na sociedade capitalista. O filósofo húngaro István Mészáros (2006), em A

Teoria da Alienação em Marx, discorre introdutoriamente sobre as origens do

conceito. Segundo o autor, a problemática está presente em textos bíblicos, na

literatura e em tratados sobre direito, economia e filosofia, perpassando o

desenvolvimento europeu desde a escravidão até a era de transição do capitalismo

para o socialismo.

No mundo antigo, Aristóteles (apud MÉSZÁROS, 2006) cunhou os conceitos de

“liberdade por natureza” e “escravidão por natureza”, em concordância com a

necessidade ideológica predominante da época. Era necessário justificar a

dominação de escravos e, para isso, diferi-los dos homens livres. O escravo era

alienado, mas não era considerado homem, mas, sim, “simples coisa, um

instrumento falante” (p. 42). O mesmo que dizer que era desprovido de razão,

daquilo que o definiria como humano.

A inter-relação de uma consciência da alienação e da historicidade da concepção de um filósofo é necessária devido a uma questão ontológica fundamental: a “natureza do homem” (“essência humana” etc.) é o ponto de referência comum a ambas. Essa questão ontológica fundamental é: o que está de acordo com a “natureza humana” e o que constitui uma “alienação” da “essência humana”? Essa pergunta não pode ser respondida a-historicamente sem ser transformada numa mistificação irracional de algum tipo. (MÉSZÁROS, 2006, p. 42)

No cristianismo, a alienação do homem com relação a si próprio e com relação à

natureza dava-se em prol de um ser superior. Segundo Mészaros (2006), é “função

essencial das mitologias transferir os problemas sócio-históricos fundamentais do

desenvolvimento humano para um plano atemporal, e o tratamento judaico-cristão

da problemática da alienação não é exceção à regra geral.” (p. 40).

Ou seja, a alienação era fundamentada na mistificação para justificar o

“injustificável” – o escravo não é um homem – e transferir as questões problemáticas

do desenvolvimento das sociedades para além do homem. A alienação era uma

necessidade provocada pela pressão de responder a algo que o homem não

suportava apenas com seus conhecimentos e racionalidade. Como consequência,

Page 16: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

16

essas questões ficavam confinadas a um plano além da responsabilidade humana,

resguardadas de uma discussão política, racional.

Na sociedade feudal, objetos e propriedades podiam facilmente ser alienados de

uma pessoa para outra. Mas o ser humano, para ser dominado por outro, precisava

primeiramente ser “reificado”, isso significa, transformado em coisa. Ele precisava

aceitar ser o servo de um senhor, em troca de salário, moradia. Aqui, temos a

autoalienação e ela acontecia por meio de um “contrato”. O homem escolhia alienar-

se para outro, mesmo que uma análise mais profunda coloque em questão a

relatividade de escolhas que havia ou o grau de consciência existente na ação.

A principal função do tão glorificado “contrato” era, portanto, a introdução (...) de uma nova forma de “fixidez” que garantisse ao novo senhor o direito de manipular os seres humanos supostamente “livres” como coisas, objetos sem vontade própria, desde que estes “escolhessem livremente” celebrar o contrato em questão, “alienando voluntariamente aquilo que lhes pertencia”. (MÉSZÁROS, 2006, p. 38)

Ainda segundo Mészáros, “o olhar de Rousseau para os múltiplos fenômenos da

alienação e da desumanização é mais agudo do que o de qualquer outro, antes de

Marx.” (2006, p. 57). Rousseau descrevia duas possibilidades de alienação do

homem sobre si próprio: “dar” ou “vender”. A primeira era considera nobre, aquele

que “dava” a própria vida, em defesa de seu país, por exemplo. A segunda, como

condenável, o mercenário, que se vendia em troca de lucro.

O conceito de alienação humana de Marx, segundo Mészáros (2006), é o

primeiro a considerar o contexto de desenvolvimento histórico-social da humanidade

e parte da contradição entre parcialidade e universalidade. A parcialidade do

interesse pessoal capitalista transformado no princípio universal dominante. “A

novidade histórica da solução de Marx consistia em definir o problema em termos do

conceito dialético concreto de “parcialidade predominando como universalidade””

(MÉSZÁROS, 2006, p. 36).

O caráter contraditório do mundo já está no centro da atenção de Marx quando ele analisa a filosofia epicurista. Ele ressalta que Epicuro está principalmente interessado na contradição, que ele determina a natureza do átomo como inerentemente contraditória. E é assim que o conceito de alienação surge na filosofia de Marx, ressaltando a contradição que se manifesta na “existência alienada de sua essência”: “Por meio das suas qualidades o átomo adquire

Page 17: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

17

uma existência que contradiz sua ideia; ele é posto como um ser alienado, separado de sua essência”. (MÉSZÁROS, 2006, p. 68)

O motor da alienação humana, para Marx, era a vendabilidade universal, que

transformava o homem em:

(...) objetos alienáveis, vendáveis, em servos da necessidade e do tráfico egoísta. A venda é a prática da alienação. Assim como o homem, enquanto estiver mergulhado na religião, só pode objetivar sua essência em um ser alheio e fantástico; assim também, sob o influxo da necessidade egoísta, ele só pode afirmar-se a si mesmo e produzir objetos na prática subordinando seus produtos e sua própria atividade à dominação de uma entidade alheia, e atribuindo-lhes a significação de uma entidade alheia, ou seja, o dinheiro. (MARX, 1963 apud MÉSZÁROS, 2006, p. 39)

O aumento da complexidade, ou abstração, das relações também é

característica importante no processo de alienação. A especialização do trabalho e

as relações decorrentes, como troca, invenção da moeda, produção de mercadorias

e venda da força de trabalho, culminaram na possibilidade de acumulação de

capital, mas também destruiu progressivamente a relação trabalho-propriedade ao

distanciar o homem das suas relações primitivas com a natureza. Seja alienando o

trabalho da propriedade dos meios de produção e seu resultado, seja o inverso:

Esse distanciamento toma a forma de uma progressiva separação entre o trabalho livre e as condições objetivas de sua realização – os meios de trabalho e o material de trabalho. (...) Essas relações finalmente são postas a nu com o capitalismo, quando o trabalhador é reduzido a nada mais que força de trabalho e, podemos acrescentar, a propriedade se reduz a um controle dos meios de produção totalmente dissociado do trabalho (...). (HOBSBAWN, 2011, p. 125-126)

Aleksei Nikolaevich Leontiev empregou o conceito marxista de alienação

humana na Psicologia. Newton Duarte (2004) analisa os aspectos da obra do

psicólogo soviético que desenvolvem o conceito e o atrelam a questões da natureza

humana. O primeiro deles é aquilo que diferencia o ser humano das outras espécies

animais: o processo histórico de construção da cultura.

Na natureza não há liberdade, o que existe é a necessidade, “os processos

causais, espontâneos, imanentes, dos quais está ausente a ação movida por

objetivos conscientes” (DUARTE, 2004, p. 47). E o que produz essa historicidade, o

Page 18: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

18

que move a história humana, é a atividade do ser humano. Diferentemente da

atividade animal, a atividade humana não é apenas para satisfação das

necessidades, mas também para a produção dos meios de satisfação dessas

necessidades.

A atividade de produção dos meios faz surgir novas necessidades, não mais

“imediatamente ligadas ao corpo humano como fome, sede etc., mas necessidades

ligadas à produção material da vida humana” (DUARTE, 2004, p. 49). Além disso, as

atividades humanas sempre foram coletivas. Ou seja, o desenvolvimento histórico

do ser humano não apenas o leva a produzir instrumentos, mas também a produzir

suas relações sociais.

Os instrumentos e as relações ganham existência objetiva e a atividade do ser

humano é transferida para o produto da atividade anterior. “Aquilo que antes eram

faculdades dos seres humanos se torna, depois do processo de objetivação,

características por assim dizer ‘corporificadas’ no produto dessa atividade”

(DUARTE, 2004, p. 49-50). Seria a “reificação” de subjetividades humanas, e esse

processo é “o processo de produção e reprodução da cultura humana (cultura

material e não-material), produção e reprodução da vida em sociedade” (DUARTE,

2004, p. 50).

O processo de objetivação da cultura humana desencadeia também o processo

de apropriação dessa cultura pelos indivíduos. É a relação do indivíduo com a

história social, mesmo que se dê de forma não consciente (como, por exemplo, a

apropriação da linguagem oral pela maioria das pessoas). “O indivíduo forma-se

apropriando-se dos resultados da história social e objetivando-se no interior dessa

história” (DUARTE, 2004, p. 51). Mas, para não sucumbir à dominação é preciso ser

um processo consciente e representativo da coletividade:

Uma das maneiras como pode ser entendido o conceito de Marx é justamente a de que o gênero humano constrói sua liberdade à medida que os processos sociais sejam fruto de decisões coletivas e conscientes, diferenciando-se dos processos naturais espontâneos e superando os processos sociais alienados nos quais aquilo que é social, e portanto criado pelos próprios seres humanos, domina estes como se fossem forças naturais incontroláveis (...). (DUARTE, 2004, p.47)

E ter sua matéria apropriada por todos, não apenas por uma parte:

Page 19: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

19

(...) a temática da alienação nos trabalhos de Leontiev é a criação de obstáculos, por parte da sociedade capitalista, à apropriação da cultura humana pelos indivíduos (...) trata-se da apropriação privada da cultura material e intelectual produzida coletivamente e que deveria constituir-se em patrimônio de todos os seres. (DUARTE, 2004, p. 59-60)

Portanto, a alienação humana não é uma novidade, seja ela imposta ou

escolhida, seja de seu corpo físico ou de sua subjetividade. É um processo que faz

parte da produção de cultura humana, que acompanha e fomenta o desenvolvimento

da humanidade, para o bem ou para o mal.

Page 20: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

20

2. TECNOLOGIAS DE MÍDIAS DIGITAIS E O AMBIENTE VIRTUAL

2.1 O conceito de Tecnologia e as Mídias Digitais

Para Marshall McLuhan (1969), tecnologia é a necessidade humana de estender

funções, ou partes, de seu corpo que não mais conseguem corresponder à demanda

existente. O homem, sempre que submetido a uma grande pressão que satura um

determinado órgão, prolonga esse órgão para além de seu corpo, em um

instrumento, ou melhor, em uma tecnologia.

Para McLuhan (1969), é isso que alimenta o avanço tecnológico. A roda, a

cidade murada e a imprensa são exemplos disso, pois são resultado da saturação

do sistema locomotivo próprio do ser humano; da pele que limita e protege todo o

organismo e funcionalidades do corpo; e da reprodução da linguagem escrita. Nesse

processo, também ocorre uma autoamputação. O sistema nervoso central protege o

corpo isolando o órgão alvo da grande pressão, hiperestimulado ou demandado, e o

substitui pela tecnologia recém-criada.

“O princípio da auto-amputação (...) se aplica à origem dos meios de

comunicação, desde a fala até o computador” (MCLUHAN, 1969, p. 61). E essas

mídias de comunicação já criadas pelo ser humano, devido ao princípio de

autoamputação, provocaram com o seu uso diversas transformações na relação do

homem com a comunicação. Transformações tanto no que diz respeito ao novo

meio, afinal, como já disse McLuhan, “o meio é a mensagem” – ou também é a

mensagem –, quanto no que diz respeito às funções primordiais da comunicação e

àquilo que era a demanda inicial e que provocou o surgimento da nova tecnologia.

Sherry Turkle (2011) relata que quando surgiram os primeiros “cyborgs”2 nos

corredores do MIT em meados dos anos 90, dizia-se que podiam ser vistos como

exóticos mas que aquilo era “apenas uma ferramenta” para o homem estar melhor

preparado e organizado em um mundo cada vez mais complexo e informacional. “O

2 Jovens pesquisadores do MIT Media Lab que andava munidos de computadores e transmissores de rádio em suas mochilas,

teclados em seus bolsos e visores digitais em lentes de óculos. Estavam sempre conectados à Internet sem fio e se

autointitulavam “cyborgs”.

Page 21: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

21

cérebro precisava de ajuda” (TURKLE, 2011, p. 151). Ou estava saturando, sofrendo

forte pressão externa por maior velocidade no processamento de dados e pedindo a

autoamputação dessa função.

Como processamos os dados, como os correlacionamos, como se produz a

consciência e quais são os seus diferentes níveis, são questões do cérebro humano

que ainda estão sendo pesquisadas pela ciência. O que se sabe é que se trata de

um processo complexo: “O produto final da consciência provém desses numerosos

locais do cérebro ao mesmo tempo (...)” (DAMÁSIO, 2011, p. 39). A extensão do

cérebro pode ser entendida como a extensão daquilo que nos é mais abstrato: a

nossa subjetividade.

Tim Berners-Lee (2007) ressalta que o progresso nas tecnologias de

comunicação tem como característica o constante aumento de seu nível de

abstração, ou seja, está sempre sobrepondo camadas entre o significado e o sentido

da ação (DUARTE, 2004). Passamos da conexão entre computadores para a

conexão entre documentos, e agora estamos chegando na conexão das “coisas”. Ou

seja, passamos da Internet para a World Wide Web, e agora chegaremos à Web

Semântica.

A Web Semântica é uma extensão da Web que vivenciamos hoje, já está em

desenvolvimento e tem como objetivo proporcionar às máquinas maior capacidade

de processar e “entender” os dados que foram simplesmente inseridos na web

(BERNERS-LEE; HENDLER; LASSILA, 2001). É a necessidade não só de dar

significado, mas também sentido, à enorme quantidade de dados colecionada desde

o início da era de conexão de documentos, a World Wide Web.

Porém, esse “entender” das máquinas esconde o que de fato significa: uma

combinação de algoritmos definidos por humanos e atribuídos às coisas para

significá-las e correlacioná-las segundo o seu entendimento (TURKLE, 2011). Ou

seja, restringe o entendimento ao ponto de vista daquele que definiu as correlações.

Pierre Lévy (2009) entende que os maiores avanços na cognição humana são

relacionados à invenção de novos meios e sistemas simbólicos, a partir da

apropriação destes pelo ser humano. Essa apropriação não acontece imediatamente

após o surgimento do novo meio ou sistema simbólico, portanto, ainda não

Page 22: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

22

vivenciamos todas as possibilidades de cognição que podem ser proporcionadas

pelo surgimento dos computadores em rede.

Não há dúvida de que a cognição humana é fundamentada em estrutura cerebral e atividade neural determinadas biologicamente. No entanto, nas últimas décadas, um representante conjunto de pesquisas tem sido dedicado aos temas de tecnologias intelectuais e ferramentas simbólicas. A idéia principal por trás dessa pesquisa3 interdisciplinar é de que o apparati da memória coletiva orientada pela cultura, os meios de comunicação e os sistemas simbólicos desempenham um papel de destaque na formação de habilidades cognitivas pessoais e sociais. (LÉVY, 2009, p. 6, tradução nossa)4

A teoria de McLuhan sobre tecnologia chega a propor que com a invenção da

tecnologia elétrica o homem prolongou e projetou para fora de si “um modelo vivo do

próprio sistema nervoso central” (1969, p. 61), órgão que coordena os outros órgãos.

Com isso, todo o homem veio à superfície: “na era da eletricidade, usamos toda a

Humanidade como nossa pele” (1969, p. 66).

Hoje, a tecnologia de comunicação digital perpassa e dá corpo a praticamente

todas as tecnologias existentes. Dos controles de navegação aérea aos cartões

pessoais de transporte urbano; dos softwares de gerenciamento de dados das

instituições a como acessamos domesticamente informações e conteúdos – seja no

computador ou na TV –; do comércio eletrônico ou em lojas físicas ao sistema de

declaração de imposto de renda.

As diversas tecnologias de comunicação digital que conhecemos hoje são mais

que simples meios de comunicação. Elas representam a virtualização das relações

humanas. São a extensão da comunicação não apenas como instrumento de

transmissão de informação, mas como amálgama social, como “concreto” das

relações sociais (MAFFESOLI, 2010).

A principal originalidade da cidade virtual é que ela é única e planetária, ainda que ela conte evidentemente com cinturões protegidos (redes especializadas) e com bairros reservados (intranets e extranets). É absurdo opor a sociabilidade e as trocas intelectuais livres e gratuitas às

3 O filósofo francês se refere ao seu ambicioso projeto de inteligência coletiva, o IEML (Information Economy Meta Language).

4 Do original: “There is no doubt that human cognition is grounded in a brain structure and neural activity that is biologically

determined. Nevertheless, in the recent decades, an impressive body of research has been devoted to the subject of intellectual

technologies and symbolic tools. The main idea behind this interdisciplinary research is that culture-driven collective memory

apparati, communication media and symbolic systems all play a prominent role in shaping personal and social cognitive

abilities.”

Page 23: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

23

atividades comerciais no ciberespaço, tanto quanto seria opô-las na cidade. As cidades são, necessariamente, ao mesmo tempo e no mesmo lugar: mercados, centros de troca de informações e desenvolvimento da cultura, espaços de sociabilidade. Ocorre o mesmo com o ciberespaço. (LÉVY, 2001, p.51)

2.2 Cibercultura e Sociabilidade (ou Socialidade)

Tudo que é relativo às relações humanas – sejam elas entre os homens ou dos

homens com a natureza – e que, no decorrer de nossa história, foi desenvolvido pela

técnica e fazendo surgir novas tecnologias, agora inserido na realidade virtual,

entende-se como cibercultura (SAAD CORRÊA, 2010). Resumindo, cibercultura é a

cultura modificada e produzida pelo ambiente digital. E, à medida que o ambiente

digital contaminou a pós-modernidade, a cibercultura invade toda a cultura que

vivenciamos hoje, de forma direta ou indireta, seja pela inclusão ou pela exclusão.

O prefixo “ciber” parece ser o elo etimológico entre a técnica e os processos de sociabilidade. Apresenta-se em diferentes significados – ciberespaço, cibercultura, ciberpunk, cibersex, entre muitos – como operador da experiência virtual referente ao substantivo vinculado. (SAAD CORRÊA, 2010, p. 9)

As principais características que a cibercultura traz para a realidade pós-

moderna são o domínio do espaço-tempo, a construção de múltiplos percursos e

múltiplas realidades, a participação de todos na construção do todo comunicacional,

a coexistência de múltiplas identidades, a disseminação do sentimento de

familiaridade e a intersecção dos mundos públicos e privados (LEMOS, 2009).

Em ambiente virtual, a percepção do espaço-tempo é distinta da percepção em

ambiente físico. O usuário assume de certa forma o controle do espaço e do tempo

e pode experienciar diversos espaços-tempos paralelos e simultâneos. Na

cibercultura, ferramentas tecnológicas sociais suprem a necessidade de sentimento

de familiaridade que havia sido esgotada em um mundo que teve sua noção de

espaço ampliada tão rapidamente.

Os diversos mundos, públicos e privados, coexistentes se inter-relacionam e se

confundem, dificultando o uso de máscaras específicas para cada ambiente. E

Page 24: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

24

ainda, as culturas das pessoas, grupos e instituições que se inserem no ambiente

virtual são carregadas para esse mundo, por mais que ali sofram transformações. E

o que se vive é a soma de todas as facetas da realidade, ao mesmo tempo.

É a realidade toda, exposta. No virtual somos todos os nossos “avatares” ao

mesmo tempo e em grande profundidade. É possível que todo o conteúdo individual

no ambiente virtual represente mais totalmente o respectivo indivíduo que um

recorte de sua vida off-line. Mas, segundo Baudrillard (1991), seria um simulacro da

realidade. Uma realidade construída a partir da simulação, que se sobrepôs à

realidade primeira e perdeu sua relação com a finalidade, com o sentido.

(...) aqui o duplo desapareceu, já não há duplo, está-se já sempre noutro mundo, que já não é outro, sem espelho nem projeção nem utopia que possa refleti-lo – a simulação é intransponível, inultrapassável, baça, sem exterioridade – nós já nem sequer passaremos ‘para o outro lado do espelho’, isto era ainda a idade de ouro da transcendência. (BAUDRILLARD, 1991, p. 155-156)

Ou sob um ponto de vista não apocalíptico:

(...) participando de uma multiplicidade de tribos, as quais se situam umas com relação às outras, cada pessoa poderá viver sua pluralidade intrínseca; suas diferentes “máscaras” se ordenando de maneira mais ou menos conflitual, e ajustando-se com as outras “máscaras” que a circundam. (MAFFESOLI, 2010, p. 238)

Todas as potências trazidas pela cibercultura constroem uma realidade na qual

existe uma massa de individualidades interligadas de maneira instável, transitória,

movediça. Como a “espuma” de Peter Sloterdijk5 (apud BAIRON, 2010). Para se

sobreviver no todo e ao todo, a individualidade é mantida, mas todas as

possibilidades estão disponíveis e a mutação, ou transmutação, faz parte do código

comum.

Dessa forma, é moldada uma realidade que tem na efemeridade a sua essência.

Para Maffesoli, “(...) trata-se de um tribalismo que sempre existiu” (2010, p. 124). É

uma realidade que extrapola as questões comunicacionais, é a relativa às relações

sociais contemporâneas, transformadas pela cibercultura, não mais

5 Filósofo alemão que elaborou a teoria das Esferas (Sphären), na qual relaciona o desenvolvimento histórico-social do ser

humano a três estágios, ou “esferas”: Bolhas, Globos e Espumas, sendo esse último a síntese do que vivenciamos hoje, na

pós-modernidade.

Page 25: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

25

necessariamente encerrada em um ambiente digital. Ou seja, todas as tecnologias

digitais utilizadas hoje são a extensão da sociabilidade humana. A extensão do

homem no mundo.

Sociabilidade é a habilidade de ser sociável, de viver em sociedade, e vem do

latim sociabile (sociável). É a ação constante da manutenção social e requer a

pragmatização das relações. Maffesoli (2010) defende o termo “socialidade”, em

substituição a sociabilidade, para processos das relações humanas na era pós-

moderna. O termo pode ser entendido como habilidade social (do latim sociale), ou,

simplesmente, a tendência da natureza humana de se associar, de “estar-junto” –

termo cunhado por Maffesoli (2010). Ainda segundo Maffesoli (2010), sociabilidade é

o “social racionalizado” e na “socialidade” predomina a empatia, é um “estar-junto à

toa”, são redes de amizade sem objetivo específico, cuja única finalidade é a reunião

por si só.

Socialidade talvez seja o termo que melhor define as relações humanas

transformadas pela cibercultura, e que tem nas redes sociais digitais a sua principal

representação. Elas estão mais próximas da emoção que da racionalidade e

permitem que o indivíduo se expresse de forma mais dilacerada.

(...) a emoção coletiva é algo encarnado, algo que joga com o conjunto das facetas daquilo que o sábio Montaigne chamou l’hommerie: esse misto de grandezas e de infâmias, de idéias generosas e de pensamentos mesquinhos, de idealismo e de arraigamento mundano, em suma, o homem. (MAFFESOLI, 2010, p. 41)

Maffesoli constrói o conceito de socialidade relacionando-o ao instinto primário

do ser humano de sobrevivência. Seu motor é a “atração social” que vem do sentido

primordial da palavra religião – religare: “(...) antes de dogmatizar-se como fé, a

religiosidade popular (...) foi expressão de socialidade. Mais do que a pureza da

doutrina, é o viver e o sobreviver juntos que preocupa as comunidades de base”

(2010, p. 109).

“O papel da massa é o da sobrevivência” (MAFFESOLI, 2010, p. 114). A

necessidade de participar de um todo para lutar contra a morte é a impulsão da

socialidade. E ela se expressa da maneira que for necessária, utilizando, de acordo

Page 26: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

26

com a ocasião, “o caminho real da política, do acontecimento histórico, ou a via

subterrânea, mas não menos intensa, da vida banal” (MAFFESOLI, 2010, p. 140).

Na verdade, a ajuda mútua, tal como aqui a entendemos, se inscreve em uma perspectiva orgânica em que todos os elementos, por sua sinergia, fortificam o conjunto da vida. Desse modo, a ajuda mútua seria a resposta animal, “não consciente” do querer viver social. Espécie de vitalismo que “sabe”, por meio do saber incorporado, que a unicidade é a melhor resposta ao domínio da morte (...). (MAFFESOLI, 2010, p. 60)

As tecnologias de mídias digitais formam o ambiente virtual, integram e

transformam a cultura humana e criam a cibercultura. Elas podem ser entendidas

como a extensão das relações do homem com o homem e do homem com a

natureza. E a necessidade de sobrevivência pode ser considerada a propulsão

desse processo, traduzida no impulso de socialidade, reunião que fortifica o

indivíduo pela massa e gera a construção de sociedade.

A sociabilidade racionalizaria a socialidade e se transformaria na pressão que

mantém a unicidade social refreando outros instintos individualistas do homem. Nas

palavras de Freud, “o poder dessa comunidade se estabelece como “Direito”, em

oposição ao poder do indivíduo, condenado como “força bruta”. Tal substituição do

poder do indivíduo pelo da comunidade é o passo cultural decisivo.” (2010, p. 57).

O ambiente virtual ainda está se delimitando, ou seja, ainda está no processo de

formação social, ou reunião. Nesta etapa, mais características de socialidade que de

sociabilidade podem ser observadas.

Page 27: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

27

3. A ALIENAÇÃO E O AMBIENTE VIRTUAL

3.1 Alienação e Tecnologias de Mídias Digitais, Cibercultura e Socialidade

Podemos considerar as tecnologias de mídias digitais como extensões do

homem no mundo, ou seja, extensões das suas relações sociais e da sua

subjetividade. Essas funções e faculdades humanas necessitavam de “ajuda”,

estavam sobrecarregadas. E, no processo de desenvolvimento das tecnologias de

mídia digitais, elas foram autoamputadas, alienadas para a entidade digital, como

forma de proteção natural do corpo (MCLUHAN, 1969).

Mas podemos inferir outras correlações entre o processo de alienação e os

processos de desenvolvimento das tecnologias de mídias digitais, da cibercultura e

da socialidade. O processo de produção de cultura humana, e, por consequência, da

cibercultura, está intrinsecamente ligado ao desenvolvimento de tecnologias e à

relação entre os homens e deles com a natureza. Além disso, a comunicação que

vivenciamos nas tecnologias de mídias digitais é aquela não apenas da transmissão

de informações, mas a da comunicação como motor e mecanismo das relações

sociais (MAFFESOLI, 2010).

As relações sociais fazem parte da historicidade humana, são inerentes à

atividade do ser humano de construir relações e acrescer às suas ações camadas

de subjetividade, de abstração. Assim como acontece no progresso da tecnologia de

mídias digitais (BERNERS-LEE, 2010). E o desenvolvimento dessas relações

sociais está relacionado ao processo de subjetivação, que, assim como no de

alienação, dissocia o significado e o sentido da ação: “(...) em termos cognitivos

como em termos afetivos, a estrutura do psiquismo humano diferencia-se da

estrutura do psiquismo animal (...). Na mente humana há (...) uma relação indireta,

mediatizada, entre o conteúdo da ação e o motivo desta.” (DUARTE, 2004, p. 55).

É natural do desenvolvimento da subjetividade humana o processo de

objetivação, que pode ser entendido como a transformação da subjetividade em

“coisa”, a sua “reificação” (DUARTE, 2004). Portanto, quando o homem aliena sua

Page 28: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

28

subjetividade para uma tecnologia de mídia digital, recorre à dupla alienação. Tanto

o homem quanto sua subjetividade são transformados em “coisa” e acrescentamos

mais camadas de abstração, ou distância, entre a ação e a finalidade.

Na subjetivação existe consciência, a cognição acompanha a relação indireta

entre a ação e a finalidade. Ou seja, existe a apropriação pelo indivíduo de toda a

cultura desenvolvida pela humanidade. E é a apropriação que permite o

desenvolvimento e crescimento sociocultural do ser humano (DUARTE, 2004). Na

extensão da subjetividade humana nas tecnologias digitais há tantas camadas de

abstração que a manutenção da relação entre ação e finalidade é dificultada.

Já na idade antiga (MÉSZÁROS, 2006), a essência humana era inalienável.

Para que o homem pudesse sofrer esse processo, havia duas maneiras: a imposta,

recorrendo à mistificação – ou religião dogmatizada – e desprovendo o respectivo

indivíduo da possibilidade de ser um humano; ou a por escolha, a autoalienação,

através de um “contrato”, ou aceite, que implicava no recebimento de algo em troca

– como salário, moradia –, ou seja, a venda implícita. De uma forma ou de outra, o

indivíduo é “reificado”, transformado em “coisa”, para que possa ser alienado ou

alienar-se. Naquilo que é construído pela participação de todos na rede de

tecnologias de mídias digitais, o indivíduo, seu comportamento e suas relações são

dados, “coisas”. E quem irá dar significado e sentido, ou melhor, subjetividade, a

essas “coisas” é a web semântica (BERNERS-LEE; HENDLER & LASSILA, 2011).

Rousseau (apud MÉSZÁROS, 2006) diferiu dois tipos de autoalienação, aquela

em que o homem oferecia o seu ser em prol de algo grandioso – como defender seu

povo –, e aquela na qual o homem se vendia. Podemos relacionar a primeira com

“mistificação” e “emoção” e a segunda com “contrato”, “razão”. Sendo assim, nesta

última haveria consciência, apropriação, e, portanto, a cognição acompanharia a

relação entre ação e finalidade. No entanto, para Rousseau, isso seria considerado

um ato mercenário.

A utilização da maioria das tecnologias de mídias digitais implica o aceite de um

termo de uso, um “contrato”. E essa escolha de autoalienação implica em

consciência, e, talvez, uma decorrente apropriação. Mas, apesar de haver um

“contrato” racional, a motivação, o impulso pelo uso, é a socialidade, e está mais

próxima do “místico” ou do “estar-junto à toa” de Maffesoli (2010). Como escreve o

Page 29: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

29

sociólogo francês, “(...) as mídias contemporâneas (...) representariam o papel

destinado às diversas formas de palavra pública: assegurar por meio do mito a

coesão de um conjunto social dado” (MAFFESOLI, 2010, p. 62).

A “vendabilidade universal” de Marx (MÉSZÁROS, 2006) está relacionada à

“reificação” do ser humano e é o principal motivo, em sua teoria, para a alienação do

homem. A sua força de trabalho, sua ação, é objetivada pela “venda” e a crítica feita

por Marx é de que esse objeto, devido à necessidade de sobrevivência do homem,

adquire tamanha dimensão que perde sua relação com o seu verdadeiro significado.

Para Hobsbawn (2011) há também a alienação inversa. Não é apenas o trabalhador

que dissocia sua ação – seu trabalho – dos meios de produção e de seu produto

final; a propriedade também é reduzida a controle dos meios de produção,

dissociada do trabalho. À medida que o objeto da ação do indivíduo nas tecnologias

de mídias digitais adquire maior importância, mais o indivíduo se distancia do

sentido dessa ação – ou de sua finalidade, produto final.

McLuhan (1969), ao descrever o seu conceito de tecnologia, relaciona o mito de

Narciso à alienação pós-moderna. Narciso não se reconhece em seu reflexo, o

sentimento que tem é pelo outro. Seu mito não é o do Auto-Amor. Do grego

narkosis, Narciso significa entorpecimento. Seu mito é o do torpor pelo seu reflexo,

extensão de si mesmo em matéria que não o pertence. Para McLuhan (1969),

interpretarmos o mito de Narciso como do Auto-Amor é sintoma da cultura do

homem pós-moderno: tecnológica e narcótica. Ou melhor, sintoma da cibercultura.

A era pós-moderna é a era do simulacro, que, como definiu Baudrillard (1991),

não possui mais suas “referência e circunferência” (p.13), perdeu a relação entre

ação e finalidade, entre significado e sentido, é a sobreposição da realidade pela

ausência de realidade. Vivemos para além do real: “O signo (ou a imagem) absorve

e reifica o referente, tornando-se mais real do que o próprio real: hiper-real”

(PARENTE, 1999, p. 22). E acreditamos que essa hiper-realidade, ou esse

simulacro, é a realidade de fato. Ou seja, não há cognição, ou consciência, da

relação indireta. Estamos mais próximos da teoria marxista de alienação. Pela

psiquiatria (TORRE & AMARANTE), a alienação como entorpecimento significa

loucura e incapacita o indivíduo a participar do “pacto social”.

Page 30: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

30

André Parente (2009) sugere que a era do simulacro começou “com a separação

entre natureza e cultura, separação esta vivida pelo homem com a introdução da

linguagem” (p. 22). A cultura é fruto e motor do processo de produção de

subjetividade “com seus universos cognitivos, discursivos, afetivos, sensíveis,

tecnológicos” (p. 40). Ela fornece “uma verdadeira visão artificial, que nos faz pensar

e sentir o mundo em função de um complexo sistema de representação.” (p. 40). “A

realidade virtual é uma espécie de princípio de realidade dos novos tempos, buraco

negro da nova cultura cibernética para onde estaria migrando toda a realidade

social” (p. 28).

(...) o ciberespaço é uma inegável lembrança do fato de que somos condicionados para, desde muito cedo, ignorar e negar que nossa subjetividade é, por si só, uma simulação hiper-realista. Nós não cessamos de construir e reconstruir modelos do mundo em nossa mente, usando os dados fornecidos pelos nossos órgãos dos sentidos e pela capacidade de processamento de informações do nosso cérebro e das nossas linguagens. Habitualmente, pensamos no mundo como “algo fora de nós”, mas o que percebemos é fruto de modelos cognitivos que existem apenas em nosso cérebro. (PARENTE, 1999, p. 33)

Portanto, podemos depreender a possibilidade de que a escolha de

autoalienação para as tecnologias de mídias digitais seja um “simulacro de escolha”.

Segundo Michel Hardt e Antonio Negri (2004), o poder conquista domínio efetivo

sobre toda a vida populacional – ou, sobre as relações humanas – tornando-se

função vital que é adotada e reativada por espontânea vontade por todos os

indivíduos. “O poder exprime-se, assim, como um controle que invade as

profundezas das consciências e dos corpos da população – e que se estende, ao

mesmo tempo, através da integralidade das relações sociais.” (HARDT & NEGRI,

2004, p. 163)

(...) deve-se entender a sociedade de controle como a sociedade que se desenvolve no extremo fim da modernidade, entrando no pós-moderno, e na qual os mecanismos de domínio fazem-se cada vez mais “democráticos”, cada vez mais imanentes ao campo social, difundidos pelo cérebro e pelo corpo dos cidadãos. Assim, os comportamentos de integração e de exclusão social próprios do poder são cada vez mais interiorizados nos próprios sujeitos. O poder se exerce, agora, por máquinas que organizam diretamente os cérebros (...) e os corpos (...) em direção a um estado de alienação autônoma, partindo do sentido da vida e do desejo de criatividade. A sociedade de controle poderia, então, ser caracterizada por uma intensificação e uma generalização dos aparelhos normalizantes da

Page 31: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

31

disciplinaridade que animam do interior nossas práticas comuns e quotidianas; contudo, ao contrário da disciplina, esse controle estende-se bem além dos espaços estruturados das instituições sociais, por intermédio de redes flexíveis, moduláveis e flutuantes. (HARDT & NEGRI, 2004, p. 162)

O órgão mais diretamente afetado pelas tecnologias de mídias digitais é o

cérebro. Segundo Don Tapscott (2010), o cérebro humano, até os primeiros anos da

vida adulta, é bastante flexível, adaptável às influências que recebe do exterior. Esse

é o período em que os jovens da era pós-moderna, chamados por Tapscott de

Geração Internet, ficam expostos mais horas às tecnologias de comunicação digital.

Até o momento, podemos reconhecer impactos positivos nas habilidades motoras.

Embora haja muita controvérsia, as primeiras evidências sugerem que a imersão digital tem um impacto positivo tangível [na Geração Internet]. Os jogadores de videogames não apenas percebem mais coisas, mas também têm capacidades espaciais (...) mais desenvolvidas. E mais: posso ver pelas minhas próprias observações que o típico jovem da Geração Internet troca de tarefas com mais rapidez do que eu, e acha mais depressa o que está procurando na internet. (...) A mente da Geração Internet parece ser incrivelmente flexível, adaptável e hábil em várias mídias.” (TAPSCOTT, 2010, p. 122)

Além do impulso de socialidade e todas as características da cibercultura e pós-

modernidade, existiriam outras motivações para a alienação do ser humano em prol

das tecnologias de mídias digitais? Tapscott (2010) compara a Geração Internet com

a dos “baby boomers” – geração anterior, nascida no pós-Segunda Guerra, entre os

anos 50 e 60. Para a primeira, o dinheiro é mais importante. E talvez aí resida uma

motivação de “vendabilidade universal” para as tecnologias de mídias digitais,

muitas vezes gratuitas e subsidiárias de status.

Segundo dados do Censo dos Estados Unidos, 79% dos calouros em 1970 diziam que um importante objetivo pessoal era o “desenvolvimento de uma filosofia de vida significativa”. Em 2005, três quartos dos calouros disseram que seu objetivo principal era “ficar muito bem financeiramente”. (...) E, sim, eles consomem. Isso não é surpresa. A Geração Internet foi exposta a mais mídia e marketing do que qualquer outra geração; é a primeira geração que foi alvo dos publicitários como segmento pré-adolescente quando tinham entre oito e 13 anos. (TAPSCOTT, 2010, p. 361)

Page 32: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

32

Tapscott (2010), apesar de uma visão integrada com relação às novas

tecnologias de comunicação digital ressalva que os indivíduos da Geração Internet

“estão abrindo mão da privacidade sem perceber – ou sem entender as

consequências” (p. 353) e que eles “tem[têm] a responsabilidade de se certificar do

controle das informações que são divulgadas publicamente” (p. 87).

“Em 2007, (...) 20% dos usuários do Facebook faziam uso de algum tipo de

privacidade no site. O resto deixava que o mundo inteiro visse sua vida privada (..)”

(TAPSCOTT, 2010, p. 85). Mas não se trata apenas da privacidade do indivíduo com

relação aos outros usuários da internet. Mesmo para os 20% que utilizam as

ferramentas de privacidade, dividindo os “amigos” em grupos e selecionando o que

cada grupo poderá ver de seu perfil, tudo que é feito pelos usuários em um site

proprietário, como o Facebook, fica armazenado em seus bancos de dados.

Ainda utilizando o Facebook como exemplo, a instalação e utilização de

aplicativos requer o aceite de um termo de uso que permite que o desenvolvedor do

aplicativo “veja” o que está no perfil do usuário “como os seus interesses de namoro,

seus planos para o verão, suas opiniões políticas, suas fotos e seus trabalhos”

(TAPSCOTT, 2010, p. 87).

Não se trata de uma grande novidade, o cadastro do consumidor e o histórico de

seu consumo em um determinado estabelecimento já existia. Os programas de

fidelidade coletam detalhes da vida do consumidor. “Mas agora, no mundo digital, a

questão é mais ampla porque as pessoas estão divulgando muito mais informações

para muito mais gente.” (TAPSCOTT, 2010, p. 87).

A venda da privacidade, visto que há em troca o uso gratuito de uma ferramenta

de interesse, é uma autoalienação contratual – pelo termo de uso – que fornece um

enorme banco de dados digital do comportamento da sociedade como um todo,

dividida em tribos e individualmente. É a realidade toda exposta.

Quando compramos medicamentos ou mantimentos em uma loja, e usamos nosso cartão de crédito para pagar, um registro é gerado e armazenado. A pesquisa de uma criança para um projeto escolar, o leitor de cartões de um estacionamento, as interações do seu carro com um banco de dados via satélite, as publicações on-line que você lê, a camisa que você compra com seu cartão da loja de departamentos, os remédios que você compra e as centenas de outras transações em rede em uma semana comum: todas essas

Page 33: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

33

informações são gravadas em vários bancos de dados. (TAPSCOTT, 2010, p. 88-89)

Assim como o nível de abstração aumenta com o progresso das tecnologias de

comunicação digital, vivemos um aumento do nível de privacidade a ser entregue

em contrapartida.

Nossa privacidade poderá evaporar quando os nossos copilotos digitais estiverem a todo vapor – e começarem a manter registros ininterruptos de nossas vidas. Eles vão registrar nossas conversas e fotografar as pessoas que encontramos, usando truques como software de reconhecimento facial para nos poupar do trabalho de identificar todas as fotos. Gravações onipresentes de áudio e vídeo logo serão algo comum. A maior parte da tecnologia já existe. (...) O maior obstáculo é o armazenamento de dados, mas isso logo será resolvido.” (TAPSCOTT, 2010, p. 89)

E todos esses dados de nossa realidade toda exposta podem a qualquer

momento ser utilizados por aqueles que os detém:

Os computadores podem, com um custo baixo, conectar e cruzar esses bancos de dados para fragmentar e reorganizar as informações sobre os indivíduos em centenas de maneiras diferentes. Podem criar seu perfil com base no que você compra e no que faz on-line. (TAPSCOTT, 2010, p. 88-89)

Sherry Turkle compartilha do mesmo receio: “Gostamos que a Web nos

“conheça”, mas isso só é possível porque comprometemos nossa privacidade,

deixando um rastro eletrônico que pode ser facilmente explorado política e

comercialmente”6 (2011, p. 280, tradução nossa). A privacidade é refém da

tecnologia: “Podemos trabalhar em casa, mas nosso trabalho se infiltra em nossa

vida privada até que mal consigamos perceber a fronteira entre eles”7 (p. 280,

tradução nossa).

E ainda vivemos um paradoxo. Segundo Turkle (2011), as novas tecnologias são

demandadas e construídas sob o argumento de que o homem precisa ganhar tempo

de viver a vida social, uns com os outros, mas quando o homem apropria-se dessas

6 Do original: “We like it that the Web “knows” us, but this is only possible because we compromise our privacy, leaving

electronic bread crumbs that can be easily exploited, both politically and commercially.”

7 Do original: “We can work from home, but our work bleeds into our private lives until we can barely discern the boundaries

between them.”

Page 34: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

34

novas tecnologias acaba incorporando as suas características de volume e

velocidade e sendo pressionado por elas (TURKLE, 2-11). Acredita-se que

tecnologias mais novas e eficientes irão resgatar o homem do afogamento de

demandas e informações, “mas os novos dispositivos incentivam cada vez mais

volume e velocidade”8 (TURKLE, 2011, p. 280, tradução nossa).

Em rede, estamos juntos, mas as expectativas entre nós são tão diminuídas que podemos nos sentir totalmente só. E há o risco de que cheguemos a ver os outros como objetos a serem acessados – e apenas para os momentos que acharmos útil, reconfortante ou divertido.9 (TURKLE, 2011, p. 154, tradução nossa)

O homem busca a conectividade para facilitar o encontro com as pessoas em

um dia a dia sobrecarregado, mas acaba gastando mais tempo com a tecnologia em

si do que uns com os outros. “Defendemos a conectividade como meio de estarmos

mais perto uns dos outros, mas na verdade nos escondemos uns dos outros.”10

(TURKLE, 2011, p. 281, tradução nossa).

Temos muitos novos encontros, mas podemos experimentá-los como provisórios, eles podem ser colocados "em espera" se outros melhores aparecerem. Na verdade, nem precisam ser melhores para ganhar nossa atenção. Somos propensos a responder positivamente pelo simples fato de ser uma novidade.11 (TURKLE, 2011, p. 280, tradução nossa)

Segundo Turkle (2011), o sonho tecnológico da pós-modernidade é nunca estar

sozinho, porém, mantendo sempre o controle de acesso ao outro. Isso pode ser

possível com o progresso da robótica, mas, de certa forma, já é vivenciado hoje ao

deslizar pelos portais de uma vida digital. É possível ter conexão quando e onde

quiser ou precisar, e pode-se facilmente mandá-la embora. Criamos meios para

termos mais tempo com amigos e familiares, mas nesses meios dificilmente dá-se

8 Do original: “But new devices encourage ever-greater volume and velocity.”

9 Do original: “Networked, we are together, but so lessened are our expectations of each other that we can feel utterly alone.

And there is the risk that we come to see others as objects to be accessed – and only for the parts we find useful, comforting, or

amusing.”

10 Do original: “We defend connectivity as a way to be close, even as we effectively hide from each other.”

11 Do original: “We have many new encounters but may come to experience them as tentative, to be put “on hold” if better ones

come along. Indeed, new encounters need not be better to get our attention. We are wired to respond positively to their simply

being new.”

Page 35: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

35

alguma atenção a eles. E mais, assim como nos “reificamos” nas mídias digitais,

“reificamos” aqueles com quem nos relacionamos nelas.

Quando me refiro a um novo estado do self, itself, uso a palavra "itself" com um propósito. Ela captura, embora com certo exagero, minha preocupação de que a vida conectada nos encoraja a tratar aqueles que encontramos online de forma parecida com a que tratamos objetos – algo a ser despachado. (...) Online, inventamos meios de estar com as pessoas, mas que transformam as pessoas em algo próximo a objetos. O self que trata outra pessoa como coisa é vulnerável a se ver também como coisa. É importante lembrar que, quando enxergamos o robô como algo "suficientemente vivo" pra nos fazer companhia, nós o estamos promovendo. Se quando em rede, as pessoas se sentem "suficientemente vivas" por serem "máquinas maximizadas" de e-mails e mensagens, elas foram rebaixadas. São simetrias temerosas.12 (TURKLE, 2011, p. 168, tradução nossa)

3.2 A Consciência na Alienação em Ambientes Virtuais

Consciência, segundo António Damásio (2011), é estar cônscio tanto da

propriedade – a mente – quanto do proprietário – o “eu”, ou self.

O fato de que os inúmeros conteúdos exibidos em minha mente (...) estavam ligados a mim, o proprietário da mente, por fios invisíveis que reuniam esses conteúdos na festa movediça que é o self. E, igualmente importante, o fato de essa ligação ser sentida. Eu tinha o sentimento da experiência de mim mesmo e daquela ligação. (DAMÁSIO, 2011, p. 16)

Não ter consciência implica na suspensão do ponto de vista pessoal, “não

sabemos que existimos, nem que existem outras coisas.” (DAMÁSIO, 2011, p. 17).

Ou seja, há, por consequência, a suspensão de nossa subjetividade.

Para Damásio, as principais funções atribuídas à consciência são administrar e

preservar eficientemente a vida. “Pacientes neurológicos cuja consciência está

12 Do original: “When I speak of a new state of the self, itself, I use the word “itself” with purpose. It captures, although with

some hyperbole, my concern that the connected life encourages us to treat those we meet online in something of the same way

we treat objects – with dispatch. (…) Online, we invent ways of being with people that turn them into something close to objects.

The self that treats a person as a thing is vulnerable to seeing itself as one. It is important to remember that when we see robot

as “alive enough” for us, we give them a promotion. If when on the net, people feel just “alive enough” to be “maximizing

machines” for e-mails and messages, they have been demoted. These are fearful symmetries.”

Page 36: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

36

comprometida são incapazes de gerir sua vida independentemente, mesmo quando

suas funções vitais básicas estão normais.” (2011, p. 41).

O processo dinâmico de regulação da vida é chamado de homeostase. Em

estudos recentes, Damásio (2011) diferencia dois tipos de homeostase no ser

humano: a básica, que diz respeito às necessidades primordiais de sobrevivência, e

a sociocultural, mais relacionada à subjetividade humana (p. 43-42). A sociocultural

é uma abstração da básica, mas guarda a relação indireta entre ação e finalidade, e,

portanto, mantém o mesmo propósito de manutenção da vida. Em uma analogia

simplificada, podemos relacionar a homeostase básica e a homeostase sociocultural

com os conceitos de socialidade e sociabilidade de Maffesoli (2010). Homeostase

básica e socialidade dizem respeito às nossas questões instintivas de sobrevivência,

homeostase sociocultural e sociabilidade relacionam-se à complexificação das

questões de sobrevivência humana.

Damásio (2011) ressalta que a consciência humana e todas as funções que dela

se desenvolveram, como a “linguagem, memória expandida, raciocínio, criatividade,

todo o edifício cultural” (p. 44), podem ser entendidas como “as zeladoras do valor

nas criaturas modernas acentuadamente mentais e sociais que somos” (p. 44).

Portanto, compreender e projetar os impactos do desenvolvimento da cibercultura

pós-moderna e das tecnologias de mídias digitais no ser humano implica relacioná-

los a “como nosso cérebro flexível cria a consciência” (DAMÁSIO, 2011, p .45). A

partir disso, Damásio questiona:

(...) será que a globalização progressiva da consciência humana ensejada pela revolução digital manterá os objetivos e princípios da homeostase básica, como faz a atual homeostase sociocultural? Ou será que ela se desprenderá desse cordão umbilical evolucionário, para o bem ou para o mal? (DAMÁSIO, 2011, p. 45-46)

Segundo Damásio, a evolução humana deve muito à mente humana consciente

porque ela nos proporcionou escolhas, “possibilitou uma regulação sociocultural

relativamente flexível além daquela complexa organização social que vemos tão

espetacularmente, por exemplo, nos insetos sociais.” (DAMÁSIO, 2011, p. 54). E

essa mente humana consciente existe a partir de um cérebro constituído de

neurônios.

Page 37: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

37

Os neurônios não são essenciais para as necessidades primordiais de

sobrevivência, “os neurônios existem em benefício de todas as outras células do

corpo” (DAMÁSIO, 2011, p. 56). Eles “representam” o corpo, “constituindo uma

espécie de substitutivo virtual, um dublê neural” (p. 57). Para Damásio, “essa

referência perpétua [dos neurônios ao corpo] é a razão pela qual a vontade de viver

oculta nas células do nosso corpo pôde um dia traduzir-se em uma vontade

consciente surgida na mente.” (DAMÁSIO, 2011, p. 57). Ou seja, o cérebro como

simulação do corpo, e o corpo, mediação entre o ambiente externo e o cérebro.

Simulação, pois existe a consciência da referência e do referente e, portanto, é

possível a apropriação que propicia evolução. Podemos ainda correlacionar corpo e

cérebro com os conceitos de Maffesoli (2010): o impulso da socialidade como motor

da sociabilidade.

McLuhan (1969) defende que, ao estender o sistema nervoso central para uma

tecnologia, as atividades da consciência foram transportadas para o mundo físico e

permitiram ao homem ser consciente de que a tecnologia é uma extensão de seu

corpo. Seria a consciência da consciência.

A idade da angústia e dos meios elétricos é também a idade da inconsciência e da apatia. Em compensação, e surpreendentemente, é também a idade da consciência do inconsciente. Com nosso sistema nervoso central estrategicamente entorpecido, as tarefas da consciência e da organização são transferidas para a vida física do homem, de modo que, pela primeira vez, ele se tornou consciente do fato de que a tecnologia é uma extensão de nosso corpo físico. (MCLUHAN, 1969, p. 65-66)

Mas para Lucien Sfez (2007), o desenvolvimento dessas tecnologias de mídias

digitais – extensões das atividades da consciência humana – culminou na confusão

entre representação e expressão. Portanto, perdeu-se a consciência da consciência.

Acreditamos estar na expressão imediata, espontânea, lá onde quem reina como senhora e dona é a representação. Delírio. Acredito exprimir o mundo, esse mundo de máquinas que me representam e que, na realidade, se exprimem em meu lugar. (...) A tal ponto que acabo emprestando à máquina social, (...), minhas próprias faculdades. Tendo-as delegado a ela, elas retornam a mim como se sua origem estivesse alhures, no céu tecnológico. (SFEZ, 2007, p. 108, grifo nosso)

Page 38: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

38

Sfez (2007) descreve três metáforas da realidade tecnológica pós-moderna que

podem ser entendidas como degraus de abstração no desenvolvimento da relação

entre o homem e as tecnologias de mídias digitais. A primeira é a da representação

e nela é a preposição “com” que se destaca. “Ele [o homem] faz uso dela [técnica],

mas não se lhe submete. (...) É “com” a técnica que o homem realiza as tarefas que

determina e que se mantém como senhor das atividades cujo meio pensou.” (p. 25)

A segunda metáfora, ou degrau, seria a da expressão e é a preposição “em” que

se destaca. “Em um mundo feito de objetos técnicos, o homem tem de contar com a

organização complexa de hierarquias à qual se submete. (...) A ideia de domínio

perde a força, cedendo lugar à adaptação” (SFEZ, 2007, p. 27).

Por último, temos a do Frankenstein, com destaque para a preposição “por”. “O

sujeito só existe por meio do objeto técnico que lhe determina seus limites e lhe

atribui qualidades. (...) Por meio da técnica, o homem pode existir, mas não fora do

espelho que ela lhe estende” (SFEZ, 2007, p. 28). “Sujeito e objeto, produtor e

produto são então confundidos” (p. 28) e acontece a “perda da realidade, do sentido,

da identidade” (p. 28). Perde-se a relação entre ação e finalidade, perde-se a

consciência da subjetividade.

Desse modo, os computadores pensantes seriam justamente simulacros (e não simulações). Para essa posição, que poderia reivindicar o apoio de Epicuro, os computadores não simulam, eles são, enquanto simulacros. Como tais, eles podem prefigurar um mundo sem verso nem reverso, sem ontologia, um mundo indiferenciado, ilimitado. Esse mundo sem verso nem reverso é o do paradoxo. (SFEZ, 2007, p. 130-131)

Esta última metáfora, ou este último degrau de abstração, reflete a realidade

vivida hoje na pós-modernidade: o “tautismo”. O termo cunhado por Lucien Sfez

(2007) é a contração de autismo e tautologia. O autismo é a “doença do auto-

encerramento”, na qual o indivíduo não tem necessidade de se comunicar com os

outros, de trocar pensamentos e se adaptar ao pensamento dos outros. O autista

visa apenas suas satisfações orgânicas ou lúdicas. Já tautologia é a repetição do

mesmo conceito, mas de formas diferentes. O tautismo é um “grande todo que nos

engloba e no qual somos diluídos” (SFEZ, 2007, p. 110).

Page 39: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

39

Baudrillard fala, então, de sideração: o espectador se torna mudo, quase autista e, a partir daí, não pode dizer mais nada. Cada qual em sua caixa, isto é, em sua casa, acredita entrar em contato simultâneo, imediato com todos os outros, em um grande todo sincrônico, ecossistêmico, até mesmo autogestionário. Mas todos eles entram em contato apenas consigo mesmos. Autismo tautológico pelo qual se repete interminavelmente a mesma cerimônia abstrata. Autismo totalizante pelo qual somos diluídos no absoluto do mundo, por não termos conseguido nos separar dele para compreendê-lo. (SFEZ, 2007, p. 116-117)

Sfez credita à interação a promessa de um diálogo enriquecedor que camufla a

“perda da criatividade que o indivíduo sofreria em conseqüência da maquinização de

sua memória e dos procedimentos heurísticos que lhe são próprios” (2007, p. 131-

132). “A comunicação se faz aqui de si a si mesma, mas de um si diluído em um

todo. Essa comunicação é portanto a de um não-si a um não-si-mesmo” (p. 142).

O tautismo se dá em um contexto místico, não racional. Como na “dramaturgia

grega da Atenas democrática” (SFEZ, 1996, p. 8), um fenômeno catártico pela

encenação mitológica.

Em que universo estamos, afinal? Um universo de ficção científica, onde as máquinas falam e os homens se comunicam por meio de próteses artificialmente conectadas a circuitos anônimos? Onde a devoção para com a técnica toma ares de religião, sacraliza ídolos, idola, imagens? (SFEZ, 2007, p. 143)

A interpretação seria a solução à realidade do tautismo:

Se a interpretação é parte integrante da comunicação e se, por outro lado, referimos essa interpretação à função simbólica, à medida que ela lê e liga os signos entre si pela mediação de símbolos interpretantes, devemos também reconhecer que ela se situa no lado oposto ao da confusão tautística. (SFEZ, 2007, p. 147)

O ser humano estaria alheio ou “surdo a toda objetivação e a toda limitação”

(SFEZ, 1996, p. 9). “Vivemos já uma outra aventura, uma outra relação com o

mundo e com nossos semelhantes, sem que disso tenhamos uma clara

consciência.” (p. 8). Apropriação, consciência ou interpretação seriam sinônimos

para uma segunda etapa no processo de alienação do ser humano na cibercultura.

Segunda etapa necessária para manter aquilo que nos faz humanos.

Page 40: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

40

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não seríamos pensantes se não tivéssemos em nós mesmos esse movimento perpétuo de referência a nós mesmos que nos encerra em seu círculo. Proporcionemos ao computador sua própria auto-referência, a possibilidade de se lançar em abismos, e deixará de haver diferenças entre a máquina e o humano. (SFEZ, 2007, p. 128)

Apesar de a palavra “alienado” ter entre suas definições o significado de

“arrebatado”, “absorto”, “enlevado”, “endoidecido” e “enlouquecido” e estar ligada

etimologicamente a “alienígena” e semanticamente a “estrangeiro”, “estranho”,

“desconhecido”, a alienação humana não apenas faz parte do processo de

desenvolvimento das tecnologias de mídias digitais, ela faz parte da produção de

cultura humana, acompanha e fomenta o desenvolvimento da humanidade. Seja a

alienação imposta ou escolhida, seja de seu corpo físico ou de sua subjetividade.

As tecnologias de mídias digitais são a extensão do homem no mundo, ou seja,

são a projeção de suas relações sociais e de sua subjetividade. Seu progresso

acrescenta camadas de abstração, de complexidade, e o contexto cibercultural

acelera e amplifica todo o processo.

Como supôs Turkle (2011), o uso que se faz das tecnologias digitais hoje pode

ser visto como um sintoma, e, como sintoma, mascara os reais problemas. O

homem quer o controle no uso das mídias digitais, mas em troca aliena o controle de

sua subjetividade. Com o uso das mídias digitais, o homem reduz os outros seres

humanos a “coisas”, mas também é transformado em “coisa”.

Na pós-modernidade, a linha que divide a alienação como “natureza humana” e

a “alienação” da “essência humana” é muito tênue. Colocar a máquina como

substituta da subjetividade humana, e não apenas como uma ferramenta auxiliar, é

viver em simulacro. O perigo está no fato de que o simulacro esconde a simulação e

encerra o homem dentro dele, não permite retorno.

Page 41: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

41

As criações mais impressionantes e significativas do homem são possíveis pela

correlação inusitada, ou até mesmo pelo erro, equívoco ou pela estupidez. E isso

não é possível de ser programado em algoritmos. Máquinas não erram...

Precisamos acompanhar o desenvolvimento cibercultural e perceber

transformações desencadeadas pelo ambiente digital e pela alienação do homem à

entidade digital. Ainda vivemos o processo e, portanto, não temos o distanciamento

necessário para definir todos os impactos que terá na humanidade, menos ainda

determinar se será para o bem ou para o mal.

O que é possível depreender é que também faz parte do processo de alienação

humana uma posterior etapa que pode ser definida como apropriação, consciência

ou interpretação daquilo que foi alienado e transformado. O sujeito desta etapa pode

ser o homem como coletividade e aí estará assegurada a manutenção no homem

daquilo que lhe é humano e permitirá à humanidade o seu desenvolvimento.

Uma coisa, porém, é certa, um maior poder de reflexão, assim como um maior conhecimento, apenas aumenta a aflição do homem, e, acima de tudo, é certo que para o indivíduo, assim como para sua geração, nenhuma tarefa é mais difícil do que escapar das tentações da reflexão, simplesmente porque elas são tão dialéticas e o resultado de uma descoberta brilhante pode dar a toda a questão um novo rumo, pois, ainda no último momento, uma decisão refletida é capaz de mudar tudo – mesmo depois de esforços muito maiores do que o necessário para colocar um homem de caráter no meio da história. Søren Kierkegaard, em The Present Age – On the death of rebellion (tradução nossa) 13

13 “One thing, however, is certain, an increased power of reflection like an increased knowledge only adds to man’s affliction,

and above all it is certain that for the individual as for the generation no task is more difficult than to escape from the temptations

of reflection, simply because they are so dialectical and the result of one clever discovery may give the whole question a new

turn, because at the last moment of a reflective decision is capable of changing everything – after one has made far greater

exertions than are necessary to get a man of character into the midst of things.”

Page 42: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

42

REFERÊNCIAS

BAIRON, Sérgio. A comunicação nas esferas, a experiência estética e a hipermídia.

Revista USP, São Paulo, n. 86 – Dossiê Cibercultura, jun-jul/2010, p. 16-27.

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.

BERNERS-LEE, Tim; HENDLER, James; LASSILA, Ora. The Semantic Web.

Scientific American 284, n. 5, mai/2001, p. 34-43. Disponível em:

http://www.scientificamerican.com/article.cfm?id=the-semantic-web Acessado em

Outubro de 2011.

BERNES-LEE, Tim. Levels of Abstraction: Net, Web, Graph. Disponível em:

http://www.w3.org/DesignIssues/Abstractions.html Acessado em Setembro de 2012.

DAMÁSIO, António R. E o cérebro criou o homem. São Paulo: Companhia das

Letras, 2011.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do Subsolo. São Paulo: Ed. 34, 2000.

DUARTE, Newton. Formação do Indivíduo, Consciência e Alienação: o ser humano

na psicologia de A. N. Leontiev. Cad. Cedes, Campinas, vol. 24, n. 62, 2004, p. 44-

63.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à

psicanálise e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

HARDT, Michael & NEGRI, Antonio. A Produção Biopolítica. In: PARENTE, André

(Org.) Tramas da Rede: novas dimensões filosóficas, estéticas e políticas da

comunicação (Org. André Parente). Porto Alegre: Sulina, 2004, p. 161-173

HOBSBAWN, Eric. Como mudar o mundo – Marx e o marxismo. São Paulo:

Companhia das Letras, 2011.

Page 43: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

43

JACINTO, António. Poema de Alienação. In: ANDRADE, Mário de (Org.). Antologia

temática de poesia africana: vol. I: na noite grávida de punhais, Lisboa: Sá da Costa,

1977, p. 174-177.

KIERKEGAARD, Søren. The Present Age – On the death of rebellion. New York:

HarperCollins Publishers, 1962.

LEMOS, André. Cibercultura como território recombinante. In: TRIVINHO, Eugênio &

CAZELOTO, Edilson (Org.). A cibercultura e seu espelho: campo de conhecimento

emergente e nova vivência humana na era da imersão interativa, São Paulo:

ABCiber; Instituto Itaú Cultural, 2009, p. 38-46. Disponível em:

http://www.abciber.org/publicacoes/livro1/ Acessado em Setembro de 2012

LÉVY, Pierre. A conexão planetária. O mercado, o ciberespaço, a consciência. São

Paulo: Ed. 34, 2001.

___________. From Social Computing to Reflexive Collective intelligence: The IEML

Research Program. 2009. Disponível em: http://www.ieml.org/IMG/pdf/2009-Levy-

IEML.pdf Acessado em Agosto de 2011.

MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas

sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem

(Understanding Media). São Paulo: Cultrix, 1969.

MÉSZÁROS, István. A Teoria da Alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006

PARENTE, André. O Virtual e O Hipertextual. Rio de Janeiro: Editora Pazulin, 1999

RÜDIGER, Francisco. Apocalípticos, Integrados e Pós-Modernos: a problemática da

tecnologia na teoria da comunicação contemporânea. Intexto, Porto Alegre: UFRGS,

1997

SAAD CORRÊA, Elizabeth N. Fragmentos da Cena Cibercultural:

transdisciplinaridade e o “não-conceito”. Revista USP, São Paulo, n. 86 – Dossiê

Cibercultura, jun-jul/2010, p. 6-15.

SFEZ, Lucien. A Comunicação. São Paulo: Martins Fontes, 2007

Page 44: A Alienação e o Ambiente Virtual: das abstrações à consciência

44

__________. Informação, saber e comunicação. Informare – CAD, Prog. Pós-Grad.

Ci. Inf.: Rio de Janeiro, vol. 2, n. 1, jan-jun/1996, p 5-13.

TAPSCOTT, Don. A hora da geração digital. Rio de Janeiro: Agir Negócios, 2010.

TORRE, E. H. G. & AMARANTE, P. Protagonismo e subjetividade: a construção

coletiva no campo da saúde mental. Revista Ciência & Saúde Coletiva, Rio de

Janeiro vol. 6, n. 1, 2001, p.73-85.

TURKLE, Sherry. Alone together: why we expect more from technology end less

from each other. New York: Basic Books, 2011.

WEISZFLOG, Walter. Michaelis - Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. São

Paulo: Editora Melhoramentos, 1998-2007. Disponível em:

http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/