a advocacia pública e o estado democrático de direito

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R. Proc.-Geral Mun. Juiz de Fora – RPGMJF, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 219-227, jan./dez. 2011 A Advocacia Pública e o Estado Democrático de Direito* Gustavo Binenbojm Professor Adjunto da UERJ. Doutor e Mestre em Direito Público (UERJ). Master of Laws (LL.M.) pela Yale Law School. Procurador do Estado e Advogado. Palavras-chave: Estado Democrático de Direito. Advogado Público. O presente estudo envolve uma discussão zetética sobre a identidade institucional da Advocacia Pública. Quem é o Advogado Público no Estado Democrático de Direito? Qual é o seu papel institucional? Qual é a sua singularidade diante da advocacia privada, da magistratura e do Ministério Público? O que torna a Advocacia Pública uma função essencial à Justiça, como declarado na Constituição? Isso exige uma reflexão sobre a posição da Advocacia Pública em relação ao Estado Democrático de Direito. A minha premissa é de que existe uma relação de imbricação lógica indissociável entre a Advocacia Pública e o Estado Democrático de Direito. Parece-me que à Advocacia Pública é reservada a elevada missão de estabelecer a comunicação entre os subsistemas sociais da política e do direito, e a tarefa institucional de compatibilizar as políticas públicas legítimas, definidas por agentes públicos eleitos, ao quadro de possibilidades e limites oferecidos pelo ordenamento jurídico. Nesse sentido, parece-me que a inscrição da Advocacia Pública no capítulo das funções essenciais à Justiça não tem um significado restrito ao exercício da função jurisdicional do Estado, mas se liga ao valor justiça e aos valores inerentes ao direito e à democracia. É interessante resgatar, neste momento, a famosa definição do professor Canotilho de que o Estado Democrático de Direito é um preci- pitado histórico de duas ideias fundamentais que serviram à sua construção. A ideia de soberania popular de matriz rousseauniana — segundo a qual a vontade geral deve ser produto da vontade da maioria dos cidadãos — e a ideia de governo limitado — a ideia lockeana de que o exercício do poder da maioria deve estar submetido aos marcos constitucionais e legais como condição de sua legitimidade. E é nesse sentido a síntese de Norberto * Artigo aprovado para publicação em categoria especial: “Transcrição de Palestra”. Palestra intitulada “O Papel Institucional da Advocacia Pública no Estado Democrático de Direito”, proferida no dia 15 de março de 2010, na sede da OAB/RS, por ocasião do Seminário comemorativo dos 45 anos da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul.

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A Advocacia Pública e o Estado Democrático de Direito

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  • R. Proc.-Geral Mun. Juiz de Fora RPGMJF, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 219-227, jan./dez. 2011

    A Advocacia Pblica e o Estado Democrtico de Direito*Gustavo BinenbojmProfessor Adjunto da UERJ. Doutor e Mestre em Direito Pblico (UERJ). Master of Laws (LL.M.) pela Yale Law School. Procurador do Estado e Advogado.

    Palavras-chave: Estado Democrtico de Direito. Advogado Pblico.

    O presente estudo envolve uma discusso zettica sobre a identidade institucional da Advocacia Pblica. Quem o Advogado Pblico no Estado Democrtico de Direito? Qual o seu papel institucional? Qual a sua singularidade diante da advocacia privada, da magistratura e do Minis trio Pblico? O que torna a Advocacia Pblica uma funo essencial Justia, como declarado na Constituio? Isso exige uma reflexo sobre a posio da Advocacia Pblica em relao ao Estado Democrtico de Direito.

    A minha premissa de que existe uma relao de imbricao lgica indissocivel entre a Advocacia Pblica e o Estado Democrtico de Direito. Parece-me que Advocacia Pblica reservada a elevada misso de estabelecer a comunicao entre os subsistemas sociais da pol tica e do direito, e a tarefa institucional de compatibilizar as polticas p blicas legtimas, definidas por agentes pblicos eleitos, ao quadro de possi bi li dades e limites oferecidos pelo ordenamento jurdico. Nesse sentido, parece-me que a inscrio da Advocacia Pblica no captulo das funes essen ciais Justia no tem um significado restrito ao exerccio da funo juris dicional do Estado, mas se liga ao valor justia e aos valores inerentes ao direito e democracia.

    interessante resgatar, neste momento, a famosa definio do professor Canotilho de que o Estado Democrtico de Direito um preci-pitado histrico de duas ideias fundamentais que serviram sua construo. A ideia de soberania popular de matriz rousseauniana segundo a qual a vontade geral deve ser produto da vontade da maioria dos cidados e a ideia de governo limitado a ideia lockeana de que o exerccio do poder da maioria deve estar submetido aos marcos constitucionais e legais como condio de sua legitimidade. E nesse sentido a sntese de Norberto

    * Artigo aprovado para publicao em categoria especial: Transcrio de Palestra. Palestra intitulada O Papel Institucional da Advocacia Pblica no Estado Democrtico de Direito, proferida

    no dia 15 de maro de 2010, na sede da OAB/RS, por ocasio do Seminrio comemorativo dos 45 anos da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul.

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    Bobbio, para quem a democracia constitucional o regime que realiza a vontade da maioria dentro das regras do jogo democrtico, regras essas estabelecidas na Constituio e nas leis.

    Entendo que esse projeto do Estado Democrtico de Direito seria reduzido a uma mera figura de retrica se no existissem, no plano das instituies, mecanismos e instrumentos que dessem consequncia a esse programa. E parece-me que a Advocacia Pblica a funo de Estado por excelncia encarregada de realizar a vontade majoritria democraticamente estabelecida, adequando-a aos marcos do ordenamento jurdico.

    Ento, parece que essa relao de imbricao lgica da Advocacia Pblica com o Estado Democrtico de Direito pode ser explicada teori-camente por uma vinculao das suas funes institucionais aos dois valo res fundamentais de qualquer democracia constitucional. O primeiro deles, legitimidade democrtica e governabilidade. O segundo deles, con tro le de legalidade ampla, que eu prefiro chamar de controle de juridicidade.

    As funes institucionais bsicas da Advocacia Pblica consultoria jurdica e representao judicial devem sempre ser pensadas e recon du-zidas a esses dois valores fundamentais do Estado Democrtico de Direito, que so, de um lado, legitimidade democrtica e governabilidade, e, de outro, respeito e promoo do controle de juridicidade.

    Faz-se, daqui em diante, uma bipartio da reflexo proposta: em primeiro lugar, discutirei a vertente democrtica ou o compromisso demo-cr tico da Advocacia Pblica; em segundo lugar, passo ao exame da vertente jurdica ou do compromisso da Advocacia Pblica com a juri dicidade.

    Adianto que, ao contrrio do que comumente se apregoa, no me parece que a consultoria jurdica seja uma funo ligada apenas ao controle de juridicidade e a representao judicial realizao da von ta de democrtica dos governantes eleitos. Parece-me que essas duas fun es institucionais realizam simultaneamente esses valores do Estado Demo-crtico de Direito.

    Em primeiro lugar, vou abordar o compromisso democrtico da Advo cacia Pblica. Esse compromisso atende compreenso do nosso papel institucional em relao aos governantes eleitos. O Advogado Pblico no um censor, no um juiz administrativo, nem um Ministrio Pblico in terno Administrao Pblica. O Advogado Pblico tem como uma das suas misses institucionais mais nobres e relevantes cuidar da viabilizao ju r dica de polticas pblicas legtimas definidas pelos agentes polticos

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    democraticamente eleitos. O Advogado Pblico tem o direito, como cidado, de discordar dessas polticas. Eu diria at que ele tem o dever se esta for a sua convico pessoal. Todavia, tem ele o dever funcional de se engajar na promoo e na preservao dessas polticas, desde que elas se mantenham dentro dos marcos da Constituio e das leis em vigor.

    Nesse sentido, o papel do Advogado Pblico o de realizar a me-dia o entre a vontade democrtica e o direito. Mas essa mediao no esttica. No o exerccio de um sim ou um no. No proferir um decisum esttico, como faz a magistratura. Nem exercer opinio delicti, como faz o Ministrio Pblico. O papel do Advogado Pblico compreender a poltica pblica que se deseja implementar, que a vontade popular, ao fim e ao cabo, e buscar estabelecer os mecanismos que viabilizem a realizao dessa poltica. Isso pode ensejar, por exemplo, trabalhar na ela bo rao de uma proposta de emenda constitucional, cujo limite ltimo so as clusulas ptreas da Constituio, trabalhar na elaborao de uma minuta de um projeto de lei, trabalhar na elaborao de minutas de outros atos normativos, como portarias, decretos, resolues, e assim por diante.

    O Advogado Pblico deve ser aquele que tem a capacidade de dizer um no. Mas, sobretudo, deve ter a capacidade de dizer talvez. Isto deve acontecer porque talvez se possa alcanar a realizao de uma po l-tica pblica com a alterao da prpria ordem jurdica, dentro dos limi tes constitucionais estabelecidos.

    Nesse sentido, interessante ressaltar as contribuies mais con-tem porneas do Direito Administrativo, que no aceitam mais uma con-cepo absolutista, solipsista, de interesse pblico. A velha concepo da supremacia do interesse pblico como uma ideia rgida a ser realizada a despeito de todos os interesses da sociedade h de ser abandonada. E a Advocacia Pblica a instituio capacitada e habilitada a realizar essa mediao, essa ponderao de interesses do Estado com a sociedade, no sentido da realizao de polticas pblicas legtimas. Uma vez definidas essas polticas pblicas, nas quais imprescindvel a participao ativa da Advocacia Pblica no mbito da consultoria jurdica, papel do Advo gado Pblico dar sustentabilidade a essas polticas perante os rgos judicirios e as cortes de contas. Dessa forma, a defesa judicial deve ser compreendida no como um capitis diminutio do Advogado Pblico, reduzida mera funo de Advogado de governo, mas como uma funo institucional essencial

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    democracia a fim de dar sustentao jurdica aos projetos de governo e contribuir, dessa forma, para a governabilidade.

    A defesa judicial de polticas pblicas legtimas misso fundamental da Advocacia Pblica, ligada intimamente prpria ideia de democracia.

    Por outro lado, o compromisso jurdico da Advocacia Pblica deve conviver paralela e simultaneamente com o compromisso democrtico. A imposio de limites jurdicos vontade de gestores pblicos condio sine qua non da Advocacia Pblica diferenciada da Advocacia Privada. Se o Advogado Privado o profissional que atende aos interesses do seu cliente, dentro dos limites da sua cincia e da sua conscincia, o Advogado Pblico, alm da sua cincia e da sua conscincia, deve reverncia aos limites impostos pelo ordenamento jurdico. E esses balizamentos jur dicos devem ser estabelecidos tanto no exerccio da consultoria, como no exerccio da representao judicial.

    conhecido de todos o nosso regime jurdico de pareceres da Advo-cacia Pblica. Os pareceres facultativos so aqueles que podem ser objeto de consulta por parte dos gestores pblicos. Os pareceres obrigatrios devem ser necessariamente solicitados, mas de cujas concluses os gestores podem se afastar fundamentadamente adotando entendimento diverso. Os pareceres vinculantes obrigam na sua prpria concluso a deciso admi nistrativa final. E os pareceres normativos que, alm de vinculantes, se projetam para todos os demais casos semelhantes. uma noo ele-men tar de Direito Administrativo, mas que nos serve para a construo insti tucional da Advocacia Pblica na medida em que estabelece uma relao institucional entre o exerccio da Advocacia Pblica e o exerccio da funo pblica pelo agente poltico ou pelo servidor pblico.

    Em relao representao judicial, a defesa judicial da presuno da legitimidade dos atos do Poder Pblico deve ceder diante das situaes em que a prpria Advocacia Pblica entenda que essa presuno foi elidida. papel da Advocacia Pblica reconhecer quando os limites da juri di ci-dade foram ultrapassados e opinar, com efeito vinculante, no sentido da confisso a direitos postulados pelos particulares, da desistncia de aes, da realizao de transao e da uniformizao de entendimentos admi-nis tra tivos que abreviem esses litgios e contribuam para a reduo da pletora de demandas que assola o Poder Judicirio do pas. Esse papel da Advocacia Pblica um papel que pressupe um conjunto de capacidades institucionais s quais eu j vou me referir.

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    O ponto agora o seguinte: o que torna a atuao da Advocacia Pblica singular em relao a todas as demais instituies jurdicas do Estado?

    Muito brevemente, possvel sintetizar trs caractersticas que fazem da Advocacia Pblica uma funo de Estado absolutamente nica, pe cu liar e singular. Em primeiro lugar, a possibilidade e a perspectiva de atuao prvia. Em segundo lugar, a possibilidade e a perspectiva de atua o sistmica. E, em terceiro lugar, a possibilidade e a perspectiva de atuao proativa do Advogado Pblico.

    Quanto atuao prvia, deve-se dizer que nenhuma outra carreira jurdica tem a possibilidade de atuar previamente configurao das po l ticas pblicas. Merece ser dito que quem define o rumo poltico o agente eleito, porque isso pressuposto da democracia. Mas direito da sociedade e dever do Advogado Pblico atuar previamente formulao das polticas de forma que elas se mantenham dentro do quadro da juri di-cidade, de forma que elas tenham sustentabilidade jurdica e que possam passar, eventualmente, no teste do Poder Judicirio. Para isto, preciso que a Advocacia Pblica esteja aparelhada e estruturada para atuar no momento seminal da elaborao das polticas pblicas.

    Quanto atuao sistmica, observa-se que a atuao do Advogado Pblico, como nenhum outro profissional do Direito, tem a possibilidade da viso sistmica. Atuando na elaborao prvia de polticas pblicas o Juiz no tem essa possibilidade. O Ministrio Pblico no tem essa pos si-bilidade. E o Advogado Pblico tem a possibilidade de conhecer os limites sistmicos em relao ao oramento, em relao ao quadro de pessoal, ao quadro de estrutura material, em relao aos possveis efeitos colaterais de uma poltica pblica, colaborando para a correo de rumos, contribuindo para a elaborao de polticas mais efetivas e mais eficientes. A atuao singular do Juiz diante do quadro concreto, assim como dos membros do Ministrio Pblico e dos Advogados particulares coloca-os na condio de algum que v a rvore sem ver a floresta. E a Advocacia Pblica, atravs dos seus rgos de cpula, atravs dos seus rgos de atuao institucional, deve ter essa possibilidade de ter a perspectiva geral dos rgos de governo, para que possa melhor cumprir o seu papel.

    Por fim, uma atuao proativa. Enquanto o Poder Judicirio inerte por excelncia, a Advocacia Pblica pode e deve atuar proativamente no sentido de prevenir litgios, no sentido de aconselhar medidas e no sentido

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    de recomendar que uma soluo consensual seja prefervel soluo litigiosa. H um compromisso, portanto, da Advocacia Pblica com o princpio constitucional da eficincia. Naquilo que se refere viabilizao das polticas pblicas, o Advogado Pblico deve estar pre pa ra do, habilitado e deve ter a porta aberta dos palcios de governo para que ele possa contribuir no sentido da elaborao de polticas que levem em conta aquilo que a Advocacia Pblica pode dar em termos de ganho de eficincia. E aqui me refiro, por exemplo, a medidas judiciais ou extra judiciais que viabilizam polticas pblicas.

    A Advocacia-Geral da Unio tem dado um exemplo a todos os rgos de Advocacia Pblica do Brasil nesse sentido. Ela tem, por exemplo, proposto aes declaratrias de constitucionalidade perante o Supremo Tri bunal Federal, que muitas vezes so essenciais para evitar uma pletora de aes que comprometam a prpria viabilidade da poltica pblica. Alm disso, a AGU tem celebrado, no mbito de agncias reguladoras, acordos regulatrios que ganham o consentimento dos administrados, alcanando um patamar maior de legitimidade pela prpria participao do administrado e reduzindo os custos de transao, os atritos e os con fli-tos que fatalmente seriam judicializados. E, ainda, a celebrao de termo de ajustamento de conduta com os rgos de controle, sobretudo, com o Ministrio Pblico, que possam evitar que, no curso da poltica pblica, venha a surgir o advento de uma nova ao, de uma nova liminar que impea o sucesso daquele programa.

    Todavia, o bezerro no pode ser de ouro e ter os seus ps de barro. Para que a Advocacia Pblica possa cumprir esse papel e essa elevada misso, preciso que, a partir da compreenso da funo, se chegue a uma compreenso da sua dimenso institucional. No possvel que o Advogado Pblico tenha um compromisso com a realizao da poltica e com o controle dessa mesma poltica, se ele for compreendido como mero Advogado de governo. A Advocacia Pblica, neste sentido, no uma funo meramente governativa. A Advocacia Pblica uma funo de Estado e assim deve ser compreendida como premissa inicial.

    Como funo de Estado, a Advocacia Pblica deve ser uma insti tui-o capaz de se organizar e se estruturar em carreiras. Carreiras profis-sionais e permanentes aptas a realizar de forma imparcial esse papel. O engajamento do Advogado Pblico na realizao de polticas pblicas no um engajamento poltico partidrio. um engajamento institucional.

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    E para que ele possa realizar as polticas pblicas, de um lado, e mant-las dentro do quadro da juridicidade, de outro, preciso que ele tenha garantias institucionais e garantias funcionais. Com isto, o Advogado Pblico no ser reduzido ao papel de mero Advogado do governo.

    Essas garantias envolvem, por exemplo, alm da instituio per-ma nente do corpo profissional qualificado e concursado, uma relao de isonomia que pressupe no apenas a equiparao vencimental com as demais carreiras jurdicas do Estado, mas, sobretudo, uma equiparao no seu status funcional em relao ao Ministrio Pblico, Magistratura e s demais carreiras de Estado. Esse status deve levar a Advocacia Pblica a ter autonomia funcional, autonomia administrativa e oramentria como o Poder Judicirio, como o Tribunal de Contas e como hoje o Ministrio Pblico j detm. Ningum consegue exercer a Advocacia Pblica respon-savelmente negociando de joelhos com o governo. S possvel ser Advo-gado Pblico plenamente se a Advocacia Pblica for compreendida como uma funo do Estado e como uma instituio de Estado, e no como um rgo intestino prpria estrutura do governo.

    Essas garantias funcionais vo alm da mera autonomia funcional, administrativa e oramentria e devem alcanar garantias funcionais contra perseguies e contra responsabilizaes fora das hipteses de dolo ou fraude, aquelas hipteses em que Juzes e membros do Ministrio P-bli co podem ser responsabilizados.

    Por fim, os temas mais polmicos. No posso me furtar a coment-los embora os saiba polmicos. A questo do exerccio privativo da Advo-cacia Pblica por membros da carreira e a questo da privatividade da prpria figura do Advogado-Geral ou do Procurador-Geral que, no caso da Constituio Federal, o artigo 131 abre a possibilidade de membros no integrantes da carreira exercerem esse papel. No caso de algumas procuradorias de Estados, como do Estado do Rio de Janeiro e do Estado de So Paulo, este cargo j privativo de membros da carreira. Embora se deva reconhecer que as experincias histricas mostram uma oscilao grande em relao chefia da instituio e que muitos que no so membros das carreiras tenham dado grande contribuio ao seu desenvolvimento e fao aqui o registro pblico de que a minha opinio pessoal de que este foi o caso do Ministro Jos Antnio Dias Toffoli em relao AGU , o meu entendimento de que a questo no pode ser tratada pessoalmente. No podemos ficar merc de uma loteria pessoal, em que alguns nomes

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    que tm a viso de estadista, como tinha o Ministro Toffoli, deram uma grande contribuio e outros nomes no. Ento, parece-me que a poltica institucional correta a de qualificar os quadros, investir no concurso pblico, investir em garantias institucionais e numa remunerao decente, para que a instituio seja capaz de produzir os seus prprios quadros. No para, em termos corporativos, conquistar a chefia da instituio, mas para que possa oferecer sociedade nomes capacitados e habilitados ao exerccio dessa elevada funo.

    Alm disso, existe a polmica questo em relao a haver ou no um mandato para o Advogado-Geral ou Procurador-Geral. uma discusso eterna que se tem no Estado do Rio de Janeiro. Em todos os foros dos quais eu tenho participado, eu tenho manifestado o entendimento de que necessrio caminharmos em alguns casos ser necessrio discutir propostas de emenda constitucional no sentido de que algum mecanismo de garantia de mandato tenha que ser conferido ao Advogado-Geral ou ao Procurador-Geral para que a instituio no fique merc de alguma espcie de barganha poltica que possa comprometer aqui ou ali o desempenho pleno das suas funes. Mas no ignoro que isso possa ter algum problema ou algum efeito colateral. evidente que a proximidade desejvel em relao ao governo. Mas uma relao de parceria saudvel, em termos transparentes e institucionais, pode muito bem, a meu ver, conviver com uma chefia da instituio que seja interna da carreira e que seja garantida por alguma espcie de mandato de nomeao a termo.

    A ltima reflexo que eu quero fazer : Existem incentivos polticos hoje para que essas transformaes se operem? Estamos falando no campo dos ideais, da utopia ou no campo de possibilidades concretas?

    Fazendo uma referncia ao filsofo italiano Antonio Gramsci, preciso que o otimismo da vontade supere o pessimismo da razo. Nenhum de ns desconhece que o encaminhamento dessas propostas tende a en fren-tar aquilo que eu chamaria de grandes desincentivos polticos, de grandes resistncias. Mas eu tambm acredito que a capacidade de a carreira se organizar em todos os nveis federativos tem aumentado. A capacidade de os Advogados Pblicos compreenderem o seu prprio papel e comunicarem-se diretamente com a sociedade, explicando socie dade qual o seu papel, qual a sua grande relevncia e que essas garan tias no so garantias pessoais ou corporativas, mas so garantias da prpria sociedade, tambm tende a aumentar. E eu, como sou um otimista e crdulo na democracia,

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    acredito que ns conseguiremos em algum momento alcanar algumas das nossas utopias.

    Para concluir, gostaria de citar O livro dos abraos, do escritor uru guaio Eduardo Galeano, onde se fala basicamente das utopias. Ele se refere s utopias dizendo que as utopias so como a linha do horizonte. A linha do horizonte no existe para ser alcanada. Toda vez que ns damos um passo frente no sentido de alcan-la, parece que a linha do horizonte d um passo atrs, afastando-se de ns. Mas o objetivo, a funo e o propsito da utopia no o de ser alcanada; o objetivo da utopia apenas o de nos fazer caminhar.

    Informao bibliogrfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associao Brasileira de Normas Tcnicas (ABNT):

    BINENBOJM, Gustavo. A advocacia pblica e o Estado Democrtico de Direito. Revista da Procuradoria-Geral do Municpio de Juiz de Fora RPGMJF, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 219-227, jan./dez. 2011.