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    AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM E FORMAÇÃO DA IDENTIDADEFEMININA DA MULHER SURDA

    Mônica Amazonas de Andrade [Bolsista Ação Afirmativa - Fundação Araucária]¹, RossanaAparecida Finau [orientadora]²

    ¹ Departamento Acadêmico de Comunicação e Expressão

    ² Departamento Acadêmico de Comunicação e ExpressãoCâmpus Sede

    Universidade Tecnológica Federal do Paraná - UTFPRAv. Sete de Setembro, 3165 - Rebouças CEP 80230-901 - Curitiba - PR  –  Brasil

    [email protected], [email protected]

    Resu mo - O objetivo desse trabalho é investigar a relação entre a aquisição de linguagem e a formação daidentidade feminina em mulheres surdas. Para tal, tomamos como pressuposto teórico a concepção bakhtinianade discurso, em que os sujeitos se constituem no processo de interação dialógica, cuja singularidade econhecim ento de mundo resultam como “ produto” desse processo. Assim, se a int eração é a chave para a

    constituição do sujeito e da linguagem e, levando em conta que a maioria dos surdos adquire tardiamente sualíngua, ou seja, seu envolvimento sócio-cultural para a organização dos significados ideológicos ficaobstaculizada, surge o questionamento a respeito de como se dá a formação da identidade das mulheres dessascomunidades. Para a análise de dados, a fim de verificar esse questionamento, recorremos de pesquisaqualitativa, orientada por KÖCHE (1997) e AMOR IM (2004), com diálogo temáti co dirigido a fim deidenti fi car os signifi cados sociais a respeito do papel feminino para as surdas. A análise permitiu a observação deque o processo de afastamento social, causado pela aquisição tardia da LIBRAS, parece colocar a pessoa surdaem um contexto cultural bastante tradicional a respeito da mulher. Os dados apontam para uma formação deidentidade feminina fechada na comunidade familiar.

    Palavras-chave: Mulheres surdas; Aquisição de Linguagem; Identidade; Gênero; LIBRAS.

    Abstract - The aim of this study is to investigate the relationship between language acquisition and theformation of woman identity in deaf women. For this, we take as a theoretical assumption the Bakhtinianconception of discourse, in which the individuals constitute themselves in the process of dialogic interaction,whose uniqueness and assumptions of world result as "product" of this process. Thus, if the interaction is the keyto the constitution of the individual and the language, taking into consideration that most of deaf people acquiretheir tongue belatedly,that is, their socio-cultural involvement for the organization of ideological meanings ishampered, we wonder about the identity formation of women in these communities. For data analysis, in order toverify this question, we used qualitative research guided by KÖCHE (1997) and AMORIM (2004), withthematic dialogue directed to identify the social meanings about female role for the deaf women. The analysisallowed the observation that the process of social withdrawal, caused by late acquisition of LIBRAS, seems to put the deaf person in a very traditional cultural background about woman. T he data points out a formation o f awoman identity narrowed to the family community.

    Key-words: Deaf women; Language Acquisition; Identity; Gender; LIBR AS (Brazilian Sign Language).

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    INTRODUÇÃO

    A questão da aquisição de linguagem por surdos tem gerado muito interesse nacomunidade científica, principalmente pelas “dificuldades” geralmente impostas a esse

     processo. Isso se dá, pois a maioria dos surdos - 90%, estima-se - são filhos de pais ouvintes

    (SANTANA, 2007 [1])1

    . Esse dado é notável, porque aponta que apenas a minoria dascrianças surdas é exposta a input linguístico desde a primeira infância. Aquelas filhas de paissurdos (sinalizadores) estão imersas no uso de sinais desde o nascimento. Porém, as filhas deouvintes não compartilham a mesma modalidade linguística desses: não ouvem, portanto, sóentrarão em contato com uma língua se os pais aprenderem ou, como se dá com a maioria,quando ingressarem em escolas/instituições que promovem a língua de sinais - contexto que,naturalmente, não se compara ao doméstico, onde a utilização linguística é informal, natural ecarregada de fatores afetivos. Assim, nos defrontamos com um panorama de aquisição delinguagem tardia, na maioria dos indivíduos.

    Adotamos a posição de que a aquisição de linguagem se dá em um processo deinteração social e interlocução dialógica, como propõe Bakhtin (1986). Tal interação é, na

    verdade, responsável pela completa formação do sujeito, conforme apontado por Geraldi(1997, p.6 [2]), quando afirma que “os sujeitos se constituem como ta is à medida queinteragem com os outros, sua consciência e seu conhecimento de mundo resultam como“produto” deste mesmo processo”. Para Bakhtin, é na inter -relação entre linguagem e

     pensamento que se dá a constituição do sujeito e a da língua, ou seja, ambos constroem-sesimultaneamente. Essa proposta é reforçada por Orlandi (2008 [3]), quando afirma que nãohá como separar língua de identidade. Assim, temos que a linguagem é elemento fundamentalna formação identitária do sujeito e da cultura na qual ess e está inserido.

    Tendo isso em mente, nos questionamos a respeito da formação da identidade da pessoa surda, mais especificamente da mulher surda. Se a interação é essencial para aconstituição do ser, e, sendo a linguagem mediadora e parte desse processo, o que se dá nocaso dos surdos, muitas vezes “isolados”, não interagindo linguisticamente até mesmo comseus pais ou familiares próximos durante os primeiros anos de vida? Assim, procuraremosentender a relação entre a aquisição de linguagem por mulheres surdas, filhas de paisouvintes, e a formação, nessas, de uma identidade feminina. Poderia essa identidade estarsofrendo alterações, haja vista que tais mulheres passam por um processo de aquisição tardiada língua de sinais e, ainda, têm uma participação diferenciada tanto na formação culturalouvinte quanto da surda? Como essas encaram o mundo feminino, o mundo surdo, o papel damulher, seus direitos e deveres? As diferentes idades nas quais as surdas adquiriram aLIBRAS e passaram a conviver com a comunidade surda alteram suas respostas às perguntasacima?

    Aquisição de linguagem por surdos. Para levar em conta em nosso trabalho a aquisição delinguagem é necessário, primeiramente, adotar uma concepção do que seja linguagem. Nesserespeito, muitos estudiosos defendem que a língua seja uma estrutura de signos que pode seradquirida através de estímulo e repetição. Após os trabalhos de Noam Chomsky (1957),

     postulou-se que a faculdade da linguagem é inata ao ser humano; logo, aprender uma língua éum processo natural/ biológico. Mais recentemente, após as teorias de Vygotsky (1991 [4]) eBakhtin (2003 [5]), aponta-se a interação social como elemento chave para o desenvolvimentoda linguagem na criança; através do contato com outros falantes é que um indivíduo adquireaquela língua em uso. Aceitamos aqui a posição de que adquirir uma língua se dá através doconvício social, da interação. Clark e Holquist (1998 [6]) mostram que o ponto de vista de

    1 Segundo Quadros (1997), esse número é aproximado, mas é coerente devido à dificuldade de encontrar surdos fi lhos de pai s surdos paracompor corpora de pesquisas. O m esmo re sultado é encontrado nos Estado s Unidos com pesquisas de ASL.

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    Bakhtin é que podemos significar o que dizemos, mas só indiretamente, em palavras quetomamos da comunidade e lhe devolvemos conforme os protocolos seguidos por essa. “Minhavoz pode significar, mas somente com outros –  às vezes em coro, porém o mais das vezes emdiálogo” (p. 39). Não se assume a abordagem linguística de aquisição de linguagem conforme

     proposta por Chomsky, pois, para fazê-lo, seria necessário considerar também o conceito de

     período crítico, o que tem se mostrado ser questionável no que diz respeito à aquisição delinguagem por surdos. A complexidade de afirmar que há um período crítico para a aquisição linguística, ao

    menos no caso dos surdos, reside no fato de a grande maioria atravessar uma parte da infânciasem uma aquisição própria de língua - ultrapassando, então, o período crítico. Conformeindaga Santana (2007, p.71), “pode-se dizer que esses surdos não dominam a língua desinais?”. Se a maior parte dessa comunidade adquire sua língua oficial, a língua de sinais,após o período tido como propício, seria essa comunidade, quase como um todo, não

     proficiente? Tais questionamentos nos levam a pensar que a hipótese que prega um períodocrítico precisa ser reavaliada, pelo menos no que diz respeito às línguas de sinais.

    Identidade e Linguagem. Para iniciar nossa investigação, assumimos a definição deidentidade conforme proposta por Hall: “ a identidade torna-se uma “ celebração móvel”: formada e transformadacontinuamente em relação às formas pelas quais somos representados ouinterpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). É definidahistoricamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes emdiferentes momentos, identidades que não são uni fi cadas ao r edor de um “ eu”

    coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentesdireções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamentedeslocadas.” (HALL, 1999, p.13 apud CAIXETA, 2004, p. 212 [8])

    É possível dizer, então, que o conceito de ser mulher (identidade feminina) não é o

    mesmo para todas as mulheres. De fato, tal conceito é historicamente móvel; ainda que algunstraços possam permanecer, é alterado conforme a sociedade altera-se. Uma síntese dosdiferentes papéis sociais exercidos pela mulher na sociedade ocidental desde o séculoretrasado foi feita por Caixeta (2004), que afirma que as alterações modernas de tais papéissociais começaram a ocorrer no século XVIII, “em virtude de importantes mudanças políticas,sociais e econômicas, tais como: a ascensão da burguesia, criação dos estados nacionais,início da industr ialização e a formação da sociedade capitalista” (p. 214). Nessa fase, a mulhervoltou-se para o interior da casa, cuidando dos filhos e sendo impecável dona-de-casa. “Amulher passa a viver para o amor: amor a seus filhos, a seu esposo, a sua casa. Para tanto, eladeveria se manter pura, distante dos problemas e das tentações do mundo exterior  –  o mundodo trabalho -, que deveria ficar sob o encargo do homem.” (ROCHA -COUTINHO,1994, p.29

    apud CAIXETA, 2004 p. 215). Esses conceitos perduraram com maior força até o século XX,quando as grandes guerras modificaram o cenário mundial como um todo, inclusive para asmulheres, que foram “convidadas” a defender seus países direta e indiretamente nos

    combates. Então, (re) surgiram os movimentos feministas, buscando direitos e oportunidadesiguais a mulheres e homens. Na sociedade atual, em resultado das lutas feministas e daemergência dos estudos de gênero, cresce a participação das mulheres nas esferasadministrativas e de liderança, no mundo acadêmico e nos demais estratos do mercado detrabalho. Porém,

    “ assumir o novo papel social d e profissional com carreira não modi fi cou sua

    identidade de mulher, apenas a ampliou. Agora, mais que mães e esposas, elastambém s ão donas-de-casa e pro fissionais. A dupla-jornada passou a fazer parte davida da mulher, fenômeno significado no cotidiano pelo termo  supermulheres.”  (Grifo da autora). (CAIXETA, 2004 p. 215)

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      Assim, conforme a sociedade alterou-se, mudou também a atuação da mulher, e aforma como essa mesma se enxerga. Isso é apoiado por Bakhtin, que propõe que o sujeito sóse constrói socialmente, através da interação, permeada e instituída pela linguagem. Atémesmo o “discurso interior” surge de uma “consciência social” (Elichirigoity, 2008 [9]).  

    Para o teórico russo (e, posteriormente, para a Análise do Discurso Francesa) tudo o

    que falamos, inclusive o que falamos sobre nós mesmos, é uma soma do que já foi dito a nós,do que nos é apresentado em sociedade. Somos seres “polifônicos”, emitindo sempre mais deuma voz. Tais vozes nascem do diálogo e são enunciadas nesse. Sociedade-linguagem-sujeitosão indissociáveis, já que

    “ o discurso interior (sentid o que algo t em para determinada pessoa) parte da

    consciência individual que se constrói pela consciência social (diálogo so cial) [... ] ea consciência individual é reflexo de uma consciência social. A subjetividade só pode ser so cial e históri ca e depende das práticas discursiv as”  (ELICHIRIGOITY,2008, PP. 200-201)

    A citação acima deixa bem clara a origem da linguagem e da subjetividade. A última,ainda que “subjetiva”, só pode ser social e histórica, nascendo na interação. Somos aquilo que

    construímos no diálogo. Como já dito anteriormente, o sujeito e a linguagem têm, então, amesma raiz; ambos se constroem juntos e se alteram historicamente. O sistema linguístico é o

     produto da interlocução e não existe fora de contexto social.Analisando as considerações de Bakhtin, bem como de demais teóricos e estudiosos da

    linguagem, nos voltamos a nossas questões iniciais: Como se dá a relação de subjetividade eformação de identidade (feminina, no caso) em mulheres cuja língua - matriz e formadora do“eu” - foi adquirida tardiamente? Como o social está sendo apropriado (e refratado) por essesindivíduos?

    METODOLOGIA

    A fim de iniciar a busca pelas respostas às perguntas acima, mapeamos estudos quetratassem do tema identidade e, ainda, identidade e surdez, para embasar teoricamente nossotrabalho. Percorremos também por pesquisas nas áreas de gênero e de linguagem, parasolidificarmos as questões de formação de identidade feminina e ser mulher, e de aquisição delinguagem por surdos.

    Segundo Bakhtin (2003, p. 264), toda investigação de um material linguístico precisaoperar invariavelmente com enunciados concretos, sejam eles orais ou escritos, de onde os

     pesquisadores buscam extrair os significados sociais e ideológicos refratados e refletidos nalinguagem. No caso deste trabalho, o enunciado concreto é produzido em sinais da LIBRAS,

     por mulheres surdas de diferentes idades e formações sócio-culturais. Ao pesquisar tais

    enunciados, pretende-se averiguar, pela integração da vida na língua, a percepção dasdiferentes individualidades femininas, lembrando que o sujeito bakhtiniano só se torna “ eu entre outros eus” (SOBRAL, 2005 [10]). 

    Para tanto, a metodologia de pesquisa que norteia esta investigação está ancorada nométodo qualitativo, voltado para o paradigma indiciário. Ou seja, o rigor científico paraanálise dos enunciados concretos dos sujeitos informantes passa a ser construído pelarelevância dos dados analisados e seus respectivos resultados. Nessa perspectiva, encaminha-se o pensamento de Köche (1997 [11]) para o qual a ciência precisa ser encarada como um

     processo histórico e como um sistema aberto, com critérios de análise apresentados comoelementos que se somam à imaginação crítica ou à criatividade.

     Nesse sentido, é preciso considerar que o papel do pesquisador nessa proposta de

    análise teórico-interpretativa que adota o método indiciário também é diferente, pois enquantoanalista dos dados discursivos  –  muitas vezes singulares e aparentemente sem explicação -

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     busca compreender os fenômenos linguístico-discursivos escutando a voz da alteridade, procurando desvendá-los e traduzi-los. Como afirma Amorim (2004, p.26 [12]), “a  atividadede pesquisa torna-se então uma espécie de exílio deliberado onde a tentativa é ser hóspede eanfitrião ao mesmo tempo”. 

    Assim, guiada por essa perspectiva, essa investigação teve início com a proposição do

     problema, ou seja, da temática: a formação da identidade feminina da mulher surda, cujo processo de aquisição de linguagem, aqui compreendida como fenômeno histórico, social ecultural, se dá de modo tardio e diferente da mulher ouvinte.

    Ao estabelecermos nosso objetivo e fazermos a revisão da literatura, a fim de colocaresse problema em um contexto geral das ciênciass humanas e da Linguística, cuja basetornou-se as proposições bakhtinianas, estabelecemos os caminhos para a coleta de dados.Definiu-se que as filmagens de um diálogo dirigido entre pesquisadora e entrevistadas emtorno da temática do feminino, isto é, do que é ser mulher, seria usado. Selecionamos a basede dados - corpus - de informantes, com três faixas etárias. Demos procedimento aosencaminhamentos das entrevistas com três surdas, residentes na cidade de Campo Largo,região metropolitana de Curitiba, a fim de identificar possíveis diferenças e semelhanças entre

    seus conceitos e significações acerca do ser feminino. O critério de escolha das informantesfoi o da idade; ao selecionar mulheres em diferentes faixas etárias (a saber, 15, 24 e 38 anos),

     poderíamos ter um espectro maior de análise.As entrevistas foram conduzidas em língua brasileira de sinais e, portanto, foram

    registradas em vídeo, por se tratar de uma língua visual. Antes das entrevistas propriamenteditas, aplicou-se um pré-questionário, investigando alguns detalhes acerca da aquisição deLIBRAS pelas referidas mulheres (idade da aquisição, modo como ocorreu), dando destaque

     para a precocidade ou não da aquisição, identificada pela (não) existência da comunicação emlíngua de sinais no ambiente doméstico, praticada pelos pais desde a primeira infância. Essequestionário foi organizado a fim de auxiliar a constituição do contexto sócio-cultural em queessa mulheres vivem, para ajudar na interpretação e análise dos enunciados concretos

     produzidos pelas informantes, orientando a pesquisadora. Essa primeira etapa possibilitou -nossaber que J(24)2  adquiriu a LIBRAS aproximadamente aos sete anos de idade, quandocomeçou a frequentar a escola, onde uma professora ouvinte a ensinou a língua de sinais,E(38) começou a sinalizar na escola, a partir dos três anos, com colegas surdos em uma escolaespecial e J(15) teve uma professora ouvinte que a introduziu à LIBRAS, a partir dos trêsanos de idade, aproximadamente. Os pais de E(38) não sabem língua de sinais. As demaisafirmaram que apenas as mães têm algum conhecimento da língua.

    Após a coleta desses primeiros dados, feita em língua de sinais e registrada em língua portuguesa pela pesquisadora - passou-se para a entrevista de fato. Foram feitas questõessemi-abertas, pré-estabelecidas e seguindo um roteiro, mas que permitiam às entrevistadas

    expressar-se livremente. À entrevistadora coube o papel de ouvinte e condutora das questões, procurando interferir o mínimo possível, apenas quando se observava que as perguntas nãohaviam sido compreendidas ou precisavam de mais exemplos/explicações. As questõesversavam sobre a opinião pessoal de cada surda a respeito do que é ser mulher, em geral, nasociedade brasileira e na comunidade surda. As perguntas feitas foram:1) O que é ser mulher para você?2) Quais as diferenças existentes entre mulheres e homens com relação a direitos e deveres?3) Há diferença entre ser mulher surda e mulher ouvinte?4) Quais são os pontos positivos de ser mulher? E negativos?5) Quem é seu exemplo de mulher, e por quê?6) É bom ser mulher na sociedade brasileira? E na comunidade surda? Por quê?

    2 A fim de manter em sigilo a identificação das entrevistadas, nos referiremos a elas pela primeira letra do nome seguida da idade.  

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    ANÁLIS E DOS DADOS

    Como já vimos, a concepção de mulher se modifica na dependência da constituiçãohistórica da sociedade. Apesar de não podermos generalizar, é possível afirmar que o mundoouvintista contemporâneo, em sua maioria, tem enxergado as mulheres da forma descrita por

    Caixeta (2004), como  supermulheres. Essas ainda cuidam da casa e dos filhos, porém, nãomais se dedicam apenas a essas atividades; agora já saem dos espaços privados em direçãoaos espaços públicos, trabalham, são muitas vezes a base econômica da família e exercem

     posições sociais que foram pouco a pouco conquistadas. Hoje, os pesquisadores de gênero edireitos humanos já enxergam uma mudança positiva, ainda que não completa, na

     participação da mulher na sociedade.É necessário, porém, dizer que essa visão da mulher, à luz dos dados obtidos, parece

    ainda não ser a s ignificação atribuída e compreendida como constitutiva das mulheres surdasentrevistadas, pois seus enunciados deixam entrever uma denotação mais próxima àquelaidealizada no século XIX, quando a mulher, bela e impecável, nascia para casar-se e dedicar-se completamente ao marido e aos filhos, sem alterar o cenário e as decisões dos espaços

     públicos. Exemplos desses enunciados aparecem em repostas como as de J(24) (esposa e mãe)às duas primeiras questões:

     J(24): Deus [...] fez o homem e a mulher de forma diferente; a mulher engravida, [...] cuidada casa e dos filhos, trabalha para comprar coisas para a casa. O homem tem aresponsabilidade de trabalhar, recebe o salário para pagar as despesas.

    Ainda que mencione o trabalho, J(24) afirma encará-lo como “para comprar coisas”.Quem “recebe o salário para pagar as despesas” é o homem. Visão semelhante tem E(38)(esposa e mãe), que, apesar de trabalhar “fora”, respondeu à segunda pergunta dessa forma: 

     E(38): As mulheres têm a responsabilidade de cuidar da casa, limpar, cozinhar, lavar asroupas, cuidar dos filhos. Os homens têm a responsabilidade de ir trabalhar, dar o sustento. 

    Se tanto E(38) como o marido trabalham, por que a responsabilidade do sustento é sódele e a responsabilidade de tomar conta da casa e dos filhos é só dela? Estaria a visão dessamulher ainda atrelada aos moldes tradicionais? Percebe-se que não é, necessariamente, umaquestão da atividade exercida em si, mas do conceito que se tem sobre essa, sendo o trabalhomeramente o pagador das dívidas e não uma forma de participação na sociedade.

    Atrelada a esse ponto de vista tradicional, está a definição puramente biológica dossexos (estritamente sexos , e não gêneros). Conforme Louro (1997 [13]), diferenciar homens emulheres vai muito além de distinguir suas características físicas, “mas sim tudo o que

    socialmente se construiu sobre os sexos” (p. 21), adicionando à distinção biológica aspectossociais e históricos. Esse é o olhar de uma perspectiva contemporânea, pregada pelascorrentes que estudam os gêneros. Novamente, porém, os enunciados das entrevistadas não

    demonstram tal impressão contemporânea. Como já dito, para J(24), uma das diferenças entrehomens e mulheres é que “a mulher engravida”. Tal distinção biológica é clara eimportantíssima, mas parece-nos que a descrição de mulher para ela é calcada estritamentenisso; a mulher engravida e ponto. Quando questionada sobre os pontos positivos e negativosde ser mulher, E(38) também baseia toda sua resposta em aspectos positivos e negativos docorpo da mulher: 

     E(38): Deus fez as mulheres, me fez, meu corpo, é normal. [...] Não gosto do período damenstruação, das cólicas. Também a gravidez é muito sofrida. Eu gosto de ser mulher, do

    meu corpo, Deus me fez assim, natural.J(15) teve muita dificuldade em entender as perguntas feitas. Em determinado

    momento, até disse que está acostumada apenas com o que ela aprende na escola, matérias

    fáceis, já as perguntas da entrevista eram muito complexas. Ela desconhecia o sinal da língua3  As respostas foram traduzidas para a língua portuguesa e é nessa form a que são citadas aqui.

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     para “dever”. Mesmo quando a entrevistadora explicou o conceito em termos mais simples, ainformante não respondeu coerentemente à questão. Curiosamente, a única resposta bemformulada por ela foi a quinta, não respondida pelas outras duas: 

     J(15): Num programa de TV do canal 4, há uma mulher que ensina e cuida de crianças. Eu gosto dela porque ensina as crianças. O programa é sempre aos sábados, mais ou menos às

    oito ou nove horas da noite. Pesquisando a programação do referido canal de TV, en contramos que a mulher citada por J(15) é “Supernanny”, “babá” da televisão que disciplina crianças em todo o mundo e

    auxilia os pais em criar melhor seus filhos. J(15) afirmou gostar dela porque ensina erepreende as crianças. Além de ser essa justamente a questão que não foi respondida pornenhuma das outras mulheres, achamos curioso o fato de seu “exemplo de mulher” ser uma

     pessoa apresentada na televisão, cujas atividades são as de ensinar a cuidar de crianças. Note-se que essa informante está na adolescência e já parece apresentar uma preocupação que faz

     parte da concepção de mulher das outras entrevistadas, quer seja: o papel da mulher é cuidardos filhos. Vale ressaltar que o programa “Supernanny” não é veiculado na língua de J(15),que tem acesso apenas às imagens desse.

    Isso nos atentou para o fato de que, além de adquirir tardiamente sua língua materna, oacesso à informação geral é limitado para essas mulheres. Se nem mesmo um programa deentretenimento pode ser plenamente compreendido por J(15), o que dizer das complexasrelações estabelecidas em sociedade? Com um acesso tardio à linguagem, e tudo o que delaemana, e um uso que se limita a relações externas, já que a língua de sinais é pouco usada noambiente doméstico, seus conceitos não estão bem formados ainda. Fica difícil inclusive, portodas as dificuldades que a informante teve para dialogar sobre o tema proposto, dizer queJ(15) tem essa ou aquela significação sobre ser mulher. É possível apenas avaliar que suasrespostas conduzem a uma leitura muito próxima às das mulheres surdas mais velhas.

    Ressalta, também, nos enunciados produzidos, a preocupação com a aparência damulher. Essa questão parece aproximar-se com uma visão crescente em uma grande parcelada sociedade feminina hoje. Porém, ela não se interliga com a possibilidade dessa mulher, quegosta de cuidar de sua aparência, ter uma vida produtiva em atividades em comunidadessócio-culturais mais amplas do que a própria família. Observe-se que essa questão érecorrente nos enunciados de pelo menos duas informantes, como mostram os exemplosabaixo:

     J (24): Mulher combina com beleza, gosta de se arrumar. [...] Mulheres gostam de comprarroupas, cosméticos, eu também, gosto de ficar bonita.

     J (15): Mulheres gostam de roupa. [...] Quando minhas amigas me dão roupas de presente,vestidos, eu gosto. 

    CONCLUSÃO

    Embora seja uma investigação inicial, o encaminhamento metodológico, bem como oembasamento teórico e a análise dos dados já permitem ver, entre outras coisas, que o

     processo de afastamento social causado pela aquisição tardia da LIBRAS e, ainda, o poucotrabalho realizado para o desenvolvimento de ações bilíngues, podem estar afastando a mulhersurda de uma visão mais contemporânea sobre o que é ser mulher. A análise aponta para umaformação de identidade feminina ainda muito fechada na convivência com a comunidadefamiliar, cujo papel da mulher estaria bem definido como mãe e esposa que, quando trabalhafora, não é parte da organização que sustenta financeiramente a família, papel ainda destinado

    aos homens. No geral, essa identidade ainda se apega a moldes tradicionais.

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      Essa leitura já se faz importante para alertar os profissionais que atuam na área dasurdez para a necessidade de ampliar as possibilidades de informação e formação para essas

     pessoas. Entre esses, a figura dos professores que trabalham em propostas bilíngues; delevantar essa temática nas escolas e colocá-la em discussão, pois assim estariam alertando acomunidade surda para a necessidade de se despertar o olhar para os mais diferentes

    significados sociais do que é ser mulher e homem nas diferentes culturas.Seria de grande valor, a partir desse ponto da análise, que outros trabalhos viessem acompletá-la, por exemplo, ampliando as entrevistas considerando o estrato social. Tambémseria interessante realizar entrevistas com mulheres ouvintes para a comparação dosenunciados resultantes sobre essa temática. Esses pontos ficam como sugestões para outrasinvestigações.

    AGRADECIMENTOS

    Agradecemos à Fundação Araucária, por ter propiciado a realização dessa pesquisa,através de financiamento. Também agradecemos às entrevistadas, que pacientemente

    dedicaram de seu tempo a fim de conceder dados para nosso trabalho.

    REFERÊNCIAS

    [1] SANTANA, A. Surdez e Linguagem: Aspectos e Implicações Neurolinguísticas .  SãoPaulo: Plexus, 2007.

    [2] GERALDI, J. Portos de Passagem. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.[3] ORLANDI, E. Identidade lingüística escolar. In: Signorini, I. (Org.) Lingua(gem) e

    Identidade - Elementos para uma discussão no campo aplicado. 2ª ed. Campinas,SP:Mercado de Letras; São Paulo: Fapesp, 1998

    [4] VIGOTSKY, L. Pensamento e linguagem. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

    [5] BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.[6] CLARK, K.; HOLQUIST, M. Mikhail Bakthin. São Paulo: Perspecitva,1998.[7] FINAU, R. Um Estudo das Categorias Funcionais em Textos Escritos de Deficientes

    Auditivos. Curitiba, 1996.[8] CAIXETA, J.; BARBATO, S. Identidade Feminina - Um Conceito Complexo. Revista

    Paidéia,  Ribeirão Preto, Ago 2004, vol.14, nº 28. Disponível em:http://www.scielo.br/pdf/paideia/v14n28/10.pdf. Acesso em 06 set. 2012

    [9] ELICHIRIGOITY, M. A formação do sentido e da identidade na visão bakhtiniana. In:Cadernos de Letras da UFF , v. 34, Niterói, 2008. Disponível em:http://www.uff.br/cadernosdeletrasuff/34/artigo12.pdf. Acesso em 20 set. 2012

    [10] SOBRAL, A. Filosofias (e Filosofia) em Bakhtin. In BRAIT, B. Bakhtin - Conceitos-Chave. Contexto; São Paulo, 2005.

    [11] KÖCHE, J. Fundamentos de metodologia científica: teoria da ciência e prática da pesquisa. 14ª. ed. rev. e ampl. Petrópolis: Vozes, 1997

    [12] AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo:Musa Editora, 2004.

    [13] LOURO, G. Gênero, Sexualidade e Educação - Uma Perspectiva Pós - Estruturalista.Petrópolis: Vozes, 1997