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5.Conclusão: O papel das sanções
Esse capítulo está dividido em três partes principais. Na primeira,
apresentaremos uma compilação das sanções dos agentes promotores que
estudamos no capítulo 4, desenvolvendo tabelas para facilitar essa síntese, as
quais seguem a tipologia de sanções apresentadas em nosso capítulo teórico.
O passo seguinte será a discussão sobre o efeito das sanções para o fim do
apartheid na África do Sul, com a breve apresentação do debate específico sobre
as sanções nas RI e o diálogo com hipóteses concorrentes ao nosso estudo. Ao
abordarmos especificamente a literatura sobre as sanções, devemos destacar a
corrente convencional, a qual defende que as sanções podem ser ineficientes ou
até resultar em consequências não calculadas e ter o impacto negativo, podendo
inclusive fortalecer o governo sancionado (Klotz; Crawford, 1999, p.38).
Portanto, confrontaremos nossas hipóteses com argumentos da literatura
específica sobre as sanções internacionais – exercício que será realizado com
maior ênfase na análise das sanções dos EUA decretadas em 1986, a mais
importante sanção potencializada pela rede de ativismo transnacional
antiapartheid, em nossa opinião. Os artigos da obra How Sanctions Work,
organizada por Crawford e Klotz (1999) serão as principais fontes bibliográficas
utilizadas na elaboração do presente capítulo, no qual discutiremos, além do
CAAA decretado pelos EUA, outras sanções estratégicas, sociais e econômicas.
Para efeito de conclusão, incluiremos nesse capítulo nossa autocrítica sobre
o estudo desenvolvido, de forma a explicitar nossas maiores dificuldades, nossas
convicções finais e, assim, permitir um diálogo com a comunidade acadêmica
para que esse estudo possa evoluir. Esse exercício reflexivo e critico será muito
importante também para que a nossa experiência de pesquisa seja devidamente
apresentada.
188
5.1. Síntese das sanções
As tabelas que apresentaremos agora servirão como referência e resumo
das principais sanções antiapartheid analisadas nas seis coalizões estudadas no
capítulo anterior. Além das sanções governamentais, multilaterais e civis,
desenvolveremos também uma tabela com os principais casos de funcionamento
do efeito-bumerangue.
Tabela 6: sanções governamentais
Sanção
Governo
Estratégicas Sociais Econômicas
EUA Embargo militar
de 1963
CAAA de 1986
CAAA de 1986
Reino Unido Embargo militar
de 1964
Ajuda militar
para o FLS em
1987
O resumo das sanções governamentais na tabela 6 ilustra o nosso argumento
de que a coalizão da rede de ativismo transnacional antiapartheid articulada nos
EUA foi a mais influente. Os ativistas conseguiram construir importantes canais
de comunicação com o poder legislativo, fator determinante para que o Congresso
subscrevesse o veto de Reagan e decretasse o CAAA.
No Reino Unido, o ativismo antiapartheid foi menos influente na política
externa do país e as medidas governamentais ficaram restritas a sanções
estratégicas, apenas pontuais em resposta a momentos mais dramáticos da história
do apartheid, quais sejam, o Massacre de Sharpeville e as revoltas civis da década
de 1980.
Tabela 7: sanções multilaterais
Sanção
Organização
Estratégicas Sociais Econômicas
ONU Embargo militar Boicote
189
recomendatório
de 1963
Fundo para ajuda
de vítimas do
apartheid,
estabelecido em
1965(arrecadação
de US$
11.462.202)
Fundo para
publicidade
contra o
apartheid,
estabelecido em
1975
(arrecadação
US$ 619.226)
Embargo militar
obrigatório de
1977
esportivo,
acadêmico e
cultural de 1968
(res 2396 XXIII
AG)
África do Sul
proibida de
participar da AG,
UNESCO, FAO,
OIT, OMS,
AIEA
Diversas
conferências
internacionais
Boicote
esportivo de
1988
Convenção
Internacional de
1973
Recomendatórias
de 1985 (res 566
e 569)
OUA Comitê de
Libertação
Africana, com
fundo de
financiamento
para os
movimentos de
libertação na
África austral
Diversas
conferências
internacionais
Criação do FLS e
SADCC –
isolamento
diplomático
CEE Pacote de
sanções
recomendatório
de 1985
(embargo de
armas, petrolífero
e nuclear)
Pacote de
sanções
obrigatório de
1986
Pacote de
sanções
recomendatório
de 1985 (boicote
cultural,
acadêmico e
esportivo)
Pacote de
sanções de 1986
Commonwealth Pacote de
sanções
recomendatório
de 1985
(embargo militar
e petrolífero)
Declaração
Gleneagles de
1977 exigiu dos
membros da
comunidade o
boicote esportivo
contra a África
Pacote de
sanções
recomendatório
de 1985
(proibição de
empréstimos)
190
Pacote de
sanções
obrigatório de
1987
do Sul Pacote de
sanções
obrigatório de
1987
A tabela 7 traz a compilação das sanções multilaterais e revela o conteúdo
principal das políticas restritivas ao apartheid elaboradas por organizações
internacionais. De fato, a importância das organizações internacionais para a rede
de ativismo transnacional antiapartheid não se restringe às sanções, mas ao
impulso de transnacionalização, haja vista a representatividade dessas entidades.
A função da ONU para a consolidação da rede de ativismo transnacional
antiapartheid foi inapreciável. A Assembleia Geral foi o mais atuante órgão do
sistema ONU contra o apartheid e, nesse sentido, permitiu, principalmente por
meio do Comitê Especial Contra o Apartheid, estabelecer diversos vínculos com
governos e movimentos antiapartheid de todo o mundo. Em um momento de
pressão internacional antiapartheid, o Conselho de Segurança decretou sua
principal medida antiapartheid em 1977, o embargo de armas obrigatório.
Entretanto, com o veto de EUA e Reino Unido, nenhuma sanção econômica
obrigatória passou na ONU.
A OUA traduziu o espírito Pan-Africanista e se tornou o principal
organizador regional do ativismo antiapartheid. O apoio financeiro à resistência
armada e o isolamento diplomático propiciaram maior legitimidade para a luta
armada e influenciaram o amplo reconhecimento dos movimentos de libertação
como legítimos representantes da população sul-africana.
A CEE e a Commonwealth tiveram suas ações antiapartheid limitadas pelo
Reino Unido, mas, face à evolução da rede de ativismo transnacional
antiapartheid, conseguiram passar sanções obrigatórias em meados da década de
1980.
191
Tabela 8: sanções civis1
Sanção
Movimento civil
Estratégicas Sociais Econômicas
EUA Campanha da
ACOA em 1957,
com libertação
de 61 presos
Emergence
Action
Conference 1960
(ACOA)
Ondas de
desinvestimento
de universidades,
municípios,
empresas e
diversos
movimentos
civis
Reino Unido Campanha de
Rivonia de 1963
Expulsão da
Commonwealth
Conferência
Internacional
para sanções em
1964
Boicote
esportivo de
1964 organizado
pelo AAM,
SAN-ROC e COI
Boicote
acadêmico de
1965
Tributo a Nelson
Mandela de 1988
Desinvestimento
de empresas e
corporações
WCC Programa Contra
o Racismo, com
doações de US$
4,7 milhões para
o PAC, ANC,
SWAPO e
TransAfrica
Encontros do
ECGP com
lideranças dos
principais
parceiros
econômicos da
África do Sul e
com movimentos
civis
antiapartheid
Campanhas de
desinvestimento
1 No caso das sanções civis, as ações antiapartheid foram elaboradas pela via de ação direta, como
explica Tarrow.
192
As sanções civis, elaboradas pela via de ação direta, simbolizam o
„encurtamento‟ do efeito-bumerangue, isto é, as sanções de sociedades civis sem o
intermédio governamental, conforme informa a tabela 8. Haja vista a sofisticação
institucional do sistema político dos EUA e a força que o movimento negro
adquiriu na vida política do país, a coalizão estadunidense foi a mais importante e
significativa articulação da rede de ativismo transnacional antiapartheid. Ainda
assim, o foco dessa coalizão foi praticar o efeito-bumerangue pela via
governamental, isto é, influenciar as sanções governamentais, o que ocorreu em
1986. Por isso as ações, via ação direta, se restringiram praticamente às ondas de
desinvestimento praticadas por universidades, municípios e ONGs.
Caso diferente ocorreu no Reino Unido, onde o ativismo antiapartheid
assumiu contornos transnacionais e o AAM cresceu como movimento de recepção
de exilados e elaboração das estratégias para a rede de ativismo transnacional
antiapartheid. Isso explica o grande número de sanções pela via direta, visto que a
política externa britânica coibiu a inclusão da temática do racismo em sua agenda
e a temática também não fez parte efetiva do debate político doméstico, sendo
subordinada à matéria colonial.
Tabela 9: O êxito do efeito-bumerangue
País Movimentos Metas Resultados Tipo de sanção
EUA ANC ~
ACOA + CAA
Desobediência
civil (anos 1950)
Libertação de
prisioneiros em
1957
Estratégica
EUA ANC ~ ANCLA
(Albert Luthuli ~
Martin Luther
King)
Appeal for action
against
apartheid
Embargo de
armas dos EUA
em 1963
Estratégica
EUA ANC ~ Free
South África
Movement +
CBC +
TransAfrica
Sanções dos
EUA
CAAA Social e
econômica
193
Reino Unido ANC ~ AAM +
Estados
caribenhos e
afro-asiáticos da
Commonwealth
Expulsar país da
comunidade
África do Sul
fora da
Commonwealth
em 1961
Social
Reino Unido ANC ~ AAM +
ONU
Campanha de
Rivonia
Evita a morte de
Mandela e outros
líderes
Estratégica
Reino Unido SAN-ROC ~
AAM + COI
Boicote
esportivo
África do Sul
fora dos Jogos
Olímpicos de
1964 e 1968
Social
Reino Unido ANC ~ AAM
Embargo de
armas
Reino Unido
anuncia embargo
de armas em
1964
Estratégica
Como enfatizamos correntemente nesse trabalho, o efeito-bumerangue é a
principal estratégia propiciada por uma rede de ativismo transnacional. A ação
coordenada entre movimento de um país violador para capitalizar suas demandas
em outras sociedades civis representa o ápice do combate às violações de um
Estado. A tabela 9 informa que a coalizão civil no Reino Unido foi a que mais
efetivou o efeito-bumerangue na rede de ativismo transnacional antiapartheid,
principalmente por ser um lugar de exílio de importantes lideranças sul-africanas.
Em termos de qualidade e simbologia, os „bumerangues‟ lançados nos
EUA foram inigualáveis. Martin Luther King Jr., Nelson Mandela, Albert Luthuli,
Walter Sisulu, entre outros, coordenaram ações entre as sociedades civis
estadunidense e sul-africana, e foram diversas organizações que desenvolveram as
atividades estratégicas.
A análise da tabela demonstra a imprescindibilidade do ANC como
movimento de articulação da rede de ativismo transnacional antiapartheid. Nesse
sentido, concluímos que o mais importante fator para o sucesso da rede de
ativismo transnacional antiapartheid e para as diversas execuções do efeito-
bumerangue foi Nelson Mandela. O líder, na prisão, se tornou um elemento de
coesão do ANC com os negros sul-africanos, com os movimentos civis de todo o
mundo, com diversos governos e organizações internacionais. As posições de
194
Nelson Mandela sempre simbolizaram a coerência, a bravura, a inteligência, a
sobriedade, a coragem, a paciência e o senso de justiça que foram inspiradores de
toda a luta transnacional que apresentamos nesse estudo.
5.2. O debate sobre as sanções nas RI
A questão das sanções baliza dois debates para o nosso estudo de caso: o
debate das sanções como ferramenta de influência; e o papel das sanções para
promover a transição democrática sul-africana. Sanções são apenas parte da
estratégia antiapartheid (Crawford, 1999, p.3), mas foram a principal bandeira da
rede de ativismo transnacional antiapartheid. Outros elementos, como a luta
armada dos movimentos de resistência na África do Sul, são relevantes na
estratégia global antiapartheid. Todavia, “the sanctions campaign against South
África was, at its inception, a grass-root and later an international effort that drew
inspiration and direction from the anti-apartheid movement” (Crawford, 1999,
p.10).
O tema das sanções esteve no epicentro das estratégias dos movimentos de
libertação. O líder do ANC, Oliver Tambo, em um comunicado a Nelson Mandela
sobre as negociações secretas do prisioneiro com o presidente Botha, alertou o
companheiro:
Look, there is only one problem: don‟t manoeuvre yourself into a situation where
we have to abandon sanctions. That‟s the key problem. We are very concerned that
we should not get stripped of our weapons of struggle, and the most important of
these is sanctions that is the trump card with which we can mobilize international
opinion and pull governments over to our side (Crawford, 1999, p.15).
Na literatura sobre as sanções, a corrente convencional defende que esse
mecanismo é ineficaz e, muitas vezes, contraproducente2. Esse ceticismo tem
raízes históricas, precisamente na falha da Liga das Nações em coagir por meio de
sanções a invasão italiana na Etiópia, em 1935.
Essa abordagem cética ignora as mensagens contidas no mecanismo das
sanções internacionais. A imposição de sanções informa sobre a ameaça de novas
2 Os exemplos mais emblemáticos dessa corrente são Baldwin, Economic Statecraft e Pape, Why
Economic Sanctions Do Not Work.
195
sanções e a promessa de inflexão caso o alvo cumpra certas condições. O duplo
funcionamento da sanção, como negação e incentivo, é suficiente para informar o
Estado violador sobre o seu comportamento correto (Crawford, 1999, p.5).
Além disso, grande parte da literatura se restringe às sanções econômicas
impostas por Estados contra Estados. Essa conceituação é muito limitada.
Segundo Crawford, “Sanctions may be undertaken by international organizations,
alliances, single countries, corporations, universities, municipalities or
individuals” (ibidem).
Discutiremos agora o resultado prático da rede de ativismo transnacional
antiapartheid para o enfraquecimento do apartheid na África do Sul, analisando o
efeito material e moral – conforme pressupostos construtivistas – de algumas
sanções estratégicas, sociais, econômicas contra o regime segregacionista. A crise
econômica e política do apartheid a partir dos anos 1980, as repercussões
internacionais do estado de emergência decretado na África do Sul, a iminência de
uma guerra civil e a abertura do regime com o presidente F. de Klerk serão
analisados como elementos empíricos dos efeitos das ações do ativismo
transnacional.
Sanções funcionam. Por isso o governo sul-africano sempre as temeu. O
Ministro das Finanças da África do Sul, Barend du Plessis, discursou ao
Parlamento em 15 de março de 1989 afirmando que as sanções internacionais
estavam prejudicando a economia do país:
Every South African will have to make a sacrifice in the batle against an economic
onslaught which is being organized against the country internationally...to abolish
the financial rand now would simply mean that the country would lose much by
way of foreign reserves and moreover would have to accept a sharp depreciation of
the commercial rand .3
O debate sobre a eficiência das sanções é marcante na disciplina das RI, e
o caso do apartheid na África do Sul é emblemático devido à grande mobilização
da comunidade internacional a favor das sanções internacionais.
Reconhecemos hipóteses concorrentes que explicam a aplicação das
sanções contra a África do Sul (capítulo 4) e a queda do regime africânder
(capítulo 5), nossas duas hipóteses vinculadas. Não negamos o diálogo com essas
196
hipóteses concorrentes. Pelo contrário, acreditamos que, ao considerarmos suas
viabilidades explicativas, poderemos incrementar nosso conhecimento sobre o
estudo de caso e até apontar limitações de nosso estudo.
Em uma ótica realista nas RI, as sanções servem apenas como alternativas
ao emprego de forças militares para que as potências alcancem seus objetivos e só
serão efetivas se resultarem em altos custos econômicos (que sejam comparáveis
ao custo de guerra) (Klotz, 1995a, p.54). Portanto, dentro da tipologia de sanções
com que optamos por trabalhar, apenas as sanções estratégicas e econômicas
teriam o potencial para resultar em altos custos econômicos. As sanções sociais
não teriam relevância em uma ótica realista, pois têm um limitado impacto
econômico e os efeitos morais e simbólicos das sanções são desprezados pelo
realismo. Com o suporte do construtivismo, estaremos considerando também
efeitos morais e materiais das sanções. Segundo Audie Klotz, a literatura
convencional nas RI procura sintetizar os efeitos das sanções por explicações
mercadológicas, porém nem todas as normas podem ser traduzidas em
considerações de mercado (1995a, p.94).
Mesmo se restringirmos nossa análise à noção convencional do realismo, a
qual assume apenas o impacto econômico das sanções, é notável a importância
das sanções econômicas para o enfraquecimento do regime africânder. A África
do Sul perdeu aproximadamente US$ 40 bilhões devido aos embargos comerciais.
O impacto para a economia sul-africana foi muito grande, haja vista a
dependência do comércio exterior devido ao subdesenvolvimento de seu mercado
interno (Marx, 1992, p. 227). O comércio exterior da África do Sul declinou
drasticamente na década de 1980. Com o Reino Unido, caiu 16% em 1986; queda
de 27% com a Alemanha no mesmo ano; com os EUA a queda foi de 40% em
1987. Algumas limitações nas sanções executadas devem ser ressaltadas, como o
fato de commodities minerais estratégicas para o Ocidente não terem sido alvo
efetivo das sanções (Crawford, 1999, p.12). Ainda assim, os dados apresentados
não podem ser desprezados como causa do enfraquecimento do regime
segregacionista sul-africano.
Em nosso estudo, o caso das sanções dos EUA de 1985 é emblemático,
justamente por ter representado uma sanção econômica (que permite o diálogo
3 Matéria publicada no International Herald Tribune de 16 de março de 1989, acesso no acervo do
ComAfrica.
197
com a corrente realista), determinada por um Estado relevante no cenário
internacional. Segundo Meznar et al.: “In 1986, the U.S. Congress overrode a
presidential veto and passed the Comprehensive Anti-Apartheid Act, imposing
one of the most far-reaching packages of economic sanctions to date” (1994,
p.1633). Em nosso viés analítico, o CAAA foi o maior feito da rede de ativismo
transnacional antiapartheid, pois a articulação do efeito-bumerangue superou os
interesses materiais do governo Reagan. O caso das sanções dos EUA permitirá a
confrontação direta de hipóteses concorrentes às nossas.
5.2.1. O impacto do CAAA (sanção econômica) – o caso para a confrontação de hipóteses
Em seu artigo “Sanctions on South Africa: What Did They Do?”, Philip
Levy (1999) apresenta o debate sobre a influência das sanções dos EUA para o
fim do apartheid, defendendo que o CAAA não influenciou na abertura do regime.
Os defensores da tese de que as sanções não tiveram muita influência, como Levy,
afirmam que economicamente o CAAA foi contornado pelos políticos do Partido
Nacional, através de um processo de substituição dos parceiros comerciais.
Em nossa perspectiva, o efeito moral da coação norte-americana (após o
CAAA, outros países seguiram o exemplo americano), somado às conseqüências
econômicas que as restrições comerciais e as proibições de investimento
representaram ao regime africânder, de fato minaram a estabilidade do apartheid
De fato, o impacto direto das sanções foi limitado. O CAAA restringiu
empréstimos e impôs barreiras à importação de ferro, prata, carvão, urânio, têxteis
e bens agrícolas da África do Sul, porém matérias estratégicas da economia sul-
africana como diamante e ouro foram omitidas (Levy, 1999, p.417). Para os
adeptos da tese da insuficiência do CAAA, o apartheid foi desmantelado por três
fatores: as distorções na força de trabalho geradas pela segregação lapidaram as
chances de crescimento econômico da África do Sul; o movimento interno
antiapartheid desestabilizou o governo do Partido Nacional; e, por último, a queda
da URSS facilitou a abertura do diálogo da elite branca com outros partidos
supostamente vinculados ao comunismo. Concordamos que esses fatores não
198
podem ser dispensados como motivos reais para o colapso do regime, mas
também não refutam a efetividade das sanções.
Na hipótese dupla que defendemos, os dois primeiros fatores não devem ser
desvinculados das sanções (no caso o CAAA), pois a desigualdade social
provocada pela péssima remuneração da mão de obra negra catalisou a
mobilização dos opositores internos e dos exilados, atores que desestabilizavam o
governo e se articulavam com aliados transnacionais (governos, organismos
internacionais e sociedades civis). Dentro da cadeia causal que nos propomos a
verificar, essas articulações, como parte de uma rede de ativismo transnacional,
foram essenciais para que as sanções fossem aplicadas. Portanto, esses dois
fatores (desigualdade na remuneração do trabalho e oposição interna) em nossa
proposta de trabalho são elementos indispensáveis na composição da rede de
ativismo transnacional e não devem ser desvinculados das sanções quando
estudamos as causas do fim do regime africânder na África do Sul.
Já a última hipótese de Levy revela uma explicação estruturalista que é
condizente com os pressupostos do neorrealismo (embora o autor não assuma essa
abordagem teórica específica). Em uma hipotética pesquisa neorrealista sobre o
fim do apartheid, a queda do regime sul-africano seria explicada a partir das
mudanças sistêmicas com o fim da Guerra Fria, haja vista o limitado impacto
econômico das sanções – como argumenta Levy. Portanto, uma argumentação
neorrealista explica o fim do apartheid como um resultado da pressão de uma
nova dinâmica de poder que resulta do fim da Guerra Fria (Black, 1999, p.106). A
crise do socialismo real teria tornado anacrônico o patrulhamento ideológico do
Partido Nacional contra seus adversários (considerados uma ameaça à soberania
nacional por serem, supostamente, comunistas e terroristas) e também teria
inviabilizado a imagem da África do Sul como um aliado ocidental contra a
ameaça comunista na geopolítica da África austral.
A explicação realista para o impacto das sanções e para o fim do apartheid
vai de encontro à hipótese do presente estudo em três sentidos: primeiramente,
estamos considerando aqui mais do que o impacto material das sanções, visto que
entendemos que impactos simbólicos, psicológicos e morais também contribuíram
para isolar e enfraquecer o regime segregacionista; o nosso entendimento de
sanções é mais amplo do que o postulado pela literatura realista, conforme
199
tipologia apresentada; e, por último, defendemos a importância da atuação da rede
de ativismo transnacional para a ocorrência de sanções estratégicas, sociais e
econômicas que foram essenciais para a queda do regime segregacionista. Trata-se
de um viés que difere do entendimento do fim do apartheid como uma
consequência do reordenamento de poder no sistema internacional com o fim da
Guerra Fria. O fato de o governo Botha decidir pelas negociações com Mandela
em meados da década de 1980, inclusive oferecendo a liberdade ao líder, já aponta
para a diretriz de mudança e reforma do fragilizado regime antes do colapso da
ordem mundial da Guerra Fria.
Nelson Mandela, após ser libertado, afirmou que abandonar as sanções
naquele momento seria correr o risco de abortar o processo para o fim do
apartheid, reafirmando sua importância (Hubfbauer et al., 1990, p. 233). Dois
anos após o CAAA, o número de companhias americanas na África do Sul
diminuiu de 325 para 265 (Sampson, 1988, p. 276-277).
Se a repressão do governo atingiu seu ápice com o presidente Botha,
o presidente que o sucedeu inverteu totalmente essa tendência, procurando
melhorar a imagem do país. F. W. de Klerk assumiu o poder em 1989,
encontrando uma África do Sul economicamente vulnerável a pressões globais e
com grande instabilidade interna. Ele libertou Mandela e outros prisioneiros
políticos em 1990, legalizou a atuação política de outros partidos (o ANC, o
PAC e o SACP), baniu algumas leis restritivas que eram pilares do apartheid
(como a Group Areas Act), abriu negociações com representantes da maioria
negra e acabou com o estado de emergência. Portanto, o cerne de suas reformas
foi a adaptação aos requisitos explícitos no CAAA, mais um fato político que
fortalece a ideia do poder de transformação criado pelas sanções econômicas dos
EUA. A mudança de diretriz do governo de forma tão radical no Partido
Nacional foi também reflexo do impacto das sanções impostas pelos EUA, país
que até poucos anos antes era o aliado mais expressivo do regime africânder. Para
Audie Klotz, o esforço das reformas do presidente F.W. de Klerk em atender as
condições impostas pelo CAAA já constitui um argumento plausível a favor da
efetividade das sanções (Klotz, 1995a, p.156-157).
No mais importante estudo realizado sobre o impacto do CAAA na África
do Sul, o Investor Responsability Research Center (IRRC) concluiu que as
sanções tiveram impacto, ressaltando que os impactos financeiros foram mais
200
fortes do que os comerciais. Por mais que o Partido Nacional tentasse contornar as
barreiras comerciais, o fluxo de investimentos prejudicou mais a economia sul-
africana do que as trocas comerciais diretas. O impacto psicológico e a queda da
credibilidade perante os investidores são fatores intangíveis e que não são
considerados pelos defensores da tese da insuficiência das sanções, a escola
realista das RI. Em nossa perspectiva construtivista, os efeitos morais, simbólicos
e psicológicos não podem ser rejeitados pelo simples fato de não serem
quantificáveis.
O desenvolvimento econômico da África do Sul era custeado por
empréstimos internacionais, com foco na substituição de importações. Em meados
dos anos 1980, a dívida externa do país circundava os US$ 24 bilhões (Sampson,
1988, p. 416) e a inibição dos investidores após as sanções econômicas,
estratégicas e sociais, promovidas por diversos governos, organizações
internacionais e movimentos civis, comprometeu as bases desse projeto
econômico.
O CAAA não criou apenas políticas punitivas, como proveu US$ 40
milhões para a sociedade civil sul-africana e organizações civis de negros. A
África do Sul ficou economicamente vulnerável a pressões globais e, devido ao
aumento da instabilidade interna, seus líderes tiveram que responder às sanções
internacionais para evitar o colapso social total.
Além do CAAA, o impacto das sanções econômicas civis pela via ação
direta, isto é, as campanhas de desinvestimento, não foram desprezíveis. Em
meados de 1985, seis estados e 26 municípios ameaçavam retirar seus
investimentos em firmas com operações na África do Sul e 40 universidades já
haviam retirado um valor de US$ 292 milhões em ações e investimentos (Meznar
et al, 1994, p.1633).
Além do impacto da principal sanção econômica contra o apartheid, o
CAAA, alguns casos específicos de sanções merecem uma análise mais detalhada.
Apresentaremos agora o impacto de outras sanções, reiterando, alem da questão
material, o impacto psicológico e moral confiados pela teoria construtivista.
5.2.2. Embargos militares (sanções estratégicas)
201
O apartheid sempre dependeu da força militar para sobreviver
domesticamente, reprimindo a oposição interna, e para promover suas políticas
regionais, com a ocupação da Namíbia e os conflitos com seus vizinhos – Angola,
Botswana, Moçambique e Zimbábue (Crawford, 1999, p.51).
Os embargos militares conseguiram, gradativamente, minar a capacidade
bélica das forças armadas sul-africanas. Os embargos militares impostos,
recomendatórios ou obrigatórios4, causaram poucos efeitos imediatos em termos
de deterioração da capacidade militar sul-africana. Todavia, no longo termo, o
poderio bélico da África do Sul em relação a seus vizinhos declinou de forma
significativa (Crawford, 1999, p.45). Esse declínio foi certamente um dos fatores
que levaram o regime a optar pelo diálogo com os movimentos de libertação.
A África do Sul despendeu recursos para contornar os embargos de armas.
A estratégia de substituição de importações de armamentos ajudou a enfraquecer,
em longo prazo, a estrutura social, política e econômica do apartheid. Uma
consequência marcante do embargo militar foi que a África do Sul desenvolveu
uma das maiores indústrias bélicas do mundo e a economia se tornou parcialmente
dependente do setor de armamentos. Em 1987, a Armscor, empresa de armas, era
a maior exportadora de bens manufaturados do país, vendendo US$ 900 milhões
naquele ano (Crawford, 1999, p.46).
A industrialização militar aumentou os gastos com pesquisa e
desenvolvimento e os recursos para a pesquisa militar representavam quase 30%
do montante total direcionado à pesquisa. Com isso, a industrialização militar
estimulou os demais setores industriais e as práticas das elites industriais se
modificaram no sentido de facilitar o uso eficiente da mão de obra negra. O
estímulo à melhoria da mão de obra e as oportunidade de trabalho, junto à
retomada da cultura de protestos dos negros, ajudaram a sustentar o movimento
antiapartheid na África do Sul (Crawford, 1999, p.61).
Outra forma da África do Sul escapar dos embargos militares, além da
produção local, foi o comércio clandestino de armas. Os extensivos recursos
materiais, financeiros e humanos destinados à compra de armas no mercado negro
aumentaram o endividamento do governo (Crawford, 1999, p.62).
4 O embargo militar obrigatório mais importante foi o imposto pelo Conselho de Segurança em
1977.
202
Apesar da porosidade dos embargos militares, esse tipo de sanção foi
muito custoso para a África do Sul. Mesmo com as estratégias do regime
africânder, os embargos militares causaram o declínio gradual das capacidades
militares da África do Sul face aos seus adversários regionais.
A despeito dos esforços da indústria armamentista, a capacidade bélica
sul-africana se tornou gradualmente obsoleta. Esse fato é ilustrado no que
concerne ao setor de combate aéreo, que exige capacidade de produção primária e
secundária mais sofisticadas, que a África do Sul não conseguiu desenvolver. Tal
malogro foi determinante para a negociação do conflito com Angola, país que
havia adquirido sofisticados sistemas de defesa aérea da URSS. Portanto, a
dificuldade de inovação tecnológica e a evolução das capacidades militares dos
adversários mudaram a equação do conflito aéreo a partir da década de 1980, setor
em que a superioridade da África do Sul era absoluta nas décadas anteriores
(Crawford, 1999, p.64-65).
Os efeitos dos embargos militares, principalmente o embargo obrigatório
da ONU em 1977, foram indiretos e a longo prazo, mas nem por isso devem ser
ignorados. Em suma, destacamos: os custos de oportunidade decorrentes da
substituição de importações, como o uso de recursos que o Estado poderia ter
gasto diretamente na repressão ou na promoção do crescimento econômico; o
paradoxo da incorporação de trabalhadores negros em uma porção da economia
dedicada ao trabalho qualificado tecnicamente; e a perda da hegemonia militar
regional.
5.2.3. Embargo nuclear (sanção estratégica)
O regime africânder se tornou secretamente uma potência nuclear, como
assumiu o presidente De Klerk em uma sessão do parlamento em 24 de março de
1993. O desmantelamento imediato do programa foi anunciado. A questão sobre
como um país isolado conseguiu tecnologia suficiente para produzir bombas
nucleares é, até hoje, um mistério (Fig, 1999, p.75). De Klerk garantiu que o país
não adquiriu material ou tecnologia de nenhum país, mas a documentação do
processo de manufatura das armas foi destruída. Ainda assim, Fig (1999) afirma
203
que a indústria nuclear sul-africana foi um empreendimento transnacional
estimulado pelos países ocidentais na troca por abastecimento de urânio, matéria
farta no território sul-africano. Na busca pelo urânio, potências nucleares
ocidentais possibilitaram que a África do Sul desenvolvesse pesquisa para
capacitar os estágios do ciclo do combustível nuclear, através do órgão Atomic
Energy Board (AEB)(Fig, 1999, p.77).
Apesar disso, as sanções estratégicas sobre a matéria nuclear (o embargo
da ONU de 1977 incluiu equipamentos nucleares) serviram para regredir a
velocidade do progresso técnico sul-africano no desenvolvimento de armas
nucleares (Fig, 1999, p.76).
O Programa “Átomos para a Paz”, iniciativa do presidente dos EUA
Eisenhower em 1953, incluiu um tratado secreto entre EUA e África do Sul5, o
qual habilitou um quadro de cientistas sul-africanos para um treinamento em física
nuclear em diversos laboratórios dos EUA. No retorno à África do Sul, esses
cientistas formaram o núcleo de uma ascendente burocracia nuclear. O acordo
também determinou o fornecimento pelos EUA de um reator nuclear com
capacidade de 20 Mega Watts e a transferência de urânio enriquecido sob a
condição de inspeção internacional, segundo salvaguardas assinada pela África do
Sul (Fig, 1999, p.80).
Durante os anos 1960, os EUA e o Reino Unido dependiam quase
exclusivamente do fornecimento do urânio sul-africano para seus programas de
armas nucleares, principalmente após o término do urânio do Congo Belga, que
foi usado no primeiro projeto Manhattan. As duas potências ocidentais
financiaram as pesquisas da Combined Development Agency (CDA), órgão
voltado para a exploração de urânio. Em troca do fornecimento estratégico na
Guerra Fria, a África do Sul recebeu uma injeção de investimento estrangeiro, o
qual permitiu o boom industrial de sua economia (Fig, 1999, p.79).
Em seu discurso, F. de Klerk revelou que o programa foi iniciado em 1974
pelo Primeiro-Ministro Vorster. Todavia, não havia dúvidas de que a África do
Sul possuía estoques de urânio enriquecido a 90% fornecidos pelos EUA, nível
suficiente para a fabricação de armas nucleares. O projeto experimental de
enriquecimento foi conduzido pela agência Uranium Enrichment Corporation of
5 O tratado recebeu o nome de US-South African Agreement for Co-operation Concerning Civil
Use of Atomic Energy.
204
South Africa Limited (UCOR) (Fig, 1999, p.80). A África do Sul não aderiu ao
Tratado de Não-Proliferação (TNP), que entrou em vigor em 1970, e, por conta
disso, os EUA passaram a obstruir o programa nuclear sul-africano. Ainda assim,
a planta nuclear do país, a usina SAFARI-1, jamais foi inspecionada.
O embargo nuclear voluntário da ONU, de 1963, não coibiu a venda de
matéria-prima e treinamento de cientistas nucleares sul-africanos. Até os anos
1970, a Guerra Fria era o principal fator na relação entre África do Sul e países
consumidores de urânio. Esses países ignoravam o malogro das políticas
segregacionistas do apartheid, apresentando apenas uma condenação retórica ao
regime. O fato de ser um dos mais importantes fornecedores de ouro – o metal era
atrelado ao dólar até 1971 – também contribuiu para a negligência das potências
ocidentais. Essa foi a dinâmica até o embargo de armas obrigatório de 1977, na
esteira da Revolta de Soweto (Fig, 1999, p.86-87). Além disso, a África do Sul foi
expulsa da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).
Com a escalada da violência regional, após as independências de Angola e
Moçambique, o governo africânder intensificou os esforços para aumentar a
capacidade de produção de armas nucleares e, com as restrições dos EUA em
fornecer urânio enriquecido para o reator SAFARI-1, a África do Sul estreitou
seus laços com a Alemanha ocidental. O governo Reagan abrandou a política
nuclear para Pretória, mas o CAAA de 1986 efetivamente baniu as compras de
urânio sul-africano e o fornecimento da matéria-prima enriquecida para o regime
africânder (Fig, 1999, p.88).
As sanções estratégicas sobre a matéria nuclear se disseminaram na década
de 1980. A partir de 1985, a CEE proibiu todo tipo de cooperação nuclear,
elaborando dois pacotes de sanções. A Commonwealth baniu os contratos de
venda e compra de bens nucleares para a África do Sul, conforme a Declaração de
Nassau, de 1985. Embargos nucleares também foram impostos por Austrália,
França, Japão, Nova Zelândia e países escandinavos (Fig, 1999, p.88).
Por outro lado, Israel desenvolveu cooperação total com a África do Sul na
temática nuclear, o que diminuiu o impacto das sanções dos anos 1980. Na
verdade, os embargos nucleares foram tardios, pois não impossibilitaram o
desenvolvimento e maturação da indústria nuclear sul-africana, e, com a
colaboração inestimável de EUA, Reino Unido e Israel, a África do Sul se
transformou em um Estado nuclear (Fig, 1999, p.89).
205
F.W. de Klerk ordenou o desmantelamento do programa nuclear em 26 de
fevereiro de 1990 e, em julho de 1991, a África do Sul se tornou signatária do
TNP. Apesar das sanções não terem evitado o desenvolvimento de armas
nucleares, elas não foram totalmente fúteis. Elas aumentaram os custos de
financiamento tecnológico e financeiro do processo de enriquecimento,
bloquearam a importação de equipamentos e materiais específicos da indústria
nuclear e chamaram a atenção mundial para a indústria nuclear sul-africana,
potencializando novas formas de pressão política e incrementando a legitimidade
da luta antiapartheid (Fig, 1999, p.89).
5.2.4. Conferências e Encontros (sanções sociais)
O capital informacional é inestimável para a coordenação estratégica dos
ativistas em uma rede (Keck; Sikkink, 1998, p.18). Os encontros organizados por
governos, organismos internacionais e movimentos antiapartheid propiciaram à
rede de ativismo transnacional antiapartheid a organização de um plano de ação e
o alinhamento das táticas de combate às políticas segregacionistas do regime sul-
africano.
O papel de conscientização da opinião pública e divulgação midiática da
causa antiapartheid favoreceram a proliferação do ativismo e, consequentemente,
o aperfeiçoamento da rede. As autoras Keck e Sikkink explicam que:
“Conferences and other forms of international contact create arenas for forming
and strengthening networks” (1998, p.12). O grande número de conferências e
encontros antiapartheid6 reitera a relevância destes eventos como sanções sociais
com a função essencialmente informacional.
5.2.5. Boicote esportivo (sanção social)
O esporte tem a capacidade de inspirar paixões nacionais e identidades e,
com isso, facilitar a mobilização popular. Estados africanos, exilados sul-africanos
e ativistas antiapartheid no Ocidente precipitaram um processo de isolamento da
6 Ver o site http://www.anc.org.za/ancdocs/history/solidarity/conferences/confs.html
206
África do Sul da comunidade esportiva internacional, culminando, na década de
1980, em um grau de isolamento sem paralelos na história do esporte moderno.
Em termos de isolamento, o boicote esportivo foi a mais eficiente de todas as
sanções contra a África do Sul (Black, 1999b, p.213).
O reconhecimento da importância do esporte com potencial influência
política e social começou na década de 1950. Em 1958, ativistas antiapartheid
(Dennis Brutus, por exemplo) criaram a Associação de Esportes da África do Sul
para formar órgãos de esportes não-raciais como alternativa às organizações
esportivas do governo africânder. Um dos órgãos criados foi o South African Non-
Racial Olympic Committee (SAN-ROC) em 1962. O SAN-ROC foi banido e, no
exílio, articulou o movimento de boicote esportivo transnacional. A aliança entre
o SAN-ROC e o COI resultou no boicote olímpico à África do Sul (Black, 1999b,
p.216).
Os mais importantes esportes na seara do boicote esportivo contra o
apartheid foram o cricket e o rúgbi, esportes praticados principalmente pela elite
branca. O tradicional time de rúgbi sul-africano, alcunhado de Springbok, teve
que cancelar sua excursão para o Reino Unido em 1970. Os protestos na excursão
do Springbok na Austrália em 1971 levaram ao cancelamento da viagem do time
de cricket sul-africano àquele país no mesmo ano. A onda de protesto contra o
Springbok teve seu evento mais dramático na Nova Zelândia, em 1981. Os
ativistas antiapartheid radicalizaram os protestos, pois o jogo entre as seleções da
África do Sul e da Nova Zelândia seria transmitido pela televisão, inclusive para a
África do Sul (Black, 1999b, p.216).
O poder de transformação do boicote esportivo foi expressivo
principalmente porque os únicos atingidos pelas sanções eram os brancos, visto
que os negros eram segregados também nos esportes. Uma pesquisa do Investor
Responsability Research Center, publicada em 1990, revelou que 29% dos
brancos consideravam o impacto do boicote esportivo „muito forte‟ e 45%
consideravam „forte‟ (Black, 1999b, p.219).
O boicote esportivo foi o primeiro que provocou reformas no regime de
apartheid, iniciadas com o governo Vorster no final da década de 1960. Em 1967,
Vorster anunciou que a África do Sul poderia hospedar excursões de times
miscigenados, desde que fossem aliados do país. Posteriormente, em 1971, o
207
governo permitiu a visita de times que disputassem eventos esportivos contra
equipes de negros sul-africanos (Black, 1999b, p.219-220).
O impacto e o poder punitivo do boicote esportivo são ignorados pela
literatura convencional das sanções, haja vista a impossibilidade de quantificação
desses elementos. A paixão pelos esportes é incomensurável, mas o seu poder de
transformação não pode ser ignorado por tal idiossincrasia. O rúgbi é um esporte
cultuado pela elite branca sul-africana e a impossibilidade de ver o Springbok em
torneios internacionais certamente foi punitiva à estrutura sociopolítica do
apartheid.
O esporte na África do Sul refletia as normas segregacionistas do sistema
político. Ao questionar esse aparato, o boicote esportivo desafiou a base
normativa do apartheid, preparando, em última instância, os africânderes para a
inevitabilidade da mudança (Black, 1999b, p.222).
As reformas esportivas já demonstravam o esforço do apartheid para evitar
o isolamento internacional. As sanções esportivas contribuíram indireta e
externamente para o fim do apartheid (Black, 1999b, p.224). A relevância do
boicote esportivo para a rede de ativismo transnacional antiapartheid é notória: a
mensagem principal foi a de que as sanções funcionam. O sucesso do boicote
esportivo catalisou as demais campanhas antiapartheid para aumentarem a pressão
internacional contra o regime segregacionista. Segundo Black:
Sport sanctions thus reinforced normative change and signaled directly to white
South Africans the positive opportunities associated with the ending of apartheid.
In their removal, as with their imposition, sport set a highly visible precedent
(1999b, p.226).
O apartheid não terminou por causa do boicote esportivo, o que não pode
nos induzir a ignorar os efeitos dessa sanção social. A campanha pelas sanções
como um todo e a transição democrática sul-africana não podem ser entendidas
sem uma apreciação do papel desempenhado pelo boicote esportivo (Black,
1999b, p.226).
5.2.6. Defesa do regime africânder
208
As reações do governo africânder representam mais um argumento
coerente a favor da eficiência das sanções, interpretação que seria fatalmente
descartada pela literatura convencional das sanções. A defesa do regime
africânder diante da comunidade internacional foi sempre o apelo à soberania do
país em relação às suas leis, o que condiz com a afirmação de Keck e Sikkink
sobre a dicotomia entre soberania e diretos humanos, à qual lembramos na
introdução de nosso estudo:
Transnational advocacy networks played a key role in placing human rights on
foreign policy agendas. The doctrine of internationally protected human rights
offers a powerful critique of traditional notions of sovereignty, and current legal
and foreign policy practices regarding human rights show how understanding of
the scope of sovereignty have shifted (1998, p.79).
Com a evolução gradativa da rede de ativismo transnacional antiapartheid,
o governo africânder criou novas justificativas e estratégias publicitárias para
convencimento da comunidade internacional. Dentre as principais medidas do
Partido Nacional, destacaram-se a sofisticação da política de „desenvolvimento
separado‟, com a declaração da independência de algumas homelands a partir de
1976, política iniciada pelo governo Vorster; e as reformas anunciadas pelo
governo Botha a partir de 1979, com a flexibilização de algumas legislações
específicas do „pequeno apartheid‟ e o anúncio de uma nova Constituição na
década de 1980. Essas reformas foram, na realidade, medidas paliativas e
cosméticas, as quais visavam apenas ludibriar a comunidade internacional e
perpetuar a hegemonia do regime africânder.
A realidade social de segregação das raças não foi transformada por essas
reformas periféricas. Keck e Sikkink, explicando o caso da ditadura argentina e a
rede de ativismo transnacional contra esse regime, argumentam que: “the truth
about human rights abuses there probably would have remained hidden without
the detailed documentation and diffusion of information by the international
network” (1998, p.117). No caso da África do Sul, o aceno de reformas pelo
governo africânder demonstrou o desconforto do regime diante do isolamento
internacional do país e a preocupação com as sanções influenciadas, em grande
parte, pela rede de ativismo transnacional antiapartheid. A conscientização da
opinião pública internacional sobre as violações de diretos humanos pelo regime
africânder foi possibilitada pelo fluxo de informações da rede de ativismo
209
transnacional antiapartheid, e a pressão crescente das sociedades civis
incrementou o alcance das coalizões da rede e multiplicou a tática de efeito-
bumerangue em vários países.
Não podemos também ignorar o efeito total de cada uma das sanções que
estudamos. O conteúdo simbólico deste efeito total se ilustra na mensagem
implícita da comunidade internacional, qual seja, a de que as práticas racistas do
governo africânder não seriam mais admitidas. Reproduzimos abaixo uma
interessante colocação da Asmal:
Sanctions were a lynch-pin of the international movement‟s strategy. Economists
will argue over the extent to which sanctions damaged and distorted the South
African economy and over how heavy economic difficulties weighed in de Klerk‟s
decision to come to the negotiating table. I have no doubt about the role sanctions
played. Disinvestment was the dagger that finally immobilized apartheid. […] The
history of the arms embargo is very interesting because of what happened in Lagos
in an attempt to forestall this momentum towards full economic sanctions. It is an
interesting strategy of international diplomacy that conceded this imperfect arms
embargo because they had to resist the demand for sanctions […] Above all the
fear of sanctions led the apartheid government to build capacity and invest in state
corporations, in a way which by the mid 1980s was exhausting its credit and led to
the crisis in its relations with the international banking world which we can now
see was one of the key events forcing the Nationalist regime to abandon apartheid
(Asmal, 1999, 81).
5.3. Considerações finais da dissertação
Ozgur afirma que:
Evidently, the South African Government is not invulnerable to international
pressure. Under both internal and external pressure, that Government has made
some changes and proposed some others in its domestic politics. It is not feasible to
classify changes as those affected under internal pressure and those under external
pressure. The changes have been brought about by a combination of internal and
external pressures (1982, p.138).
O modelo construtivista das redes de ativismo transnacional possibilitou que
o estudo do ativismo antiapartheid em diversos países fosse contemplado como
um único objeto de pesquisa. As mudanças do governo da África do sul, com o
ápice no final da década de 1990, se devem a essa combinação entre pressões
internas e externas, as quais estão vinculadas. A articulação política entre
governos, organismos internacionais e movimentos antiapartheid propiciou um
210
poderoso arranjo social, a rede de ativismo transnacional antiapartheid. As
diversas medidas que foram adotadas, as quais sintetizamos em uma tipologia de
sanções, foram determinantes para as concessões políticas do governo africânder
no decorrer da década de 1980 e o início do processo de negociações com
Mandela.
Nelson Mandela reconheceu a importância das pressões externas e seus
vínculos com a situação doméstica sul-africana:
The world is on our side. The OAU, the United Nations and the anti-Apartheid
movement continue to put pressure on the racist rulers of our country. Every efforts
to isolate South Africa adds strength to our struggle (Ozgur, 1982, p.148).
Mandela liderou uma vigorosa campanha para que os países mantivessem as
sanções no regime sul-africano. O líder requisitou garantias de que as sanções não
seriam aliviadas até que o processo de abertura democrática se tornasse
irreversível (Marx, 1992, p.230). O ANC reconheceu a contribuição da rede de
ativismo transnacional antiapartheid, com o discurso de Oliver Tambo na
Conferência de Solidariedade Internacional realizada em Joanesburgo em 1992:
to those of the participants who have come from outside, we say you are here today
because by your actions you have brought the system of apartheid to its knees...this
broad movement against apartheid struck a mighty blow against the system of
apartheid, gave enormous strength to our liberation movement, sustained and
helped to free those who were in prison, maintained those who were in exile…and
has brought us to the point where we can now say that the victory is in sight.
As duas hipóteses de nosso estudo, quais sejam, a influência da rede de
ativismo transnacional antiapartheid nas diversas sanções governamentais e
multilaterais7 e a influência das sanções para o fim do regime segregacionista na
África do Sul não apresentam um nexo de causalidade nítido e absoluto. Elas são
interpretativas e, por isso, contestáveis. Ainda assim, estivemos sempre
preocupados com a apresentação de fontes que permitissem a plausibilidade de
nossas interpretações. Keck e Sikkink reconhecem a dificuldade de estabelecer
essa relação causal:
7 As sanções civis em nosso estudo se enquadram na via de ação direta delineada por Tarrow, ou
seja, são elaboradas pelas sociedades civis sem intermédio de governos ou organizações
internacionais.
211
Most governments‟ human rights policies have emerged as a response to pressure
from organizations in the human rights network, and have depended fundamentally
on a network information. For this reason it is hard to separate the independent
influences of government policy and network pressures. Networks often have their
impact by working through governments and other powerful actors (1998, p.102).
Tendo em mente a dificuldade de estudar as razões de mudanças nas
políticas de direitos humanos de um país violador (tais mudanças podem ser
resultado da ação de uma rede de direitos humanos, de definição governamental,
ou dos dois ao mesmo tempo), a tipologia de sanções que desenvolvemos foi uma
forma de propiciarmos alguma distinção entre o resultado das ações da rede de
ativismo transnacional antiapartheid e as opções de mudança política do regime
africânder.
Keck e Sikkink explicam que a rede, por si só, não é um fator suficiente
para a mudança nas práticas de um Estado violador:
A network existence and its decision to focus on abuses in a particular country is a
necessary but not sufficient condition for changing human rights practices [...] the
vulnerability of the target state is thus a key factor in network effectiveness (1998,
p.117).
A vulnerabilidade da África do Sul, em nossa perspectiva, aumentou na
medida em que a rede de ativismo transnacional antiapartheid evoluiu. E a ação
cada vez mais contundente das diversas coalizões da rede propiciou a proliferação
de sanções em meio às revoltas populares da década de 1980 na África do Sul, o
que foi determinante para a mudança de comportamento do Estado violador -
último estágio de uma rede de ativismo transnacional.
Em relação às fontes, adaptamos nossa pesquisa ao conteúdo bibliográfico a
que tivemos acesso no decorrer do trabalho. Infelizmente, não conseguimos
acesso à coleção da Aluka/Jstor, que enriqueceria nosso estudo sobre as
estratégias e interações entre ativistas antiapartheid e governos de todo o mundo.
Apesar disso, as fontes abertas na Internet – os sites do ANC, o Nelson Mandela
Foundation, DISA, ACOA, AAM – o acesso ao acervo do ComAfrica e à coleção
sobre o apartheid no UNIC –Rio de Janeiro, a bibliografia disponibilizada pelo
CEAA/UCAM e pela biblioteca da PUC-Rio, especialmente a coleção NIREMA,
e as nossas aquisições pessoais propiciaram um prazeroso e árduo trabalho de
pesquisa.
212
O nosso trabalho também é uma compilação bibliográfica de estudos
especializados nos temas de apartheid, ativismo transnacional e sanções
internacionais, temas estes reinterpretados conforme diretrizes do modelo
conceitual arquitetado. Esta dissertação de mestrado é uma releitura de estudos
referenciais sobre o ativismo antiapartheid dentro de um escopo analítico
específico do campo das Relações Internacionais, mais especificamente, o
construtivismo. E o modelo teórico não restringiu nossa liberdade interpretativa,
pois a maleabilidade metodológica propiciada pelo instrumental construtivista
permitiu a adaptação da teoria ao nosso estudo de caso. Além disso, o
construtivismo possibilitou um profícuo diálogo com estudos de outras áreas,
como a Sociologia.
O resultado de nosso estudo não é um ponto final em nossa pesquisa. Na
medida em que nos aprofundamos em nosso objeto de estudo, ficou explícita a
vastidão de informações e possibilidades interpretativas do tema; por isso
reconhecemos a impossibilidade de um estudo em nível de mestrado (dois anos e
meio de pesquisa, com um ano integral) esgotar um tema desta magnitude. Devido
à dificuldade de fontes e escassez de tempo, algumas coalizões relevantes da rede
de ativismo transnacional antiapartheid não foram estudadas com o devido
aprofundamento.
Reiteramos que acrescentamos em nosso estudo um apêncdice sobre o
ativismo antiapartheid desenvolvido no Brasil, adendo este fundamentado nas
fontes da ONG ComAfrica. A reprodução de importantes documentos do acervo
da ONG encontra-se anexado na dissertação.
O ano de 2010 foi um marco histórico para a África do Sul, por diversos
eventos marcantes: a celebração dos 20 anos de liberdade de Mandela; os 50 anos
de aniversário do Massacre de Shaperville; e, principalmente, a realização da
Copa do Mundo de futebol no país. A Copa do Mundo na África do Sul estimulou
a produção midiática em massa sobre a história sul-africana, especialmente sobre
o apartheid e Nelson Mandela. Alguns documentários relevantes foram
produzidos e, inclusive, forneceram informações para o nosso estudo acadêmico.
Um exemplo foi o “Especial Sportv” sobre a questão de um time de futebol
brasileiro que sofreu com a política de segregação na África do Sul no final de
década de 1950.
213
Os dois maiores eventos simbólicos para o fortalecimento da unidade
nacional sul-africana e a consolidação da democracia foram exatamente o
campeonato mundial de rúgbi, em 1995, e a Copa do Mundo de Futebol, em 2010.
O país ainda sofre muito com o legado do racismo, além de problemas estruturais
na economia, como o alto índice de desemprego, os problemas de infra-estrutura
no transporte público e a epidemia da AIDS, que atinge cerca de 5.700.000
pessoas da população sul-africana, mais do que 10% da população total do país8.
Apesar dos malogros, a evolução da África do Sul é notável com a
recuperação do seu pretígio internacional, feito esse capitaneado pela liderança de
Nelson Mandela. A principal mudança no país certamente é o resgate da
cidadania, expresso na alegria que seu povo demonstrou com a realização da Copa
do Mundo. A mensagem desse sentimento, simbolizada com a participação de
Mandela na cerimônia de encerramento da Copa, revela o agradecimento da
verdadeira África do Sul a todos aqueles que se empenharam para a derrocada da
máquina segregacionista chamada apartheid.
8 Fonte: http://www.unaids.org/en/CountryResponses/Countries/south_africa.asp (acesso no dia 28
de julho de 2010)