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    Jusnaturalismo estoico e republicanismo

    no De Legibusde Ccero

    Andr Menezes Rocha1

    Resumo: O propsito deste artigo mostrar como Ccero constri seu argumento emdefesa do tribunato da plebe ao pensar a justia participativa e a constituio das ma -gistraturas da Cidade no De Legibus. Os estudiosos da losoa poltica moderna e, mais

    precisamente, os leitores de Maquiavel, sabem que o argumento em defesa do tribunatoda plebe teve fortuna na histria da losoa poltica moderna. Este artigo limita-se a veri-car sua origem no interior da estrutura discursiva do De Legibusde Ccero. O argumentose insere num contexto mais amplo cujo escopo era a defesa da autonomia do Senado emface das ameaas de ditadura que pairavam sobre a Repblica Romana.Palavras-chave: natureza virtude lei poltica repblica liberdade.

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    Rocha, A. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.227-247228 Jusnaturalismo estoico e republicanismo

    do a lei natural como razo[ratio] que sustenta toda a Natureza3, sendo comum

    aos homens e aos deuses e que chamada lei[lex] apenas quando apreendida ou

    traduzida pela mente humana. A razo universal, no materialismo estoico, no

    formalismo vazio, pois ela uma fora [vis Naturae]4que sustenta a coeso de

    todos os corpos na Natureza.

    Desta noo de Razo como fora que alenta a coeso de todos os cor-pos da Natureza5segue a denio de virtude como fora [vim], denio que

    prpria do materialismo estoico e est ligada, sobretudo, ao animuse s aes do

    corpo na prxis- diferentemente da denio platnica de virtude, que est liga-

    da ao repouso teortico no conhecimento do bem. No poderia ser diferente, j

    que Ccero no escreve para lsofos que deveriam se tornar polticos, mas para

    os senadores que, exercendo suas magistraturas na repblica romana, ocupavam-

    se com a losoa para investigar questes de moral e poltica.

    Quando Leo Strauss reduz o De legibusde Ccero ao De Legibusde Plato,

    sob a alegao de que o estoicismo poderia ser reduzido ao platonismo 6, j que

    3 I18. (...) a lei a razo suprema intrnseca natureza [lex est ratio summa insita innatur] que nos manda o que devemos fazer e probe a s coisas contrrias. E esta mesarazo, quando rmada e realizada pela mente humana, chama-se lei. CCERO. Traitdes Lois, p.11.4I19 Se estamos corretos, como nos parece, devemos derivar a noo do direito danoo de lei. Pois a lei a fora da natureza [naturae uis], a mente e a razo do prudente[mens ratioque prudentes] e tambm a regra do direito e das injrias [iuris atque iniuriae regula].Como nosso discurso feito para todo o povo, devemos falar popularmente e chamar delei o texto que sanciona por escrito o que se quer seja com mandamentos ou proibies[appellare eam legem quae scripta sancit]. Mas para fundamentar o direito tomemos como

    origem aquela suma lei que, comum a todos atravs dos sculos, nasceu antes que fosseescrita uma lei qualquer ou antes que qualquer cidade fosse constituda.CCERO.Traitdes Lois, p.11.5 No estoicismo do grupo de Cipio, esta concepo est ligada a uma cosmologia e auma teoria do tempo histrico. A unidade entre o tempo cosmolgico e o tempo histri-co dada pela teoria do eterno retornoque Strauss deveria conhecer pela inuncia decisivaque Nietsche teve sobre seus estudos sobre os lsofos antigos.6 Falando muito grosseiramente, podemos distinguir trs tipos de ensinamentos [te-

    nasceu de discpulos diretos de Scrates, oculta as transformaes histricas que

    ocorreram e se priva de pensar as diferentes concepes polticas que foram

    elaboradas pelas diversas escolas loscas da antiguidade. Seguindo a sua pr-

    pria frmula em Natural Right and History, toda concepo jusnaturalista deve

    ser pensada em relao ao conceito de Natureza que o lsofo poltico aceita

    ou avana7

    : ora, no texto de Ccero clara a aceitao do materialismo estoicoe a denio da lei natural como vim materializa no prprio texto do De Legibus

    esta adeso, de tal maneira que ignor-la signicaria ignorar o texto de Ccero e

    o sentido que ele mesmo imprimiu ao utilizar as palavras do latim. E pouco vale

    o argumento de que Ccero era um ctico 8se, com base nele, Strauss interpreta

    o texto luz de suas leituras do platonismo, pois com base no mesmo argumen-

    to podemos lanar uma antinomia e realizar a aventura contrria para vericar

    se encontramos um sentido para o texto que caria oculto se segussemos nas

    trilhas de Strauss. Com efeito, ainda que consideremos apenas como provveis

    as proposies acerca da Natureza, das leis naturais que valem para os homens

    e os deuses, bem como acerca da virtude e do vcio, as anlises polticas do De

    achings] clssicos sobre o direito natural, ou trs diferentes maneiras pelas quais osclssicos entenderam o direito natural. Estes trs tipos so o Socrtico-Platnico, o

    Aristotlico e o Tomista. Quanto aos Esto icos, a mim me parece que os seus ensina-mentos sobre o direito natural pertencem ao tipo Socrtico-Platnico. STRAUSS.

    Natural Right and History, p.146.7 A ideia do direito natural no conhecida enquanto a ideia de Natureza no for co-nhecida. A descoberta da Natureza trabalho do lsofo. Onde no h losoa, no htambm conhecimento do direito natural.. STRAUSS.Natural Right and History, p.81.8 A doutrina da Lei Natural dos estoicos baseada na doutrina da divina providncia

    e em uma antropologia teleolgica. (...) razovel assumir que a aparentemente inqua -licvel aceitao da doutrina da Lei Natural dos Estoicos tem para Ccero a mesmamotivao que para tico. Ccero mesmo diz que escreve na forma de dilogos para noapresentar abertamente suas posies. No m das contas, ele era um ctico Acadmico eno um Estoico. E o pensador que ele diz seguir e que mais admira Plato, o fundadorda Academia. Deve-se ao m dizer que Ccero no encara a doutrina da Lei Natural dosEstoicos, no que ela ultrapassa a doutrina do direito natural de Plato, como evidente-mente verdadeira.STRAUSS.Natural Right and History, pp. 154-155.

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    Rocha, A. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.227-247230 Jusnaturalismo estoico e republicanismo

    Legibustornar-se-iam vagas se fossem ignoradas estas proposies que exprimem

    a tradio do naturalismo estoico no primeiro livro.

    A Natureza apresentada como uma Cidade, com suas leis xas e eter-

    nas, assim como apresentada no sonho de Cipio9. A referncia ao De Republica

    feita na fala do prprio Marco10. Nesta Cidade de que participam tanto os

    homens como os deuses, h leis eternas que sancionam a virtude e condenam ovcio. Os indivduos virtuosos, segundo Ccero, so recompensados naturalmente

    pela prpria virtude11, ao passo que os viciosos so punidos e torturados pelas

    suas prprias paixes12. No plano coletivo, as leis desta Cidade sustentam as ami-

    zades entre os virtuosos e as inimizades entre os viciosos.

    Nos livros segundo e terceiro do De Legibus, Ccero interroga como de-

    vem ser as instituies de uma Cidade organizada no por deuses, como o Olimpo,

    9 A descrio do famoso Sonho de Cipioencontra-se no sexto captulo do De Republica,deCcero. Cipio apresenta a Natureza como uma grande Cidade, cujas leis, xas e eternas,sancionam a virtude e condenam o vcio, de tal maneira que os cidados que realizassema virtude nas magistraturas de Roma obteriam, pelas leis xas e eternas da Natureza, odireito de fruir eternamente do sumo bem, ao passo que os cidados que realizassem os

    vcios, pelas mesmas leis xas e eternas da Natureza, seriam punidos eternamente comos suplcios dos vcios e a privao do sumo bem.10 I, 20. Como, portanto, devemos ter e conservar o estado daquela Repblica [statusRei Publicae] que Cipio, no curso dos seis livros do De Republica, nos ensinou ser o me-lhor, devemos acomodar todas as nossas leis a este gnero de Cidade e como tambmdevemos semear certos costumes que no podem ser sancionados por escritos, retomareia raiz do direito na natureza [stirpem iuris a natura].CCERO.Trait des Lois, p. 11.11I, 25. Segue disso que conhece deus todos aquele que conhece ou como que lembra

    de onde se originou. [unde ortus sit]. A virtude que se encontra nos deuses e nos homens a mesma e no h outro gnero alm dela. A virtude [virtus], com efeito, no nada outroque a natureza mesma realizada em seu sumo.CCERO.Trait des Lois, p.14.12 I, 44.A natureza no distingue apenas entre o direito e a injria [ius et iniuria], mastambm entre as aes honestas e as torpes [sed omnino omnia honesta et turpia]. Pois, desdeque a nossa inteligncia [communis intellegentia] nos fez conhecer e sentir as coisas queentram no nimo, nos ensinou a considerar as aes honestas como vir tudes e as torpescomo vcios [honesta in uirtute ponuntur in uitiis turpi].CCERO.Trait des Lois, p. 25.

    mas por homens13, como Roma, para que favoream os cidados virtuosos e con-

    denem os viciosos. No livro II trata das instituies religiosas e no livro III das

    instituies laicas que entram na organizao da Cidade.

    Como deve ser organizada a Cidade para que suas instituies favoream

    cidados virtuosos e cobam os viciosos? Ccero apresenta trs regras gerais de

    organizao das magistraturas.(1) As leis civis prescritas pelo Senado devem ser obedecidas por todos,

    mas, reciprocamente, todos, incluindo a plebe, devem ter o direito de se defender

    pela fora das mesmas leis se forem acusados de desobedec-las;

    (2) Todas as magistraturas no Senado devem ser colegiadas, ou seja, exer-

    cidas simultaneamente por dois ou mais cidados (como o consulado que, na

    repblica, substitua a magistratura do monarca) e rotativas (com perodos de

    dois a cinco anos);

    (3) Nenhum cidado, exercendo alguma magistratura, pode dar ou rece-

    ber presentes de outros.

    Estrutura do livro III.

    O tema do livro III a organizao das magistraturas, ou seja, a estrutura

    interna da Cidade que seria conforme lei natural enunciada no livro I. Se quisermos

    resumir o tema em uma questo, ela pode ser a seguinte: como devem ser organizadas

    as magistraturas de uma Cidade para que suas leis civis obriguem os cidados virtu-

    de e cobam seus vcios? As noes de virtude e vcio foram denidas no livro I.

    13 I, 23 Como nada melhor que a razo e que ela a mesma tanto no homem comoem deus, tambm ela a primeira sociedade estabelecida entre deus e os homens [primahomini cum deo rationis societas]. Mas entre aqueles em que a razo [ratio] comum, tambma reta razo [recta ratio]; e como ela uma lei, devemos julgar que os homens e deus tmuma sociedade fundada na lei. E se entre eles h a lei comum [communis legis], tambm en-tre eles h o direito [jus]. Mas aqueles que tm leis e direitos comuns vivem sob a mesmaCidade. CCERO. Trait des Lois, p. 13.

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    Rocha, A. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.227-247232 Jusnaturalismo estoico e republicanismo

    O livro III pode ser dividido em trs g randes movimentos:

    (1) Deduo, partindo do princpio enunciado como lex naturalis,

    das magistraturas que, organizadas segundo este princpio natural, consti-

    tuem a Republicaque vive de acordo com a ordem natural ou Natura14.

    (2) Aps a concluso de que a constituio republicana deRoma a realizao histrica desta Repblica ideal, pela investiga-

    o das filosofias aristotlica e estoica acerca do bem comum e do

    melhor regime poltico, Ccero retoma a questo das transforma -

    es de regime, ou seja, dos ciclos da Histria, tratada por Cipio

    no livro II do De republica.15

    (3) Debate entre Ccero e Quinto acerca do melhor regime:

    Quinto argumenta que a aristocracia deve ser pura e Ccero sustenta

    que somente o regime misto, que incluindo aspectos do regime popu-

    lar, pode garantir que a virtude [virtus] prevalea na Cidade16e no maior

    nmero de cidados, sejam patrcios ou plebeus.

    O ofcio dos magistrados e a produo de leis.

    Marcoinicia denindo a lei da Natureza [vim]17que rege o ofcio dos ma-

    gistrados: prescrever, partindo das leis, aes corretas [recta] e teis. Este ofcio de

    prescrever est condicionado s leis da Natureza.

    14 Primeiro grande movimento. Livro III, 1 a 12.15 Segundo grande movimento. Livro III, 12 a 15.16 Terceiro grande movimento. Livro III, 15 at o m.17 O conceito de vissurge no livro I para pensar a lei da Natureza. Ora, se a lei da Na-tureza vim,o conceito surge neste livro III para pensar qual a lei natural que rege oofcio do legislador humano, ou seja, qual o princpio natural que comanda a atividadedos legisladores. O ofcio [vim] dos magistrados o poder legislativo.

    A fora [vim] do magistrado prescrever coisas retas e teis

    pelas leis. Os magistrados esto submetidos lei e o povo est

    submetido aos magistrados: o magistrado a lei falando e a lei

    o silncio do magistrado18.

    O que esta lei que, como fora natural ou fsica [vim], condiciona o of-cio do magistrado? Ccero arma expressamente19que a lei natural, entendida

    como a ordem da Natureza que sustenta as cidades, as casas [domus], os mares, o

    mundo: esta ordem o imperium Naturaecujos fundamentos so as leis naturais

    vlidas tanto para os homens como para os deuses. Ccero, assim, reapresenta su-

    mariamente os fundamentos jusnaturalistas apresentados no primeiro livro como

    condies para a deduo da origem e natureza das leis da Cidade.

    Como deve o poder legislativo fazer as leis civis para que os legisladores

    obedeam lei natural que sanciona a virtude e condena o vcio?

    Convm observar, antes de passar s regras, que a repblica construda

    por Ccero a coisa pblicade povos livres, isto , povos que no obedecem a mo-narcas ou a outros povos quaisquer, pois que obedecem s prprias leis civis que

    zeram para si mesmos. Com efeito, antes de passar deduo, Ccero arma

    que os povos livres, como o ateniense e o romano: ... no aprovaram o poder

    dos reis, mas decidiram no obedecer a ningum: decidiram que no obedece -

    riam sempre a um s.20

    18 III,2. CCERO. Trait des Lois, p. 82.19 III3Nada mais apropriado ao direito e ordem da natureza que, como eu jdisse, entendo ser a lei do que o imperiumsem o qual nenhuma casa [domus], nenhumacidade [civitas], nenhum cl [genus] e nem o gnero humano, a natureza das coisas [rerumnatura] e nem o prprio mundo poderiam existir. Pois o mundo obedece a deus, os marese terras ao mundo e, assim, a vida dos homens est submetida suprema lei [supremaelegis].. III, 2. CCERO.Trait des Lois, p. 82.20 III 4. CCERO.Trait des Lois, p. 82. Esta diferena importante, pois, como veremos frente, uma propriedade da boa repblica a rotatividade dos cargos pblicos para quenenhum homem que perenemente em funo de mando. Para evitar a tirania, argu -mentar, o revezamento dos cargos, para que quem mande, sendo obrigado obedinciadepois, no seja violento contra quem obedece.

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    Rocha, A. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.227-247234 Jusnaturalismo estoico e republicanismo

    Decidiram obedecer s leis. Em seguida, Ccero arma que s deduzir

    as leis civis ou imperium21de povos livres, ou seja, que instituem e vivem sob o

    gnero de Cidade [statum civitatis] denido por Cipio como optima republicanos

    seis livros da Republica. Em seguida, Ccero apresenta trs regras que devem ser

    observadas na organizao das magistraturas da Cidade.

    Primeira regra: poder de legislar deve pertencer ao Senado.

    O poder de prescrever leis civis (poder legislativo), em povos livres, per-

    tence no a reis, mas a conselhos de cidados. Qual a principal lei que deve reger

    a produo legislativa nesta repblica ideal?

    Que as leis civis ou mandamentos [imperia] sejam justos [justa]22e que os

    cidados [cives] obedeam. Que o estabelecimento das penas pertena aos magis-

    trados, mas que seja concedido a todos os cidados o direito de defesa diante de

    acusaes antes que lhes sejam imputadas as penas23. Em outras palavras: que o

    poder judicirio tambm pertena aos magistrados do Senado, embora este po-

    21 III 4. Ns, porm, como fornecemos leis dos povos livres [liberis populis], trataremosda tima repblica, como dissemos antes naqueles seis livros de Cipio e acomodaremosao agora as leis quele estado da Cidade [statum civitatis] que aprovamos. CCERO. Traitdes Lois, p. 82. Mais uma vez, a referncia aos seis livros que compem o De Repblica.22 Conformes lei natural, ou seja, justia entendida como ordem da Natureza, tal qualdescrita no jusnaturalismo estico do livro I.23 o direito de intercessioda parte de um magistrado colega ou de um superior ou, maistarde, de um tribuno da plebe colocando obstculos ao poder penal dos pretores e dos

    cnsules; e o direito de prouocatioou apelo, uma das primeiras conquistas da revoluorepublicana, conrmada por uma lei de Valerius Poplicola. CCERO.Trait des Lois, p.126. O direito de apelar [provocatio] ou de intervir [intercessio] em processos penais era con-cedido a senadores e, depois, aos tribunos. No De republica, Cipio explica que surgiu pararefrear a tirania, impedir o direito dos monarcas que matar a seu bel-prazer quaisquercidados. Em Esparta, por exemplo, mesmo instaurado um regime republicano, os aristo-cratas condenavam morte matavam periodicamente escravos que no tinham, portanto,conana nas leis para se defender das injustias. (De republica. II, 53 e 54).

    der deva ser limitado pelo direito de defesa da plebe e do exrcito. Ccero deixa

    claro ao enunciar que, nos processos penais, tanto o povo24como o exrcito25

    devem se subordinar s decises do senado.

    Utilizando uma terminologia anacrnica, digamos que o poder legislati-

    vo cabe apenas aos patrcios do Senado, mas o poder judicirio e o poder executi-

    vo divido entre patrcios e plebeus: esta repartio apresentada pelo texto coma diviso das ordens [ordines] de magistraturas, classicadas em maiores (ocupa-

    das por senadores) e menores (ocupadas por plebeus). Trata-se de um princpio

    aristocrtico: os critrios para exercer as magistraturas do Senado, como eram

    praticados em Roma, eram determinados pelas linhas de parentesco das famlias

    tradicionais de Roma, as famlias de patrcios, asgens. Os critrios para as magis-

    traturas do Senado, com efeito, apenas secundariamente estavam em funo de

    mritos acumulados no exerccio de magistraturas menores.

    Segunda regra: os mandatos devem ser colegiados.

    Todas as magistraturas devem obedecer regra do colegiado: ao menos

    dois devem exercer a mesma magistratura, nunca um s. Trata-se de recusa cabal

    da monarquia, talvez pela memria da ditadura de Sila ou sob o receio de novas

    tiranias que pairavam sob as atitudes de Pompeu e Csar. De toda maneira, Cce-

    ro defende que a Repblica deveria ser organizada de tal maneira que nenhuma

    magistratura pudesse ser exercida por um s e servisse como resqucio da poca

    monrquica da cidade ou pudesse servir de pretexto para reorganizar todas as

    magistraturas em funo de um principado. Esta recusa de uma magistratura

    24 Cabe aos magistrados o julgamento que decidir a culpa ou inocncia, ao povo somentecabe estipular a multa no caso de condenao.25 Em processos contra membros do exrcito, o direito de defesa concedido apenasaos chefes. Ora, os magistrados com funes de comando do exrcito, para Ccero, nopodem ser militares, como abaixo se ver, mas devem ser civis, isto , senadores. Destamaneira ele propunha controlar o risco das insurreies e ditaturas militares.

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    Rocha, A. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.227-247236 Jusnaturalismo estoico e republicanismo

    principal estava presente na Repblica, pois mesmo o consulado, que era a magis-

    tratura mxima a que um Senador poderia aspirar, sempre era exercido por dois

    senadores que, simultaneamente, exerciam mandatos anuais.

    Nesta regra dos mandatos colegiados, Ccero recomendava ainda o re-

    vezamento de cargos, de maneira a que todos exercessem os mandatos por

    perodos anuais, exceto oscensores que deveriam exercer mandato de cinco anos.As trocas anuais forneceriam muitas vantagens: todos os senadores passariam

    por todas as magistraturas e, ao longo de sua carreira poltica, cada um deles

    seria mais apto para avaliar o mandato de um outro cidado. Conhecendo os

    direitos e deveres de cada magistratura, bem como seus meandros, a maioria

    dos cidados teria condies para garantir que no se instaurasse um movi-

    mento de corrupo na Cidade por abusos que corressem sob o silncio e no

    fossem percebidos ou denunciados por ningum. Desta maneira, no apenas as

    aes na coisa pblicaseriam sempre visveis e abertas para todos, mas tambm

    os prprios cidados, cada um e todos, seriam formados para perceber e dis -

    cernir, em cada magistratura ou detalhe da Cidade, os movimentos de geraoe os movimentos de corrupo.

    Terceira regra: contra os privilgios [privilegia].

    Que a corrupo e a concesso de privilgios sejam considerados crimes

    contra a Cidade. Os cidados, ao exercer uma magistratura, no podem dar nem

    receber presentes, no podem prestar favores aos homens privados em troca depresentes26. O cumprimento da regra exige a prestao de contas aps o exerccio

    26 Esta regra de constr uo das instituies polticas deduzida da denio de virtude,no captulo 1, fundamentada na tica estoica: as aes virtuosas no se sustentam tendoem vista ns extrnsecos, mas tendo em vista a prpria fruio da virtude que a recom-pensa natural intrnseca, da mesma maneira que as operaes viciosas [turpia] acarretam,para o prprio agente vicioso, punies e culpas que lhe torturam a conscincia e privamda tranquilidade de nimo que constitui a virtude e a reta razo [recta ratio].

    de cada magistratura. Cada cidado, aps exercer a magistratura, voltando por

    um breve perodo condio de homem privado, deve prestar contas repblica.

    Ccero defende que possam ser julgados e, em caso de condenao, receber penas

    por m administrao e corrupo dos fundos pblicos. 27

    Roma e a optima republica

    Quinto constata queMarcotinha descrito a constituio de Roma e este res -

    ponde que mesmo Roma a repblica ideal louvada por CipionoDe republica. Ora, se

    a repblica perfeita de Plato, governada pelos lsofos iluminados pela verdade solar

    das Ideias, no era Atenas em que o prprio Platovivia, mas uma deliberada idealiza-

    o, a repblica perfeita de Cipioera a Roma republicana, governada por senadores

    que eram tambm lsofos estoicos, a comear pelo prprio Cipio. Partindo da tese

    platnica que estabelecia uma idealizao, um dever-serpara a Repblica, Ccero pas-

    sava ao concreto, individualidade histrica de Roma na fase republicana governada

    pelos estoicos da gerao anterior e buscava armar toda a autoridade do crculoestoico de Cipio que inclua, entre outros, Polbio e Terncio. Tratava-se de armar

    a autoridade moral [mos maiorum] desta primeira escola estoica em Roma que, como

    sabemos, recusou as especulaes fsicas do primeiro estoicismo grego, sobretudo a

    fsica e a lgica abstrata de Epiteto, para concentrar-se na natureza humana, sobretu-

    do com as cincias prticas, quais sejam, a tica, a poltica, a retrica e a histria.

    ticopede queMarcodemonstre sua tese segundo a qual a repblica de

    Roma realizao do melhor governo [optima republica]. O juzo, emitido por

    um romano, precisava ser provado luz das teses gregas de Plato e Aristteles

    acerca do bom regime, como exigiatico, o interlocutor grego. No por acaso, a

    investigao deMarcocomea por Teofrasto, principal discpulo de Aristteles,prometendo chegar ao estoico Dion. No caso de Aristteles, h na Polticaa tese

    acerca da nalidade natural da Cidade, que a justia ou bem comum, conceitos

    fundamentados natica a Nicmaco.

    27 CCERO.CCERO.Trait des Lois, III 11, p. 86.

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    Rocha, A. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.227-247238 Jusnaturalismo estoico e republicanismo

    Aps uma genealogia28de autores gregos e romanos que escreveram

    tratados sobre a organizao das magistraturas da Cidade, Marco apresenta

    uma questo que, segundo ele, tinha sido posta por todos os autores. Per -

    guntaram se seria conveniente ter um magistrado na Cidade a que todos os

    outros obedecessem29.

    Marcoresponde que isto seria resqucio da monarquia. Em Roma, con -tinua, no apenas os cnsules eram cargos colegiados, mas tambm tinham um

    contrapoder, qual seja, o poder da magistratura dos tribunos da plebe. Assim

    como em Esparta, argumenta por analogia histrica, os foros se contrapu -

    nham aos reis da diarquia. Em suma, mesmo os cnsules, magistratura maior

    do Senado, no podiam subordinar todas as outras magistraturas. O poder so-

    berano, assim, nesta RepblicaRomanano est concentrado em uma magistra-

    tura, como nas monarquias, mas em toda a Cidade, em todas as magistraturas

    que constituem a Cidade.

    A defesa do tribunato da plebe como garantia do regime misto.

    Quinto, representando a opinio da aristocracia conservadora romana

    que atribua ao tribunato a causa das guerras civis, ope-se tese deMarco. O

    argumento que constri a imagem da plebe como turba furiosa e que prope a

    extino do tribunato, assim, surge para refutar a tese republicana acerca da di-

    viso e contraposio entre os poderes da Cidade, tese segundo a qual mesmo o

    consulado deveria ser uma magistratura limitada por outras, como a diarquia era

    magistratura limitada pelos foros em Esparta, pois era prefervel aristocracia,

    entre a monarquia e a democracia, aproximar-se desta e fazer concesses ao povo

    para guardar sua liberdade contra os tiranos.

    28 Referncia da genealogia de autores gregos e romanos. CCERO.CCERO.Trait des Lois, III14, p.88.29 CCERO.CCERO. Trait des Lois, III 15, p. 89.

    Quinto argumenta que o poder dos cnsules foi limitado pelo poder dos

    tribunos cujo engendramento signicou a perda da gravidade dos optimates e a

    introduo do poder da turba plebeia [multitudinis]. A aristocracia penderia para a

    monarquia se os cnsules tivessem poder absoluto, para a democracia, segundo

    ele forma corrompida do poder popular, se o poder dos cnsules fosse limitado

    pelos tribunos da plebe.O argumento parece reproduzir o momento, no livro II da Repblica,

    em que Ccero fala da corrupo da aristocracia, quando esta deixa de ser go -

    vernada pela virtude dos optimatese passa a ser governada pela avareza dos ricos

    e torna-se oligarquia. Mas no argumento de Quinto a entrada em cena dos

    plebeus que instaura o movimento de corrupo: os tribunos da plebe, sendo

    a semente do regime democrtico, inltravam o movimento de corrupo nas

    magistraturas do Senado de Roma.

    Ccero prontamente refuta esta posio da oligarquia conservadora de

    Roma, por meio de um discurso de Marco cuja maior parte, infelizmente, foi

    destruda ou, ao menos, no foi conservada nos manuscritos que chegaram ans. Citemos, contudo, o trecho que recebemos: No bem assim,Quinto. No

    apenas o poder dos cnsules para o povo [populo] parecia esnobe e violentssimo,

    por isso foi limitado com uma sbia e temperada moderao, mas ainda (...)30

    E o texto interrompido bruscamente pelas agruras do acaso, pela con-

    tingncia to prezada nos mosteiros medievais ou pelas mos de um copista.

    Valha-me Petrarca! Valha-me Lorenzo Valla! Aps a lacuna, o texto continua

    com um trecho sobre a funo dos Senadores em misses especiais fora da Ci-

    dade, ou seja, sobre a diplomacia31. As teses acerca da diplomacia nas misses de

    cidados fora da Cidade subordinam-se s regras de prevalncia do bem pblico

    sobre o privado, ou seja, das teses contra a corrupo e o uso das magistraturaspara obter benefcios privados32. Este trecho sobre a diplomacia est interpolado

    30 CCERO.CCERO. Trait des Lois, p. 89.31 CCERO. Trait des Lois, p. 90.32 Vide acima, quando Ccero deduz a organizao das magistraturas na repblica ideal.

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    Rocha, A. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.227-247240 Jusnaturalismo estoico e republicanismo

    entre dois trechos cujo tema o tribunato da plebe. A disputa entreMarcoeQuin-

    to acerca da criao do tribunato aparece depois da interpolao.

    Quinto apresenta novo argumento contra os tribunos da plebe33. O argu-

    mento consiste em armar que esta magistratura nasceu durante as guerras civis

    e que, por isso, nasceu na e para a sedio [nata sit in seditione et ad seditionem].

    O argumento, que se faz no gnero deliberativo, visa claramente mostrarque o tribunato da plebe contrrio ao bem pblico, ou seja, o propsito do

    argumento era persuadir os senadores a extinguir tais magistraturas. Entretanto,

    no texto de Ccero, este argumento aparece tambm com as armas do genus judi-

    ciarium, poisQuinto acusa o tribunato de ter nascido para instaurar a corrupo na

    Cidade. Esta acusao, medida que se intensica, torna-se tambm vituprio ou

    argumento moral contra a plebe.

    A plebe portadora do vcio e sua intromisso no Senado signicou um

    movimento de rebaixamento das virtudes dos aristocratas.

    Primeiro, como era digno de um ser mpio, a plebe arrancou to-das as honrarias [honores] dos patrcios [Patres], fez com que suas

    coisas nmas fossem consideradas superiores [summis], mistu-

    rou todas as coisas, bagunou [turbavit] tudo. Depois que atacou

    a gravidade dos melhores [gravitas principum], no parou mais.

    Pois, para nem falar de Caio Flaminus e dos acontecimentos que

    nos parecem longnquos, que direitos aos homens de bem [bonis

    viris] o tribunato de Tibrio Graco deixou?

    E nesta mesma verve difamatria dos tribunos da plebe, aps vituperar

    Tibrio Graco, o argumento continua eQuinto empunha a palavra para utiliz-lacomo punhal contra os outros tribunos, notadamente Curiato e Caio Graco.

    Marcocritica a forma do argumento de Quinto: trata-se de uma acusao

    [accusatio] que inqua, pois enumera apenas os males que resultaram da institui-

    33 III, (VIII, 19).CCERO.Trait des Lois, p. 91.

    o do tribunato e omite os bens. Ora, tambm os cnsules podem ser acusados

    com argumentos unilaterais, ou seja, um argumento que enumere exemplos his-

    tricos de cnsules corruptos pode ser construdo e defendido com eloquncia.

    Marco, assim, inicia usando o tropos ctico das antinomias: anula o ar-

    gumento deQuinto contra a plebe mostrando que com a mesma estrutura ar -

    gumentativa, unilateral na sua referncia aos exemplos histricos, a magistra-tura dos cnsules poderia ser acusada da mesma maneira que o tribunato. Em

    seguida, Marcosenumera os bens que resultaram da instaurao do tribunato.

    Confesso que h males inerentes a este poder, mas o bem que lhe inerente

    no existiria sem estes males.34

    Marcoenumera os pontos principais do argumento deQuinto e contrape,

    a cada um deles, um argumento contrrio. Por exemplo, o argumento acerca do

    poder do povo. Para Quinto, o poder dos tribunos excessivo. Marco responde

    que a fora do povo [vis populi] mais veemente e cruel quando no reconhece l-

    deres polticos, pois estes aceitam negociar com o Senado em vez de avanar por

    mpetos, para no se expor a perigos. Em suma: a fora do povo se manifesta dequalquer maneira, com ou sem tribunato. Quando se manifesta imediatamente,

    ela mais veemente, feroz e violenta. Quando se manifesta pela mediao de ma-

    gistrados no tribunato, aceita negociar. Os tribunos, assim, poderiam servir como

    mediadores para uma negociao poltica entre os patrcios e a plebe, resolvendo,

    pela mediao poltica da Cidade, os conitos que desembocaram na guerra civil

    que ameaava dissolver a Cidade.

    O argumento da manipulao das paixes populares. ParaQuinto, os tri-

    bunos manipulam e incitam o povo violncia. Marcoresponde: esta manipula-

    o tambm permite que o povo seja acalmado e levado negociao poltica.

    A tese da corrupo dos valores da aristocracia . Quinto disse que ostributos instauraram a corrupo dos valores no Senado, que zeram o vcio

    34 Confesso que podemos encontrar alguns males neste poder dos tribunos [in ista ipsapotestate inesse quiddam mali], mas no teramos o bem pblico que buscamos sem estesmales.CCERO.Trait des Lois, III 23, p. 93.

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    Rocha, A. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.227-247242 Jusnaturalismo estoico e republicanismo

    vencer a virtude, puseram em risco a aristocracia, os valores dos patrcios. [nata

    in seditione ad seditionem sit].Marcoresponde, ao contrrio, que a magistratura do

    tribunato da plebe nasceu como obra de virtude dos patrcios para manter a

    virtude e a aristocracia contra os tiranos. Como dizMarco, a magistratura para

    a plebe na Cidade nasceu da sabedoria e da virtude dos nossos ancestrais para

    promover a virtude [nata ab sapientia virtuteque maiorum ad virtutem].Marco armaque a instaurao do tribunato foi obra sbia dos patrcios [maiorum], que aca-

    bou com a sedio e guerra civil.

    Mas tu repares na sabedoria de nossos ancestrais [sapientiam

    maiorum]: quando este poder do tribunato foi concedido pelos pa-

    trcios aos plebeus, eles depuseram as armas, a sedio acabou e

    encontrou-se assim um compromisso pelo qual queriam se igualar

    aos maiores cidados; e esta foi a salvao [salus] da cidade35

    Os patrcios mantiveram sua virtude com a construo do tribunato e,alm disso, permitiram que os plebeus construssem um novo temperamento, pelo

    qual buscavam a virtude para se igualar aos optimi. A salvao da Cidade, bem como

    da virtude que sustentava a aristocracia, decorreu da criao do tribunato.

    Este o argumento mais forte. Marcoaceita enumerar os tribunos que

    foram funestos, mas arma que estes foram males menores diante do bem maior

    que surgiu com o tribunato. Que bem? O prprio bem pblico, isto , a conser-

    vao do bem pblico contra a tirania. Se a aristocracia pendia entre a democracia

    e a monarquia, tendo cado efetivamente na tirania durante a ditadura de Sula,

    cabia reconhecer, segundo Ccero, que para proteger a aristocracia e seus valores,

    sobretudo a virtude dos optimates, convinha unir-se plebe, instaurando o regimemisto pelo qual patrcios e plebeus defendiam a Cidade contra os tiranos.

    A violncia da plebe depende do seu desejo de participar da Republica,

    ou seja, ela menor se este desejo se realiza nos tribunos e maior se a plebe

    35 CCERO.CCERO.Trait des Lois, III 24, p. 93.

    excluda, pois a inveja [invidia] contra a aristocracia [summos ordo] ser maior.

    Por isto, argumenta Marcocom base na histria de Roma, ou nossos ancestrais

    expulsavam os reis, ou concediam a liberdade [libertas]36 plebe no s com pa-

    lavras, mas com a fora da magistratura. Os patrcios escolheram, para preservar

    a aristocracia, conceder a liberdade plebe, mas de tal maneira que cedesse

    autoridade dos grandes senadores [principum].O debate continua tendo esta mesma estrutura de acusao e defesa dos

    direitos polticos da plebe,Quintoquerendo provar que instalaram a corrupo,

    Ccero querendo provar que so a garantia da virtude contra a corrupo. O

    debate se desdobra em pontos especcos da poltica romana. Aqui destacarei

    trs: o direito de consultar os orculos religiosos ociais e de participar do poder

    judicirio; as leis contra os vcios no Senado; os sufrgios da plebe.

    Marcoarma que a concesso plebe dos direitos de consultar os auspcios

    dos orculos ociais e de efetuar julgamentos no signicava a corrupo da aristo-

    cracia, desde que a autoridade maior ou o poder soberano estivesse com o Senado.

    Se est bem estabelecido que o Senado o senhor [dominus] dos

    conselhos pblicos [publici consilii] e que todos devem defend-lo, e

    se as outras ordens [ordines] querem governar segundo os conselhos

    [consilio] desta ordem principal37, ento este equilbrio dos direitos em

    que o poder [potestas] pertence ao povo e a autoridade [auctoritas] ao

    senado pode permitir conservar aquele moderado estado da Cida-

    de, sobretudo se a prxima lei for obedecida: que esta ordem (o Senado)

    no tenha vcios, que seja exemplo para as outras.38

    36 A liberdade [libertas] aparece no texto de Ccero como liberdade poltica, ou seja, par-ticipao efetiva nas decises da Cidade pelo exerccio de uma magistratura: no caso, aliberdade poltica da plebe era dada pela magistratura do tribunato.37 A ordem principal o Senado. O conceito de ordem [ordo] parece ser utilizado para a clas-sicao dos estamentos, como na hierarquia militar. Resta saber se Ccero utiliza aqui paradesignar ordens de magistraturas subordinadas ao Senado: exrcito, comcios da plebe, etc...38 CCERO.CCERO. Trait des Lois,III 27, p. 96.

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    Rocha, A. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.227-247244 Jusnaturalismo estoico e republicanismo

    O regime moderado o regime misto, a aristocracia temperada com ma-

    gistraturas monrquicas e democrticas, pois o Senado o poder soberano, o

    senhor [dominus] de todas as ordens. Se consultarmos a denio do ofcio do

    magistrado, denio que parte daquela lei natural que rege a produo de leis

    civis, lei natural que Ccero enuncia na abertura deste livro III, notaremos que o

    equilbrio [temperatio] de que falaMarcoaqui se fundamenta na autoridade [auctori-tas] do Senado em produzir as leis civis. Digamos, em linguagem anacrnica, que

    o poder legislativo pertence apenas ao Senado e que as magistraturas dos poderes

    executivo e judicirio podem ser divididas entre o povo e os patrcios.

    Mas o anacronismo s uma primeira aproximao, talvez errnea. O que

    apotestasque pertence ao povo, se a auctoritasque pertence ao Senado o poder

    legislativo? Se interpretarmos o trecho a partir da diviso entre ars poieticae ars me-

    canica, j que o estoicismo mdio da escola de Cipio exclui as artes contemplativas

    da diviso aristotlica para se apoiar, sobretudo, nas artes prticas, a metfora do

    teatro poder nos ajudar: o Senado o poeta, o dramaturgo que escreve e monta o

    roteiro da pea e o Povo o elenco de atores que executam a pea.tico contrape-se, armando que a lei que veta os vcios no Senado

    deveria ser interpretada e guardada por um poder judicirio: no caso, pelas ma -

    gistraturas dos censores que, como notado acima, pertence tanto aos patrcios

    como ao povo. Em outras palavras,ticoinsinua que os plebeus que ocupassem

    a magistratura dos censores poderiam interpretar a lei de tal maneira que conde-

    nassem a virtude dos nobres. Pressupe, aqui, as teses anteriores deQuinto: todo

    patrcio virtuoso, logo a aristocracia o melhor regime; todo plebeu vicioso,

    logo no deve haver instituio popular alguma na poltica de Roma.

    Marco parece fugir da questo. Indiretamente, reconhece a corrupo

    no presente e pensa em reformas para o futuro. Para que o Senado no tenhavcios, ser preciso elaborar uma educao e uma disciplina moral para for-

    mar senadores virtuosos: a paidei ana Repblicade Plato. Em seguida, passa

    tese de que a elite de uma Cidade o exemplo ou espelho [specimen] para

    todo o seu povo. A virtude ou o vcio da plebe depende da vir tude o vcio dos

    patrcios [princi pes]. Assim como as paixes e vcios dos patr cios [princi pum]

    costumam corromper toda a Cidade, tambm por sua moderao [continentia]

    que uma Cidade se reforma e corrige.39

    A tese embaralha as opinies tradicionais que vinculavam multido e v-

    cio, de um lado, patrcios e virtude, de outro, opinies que acima foram apresen-

    tadas porQuinto. Os vcios da plebe dependem dos vcios do Senado e, vice-ver-

    sa, as virtudes da plebe dependem das virtudes do Senado, pois este o espelhodefronte ao qual a plebe se arruma e se molda.

    Ccero defende o direito de sufrgio da plebe, que tambm tinha sido

    defendido por Cipio, reproduzindo o mesmo argumento: a aristocracia pura

    no se sustenta, a nica maneira de garantir o poder dos melhores [optimate]

    instaurando um regime misto sob seu controle, de tal maneira que a participao

    da plebe exista40para que defenda o Senado com as mesmas foras com que de-

    fende suas magistraturas ou liberdades.

    Concluso

    O propsito do livro III do De Legibusse realiza em dois planos, quais se-

    jam, no plano da discusso losca entre o idealismo platnico e o materialismo

    estoico e no plano da discusso poltica entre a ala conservadora (representada por

    Quinto) e a ala libertria (representada por Ccero) da aristocracia de Roma.

    No plano da discusso losca, Ccero rejeita a tese de que a virtude

    s sustentada por uma aristocracia pura, ancorada no mundo das ideias puras,

    para avanar a tese de que na histria concreta de Roma somente o regime misto

    foi capaz de sustentar uma aristocracia de homens virtuosos (no sentido estoico

    da virtude, ou seja, no sentido da prtica moral ou da realizao tica da virtude

    pelo exerccio da magistratura pblica).

    39 CCERO. Trait des Lois, III 30, p. 97.40 Ccero arma que esta concesso democrtica a garantia da aristocracia no incio eno m de seu argumento. CCERO.Trait des Lois, III, 38 e 39.

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    Rocha, A. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.227-247246 Jusnaturalismo estoico e republicanismo

    No plano da discusso poltica, Ccero rejeita a tese de que a concesso

    de magistraturas ou liberdades de participao (justia participativa) da plebe nos

    assuntos da Repblica seja a causa da corrupo de Roma e inverte a tese, arman-

    do que somente em negociaes polticas com os tribunos os optimates poderiam

    contar com o apoio da plebe para defender o Senado contra tentativas de tirania.

    As virtudes dos optimates do Senado, assim, s poderiam se defendercontra a tirania, regime dos vcios, com o apoio da plebe. Ccero parece ir mais

    adiante e refutar a tese de que somente os patrcios poderiam ser virtuosos e que

    os plebeus eram viciosos por natureza.

    Ccero prope um conjunto de regras para construir instituies polti-

    cas que obrigassem a maioria de patrcios e plebeus, no exerccio das magistra -

    turas, prxisvirtuosa, s prticas que realizam a virtude natural na Cidade. E

    na Cidade que teria instituies fortes o bastante para servir como mediadoras

    para as negociaes polticas entre as classes antagnicas dos patrcios e dos

    plebeus, a realizao da virtude naprxispoltica de cada cidado realizaria tam-

    bm a amizade pela qual a Natureza, segundo o jusnaturalismo antigo, enlaaos cidados virtuosos e lhes concede fora para sustentar juntos, nos conitos

    mediados pela poltica, o bem comum de sua Cidade, bem comum que no

    seno a vida virtuosa em liberdade.

    Jusnaturalism and republicanism in Ciceros De Legibus

    Abstract:The purpose of this article is to show how Cicero construct his argumentin defense of the tribunatum plebiswhen thinking about the participatory justice and theconstitution of the City in De Legibus. We shall see the argument in a broader context

    whose scope was to defend the autonomy of the Senate face of the threats of dictator-ship that was hanging over the Roman Republic.Keywords: nature virtue law politics republic liberty.

    Referncias bibliogrcas

    CICRON, M.T.Trait des Lois. Texte tabli et traduit par Georges de Plinval.

    Deuxieme tirage. Paris, Societ ddition Les belles Lettres. 1968

    STRAUSS, Leo.Natural Right and Histor y. Chicago, The University of ChicagoPress, 1953.

    MACHIAVELLI, Niccol. Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio. A cura di Fran-

    cesco Bauci. Tomo 1. Roma, Salerno Editrice, 2001. (I, 4, 5).