50 anos depois - emmanuel - chico xavier

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  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    50 ANOS DEPOIS

    EPISDIOS DA HISTRIA DO CRISTIANISMO NO SCULO II Romance ditado pelo Esprito EMMANUEL

    FEDERAO ESPRITA BRASILEIRA DEPARTAMENTO EDITORIAL Rua Souza Valente, 17 20941 - Rio-RJ - Brasil e Av. L-2 Norte - Q. 603 - Conjunto F 70830 - Braslia-DF - Brasil

    NDICE

    Carta ao leitor PRIMEIRA PARTE

    1 - Uma famlia romana 2 - Um anjo e um filsofo 3 - Sombras domsticas 4 - Na Via Nomentana 5 - A pregao do Evangelho 6 - A visita ao crcere 7 - Nas festas de Adriano

    SEGUNDA PARTE 1 - A morte de Cneio Lucius 2 - Calnia e sacrifcio 3 - Estrada de amargura 4 - De Minturnes a Alexandria 5 - O caminho expiatrio 6 - No horto de Clia 7 - Nas Esferas Espirituais

    CARTA AO LEITOR

    Meu amigo, Deus te conceda paz. Se leste as pginas singelas do "H Dois Mil Anos...", possvel que

    procures aqui, a continuao das lutas intensas, vividas pelas suas personagens reais, na arena de lutas redentoras da Terra.

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    por esse motivo que me sinto obrigado a explicar-te alguma coisa, com respeito ao desdobramento desta nova histria.

    Cinqenta anos depois das runas fumegantes de Pompia, nas quais o Impiedoso senador Pblio Lentulus se desprendia novamente do mundo, para aferir o valor de suas dolorosas experincias terrestres, vamos encontr-lo, nestas pginas, sob a veste humilde dos escravos, que o seu orgulhoso corao havia espezinhado outrora. A misericrdia do Senhor permitia-lhe reparar, na personalidade de Nestrio, os desmandos e arbitrariedades cometidos no pretrito, quando, como homem pblico, supunha guardar nas mos vaidosas, por injustificvel direito divino, todos os poderes. Observando um homem cativo, reconhecers, em cada trao de seus sofrimentos, o venturoso resgate de um passado de faltas clamorosas.

    Todavia, sinto-me no dever de esclarecer-te a curiosidade, com referncia aos seus companheiros mais diretos, na nova romagem terrena, de que este livro um testemunho real.

    No obstante estarem na Terra, pela mesma poca, os membros da famlia Severus, Flvia e Marcus Lentulus, Saul e Andr de Gioras, Aurlia, Sulpicio, Flvia e demais comparsas do mesmo drama, devo esclarecer-te que todos esses companheiros de luta mourejavam, na ocasio, em outros setores de sofrimentos abenoados, no comparecendo aqui, onde o senador Pblio Lentulus aparece, aos teus olhos, na indumenta de escravo, j na idade madura, como elemento integrante de um quadro novo.

    De todas as personagens do "H Dois Mil Anos. . . ", um contnuo aqui se encontra, junto de outras figuras do mesmo tempo, como Policarpo, embora no relacionado nominalmente no livro anterior, companheiro esse que, pelos laos afetivos, se lhe tornara um irmo devotado e carinhoso, pelas mesmas lutas Polticas e sociais. A Roma de Nero e de Vespasiano. Quero referir-me a Pompilio Crasso, aquele mesmo irmo de destino na destruio de Jerusalm, cujo corao palpitante lhe fora retirado do peito por Nicandro, s ordens severas de um chefe cruel e vingativo.

    Pomplio Crasso o mesmo Helvdio Lucius destas pginas, ressurgindo no mundo para o trabalho renovador e, aludindo a um amigo dedicado e generoso, quero dizer-te que este livro no foi escrito de ns e por ns, no pressuposto de descrever as nossas lutas transitrias no mundo terrestre.

    Este livro o repositrio da verdade sobre um corao sublime de mulher, transformada em santa, cujo herosmo divino foi uma luz acesa na estrada de numerosos Espritos amargurados e sofredores.

    No "H Dois Mil Anos. . ." buscvamos encarecer uma poca de luzes e sombras, onde a materialidade romana e o Cristianismo disputavam a posse das almas, num cenrio de misrias e esplendores, entre as extremas exaltaes de Csar e as maravilhosas edificaes em Jesus-Cristo. Ali, Pblio Lentulus se movimenta num acervo de farraparias morais e deslumbramentos transitrios; aqui, entretanto, como o escravo Nestrio, observa ele uma alma.

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    Refiro-me a Clia, figura central das pginas desta histria, cujo corao, amoroso e sbio, entendeu e aplicou todas as lies do Divino Mestre, no transcurso doloroso de sua vida. Na seqncia dos fatos, dentro da narrativa, seguirs os seus passos de menina e de moa, como se observasses um anjo pairando acima de todas as contingncias da Terra.

    Santa pelas virtudes e pelos atos de sua existncia edificante, seu Esprito era bem o lrio nascido do lodo das paixes do mundo, para perfumar a noite da vida terrestre, com os olores suaves das mais divinas esperanas do Cu.

    Podemos afirmar, portanto, leitor amigo, que este volume no relaciona, de modo integral, a continuao das experincias purificadoras do antigo senador Lentulus, nos crculos de resgate dos trabalhos terrestres. a histria de um sublime corao feminino que se divinizou no sacrifcio e na abnegao, confiando em Jesus, nas lgrimas da sua noite de dor e de trabalho, de reparao e de esperana. A Igreja Romana lhe guarda, at hoje, as generosas tradies, nos seus arquivos envelhecidos, se bem que as datas e as denominaes, as descries e apontamentos se encontrem confusos e obscuros pelo dedo viciado dos narradores humanos.

    Mas, meu irmo e meu amigo, abre estas pginas refletindo no turbilho de lgrimas que se represa no corao humano e pensa no quinho de experincias amargas que os dias transitrios da vida te trouxerem. possvel que tambm tenhas amado e sofrido muito. Algumas vezes experimentaste o sopro frio da adversidade enregelando o teu corao. De outras, feriram-te a alma bem intencionada e sensvel a calnia ou o desengano. Em certas circunstncias, olhaste tambm o cu e perguntaste, em silncio, onde se encontrariam a Verdade e a Justia, invocando a misericrdia de Deus, em preces dolorosas. Conhecendo, porm, que todas as dores tm uma finalidade gloriosa na redeno do teu Esprito, l esta histria real e medita. Os exemplos de uma alma santificada no sofrimento e na humildade, ensinar-te-o a amar o trabalho e as penas de cada dia; observando-lhe os martrios morais e sentindo, de perto, a sua profunda f, experimentars um consolo brando, renovando as tuas esperanas em Jesus-Cristo.

    Busca entender a essncia deste repositrio de verdades confortadoras e, do plano espiritual, o Esprito purificado de nossa herona derramar em teu corao o blsamo consolador das esperanas sublimes.

    Que aproveites do exemplo, como ns outros, nos tempos recuados das lutas e das experincias que passaram, o que te deseja um irmo e servo humilde.

    EMMANUEL

    Pedro Leopoldo, 19 de dezembro de 1989.

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    PRIMEIRA PARTE

    I - UMA FAMLIA ROMANA

    Varando a multido que estacionava na grande praa de Esmirna, em clara manh do ano 131 da nossa era, marchava um troo de escravos jovens e atlticos, conduzindo uma liteira ricamente ataviada ao gosto da poca.

    De espao a espao, ouviam-se as vozes dos carregadores, exclamando :

    - Deixai passar o nobre tribuno Caio Fabrcius ! Lugar para o nobre representante de Augusto. Lugar!... Lugar!...

    Desfaziam-se os pequenos grupos de populares, formados pressa em torno do mercado de peixes e legumes, situado no grande logradouro, enquanto o rosto de um patrcio romano surdia entre as cortinas da liteira, com ares de enfado, a observar a turba rumorosa.

    Seguindo a liteira, caminhava um homem dos seus quarenta e cinco anos presumveis, deixando ver nas linhas fisionmicas o perfil israelita, tipicamente caractersticas, e um orgulho silencioso e inconformado. A atitude humilde, todavia, evidenciava condio inferior e, conquanto no participasse do esforo dos carregadores, adivinhava-se-lhe no semblante contrafeito a situao dolorosa de escravo.

    Respirava-se, margem do golfo esplndido, o ar embalsamado que os ventos do Egeu traziam do grande Arquiplago.

    O movimento da cidade crescera de muito naqueles dias inolvidveis, seqentes ltima guerra civil que devastara a Judia para sempre . Milhares de peregrinos invadiam-na por todos os flancos, fugindo aos quadros terrificantes da Palestina, assolada pelos flagelos da ltima revoluo aniquiladora dos derradeiros laos de coeso das tribos laboriosas de Israel, desterrando-as da ptria.

    Remanescentes de antigas autoridades e de numerosos plutocratas de Jerusalm, de Cesareia, de Betel e de Tiberades, ali se acotovelam famlicos, por subtrarem-se aos tormentos do cativeiro, aps as vitrias de Jlio Sexto Severo sobre os fanticos partidrios do famoso Bar-Coziba.

    Vencendo os movimentos instintivos da turba, a liteira do tribuno parou frente de soberbo edifcio, no qual os estilos grego e romano se casavam harmoniosamente .

    Ali estacionando, foi logo anunciado no interior, onde um patrcio relativamente jovem, aparentando mais ou menos quarenta anos, o esperava com evidente interesse.

    - Por Jpiter! - exclamou Fabrcius, abraando o amigo Helvdio Lucius - no supunha encontrar-te nessa plenitude de robustez e elegncia, de fazer inveja aos prprios deuses!

    - Ora, ora! - replicou o interpelado, em cujo sorriso se podia ler a satisfao que lhe causavam aquelas expanses carinhosas e amigas - so

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    milagres dos nossos tempos. Alis, se h quem merea tais gabos, s tu, a quem Adnis sempre rendeu homenagens.

    Neste nterim, um escravo ainda moo trazia a bandeja de prata, onde se alinhavam pequenos vasos de perfume e coroas da poca, adornadas de rosas.

    Helvdio Lucius serviu-se cuidadosamente de uma delas, enquanto o visitante agradecia com leve sinal de cabea.

    - Mas, ouve! - continuava o anfitrio sem dissimular o contentamento que lhe causava a visita - h bastante tempo aguardamos tua chegada, de maneira a partirmos para Roma com a brevidade possvel. H dois dias que a galera est nossa disposio, dependendo a partida to somente da tua vinda!...

    E batendo-lhe amistosamente no ombro, rematava : - Que demora foi essa?. - Bem sabes - explicou Fabrcius que sumariar os estragos da

    ltima revoluo era tarefa assaz difcil para realizar em poucas semanas, razo pela qual, apesar da demora a que te referes, no levo ao Governo Imperial um relatrio minucioso e completo, mas apenas alguns dados gerais.

    - E a propsito da revoluo da Judia, qual a tua impresso pessoal dos acontecimentos?

    Caio Fabrcius esboou um leve sorriso, acrescentando com amabilidade:

    - Antes de dar a minha opinio, sei que a tua a de quem encarou os fatos com o maior otimismo .

    - Ora, meu amigo - disse Helvdio, como a justificar-se -, verdade que a venda de toda a minha criao de cavalos da Indumia, para as foras em operaes, me consolidou as finanas, dispensando-me de maiores cuidados quanto ao futuro da famlia; mas isso no impede considere a penosa situao desses milhares de criaturas que se arruinaram para sempre. Alis, se a sorte me favoreceu no plano de minhas necessidades materiais, devo-o principalmente interveno de meu sogro, junto do prefeito Llio Tirbico.

    - O censor Fbio Cornlio agiu assim to decisivamente, a teu favor? - perguntou Fabrcius, algo admirado.

    - Sim. - Est, bem - disse Caio j despreocupado -, eu nunca entendi

    patavina da criao de cavalos da Indumia ou de bestas da Ligria. Alis, o xito dos teus negcios no altera a nossa velha e cordial amizade . Por Plux ! . . . No h necessidade de tantas explicaes nesse sentido.

    E depois de sorver um trago de Falerno solicitamente servido, continuou, como que analisando as prprias reminiscncias mais ntimas :

    - O estado da Provncia lastimvel e, na minha opinio, os judeus nunca mais encontraro na Palestina o benefcio consolador de um lar e de uma ptria. Em diversos recontros, morreram mais de cento e oitenta mil israelitas, segundo o conhecimento exato da situao. Foram destrudos quase todos os burgos. Na zona de Betel a misria atingiu propores

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    inauditas. Famlias inteiras, desamparadas e indefesas, foram covardemente assassinadas. Enquanto a fome e a desolao ofereceram a runa geral, chega tambm a peste, oriunda da exalao dos cadveres insepultos. Nunca supus rever a Judia em tais condies...

    - Mas, a quem deveremos inculpar do que ocorre? O governo de Adriano no se tem caracterizado pela retido e pela justia? perguntou Helvdio Lucius com grande interesse.

    - No posso afirm-lo com certeza revidou Fabrcius, atencioso -; todavia, considero pessoalmente que o grande culpado foi Ticneio Rufus, legado pr-pretor da Provncia. Sua incapacidade poltica foi manifesta em todo o desenvolvimento dos fatos. A reedificao de Jerusalm com o nome de Elia Capitolina, obedecendo aos caprichos do Imperador, apavora os israelitas, desejosos todos de conservar as tradies da cidade santa. O momento requeria um homem de qualidades excepcionais, frente dos negcios da Judia. Entretanto, Ticneio Rufus no fez mais que exacerbar o nimo popular com imposies religiosas de todos os matizes, contrariando a clssica tradio de tolerncia do Imprio nos territrios conquistados.

    Helvdio Lucius ouvia o amigo, com singular interesse, mas, como se desejasse afastar de si mesmo alguma reminiscncia amarga, murmurou :

    - Fabrcius, meu caro, tua descrio da Judia me apavora o esprito... Os anos que passamos na sia Menor me devolvem a Roma com o corao apreensivo. Em toda a Palestina campeiam supersties totalmente contrrias s nossas tradies mais respeitveis, e essas crenas estranhas invadem o prprio ambiente da famlia, dificultando-nos a tarefa de instituir a harmonia domstica...

    - J sei - replicou o amigo solicitamente -, queres aludir, com certeza, ao Cristianismo, com as suas inovaes e os seus asseclas.

    Mas . . . - ajuntou Caio, evidenciando uma ateno mais ntima -, acaso Alba Lucnia teria deixado de ser a segurana vestalina de tua casa?

    Seria possvel ? - No - replicou Helvdio ansioso por se fazer compreendido -,

    no se trata de minha mulher, sentinela avanada de todos os feitos da minha vida, h longos anos, mas de uma das filhas que, contrariamente a todas previses, imbuiu-se de semelhantes princpios, causando-nos os mais srios desgostos.

    - Ah ! lembro-me de Helvdia e de Clia, que, em meninas, eram bem dois sorrisos dos deuses na tua casa. Mas to jovens e dadas, assim, a cogitaes filosficas?

    - Helvdia, a mais velha, no se impregnou de tais bruxarias; mas a nossa pobre Clia parece bastante prejudicada pelas supersties orientais, tanto que, regressando a Roma, tenciono deix-la em companhia de meu pai, por algum tempo . Suas lies de virtude domstica ho-de renovar-lhe o corao, segundo cremos.

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    - verdade - concordou Fabrcius -, o venerando Cneio Lucius reformaria para as tradies romanas os sentimentos mais brbaros de nossas Provncias.

    Fizera-se ligeira pausa na conversao, enquanto Caio tamborilava com os dedos, dando a entender a sua preocupao, como se evocasse alguma dolorosa lembrana.

    - Helvdio - murmurou o tribuno fraternalmente -, teu regresso a Roma de causar apreenses aos teus verdadeiros amigos. Recordando teu pai, lembro-me instintivamente de Silano, o pequeno enjeitado que ele chegou quase a adotar oficialmente como prprio filho, desejoso de libertar-te da calnia a ti imputada no albor da mocidade..

    - Sim - disse o anfitrio, como se houvera repentinamente desgertado -, ainda bem que no desconheces ser caluniosa a acusao que pesou sobre mim. Alis, meu pai no ignora isso.

    - Apesar de tudo, teu venervel genitor no hesitou em cumular a criana, a ele encaminhada, com o mximo de carinhos...

    Depois de passar nervosamente a mo pela fronte, Helvdio Lucius acentuou:

    - E Silano ? . . Sabes o que feito dele ? - As ltimas informaes davam-no como incorporado s nossas

    falanges que mantm o domnio das Glias, como simples soldado do exrcito.

    - As vezes - ajuntou Helvdio preocupado tenho pensado na sorte desse rapaz, pupilo da generosidade de meu pai, desde os tempos de minha juventude. Mas, que fazer? Desde que me casei, tudo fiz por traz-lo nossa companhia. Minha propriedade da Indumia poderia proporcionar-lhe uma existncia simples e liberta de maiores cuidados, sob as minhas vistas atentas; todavia, Alba Lucnia se ops terminantemente aos meus projetos, no s recordando os comentrios caluniosos de que fui alvo no passado, como tambm alegando seus direitos exclusivos minha afeio, pelo que, fui compelido a conformar-me, levando em conta as nobres qualidades da sua alma generosa.

    Bem sabes que minha esposa deve receber as minhas atenes mais respeitosas. No tenho remdio seno aceitar de bom grado as suas afetuosas imposies .

    - Helvdio, bom amigo - exclamou Fabrcius, demonstrando prudncia -, no devo nem posso interferir na tua vida ntima. Problemas h, na vida, que somente os cnjuges podem solucionar, entre si, na sagrada intimidade do lar; mas, no apenas pelo caso de Silano que me sinto apreensivo, relativamente ao teu regresso.

    E fixando o amigo bem nos olhos, rematou: - Lembras-te de Cludia Sabina?. . - Sim . . . - respondeu vagamente . - No sei se ests devidamente informado a seu respeito.

    Cludia hoje a esposa de Llio rbico, o prefeito dos pretorianos. No deves ignorar que esse homem a personalidade do dia, como depositrio da mxima confiana do Imperador.

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    Helvdio Lucius passou a mo pela fronte, como se desejasse afugentar uma penosa recordao do passado, revidando, afinal, para tranqilidade de si mesmo :

    - No desejo exumar o passado, visto ser hoje um outro homem; mas, se houver necessidade de ser prestigiado na Capital do Imprio, no podemos esquecer, igualmente, que meu sogro pessoa de toda a confiana, no s do prefeito a que aludes, como de todas as autoridades administrativas.

    - Bem o sei, mas no ignoro tambm que o corao humano tem escaninhos misteriosos...

    No acredito que Cludia, hoje elevada s esferas da mais alta aristocracia, pelos caprichos do destino, haja olvidado a humilhao do seu amor violento de plebia, espezinhado em outros tempos.

    - Sim - confirmou Helvdio Lucius com os olhos parados no abismo de suas recordaes mais ntimas -, muitas vezes tenho lamentado o haver nutrido em seu corao uma afetividade to intensa; mas, que fazer? A juventude est sujeita a caprichos numerosos e, a maior parte das vezes, no h advertncia que possa romper o vu da cegueira. . .

    - E estars hoje menos moo para que te sintas completamente livre dos caprichos multiplicados da nossa poca?

    O interpelado compreendeu todo o alcance daquelas observaes sbias e prudentes, e como se no lhe prouvesse o exame das circunstncias e dos fatos, cuja lembrana penosa o atormentaria, replicou sem perder o aparente bom humor, embora os olhos evidenciassem uma preocupao amargurosa:

    - Caio, meu bom amigo, pelas barbas de Jpiter! no me faas voltar ao plago escuro do passado. Desde que chegaste, nada me disseste alm de assuntos penosos e sombrios. De incio, a misria da Judia, de arrepiar os cabelos, com os seus quadros de desolao e runa e, depois, eis-te voltado para o passado escabroso, como se no nos bastassem as atuais amarguras.. . Fala-me antes de algo que me consolide o repouso ntimo . Embora no saiba explicar o motivo, tenho o corao apreensivo quanto ao futuro. A mquina de intrigas da sociedade romana aborrece-me o esprito, que nunca encontrou ensejos de lhe fugir ao ambiente detestvel. Meu regresso a Roma inquina-se de perspectivas dolorosas, embora no ouse confess-lo!...

    Fabrcius ouviu-o, atento e compungido. As palavras do amigo denunciavam o profundo temor de retornar ao passado to cheio de aventuras.

    Aquela atitude splice atestava que a recordao dos tempos idos ainda lhe palpitava no peito, apesar de todos os esforos para esquecer.

    Reprimindo os prprios receios, falou, ento, afetuosamente : - Pois bem, no falaremos mais nisso. E acentuando a alegria que lhe causava aquele encontro, continuou

    comovidamente : - Ento, poderia acaso esquecer-me de algo que me pedisses?

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    Sem mais delonga, encaminhou-se para o trio onde os serviais de confiana lhe esperavam as ordens, regressando sala acompanhado pelo desconhecido que lhe seguira a liteira, na atitude humilde de escravo.

    Helvdio Lucius surpreendeu-se, ao ver a personagem interessante que lhe era apresentada.

    Identificara, imediatamente, a sua condio de servo, mas o espanto lhe provinha da profunda simpatia que aquela figura lhe inspirava.

    Seus traos de israelita eram iniludveis, porm, no olhar havia uma vibrao de orgulho nobre, temperado de singular humildade. Na fronte larga, notavam-se cs precoces, se bem que o fsico denunciasse a pletora de energias orgnicas da idade madura. O aspecto geral, contudo, era o de um homem profundamente desencantado da vida. No rosto, percebia-se o sinal de maceraes e sofrimentos indefinveis, impresses dolorosas, alis compensadas pelo fulgor enrgico do olhar, transparente de serenidade.

    - Eis a surpresa - frisou Caio Fabrcius alegremente : - comprei, como lembrana, esta preciosidade, na feira de Terebinto, quando alguns de nossos companheiros liquidavam o esplio dos Veneidos .

    Helvdio Lucius parecia no ouvir, como que procurando mergulhar fundo naquela figura curiosa, ao alcance de seus olhos, e cuja simpatia lhe impressionava as fibras mais sensveis e mais ntimas.

    - Admiras-te ? - insistiu Caio desejoso de ouvir as suas apreciaes diretas e francas. - Quererias porventura, que te trouxesse um Hrcules formidando? Preferi lisonjear-te com um raro exemplar de sabedoria.

    Helvdio agradeceu com um sinal expressivo, acercando-se do escravo silencioso, com um leve sorriso .

    - Como te chamas? - perguntou solcito. - Nestrio. - Onde nasceste ? Na Grcia ? - Sim - respondeu o interpelado com um doloroso sorriso. - Como pudeste alcanar Terebinto ? - Senhor, sou de origem judia, apesar de nascido em Efeso . Meus

    antepassados transportaram-se Jnia, h alguns decnios, em virtude das guerras civis da Palestina. Criei-me nas margens do Egeu, onde mais tarde constitu famlia. A sorte, porm, no me foi favorvel. Tendo perdido minha companheira, prematuramente, devido a grandes desgostos, em breve, sob o guante de perseguies implacveis, fui escravizado por ilustres romanos, que me conduziram ao antigo pas de meus ascendentes.

    - E foi l que a revoluo te surpreendeu? - Sim . - Onde te encontravas? - Nas proximidades de Jerusalm. - Falaste de tua famlia. Tinhas apenas mulher ? - No, senhor. Tinha tambm um filho. - Tambm morreu ?

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    - Ignoro. Meu pobre filho, ainda criana, caiu, - como seu pai, na dolorosa noite do cativeiro. Apartado de mim, que o vi partir com o corao lacerado de dor e de saudade. Foi vendido a poderosos mercadores do sul da Palestina.

    Helvdio Lucius olhou para Fabrcius, como a expressar a sua admirao pelas respostas desassombradas do desconhecido, continuando, porm, a interrogar:

    - A quem servias em Jerusalm ? - A Calius Flavius. - Conheci-o de nome. Qual o destino do teu senhor... - Foi dos primeiros a morrer nos choques havidos nos arredores

    da cidade, entre os legionrios de Ticneio Rufus e os reforos judeus chegados de Betel.

    - Tambm combateste? - Senhor, no me cumpria combater seno pelo desempenho das

    obrigaes devidas quele que, conservando-me cativo aos olhos do mundo, h muito me havia restitudo liberdade, junto de seu magnnimo corao. Minhas armas deviam ser as da assistncia necessria ao seu esprito leal e justo. Calius Flavius no era para mim o verdugo, mas o amigo e protetor de todos os momentos. Para meu consolo ntimo, pude provar-lhe a minha dedicao, quando lhe fechei os olhos no alento derradeiro.

    - Por Jpiter! - exclamou Helvdio, dirigindo-se em alta voz ao amigo - a primeira vez que ouo um escravo abenoar o senhor.

    - No s isso - respondeu Caio Fabrcius bem humorado, enquanto o servo os observava ereto e digno -, Nestrio a personificao do bom-senso. Apesar dos seus laos de sangue com a sia Menor, sua cultura acerca do Imprio das mais vastas e notveis.

    - Ser possvel? - tornou Helvdio admirado. - Conhece a Histria Romana to bem quanto um de ns. - Mas chegou a viver na capital do mundo? - No. Ao que ele diz, somente a conhece por tradio. J convidado pelos dois patrcios, sentou-se o escravo para

    demonstrar os seus conhecimentos. Com desembarao, falou das lendas encantadoras que envolviam o

    nascimento da cidade famosa, entre os vales da Etrria e as deliciosas paisagens da Campnia. Rmulo e Remo, a lembrana de Acca Larentia, o rapto das Sabinas, eram imagens que, na linguagem de um escravo, broslavam-se de novos e interessantes matizes. Em seguida, passou a explanar o extraordinrio desenvolvimento econmico e poltico da cidade. A histria de Roma no tinha segredos para o seu intelecto. Remontando poca de Tarqunio Prisco, falou de suas construes maravilhosas e gigantescas, detendo-se, em particular, na clebre rede de esgotos, a caminho das guas lodosas do Tibre. Lembrou a figura de Srvio Tlio, dividindo a populao romana em classes e centrias. Numa Pomplio, Mennio Agripa, os Gracos, Srgio Catilina, Cipio Nasica e todos os vultos famosos da Repblica foram recordados na sua exposio, onde os conceitos cronolgicos se alinhavam com admirvel exatido.

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    Os deuses da cidade, os costumes, conquistas, generais intrpidos e valorosos, eram com detalhes indelevelmente gravados na sua memria. Seguindo o curso dos seus conhecimentos, rememorou o Imprio nos seus primrdios, salientando as suas realizaes portentosas, desde o faustoso brilho da Corte de Augusto. As magnificncias dos Csares, trabalhadas pela sua dialtica fluente, apresentavam novos coloridos histricos, em vista das consideraes psicolgicas, acerca de todas as situaes polticas e sociais.

    Por muito tempo falara Nestrio dos seus conhecimentos do passado, quando Helvdio Lucius - sinceramente surpreendido o interpelou :

    - Onde conseguiste essa cultura, radicada em nossas mais remotas tradies?. .

    - Senhor, tenho manuseado todos os livros da educao romana, ao meu alcance, desde moo. Alm disso, sem que me possa explicar a razo, a Capital do Imprio exerce sobre mim a mais singular de todas as sedues.

    - Ora - ajuntou Caio Fabrcius satisfeito - Nestrio tanto conhece um livro de Salstio, como uma pgina de Petrnio. Os autores gregos, igualmente, no tm segredos para ele. Considerada, porm, a sua predileo pelos motivos romanos, quero acreditar haja ele nascido ao p de nossas portas .

    O escravo sorriu levemente, enquanto Helvdio Lucius esclarecia: - Semelhantes conhecimentos evidenciam um interesse

    injustificvel da parte de um cativo. E depois de uma pausa, como se estivesse arquitetando um

    projeto ntimo, continuou a falar, dirigindo-se ao amigo : - Meu caro, louvo-te a lembrana. Minha grande preocupao,

    no momento, era obter um servo culto, que pudesse incumbir-se de enriquecer a educao de minhas filhas, auxiliando-me, simultaneamente, no arranjo dos processos do Estado, a que agora serei compelido pela fora do cargo.

    O anfitrio mal havia concludo o seu agradecimento, quando surgiram na sala a esposa e as filhas, num gracioso cromo familiar.

    Alba Lucnia, que ainda no atingira os quarenta anos, conservava no rosto os mais belos traos da juventude, a iluminarem o seu perfil de madona. Junto das filhas, duas primaveras risonhas, seu aspecto de mocidade ganhava um todo de nobres expresses vestalinas, confundindo-se com as duas, como se lhes fora irm mais velha, ao invs de me extremosa e afvel.

    Helvdia e Clia, porm, embora a semelhana profunda dos traos fisionmicos, deixavam transparecer, espontaneamente, a diversidade de temperamentos e pendores espirituais. A primeira entremostrava nos olhos uma inquietao prpria da idade, indiciando os sonhos febricitantes que lhe povoavam a alma, ao passo que a segunda trazia no olhar uma reflexo serena e profunda, como se o esprito de mocidade houvera envelhecido prematuramente .

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    Todas as trs exibiam, graciosamente, os delicados enfeites do "peplum" em sua feio domstica, presos os cabelos em preciosas rdeas de ouro, ao mesmo tempo que ofereciam a Caio Fabrcius um sorriso de acolhimento.

    - Ainda bem - murmurou o hspede com vivacidade prpria do seu gnio expansivo, avanando para a dona da casa -, o meu grande Helvdio encontrou o altar das Trs Graas, entronizando-as egoisticamente no lar. Alis, aqui estamos nas plagas do Egeu, bero de todas as divindades!...

    Suas saudaes foram recebidas com geral agrado. No somente Alba Lucnia, mas tambm as filhas se regozijavam

    com a presena do carinhoso amigo da famlia, de muitos anos. Em breve, todo o grupo se animava em palestra amena e sadia. Era

    o burburinho das notcias de Roma, de mistura com as impresses da Indumia e de outras regies da Palestina, onde Helvdio Lucius estagiara junto da famlia, enfileirando-se as opinies encantadoras e ntimas, acerca dos pequeninos nadas de cada dia.

    Em dado instante, o dono da casa chamou a ateno da esposa para a figura de Nestrio, encolhido a um canto da sala, acrescentando entusiasticamente :

    - Lucnia, eis o rgio presente que Caio nos trouxe de Terebinto. - Um escravo ? ! . . - perguntou a senhora com entonao de

    piedade . - Sim. Um escravo precioso. Sua capacidade mnemnica um dos

    fenmenos mais interessantes que tenho observado em toda a vida. Imagina que tem dentro do crebro a longa histria de Roma, sem omitir o mais ligeiro detalhe. Conhece nossas tradies e costumes familiares como se houvera nascido no Palatino. Desejo sinceramente tom-lo a meu servio particular, utilizando-o ao mesmo tempo no apuro da instruo de nossas filhas.

    Alba Lucnia fitou o desconhecido tomada de surpresa e simpatia. Por sua vez, as duas jovens o contemplavam admiradas .

    Saindo, contudo, da sua estupefao, a nobre matrona ponderou refletidamente:

    - Helvdio, sempre considerei a misso domstica como das mais delicadas de nossa vida.

    Se esse homem deu provas dos seus conhecimentos, t-las-ia dado tambm de suas virtudes para que venhamos a utiliz-lo, confiadamente, na educao de nossas filhas ?

    O marido sentiu-se embaraado para responder pergunta to sensata e oportuna, mas, em seu auxlio veio a palavra firme de Caio, que esclareceu:

    - Eu vo-la dou, minha senhora: se Helvdio pode abonar-lhe a sabedoria, posso eu testificar as suas nobres qualidades morais.

    Alba Lucnia pareceu meditar por momentos, acrescentando, afinal, com um sorriso satisfeito:

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    - Est bem, aceitaremos a garantia da sua palavra. Em seguida, a graciosa dama fitou Nestrio com caridade e brandura, compreendendo que, se o seu doloroso aspecto era, incontestavelmente, o de um escravo, os olhos revelavam uma serenidade superior, saturada de estranha firmeza.

    Depois de um minuto de observao acurada e silenciosa, voltou-se para o marido dizendo-lhe algumas palavras em voz quase imperceptvel, como se pleiteasse a sua aprovao, antes de dar cumprimento a algum de seus desejos. Helvdio, por sua vez, sorriu ligeiramente, dando um sinal de aquiescncia com a cabea.

    Voltando-se, ento, para os demais, a nobre senhora falou comovidamente:

    - Caio Fabrcius, eu e meu marido resolvemos que nossas filhas venham a utilizar a cooperao intelectual de um homem livre.

    E, tomando de minscula varinha que descansava no bojo de um jarro oriental, a um canto da sala, tocou levemente a fronte do escravo, obedecendo s cerimnias familiares, com as quais o senhor libertava os cativos na Roma Imperial, exclamando :

    - Nestrio, nossa casa te declara livre para sempre ! . . Filhas - continuou a dizer sensibilizada, dirigindo-se s duas jovens

    -, nunca humilheis a liberdade deste homem, que ter toda a independncia para cumprir os seus deveres!...

    Caio e Helvcio entreolharam-se satisfeitos . Enquanto Helvdia cumprimentava de longe o liberto, com um leve aceno de cabea, altiva, Clia aproximou-se do alforriado, que tinha os olhos midos de lgrimas e estendeu-lhe a mo aristocrtica e delicada, numa saudao sincera e carinhosa.

    Seus olhos encontravam o olhar do ex-escravo, numa onda de afeto e atrao indefinveis. O liberto, visivelmente emocionado, inclinou-se e beijou reverentemente a mo generosa que a jovem patrcia lhe oferecia.

    A cena comovedora perdurava por momentos, quando, com surpresa geral, Nestrio se levantou do recanto em que se achava e, caminhando at o centro da sala, ajoelhou-se ante os seus benfeitores, osculando humildemente os ps de Alba Lucnia.

    II - UM ANJO E UM FILSOFO

    O palcio residencial do prefeito Llio rbico demorava numa das mais belas eminncias da colina em que se erguia o Capitlio.

    A fortuna do seu dono era das mais opulentas da cidade, e a sua situao poltica era das mais invejveis, pelo prestgio e respectivos privilgios.

    Embora descendente de antigas famlias do patriciado, no recebera vultosa herana dos avoengos mais ilustres e todavia, bem cedo o Imperador tomara-o a seu cuidado.

    Dele fizera, a princpio, um tribuno militar cheio de esperanas e perspectivas promissoras, para promov-lo em seguida aos postos mais eminentes. Transformara-o, depois, no homem de sua inteira confiana. Fez-

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    lhe doaes valiosas em propriedades e ttulos de nobreza, espantando-se, porm, a aristocracia da cidade, quando Adriano lhe recomendou o casamento com Cludia Sabina, plebia de talento invulgar e de rara beleza fsica, que conseguira, com o seu favoritismo, as mais elevadas graas da Corte.

    Llio rbico no vacilou em obedecer vontade do seu protetor e maior amigo.

    Casara-se, displicentemente, como se no matrimnio devesse encontrar uma salvaguarda total de todos os seus interesses particulares, prosseguindo, todavia, em sua vida de aventuras alegres, nas diversas campanhas de sua autoridade militar, fosse na Capital do Imprio ou nas cidades de suas Provncias numerosas.

    Por outro lado, a esposa, agora prestigiada pelo seu nome, conseguia no seio da nobreza romana um dos lugares de maior evidncia. Pouco inclinada s preocupaes de matrona, no tolerava o ambiente domstico, entregando-se aos desvarios da vida mundana, ora seguindo o plano delineado pelos amigos, ora organizando festivais clebres, afamados pela viso artstica e pela discreta licenciosidade que os caracterizava.

    A sociedade romana, em marcha franca para a decadncia dos antigos costumes familiares, adorava-lhe as maneiras livres, enquanto o esprito mundano do Imperador e a volpia dos ulicos se regozijavam com os seus empreendimentos, no turbilho das iniciativas alegres, nos ambientes sociais mais elevados.

    Cludia Sabina conseguira um dos postos mais avanados nas rodas elegantes e frvolas. Sabendo transformar a inteligncia em arma perigosa, valia-se da sua posio para aumentar, cada vez mais, o prprio prestgio, elevando, s culminncias do meio em que vivia, criaturas de nobreza improvisada, para satisfazer facilmente os seus caprichos.

    Assim que, em torno de seus preciosos dotes de beleza fsica, borboleteavam todas as atenes e todos os desvelos.

    Entardece. No elegante palcio, prximo do templo de Jpiter Capitolino, paira

    um ambiente pesado de solido e quietude . Recostada num div do terrao, vamos encontrar Cludia Sabina

    em palestra reservada com uma mulher do povo, em atitudes de grande intimidade.

    - Hatria - dizia ela, interessada e discretamente -, mandei chamar-te a fim de aproveitar a tua velha dedicao numa incumbncia.

    - Ordenai - respondia a mulher de aspecto humilde, com o artificialismo de suas maneiras aparentemente singelas. - Estou sempre pronta a cumprir as vossas ordens, sejam quais forem.

    - Estarias disposta a servir-me cegamente, em outra casa ? - Sem dvida . - Pois bem, eu no tenho vivido seno para vingar-me de terrveis

    humilhaes do passado. - Senhora, lembro-me das vossas amarguras, no seio da plebe .

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    - Ainda bem que conheceste os meus sofrimentos. Escuta - continuava Cludia Sabina baixando a voz intencionalmente -, sabes quem so os Lucius, em Roma?

    - Quem no conhece o velho Cneio, senhora? Antes de me falardes de vossas mgoas, devo esclarecer que sei tambm dos vossos desgostos, devidos ingratido do filho.

    - Ento, nada mais preciso dizer-te a respeito do que me compete fazer agora. Talvez ignores que Helvdio Lucius e sua famlia chegaro a esta cidade dentro de poucos dias, de regresso do Oriente. Tenciono colocar-te no servio de sua mulher, a fim de poderes auxiliar a execuo integral dos meus planos.

    - Ordenai e obedecerei cegamente . - Conheces Tlia Cevina? - A mulher do tribuno Mximo Cunctator? - Ela mesma. Ao que fui informada, Tlia Cevina foi encarregada,

    por sua antiga companheira de infncia, de arranjar duas ou trs servas de inteira confiana e habilitadas a satisfazer os imperativos da atualidade romana. Assim, importa que te apresentes, quanto antes, como candidata a esse cargo.

    - Como ? Achais provvel que a esposa do tribuno venha a aceitar o meu simples oferecimento, sem referncia que me recomende ao seu critrio ?

    - Precisamos muita ponderao neste sentido. Tlia jamais dever saber que s pessoa da minha intimidade. Poderias apresentar referncias especiais de Gristemis ou de Musnia, minhas amigas mais ntimas; todavia, essa medida no ficaria bem, igualmente. Suscitaria, talvez, qualquer suspeita, quando eu tivesse mais necessidade de tua interveno ou de teus servios.

    - Que fazermos, ento? - Antes de tudo, necessrio te capacites da utilidade dos teus

    prprios recursos, em benefcio dos nossos projetos. A aquisio de uma serva humilde coisa preciosa e rara. Apresenta-te a Tlia com a mais absoluta singeleza. Fala-lhe das tuas necessidades, explica-lhe os teus bons desejos. Tenho quase certeza de que bastar isso para vencermos nossos primeiros passos. Em seguida, conforme espero, sers admitida ao ambiente domstico de Alba Lucnia, a usurpadora da minha ventura. Servi-la-s com humildade, submisso e devotamento at conquistar-lhe confiana absoluta. No precisars procurar-me amide para no despertar suspeitas em torno de nossas combinaes . Virs a esta casa um dia em cada ms, a fim de estabelecermos os acordos necessrios. A princpio, estudars o ambiente e me cientificars de todas as novidades e descobertas da vida ntima do casal. Mais tarde, ento, veremos a natureza dos servios a executar.

    Posso contar com a tua dedicao e com o teu silncio? - Estou inteiramente s ordens e cumprirei as vossas

    determinaes com absoluta fidelidade. - Confio nos teus esforos.

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    E, assim dizendo, Cludia Sabina entregou comparsa algumas centenas de sestrcios, em penhor de mtuos compromissos.

    Hatria guardou o preo da primeira combinao, avidamente, lanando um olhar cpido bolsa e exclamando atenciosa:

    - Podeis estar certa de que serei vigilante, humilde e discreta. Caam as sombras da noite sobre os Montes Albanos, mas a

    emissria de Cludia procurou Tlia Cevina, da a algumas horas, para os fins conhecidos.

    A esposa do tribuno Mximo Cunctator, patrcia de corao bondoso e afvel, recebeu aquela mulher do povo, com generosidade e doura. As solicitaes insistentes de Hatria confundiam-na. Havia comentado o pedido de sua amiga Alba Lucnia num crculo reduzidssimo de amizades mais ntimas; entretanto, aquela serva desconhecida no lhe trazia recomendao alguma dos amigos com quem se entendera a respeito . Atribuiu, porm, o fato tagarelice de alguma escrava que houvesse conhecido o assunto, indiretamente, atravs de qualquer palestra despreocupada.

    A humildade e singeleza de Hatria pareceram-lhe adorveis. Suas maneiras revelavam extraordinria capacidade de submisso, desvelada e carinhosa.

    Tlia Cevina aceitou-a e, apiedada da sua situao, recolheu-a naquela mesma noite, acomodando-a entre as suas fmulas.

    Da a dias, a Porta de stia apresentava singular movimento. Luxuosas viaturas encaminhavam-se para o porto, onde a galera dos nossos conhecidos j havia ancorado.

    Nas edificaes da praia ensolarada, estalavam os ditos alegres e carinhosos. Uma chusma de amigos e de representaes sociais e polticas vinha receber Helvdio e Caio, num dilvio de abraos carinhosos.

    Llio rbico e a esposa chegavam, igualmente, ao lado de Fbio Cornlio e sua mulher Jlia Spinter, velha patrcia, conhecida por suas tradies de orgulhosa sinceridade. Tlia Cevina e Mximo Cunctator l se encontravam, tambm, ansiosos pelo amplexo fraternal dos amigos, que, por largos anos, se haviam ausentado. Numerosos parentes e afeioados disputavam, entre si, o instante de estreitar nos braos amigos os queridos recm-chegados, mas, dentre toda a multido, destacava-se o vulto venerando de Cneio Lucius, aureolado pelos cabelos brancos, que as penosas experincias da vida haviam santificado. Uma atmosfera de amor e venerao fazia-se em torno da sua personalidade vibrante de cultura e generosidade, que setenta e cinco anos de lutas no conseguiram empanar. A sociedade romana havia seguido o curso de todos os seus passos, conhecendo, de longe, as suas tradies de nobreza e lealdade e respeitando nela um dos mais sagrados expoentes da educao antiga, cheia da beleza de Roma, em seus princpios mais austeros e mais simples.

    Cneio Lucius soubera desprezar todas as posies de domnio, compreendendo que o esprito do militarismo operava a decadncia do Imprio, esquivando-se a todas as situaes materiais de evidncia, de modo a conservar o ascendente espiritual que lhe competia. No acervo dos

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    seus servios coletividade, contavam-se as providncias desenvolvidas pelo Governo Imperial a favor dos escravos que ensinavam as primeiras letras aos filhos de seus senhores, alm de muitas outras obras de benemerncia social, a prol dos mais pobres e dos mais humildes, a quem a sorte no favorecera.

    Seu nome era respeitado, no somente nos crculos aristocrticos do Palatino, mas tambm na Suburra, onde se acotovelavam as famlias annimas e desventuradas.

    Naquela manh, o rosto do velho patrcio deixava entrever o jbilo sereno que lhe palpitava na alma .

    Estreitou os filhos longamente de encontro ao corao, chorando de alegria ao abra-los; osculou as netas com paternal contentamento, mas, enquanto as mais festivas saudaes eram trocadas entre todos no turbilho de expressivas demonstraes de afeto e carinho, Cneio Lucius notou que Llio rbico contemplava, com insistncia, o perfil de sua nora, enquanto Cludia Sabina, fingindo absoluto olvido do passado, concentrava a sua ateno em Helvdio, em furtivos olhares que lhe diziam tudo experincia do corao, cansado de bater entre os caprichosos desenganos do mundo.

    Nestrio, por sua vez, desembarcado em stia, por satisfazer velho sonho, qual o de conhecer a cidade clebre e poderosa, sentia estranhas comoes a lhe vibrarem no ntimo, como se estivesse a rever lugares amigos e queridos. Guardava a convico de que o panorama, agora desdobrado aos seus olhos ansiosos, lhe era familiar, dos mais remotos tempos. No podia precisar a cronologia de suas recordaes, mas conservava a certeza de que, por processo misterioso, Roma estava inteira na tela de suas mais entranhadas reminiscncias .

    Naquele mesmo dia, enquanto Alba Lucnia e as filhas se retiravam para a cidade, ao lado de Fbio Cornlio e de sua mulher, Helvdio Lucius tomava lugar ao lado do velho genitor, encaminhando-se ao permetro urbano, sem observarem as horas ou as perspectivas suaves do caminho, plenamente mergulhados, como se encontravam, em suas confidncias mais ntimas.

    Helvdio confiou ao pai todas as impresses que trazia da sia Menor, rememorando cenas ou evocando carinhosas lembranas, salientando, porm, as suas intensas preocupaes morais a respeito da filha, cujos conhecimentos prematuros em matria de religio e filosofia o assombravam, desde que, acidentalmente, se dera ao prazer de ouvir os escravos da casa, sobre perigosas supersties da crena nova que invadia os setores do Imprio, em todas as direes. Esclareceu, assim, ante o delicado e generoso mentor espiritual de sua existncia, toda a situao familiar, apresentando-lhe os pormenores e circunstncias, em torno do assunto.

    O velho Cneio Lucius, depois de ouvi-lo atentamente, prometeu-lhe auxlio moral, no que se referia questo, a cuja soluo o seu experimentado tirocnio educativo prestaria o mais proveitoso concurso.

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    Em poucos dias, instalavam-se os nossos amigos na sua magnfica residncia do Palatino, iniciando um novo ciclo de vida citadina.

    Helvdio Lucius estava satisfeito com a sua nova posio, salientando-se que, como substituto imediato do sogro nas funes de Censor, estava-lhe reservado um papel relevante na vida da cidade, sob as vistas generosas do Imperador. Quanto a Alba Lucnia, graas aos seus inatos pendores artsticos, auxiliada por Tlia, transformou as perspectivas da velha propriedade, imprimindo-lhes o gosto da poca e edificando em cada recanto um fragmento de harmonia do lar, onde o marido e as filhas pudessem repousar das largas inquietaes da vida.

    Desnecessrio dizer que, abonada por Tlia, Hatria foi admitida no lar, impondo-se a todos por sua humildade habilidosa e conquistando dos amos confiana plena, em poucos dias.

    Na semana seguinte, a pretexto de repousar algum tempo junto do av, que a idolatrava, foi Clia conduzida pelos pais residncia do mesmo, na outra margem do Tibre, nas faldas do Aventino.

    Cneio Lucius habitava confortvel palacete de apurado estilo romano, em companhia de duas filhas j idosas, que lhe enchiam de afeto a estrelejada noite da velhice.

    Recebeu a neta carinhosa, com as mais inequvocas provas de contentamento.

    No dia imediato, pela manh, mandou preparar a liteira particular para, em sua companhia, oferecer um sacrifcio no templo de Jpiter Capitolino.

    Clia acompanhou-o calma e prazerosa, embora reparasse os olhares expressivos com que o ancio a observava, ansioso, talvez, por lhe identificar os sentimentos mais ntimos.

    Cneio Lucius no estacionou to somente no santurio de Jpiter, dirigindo-se, igualmente, ao templo de Serpis, onde procurou palestrar com a neta a respeito das mais antigas tradies da famlia romana. A jovem no lhe contradisse as palavras nem interrompeu a carinhosa preleo, submetendo-se maior obedincia no que se referia ritualstica dos templos, conforme os regulamentos institudos em Roma pelos padres flamneos .

    A tarde j caa, quando o generoso velhinho deu por terminada a peregrinao atravs dos edifcios religiosos da cidade. O Sol escondia-se no poente, mas Cneio Lucius desejava conhecer toda a intensidade dos novos pensamentos da neta, conduzindo-a, para esse fim, ao altar domstico, onde se alinhavam as soberbas imagens de marfim dos deuses familiares.

    - Clia, minha querida - disse ele por fim, descansando num largo div frente dos dolos -, levei-te hoje aos templos de Jpiter e de Serpis, onde ofereci sacrifcios em favor da nossa felicidade; mais que a nossa ventura, porm, cara filha, eu desejo a tua prpria . Notei que acompanhavas os meus gestos e, todavia, no demonstravas devoo sincera e ardente. Acaso, trouxeste da Provncia alguma idia nova, contrria s nossas crenas?!...

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    Ouviu a palavra do venerando av, com a alma perdida em profundas cismas . Compreendeu, de relance, a situao, e, afeita s rigorosas tradies da famlia, adivinhou que seu pai solicitara tal providncia, no intuito de reformar-lhe os pensamentos, bem como as convices mais ntimas.

    - Querido av - respondeu de olhos midos, nos quais transparecia sublimada inocncia -, eu sempre vos amei de toda a minhalma e vs me ensinastes a dizer toda a verdade, em quaisquer circunstncias.

    - Sim - exclamou Cneio Lucius admirado, adivinhando as emoes da adorada criana -, ests no meu corao a todos os instantes. Fala, filhinha, com a maior franqueza! Eu no aprendi outro caminho que o da verdade, junto s nossas tradies e aos nossos deuses..

    - De antemo devo esclarecer-vos que foi certamente meu pai quem vos solicitou a reforma de meus atuais sentimentos religiosos .

    O venervel ancio fez um gesto de espanto em face daquela observao inesperada.

    - Sim - continuou a jovem -, talvez meu pai no me pudesse compreender inteiramente... Ele jamais poderia ouvir-me satisfatoriamente, sem um protesto enrgico de sua alma; entretanto, eu continuaria a am-lo sempre, ainda que o seu corao no me entendesse.

    - Ento, filhinha, porque negaste a Helvdio as tuas mais ntimas confidncias?. ..

    - Tentei fazer-lhas um dia, quando ainda nos encontrvamos na Judia, mas compreendi, imediatamente, que meu pai julgaria mal as minhas palavras mais sinceras, percebendo, ento, que a verdade para ser totalmente compreendida precisa ser tratada entre coraes da mesma idade espiritual.

    - Mas, filha, onde colocas, agora, os laos sagrados da famlia? - No amor e no respeito com que sempre os cultivei; entretanto,

    avozinho, no campo das idias os elos do sangue nem sempre significam harmonia de opinio entre aqueles que o Cu uniu no instituto familiar. Venerando e estimando a meu pai, no meu afeto filial e no respeito s tradies do seu nome, esposei idias que ao seu esprito no possvel aderir, por enquanto...

    - Mas, que queres traduzir por idade espiritual ? . . - Que a mocidade e a velhice, quais as vemos no mundo, no

    podem significar seno expresses de uma vida fsica que finda com a morte. No h moos nem velhos e sim almas jovens no raciocnio ou profundamente enriquecidas no campo das experincias humanas.

    - Que queres dizer com isso? perguntou o ancio altamente admirado. - Tens to vasta leitura dos autores gregos?! Isso de estranhar, quando teu pai s h pouco obteve um escravo culto, especialmente destinado a enriquecer a tua e a educao de tua irm.

    - Vov bem sabe da nsia de aprender, que sempre me impeliu, desde pequenina. Embora jovem, sinto em meu esprito o peso de uma idade milenria. Em todos estes anos de ausncia, na Provncia, gastei

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    todo o tempo disponvel em devorar a biblioteca que meu pai no podia levar consigo para as suas atividades na Indumia.

    - Filhinha - exclamou o respeitvel ancio sinceramente consternado -, no terias agido moda dos enfermos que, fora de buscarem a virtude de todos os medicamentos ao alcance da mo, acabam lamentavelmente intoxicados?!...

    - No, querido av, eu no me envenenei. E se tal coisa houvera acontecido, h mais de dois anos tenho no corao o melhor dos antdotos influncia corrosiva de todos os txicos deste mundo .

    - Qual ? - interrogou Cneio Lucius sumamente surpreendido. - Uma crena fervorosa e sincera. - Colocaste teus pensamentos, neste sentido, sob a invocao dos

    nossos deuses?. . - No, querido av, pesa-me confessar-vos, mas, sinto em vosso

    ntimo a mesma capacidade de compreenso que vibra em minhalma e devo ser sincera. Os deuses de nossas antigas tradies j me no satisfazem...

    - Como assim, querida filha? A que entidade dos cus confias hoje a tua f sublimada e fervorosa?. .

    Como se nos seus grandes olhos vibrasse estranha luz, Clia respondeu calmamente:

    - Guardo agora a minha f em Jesus-Cristo, o Filho de Deus Vivo. - Declaras-te crist? - perguntou o velho av empalidecendo. - S me falta o batismo. - Mas, filha - disse Cneio Lucius emprestando voz uma doce

    inflexo de carinho -, o Cristianismo est em contradio com todos os nossos princpios, pois elimina todas as noes religiosas e sociais, basilares da nossa concepo de Estado e de Famlia. Alm disso, no sabes que adotar essa doutrina caminhar para o sacrifcio e para a morte ? . . .

    - Vov, apesar dos vossos longos e criteriosos estudos, acredito que no chegastes a conhecer as tradies de Jesus e a claridade suave dos seus ensinamentos. Se tivsseis o conhecimento integral da sua doutrina, se ouvsseis diretamente aqueles que se saturaram da sua f, tereis enriquecido ainda mais o tesouro de bondade e compreenso do vosso esprito.

    - Mas no se compreende uma idia to pura, a encaminhar seus adeptos para a condenao e para o martrio, h quase um sculo .

    - Entretanto, avozinho, ainda no atentastes, talvez, para a circunstncia de partir do mundo essa condenao, ao passo que Jesus prometeu as alegrias do seu reino a todos os que sofressem na Terra, por amor ao seu nome .

    - Desvairas, minha querida, no pode haver divindade maior que o nosso Jpiter, nem pode existir outro reino que ultrapasse o nosso Imprio. Alm disso, o profeta nazareno, ao que sou informado, pregou uma fraternidade impossvel e uma humildade que ns outros no poderemos compreender.

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    Pousou sobre a neta os olhos plcidos, cheios de caridade misteriosa, sentindo, porm, uma comoo mais intensa ao encontrar os dela serenos, piedosos, transparentes de candura indefinvel.

    - Avozinho - continuou a dizer com o olhar abstrato, como se o esprito voejasse em recordaes queridas e longnquas -, Jesus-Cristo o Cordeiro de Deus, que veio arrancar o mundo do erro e do pecado. Porque no lhe compreendermos os divinos ensinamentos, se temos fome de amor em nossa alma? Aparentemente sou uma jovem e vs um homem velho, para o mundo ; no entanto, sinto que nossos pensamentos so gmeos na sede de conhecimento espiritual...

    Da Terra inteira nos chegam clamores de revolta e gritos de batalha... Misturam-se o fel dos oprimidos e as lgrimas de todos os que padecem na humilhao e no cativeiro ! . . .

    Tendes conhecimento de todos esses tormentos insondveis que campeiam em todo o mundo! Vossos livros falam das angstias indefinveis do vosso esprito sensvel e carinhoso. Esses brados de sofrimento chegam at aos vossos ouvidos, a todos os momentos!

    Onde esto os nossos deuses de marfim, que no nos salvam da decadncia e da runa?! Onde Jpiter que no vem ao cenrio do mundo para restabelecer o equilbrio da maravilhosa balana da justia divina?! Poderemos aceitar um deus frio, impassvel, que se compraz em endossar todas as torpezas dos poderosos contra os mais pobres e os mais desgraados? Ser a Providncia do Cu igual de Csar, para cujo poder o mais dileto aquele que lhe traz as mais ricas oferendas? Entretanto, Jesus de Nazar trouxe ao mundo uma nova esperana. Aos orgulhosos advertiu que todas as vaidades da Terra ficam abandonadas no prtico de sombras do sepulcro; aos poderosos deu as lies de renncia aos bens transitrios do mundo, ensinando que as mais belas aquisies so as que se constituem das virtudes morais, imperecveis valores do Cu; exemplificou, em todos os seus atos de luz indispensveis nossa edificao espiritual para Deus Todo-Poderoso, Pai de misericrdia infinita, em nome de quem nos trouxe a sua doutrina de amor, com a palavra de vida e redeno .

    Alm de tudo, Jesus a nica esperana dos seres desamparados e tristes, da Terra, porquanto, de acordo com as suas doces promessas, ho-de receber as bem-aventuranas do Cu todos os desventurados do mundo, entre as bnos da simplicidade e da paz, na piedade e na prtica do bem .

    Cneio Lucius ouvia a neta, em comovido silncio, sentindo-se tocado de uma inquietao mesclada de encanto, qual a que devesse sentir um filsofo do mundo, que ouvisse as mais ternas revelaes da Verdade pela boca de um anjo.

    A jovem, por sua vez, dando curso s sagradas inspiraes que lhe rociavam a alma, continuou a falar, revolvendo o tesouro de suas lembranas mais gratas ao corao:

    - Por muito tempo estivemos em Antiptris, em plena Samaria, junto Galilia... Ali, a tradio de Jesus ainda est viva em todos os espritos. Conheci de perto a gerao de quantos foram beneficiados pelas

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    suas mos misericordiosas, fiquei conhecendo a histria dos leprosos, limpos ao toque do seu amor; dos cegos em cujos olhos mortos fluiu uma vibrao nova de vida, em virtude da sua palavra carinhosa e soberana; dos pobres de todos os matizes, que se enriqueceram da sua f e da sua paz espiritual.

    Nas margens do lago de suas pregaes inesquecveis, pareceu-me ver ainda o sinal luminoso dos seus passos, quando, alma em prece, rogava ao Mestre de Nazar as suas bnos dulcificantes ! . ..

    - Mas Jesus Nazareno no era um perigoso visionrio ? - perguntou Cneio Lucius, profundamente surpreendido. - No prometia um outro reino, menosprezando as tradies do nosso Imprio ?

    - Vov - respondeu a donzela sem se perturbar -, o Filho de Deus no desejou jamais fundar um reino belicoso e perecvel, qual o possuem os povos da Terra. Nem se cansou jamais de esclarecer que o seu reino ainda no deste mundo, antes ensinou que a sua fundao se destina s almas que desejem viver longe do torvelinho das paixes terrestres.

    Revolucionria a palavra que abenoa a todos os aflitos e deserdados da sorte? Que manda perdoar o inimigo setenta vezes sete vezes? Que ensina o culto a Deus com o corao, sem a pompa das vaidades humanas? Que recomenda a humildade como penhor de todas as realizaes para o Cu ? .

    O Evangelho do Cristo, que tive ocasio de ler em fragmentos de pergaminho, nas mos dos nossos escravos, um cntico de sublimadas esperanas no caminho das lgrimas da Terra, em marcha, porm, para as glrias sublimes do Infinito.

    O respeitvel ancio esboou um sorriso complacente, exclamando, bondoso:

    - Filha, para ns a humildade e o desprendimento so dois postulados desconhecidos. Nossas guias simblicas jamais podero descer dos seus postos de domnio e nem os nossos costumes so passveis de se acomodarem ao perdo, como norma de evoluo ou de conquista...

    Tuas consideraes, porm, interessam-me sobremaneira. Mas dize-me: onde hauriste semelhantes conhecimentos ? Como pudeste banhar o esprito nessa nova f, a ponto de argumentares fervorosamente em desfavor das nossas tradies mais antigas?... Conta-me tudo com a mesma sinceridade que sempre reconheci no teu carter!. .

    - Primeiramente, vim a conhecer os ensinamentos do Evangelho, ouvindo, curiosamente, as conversas dos escravos de nossa casa...

    Aps haver pronunciado essas palavras reticenciosas, Clia pareceu meditar gravemente, como se experimentasse uma dificuldade indefinvel para atender aos bons desejos do querido av, naquelas circunstncias .

    Em seguida, como se travasse consigo mesma um dilogo silencioso, entre a razo e o sentimento, ruborizou-se, como receosa de expor toda a verdade.

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    Cneio Lucius, todavia, identificou-lhe imediatamente a atitude mental, exclamando :

    - Fala, filha! Teu velho av saber entender o teu corao. - Direi - respondeu ela ruborizada, dirigindo-lhe os olhos splices,

    na sua timidez de menina e moa. - Vov, ser pecado amar?! - Certo que no - respondeu o velhinho, adivinhando um mundo

    de revelaes no inopinado da pergunta. - E quando se ama a um escravo ? O venervel patrcio sentiu constritiva emoo, ao ouvir a penosa

    revelao da neta adorada; respondeu, contudo, sem hesitar: - Filhinha, estamos muito distantes da sociedade em que a filha de

    um patrcio possa unir seu destino ao de algum dos seus servos. Todavia - acrescentou depois de ligeira pausa - chegaste a querer

    tanto a um homem sujeito a to dolorosas circunstncias? Mas, vendo que os olhos da jovem se umedeciam e adivinhando-

    lhe as comoes penosas e constrangedoras em face daquelas confidncias, atraiu-a num beijo, de encontro ao corao, murmurando-lhe ao ouvido em tom carinhoso :

    - No temas os julgamentos do avozinho, inteiramente devotado ao teu bem-estar. Revela-me tudo sem omitir detalhe algum da verdade, por mais dolorosa que ela seja. Saberei compreender a tua alma, acima de tudo. Ainda que as tuas aspiraes amorosas e os teus sonhos ureos de menina hajam pousado no ser mais abjeto e desprezvel, no te amarei menos por isso, e, confiando em ti mesma, saberei respeitar a tua dor e a tua dedicao!

    Confortada com aquelas palavras, que deixavam transparecer generosidade e sinceridade absolutas, Clia prosseguiu :

    - Faz dois anos que papai nos levou em uma de suas excurses encantadoras, pelo lago extenso, na regio onde possumos a nossa casa. Alm de mim, da mame e da Helvdia, ia conosco um jovem escravo adquirido na vspera e o qual, em vista da sua percia nos remos, auxiliava a tarefa de abrir caminho ao longo das guas.

    Ciro, chama-se esse escravo de vinte anos, que a vontade do Cu deliberou fosse parar em nossa casa.

    amos todos alegres, observando a linha do horizonte e o recorte das nuvens no claro espelho das guas marulhantes.

    De vez em quando, Ciro me dirigia o olhar lcido e calmo, que me produzia uma emoo cada vez mais intensa e indefinvel.

    Quem poder explicar esse mistrio santo da vida ? Dentro desse divino segredo do corao, basta, s vezes, um gesto, uma palavra, um olhar, para que o esprito se algeme a outro para sempre...

    Fez uma pausa na exposio de suas reminiscncias, e, observando-lhe a emotividade a desbordar dos olhos midos, Cneio Lucius animou-a :

    - Continua, filhinha. Fao questo de ouvir e sentir a tua histria toda.

    - Nosso passeio - prosseguiu ela com os olhos da alma mergulhados no painel de suas mais ntimas recordaes - corria sereno e

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    sem tropeos, quando, em dado instante, se levantou uma onda larga, impelida pelo vento forte . Um abalo mais violento, justamente no ponto onde me instalara, fez-me cair, absorta nos meus pensamentos, de borco no seio espesso das guas..

    Ainda ouvi os primeiros gritos de mame e da irmzinha, supondo-me perdida para sempre; mas, quando me debatia, inutilmente, para vencer o peso enorme que me oprimia o peito, sob a massa lquida, senti que dois braos vigorosos me arrancavam do fundo lodoso do lago, trazendo-me tona, merc de um desesperado e imenso esforo.

    Era Ciro que me salvara da morte, com o seu esprito de sacrifcio e lealdade, conquistando com esse ato espontneo a gratido sem limites de meu pai, e de todos ns um reconhecimento carinhoso e sincero .

    No dia imediato, meu pai concedeu-lhe a liberdade, muito comovido pelos sucessos da vspera.

    No instante da sua emancipao, o jovem liberto beijou-me as mos com os olhos midos, na sua gratido profunda e sincera, conservando-o meu pai em nossa casa, como servial prestimoso e livre, quase um amigo, se outras fossem as condies do seu nascimento .

    Ciro, porm, no me conquistou somente gratido e estima a toda prova, como tambm o meu afeto dalma, espontneo e profundo .

    Em tardes serenas e claras, sob as rvores do pomar, contou-me a sua histria singular, cheia de episdios interessantes e comovedores.

    Em tenra idade, vendido a um rico senhor que o conduziu desde logo ao pas do Ganges terra misteriosa e incompreensvel para os romanos -, ali teve ocasio de conhecer os princpios populares de consoladoras filosofias religiosas.

    Nessa regio do Oriente, cheia de segredos confortadores, ele aprendeu que a alma no tem apenas uma existncia, mas vidas numerosas, mediante as quais adquire novas faculdades, purificando-se ao mesmo tempo dos erros passados, em outros corpos, ou redimindo-se das aflies, no doloroso resgate dos crimes ou desvios do seu passado.

    Todavia, aps a aquisio desses conhecimentos, foi levado Palestina, onde se saturou dos ensinos cristos, tornando-se adepto fervoroso do Messias de Nazar ! . .

    Ento, era de ver-se como a sua palavra se impregnava de inspirao divina e luminosa!. .

    Apaixonado pelas idias generosas que trouxera do ambiente religioso da ndia, acerca dos formosos princpios da reencarnao, sabia interpretar com simplicidade e clareza de raciocnio, para mim, muitas passagens evanglicas, algo obscuras para o meu entendimento, qual aquela em que Jesus afirma que "ningum poder atingir o reino do Cu sem nascer de novo"!. .

    Fosse ao crepsculo langoroso da Palestina, fosse ao luar caricioso das suas noites estreladas, quando descansava das fadigas do trabalho diuturno, falava-me ele das cincias da vida e da morte, das coisas da Terra e do Cu, com os dons divinos da sua inteligncia, mantendo o meu

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    esprito suspenso entre as emoes da vida fsica e as gloriosas esperanas na vida espiritual.

    Enlevada pela doce carcia de suas expresses e gestos de ternura, afigurava-se-me ele a alma gmea do meu destino, reservada por Deus a me estimar e compreender, desde as vidas mais remotas.

    Durante um ano a vida nos correu em mar de rosas, porque nos amvamos intensamente. Em nossos idlios calmos, falvamos de Jesus e de suas glrias divinas, e, quando eu lhe suscitava a possibilidade da nossa unio face deste mundo, Ciro ensinava-me que deveramos esperar a felicidade no Reino do Senhor, alegando que, na Terra, no era ainda possvel um matrimnio feliz, entre um escravo miservel e uma jovem patrcia.

    Por vezes, entristecia-me com as suas palavras despidas de esperanas terrenas, mas as suas inspiraes eram to elevadas e to puras que, num relance, sabia o seu corao levantar o meu para as jornadas da f, que levam a tudo esperar, no da Terra ou dos homens, mas do Cu e do amor infinito de Deus .

    O valoroso ancio tudo ouvia, sem um reproche, embora sua atitude mental se caracterizasse pela mais funda consternao.

    Observando que a neta fizera uma pausa na encantadora e triste narrativa, Cneio Lucius interrogou-a com benevolncia:

    - Qual a atitude desse rapaz para com teu pai ? - Ciro admirava-lhe a generosidade franca e espontnea, revelando

    no ntimo a mais santa gratido pelo seu ato de fraternidade, quando o alforriou para sempre . A todo propsito, ensinava-me a respeit-lo cada vez mais e a lhe realar as qualidades mais elevadas; falava-me, constantemente, de suas atitudes generosas, com entusiasmo, admirando-lhe a dedicao ao trabalho e a singular energia.

    - E Helvdio nunca soube do teu amor? - perguntou o av admirado. - Soube, sim - respondeu Clia humildemente. - Contar-vos-ei tudo,

    sem omitir um s detalhe. Em nossa casa havia um chefe de servio, que dirigia as atividades

    de todos os servos da famlia. Pausanias era um corao amigo do escndalo e nada sincero . Meu pai, atendendo necessidade de viajar constantemente, conservava-o quase como mandatrio de sua vontade, em funo dos seus numerosos interesses, e Pausanias, muita vez, abusou dessa confiana generosa para estabelecer a discrdia em nosso lar.

    Observando a minha intimidade com o jovem liberto, cujos dotes morais to fortemente me haviam impressionado o corao, esperou, certa feita, o regresso de meu pai, de uma viagem Indumia, envenenando-lhe ento o esprito com insinuaes caluniosas da minha conduta.

    - E que fez Helvdio ? - interrogou o velhinho bruscamente, cortando-lhe a palavra, como se adivinhasse o desenrolar de todas as cenas ocorridas a distncia.

    - Repreendeu minha me, asperamente, inculpando-a, e chamou-me sua presena, de maneira que lhe recebesse as admoestaes e conselhos

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    necessrios, sem jamais permitir que eu lhe expusesse tudo, com a sinceridade e franqueza com que o fao agora.

    - E quanto ao liberto?. . - perguntou Cneio Lucius ansioso por conhecer o desfecho do caso.

    - Mandou p-lo a ferros, ordenando a Pausanias lhe aplicasse a punio que julgasse necessria e conveniente.

    Atado ao tronco, Ciro foi aoitado vrias vezes, pelo crime de me haver ensinado a amar pelo corao e pelo esprito com o mais carinhoso respeito a todas as tradies do mundo e da famlia, no altar do devotamento silencioso e do sacrifcio espiritual .

    No segundo dia de seus indizveis padecimentos, consegui avist-lo, apesar da vigilncia extrema que todos resolveram exercer sobre os meus passos.

    Como nos dias de nossa tranqilidade feliz, Ciro recebeu-me com um sorriso de ventura, acrescentando que eu no deveria alimentar nenhum sentimento de amargor pela deciso de meu pai, considerando que o seu esprito era bom e generoso e que, se no podamos quebrar preconceitos milenrios da Terra, tambm no deveramos dar guarida a pensamentos de ingratido .

    O sofrimento, porm - prosseguia a jovem, enxugando as lgrimas de suas reminiscncias -, era dilacerante para minha alma.

    Reconhecendo a situao penosa daquele que polarizava todas as minhas esperanas, cheguei a maldizer sinceramente da minha posio de afortunada. Que me valiam os mimos da famlia e as prerrogativas do nome que me felicitava, se a alma gmea do meu destino estava encarcerada em pavorosa noite de sofrimentos?. .

    Expus-lhe, ento, minha tortura ntima e os meus amargurados pensamentos. Ciro ouviu-me com resignao e brandura, respondendo-me, depois, que ambos tnhamos um modelo, um mestre, que no era deste mundo, e que o Salvador nos guardaria no Cu um ninho de ventura, se soubssemos sofrer com resignao e simplicidade, maneira dos bem-aventurados de sua palavra sbia e doce. Acrescentou que o Cristo tambm amara muito e, entretanto, perlustrou os caminhos da incompreenso terrestre, sozinho e abandonado; se ramos vtimas de um preconceito ou de perseguies, tais sofrimentos deviam ser justos, por certo, dados os desvios do nosso passado espiritual, de eras prstinas, acrescentando que Jesus se sacrificara pela Humanidade inteira, embora de corao imaculado como o lrio e manso como cordeiro.

    - Que valem nossos sofrimentos comparados aos dEle, no alto da cruz da impiedade e da cegueira humanas? - dizia-me valorosamente. - Clia, minha querida, levanta os olhos para Jesus e caminha ! . . Quem melhor que ns poder compreender esse doce mistrio do amor pelo sacrifcio ? . .

    Sabemos que os mais felizes no so os que dominam e gozam neste mundo, mas os que compreendem os desgnios divinos, praticando-os na vida, ainda que nos paream as criaturas mais desprezveis e mais desventuradas. . . Alm disso, querida, para os que se amam pelos laos sacrossantos da alma, no existem preconceitos nem obstculos, no espao

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    e no tempo. Amar-nos-emos, assim, constantemente, esperando a luz do Reino do Senhor. Soa, agora, o penoso instante da separao, mas, aqui ou alm, estars sempre viva em meu peito, porque hei-de amar-te toda a vida, como o verme desprezado que recebeu o suave sorriso de uma estrela... Podero, acaso, separar-se os que caminham com Jesus atravs das nvoas da existncia material? No prometeu o Mestre o seu reino ditoso a quantos sofressem de olhos voltados para o amor infinito do seu corao? Sejamos conformados e tenhamos coragem!... Alm destes espinhais, desdobram-se estradas floridas, onde repousaremos um dia sob a luz do Ilimitado . Se sofremos agora, deve haver uma causa justa, oriunda de tenebroso passado, em sucessivas existncias terrenas. Mas a vida real no esta, e sim a que viveremos amanh, no ilimitado plano da espiritualidade radiosa!...

    - Enquanto as suas expresses consoladoras me retemperavam o nimo combalido, via-lhe o rosto macerado e os cabelos empastados de copioso suor, que me deixavam entrever um sofrimento fsico martirizante e infinito.

    Embora a sua palidez extrema, Ciro me sorria e confortava. Sua lio de pacincia e f embalsamou-me o corao e aquela corajosa serenidade deveria constituir, para mim, precioso incitamento fortaleza moral, em face das provas.

    Consolei-o, ento, do melhor modo, testemunhando-lhe minha compreenso funda e sincera, quanto ao sentido daquelas palavras de bondade e ensinamento, compreenso que eu guardaria no imo, para sempre.

    Prometemo-nos, reciprocamente, a mais absoluta calma e confiana em Jesus, bem como eterna fidelidade neste mundo, para nos unirmos, um dia, nos cus.

    Terminados os rpidos minutos que consegui para falar ao encarcerado, reconstitu as energias interiores da minha f, enxugando corajosamente as prprias lgrimas.

    Procurei minha me, implorei sua intercesso afetuosa, de modo a cessarem as cruis punies que Pausanias impusera ao bem-amado de minhalma, dando-lhe cincia dos quadros penosos que presenciara.

    Ela comoveu-se profundamente com a minha narrativa e obteve de meu pai a ordem para que Ciro fosse libertado, sob certas condies, que, apesar de penosas, constituram para mim um brando alvio !

    - Que condies ? - perguntou Cneio Lucius, admirado, ante o romance comovedor da neta, cujos dezoito anos atestavam a mais profunda intensidade de sofrimento.

    - Meu pai acedeu, sob a condio de que no mais avistasse o jovem liberto para qualquer despedida, providenciando, na mesma noite, para que ele fosse, escoltado por dois escravos de confiana, at Cesareia, em cujo porto deveria ser internado numa galera romana, desterrado a critrio dos que a comandavam ! . .

    - E chegaste, filha, a alimentar algum rancor contra Helvdio, em face da sua atitude?

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    - No - respondeu com espontnea sinceridade. - Se tivesse de alimentar qualquer rancor, seria contra o meu prprio destino .

    Alis, Ciro ensinava-me sempre que no podem caminhar para Jesus aqueles que no honrarem pai e me, de acordo com os preceitos divinos.

    Cneio Lucius encontrava-se eminentemente surpreendido. Quando Helvdio lhe solicitara a interveno moral junto da neta, longe estava de presumir to doloroso romance de amor num corao de dezoito anos, cheio de juventude e de piedade.

    Seu esprito, que conhecia o vrus destruidor que operava a decadncia da sociedade mergulhada num abismo de sombras, extasiava-se com aquela narrativa simples de um amor doce e cristo, que aguardava, pacientemente, o cu para todas as suas realidades divinas. Nenhuma voz da mocidade ainda lhe falara, assim, com tanta pureza flor dos lbios.

    Admirado e enternecido, descansou a face enrugada na mo direita meio trmula, entregando-se a uma longa pausa para coordenar idias.

    Ao cabo de alguns minutos, notando que a neta aguardava ansiosa a sua palavra, perguntou com a mesma benevolncia:

    - Minha filha, esse jovem escravo jamais abusou da tua confiana ou da tua inocncia?

    Ela fixou nele os olhos serenos, em cujo fulgor cristalino podiam ler-se uma candidez e sinceridade a toda prova, exclamando sem hesitar:

    - Nunca! Jamais Ciro permitiu que os meus prprios sentimentos pudessem tisnar-se de qualquer tendncia menos digna. Para demonstrar-vos a elevao de seus pensamentos, quero contar-vos que, um dia, quando conversvamos sombra de velha oliveira, notei que sua mo pousara levemente em meus cabelos, mas, no mesmo instante, como se nossos coraes se deixassem levar por outros impulsos, retirou-a, dizendo-me comovido :

    - Clia, minha querida, perdoa-me. No guardemos qualquer emoo que nos faa participar das inquietaes do mundo, porque, um dia, nos beijaremos no cu, onde os clamores da malcia humana no podero atingir-nos.

    Cneio Lucius contemplou de frente a neta, cuja sinceridade diamantina lhe irradiava dos olhos cndidos e valorosos, exclamando :

    - Sim, filha, o homem a quem te consagras possui um corao generoso e diferente do que se poderia presumir no peito de um escravo, ao inspirar-te um amor to distante das concepes da mocidade atual.

    E acentuando as palavras, como se quisesse imprimir-lhes nova fora, com vistas a si mesmo, continuou aps ligeira pausa:

    - Alm disso, essa nova doutrina, qual a aceitaste, deve conter uma essncia profunda, dado o maravilhoso elixir de esperana que destila nas almas sofredoras. Acredito, agora, que Helvdio no sondou bastante o assunto para conhecer a questo nas suas facetas numerosas.

    - verdade, av - respondeu confortada, como se houvesse encontrado um blsamo para as suas feridas mais ntimas -, meu pai, a princpio, no receava que analisssemos os estudos evanglicos,

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    considerando-os perigosos; somente depois das intrigas de Pausanias, sups que as doutrinas do Cristo me houvessem acarretado qualquer deficincia mental, em virtude da minha inclinao pelo jovem liberto .

    - Sim, teu pai no poderia entender um sentimento dessa natureza, no teu esprito de moa afortunada.

    Mas, ouve: j que me falaste com uma ponderao que no admite reprovaes ou corretivos, quais so as tuas perspectivas de futuro? Sobre tua irm teus pais j me falaram dos planos assentados. Daqui a alguns meses, depois de completar sua educao, na atualidade romana, Helvdia esposar Caio Fabrcius, cuja afeio a conduzir a um dos postos de maior relevo social, de acordo com os nossos mritos familiares. Mas, a teu respeito? Perseverars, porventura, nesses sentimentos ? ! . .

    - Meu av - respondeu com humildade - , Caio Fabrcius com os seus trinta e cinco anos maturados, cheio de delicadeza e generosidade, h de fazer a ventura de minha irm, que bem o merece . . Perante Deus, Helvdia fez jus s sagradas alegrias da constituio de um lar e de uma famlia.

    Junto do seu corao pulsar um outro, que lhe enfeitar a existncia de mimos e ternuras...

    Quanto a mim, pressinto que no obterei a felicidade como a sonhamos nesta vida!

    Desde a infncia, tenho sido triste e amiga da meditao, como se a misericrdia de Jesus estivesse a preparar-me, em todos os ensejos, para no faltar aos meus deveres espirituais no instante oportuno .

    E, fixando no ancio o olhar percuciente e calmo, prosseguiu: - Sinto pesar-me no corao muitos sculos de angstia... Devo

    ser um Esprito muito culpado, que vem a este mundo de maneira a remir-se de passados tenebrosos!. .

    Desde a Palestina, minhas noites esto povoadas de sonhos estranhos e comovedores, nos quais ouo vozes carinhosas que me exortam submisso e ao sacrifcio.

    Acusada de crist no seio da famlia, sinto que todos os meus carinhos ficam sem retribuio e todas as minhas palavras afetuosas morrem sem eco! Dou-me, porm, por imensamente venturosa em acreditar que o vosso corao vibra com o meu, compreendendo-me as intenes e os pensamentos.

    Como se lobrigasse melancolicamente o caminho de sombras do porvir, desdobrado ante seus olhos espirituais, Clia continuou a falar para o corao enternecido do velho av, que a idolatrava :

    - Sim!. . nos meus sonhos profticos, tenho visto uma cruz a que me devo abraar, com resignao e humildade ! . . Experimento no corao um peso enorme, avozinho ! . . . Por vezes inmeras vislumbro minha frente quadros penosos, que devem radicar nas minhas existncias pregressas.

    Pressinto que nasci neste mundo para resgatar e redimir-me. Quando oro e medito, chegam-me ao raciocnio as ponderaes da alma ansiosa!. . No devo aguardar primaveras risonhas nem flores de iluso, que me fariam

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    esquecer a via dolorosa do Esprito, destinado redeno; mas, sim, invernias de dor e provas rspidas, em dias de lutas speras, que me ho de reconduzir a Jesus, com a divina claridade da experincia!. .

    Cneio Lucius tinha os olhos molhados de lgrimas, ante as palavras comovedoras da neta, que, desde criana, lhe conquistara adorao.

    - Filha - exclamou com bondade -, no posso compreender tamanho desalento num corao da tua idade. O nome de nossa famlia no permitir tal abandono de ti mesma...

    - Entretanto, caro av, no desdenharei a realidade dolorosa do sacrifcio, sabendo, de antemo, que a sua taa me est reservada...

    - E nada esperas da Terra no que se refere a possvel felicidade neste mundo ? ! . .

    - A felicidade no pode estar onde a colocamos, com a nossa cegueira terrestre, mas no compreendermos a Vontade Divina, que saber localizar a ventura para ns, como e quando oportuna. No temos uma s vida. Teremos muitas.

    O segredo da alegria reside em nossa realizao para Deus, atravs do Infinito. De etapa em etapa, de experincia em experincia, nossa alma caminhar para as glrias supremas da espiritualidade, como se fizssemos a laboriosa ascenso de uma escada rude e longa. . . Amar-nos-emos sempre, meu av, atravs dessas numerosas existncias. Elas sero como anis na cadeia de nossa unio ditosa e indestrutvel. Ento, mais tarde, vereis que a vossa neta, dentro da sua realidade espiritual, se encontrar convosco, com a mesma compreenso e com o mesmo amor imperecvel, na regio da felicidade real que a morte nos descerrar, com os seus sepulcros de cinzas dolorosas ! .

    Atualmente, aos vossos olhos serei, talvez, sempre triste e desventurada; mas, no ntimo, guardo a certeza de que as minhas dores constituem o preo da minha redeno para a luz da Eternidade.

    Segundo me falam os augrios do corao em suas vozes silenciosas e secretas, no terei um lar constitudo, especialmente, para a minha ventura nesta vida!. . Viverei incompreendida, de corao dilacerado no caminho acerbo das lgrimas remissoras! O sacrifcio, porm, ser suave, porque, na sua exaltao, sinto que encontrarei a estrada luminosa para o reino da Verdade e do Amor, que Jesus prometeu a todos os coraes que confiassem no seu nome e na sua misericrdia bendita!

    Os olhos de Clia elevaram-se para o Alto, como se o esprito aguardasse, ali mesmo, junto do velho av, as graas divinas vislumbradas pela sua crena cheia de luminosidade e de esperana.

    Cneio Lucius, todavia, aconchegou-a de mansinho ao corao, como se o fizesse a uma criana, falando-lhe com acentuada ternura:

    - Filhinha, ests cansada! No te justifiques por mais tempo. Conversarei com Helvdio a respeito dos teus mais ntimos pensamentos, elucidarei a tua situao perante o seu conceito.

  • 50 ANOS DEPOIS Emmanuel

    E chamando Mrcia, a filha mais velha, que representava junto da sua velhice confortada o papel de anjo-tutelar e carinhoso, o respeitvel patrcio acentuou:

    - Mrcia, nossa pequena Clia precisa de tranqilidade e repouso fsico. Conduze-a ao teu quarto e f-la descansar.

    A neta beijou-lhe ternamente a fronte, retirando-se com a tia, amvel e generosa, que quase a tomou nos braos, conduzindo-a para o interior.

    A noite ia j adiantada, enchendo o cu romano de caprichosas fulguraes.

    Cneio Lucius, absorto em profundos cismares, abismou-se num mar de conjeturas.

    Seu velho corao estava exausto de palpitar, na incompreenso dos arcanos do mundo. Tambm fora jovem e tambm nutrira sonhos. Na juventude longnqua, muita vez aniquilara as aspiraes mais nobres e os propsitos mais generosos, ao tumultuoso embate das paixes materializadas e violentas.

    Somente as brisas caridosas da reflexo, na idade madura, lhe haviam sazonado as concepes espirituais, a caminho de uma compreenso cada vez maior da vida e de suas leis profundas.

    Desde que se habituara a meditar sinceramente, assombravam-lhe o esprito os fantasmas da dor e os espantosos contrastes dos destinos humanos. Apesar de arraigado s tradies mais puras dos antepassados e no obstante hav-las transmitido, com fidelidade e amor, aos descendentes, seu corao no podia aceitar toda a verdade divina encarnada em Jpiter, smbolo antigo que consubstanciava todas as velhas crenas.

    Desejoso de propiciar uma lio quela criana, na sua freima educativa, fora o seu esprito que se abalara e comovera ante as novas concepes que lhe provinham dos lbios puros de um anjo. Ele que se habituara a investigar as causas profundas da dor e a sentir os padecimentos de qu