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Antiguidade grega: a paidéia ( A Grécia antiga, berço dos jogos olímpicos, sempre deu destaque à educação física. O cuidado com a destreza corporal nos esportes, porém, não dispensava a igual valorização da formação moral e estética. (Detalhe de vaso grego do século V-VIa.C. Acervo do Museu Britânico, Londres.] 57

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Antiguidade grega:a paidéia

( A Grécia antiga, berço dosjogos olímpicos, sempre deudestaque à educação física.O cuidado com a destrezacorporal nos esportes, porém,não dispensava a igualvalorização da formaçãomoral e estética. (Detalhede vaso grego do séculoV-VIa.C. Acervo do MuseuBritânico, Londres.]

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Contexto histórico

Periodiza~ão da históriada Grécia antiga

• Civilização micênica: séculosxx a XII a.c.

• Tempos homéricos: séculosXIIa VIII a.c.

• Período arcaico: séculos VIII aVla.C.

• Período clássico:séculosV e IVa.C.

• Período helenístico: séculos IIIe II a.c.

1. A civilização micênica

Desde o início do segundo milênio a.C.,a civilização micênica reuniu vários povos, so-bretudo os aqueus, que se estabeleceramsob o regime de comunidade primitiva.Com o tempo, a figura do guerreiro adqui-riu importância cada vez maior, formando-seuma aristocracia militar cujos chefesmaisdestacados viviam nos castelos de Tirinto eMicenas. Esta última cidade, no início doséculo XII a.C., era governada por Aga-mémnon, que, ao lado de Aquiles e Ulisses,partiu para sitiar e conquistar Tróia, no lito-ral da Ásia Menor. No final daquele mesmoséculo, a invasão dos bárbaros dórios mer-gulhou a Grécia em um período obscuroaté o século IX a.C. Muitos aqueus fugirampara a Ásia Menor, onde foram fundadascolônias que mais tarde prosperaram pelocomércio.

2. Tempos homéricos

Os tempos homéricos (séculos XII a VIIIa.C.) são assim chamados porque naquela

época teria vivido Homero, talvez no séculoIX ou VIII a.C. Predominava ainda a con-cepção mítica do mundo, pela qual se ad-mitia que as ações humanas eram influen-ciadas pelo sobrenatural, pela interferênciadivina. Os mitos gregos, recolhidos pelatradição, recebiam forma poética e eramtransmitidos oralmente pelos cantores am-bulantes conhecidos como aedos e rapsodos,que os recitavam de cor em praça pública.

Dentre eles, destacou-se Homero, pro-vável autor das epopéias llíada e Odisséia.A primeira trata da Guerra de Tróia (Ílion,em grego), e a outra relata o retorno deUlisses (Odisseus, em grego) à ilha de Ítaca,após a Guerra de Tróia. Não se pode afir-mar com certeza que Homero tenha real-mente existido, além de que alguns estudio-sos atribuem aquelas obras a vários autoresde diferentes épocas, devido às mudançasde estilo nos dois poemas.

Segundo os relatos míticos dessas epo-péias, o herói vive na dependência dos deu-ses e do destino. Ter sido escolhido pelosdeuses é sinal de valor e em nada desme-rece a virtude, que para os gregos signifi-ca força, excelência e superioridade, alvosupremo do herói. Trata-se da virtude do"guerreiro belo e bom".

Hesíodo, outro poeta que teria vividopor volta do final do século VIII e princí-pio do VII a.C., produziu uma obra comcaracterística já voltada para a época quese iniciou a seguir, ou seja, de busca da pró-pria individualidade. Ainda assim, predo-mina na sua Teogonia a crença nos mitos.

3. Período arcaico

No período arcaico (séculosVIII a VI a.c.)ocorreram grandes transformações nas re-lações sociais e políticas, muito diferentesdas que se conheciam em outras culturas,proporcionando a lenta passagem da pre-dominância do mundo mítico para a re-

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flexão mais racionalizada e a discussão.Nesse processo foram importantes algumasnovidades, tais como a introdução da escri-ta, a utilização da moeda, a lei escrita porlegisladores, a formação das cidades-esta-dos (póleis) e o aparecimento dos primeirosfilósofos, novidades estas responsáveis poruma nova visão do mundo e do indivíduo.Vejamos por quê.

A escrita já existira na Grécia no períodomicênico, restrita aos escribas, mas desapa-receu com a invasão dórica. Ao ressurgir nofinal do século IX ou VIII a.C., por influ-ência do alfabeto fenício, gerou uma novaidade mental, ao permitir maior abstração,propiciar o confronto das idéias e estimularo espírito critico. No entanto, isso não sig-nifica que a escrita fosse acessível a todos esim que ocorreu a sua dessacralização (des-ligamento do sagrado) ao mesmo tempoque deixou de ser o privilégio burocráticopara uso dos poderosos. Segundo o helenis-ta Jean-Paul Vernant, a escrita "terá Corre-lação doravante com a função de publicida-de; vai permitir divulgar, colocar igualmen-te sob o olhar de todos, os diversos aspectosda vida social e política".

A invenção da moeda Ocorreu entre os sé-culos VII e VI a.C. devido ao incrementodo comércio após a expansão do mundogrego com a colonização da Magna Gré-cia (atual sul da Itália e Sicília) e da Jônia(atual Turquia). A moeda representou umpapel revolucionário por superar o sistemade troca, facilitando a administração dosnegócios. Além disso, no campo do pensa-

mento, constituiu um artificio racional, porestabelecer uma medida comum entre va-lores diferentes.

As cidades-estados (póleis) surgirampor volta dos séculos VIII e VII a. C. eprovocaram grandes alterações na vidasocial e nas relações humanas. Isso mui-to se deve aos legisladores Drácon, Sólone Clístenes, que instituíram a lei escrita.A grande novidade é que a lei deixa deser a vontade imutável dos deuses ou daarbitrariedade dos governantes, para seruma criação humana, sujeita à discussãoe a modificações. Para Vernant, a origina-lidade da cidade grega é o fato de ela estarcentrada na ágora (praça pública), espaçoonde eram debatidos os problemas de in-teresse comum.

No final do período arcaico, várias lutasdenunciavam a crise social e política queresultou do conflito entre a aristocraciarural e os setores populares representadospelos comerciantes em ascensão. As leis es-critas, decorrentes das reformas do legisla-dor Sólon, favoreceram o acesso dos ricoscomerciantes ao poder, e no final do sécu-lo VI a.c. as reformas de Clístenes deramcondições para o nascimento, no séculoseguinte, de uma nova ordem política, ademocracia.

A pólis se constituiu com a autonomiada palavra. Não mais a palavra mágica dosmitos, concedida pelos deuses, mas a pala-vra humana do conflito, da argumentação.A expressão da individualidade por meiodo debate engendrou a política, libertando

Se Esparta e Atenas (... ) representaram os dois modelos opostos da pólis grega,a florescência das páleis difundiu-se em toda a Grécia (com Corinto, Olímpia, Epi-dauro etc.), depois desde os limites da atual Turquia (com Mileto e Pérgamo), até aMagna Grécia, que compreendia as costas da Puglia (com Brindisi e Taranto), daCalábria (com Crotona), da Sicília (com Siracusa e Agrigento), da Campânia (comPaestum e Eléia). (Franco Cambi)

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o indivíduo dos desígnios divinos, para queele próprio- pudesse tecer seu destino napraça pública. A instauração dessa ordemhumana deu origem ao cidadão da pólis.

Decorre daí uma nova concepção de vir-tude, diferente do valor do "guerreiro beloe bom". Se antes a virtude era ética, aris-tocrática, agora ela é política, voltada parao ideal democrático da igual repartição dopoder.

É bem verdade que nem todas as póleisforam democráticas e mesmo as que o fo-ram sofreram variações no tempo. Mas,ainda que mudasse o regime, permanecia ocostume de organizar assembléias e estabe-lecer cargos eletivos.

Finalmente, houve o aparecimento dofilósqfo, nas colônias gregas. Essespensado-res - entre eles Tales e Pitágoras - tambémeram responsáveis por uma "fisica" nas-cente e pela formalização da matemáticae da geometria.

A "filosofia é filha da cidade", porquesurgiu como problematização e discussãodeuma realidade antes não questionada pelomito. O nascimento da filosofia,fato históri-co enraizado no passado, achava-se,portan-to, vinculado àsjá citadas transformações: aescrita, a lei, a moeda, o cidadão, a pólis, asinstituiçõespolíticas.

Alguns autores costumam chamar de"milagre grego" a passagem do pensamen-to mítico para o racional e filosófico.Maisrecentemente, porém, outros estudiosos ad-mitem que esse foi um processo preparadclentamente pelo passado mítico e cujas ca-racteristicas não desapareceram como po~-encanto na nova visão filosóficado mundoSegundo essa nova interpretação, a filosofiana Grécia não é, na verdade, um salto rea-lizado por um povo privilegiado, mas a cul-minância de um processo que se fez ao 10E-

go de milênios e para o qual concorreram a'novidades introduzidas na época arcaica.

MEDITERRÂNEO

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4. Período clássico

o período clássico (séculosV e IV a.C.) re-presentou o apogeu da civilizaçãogrega. Aesplêndidaprodução nas artes, literatura e fi-losofiadelineou definitivamenteo que viria aser a herança cultural do mundo ocidental.

Na política, o auge do ideal grego de de-mocracia é representado por Péricles (sécu-lo V a.C.), estratego' de Atenas. Tratava-se,no entanto, de uma "democracia escravis-ta", em que apenas os homens livres eramcidadãos. Ora, Atenas tinha cerca de meiomilhão de habitantes, dos quais 300 mileram escravos e 50 mil, metecos (estrangei-ros);excluídos estes, e mais as mulheres e ascrianças, apenas os 10% restantes tinhamo direito de decidir por todos. Em todas asatividades artesanais, o braço escravo "li-bertava" o cidadão para que ele pudesse sededicar às funções teóricas, políticas e delazer, consideradas mais dignas.

5. Período helenístico

o período helenístico (séculosIII e II a.c.)registrou a decadência política. Como vi-mos, a Grécia nunca constituiu uma uni-dade política, e as cidades-estados ora serivalizavam em poder e influência, ora seuniam contra um inimigo comum, comono caso da ameaça persa. Ainda na épocaclássica, as desavenças entre as poderosascidades de Esparta e Atenas culminaramem guerra, da qual Atenas saiu derrotada.Dessa situação aproveitou-se o rei Filipe daMacedônia para conquistar as cidades gre-gas, também convulsionadas por conflitosinternos. Mais tarde, seu filho Alexandreexpandiu suas conquistas pela Ásia e Áfri-ca, formando um império.

Mesmo que a Grécia tenha sido domi-nada, não podemos falar em destruição dacivilizaçãogrega. O próprio Alexandre tevecomo mestre o filósofoAristóteles e amavaa cultura grega. Após a morte precoce deAlexandre, o Grande, em 323 a.c., o im-pério se fragmentou, e por volta dos séculosII e I a.C. os romanos não só se apropria-ram desses territórios, mas assimilaram asexpressões culturais da civilização grega.A fusão da tradição grega com a oriental,resultante das conquistas alexandrinas, deuorigem ao que se chama cultura helenística.

Educação

1. A formação integral

O grau de consciência de si mesmos al-cançado pelos gregos antigos não ocorreraaté então em lugar algum. A nova concep-ção de cultura e do lugar ocupado pelo in-divíduo na sociedade repercutiu no ensino enas teorias educacionais. De fato, os filóso-fos gregos voltavam-se para uma formaçãoque desenvolvesseo processo de construçãoconsciente, permitindo ao indivíduo ser"constituído de modo correto e sem falha,nas mãos, nos pés e no espírito".

A educação grega estava, portanto,centrada na formação integral - corpoe espírito -, embora, de fato, a êMase sedeslocasse ora mais para o preparo militarou esportivo, ora para o debate intelectual,conforme a época ou o lugar.

Nos primeiros tempos, quando aindanão existia a escrita, a educação era mi-nistrada pela própria família, conforme atradição religiosa. Quando se constituiu aaristocracia dos senhores de terras, de for-mação guerreira, os jovens da elite eram

1 Estratego: comandante militar. A partir do século V a.C., o conselho administrativo destinado a dirigir a polí-ticapassou a ser formado por uma junta de estrategos. Talvez Péricles tenha sido um dos primeiros escolhidos.

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confiados a preceptores. Apenas com o sur-gimento das póleis apareceram as primeirasescolas, visando a atender à demanda poreducação. No período clássico, sobretudoem Atenas, a instituição escolar já se encon-trava estabelecida.

Mesmo que essa ampliação da oferta es-colar representasse uma "democratização"da cultura, a educação ainda permanecia eli-tizada, atendendo principalmente os jovensde famílias tradicionais da antiga nobrezaou pertencentes a famílias de comerciantesenriquecidos. Aliás, na sociedade escrava-gista grega, o chamado ócio digno significavaa disponibilidade de gozar do tempo livre,privilégío daqueles que não precisavam cui-dar da própria subsistência. O que não seconfunde com o "fazer nada", mas sim refe-re-se ao ocupar-se com as funções nobres depensar, governar, guerrear. Não por acaso, apalavra grega para escola (scholé) significavainicialmente "o lugar do ócio".

A educação física, antes predominan-temente guerreira, militar, passou a serorientada sobretudo para os esportes. O hi-pismo, por exemplo, constituía um esporteelegante e restrito a poucos, por ser de ma-nutenção cara. Com o tempo, o atletismoampliou a participação do público freqüen-tador dos ginásios.

Nas escolas, voltadas mais para a forma-ção esportiva que para a intelectual, o ensi-no das letras e cálculos demorou um poucopara se difundir. Por volta do século VI a.C.(provavelmente no século V a.C.), porém,já se tornara bem mais freqüente. A inver-são total do pólo predominante na educa-ção - da formação fisica para' a espiritual- ocorreu bem depois no ensino superior,devido à influência dos filósofos.

Como aspecto comum às cidades gregas,a transmissão da cultura não era prerrogati-

2 Paidéia, "Introdução". São Paulo, Herder, s. d.

va apenas da família ou das escolas nascen-tes, sendo as tradições também aprendidasnas inúmeras atividades coletivas. Convémdestacar, nessa "comunidade pedagógíca",a importância do teatro, acessível ao povo,que assistia às tragédias e comédias, bemcomo dos festivais pari-helênicos, que con-gregavam visitantes de todas as partes domundo grego. Dentre os mais concorridosdestacavam-se a cada quatro anos os jogosolímpicos, realizados na cidade de Olímpia, eque reuniam desde o século VIII a.C. as ci-dades gregas - evento tão valorizado que osconflitos cessavam durante sua realização.Eram educativos também os banquetes e asreuniões na ágora. Esta praça pública, nocoração da cidade, servia ao mesmo tem-po para o mercado e para as assembléiaspolíticas.

A paidéia

A ênfase dada à formação integral deuorigem a um conceito de complexa defini-ção, ou seja, à paidéia, palavra que teria sidocunhada por volta do século V a.C., masque exprimia um ideal dejórmação constan-te no mundo grego. De início significavaapenas educação dos meninos (pais, paidós,"criança"). Com o tempo, adquiriu nuan-ças que a tornaram intraduzível. O helenis-ta Werner Jaeger, que escreveu uma obracom esse nome (Paidéia), diz: "Não se podeevitar o emprego de expressões modernascomo civilização, cultura, tradição, literatura oueducação; nenhuma delas, porém, coinciderealmente com o que os gregos entendiampor paidéia. Cada um daqueles termos selimita a exprimir um aspecto daquele con-ceito global e, para abranger o campo totaldo conceito grego, teríamos de empregá-lostodos de uma só vez".

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o conceito de paidéia, entre os gregos,influenciou o que os romanos, nos temposde Cícero, iriam chamar de humanitas (verpróximo capítulo) e que abrangia a forma-ção integral do ser humano. É bem verda-de que se tratava de uma orientação aristo-crática, já que os "bem formados" não seocupavam com as "artes servis", oficio deescravos.

Apenas no Iluminismo do século XVIIIveremos uma tentativa de estender a for-mação humanística a todos, num ideal deeducação universal. No mundo contem-porâneo, por vivermos uma crise de pa-radigmas, como veremos no capítulo 12,ressurge o ideal de superar a visão prag-mática, utilitária da educação, voltadamuitas vezes para a estrita especialização,na busca de uma formação mais abran-gente e globalizante.

A seguir, veremos os tipos de educaçãoefetivamente existentes no mundo grego,conforme suas modificações no tempo e noespaço.

2. As origens: Homero, "educador daGrécia"

Na época da aristocracia guerreira, des-crita sobretudo nas epopéias de Homero,a educação visava à formação militar donobre. O conceito de virtude possui, nesseperíodo, o sentido de força e coragem, atri-butos do "guerreiro belo e bom", aos quaisse acrescentam a prudência, a lealdade, ahospitalidade, bem como a honra, a glóriae o desafio à morte. Eram esses os valoresde uma sociedade aristocrática que justifi-cava os privilégios de uma linhagem nobre,de origem divina.

A criança nobre permanecia em casa atéos 7 anos, quando era enviada aos paláciosde outros nobres a fim de aprender, comoescudeiro, o ideal cavalheiresco. Tambémse contratavam preceptores, para a forma-

ção integral baseada no afeto e no exemploSão clássicas as figuras de Fênix, preceptorde Aquiles, e Mentor, mestre de Telêmaco.

Contrapondo Ulisses, "mestre da pa·lavra", a Ájax, "homem de ação", ornes.tre Fênix recordava ao jovem Aquiles cfim para que foi educado: "Para ambas ascoisas: proferir palavras e realizar ações".Ou seja, para participar da assembléia dosnobres e atuar nas guerras.

No período arcaico, que se seguiu aostempos homéricos, e também na épocaclássica, ainda prevalecia a influência cul-tural das epopéias na educação. Ao relataras ações dos deuses, transmitiam os costu-mes, a língua, os valores éticos e estéticos.Durante séculos as figuras paradigmáticasde Telêmaco e Aquiles, por exemplo, ser-viram de modelo de "excelência moral efisica" para os jovens gregos.

De início os poemas, transmitidos oral-mente, eram recitados de cor em praçapública, e seu conteúdo oferecia os temasbásicos de toda educação escolar. Por isso,apesar das restrições que Platão fez à poesiamítica de Homero, não deixou de denomi-ná-lo "o educador da Grécia".

3. Dois modelos de educação: Esparta eAtenas

Como as póleis eram autônomas po-liticamente, também o modo de educarvariou entre elas. Por questões didáticas,vamos privilegiar dois modelos radical-mente diferentes: o de Esparta, cidademilitarizada, e o de Atenas, iniciadora doideal democrático.

Diz o historiador da educação FrancoCambi: "Até seus ideais e modelos educa-tivos se caracterizavam de maneira opostapela perspectiva militar de formação decidadãos-guerreiros, homogêneos à ideo-logia de uma sociedade fechada e compac-ta, ou por um tipo de formação cultural e

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· aberta, que valorizava o indivíduo e suascapacidades de construção do própriomundo interior e social. Esparta e Atenasderam vida a dois ideais de educação: umbaseado no conformismo e no estatismo,outro na concepção de paidéia, de forma-ção humana livre e nutrida de experiên-cias diversas, sociais mas também culturaise antropológicas'".

Educação espartana

Esparta era uma importante cidade-esta-do situada na península do Peloponeso.Apósa fase heróica, ao contrário das demais ci-dades gregas, ainda valorizava as atividadesguerreiras, desenvolvendouma educação se-vera, orientada para a formação militar.

Por volta do século IX a.C. o legisladorLicurgo (cuja existência real é objeto dequestionamento) organizou o Estado e aeducação. De início, os costumes não eramtão rudes, e o preparo militar era entreme-ado com a formação esportiva e a musical.Com o tempo - sobretudo no século IVa.c., quando Esparta derrotou Atenas - origor da educação acabou assemelhando-seà vida de caserna.

Os cuidados com o corpo começavamcom uma política de eugenia - práticade melhoramento da espécie -, que reco-mendava fortalecer as mulheres para ge-rarem filhos robustos e sadios, bem comoabandonar as crianças deficientes ou frá-geis demais.

Após permanecerem com a família atéos 7 anos, as crianças recebiam do Esta-do uma educação pública e obrigatória.Viviam em comunidades constituídas porgrupos de acordo com a idade e supervisio-nados pelos que se distinguiam no desem-penho das tarefas exigidas. Como todos os

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I 3 História da pedagogia. São Paulo, Ed. Unesp, 1999, p. 82.

gregos, os espartanos estudavam música,canto e dança coletiva.

Até os 12 anos as atividades lúdicas pre-dominavam. Depois, aumentava o rigorda aprendizagem, e a educação fisica setransformava em verdadeiro treino militar.Os jovens aprendiam a suportar a fome, ofrio, a dormir com desconforto, a vestir-sede forma despojada. A educação moral va-lorizava a obediência, a aceitação dos casti-gos, o respeito aos mais velhos e privilegiavaa vida comunitária. Sob esses aspectos, asorganizações da juventude espartana se as-semelham bastante às dos Estados totalitá-rios, como o nazismo, no século XX.

Ao contrário dos atenienses, os esparta-nos não eram dados a refinamentos intelec-tuais, nem apreciavam os debates e os dis-cursos longos. Aliás, a palavra laconismo, quesignifica "maneira breve, concisa, de falarou escrever", deriva de Lacônia, regiãoonde viviam os espartanos.

De toda a Grécia, eram as cidades deLacônia as que ofereciam maior atenção àsmulheres, que participavam das atividadesfisicas, como exercícios de salto, lançamen-to de disco, corrida, dança. Por ocasião dasfestividades, exibiam nos jogos públicostoda a força, a beleza e o vigor dos corposbem treinados.

Educação ateniense

Segundo o historiador grego Tucídides(séculoV a.C.), Atenas foi "a escola de todaa Grécia". De fato, a concepção ateniensede Estado fez surgir a figura do cidadão dapólis. Ao lado dos cuidados com a educa-ção física, destacava-se a formação intelec-tual, para que melhor se pudesse participardos destinos da cidade. Com a ascensão daclasse dos comerciantes, em oposição à an-

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tiga aristocracia, impôs-se outra forma deexercício de poder e, portanto, uma novaeducação.

Vimos que, passado o período heróico,a educação ainda era aristocrática e delase incumbia a família. No final do séculoVI a.C., já terminando o período arcaico,surgem formas simples de escolas. Emborao Estado já demonstrasse algum interesse, oensino não se tornou obrigatório nem gra-tuito, predominando a iniciativa particular.

A educação se iniciava aos 7 anos.A criança do sexo feminino permanecia nogineceu, local da casa onde as mulheres sededicavam aos afazeres domésticos, menosimportantes em um mundo essencialmentemasculino. Se fosse menino, desligava-se daautoridade materna para iniciar a alfabe-tização e a educação fisica e musical. Erasempre acompanhado por um escravo, co-nhecido como pedagogo. A palavra paidagogossignifica literalmente "aquele que conduza criança" (pais, paidós, "criança"; agogós,"que conduz").

O menino era levado à palestro", parapraticar exercícios fisicos, sob a orientaçãodo pedótriba (instrutor fisico). Ali era iniciadona competição famosa de jogos que consti-tuíam as cinco modalidades do pentatlo, taiscomo corrida, salto, lançamento de disco,de dardo e luta. Fortalecia o corpo ao mes-mo tempo que aprendia o domínio sobresi mesmo, já que a educação fisica nuncase reduzia à mera destreza corporal, masvinha acompanhada pela orientação morale estética.

Para a educação musical, extremamentevalorizada, o pedagogo conduzia a criançaao citarista, ou professor de cítara. A músi-ca (a arte das musas), de significado muitoamplo, abrangia a educação artística em

geral. Assim, qualquer jovem bem-educa-do aprendia a tocar lira ou outros instru-mentos, como cítara e flauta. O canto, so-bretudo coral, e a declamação de poesiasgeralmente eram acompanhados por ins-trumento musical. A dança, expressão cor-poral abrangente, incluía o exercício fisicoe a música.

Esse tipo de formação integral se expres-sa na frase de Platão: "Eles [os mestres demúsica] familiarizaram as almas dos meni-nos com o ritmo e a harmonia, de modoque possam crescer em gentileza, em graçae harmonia, e tornar-se úteis em palavras eem ações".

O ensino elementar de leitura e escrita,durante muito tempo, mereceu menor aten-ção e cuidado do que as práticas esportivas emusicais já referidas. O mestre de letras erageralmente uma pessoa humilde, mal pagae não tinha o prestígio do instrutor fisico.Com o tempo, à medida que aumentou aexigência de melhor formação intelectual,delinearam-se três níveis de educação: ele-mentar, secundária e superior.

O gramático (grammata, literalmente "le-tra"), também chamado didáscalo (didasko,"eu ensino"), reunia, em qualquer canto- sala, tenda, esquina ou praça pública-, um grupo de alunos, para lhes ensinarleitura e escrita. Os métodos usados difi-cultavam a aprendizagem, em que se acen-tuava o recurso de silabação, repetição,memorização e declamação. Geralmenteas crianças aprendiam de cor os poemas deHomero e de Hesíodo, as fábulas de Esopoe de outros autores. Escreviam em tabui-nhas enceradas, e os cálculos eram feitoscom o auxílio dos dedos e do ábaco, instru-mento de contar constituído de pequenasbolas.

4 Palestra: de palaisira, "lugar onde se luta"; palaio, "eu luto". Na cidade de São Paulo, o antigo nome do clubede futebol Palmeiras era Palestra Itália.

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A educação elementar completava-sepor volta dos 13 anos. As crianças mais po-bres saíam em busca de um oficio, enquan-to as de família rica prosseguiam os estu-dos, sendo encaminhadas ao ginásio. Estapalavra tem diversos sentidos: inicialmentedesignava o local para a cultura fisica onde,com freqüência, os gregos se apresentavamdespidos (daí sua origem etimológica: gi-mnos, "nu"). Com o tempo, as atividadesmusicais se direcionaram para discussõesliterárias, abrindo espaço para assuntos ge-rais como matemática, geometria e astro-nomia, sobretudo sob a influência dos filó-sofos. Com a criação de bibliotecas e salasde estudo, o ginásio adquiriu feição maispróxima do conceito de local de educaçãosecundária.

Dos 16 aos 18 anos, a educação assumiuuma dimensão cívica de preparação mili-tar, instituição que se desenvolveupor voltado século IV a.C. e é conhecida como ifébia(ifébo, '~jovem").Após a abolição do serviçomilitar em Atenas, a efebia passou a consti-tuir a escola em que se ensinavam filosofiae literatura.

Apenas com os sofistas (século V a.C.)teve início uma espécie de educação su-perior. Aqueles filósofos também se dedi-caram à profissionalização dos mestres e àdidática, cuidando inclusive da ampliaçãodas disciplinas de estudo.

Sócrates, Platão e Aristóteles tambémministraram educação superior. EnquantoSócrates se reunia informalmente na praçapública, Platão utilizou um dos ginásios deAtenas, a Academia, e mais tarde seu discí-pulo Aristóteles ensinou em outro ginásio,o Liceu. Ainda em Atenas, Isócrates abriuuma escola muito concorrida, que valoriza-va a retórica. Por causa disso,foi estabeleci-da uma polêmica com Platão, seu contem-porâneo, como veremos.

É preciso compreender as mudanças apartir das novas exigências da vida na pó-

lis,pois a política precisava de cidadãos quesoubessem convencer pela palavra.

Como se vê por este relato, a educaçãoformal atendia os filhos da elite, excluindoos demais. Segundo o legislador Sólon, "ascrianças devem, antes de tudo, aprender anadar e a ler; em seguida, os pobres devemexercitar-se na agricultura ou em uma in-dúst~ia qualquer, ao passo que os ricos de-vem se preocupar com a música e a equi-tação, e entregar-se à filosofia, à caça e àfreqüência aos ginásios".

Não havia, portanto, atenção para oensino profissional, já que os oficios seaprendiam no próprio mundo do trabalho.As exceções eram a arquitetura e a medi-cina, consideradas artes nobres. A medici-na, profissão altamente considerada entreos gregos, baseava-se nos ensinamentos deHipócrates (460-377 a.C.), acrescidos deinúmeras observações, que tornaram a me-dicina parte integrante da cultura geral gre-ga, ao lado dos preceitos éticos e das regrasde conduta. Segundo o helenista WernerJaeger, esseprestígio decorria da relação damedicina com a paidéia, ou seja, o médicoera colocado ao lado do pedótriba, do mú-sico e do poeta. Se a saúde fazia parte doideal grego de educação, é preciso entenderque ginastas e médicos concebiam a culturafisica na sua dimensão espiritual.

4. Educação no período helenístico

No fim do século IV a.C., iniciou-sea decadência das cidades-estados, até aperda total de sua autonomia. A culturahelênica, no entanto, fundiu-se às civili-zações que a dominaram, dando origemao helenismo. Nos séculos seguintes nãohaveria cidade importante do Oriente, daÁfrica e do mundo romano em expansãoque não tivesse teatros, banhos públicos,ginásios e bibliotecas inspirados na cultu-ra helênica.

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No período helenístico, a antiga paidéiatorna-se encidopédia, que significa literal-mente "educação geral" e consiste na am-pla gama de conhecimentos exigidospara aformação da pessoa culta. À medida que seampliavam os estudos teóricos, restringia-se o tempo dedicado aos exercícios fisicos.:-Josgrupos superiores predominava o sa-ber erudito, distanciado do cotidiano. Asquestões metafisicas e políticas foram subs-tituídas por temas éticos.

Ao lado do ensino elementar, orienta-do pelo gramático, notou-se o desenvol-vimento do nível secundário, sendo aindaampliada a função de retor, ou mestre deretórica, tão defendida por Isócrates noperíodo anterior.

O conteúdo abrangente do programatornou-se cada vez mais caracterizado pe-las chamadas sete artes liberais: as três disci-plinas humanísticas (gramática, retórica edialética) e as quatro científicas (aritmética,música, geometria e astronomia). A esseconteúdo acrescenta-se o aperfeiçoamentodo estudo de filosofia e, posteriormente, ode teologia, na era cristã.

Espalharam-se inúmeras escolas filosófi-cas, e dajunção de algumas (entre as quaisa Academia e o Liceu) formou-se a Univer-sidade de Atenas, centro de fermentaçãointelectual que perdurou inclusive no perí-odo da dominação romana.

Outro local importante de estudos su-periores foi Alexandria, cidade fundada nafoz do rio Nilo pelo imperador Alexandre,o Grande, em 331 a.C., e que se transfor-mou em centro fecundo de pesquisa, cons-tituído por escola, museu e biblioteca, poronde passaram muitos sábios. Aí foramgestadas a astronomia geocêntrica de Pto-lomeu, a fisica de Arquimedes, a geometria

de Euclides e, mais tarde, foram acolhidosos primeiros Padres da Igreja.

A biblioteca de Alexandria, famosa pelacoleção de manuscritos gregos, hebreus,egípciose orientais, era bem equipada, comfuncionários para organizar os documentose realizar cópias. É de lastimar a destruiçãodesse tesouro no século VII d.C., quando aregião foi conquistada pelos árabes".

Pedagogia

1. A pedagogia como reflexGíosobre apaidéia

Vimos que os povos da Antiguidadeoriental não dispunham de uma reflexão es-pecialmente voltada para a educação, por-que essesaber e essaprática encontravam-sevinculados às tradições religiosas recebidasdos ancestrais. Por se tratar de sociedadesteocráticas, a educação não se separava dareligião, e o escriba, o sacerdote ou o magoeram os depositários dessesvalores.

Na Grécia clássica, ao contrário, as ex-plicações predominantemente religiosasforam substituídas pelo uso da razão autô-noma, da inteligência crítica e pela atuaçãoda personalidade livre, capaz de estabeleceruma lei humana e não mais divina. Surgia,pois, a necessidade de elaborar teorica-mente o ideal da formação, não do herói,submetido ao destino, mas do cidadão, quedeixa de ser o depositário do saber da co-munidade, para se tornar aquele que ela-bora a cultura da cidade. A ênfase no pas-sado foi deslocada para o futuro: ninguémse acha preso a um destino traçado, mas écapaz de projeto, de utopia.

Se, como vimos, a palavra paidagogos no-meava inicialmente o escravo que conduzia

5 Segundo o historiador Paul Monroe, o califa que conquistou Alexandria teria usado os livros como combustí-vel para 4 mil banhos públicos, por um período de seis meses.

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a criança, com o tempo, o sentido do con-ceito ampliou-se para designar toda teoriasobre a educação. Ao discutir os fins da pai-déia, os gregos esboçaram as primeiras linhasconscientes da ação pedagógica e assim in-fluenciaram por séculos a cultura ocidental.

As questões: o que é melhor ensinar?, comoé melhor ensinar? epara que ensinar? enrique-ceram as reflexões dos filósofos e marcaramdiversas tendências, como veremos a seguir.Aliás, vale observar que até hoje essas per-guntas são fundamentais para a pedagogia.

Para compreender melhor essa novaforma de pensar, lembramos que a divisãoclássica da filosofia grega está centralizadana figura de Sócrates, daí a denominaçãodada aos três períodos, conforme mostra oquadro a seguir.

Períodos da filosofiagrega

• Pré-socrático (séculos VII e VIa.C.): os primeiros filósofos surgi-ram nas colônias gregas daJônia ena Magna Grécia. Ao iniciar o pro-cesso de separação entre a filosofia eo pensamento mítico, ocupavam-secom questões cosmológicas sobre oselementos constitutivos de todas asCOIsas.

• Socrático ou clássico (séculos V eIV a.C.): desse período fazem par~te o próprio Sócrates, seu discípuloPlatão e posteriormente o discípulodeste, Aristóteles; os sofistas e tam-bém Isócrates são dessa época.

• Pós-socrático (séculos III e IIa.C.): após a morte do imperadorAlexandre, teve início o helenismo esurgiram as correntes filosóficas doestoicismo e do epicurismo.

2. Sofistas: a arte da persuasão

Comecemos pelo período clássico, quenos interessa justamente pelo tipo diferentede educação prestes a se formar. Os novosmestres eram os sofistas, sábios itinerantesde todas as partes do mundo grego e queentão se encontravam em Atenas. Os maisfamosos foram: Protágoras de Abdera (485-410 a.c.), Górgias de Leôncio (485-380a.Ci), Híppias de Élis, e outros, como Trasí-maco, Pródico, Hipódamos.

A palavra sofista, etimologicamente, vemde sophos, que significa "sábio", ou melhor,"professor de sabedoria". Pejorativamentepassou a designar quem emprega sofismas,ou seja, quem usa de raciocínio capcioso,de má-fé, com intenção de enganar. Deve-se essa imagem caricatural às críticas de Só-crates e Platão à atitude intelectual dos so-fistas e ao costume de cobrarem muito bempor suas aulas. Recentemente essa avalia-ção depreciativa foi atenuada, redimensio-nando-se a importância da sofistica para aeducação democrática.

Enquanto os primeiros filósofos pré-socráticos se voltavam sobretudo para asquestões sobre a natureza (physis), os sofis-tas procederam à passagem para a reflexãopropriamente antropológica, centrada nasdiscussões sobre moral e política. Foramtambém responsáveis por elaborar teorica-mente e legitimar o ideal democrático daclasse em ascensão, a dos comerciantes en-riquecidos.

Na nova ordem política da cidade, asvirtudes louvadas não tinham como mode-lo o aristocrata bem-nascido, "de origemdivina", que se destacava pela coragem naguerra. Diferentemente, a virtude do cida-dão da pólis é cívica e está na sua capacida-de de discutir e deliberar nas assembléias.Por isso os sofistas fascinavam a juventudecom o brilhantismo de sua retórica e se pro-punham a ensinar a arte da persuasão, do

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convencimento, do discurso, que seria bemaproveitada na praça pública (ágora), sededa assembléia democrática.

Nesse sentido, os sofistas foram os criado-res da educação intelectual, que se tornouindependente da educação fisica e da mu-sical, até então predominantes nos ginásios.Além disso, ampliaram a noção de paidéia:de simples educação da criança, estendeu-se à contínua formação do adulto, capazentão de repensar por si mesmo a culturado seu tempo.

À revelia das críticas de Sócrates, os so-fistas valorizaram a figura do professor e,ao exigir remuneração, deram destaque aocaráter profissional dessa função.

Outra obra importante dos sofistas re-fere-se à sistematização do ensino, por te-rem eles iniciado os estudos de gramática,além de darem ênfase à retórica e à dia-lética. Por influência dos pitagóricos, de-senvolveram a aritmética, a geometria, aastronomia e a música. Ficou assim cons-tituída a tradicional divisão das sete artesliberais, assim chamadas por se destina-rem aos homens livres, desobrigados dastarefas manuais. Esse currículo será maisbem organizado no período helenístico ena Idade Média.

Das obras dos sofistas só nos restaramfragmentos, além dos comentários - comojá vimos, tendenciosos - dos filósofos doseu tempo. É bem verdade que alguns so-fistas abusavam da retórica, elaborando umdiscurso vazio, um palavreado oco, ou jus-tificando, com igual maestria, posições con-trárias sobre o mesmo assunto. Talvez de-vido à excessiva atenção ao aspecto formalda exposição e defesa de idéias, já que seachavam, naquele momento histórico, maisinteressados na arte da persuasão do que naverdade da argumentação. No entanto, nãose pode generalizar esse tipo de crítica.

Aliás, a sofistica já prenuncia a luta peda-gógica que movimentará o século seguinte,

ou seja, o duelo entre a filosofia e a retórica,como veremos.

3. O diálogo socrático

Sócrates (c. 469-399 a.c.) é uma figuraemblemática na história da filosofia. Ape-sar de, no seu tempo, muitos o terem con-fundido com os sofistas, na verdade a elesse opôs de maneira tenaz, criticando-os porcobrarem pelas aulas e também discordan-do da maneira pela qual encaminhavam asdiscussões.

Procurado pelos jovens, Sócrates passa-va horas discutindo nos locais públicos deAtenas, como a praça ou o ginásio, ondeinterpelava os transeuntes, com perguntasaos que julgavam entender determinadoassunto. Mas geralmente os deixava semsaída e obrigados a reconhecer a própriaignorância.

Esse procedimento, conhecido por mé-todo socrático, nasceu da perplexidade do fi-lósofo diante do oráculo de Delfos, que oidentificara como "o homem mais sábio".Por não se considerar sábio, mas sem de-sacreditar do oráculo, consultou as pesso-as que se diziam sábias e descobriu a fra-gilidade desse saber. Percebeu então que asabedoria começa pelo reconhecimento daprópria ignorância. "Só sei que nada sei"é, para Sócrates, o princípio da sabedoria,atitude em que se assume a tarefa verdadei-ramente filosófica de superar o enganososaber baseado em idéias preconcebidas.

A primeira parte do método socráticochama-se ironia (do grego eironeia, "pergun-tar, fingindo ignorar"), processo negativoe destrutivo de descoberta da própria ig-norância. A segunda parte, a maiêutica (demaieutiké, "relativo ao parto"), é construtivae consiste em dar à luz novas idéias.

Como Sócrates nada deixou escrito, to-mamos conhecimento do conteúdo dessasdiscussões pelas obras de seus discípulos,

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sobretudo as de Platão. Geralmente seusdiálogos tratam de questões morais, comoa virtude, a coragem, a piedade, a amizade,o amor. Quando Sócrates inicia as discus-sões, percebe que os interlocutores, julgan-do saber do assunto, se perdem em aspec-tos superficiais e contingentes, como fatose exemplos, mantendo-se no nível empíricoda simples opinião. Sócrates assume umapostura mais radical e procura definir rigo-rosamente aquilo de que se fala, pois nãobasta descrever as diversas virtudes, massaber a essência delas. Por exemplo, diantedos atos de coragem, é preciso descobrir oque é a coragem. Com isso Sócrates chega àdefinição do conceito.

Todo esse trabalho, no entanto, não visaa um objetivo puramente intelectual. Oque Sócrates pretende, usando a máxima"Conhece-te a ti mesmo", é o reto conhe-cimento das virtudes humanas, a fim de sepoder levar uma vida igualmente reta. Afilosofia favorece, portanto, a vida moral,porque conhecer o bem e praticá-lo sãopara Sócrates a mesma coisa, assim como amaldade provém da ignorância, já que nin-guém é mau voluntariamente. Chamamosde intelectualismo ético a doutrina socráticaque identifica o sábio e o virtuoso.

Derivam daí diversas conseqüênciaspara a educação, tais como: o conhecimen-to tem por fim tornar possível a vida moral;o processo para adquirir o saber é o diálo-go; nenhum conhecimento pode ser dadodogmaticamente, mas como condição paradesenvolver a capacidade de pensar; todaeducação é essencialmente ativa e, por serauto-educação, leva ao conhecimento de simesmo; a análise radical do conteúdo dasdiscussões, retirado do cotidiano, provo-ca o questionamento do modo de vida decada um e, em última instância, da própriacidade.

Essa doutrina, considerada subversivapor colocar em questão os valores vigentes,

levantou contra Sócrates inimigos rancoro-sos. Acusado de corromper a mocidade ede não crer nos deuses da cidade, foi conde-nado à morte. A história da sua acusação,defesa e execução é contada nos belos diá-logos de Platão, Apologia de Sócrates e Fédon:

4. A utopia de Platão

Arístocles era o verdadeiro nome de Pla-tão (428-347 a.C.), assim apelidado talvezpor possuir ombros largos. Ateniense de fa-mília aristocrática, sentiu-se atraído por po-lítica, apesar de ter sofrido pesados revesesao tentar pôr em prática suas teorias. Porexemplo, após ser bem recebido na Sicíliapor Dionísio, o Velho, foi vendido comoescravo, mas por sorte um rico armador oreconheceu e libertou.

Em Atenas, lecionou durante quarentaanos na Academia, um dos ginásios de en-sino superior da cidade. Seus Diálogos repro-duzem muitas das discussões efetuadas porSócrates, seu mestre. No entanto, o vigor ea originalidade do seu pensamento nos fa-zem questionar o que de fato se deve a Só-crates e o que é de sua criação pessoal.

Para compreender a proposta pedagó-gica de Platão é preciso associá-la ao seuprojeto inicial, que é político, antes de tudo.Por isso veremos algumas características doseu pensamento filosófico.

A alegoria da caverna

No Livro VII de A República, Platão ex-põe o "mito" da caverna, na verdade umaalegoria usada para melhor explicar sua te-oria. Segundo esse famoso relato, homensse encontram acorrentados em uma caver-na desde a infância, de tal forma que, nãopodendo olhar para a entrada, apenas en-xergam o fundo da caverna. Aí são projeta-das as sombras das coisas que passam às suascostas, onde há uma fogueira. Se um desses

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homens conseguisse se soltar das correntespara contemplar, à luz do dia, os verdadeirosobjetos, ao regressar para contar o que vira,não mereceria o crédito de seus antigoscompanheiros, que o tomariam por louco.

A análise desse "mito" pode ser feita sobdois pontos de vista: o epistemológico (relativoao conhecimento) e o político (que por suavez desdobrará implicações pedagógicas).

Quanto à dimensão epistemológica, Pla-tão compara o acorrentado ao indivíduocomum, dominado pelos sentidos e pelaspaixões, e que alcança apenas um conhe-cimento imperfeito da realidade, restritoao mundo dos fenômenos, no qual as coisassão meras aparências e estão em constantefluxo. A esse conhecimento Platão chamadoxa, "opinião".

Aquele que se liberta dos grilhões é ofilósofo, capaz de atingir o verdadeiro co-nhecimento, a episteme, "ciência", quando arazão ultrapassa o mundo sensível e atinge omundo das idéias, lugar da essência imutávelde todas as coisas, dos verdadeiros mode-los ou arquétipos. Este é o único verdadei-ro, e o mundo sensível só existe enquantoparticipa do mundo das idéias, do qual éapenas sombra ou cópia. Por exemplo, sepercebemos inúmeras abelhas dos mais va-riados tipos, a idéia de abelha deve ser una,imutável, a verdadeira realidade.

Essas idéias gerais estão hierarquizadas eno topo encontra-se a idéia do Bem, a maisalta em perfeição e a mais geral de todas.Os seres e as coisas não existem senão àmedida que participam do Bem. E o Bemsupremo é também a Suprema Beleza, oDeus de Platão. Conclui-se dessa interpre-tação epistemológica o idealismo de Platão:conforme sua teoria do conhecimento, asidéias são mais reais que as próprias coisas.

Retornemos ao relato da alegoria da ca-verna. O filósofo, aquele que se liberta dosgrilhões, passa do conhecimento opinativopara o científico, por isso tem a obrigação

de orientar os demais. Eis aí a dimensão po-lítica e pedagógica da alegoria, decorrenteda pergunta: "como influenciar aqueles quenão vêem?". Ora, cabe ao sábio dirigi-los,sendo-lhe reservada a elevada função daação política. Ao apresentar sua propostade governo-modelo, Platão descreve a pe-dagogia ideal na obra A República.

Na continuidade do relato do "mito", namesma obra, imagina uma cidade utópica, aCallipolis ("Cidade Bela"). Etimologicamen-te, utopia significa "em nenhum lugar" (dogrego, ou-topos). Platão imagina, portanto,um lugar que não existe, mas que deve sero modelo da cidade, em que são eliminadasa propriedade e a família, e todas as crian-ças recebem educação do Estado. A educa-ção deve ser ministrada de acordo com asdiferenças que certamente existem entre aspessoas, a fim de ocuparem suas posiçõesna sociedade, o que é feito por meio de se-guidas seleções.

Até os 20 anos, a educação é a mesmapara todos. O primeiro corte identificaaqueles que têm a alma de bronze, ou seja,uma sensibilidade grosseira que os qualificapara a agricultura, o artesanato e o comér-cio. A eles seria confiada a subsistência dacidade.

Os outros continuam na escola por maisdez anos. Com o segundo corte, aquelesque têm a coragem dos guerreiros de "almade prata" interrompem os estudos a fim deconstituir a guarda do Estado, como solda-dos encarregados da defesa da cidade.

Desses sucessivoscortes sobram os maisnotáveis, que, por terem "alma de ouro",serão instruídos na arte de dialogar. Apren-dem, então, a filosofia, capaz de elevar aalma até o conhecimento mais puro, fontede toda a verdade.

Aos 50 anos, aqueles que passaram comsucesso por essa série de provas estarãoaptos a ser admitidos no corpo supremodos magistrados. Cabe-lhes o exercício do

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poder, pois apenas eles têm a ciência dapolítica.

Note-se que Platão desenvolve idéiasavançadas para seu tempo: o Estado assu-me a educação; a educação da mulher é se-melhante à do homem; os estágios superio-res dependem do mérito de cada um e nãoda riqueza; valorização da educação inte-lectual, coroada pelo estudo das ciências(com especial destaque para a matemática)e pela dialética, processo que eleva a almadas aparências sensíveis às idéias.

Essa utopia representa um modelo aris-tocrático de poder, em oposição à demo-cracia, que, segundo Platão, confia indevi-damente nas decisões do cidadão comum,incapaz de conhecer a ciência política. Nãodefende, porém, a aristocracia de berçoou riqueza, mas aquela em que o governoé confiado aos mais sábios. Platão propõe,portanto, uma sofocracia (etimologicamen-te, "poder dos sábios") e diz que, para umEstado ser bem governado, é preciso que"os filósofos se tornem reis, ou que os reis setornem filósofos".

Aprender é lembrar

Retomando a relação contraposta porPlatão entre o mundo das idéias e o mun-do sensível dos fenômenos, veremos que ofilósofo parte do pressuposto de que a almateria vivido a contemplação do mundo dasidéias, na qual conheceu as essências porsimples intuição (conhecimento direto eimediato). Ao se encarnar, no entanto, aalma teria se esquecido de tudo.

Por isso, para Platão, aprender é lembrar.Segundo a teoria da reminiscência, todoconhecimento consiste no esforço para su-perar as dificuldades que os sentidos - sim-ples ocasião, e não causa do conhecimento- interpõem para alcançar a verdade.

Portanto, educar não é levar o conheci-mento de fora para dentro, mas despertar

no individuo o que ele já sabe, proporcio-nando ao corpo e à alma a realização dobem e da beleza que eles possuem e nãotiveram ocasião de manifestar. Para Platão,embora o corpo seja inferior à alma intelec-tiva, também possui uma alma irracional,composta de duas partes: uma irascível,impulsiva, localizada no peito; outra con-cupiscível, voltada para os desejos de bensmateriais e apetite sexual, localizada noventre.

O desafio da moral, para Platão, en-contra-se na tentativa de dominar a almainferior. Esta perturba o conhecimento ver-dadeiro, porque, escravizada pelo sensível,leva à opinião e, conseqüentemente, aoerro. O corpo é também ocasião de corrup-ção e decadência moral. Se a alma superiornão souber controlar as paixões e os desejos,será impossível o comportamento moral.

Que conseqüências resultam dessas teo-rias para definir um ideal de educação?

Primeiramente, a educação fisica pro-porciona ao corpo uma saúde perfeita, per-mitindo que a alma ultrapasse o mundo dossentidos e melhor se concentre na contem-plação das idéias. Caso contrário, a fraque-za fisica torna-se empecilho à vida supe-rior do espírito. Do mesmo modo, o amorsensível se subordina ao amor intelectual.No diálogo O banquete, Platão nos faz verque, se na juventude predomina a admira-ção pela beleza fisica, o adulto amadureci-do é capaz de descobrir que a verdadeirabeleza é espiritual.

Essa transposição pode ser favorecidacom a educação do corpo e do espírito pelaginástica. Também pela música, entendidano amplo sentido de formação literária eartística. As crianças aprendem o ritmo ea harmonia, condição para alcançar a har-monia da alma.

Platão recomenda ainda o ensino dageometria, e segundo uma tradição anti-ga parece que na entrada da Academia

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se destacava a inscrição: "Não entre aquiquem não souber geometria". A aritméti-ca, a geometria e a astronomia, formandoo currículo de base científica, não têm, noentanto, o objetivo de formar especialistas,mas preparar para a mais elevada atividadehumana, o filosofar.

Contrariando a educação tradicional,baseada nos textos das epopéias, sobretudoas de Homero, Platão recomendava que apoesia fosse excluída do ensino, limitando-se a proporcionar o gozo artístico. O moti-vo da crítica deve-se ao fato de que o poeta,ao imitar a realidade, cria um mundo demera aparência, afastando-nos do conheci-mento verdadeiro ao estimular as paixõese os instintos. Ao contrário, Platão defendea aprendizagem da resistência racional àdor, ao sofrimento, para não sucumbirmosà vida dos sentimentos.

Numa breve conclusão sobre Platão, po-demos ressaltar que ele se contrapõe a di-versas tendências do seu tempo. Por exem-plo, a sofocracia contraria as concepçõesdemocráticas, embora nessa época Atenasjá estivesse sofrendo uma série de revesespolíticos. Como veremos a seguir, ao defen-der a formação científico-filosófica, Platãoperdeu em popularidade para o educadorIsócrates, que representa a tendência lite-rário-retórica. Apesar desses insucessos, asidéias platônicas fecundaram de maneiradecisiva a filosofia cristã, sobretudo nos seusprimórdios.

5. Isócrates e a retórica

Isócrates (436-338 a.C.), contemporâneode Platão e, de certa forma, seu opositor,defendia posições que agitaram as discus-sões sobre educação na antiga Atenas. Dis-cípulo do sofista Górgias e de Sócrates, fun-dou uma escola de nível superior, na qualformou várias gerações durante 55 anos.Pouco restou da abundante produção de

discursos, na maior parte destinados aosexercícios didáticos para as aulas de retó-rica, a "arte de bem dizer", mas tambémdiscursos forenses encomendados.

Vimos que a retórica se tornou importan-te instrumento para a cidade democrática,na qual os cidadãos procuravam convencerseus iguais nas assembléias do povo ou nostribunais. Sabemos também como Sócratese Platão criticaram os sofistas - muitas ve-zes injustamente - por se ocuparem comum palavreado vazio e formal.

Para Platão, embora o bem falar (ou es-crever) não possa ser desprezado, é, no en-tanto, secundário. Antes de aprender retó-rica para convencer um oponente, é precisoesforçar-se por conhecer a verdade, porquesó o conhecimento dará estrutura orgânicae ordenação lógica ao discurso. Caso con-trário, este se torna mero amontoado debanalidades e equívocos.

Em contraposição, para Isócrates Platãoera muito intelectualista e seus ensinamen-tos restritos demais a um público elitista.Duvidava até que fosse possível alcançara episteme, meta do projeto platônico. Maispráticos, os retóricos caçoavam dos filóso-fos, acusando-os de se dedicarem a discus-sões estéreis, inúteis, distanciadas da vidacotidiana. Para Isócrates, seria melhor con-tentar-se com a opinião razoável.

Isócrates foi importante pelo fato de cen-trar sua atenção na linguagem, descobrin-do formas que facilitassem a aprendizagemdo discurso. Assim como o corpo necessitade exercício, para treinar o espírito destacaas vantagens da repetição, além de desen-volver diversas técnicas de desdobramentodo discurso. Ensina como reunir materialde pesquisa, distingue as partes de que secompõe a peça oratória e formula regraspara orientar as maneiras de apresentação,como o processo de refutação de teses, assentenças, a ironia. Para ilustrar um bomdiscurso, sugere ainda recorrer à história,

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fecunda em exemplos de conduta moral ede decisões políticas.

Muitas vezes Isócrates se opôs tambémaos sofistas, por considerar que a concep-ção de eloqüência deles estava dissociadada formação moral, cívica e patriótica.

A história nos mostra que a atuação dosretóricos no tempo da Grécia clássica foimais marcante do que a dos filósofos, comoPlatão, cuja influência só se faria sentir pos-teriormente. Naquele momento, a ênfaseàs questões de linguagem e de literaturaorientou a educação de maneira definitiva.A propósito, o filósofo e orador romano Cí-cero diz que Isócrates "ensinou a Grécia afalar".

6. Realismo aristotélico

Aristóteles (384-332 a.C.) nasceu na ci-dade de Estagira, ao norte da Grécia. Di-rigindo-se a Atenas, foi discípulo de Platão,tendo permanecido por vinte anos na Aca-demia. Posteriormente teria sido preceptordo futuro imperador Alexandre, o Grande.

Mais tarde fundou em Atenas sua pró-pria escola, o Liceu, no ginásio de ApoloLício, em uma dependência chamada peri-patos, daí o fato de sua filosofia ser conheci-da como peripatética. Segundo hipótese cor-rente, Aristóteles daria suas aulas andandopelos jardins da escola, no peripatos (de peri,"ao redor", e pateo, "passear"). já a helenis-ta Maria Helena da Rocha Pereira discordadessa interpretação, afirmando que penpoiossignifica "passeio coberto", como costuma-va existir naqueles edificios.

Superando a influência do mestre, Aris-tóteles elaborou um sistema filosófico ori-ginal, que abrangia os mais diversos aspec-tos do saber do seu tempo, inclusive dasciências. Filho de médico, herdou o gostopela observação, tendo classificado cercade 540 espécies de animais, o que mostra aimportância dada à investigação científica,

também valorizada na sua concepção pe-dagógica.

Vejamos algumas linhas do pensamentoaristotélico, para melhor compreendermossuas idéias pedagógicas.

Aprendemos que, para Platão; as coisasconcretas, em constante movimento, sãosimples aparências, sombras da verdadeirarealidade do mundo das idéias, do mundoimóvel dos conceitos. Aristóteles critica oidealismo do mestre e desenvolve uma teo-ria realista, segundo a qual a imutabilidadedo conceito e o movimento das coisas po-dem ser compreendidos a partir das coisasmesmas, recusando, portanto, o artificio domundo das idéias.

Para explicar o ser, Aristóteles usa doiselementos indissociáveis: a matéria e afirma.A matéria é pura passividade, contendo asvirtualidades da forma em potência. A for-ma é o princípio inteligível, a essência co-mum aos individuos de uma mesma espécie,pela qual cada um é o que é. Fazendo umaanalogia um tanto grosseira com uma está-tua, a matéria seria o mármore, enquanto aforma seria a idéia que o escultor realiza epela qual individualiza e determina.

Apoiado na noção de matéria e forma,Aristóteles explica o devir (ou movimento).Todo ser tende a atualizar a forma que temem si como potência, a atingir a perfeiçãoque lhe é própria e o fim a que se destina.Assim, a semente do carvalho, enterrada.tende a se desenvolver e se transformar nocarvalho que era em potência. O movimen-to é, pois, a passagem da potência para oato. A teoria do movimento leva à distinçãoentre as causas possíveis dos seres. Voltandoao exemplo da estátua, para haver transfor-mação, atuam várias delas: a causa matena:é o mármore; a causa eficiente é o escultor; acausaformal é a forma que a estátua adquire:e a causa final é o motivo ou a razão por qUeuma matéria adquire determinada forma.ou seja, a finalidade da estátua.

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A pedagogia aristotélica

Como conseqüência dessa teoria do mo-vimento e das causas, toda educação develevar em conta o fato de que o ser humanose encontra em constante devir. A educaçãotem como finalidade ajudá-lo a alcançar aplenitude e a realização do seu ser, a atuali-zar as forças que tem em potência. Note-seaqui uma característica da pedagogia da essên-cia, pois a educação pretende levar a pessoaa "tornar-se o que deve ser", a realizar suaessência.

Não mais discutindo como os seres são,mas como podem vir a ser, encontramo-nos finalmente no campo da ética, parte dafilosofia que trata da ação humana tendoem vista o bem. O sumo bem é alcançar afelicidade. Ela consiste na plenitude da rea-lização humana, ao desenvolver suas facul-dades fisicas, morais e intelectuais.

Para Aristóteles, no entanto, aquilo quemais fundamentalmente caracteriza o serhumano e o distingue do animal é a capa-cidade de pensar e, portanto, sua perfeiçãoencontra-se no exercício dessa atividade.Se a sua virtude é viver conforme a razão,cabe a csta disciplinar os sentimentos e osinstintos.

Diferentemente de Sócrates, que identi-ficava saber e virtude, Aristóteles enfatiza aação da vontade, exercitada pela repetição,que conduz ao hábito: só é virtuoso quemtem o hábito da virtude. Daí a imitação sero instrumento por excelência desse proces-so, segundo o qual a criança se educa repe-tindo os atos de vida dos adultos, adquirin-do hábitos que vão formar uma "segundanatureza".

Essa aprendizagem se faz pela escolhalivre do justo meio entre dois vícios (que re-presentam os extremos por falta ou por ex-cesso). Por exemplo, a coragem é o meio-termo entre a covardia e a temeridade; agentileza, entre a indiferença e a irascibi-

lidade; a liberalidade, entre a avareza e aprodigalidade, e assim por diante.

Na sua obra Política, Aristóteles defineas condições da vida boa em sociedade eesboça uma teoria da educação, discutin-do como o Estado deve se ocupar com aformação para a cidadania. Coerente como pensamento de seu tempo, restringe obeneficio da cidadania aos homens livres,sobretudo aos que dispõem de tempo parao ócio digno, excluindo, portanto, os que sededicam às artes mecânicas, como os arte-sãos e os escravos.

A metodologia de Aristóteles merece umdestaque. É bem verdade que desde Sócra-tes e os sofistas já existiam questões meto-dológicas, mas deve-se a Aristóteles a orga-nização rigorosa do Organon, ou "órgão","instrumento de pensar", que mais tarderecebeu a denominação de lógica formal.A compreensão precisa dos processos deanálise e síntese, indução, dedução e analo-gia ajudará a desenvolver também o méto-do lógico de ensinar.

A repercussão do pensamento aristotéli-co não se deu de imediato na Grécia do seutempo. Sabe-se que seus trabalhos foramlevados para a Ásia Menor por volta de 287a.C. e teriam se perdido por cerca de du-zentos anos, até reaparecerem na bibliotecade Alexandria, onde foram classificados eposteriormente levados para Roma.

Durante a Idade Média, sua obra perma-neceu muito tempo desconhecida, ressurgin-do inicialmente por intermédio dos árabes.Depois, a partir do século XIII, foi incorpo-rada pela filosofia escolástica, que adaptouseu paganismo às concepções cristãs. Daíaté os nossos tempos, sempre foi marcantesua influência na filosofia ocidental.

7. Os pós-socráticos

Na segunda metade do século IV a.C.,com a conquista macedônica, as cidades-

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estados gregas perderam a autonomia. De-pois dessa época, os tempos ficaram maisconturbados pela expansão do ImpérioAlexandrino.

A insegurança das guerras e o conta-to com o pensamento oriental mudaramo centro das reflexões filosóficas, fazendosurgir um novo tipo de intelectual. A ênfa-se foi deslocada da metafisica ou da polí-tica para as questões éticas, sobretudo noque dizia respeito à realização subjetiva epessoal. Na impossibilidade de controlar oque se acha fora de si, o indivíduo procu-ra a serenidade interior. Representam essatendência as escolas filosóficas do estoicis-mo e do epicurismo.

O estoicismo não teve origem única,mas sofreu influência de diversas tendên-cias. Segundo seu principal representan-te, Zeno de Cítio (336-264 a.C.), ao bus-car a felicidade o ser humano deve fugirdo prazer, que em última análise apenasproporciona dor e sofrimento. O exercí-cio da virtude consiste na auto-suficiência,alcançada quando o individuo conseguirafastar-se dos bens materiais e dominaras paixões que trazem intranqüilidade àalma. O domínio racional leva à aceitaçãodo destino e à resignação, por isso o idealdo sábio é a ataraxia (imperturbabilidade),a apatia (ausência de paixão) e a aponia(ausência de dor).

No epicurismo, doutrina iniciada porEpicuro (341-270 a.C.), o ideal do sábio éatingir igualmente a ataraxia, embora dife-rentemente dos estóicos. Epicuro é um he-donista (hedoné, "prazer") e, por isso,ao con-siderar a felicidade como busca do prazer,não nega as afecçõeshumanas, nem propõea insensibilidade. O individuo deve evitartudo o que se opõe à felicidade (temor, dor,sofrimento) e aproximar-se de tudo o que aproporciona, como a satisfação das neces-sidades fisicas e espirituais, entre as quaisdistingue especialmente a amizade.

Contradizendo as pessoas que julgamo epicurismo a busca desenfreada de pra-zeres, Epicuro destaca o papel da razãona seleção deles, já que a sua realizaçãoapressada pode trazer sofrimento no futu-ro. Atender às verdadeiras necessidades hu-manas significabuscar o prazer duradouro,sereno, espiritual.

As tendências estóicas e epicuristas quecaracterizam a filosofia helenística acha-vam-se em consonância com uma concep-ção de educação muito diferente daquelado período clássico. Nos novos tempos di-minuiu o interesse pela educação fisica, en-quanto a razão adquiria primazia no con-trole dos sentidos e das paixões.

O pensamento helenístico aproximou-sedas religiões do Oriente e, mais tarde, dasconcepções cristãs predominantemente as-céticas.

As filosofias epicuristas e, sobretudo, asestóicas (nas suas tendências ecléticas)mar-caram o pensamento romano nas figuras deCícero, Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio.Posteriormente, o ascetismo cristão medie-val foi tributário do estoicismo.

Conclusão

No longo período que se estende desdeos tempos heróicos até o helenismo, o idealgrego de educação sofreu significativas al-terações. Embora o cuidado com o corpofosseuma constante, de início era dada ên-fase à habilidade militar do guerreiro. Emseguida, o cidadão da pólis passou a fre-qüentar os ginásios, onde a educação erapredominantemente fisica e esportiva, atéque, por fim, os assuntos de literatura e re-tórica se tornaram prioritários.

Quanto à concepção do corpo, de inícioo ideal de beleza físicafoi muito valorizado.Como veremos, o ascetismo da Igreja cristãprimitiva, influenciado por um platonismoimpregnado pela visãoascética,transformouo corpo em obstáculo para a vida espiritual.

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Outro aspecto a ser realçado é que, porpertencer a uma sociedade escravista, osgregos desvalorizavam a formação profis-sional e o trabalho manual. Enquanto atécnica se achava associada à atividade ser-vil, o cultivo desinteressado da forma fisi-ca e a atividade intelectual permaneceramprivilégio das classes ociosas.

A Grécia foi ainda o berço das primeirasteorias educacionais, fecundadas pelo em-bate de tendências pluralistas. Após as ino-vações dos sofistas, Isócrates exerceu impor-tante atuação, animando a polêmica comSócrates, Platão e Aristóteles. Embora estesúltimos não tenham influenciado a educaçãodo seu tempo tanto quanto os opositores, acontribuição dos filósofos clássicos para apedagogia encontra-se na concepção de na-tureza humana, cuja essência é a racionali-dade. Essa visão foi retomada pela tradição emarcou profundamente a cultura ocidental,sobretudo a partir da Idade Moderna.

A concepção de natureza humana uni-versal serviu de base para o delineamen-

to da tendência essencialista da pedagogú,.Ou seja, para Platão, a educação é o ins-trumento para desenvolver no ser humanotudo o que implica sua participação na rea-lidade ideal, tudo o que define sua essênciaverdadeira, embora asfixiada pela existên-cia empírica. Também segundo Aristóteles,a educação é um processo da passagem dapotência para o ato, pela qual atualizamosa forma humana ..

A concepção essencialista durou longoperíodo. Segundo o pedagogo Suchodol-ski, Rousseau (século XVIII) representa"a primeira tentativa radical e apaixonadade oposição fundamental à pedagogia daessência e de criação de perspectivas parauma pedagogia da existência", processoque assumiu uma forma mais definida noséculo XIX e sobretudo no XX, como ve-remos.

Por fim, como já dissemos, no mundocontemporâneo pressionado pela especia-lização e pela tecnocracia, renasce o idealgrego da paidéia, da educação integral.

Dropes

1 - A Olimpíada era um dos quatrograndes festivais pan-helênicos quereuniam participantes de todo o mun-do grego. De origem muito antiga, foiorganizada no século VIII a.C. e rea-lizava-se na cidade de Olímpia, a cadaquatro anos, no verão. Por essa ocasiãohavia uma trégua sagrada, que inter-rompia qualquer atividade guerreira.Os atletas disputavam diversos jogos,e os vencedores eram coroados comfolhas de oliveira, recebendo as home-nagens das cidades que representavam.Poetas e oradores falavam em praça pú-blica, e havia ainda uma grande feira.

O estádio de Olímpia podia acomodar40 mil espectadores sentados.

2 - Livros - Na Grécia, por volta do sé-culo VI a.C., era utilizado o rolo de pa-piro, também conhecido por byblos (debíblion, "livro"; daí, biblioteca). O papiroé uma planta do vale do Nilo, com queos egípcios fabricavam uma tira com-prida de mais ou menos 40 centímetrosde altura e cerca de seis a nove metrosde comprimento. Sobre ela escrevia-secom uma pena de junco fino em colunassucessivas na direção em que era enro-lada (sua maior dimensão). Não se dei-xavam espaços entre as palavras, nem seusavam sinais de pontuação. No século

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6 Emulação: estímulo, sentimento que leva a imitar alguém.7 Atlante: na arquitetura antiga, a escultura de um homem que sustenta uma coluna (como Atlas,figura mitológica, condenado a sustentar os céus em seus ombros). No sentido figurado, alguém que éforte, do ponto de vista físico; no caso, trata-se da grandeza intelectuaL

IV a.c., já era considerável o númerode livros, e Aristóteles se destacava porpossuir uma grande coleção. No séculoIII a.C. foi usada pele de animal para aescrita, o pergaminho, assim chamadopor ter origem na cidade de Pérgamo,na Ásia Menor. Uma das mais famosasbibliotecas da Antiguidade foi a de Ale-xandria, que chegou a possuir 700 milvolumes. (Adaptado do Dicionário Oifórdde literatura clássica grega e latina.)

3 - Quantos alunos passavam por umaescola? Veja o exemplo de Isócrates,que em mais de cinqüenta anos de ma-gistério recebeu pouco mais que cemalunos... (JanineAssa)

4 - Entre Isócrates e Platão há (... )não apenas rivalidade, mas emulàção",e isto interessa ao desenvolvimento danossa história: aos olhos da posteridade,a cultura filosóficae a cultura oratóriaaparecem, realmente, como rivais, mastambém como irmãs; elas têm não ape-nas uma origem comum, mas tambémambições paralelas e, por vezes, idên-ticas; são (... ) duas variedades de umamesma espécie: o debate que mantive-ram enriqueceu a tradição clássica,semcomprometer-lhe a unidade. À porta dosantuário em que vamos entrar postam-se, de um lado e de outro, como doispilares, como dois robustos atlantes',as figuras destes dois grandes mestres,"equilibrando-se e como que respon-dendo-se mutuamente". (Henri-IrénéeMarrou)

5 - O homem que se revela nas obrasdos grandes gregos é o Homem políti-co. A educação grega não é uma somade técnicas e organizações privadas,orientadas para a formação duma in-dividualidade perfeita e independente.(... ) Todo futuro humanismo deve estaressencialmente orientado para o fatofundamental de toda a educação grega,a saber: que a humanidade, o "ser doHomem" se encontrava essencialmentevinculado às características do Homemcomo ser político. O fato de os homensmais importantes da Grécia se consi-derarem sempre a serviço da comuni-dade é índice da íntima conexão quecom ela tem a vida espiritual criadora.Coisa análoga parece acontecer com ospovos orientais e é natural que assimseja numa ordenação da vida estreita-mente vinculada à religião. No entan-to, os grandes homens da Grécia nãose manifestam como profetas de Deus,mas antes como mestres independentesdo povo e formadores dos seus ideais.Mesmo quando falam em forma de ins-piração religiosa,esta assenta no conhe-cimento e formação pessoal. Mas pormuito pessoal que esta obra do espíritoseja, na sua forma e nos seuspropósitos,é considerada pelos seus autores, comvigor infatigável, uma função social.A trindade grega do poeta (poietés), doHomem de Estado (politicós) e do sábio(sóphos) encarna a mais alta direção danação. (WernerJaeger)

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• Leituras complementares

o [A educação como conversão daalma]

Trata-se de um trecho do Livro VII de A Re-pública. No diálogo, as falas de Sócrates estão naprimeira pessoa e seus interlocutoressão Glauco eAdi-manto, irmãos mais novos de Platão. O trecho trans-crito vem logo após o relato do "mito" da caverna.

- Mas então?, pensas ser espantoso queum homem, que passa das contemplaçõesdivinas às miseráveis coisas humanas, tenhafalta de graça e pareça inteiramente ridícu-lo, quando, ainda com a vista perturbada einsuficientemente acostumado às trevas cir-cundantes, é forçado a entrar em disputa,diante dos tribunais ou alhures, acerca dassombras de justiça ou das imagens que pro-jetam estas sombras, e combater as inter-pretações que delas fornecem os que nuncaviram a própria justiça?

- Não há nada de espantoso nisso.-- Com efeito - prossegui - um ho-

mem sensato recordar-se-á que os olhos po-dem perturbar-se de duas maneiras e porduas causas opostas: pela passagem da luzà obscuridade e pela passagem da obscuri-dade à luz; e, tendo refletido que sucede omesmo com a alma, quando avistar uma,perturbada e impedida de discernir certosobjetos, não rirá tolamente, porém exa-minará antes se, proveniente de uma vidamais luminosa, ela está, por falta de hábito,ofuscada pelas trevas, ou se, passando daignorância à luz, está cega pelo brilho de-masiado vivo; no primeiro caso, julgá-la-áfeliz, em razão do que ela experimenta e davida que leva; no segundo, há de lastimá-la,e, se quisesse rir à custa dela, suas troças se-riam menos ridículas do que se incidissemsobre a alma que volta da morada da luz.

- Isto que é falar - disse ele - commuita sabedoria.

- Devemos, pois, se tudo isto for verda-de, concluir o seguinte: a educação não éde nenhum modo o que alguns proclamamque ela seja; pois pretendem introduzi-la naalma, onde ela não está, como alguém quedesse a visão a olhos cegos.

- É o que pretendem, com efeito.- Ora - reatei - o presente discurso

mostra que cada um possui a faculdade deaprender e o órgão destinado a este uso, eque, semelhante a olhos que só pudessemvoltar-se com o corpo inteiro das trevaspara a luz, este órgão também deve desviar-se com a alma toda daquilo que nasce, atéque se torne capaz de suportar a visão doser e do que há de mais luminoso no ser; e éisso que nós chamamos o bem, não é?

-Sim.- A educação é, portanto, a arte que se

propõe este fim, a conversão da alma, e queprocura os meios mais fáceis e mais eficazesde operá-la; ela não consiste em dar a vistaao órgão da alma, pois que este já o possui;mas como ele está mal disposto e não olhapara onde deveria, a educação se esforçapor levá-lo à boa direção.

- Assim parece - disse ele.

Platào, A República. 2. ed. Sào Paulo, Difel, 1973,v. II, p. II O e 111.

~ [Artes liberais e artes mecânicas]

Não é dificil de ver (... ) que devem serensinados aosjovens os conhecimentos úteisrealmente indispensáveis, mas é óbvio quenão se lhes devem ensinar todos eles, dis-tinguindo-se as atividades liberais das ser-vis; devem-se transmitir aos jovens, então,apenas os conhecimentos úteis que não tor-nam vulgares as pessoas que os adquirem.Uma atividade, tanto quanto uma ciênciaou arte, deve ser considerada vulgar se seuconhecimento torna o corpo, a alma ou ointelecto de um homem livre inúteis para a

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posse e a prática das qualidades morais. Eispor que chamamos vulgares todas as artesque pioram as condições naturais do corpo,e as atividades pelas quais se recebem salá-rios; elas absorvem e degradam o espírito.

(...)Pode-se dizer que há quatro ramos de

educação atualmente: a gramática, a ginás-tica, a música, e o quarto segundo alguns é odesenho; a gramática e o desenho são con-siderados úteis na vida e com muitas apli-cações, e se pensa que a ginástica contribuipara a bravura; quanto à música, todavia,levantam-se algumas dúvidas. Com efeito,atualmente a maioria das pessoas a cultivapor prazer, mas aqueles que a incluíram naeducação agiram assim porque, como já foidito muitas vezes, a própria natureza atuano sentido de sermos não somente capazesde ocupar-nos eficientemente de negócios,mas também de nos dedicarmos nobre-mente ao lazer, pois (... ) este é o princípiode todas as coisas. De fato, se ambos sãonecessários, o lazer é mais desejável que osnegócios, e é o objetivo destes; temos por-tanto de perguntar: como devemos fruirnosso lazer?

(...)Mas o lazer parece conter em si mesmo o

prazer, a felicidade e a bem-aventurança deviver, e isto não está ao alcance dos homensocupados, e sim dos que usufruem o lazer;o homem de negócios se ocupa na busca dealgum objetivo ainda não alcançado, masa felicidade é um objetivo alcançado, quetodos os homens consideram acompanha-do não pelo sofrimento, e sim pelo prazer;nem todos os homens, porém, definem esteprazer da mesma forma; cada um o con-cebe segundo sua própria natureza e seupróprio caráter, e o prazer que o melhordos homens considera ligado à felicidade éo melhor prazer e provém das mais nobresfontes. É claro, portanto, que há ramos doconhecimento e da educação que devemos

cultivar apenas com vistas ao lazer dedicadoà atividade intelectual, e tais ramos devemser apreciados por si mesmos, enquanto asformas de conhecimento relacionadas comos negócios são cultivadas como necessáriase como meios para atingir outros fins. Poresta razão os antigos incluíram a músicana educação, não por ser necessária (nadahá de necessário nela), nem útil no sentidoem que escrever e ler são úteis aos negó-cios e à economia doméstica e à aquisiçãode conhecimentos e às várias atividades davida em uma cidade, ou como o desenhotambém parece útil no sentido de tornar-nos melhores juízes das obras dos artistas,nem como nos dedicamos à ginástica, porcausa da saúde e da força (não vemos qual-quer destas duas resultarem da música);resta, portanto, que ela seja útil como umadiversão no tempo de lazer; parece que suaintrodução na educação se deve a esta cir-cunstância, pois ela é classificada entre asdiversões consideradas próprias para os ho-mens livres.

Aristóteles, Política. 3. ed. Trad. de Mário daGama Kury. Brasília, Ed. UnB, 1997, p. 269 e 270.

@ [O que é ser cidadão?]

Afinal, o que é ser cidadão?Ser cidadão é ter direito à vida, à liber-

dade, à propriedade, à igualdade peran-te a lei: é, em resumo, ter direitos civis.É também participar no destino da socieda-de, votar, ser votado, ter direitos políticos.Os direitos civis e políticos não asseguram ademocracia sem os direitos sociais, aquelesque garantem a participação do indivíduona riqueza coletiva: o direito à educação,ao trabalho, ao salário justo, à saúde, a umavelhice tranqüila. Exercer a cidadania plenaé ter direitos civis, políticos e sociais. (... )

Cidadania não é uma definição estan-que, mas um conceito histórico, o que sig-

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nifica que seu sentido varia no tempo e noespaço. É muito diferente ser cidadão naAlemanha, nos Estados Unidos ou no Bra-sil (para não falar dos países em que a pa-lavra é tabu), não apenas pelas regras quedefinem quem é ou não titular da cidadania(por direito territorial ou de sangue), mastambém pelos direitos e deveres distintosque caracterizam o cidadão em cada umdos Estados-nacionais contemporâneos.Mesmo dentro de cada Estado-nacional oconceito e a prática da cidadania vêm se al-terando ao longo dos últimos duzentos outrezentos anos. Isso ocorre tanto em relaçãoa uma abertura maior ou menor do esta-tuto de cidadão para sua população (porexemplo, pela maior ou menor incorpora-ção dos imigrantes à cidadania), ao grau departicipação política de diferentes grupos (ovoto da mulher, do analfabeto), quanto aosdireitos sociais, à proteção social oferecidapelos Estados aos que dela necessitam.

A aceleração do tempo histórico nos úl-timos séculos e a conseqüente rapidez dasmudanças fazem com que aquilo que nummomento podia ser considerado subversãoperigosa da ordem, no seguinte seja algocorriqueiro, "natural" (de fato, não é nadanatural, é perfeitamente social). Não há de-mocracia ocidental em que a mulher nãotenha, hoje, direito ao voto, mas isso já foiconsiderado absurdo, até muito pouco tem-po atrás, mesmo em países tão desenvolvi-dos da Europa como a Suíça. Esse mesmodireito ao voto já esteve vinculado à pro-priedade de bens, à titularidade de cargosou funções, ao fato de se pertencer ou nãoa determinada etnia etc. Ainda há paísesem que os candidatos a presidente devempertencer a determinada religião (CarlosMenem se converteu ao catolicismo parapoder governar a Argentina), outros emque nem filho de imigrante tem direito avoto e por aí afora. A idéia de que o poderpúblico deve garantir um mínimo de renda

a todos os cidadãos e o acesso a bens cole-tivos como saúde, educação e previdênciadeixa ainda muita gente arrepiada, pois seconfunde facilmente o simples assistencia-lismo com dever de Estado.

Não se pode, portanto, imaginar umaseqüência única, determinista e necessáriapara a evolução da cidadania em todos ospaíses (a grande nação alemã não instituiuo trabalho escravo, a partir de segregaçãoracial do Estado, em pleno século XX, naEuropa?). Isso não nos permite, contudo,dizer que inexiste um processo de evoluçãoque marcha da ausência de direitos parasua ampliação, ao longo da história.

A cidadania instaura-se a partir dos pro-cessos de lutas que culminaram na Decla-ração dos Direitos Humanos, dos EstadosUnidos da América do Norte, e na Revo-lução Francesa. Esses dois eventos rompe-ram o princípio de legitimidade que vigiaaté então, baseado nos deveres dos súditos,e passaram a estruturá-lo a partir dos direi-tos do cidadão. Desse momento em diantetodos os tipos de luta foram travados paraque se ampliasse o conceito e a prática decidadania e o mundo ocidental os estendes-se para mulheres, crianças, minorias nacio-nais, étnicas, sexuais, etárias. Nesse sentidopode-se afirmar que, na sua acepção maisampla, cidadania é a expressão concreta doexercício da democracia.

Jaime Pinsky, "Introdução", in Jaime Pinsky eCarla B. Pinsky (orgs.), História da cidadania. São Pau-lo, Contexto, 2003, p. 9 e 10.

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Atividades

Questões gerais

1• De que forma o aparecimento da es-crita, da moeda, da lei escrita e o nasci-mento da pólis contribuíram para a su-peração do mundo mítico? Que papel ofilósofodesempenha nesse processo?

2. "Com a prática do atletismo, eratodo o velho ideal homérico do 'valor',da emulação, da façanha, que passavados Cavalheiros ao Demos. A adoçãode um modo de vida civil e não maismilitar havia, com efeito, transposto ereduzido este ideal heróico tão-só aomero plano da competição esportiva."Com base nessa citação do historiadorda educação Henri-Irénée Marrou, res-ponda às questões seguintes:

a) Com a expressão "passar dosCavalheiros ao Demos", Marrou querindicar a mudança de uma educaçãoaristocrática para outra mais democrá-tica. Explique o que caracteriza uma eoutra.

b) O termo valor aí referido é tradu-ção do conceito de virtude. Expliqueque alterações sofreu o significadodesseconceito devido à mudança social ocor-rida naquele período.

3. Com base nq dropes 5, discuta aquestão da cidadania na Grécia antiga.Compare o cidadão de Atenas com oconceito atual de cidadania, apontandoas semelhanças e as diferenças.

4. Explique a afirmação do sofistaPro-tágoras: "O homem é a medida de todasas coisas", situando-a no mundo grego.Estabeleça também comparações como período heróico.

5. Considerando o fato de que Sócra-tes acusava os sofistas de mercenáriospor cobrarem por suas aulas, discuta asquestões:

a) Sobre a remuneração dos profes-sores (aprofissionalização, a negação dooficio como "sacerdócio" etc.).

b) O trabalho intelectual também édesvalorizado quando livros são objetode reprografia sem recolhimento de di-reitos autorais; o mesmo pode ser ditosobre a pirataria de músicas.

6. "Eu sou semelhante ao torpedo[peixe-elétrico], quando aturdido, pos-so produzir nos outros o mesmo atur-dimento, pois não se trata de que euesteja certo e semeie dúvidas na cabeçaalheia, mas de que, por estar eu mesmomais cheio de dúvidas do que qualquerpessoa, faço duvidar também os ou-tros." Com base na citação, que se refe-re a uma fala de Sócrates no diálogo dePlatão, Ménon, responda às questões:

a) Em que consiste o método socrá-tico?

b) Em que medida a afirmação deSócrates ainda hoje pode ter valor paraa educação?

7. "Os sofistas tinham comparado acultura ao cultivo da terra, comparaçãoque Platão recolhe. Quem se interessarpela verdadeira semente e a quiser vertransformada em fruto não plantará umjardinzinho de Adônis nem se alegraráao ver nascer ao cabo de oito dias o quesemeou; achará prazer, sim, na arte daverdadeira agricultura e alegrar-se-áao ver a sua semente dar fruto ao fimde oito meses de trabalho constante eesforçado. É à formação dialética doespírito que Platão aplica a imagem daplantação e da sementeira. Quem se

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interessar pela verdadeira cultura doespírito não se contentará com os escas-sos frutos temporãos cultivados comodesfastio no horto retórico, mas terá anecessária paciência para deixar ama-durecer os frutos da autêntica culturafilosóficado espírito. (... ) [Mas] para amassa da gente "culta" era a retórica ocaminho mais largo e mais cômodo." Apartir da citação de Werner Jaeger, res-ponda às questões:

a) Situe os termos da polêmica entrePlatão e Isócrates.

b) Embora Platão não negue a im-portância da retórica, por que a consi-dera secundária?

c) Por que Jaeger usa a palavra cultaentre aspas?

d) Analisando o discurso dos políti-cos de hoje, de que forma a mesma dis-cussão poderia ser recolocada?

Questões sobre as leiturascor,npler,nentares

Sobre a leitura complementar dePlatão, responda às questões a seguir.

1. O trecho transcrito começa referin-do-se ao mito da caverna: explique-oem linhas gerais.

2. Por que, ao retornar à obscuridade,a vista se perturba? Explique essa ale-goria do ponto de vista do processo doconhecimento.

3. Estenda a resposta à questão ante-rior, a fim de justificar a tarefa do edu-cador, segundo Platão. Posicione-sepes-soalmente a esse respeito.

Responda às seguintes questõescom base na leitura complementar deAristóteles.

4. Identifique no texto as característi-cas de um pensador que vive em umasociedade escravagista.

5. A palavra lazer poderia ser substituí-da por ócio. Explique o fato de a palavragrega para escola, scholé, significar, ini-cialmente, ócio.

Responda às questões a seguir combase na leitura complementar deJaimePinsky.

6. Quais são as diferenças - de ummodo genérico, a partir da idéia de re-presentação - entre o conceito de cida-dania na Grécia antiga e atualmente?

7. Qual é a diferença entre o conceitode legitimidade do poder depois das re-voluções burguesas (como a RevoluçãoFrancesa) e o conceito anterior, duranteo Antigo Regime?

8. Explique, com conceitos e exemplos,o que entende por uma democracia ple-na, que inclua universalidade, partici-pação e direitos sociais.

9. Debata sobre a fragilidade da demo-cracia: ao mesmo tempo que pode am-pliar os direitos, está sempre ameaçadapelo cerceamento deles. Explique e dêexemplos.

10. O Brasilpode ser considerado umademocracia? Justifique, com ênfase naquestão da educação para todos.

-rrtiquidode grega: a poidéio 83

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© MARIA LÚCIA DE ARRUDA ARANHA, 2006

5111ModernaCOORDENAÇÃO EDITORIAL Ltsabeth Bansi e Ademir Garcia Telles

COORDENAÇÃO DEPRODUÇÃOGRÁFICA André Monteiro, Maria de Lourdes Rodrigues

PREPARAÇÃO DE TEXTO Eclna Viana

COORDENAÇÃO DEREVISÃO Estevam Vieira Lédo ]r.

REVISÃO José Alessanclre S. Neto

EDIÇÃO DEARTE Ricardo Postacchini

CAPA EPROJETO GRÁFICO Ricardo Postacchini

COORDENAÇÃO DEPESQUISA ICONOGRÁFICA Ana Lucia Soares

PESQUISA ICONOGRÁFICA Ana Claudia Fernandes

As imagens identificadas com a sígla CID

foram fornecidas pelo Centro de Informação

c Documentação da Editora Moderna.

DIAGRAMAÇÃO Camila Píorenza Crispino

mOROENAÇÃO OE TRATAMENTO OE IMAGENS Américo Jesus

TRATAMENTO DEIMAGENSRubens. Me-Rodrigues

SAíDADEFILMESHelio P. de Souza Filho, Mareio H. Kamoto

COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO INDUSTRIAL Wilson Aparecido Troque

IMPRESSÃO E ACABAMENTO Prol Gráfica

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ICIP)ICâmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Lúcia de Arrudada educação e da pedagogia; e

Brasil / Maria Lúcia de Arruda Aranha. - ed. -rev e amp!. - São Paulo; Moderna 2006.

Bibliografia

1. Educação - História I. Título.

05-8901 CDD-370.9

índices para catálogo sistemático:1. Educação; História 370.9

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