4 o diálogo parmênides e a ontologia socrática
TRANSCRIPT
176
4 O Diaacutelogo Parmecircnides e a Ontologia Socraacutetica
41 Apresentaccedilatildeo do diaacutelogo Parmecircnides
Qualquer introduccedilatildeo suficientemente completa ao diaacutelogo Parmecircnides
precisa abordar ainda que de maneira resumida o tema da autenticidade deste
diaacutelogo Isto porque a maior parte dos diaacutelogos platocircnicos jaacute teve sua autoria
contestada e o Parmecircnides ateacute mesmo pelas particularidades que seu texto
apresenta natildeo foi poupado deste tipo de acusaccedilatildeo No que toca agrave tradiccedilatildeo antiga
de comentaacuterios1 no entanto nenhuma duacutevida parece ter surgido com relaccedilatildeo agrave
autenticidade de nosso diaacutelogo
Aleacutem disso os diversos manuscritos e compilaccedilotildees de obras platocircnicas
vindos da antiguidade apresentam o Parmecircnides como uma obra legiacutetima sem
levantar qualquer suspeita acerca de sua autenticidade Como sabemos a
maior parte dos manuscritos dos diaacutelogos de Platatildeo que possuiacutemos pode ter sua
origem traccedilada com razoaacutevel seguranccedila a uma fonte comum datada dos
primeiros anos da era cristatilde periacuteodo em que o astroacutelogo e filoacutesofo egiacutepcio
Thrasillus (-36 DC) organizou uma ediccedilatildeo de todos os diaacutelogos considerados
por ele como autecircnticos De acordo com Dioacutegens Laeacutercio (III 56-61) Thrasillus
dividiu os diaacutelogos em tetralogias e na listagem reproduzida por Dioacutegenes
podemos encontrar o Parmecircnides encabeccedilando a terceira tetralogia seguido por
Fileacutebo Banquete e Feacutedro Sendo assim podemos considerar que o Parmecircnides
era tido como uma obra autecircntica pelo menos desde o primeiro seacuteculo depois de
1 O Parmecircnides ainda na antiguidade adquire um lugar de destaque no conjunto da obra
platocircnica e eacute minuciosamente interpretado por vaacuterios comentadores da tradiccedilatildeo antiga dentre os
quais Proacuteclo (412-485 DC) cujo comentaacuterio ao Parmecircnides chegou ateacute noacutes e no qual uma vasta
tradiccedilatildeo de comentadores anteriores eacute constantemente citada sem nunca pocircr em questatildeo a
legitimidade deste diaacutelogo
177
cristo
Eacute bem verdade contudo que Dioacutegenes apresenta uma segunda listagem de
obras platocircnicas mais antiga na qual os diaacutelogos estatildeo organizados em trilogias e
na qual o Parmecircnides natildeo aparece No entanto podemos ter como certo que estas
trilogias atribuidas agrave Aristoacutefanes de Bizacircncio natildeo pretendiam abarcar toda a obra
platocircnica o que fica claro a partir da afirmaccedilatildeo final de Dioacutegenes de que ldquoas
outras obras natildeo eram organizadas em grupo mas individualmenterdquo
(ta d a)lla kaq e(n kai a)taktwj) O fato de que o Parmecircnides figurava entre
estas ldquooutras obrasrdquo eacute assegurado pela discussatildeo subsequente na qual Dioacutegenes
aborda o problema da autecircnticidade dos diaacutelogos platocircnicos e natildeo cita nosso
diaacutelogo entre aqueles ldquodeclarados espuacuterios por consentimento geralrdquo Aleacutem disso
sabemos que Dioacutegenes considerava o Parmecircnides um diaacutelogo autecircntico pelo uso
que ele faz deste diaacutelogo na sua descriccedilatildeo das vidas de Parmecircnides e Zenatildeo (IX
23-25) Portanto uma vez que Dioacutegenes estaacute de posse da listagem de Aristoacutefanes
de Bizacircncio e natildeo cita o Parmecircnides como uma obra de autenticidade discutida
podemos estender o reconhecimento da legitimidade de nosso diaacutelogo ateacute meados
dos segundo seacuteculo antes de cristo eacutepoca em que Aristoacutefanes realizou sua
compilaccedilatildeo dos diaacutelogos
A tradiccedilatildeo de comentadores modernos contudo duvidou muitas vezes da
autenticidade do Parmecircnides sobretudo por meio da alegaccedilatildeo de que o conteuacutedo
deste diaacutelogo natildeo estaria de acordo com o sentido geral da filosofia platocircnica2
Conforme nos reporta Waddell Socher declara a obra como inautecircntica sob a
alegaccedilatildeo de que no Parmecircnides um assunto eminentemente platocircnico eacute tratado
com ldquoum violento espiacuterito destrutivordquo (Waddell 1894 pxiii) Waddell considera
este tipo de objeccedilatildeo plenamente plausiacutevel e dedica vaacuterias paacuteginas de sua
introduccedilatildeo para demonstrar como o modo de argumentaccedilatildeo do Parmecircnides natildeo
2 De acordo com a narrativa oferecida por Lutoslawski (Lutoslawski 1897 p38 53-55) o
primeiro autor a duvidar da legitimidade do Parmecircnides foi Socher em sua obra Ueber Platons Schriften (1820) na qual contesta ainda a autoria dos diaacutelogos Sofista e Poliacutetico Ueberweg (1861) tambeacutem suspeita da autenticidade do Parmecircnides e atribui a sua composiccedilatildeo a um disciacutepulo da Academia Schaarschmidt (1866) por fim considera natildeo soacute o Parmecircnides como a maior parte dos diaacutelogos que possuimos inautecircnticos aceitando como legiacutetimos apenas nove dos trinta e seis diaacutelogos que nos chegaram Como podemos ver a questatildeo da autoria dos diaacutelogos havia se tornado um ponto de intenso debate entre os comentadores alematildees do seacuteculo XIX Um dos motivos para o surgimento deste tipo de discussatildeo encontra-se no fato de que este autores estavam interessados em construir um quadro geral do pensamento de Platatildeo portanto apelavam para a inautenticidade de uma obra sempre que ela natildeo se encaixava em seus esquemas interpretativos
178
pode ser considerado mais ldquodestrutivordquo do que aquele encontrado em outras
passagens do corpus nas quais temas ldquotipicamente platocircnicosrdquo tambeacutem satildeo alvo
de duras investidas por exemplo os ataques do Teeteto agrave possibilidade do
conhecimento e a criacutetica aos amantes das ideias no Sofista (Waddell 1894 pxiii-
xvi)
Parece muito claro no entanto que o tipo de argumento apresentado por
Socher estaacute necessariamente fadado a uma peticcedilatildeo de princiacutepio como jaacute foi
assinalado com relaccedilatildeo ao fato de Schleiermacher considerar possiacutevel distinguir
obras autecircnticas e espuacuterias com base na doutrina por elas apresentada Este tipo de
argumento pressupotildee que o comentador possua um acesso privilegiado ao
conteuacutedo doutrinal dos diaacutelogos de tal modo que de posse deste conhecimento
esteja na posiccedilatildeo de julgar quais diaacutelogos estatildeo de acordo ou natildeo com este
conteuacutedo Eacute oacutebvio no entanto que o acesso ao conteuacutedo doutrinal dos diaacutelogos soacute
pode advir de uma escolha preacutevia de quais diaacutelogos apresentam este conteuacutedo
Sendo assim o comentador que advoga esta linha de raciociacutenio estaacute claramente
retido em um ciacuterculo vicioso pois a doutrina dos diaacutelogos que ele considera
legiacutetimos deriva diretamente da sua escolha de quais diaacutelogos satildeo legiacutetimos ou
natildeo Sendo assim natildeo temos razatildeo para considerar argumentos de caraacuteter
doutrinaacuterio na discussatildeo acerca da autenticidade do Parmecircnides Simplesmente
natildeo temos acesso direto ao que seria a verdadeira filosofia platocircnica de modo a
podermos julgar o grau de adequaccedilatildeo do Parmecircnides a esta filosofia
Com relaccedilatildeo ao texto do Parmecircnides contudo eacute possiacutevel considerar se a
forma na qual ele eacute escrito se assemelha ou natildeo ao que encontramos em outros
diaacutelogos Neste sentido Waddell que escreve antes da aceitaccedilatildeo geral do meacutetodo
estilomeacutetrico faz algumas observaccedilotildees que me limito a reproduzir
ldquoNovamente ele [o Parmecircnides] estaacute escrito em estilo platocircnico pelo que noacutes queremos dizer vaacuterias coisas Ele eacute natildeo somente um diaacutelogo () mas o tipo de diaacutelogo e os personagens satildeo platocircnicos Ele comeccedila de uma maneira dramaticamente viacutevida o que pode ser posto em paralelo a vaacuterias obras platocircnicas entatildeo quando o proacuteprio tema eacute introduzido os personagens dramaacuteticos tornam-se subordinados e deixam de ser uma parte essencial da composiccedilatildeo O mesmo ocorre na Repuacuteblica quando as preliminares estatildeo resolvidas e a obra construtiva comeccedila qual importacircncia tecircm as perguntas de Glauco e Adimanto Eles simplesmente confirmam Soacutecrates dando a ele a oportunidade para reiniciar o argumento salvando a obra de ser um mero tratado e fornecendo ao orador principal uma anapaula Este eacute o mesmo serviccedilo prestado por Aristoacuteteles no Parmecircnides Mesmo a artificialidade da narrativa pode ser
179
considerada um argumento a seu favor Um imitador dificilmente estaria disposto a fazer de sua obra um relato de um relato de um relatordquo (Waddell 1894 pxvii)
Temos ainda como um argumento a favor da autenticidade de nosso
diaacutelogo o fato de que encontramos em diversas obras do corpus platocircnico
referecircncias bastante claras tanto ao conteuacutedo filosoacutefico discutido no Parmecircnides
quanto agrave cena dramaacutetica nele descrita A apresentaccedilatildeo destas passagens ao lado de
passagens do proacuteprio Parmecircnides deve ser suficiente para deixar claro ao leitor o
grau de intertextualidade existente Assim com relaccedilatildeo primeiro destes dois tipos
de referecircncias encontramos as seguintes passagens no corpus em que haacute clara
alusatildeo a assuntos tratados no Parmecircnides Fileb14c-15 cf Parm129 c-d 131a e
ainda Fed102b cf Parm130e Com relaccedilatildeo ao segundo tipo de referecircncia
encontramos passagens de outros diaacutelogos em que a conversa narrada no
Parmecircnides eacute explicitamente evocada por Soacutecrates Teet183 cf Parm127b e
Sofist217c(237a) cf Parm 1373
Por fim eacute preciso observar que o Parmecircnides foi objeto de intensa anaacutelise
estilomeacutetrica pois a especificidade de seu vocabulaacuterio sempre se mostrou um
desafio para o estabelecimento de sua posiccedilatildeo no interior da seacuterie de diaacutelogos Os
resultados destas anaacutelises estiliacutesticas na grande maioria da vezes indicaram a
autenticidade de nosso diaacutelogo como podemos constatar pelas compilaccedilotildees
desenvolvidas por Lutoslawski (1897) e Brandwood (1990)
No entanto nossa apresentaccedilatildeo ficaria incompleta caso natildeo citaacutessemos os
argumentos desenvolvidos por Ritter com o objetivo de questionar a autenticidade
do Parmecircnides Em sua obra Untersuchungen uumlber Platon (1888) Ritter se
propotildee a verificar a autenticidade de certos diaacutelogos ldquoduvidososrdquo por meio de
uma anaacutelise estiliacutestica destas obras A metodologia adotada por Ritter eacute certamente
questionaacutevel Pois segundo ele ldquoqualquer obra suspeita que apresente uma
3 Deixo ao leitor o julgamento acerca do grau de paralelismo existente entre esta passagens
Anteriormente argumentei contra o uso deste tipo de referecircncia textual entre os diaacutelogos como forma de estabelecer relaccedilotildees cronoloacutegicas de composiccedilatildeo pois conforme dito na ocasiatildeo o fato do Teeteto fazer menccedilatildeo ao Parmecircnides natildeo implica necessariamente que Platatildeo tenha escrito o Teeteto antes Platatildeo pode muito bem ter mencionado uma cena dramaacutetica sobre a qual ainda intencionava escrever A existecircncia deste tipo de menccedilatildeo me parece poder seu usado contudo para sustentar a autenticidade de uma obra em relaccedilatildeo a outra Claro que natildeo estamos falando de uma prova definitiva de autenticidade pois um falsaacuterio poderia estar citando obras conhecidas de Platatildeo No entanto como vimos a intertextualidade e a referecircncia entre diaacutelogos eacute uma propriedade essencial da obra platocircnica e portanto um diaacutelogo tatildeo inserido em relaccedilotildees intertextuais como o Parmecircnides compartilha segundo meu ponto de vista de uma das caracteriacutesticas principais da obra platocircnica
180
surpreendente mistura de expressotildees caracteriacutesticas de diferentes periacuteodos
[estiliacutesticos] deve ser imediatamente declarada espuacuteriardquo (cf Brandwood 1990
p83) Ora tal afirmaccedilatildeo reflete uma confianccedila claramente exacerbada acerca das
capacidades do meacutetodo estilomeacutetrico Afinal para podermos declarar tatildeo
prontamente a inautenticidade de uma obra segundo este criteacuterio devemos
acreditar que Platatildeo natildeo sofreu mudanccedilas gradativas de estilo mas tornou-se
praticamente um novo autor a cada mudanccedila de fase No entanto apesar de
nenhum dos pontos apresentados por Ritter poder ser usado como prova absoluta
para inautenticidade a soma destes elementos poderia a princiacutepio fortalecer
argumentos de outra natureza aumentando assim o grau de suspeita com relaccedilatildeo
agrave autoria de algum diaacutelogo Com relaccedilatildeo ao Parmecircnides Ritter apresenta a
seguinte lista de elementos desviantes
1) No Parmecircnides a distribuiccedilatildeo de palavras usadas para introduzir
discursos diretos eacute diferente daquela que encontramos nos outros
diaacutelogos Para a terceira pessoa do verbo φηmicroί por exemplo
temos no Parmecircnides a seguinte relaccedilatildeo 19 ἔφη 2 εἶπε 0 ἦ δ
ὅς Nos outros diaacutelogos temos apenas um caso de εἶπε (RepVII) e
encontramos em meacutedia 1 ἦ δ ὅς para cada 5 ἔφη
2) O Parmecircnides emprega apenas nomes no caso vocativo como
forma de dirigir a palavra a algueacutem enquanto os outros diaacutelogos
usam foacutermulas como ὦ ἄριστε ὦ ἑταῖρε e ὦ φίλε com frequecircncia
(Men 47 Teet 50 Feacutedr 37 Craacutet33 poreacutem Fileacuteb 7)
3) A mudanccedila de orador eacute mais frequente no Parmecircnides do que em
qualquer outra obra a meacutedia do Parmecircnides eacute de 9 a 10 mudanccedilas
de orador por paacutegina enquanto que a maior frequecircncia em outras
obras estaacute no Sofista com apenas 4 por paacutegina
4) Duas foacutermulas de resposta satildeo usadas mais no Parmecircnides do que
em qualquer outra obra ἀδύνατον e ἀνάγκη
5) οὐδὲ microὴν como jaacute havia sido notado por Dittenberger ocorre mais
no Parmecircnides do que em qualquer outra obra
6) Finalmente πῶς δ οὔ aparece de forma preponderante em relaccedilatildeo
a πῶς γὰρ οὐ (216) enquanto nas outras obras esta relaccedilatildeo nunca
eacute tatildeo diacutespare sendo o Poliacutetico (148) o diaacutelogo com a proporccedilatildeo
181
mais proacutexima agravequela do Parmecircnides
(Brandwood 1990 p86)
Estas idiossincrasias de estilo contudo podem ser compreendidas caso
tenhamos em mente que o Parmecircnides possui longas falas de personagens que natildeo
aparecem em nenhum outro diaacutelogo platocircnico Eacute portanto natural que a
linguagem deste diaacutelogo desvie do restante da obra platocircnica Sendo assim o natildeo
uso de expressotildees vocativas como ὦ ἄριστε por exemplo pode muito bem ser
uma decisatildeo plenamente consciente de Platatildeo Assim considerada a ausecircncia
destas expressotildees no Parmecircnides denota apenas o caraacuteter direto da argumentaccedilatildeo
desenvolvida pelos personagens Parmecircnides e Zenatildeo4 Da mesma maneira a
mudanccedila constante de orador deve-se claramente ao estilo e extensatildeo da
argumentaccedilatildeo desenvolvida na segunda parte do diaacutelogo na qual cada pequeno
passo no desenvolvimento loacutegico dos argumentos eacute confirmado pelo interlocutor
O mesmo vale com relaccedilatildeo ao uso constante das expressotildees ἀδύνατον e ἀνάγκη
que demonstram apenas o reconhecimento por parte dos interlocutores da
necessidade loacutegica inerente aos argumentos desenvolvidos no diaacutelogo Por fim
como observa Brandwood eacute preciso notar que o caraacuteter geral do Parmecircnides eacute tatildeo
proacuteprio e diverge tanto daquilo que encontramos em outros diaacutelogos que a
admissatildeo de sua autenticidade prejudicaria o argumento de Ritter com relaccedilatildeo agrave
inautenticidade de outras obras uma vez que tal argumentaccedilatildeo funda-se
exclusivamente em uma anaacutelise estiliacutestica (cf Brandwood 1990 p86)
Portanto sobre a questatildeo da autenticidade de nossa obra podemos
apresentar os seguintes resultados
1) O Parmecircnides eacute tido como autecircntico por Thrasillus (36 DC) e
muito provavelmente tambeacutem por Aristoacutefanes de Bizacircncio (180
AC) aleacutem de nenhum comentador antigo jamais ter levantado
duacutevidas sobre sua autenticidade
2) Temos fortes razotildees para acreditar que Platatildeo refere-se ao
Parmecircnides em diversas outras obras e por assim dizer nosso
diaacutelogo possui um papel de destaque na intertextualidade platocircnica
4 Aleacutem disso a ausecircncia de expressotildees como ὦ ἄριστε e ὦ ἑταῖρε eacute apenas um dos resultados da
teacutecnica de evitar hiatos adotada por Platatildeo durante a uacuteltima fase de sua carreira literaacuteria Afinal ambas expressotildees possuem hiatos e podem ser facilmente substituiacutedas
182
3) A imensa maioria das anaacutelises estilomeacutetricas apresenta o
Parmecircnides como um diaacutelogo legiacutetimo Aleacutem disso a
argumentaccedilatildeo de Ritter uacutenico autor a desenvolver argumentos
estiliacutesticos contra a autenticidade de nosso diaacutelogo estaacute claramente
sujeita a criacuteticas de ordem metodoloacutegica e pelo menos a metade
de sua lista de caracteriacutesticas estiliacutesticas desviantes do Parmecircnides
(pontos 2 3 e 4) pode ser facilmente compreendida como o
resultado direto do tipo de argumentaccedilatildeo apresentada no diaacutelogo
183
411 A Posiccedilatildeo do Parmecircnides no interior da obra de Platatildeo
Tendo apresentado nossas consideraccedilotildees acerca da autenticidade do
Parmecircnides passamos agora ao natildeo menos conturbado assunto do
posicionamento desta obra no interior da seacuterie de diaacutelogos platocircnicos Como
vimos os comentadores do inicio do seacuteculo XIX natildeo estavam de posse de um
criteacuterio objetivo para a ordenaccedilatildeo dos diaacutelogos contavam apenas com os criteacuterios
bastante duvidosos de referecircncia intertextual e menccedilatildeo a fatos histoacutericos
conhecidos Sendo assim as ordenaccedilotildees de diaacutelogos oferecidas por estes
comentadores fundavam-se basicamente naquilo que cada um considerava ser o
conteuacutedo da filosofia platocircnica o que os levava a resultados bastante inusitados
Deste modo a despeito disto parecer impensaacutevel para um leitor moderno
o Parmecircnides foi considerado pela maior parte dos helenistas alematildees do seacuteculo
XIX um dos primeiros diaacutelogos de Platatildeo Schleiermacher por exemplo
considera o Parmecircnides uma das primeiras obras e encontra em nosso diaacutelogo tal
como encontra no Feacutedro e no Protaacutegoras uma ldquomaneira jovial de expressatildeordquo
(Schleiermacher 1836 p115) Esta afirmaccedilatildeo de Schleiermacher eacute
posteriormente reafirmada por Hermann (1839) que ainda aponta na bibliografia
de Platatildeo uma justificativa para a identificaccedilatildeo do Parmecircnides como uma obra da
juventude Com base no testemunho de um certo Hermoacutegenes (cf Dioacutegenes
Laeacutercio II 106 III 6) segundo o qual Platatildeo teria fugido para Meacutegara logo apoacutes
a morte de Soacutecrates Hermann atribui a composiccedilatildeo do Parmecircnides ao momento
em que Platatildeo tendo por volta de vinte anos estaria entrando em contato com
pensadores de fora do circuito ateniense e socraacutetico De acordo com Hermann a
presenccedila de Parmecircnides e Zenatildeo no diaacutelogo evidencia a influecircncia megaacuterica sob a
qual o diaacutelogo teria sido escrito
A identificaccedilatildeo do Parmecircnides como uma das primeiras obras de Platatildeo
permanece prevalecente entre os classicistas alematildees ateacute Ueberweg (1861)
Ueberweg eacute o primeiro autor a questionar a veracidade do depoimento acerca da
fuga de Platatildeo para Meacutegara desfazendo assim a crenccedila no periacuteodo megaacuterico de
Platatildeo Contudo Ueberweg atribui uma data tatildeo tardia para a composiccedilatildeo do
Parmecircnides que eacute levado a crer que nosso diaacutelogo eacute uma obra espuacuteria escrita por
184
algum membro da academia apoacutes a morte de Platatildeo Com o fim do mito do
periacuteodo megaacuterico de Platatildeo passamos a encontrar as propostas mais discrepantes
acerca do posicionamento do Parmecircnides e no extremo oposto da posiccedilatildeo de
Schleiermacher Zeller (1883) identifica o Parmecircnides como o diaacutelogo (natildeo-
escrito) Filosoacutefo colocando-o no fim da trilogia iniciada por Sofista e Poliacutetico no
fim da carreira literaacuteria de Platatildeo5
Com o aparecimento do meacutetodo estilomeacutetrico o Parmecircnides deixa de
figurar nos extremos das cronologias de composiccedilatildeo dos diaacutelogos e passa a ocupar
uma posiccedilatildeo intermediaacuteria que vai em pouco tempo se tornar bastante
consolidada Para sermos precisos o primeiro dos estudos estilomeacutetricos aquele
de Campbell (1867) coloca o Parmecircnides estranhamente como um dos primeiros
diaacutelogos proacuteximo a obras como Ecircutifron Apologia e Ion No entanto esta
posiccedilatildeo eacute tatildeo discrepante das expectativas gerais acerca do Parmecircnides que o
proacuteprio Campbell recusa-se a aceitaacute-la e atribui este resultado a ldquocircunstacircncias
excepcionaisrdquo sem especificar quais satildeo estas circunstacircncias (Campbell 1867
pxxxiii)
A partir do refinamento dos criteacuterios de anaacutelise estiliacutestica operado por
Dittenberger (1896) o Parmecircnides passa a ser colocado entre os uacuteltimos diaacutelogos
ocupando especialmente a posiccedilatildeo de primeiro diaacutelogo da uacuteltima fase estiliacutestica de
Platatildeo Tal posicionamento para o Parmecircnides eacute subsequentemente consolidado
pelos criteacuterios de Ritter von Arnim e Baron (cf Brandwood 1990 p251) De
fato Campbell trinta anos depois de sua primeira publicaccedilatildeo sobre o assunto
lanccedila um artigo especificamente sobre o estilo do Parmecircnides no qual apresenta
novos resultados e conclui que nosso diaacutelogo eacute certamente posterior a obras
como Repuacuteblica e Feacutedro De modo geral o trabalho de Campbell sobre o
vocabulaacuterio do Parmecircnides tambeacutem corrobora a posiccedilatildeo de Dittenberger
identificando nosso diaacutelogo ao lado do Teeteto como obras diretamente
anteriores ao Sofista e ao Poliacutetico (Campbell 1896 p129-136) Todos estes
resultados satildeo ainda reforccedilados pelas circunstacircncias jaacute notadas por Ueberweg de
que o Parmecircnides possui muito pouca accedilatildeo dramaacutetica quando comparado a
diaacutelogos como Repuacuteblica e Banquete possui trechos de discurso direto inseridos
5 Para um resumo das posiccedilotildees dos comentadores alematildees do seacuteculo XIX acerca da cronologia
de composiccedilatildeo das obras de Platatildeo (cf Lutoslawski 1897 p35-63)
185
em meio a um longo discurso indireto6 e sobretudo natildeo apresenta Soacutecrates como
orador principal trecircs caracteriacutesticas proacuteprias dos diaacutelogos da uacuteltima fase
Finalmente resta observar que mesmo natildeo sendo possiacutevel determinar a
posiccedilatildeo exata de um diaacutelogo no interior de cada fase estiliacutestica podemos dizer que
o Parmecircnides possui um estilo claramente transicional possuindo um vocabulaacuterio
relativo agrave apresentaccedilatildeo claacutessica da Teoria das Ideias tal como exposta nos
diaacutelogos da fase meacutedia e ao mesmo tempo inovaccedilotildees de estilo caracteriacutesticas dos
diaacutelogos da uacuteltima fase Some-se a isso o fato de que o conteuacutedo do Parmecircnides
parece ilustrar exatamente esta dualidade apresentando uma primeira parte
voltada para questotildees relativas agrave formulaccedilatildeo claacutessica da Teoria das Ideias poreacutem
com um caraacuteter criacutetico e uma segunda parte na qual o personagem Soacutecrates
praticamente desaparece e um estilo completamente novo de argumentaccedilatildeo eacute
apresentado
Em funccedilatildeo desta soma de fatores a partir da virada do seacuteculo XX nosso
diaacutelogo passa a figurar em uma posiccedilatildeo intermediaacuteria entre a segunda e terceira
fase da obra de Platatildeo de maneira virtualmente inquestionaacutevel Esta hipoacutetese
permanece tatildeo consolidada entre os comentadores contemporacircneos que mesmo
com a imensa diversidade de interpretaccedilotildees apresentadas para nosso diaacutelogo
simplesmente desconheccedilo qualquer publicaccedilatildeo lanccedilada nos uacuteltimos cem anos em
que este posicionamento para o Parmecircnides no interior da obra de Platatildeo seja
questionado
6 Este aspecto formal eacute particularmente visiacutevel na segunda parte do Parmecircnides onde um uacutenico
φάναι inicial (137c4) antecede vaacuterias paacuteginas de discurso em forma direta
186
412 O Proacutelogo do Parmecircnides
O Parmecircnides descreve um diaacutelogo travado entre Soacutecrates ainda bastante
jovem Zenatildeo Parmecircnides e Aristoacuteteles natildeo o filoacutesofo mas um jovem que viria a
se tornar um dos trinta tiranos A conversa que nos chega natildeo eacute narrada por um
dos presentes no encontro mas por Ceacutefalo que o tinha ouvido de Antifonte meio
irmatildeo de Platatildeo que havia ouvido e memorizado a conversa a partir do relato de
Pitodoro Pitodoro por sua vez havia ouvido a conversa por ser companheiro de
Zenatildeo e ter abrigado os visitantes durante sua estada em Atenas (AlcibI 119a)
Apesar de natildeo ser o uacutenico diaacutelogo a apresentar este tipo de encadeamento
narrativo7 o Parmecircnides eacute o diaacutelogo no qual o relato que nos eacute oferecido estaacute
mais distante da conversa original tanto no tempo quanto no nuacutemero de ldquoelosrdquo da
cadeia narrativa Afinal aquele que lecirc o Parmecircnides (e portanto ldquoouverdquo a
narrativa de Ceacutefalo) encontra-se no quarto estaacutegio de uma cadeia de transmissatildeo
do conteuacutedo de uma conversa que teria acontecido haacute pelo menos cinquenta anos
antes do momento dramaacutetico em que Ceacutefalo oferece seu relato8 A estrutura
narrativa descrita no proacutelogo do Parmecircnides pode ser representada pela seguinte
figura
[ZENAtildeO PARMEcircNIDES SOacuteCRATES ARISTOacuteTELES]
[PITODORO ANTIFONTE]
[ANTIFONTE CEacuteFALO]
[CEacuteFALO LEITOR]
7 O Feacutedon o Banquete e o Teeteto tambeacutem satildeo narrados por pessoas que natildeo presenciaram os
acontecimentos descritos 8 A data dramaacutetica para a realizaccedilatildeo do suposto encontro entre Parmecircnides Soacutecrates e Zenatildeo eacute
estabelecida pela menccedilatildeo agraves Grande Panateneacuteias festivais realizados de quatro em quatro anos em honra a Atenaacute Segundo o diaacutelogo Parmecircnides e Zenatildeo estariam em visita a Atenas com o objetivo de participar deste festival De acordo com as informaccedilotildees que nos satildeo fornecidas acerca da idade dos personagens do diaacutelogo (127b-c Parmecircnides teria por volta de sessenta e cinco anos Zenatildeo estaria proacuteximo dos quarenta e Soacutecrates era ainda bastante jovem) podemos estabelecer o festival do ano de 449450 AC como a data base para o encontro narrado Como Ceacutefalo natildeo busca o proacuteprio Soacutecrates para ouvir o relato deste encontro podemos deduzir ainda que no momento da chegada de Ceacutefalo e sua comitiva em Atenas Soacutecrates jaacute havia sido executado fato ocorrido em 399 AC Sendo assim ao menos cinquenta anos separam o relato de Antifonte do momento do encontro inicial Natildeo temos razatildeo para acreditar que o relato de Ceacutefalo esteja ocorrendo muito depois desta data mas as indicaccedilotildees satildeo precisas o suficiente para deixar claro ao leitor a consideraacutevel distacircncia entre a narrativa que nos chega e a conversa original
187
Deste modo o Parmecircnides relata uma conversa travada entre Zenatildeo
Parmecircnides Soacutecrates e Aristoacuteteles que foi narrada por Pitodoro a Antifonte que
narrou a Ceacutefalo que por sua vez narra ao leitor Este fato nos eacute lembrado em
pelo menos duas passagens do texto nas quais a cadeia de transmissatildeo eacute
explicitada (130a e 136e) Aleacutem disso esta estrutura nunca desaparece plenamente
de vista para o leitor do texto grego pois todo o diaacutelogo eacute em forma de discurso
indireto com discursos diretos inseridos Eacute claro portanto que tamanha
complexidade de estrutura narrativa natildeo pode ser acidental Platatildeo certamente
intencionava passar alguma mensagem por meio da apresentaccedilatildeo de um proacutelogo
tatildeo cuidadosamente construiacutedo e eacute tarefa do inteacuterprete levantar hipoacuteteses acerca
destas intenccedilotildees
Como a maior parte dos comentadores observa a primeira liccedilatildeo que
podemos tirar da estrutura narrativa do Parmecircnides diz respeito agrave ausecircncia total de
veracidade histoacuterica do relato Ao estabelecer uma longa distacircncia temporal entre
a narrativa que nos eacute oferecida e o fato dramaacutetico que nos eacute narrado Platatildeo indica
ao leitor que o conteuacutedo do Parmecircnides eacute plenamente ficcional e que ningueacutem
deve tentar confirmar nenhum dos seus detalhes mesmo que um encontro entre
Parmecircnides e Soacutecrates tenha de fato acontecido coisa que a maior parte dos
comentadores considera improvaacutevel ou mesmo impossiacutevel9
A segunda conclusatildeo que podemos extrair da complexa estrutura narrativa
apresentada no Parmecircnides diz respeito ao efeito dramaacutetico que este tipo de
proacutelogo pretende criar no leitor Nosso diaacutelogo se inicia com a histoacuteria de que
cinquenta anos apoacutes um encontro entre Parmecircnides Zenatildeo e Soacutecrates um grupo
de pessoas ldquobastante interessadas em questotildees de sabedoriardquo (microάλα φιλόσοφοι) eacute
levado a deixar Clazocircmenas para cruzar o mar Egeu em busca de um ateniense
que acreditam ter informaccedilotildees sobre o que teria se passado nesta reuniatildeo Este
ateniense apesar de natildeo haver estado presente no encontro ocorrido antes mesmo
de seu nascimento considerava o conteuacutedo da conversa ali desenrolada tatildeo
importante que decidiu dedicar-se a decoraacute-la durante sua juventude A pessoa de
9 A ausecircncia de pretensatildeo histoacuterica eacute notada por praticamente todos os comentadores recentes
Mansfeld adotando 462461 como data dramaacutetica para o suposto encontro entre Parmecircnides e Soacutecrates acredita ainda que este evento nunca poderia ter acontecido como descrito por Platatildeo pois nesta data Soacutecrates teria apenas oito anos de idade ldquoNem ao menos se espera que os leitores do Parmecircnides acreditem que o encontro tenha realmente ocorridordquo (Mansfeld
188
quem este ateniense ouviu a histoacuteria Pitodoro tampouco participou ativamente da
conversa poreacutem igualmente decorou o conteuacutedo do diaacutelogo e passou adiante10
O proacutelogo do Parmecircnides nos gera assim uma sensaccedilatildeo de curiosidade
acerca do texto que estamos prestes a ter acesso Aleacutem disso a longa lista de
pessoas dedicadas agrave preservaccedilatildeo do conteuacutedo desta conversa assim como a longa
jornada de Ceacutefalo e seus companheiros em busca desta narrativa nos garante a
seriedade e a importacircncia daquilo que nos seraacute revelado Como observa Allen ldquoa
proacutepria introduccedilatildeo do Parmecircnides por si soacute nos proiacutebe tratar o diaacutelogo como um
tipo estranho de piada ou trivializar o diaacutelogo como uma mera ginaacutestica ou um
exerciacutecio de detecccedilatildeo de simples falaacuteciasrdquo (Allen 1997 p71) O proacutelogo do
Parmecircnides adverte o leitor a se preparar desde o iniacutecio para a profundidade e
relevacircncia do conteuacutedo que seraacute apresentado
A caracteriacutestica mais importante da abertura de nosso diaacutelogo no entanto
parece ter passado despercebida para maior parte dos comentadores Trata-se do
fato de que a complexa estrutura narrativa montada no proacutelogo do Parmecircnides
encontra-se refletida na estrutura argumentativa do diaacutelogo Diferente da maior
parte dos diaacutelogos nos quais um mesmo interlocutor expotildee suas teses ou conduz a
refutaccedilatildeo de outro(s) personagem(s) o Parmecircnides eacute constituiacutedo por uma seacuterie de
momentos argumentativos distintos Nosso diaacutelogo comeccedila com a leitura dos
argumentos de Zenatildeo e uma menccedilatildeo aos detratores de Parmecircnides contra quem
estes argumentos satildeo endereccedilados Logo em seguida Soacutecrates aparece em cena e
passa a argumentar contra Zenatildeo Por fim Parmecircnides entra na discussatildeo e passa
a apresentar argumentos contra Soacutecrates Desta maneira temos Parmecircnides
oferecendo criacuteticas agrave Teoria das Ideias de Soacutecrates que havia sido apresentada
como uma refutaccedilatildeo agrave argumentaccedilatildeo de Zenatildeo que por sua vez havia sido
apresentada como uma criacutetica agrave tese pluralista defendida pelos detratores de
Parmecircnides Esta estrutura argumentativa pode ser representada pelo seguinte
1986 p44)
10 Eacute importante notar que no momento em que Ceacutefalo chega agrave Atenas em busca de informaccedilotildees sobre o encontro de Soacutecrates Zenatildeo e Parmecircnides todas as pessoas que estavam presentes neste encontro jaacute estatildeo mortas incluindo o proacuteprio Soacutecrates Portanto para Antifonte e Ceacutefalo assim como para o leitor do diaacutelogo o Parmecircnides narra momentos da vida de figuras de uma geraccedilatildeo passada uma geraccedilatildeo de grande importacircncia para a comunidade filosoacutefica grega cujas conversas e debates merecem ser lembrados e revividos meio seacuteculo apoacutes seu acontecimento O proacutelogo do Parmecircnides presta assim uma homenagem a esta geraccedilatildeo de pensadores jaacute perdida e o fato de Platatildeo fazer com que vaacuterios personagens tenham se dedicado ao ato de memorizar o conteuacutedo de um encontro entre estas pessoas indica ainda o apreccedilo de Platatildeo por estes indiviacuteduos
189
esquema
[ PARMEcircNIDES PLURALISTAS]
[ PLURALISTAS ZENAtildeO]
[ ZENAtildeO SOacuteCRATES]
[SOacuteCRATES PARMEcircNIDES]
Da mesma forma que nossa histoacuteria eacute narrada por uma pessoa que conta o
que lhe foi narrado por outra pessoa que contou o que lhe foi narrado por outra
os argumentos do diaacutelogo satildeo ordenados de tal modo que cada um deles remete
aos resultados alcanccedilados pelos argumentos precedentes ao mesmo tempo em que
fornece a base para o argumento que se seguiraacute A estrutura argumentativa do
Parmecircnides encontra-se assim refletida e prenunciada na estrutura narrativa
descrita no proacutelogo do diaacutelogo
190
413 O paradoxo de Zenatildeo
O primeiro argumento apresentado ao leitor do Parmecircnides eacute atribuiacutedo a
Zenatildeo Como sabemos Zenatildeo foi um defensor do monismo eleata e seus
argumentos receberam muito prestiacutegio ainda na antiguidade O interesse acerca
do pensamento de Zenatildeo faz com que muitos comentadores do Parmecircnides
analisem o paradoxo zenoniano presente no diaacutelogo em comparaccedilatildeo aos
argumentos do Zenatildeo histoacuterico Esta atitude pode ser vista por exemplo em
Proacuteclus que interpreta o paradoxo presente no Parmecircnides em funccedilatildeo do
conteuacutedo de uma obra atribuiacuteda a Zenatildeo na qual este paradoxo estaria descrito (In
Parm 694)11
Nos comentadores modernos esta abordagem tambeacutem parece prevalecer
Assim Cornford (Cornford 1951 p 53-62) dedica toda primeira seccedilatildeo de seu
comentaacuterio ao Parmecircnides agrave questatildeo da relaccedilatildeo entre Zenatildeo e seus oponentes da
escola pitagoacuterica Brisson (Brisson 1990 p15-28) igualmente passa boa parte
de sua introduccedilatildeo ao Parmecircnides discutindo a relaccedilatildeo entre as teses de Zenatildeo e
Parmecircnides natildeo como personagens do drama platocircnico mas como figuras
histoacutericas Ambos os autores mesmo reconhecendo a escassez de fontes sobre o
tema acabam por projetar a sua compreensatildeo do pensamento do Zenatildeo histoacuterico
na interpretaccedilatildeo do papel desta figura no interior de nosso diaacutelogo
Em contrapartida a esta atitude a importacircncia do paradoxo de Zenatildeo na
interpretaccedilatildeo do Parmecircnides tem sido na maior parte das vezes negligenciada
pelos comentadores Como observa Harte ldquomuito constantemente o interesse em
examinar a relaccedilatildeo entre as deduccedilotildees [da segunda parte do diaacutelogo] e a criacutetica de
Parmecircnides agraves Formas deu-se agraves custas de uma consideraccedilatildeo da conversa inicial
entre Soacutecrates e Zenatildeordquo (Harte 2002 p52) Uma das razotildees para esta negligecircncia
estaacute sem duacutevida no fato de que os comentadores consideram relativamente clara
a relaccedilatildeo desta conversa inicial com o restante da obra Segundo a opiniatildeo geral o
paradoxo de Zenatildeo serve como um pretexto para que Soacutecrates apresente a Teoria
11 Dillon em sua introduccedilatildeo ao Comentaacuterio ao Parmecircnides de Proacuteclus defende a tese de que
Proacuteclus daacute claros sinais de possuir um manuscrito da obra de Zenatildeo e que portanto devemos considerar vaacutelidas suas observaccedilotildees sobre o conteuacutedo desta obra A mais famosa destas observaccedilotildees afirma que o paradoxo apresentado no Parmecircnides fazia parte de um livro que conteria quarenta argumentos (cf MorrowampDillon 1987 p xxviii-xliii)
191
das Ideias Sendo assim os comentadores tecem raacutepidas consideraccedilotildees sobre o
paradoxo de Zenatildeo e na maior parte das vezes jaacute em funccedilatildeo da soluccedilatildeo
apresentada por Soacutecrates para este paradoxo12
No entanto caso adotemos este tipo de interpretaccedilatildeo para o papel do
paradoxo de Zenatildeo no diaacutelogo estaremos de iniacutecio comprometendo a unidade da
argumentaccedilatildeo do Parmecircnides Pois segundo este ponto de vista o paradoxo de
Zenatildeo natildeo estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do restante do diaacutelogo e
natildeo passa de uma deixa dramaacutetica para entrada em cena de Soacutecrates e sua teoria
Sendo assim evitarei abrir a caixa de pandora do conteuacutedo do pensamento
eleaacutetico e me limitarei a oferecer uma interpretaccedilatildeo para o paradoxo de Zenatildeo agrave
altura do papel de destaque que este argumento recebe no nosso diaacutelogo No
Parmecircnides o paradoxo de Zenatildeo daacute ensejo a toda discussatildeo subsequente
Portanto segundo o princiacutepio de relaccedilatildeo entre os argumentos do diaacutelogo esboccedilado
na seccedilatildeo precedente os conceitos envolvidos neste paradoxo devem ressoar por
todo o restante da argumentaccedilatildeo
12 Allen (1997) eacute uma exceccedilatildeo
192
414 Dois sentidos de multiplicidade e unidade implicado s na argumentaccedilatildeo zenoniana
A narrativa de Ceacutefalo inicia-se com a descriccedilatildeo de uma leitura puacuteblica dos
ldquoescritos de Zenatildeordquo (τῶν τοῦ Ζήνωνος γραmicromicroάτων) realizada na casa de Pitodoro
Eacute o proacuteprio Zenatildeo quem realiza a leitura e Soacutecrates acompanhado de muitos
outros faz parte da audiecircncia que se reuniu ansiosa para escutar o que seria dito
uma vez que esta era a primeira vez que tais escritos eram trazidos para Atenas
Ao final da apresentaccedilatildeo Soacutecrates pede para que seja lida novamente a primeira
hipoacutetese do primeiro argumento e ao fim diz
ldquoQue queres dizer com isso Zenatildeo Que se os seres satildeo muacuteltiplos entatildeo eacute preciso que eles sejam tanto semelhantes quanto dessemelhantes mas que isso eacute impossiacutevel pois nem as coisas dessemelhantes podem ser semelhantes nem as semelhantes dessemelhantes Natildeo eacute isso que queres dizerrdquo Πῶς φάναι ὦ Ζήνων τοῦτο λέγεις εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα ὡς ἄρα δεῖ αὐτὰ ὅmicroοιά τε εἶναι καὶ ἀνόmicroοια τοῦτο δὲ δὴ ἀδύνατον οὔτε γὰρ τὰ ἀνόmicroοια ὅmicroοια οὔτε τὰ ὅmicroοια ἀνόmicroοια οἷόν τε εἶναι οὐχ οὕτω λέγεις (127e1-5)
Zenatildeo responde afirmativamente e somos apresentados assim ao primeiro
argumento do diaacutelogo Platatildeo constroacutei este argumento de maneira bastante
resumida nos fornecendo apenas as premissas e a conclusatildeo da argumentaccedilatildeo
zenoniana Fica claro a partir do resumo de Soacutecrates que estamos lidando com
uma reduccedilatildeo ao absurdo da tese pluralista segundo a qual os seres satildeo muacuteltipos
(πολλά ἐστι τὰ ὄντα) O sentido preciso desta tese contudo natildeo estaacute claro de
imediato Sobretudo porque logo depois Soacutecrates iraacute reformulaacute-la por meio do
condicional ldquose os muacuteltipos satildeordquo ou ldquose haacute muacuteltiplas [coisas]rdquo (εἰ πολλά ἐστιν)
(128d5) No primeiro caso εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα o adjetivo πολλά (muacuteltiplos) eacute
apresentado como um predicado do sujeito ὄντα (seres) significando que os seres
satildeo muacuteltiplos no sentido de que possuem vaacuterios atributos Jaacute no segundo caso o
adjetivo substantivado [τὰ] πολλά torna-se o sujeito de uma sentenccedila absoluta
podendo ser traduzida por ldquose muacuteltiplas [coisas] satildeordquo ou ldquose haacute muacuteltiplas
[coisas]rdquo13
13 A diferenccedila entre estas duas formulaccedilotildees natildeo eacute tatildeo bem definida em grego quanto sugerem as
traduccedilotildees por mim apresentadas Afinal τὰ ὄντα pode estar subentendido como sujeito da
193
Temos portanto dois sentidos distintos para o argumento de Zenatildeo O
argumento pode estar visando demonstrar a impossibilidade de uma pluralidade
numeacuterica isto eacute da tese de que haacute mais de uma coisa no mundo ou pode estar
visando demonstrar a impossibilidade de uma mesma coisa possuir mais de um
atributo Neste uacuteltimo caso seu objetivo eacute demonstrar que cada coisa eacute
perfeitamente simples homogecircnea e indivisiacutevel Naturalmente estas duas teses
satildeo independentes uma da outra Afinal podemos sustentar que soacute haacute uma coisa
no mundo poreacutem considerando esta coisa como muacuteltipla dotada de vaacuterias partes
ou atributos Ao passo que por outro lado podemos sustentar que haacute vaacuterias
coisas no entanto considerarmos cada uma delas como simples e indivisiacutevel
Soacutecrates contudo oferece tanto εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα quanto εἰ πολλά ἐστιν
como formulaccedilotildees vaacutelidas para uma mesma hipoacutetese Sendo assim devemos
entender que ao menos em nosso diaacutelogo estas duas teses estatildeo sendo
apresentadas em conjunto representando dois lados de uma mesma moeda ou
duas perspectivas complementares de uma mesma posiccedilatildeo filosoacutefica
Os personagens do Parmecircnides parecem reconhecer esta dualidade
inerente agrave argumentaccedilatildeo zenoniana Soacutecrates por exemplo daacute sinais de sua
compreensatildeo deste fato ao ressaltar ora um ora outro aspecto da argumentaccedilatildeo
zenoniana Em 127e8-128a1 por exemplo Soacutecrates pergunta a Zenatildeo
ldquoSeraacute que eacute isso que querem dizer teus argumentos natildeo outra coisa senatildeo sustentar decididamente contra tudo o que se afirma que natildeo haacute muacuteltiplas coisas (οὐ πολλά ἐστι) E disso mesmo crecircs ser prova para ti cada um dos argumentos de sorte que tambeacutem acreditas apresentar tantas provas de que natildeo haacute muacuteltiplas coisas quantos argumentos escrevestesrdquo ἆρα τοῦτό ἐστιν ὃ βούλονταί σου οἱ λόγοι οὐκ ἄλλο τι ἢ διαmicroάχεσθαι παρὰ πάντα τὰ λεγόmicroενα ὡς οὐ πολλά ἐστι καὶ τούτου αὐτοῦ οἴει σοι τεκmicroήριον εἶναι ἕκαστον τῶν λόγων ὥστε καὶ ἡγῇ τοσαῦτα τεκmicroήρια παρέχεσθαι ὅσουσπερ λόγους γέγραφας ὡς οὐκ ἔστι πολλά (127e8-128a1)
Nesta passagem por meio do uso repetitivo de expressotildees no plural
Soacutecrates indica a incongruecircncia da atitude de Zenatildeo que afirma que natildeo haver
muacuteltiplas coisas (οὐ πολλά ἐστι) natildeo obstante fazendo uso de muacuteltiplos
argumentos para provar esta afirmaccedilatildeo Como observa Soacutecrates ao tentar provar a
segunda sentenccedila o que tornaria as duas formulaccedilatildeo idecircnticas Trata-se de um caso de ambiguidade sintaacutetica em que as duas leituras satildeo possiacuteveis para cada uma das formulaccedilotildees De acordo com minha interpretaccedilatildeo este tipo de ambiguidade recorrente na primeira parte do diaacutelogo eacute proposital
194
inexistecircncia de uma pluralidade de coisas por meio de muacuteltiplos argumentos
Zenatildeo comete um claacutessico caso de paradoxo performativo dando prova
justamente daquilo que ele nega ser possiacutevel
Ora fica claro que neste momento Soacutecrates estaacute tratando o argumento de
Zenatildeo como uma prova da impossibilidade da existecircncia de muacuteltiplos indiviacuteduos
ou como uma defesa da tese de que soacute haacute uma uacutenica coisa (monismo numeacuterico)
Esta identificaccedilatildeo eacute ainda reafirmada por Soacutecrates quando ele estabelece logo em
seguida a equivalecircncia entre o argumento de Zenatildeo e a tese parmeniacutedica de que
ldquoo todo eacute umrdquo (ἓν εἶναι τὸ πᾶν)
Este comentaacuterio eacute geralmente considerado como a palavra final de
Soacutecrates acerca do sentido da argumentaccedilatildeo zenoniana sendo seguido por uma
longa fala em que a Teoria das Ideias eacute apresentada e o paradoxo de Zenatildeo eacute
superado e natildeo mais invocado na discussatildeo Esta leitura do texto leva a maior
parte dos comentadores a considerar o paradoxo de Zenatildeo como uma defesa
apenas da tese do monismo numeacuterico sem que esteja implicada no paradoxo uma
prova da impossibilidade das coisas possuiacuterem muacuteltiplos atributos14 O defensor
mais radical deste tipo de interpretaccedilatildeo eacute sem duacutevida Luc Brisson (1990) que
com base nesta passagem pretende natildeo apenas limitar a argumentaccedilatildeo de Zenatildeo a
uma afirmaccedilatildeo do monismo numeacuterico como tambeacutem identificar a expressatildeo τὸ
πᾶν traduzida por ele como ldquoo universordquo ou ldquoo conjunto de todos os conjuntos de
todas as coisas sensiacuteveisrdquo como o sujeito impliacutecito de todas as formulaccedilotildees da
tese unitarista (cf Brisson 1990 p18-27)15
Entretanto a identificaccedilatildeo da argumentaccedilatildeo de Zenatildeo com o monismo
numeacuterico de Parmecircnides soacute eacute estabelecida explicitamente nesta passagem Por
todo o restante do diaacutelogo Platatildeo faz uso de expressotildees deliberadamente
ambiacuteguas para se referir tanto agrave tese pluralista alvo do paradoxo de Zenatildeo quanto
14 Vide por exemplo o comentaacuterio de Rossvaer ldquoZenatildeo toma como ponto de partida a hipoacutetese
de que as coisas satildeo muacuteltiplas Mas natildeo eacute exatamente isso o que ele quer dizer O que ele quer dizer eacute que o Ser (o todo) eacute Um tal como seu mestre (Rossvaer1983 p15) No mesmo sentido (cf Coxon 1999 p97) O uacutenico autor que reconhece a dualidade implicada na argumentaccedilatildeo de Zenatildeo eacute El Murr (2010) embora a interpretaccedilatildeo oferecida por MacCabe (1996) tambeacutem pressuponha este reconhecimento
15 Bisson vai aleacutem e identifica τὸ πᾶν como o sujeito subentendido de todas as hipoacuteteses da segunda parte do Parmecircnides (cf Brisson 1990 p18-27) No entanto ao afirmar a expressatildeo τὸ πᾶν como o sujeito oculto de todas as expressotildees em que o um aparece ligado ao verbo ldquoserrdquo tanto na primeira quanto na segunda parte do diaacutelogo Brisson estaacute oferecendo uma interpretaccedilatildeo claramente violenta ao texto do Parmecircnides Afinal Platatildeo dificilmente esconderia a chave para compreensatildeo de todo o diaacutelogo em uma uacutenica ocorrecircncia da expressatildeo
195
agrave tese monista defendida por Zenatildeo e Parmecircnides Isto fica claro a partir do
inventaacuterio realizado por Giovanni Casertano que nos lista todas as formulaccedilotildees
das teses monista e pluralista presentes no Parmecircnides divididas entre afirmaccedilotildees
diretas e formulaccedilotildees hipoteacuteticas (cf Cassertano 1990 p386-388) Como
afirmaccedilotildees hipoteacuteticas em sentenccedilas condicionais temos
1) εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα (127e1)
2) εἰ γὰρ πολλὰ εἴη (127e7)
3) εἰ ἕν ἐστι (128d1)
4) εἰ πολλά ἐστιν (128d5)
5) ἡ τοῦ ἓν εἶναι (128d5)
6) εἰ πολλά ἐστι (136a6)
7) εἰ microή ἐστι πολλά (136a6)
Como assertivas diretas temos
8) ἀδύνατον δὴ καὶ πολλὰ εἶναι (127e6-7)
9) ὡς οὐ πολλά ἐστι (127e9)
10) ὡς οὐκ ἔστι πολλά (127e9-128a1)
11) ἓν φῂς εἶναι τὸ πᾶν (128a7-b1)
12) οὐ πολλά φησιν εἶναι (128b2)
13) τὸν microὲν ἓν φάναι τὸν δὲ microὴ πολλά (128b3)
14) τὰ πολλὰ λέγοντας
15) τῆς ἐmicroαυτοῦ ὑποθέσεως () εἴτε ἕν ἐστιν εἴτε microὴ ἕν (137b3-4)
Com base neste inventaacuterio eacute possiacutevel constatar que somente na passagem
nuacutemero 11 τὸ πᾶν eacute apresentado como o sujeito expliacutecito da hipoacutetese de
Parmecircnides Por todo o restante do diaacutelogo Platatildeo faz uso de expressotildees
ambiacuteguas sem sujeito definido para se referir tanto agraves teses de Parmecircnides e
Zenatildeo quanto agraves teses dos defensores do pluralismo16 Portanto dado o grande
nuacutemero de passagens em que a tese monista de Zenatildeo e Parmecircnides natildeo aparece
τὸ πᾶν em meio a esta fala aparentemente despretenciosa de Soacutecrates
16 Com a exceccedilatildeo eacute claro da sentenccedila nuacutemero 1 que como jaacute observamos apresenta πολλά como predicativo do sujeito τὰ ὄντα
196
diretamente vinculada ao monismo numeacuterico natildeo temos razatildeo para projetar
aquilo que encontramos em uma uacutenica passagem como a interpretaccedilatildeo definitiva
para todas as outras
Caso tenhamos em mente a ambiguidade inerente agrave formulaccedilatildeo do
paradoxo de Zenatildeo poderemos notar que o segundo sentido de multiplicidade
implicado na sua argumentaccedilatildeo emerge como a interpretaccedilatildeo natural para outras
passagens do diaacutelogo Em uma destas passagens a possibilidade de um mesmo
indiviacuteduo possuir uma multiplicidade de partes eacute apresentada por Soacutecrates como
um dos resultados da sua soluccedilatildeo para o paradoxo Em 129c Soacutecrates diz
ldquoMas se algueacutem demonstrar que eu sou um17 e muacuteltiplas coisas que haacute nisso de espantoso Quando quiser mostrar que eu sou muacuteltiplas coisas diraacute que uma coisa eacute meu lado direito outra o esquerdo e que uma coisa eacute a frente outra a parte de traacutes e do mesmo modo com relaccedilatildeo agrave parte inferior e posterior pois participo creio da quantidade e por outro lado quando [quiser mostra] que sou um diraacute que dos sete que aqui estatildeo eu sou um homem participante que sou tambeacutem do umrdquo εἰ δ ἐmicroὲ ἕν τις ἀποδείξει ὄντα καὶ πολλά τί θαυmicroαστόν λέγων ὅταν microὲν βούληται πολλὰ ἀποφῆναι ὡς ἕτερα microὲν τὰ ἐπὶ δεξιά microού ἐστιν ἕτερα δὲ τὰ ἐπ ἀριστερά καὶ ἕτερα microὲν τὰ πρόσθεν ἕτερα δὲ τὰ ὄπισθεν καὶ ἄνω καὶ κάτω ὡσαύτως ndash πλήθους γὰρ οἶmicroαι microετέχω ndash ὅταν δὲ ἕν ἐρεῖ ὡς ἑπτὰ ἡmicroῶν ὄντων εἷς ἐγώ εἰmicroι ἄνθρωπος microετέχων καὶ τοῦ ἑνός (129c4-d1)
A importacircncia desta fala de Soacutecrates na compreensatildeo do conteuacutedo da
argumentaccedilatildeo de Zenatildeo natildeo parece ter sido notada pelos comentadores Isto deve-
se ao fato desta colocaccedilatildeo fazer parte de um discurso mais amplo no qual
Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que suas Formas estatildeo
sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos tal como estatildeo sujeitos os objetos sensiacuteveis
Contudo se limitarmos nossa interpretaccedilatildeo destas palavras de Soacutecrates agrave questatildeo
da copresenccedila de opostos a introduccedilatildeo do tema da unidade e multiplicidade torna-
se completamente incidental Afinal Soacutecrates poderia ter apresentado seu desafio
por meio de qualquer outro par de propriedades opostas Na verdade de acordo
com esta linha de raciociacutenio o aparecimento dos conceitos de unidade e
multiplicidade nesta passagem eacute inclusive desnecessaacuterio uma vez que Soacutecrates
jaacute havia formulado seu desafio por meio das propriedades ldquosemelhanterdquo e
ldquodessemelhanterdquo No entanto natildeo podemos considerar meramente ocasional esta
especiacutefica formulaccedilatildeo sobretudo em meio a uma discussatildeo centrada na questatildeo da
17 Coloco ldquoumrdquo em itaacutelico nesta e nas seguintes passagens para diferenciar o atributo ldquoser-umrdquo
197
viabilidade teoacuterica da noccedilatildeo de multiplicidade Eacute claro que na dinacircmica
conversacional do diaacutelogo qualquer afirmaccedilatildeo sobre o tema da
unidademultiplicidade remete o leitor diretamente ao paradoxo de Zenatildeo e agrave
compreensatildeo de seu significado
A observaccedilatildeo de Soacutecrates deixa de ser irrelevante e passa a fazer sentido
se entendermos o paradoxo de Zenatildeo como uma prova tambeacutem da
impossibilidade de uma coisa uacutenica qualquer possuir muacuteltiplos atributos Soacutecrates
estaacute tornando expliacutecito nesta passagem o segundo sentido de multiplicidade
negado pela argumentaccedilatildeo de Zenatildeo a multiplicidade de partes ou atributos de
um mesmo indiviacuteduo Segundo Soacutecrates natildeo haacute nada de espantoso ao contraacuterio
do que pretende afirmar Zenatildeo no fato de uma dada coisa uacutenica ser tambeacutem
muacuteltipla dotada de vaacuterias partes
Portando para defender o monismo de seu mestre Parmecircnides Zenatildeo
pretende demonstrar a contradiccedilatildeo envolvida na admissatildeo da multiplicidade tout
court quer esta seja entendia como uma multiplicidade de indiviacuteduos quer como
uma multiplicidade de atributos de um mesmo indiviacuteduo Como veremos o
reconhecimento desta dualidade da argumentaccedilatildeo zenoniana se mostraraacute essencial
para a compreensatildeo dos argumentos seguintes Pois estes dois sentidos de
multiplicidade estaratildeo implicados na soluccedilatildeo de Soacutecrates para o paradoxos de
Zenatildeo assim como faratildeo parte da estrateacutegia utilizada por Parmecircnides na sua
contra-argumentaccedilatildeo agrave soluccedilatildeo socraacutetica
do artigo indefinido
198
415 A reduccedilatildeo ao absurdo da tese pluralista
Tendo estabelecido os dois sentidos de multiplicidade afirmados pela tese
pluralista e negados pelo monismo de Zenatildeo e Parmecircnides podemos passar para a
anaacutelise do argumento zenoniano De acordo com o resumo apresentado por
Soacutecrates em 127e1-5 a reduccedilatildeo ao absurdo da tese pluralista eacute operada por Zenatildeo
por meio do seguinte raciociacutenio
1) Suponha que os seres satildeo muacuteltiplos (tese provisoriamente
assumida)
2) Se eles satildeo muacuteltiplos entatildeo eles satildeo tanto semelhantes quanto
dessemelhantes
3) Logo os seres satildeo tanto semelhantes quanto dessemelhantes (a
partir de 1 amp 2)
4) Ora eacute impossiacutevel que uma mesma coisa seja semelhante e
dessemelhante
5) Portanto os seres natildeo satildeo muacuteltiplos (afirma-se a negaccedilatildeo de 1
com base na contradiccedilatildeo entre 3 amp 4) 18
A invenccedilatildeo do meacutetodo de reduccedilatildeo ao absurdo que consiste em assumir
temporariamente uma tese para a partir dela derivar uma contradiccedilatildeo e assim
concluir a negaccedilatildeo da tese inicial natildeo deve ser atribuiacuteda a Zenatildeo embora
saibamos que ele tenha usado extensivamente este meacutetodo argumentativo
Segundo Thomas Heath o meacutetodo de reduccedilatildeo ao absurdo pode ter sua origem
traccedilada ateacute a escola pitagoacuterica e no tempo de Platatildeo este argumento jaacute era usado
largamente em provas matemaacuteticas envolvendo teoria dos nuacutemeros (cf Heath
1960 p294-295) Sendo assim podemos considerar que os leitores de Platatildeo natildeo
viam com estranheza este tipo de argumentaccedilatildeo
18 Trata-se de um argumento em Modus Tollendo Tollens isto eacute um argumento que neganto
(tollendo) o consequente da implicaccedilatildeo expressa na premissa nega (tollens) por consequecircncia loacutegica tambeacutem o antecedente Em notaccedilatildeo formal P rarr Q
~Q ~P
199
Da mesma maneira a premissa nuacutemero 2 do argumento de Zenatildeo parece
bastante plausiacutevel e dificilmente teria sua validade objetada Zenatildeo pode estar
argumentando por exemplo que os muacuteltiplos seres como seres satildeo semelhantes
entre si enquanto que como muacuteltiplos e portanto numericamente distintos uns
dos outros satildeo dessemelhantes ou ainda que as diversas partes de um indiviacuteduo
satildeo semelhantes entre si enquanto partes de um mesmo indiviacuteduo poreacutem
dessemelhantes enquanto partes distintas
No entanto chama muita atenccedilatildeo o conteuacutedo da premissa nuacutemero 4 do
argumento Segundo esta premissa uma mesma coisa natildeo pode ser ao mesmo
tempo semelhante e dessemelhante Mas por quecirc Podemos pensar em miriacuteades
de casos em que uma mesma coisa eacute tanto semelhante quanto dessemelhante
Soacutecrates e Platatildeo por exemplo satildeo semelhantes pelo fato de ambos serem
atenienses no entanto satildeo dessemelhantes em vaacuterios outros aspectos como em
idade condiccedilatildeo social etc Enquanto inteacuterpretes devemos tentar entender porque
os interlocutores do Parmecircnides consideram intrigante e paradoxal o fato de uma
dada coisa possuir simultaneamente propriedades opostas mesmo quando estas
propriedades representam termos relativos (semelhante-dessemelhante maior-
menor etc)
A explicaccedilatildeo mais constantemente apresentada pelos comentadores segue
a mesma linha de raciociacutenio da criacutetica desenvolvida por Vlastos que citamos
anteriormente Zenatildeo estaria tratando predicados relacionais como predicados
monaacutedicos (ou adjetivos) Assim ele estaria ignorando o complemento existente
nos predicados relacionais e tratando a propriedade ldquoser semelhante a xrdquo como
equivalente agrave propriedade ldquoser semelhante simpliciterrdquo isto eacute estaria tratando um
predicado incompleto (que necessita de um complemento para ser significativo)
como um predicado completo (significativo por si soacute) Negligenciada a diferenccedila
entre estes dois tipos de predicados uma sentenccedila do tipo ldquoA eacute maior que B e
menor que Crdquo passa a ser equivalente a ldquoA eacute maior e menor simpliciterrdquo
tornando-se tatildeo contraditoacuteria quanto a sentenccedila ldquoA eacute quadrado e redondordquo
Este tipo de interpretaccedilatildeo foi primeiramente apresentada por Cornford
segundo o qual ldquonenhuma distinccedilatildeo eacute traccedilada entre qualidades e relaccedilotildees
Grandeza eacute tratada como se fosse uma qualidade como Brancura inerente agrave
pessoa granderdquo (Cornford 1951 p78) Cornford observa ainda que este tipo de
raciociacutenio parece ser particularmente favorecido pela sintaxe grega que permite
200
sentenccedilas do tipo ldquoSimmias eacute grande em relaccedilatildeo (πρὸς) a Soacutecratesrdquo ou ainda
ldquoSimmias tem grandeza com relaccedilatildeo (πρὸς) a Soacutecratesrdquo nas quais o segundo
termo da relaccedilatildeo binaacuteria ldquoser-maior-querdquo natildeo eacute necessariamente introduzido por
um pronome relativo mas pode ser introduzido pela preposiccedilatildeo πρὸς Este fato
sintaacutetico teria supostamente induzido os pensadores gregos a negligenciar o
caraacuteter relacional de propriedades como ldquoser-semelhante-ardquo ou ldquoser-maior-querdquo
os levando a classificaacute-las como propriedades monaacutedicas do tipo ldquoser-brancordquo ou
ldquoser-belordquo
No entanto esta anaacutelise linguiacutestica por si soacute natildeo pode ser considerada
uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria Caso assim fosse Soacutecrates poderia simplesmente
argumentar em termos estritamente gramaticais e afirmar que usamos sentenccedilas
significativas com predicados relativos cotidianamente e que portanto o
paradoxo de Zenatildeo deveria ser simplesmente desconsiderado Pois soacute haacute
contradiccedilatildeo quando propriedades opostas satildeo atribuiacutedas a uma mesma coisa ao
mesmo tempo da mesma maneira e em relaccedilatildeo a uma mesma coisa 19
A ausecircncia de distinccedilatildeo entre predicados relacionais e predicados
completos no argumento de Zenatildeo no entanto nos remete diretamente a um tema
extremamente recorrente nos diaacutelogos a copresenccedila de propriedades opostas
Como vimos em diversos diaacutelogos Soacutecrates e seus interlocutores consideram a
copresenccedila de propriedades opostas nos objetos sensiacuteveis algo intrigante e
merecedor de uma explicaccedilatildeo teoacuterica complexa Na realidade o fato das entidades
sensiacuteveis estarem submetidas a este tipo de predicaccedilatildeo constitui aquilo que mais
propriamente as caracteriza o que fica claro pelo uso de predicados relacionais
nas demonstraccedilotildees socraacuteticas da diferenccedila entre o modo de ser das Formas e o
modo de ser das coisas do mundo sensiacutevel Assim submetidas a uma
multiplicidade de relaccedilotildees as entidades sensiacuteveis estatildeo sempre sujeitas agrave
predicaccedilatildeo de opostos o que eacute tido por Soacutecrates como uma evidecircncia de
contradiccedilatildeo interna e deficiecircncia ontoloacutegica nestes objetos
Portanto devemos entender que os predicados ldquosemelhanterdquo e
ldquodessemelhanterdquo do argumento de Zenatildeo estatildeo sendo empregados para ilustrar o
fato de que os objetos sensiacuteveis tecircm suas propriedades definidas pelas relaccedilotildees
em que estatildeo inseridos o que resulta na copresenccedila de opostos em um mesmo
19 De fato em uma passagem da Repuacuteblica IV (436b-c) Soacutecrates formula uma versatildeo da Lei da
Natildeo-Contradiccedilatildeo na qual todas estas qualificaccedilotildees satildeo mencionadas
201
objeto e lhes confere um caraacuteter contraditoacuterio Ora eacute evidente que a extinccedilatildeo das
muacutetuas relaccedilotildees existentes entre os objetos sensiacuteveis seria suficiente para eliminar
o problema da copresenccedila de opostos pois um uacutenico objeto privado de qualquer
relaccedilatildeo eacute somente idecircntico a si mesmo
Eacute justamente esta a estrateacutegia da argumentaccedilatildeo zenoniana Reduzindo a
multiplicidade dos objetos sensiacuteveis a uma uacutenica entidade Zenatildeo elimina por
completo as muacuteltiplas relaccedilotildees entre eles consequentemente resolvendo o
problema da copresenccedila de opostos Assim enquanto Soacutecrates usa a copresenccedila
de opostos para caracterizar a deficiecircncia do mundo sensiacutevel e ainda postular a
existecircncia de entidades natildeo submetidas agraves relaccedilotildees que geram esta copresenccedila
Zenatildeo usa esta caracteriacutestica para negar toda possibilidade de multiplicidade
extinguindo por completo qualquer tipo de relaccedilatildeo e postulando a existecircncia de
uma uacutenica coisa privada de qualquer atributo salvo sua auto-identidade
202
416 A soluccedilatildeo de Soacutecrates para o paradoxo de Zenatildeo
A despeito de todas as polecircmicas acerca da interpretaccedilatildeo do Parmecircnides a
compreensatildeo da soluccedilatildeo oferecida por Soacutecrates ao paradoxo de Zenatildeo destaca-se
como um ponto de notaacutevel consenso Os comentadores parecem concordar que a
estrateacutegia adotada por Soacutecrates consiste em desafiar o conteuacutedo da premissa
nuacutemero 4 do argumento de Zenatildeo por meio da distinccedilatildeo entre dois tipo de
entidades Formas e objetos sensiacuteveis Soacutecrates entende que os seres (τὰ ὄντα)
sobre os quais fala Zenatildeo satildeo objetos sensiacuteveis e como soluccedilatildeo ao paradoxo
apresenta as Formas como um tipo de entidade imune agrave copresenccedila de opostos
apontada por Zenatildeo
Recentemente contudo ateacute mesmo este aparente consenso foi ameaccedilado
Sandra Peterson em seu capiacutetulo sobre o Parmecircnides para The Oxford Handbook
of Plato (2008) distingue sua proacutepria interpretaccedilatildeo das interpretaccedilotildees que
atribuem a Soacutecrates uma apresentaccedilatildeo teacutecnica da Teoria das Ideias Ela acredita
que ldquose consideramos que Soacutecrates ostenta uma nova teoria de caraacuteter teacutecnico
com entidades desconhecidas [isto eacute as Formas] (hellip) natildeo percebemos o genuiacuteno
poder de sua simples refutaccedilatildeordquo (Peterson 2008 p383-411)
No entanto como se daria a soluccedilatildeo do paradoxo caso Soacutecrates natildeo
apelasse para Formas inteligiacuteveis Segundo a interpretaccedilatildeo proposta por Peterson
ldquoSoacutecrates simplesmente aponta pressuposiccedilotildees inegaacuteveis da fala cotidiana
(undeniable presuppositions of customary speech)rdquo para refutar Zenatildeo (Peterson
2008 p387) De acordo com Peterson a estrateacutegia geral da argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates consiste em demonstrar que predicados opostos satildeo ordinariamente
atribuiacutedos agraves coisas Sendo assim seu objetivo natildeo seria provar a invalidade do
argumento de Zenatildeo mas sim a sua irrelevacircncia ao fim de sua argumentaccedilatildeo
Soacutecrates teria demonstrado que o argumento de Zenatildeo natildeo apresenta um
paradoxo mas apenas uma verdade amplamente reconhecida
Peterson reconstroacutei a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates em trecircs movimentos
distintos que analisaremos separadamente O primeiro movimento eacute descrito por
ela da seguinte maneira
ldquoPrimeiro de 127e a 128b apoacutes ter esclarecido que o argumento de Zenatildeo eacute uma reduccedilatildeo
203
ao absurdo da afirmaccedilatildeo de que os seres satildeo muacuteltiplos Soacutecrates leva Zenatildeo a expor sua
proacutepria crenccedila de que muacuteltiplas coisas satildeo semelhantes e dessemelhantes como por
exemplo quando Zenatildeo daacute a entender que ele e Parmecircnides satildeo semelhantes por dizerem
as mesmas coisas (128b5) e dessemelhantes por Zenatildeo dizer ldquonatildeo muacuteltiplosrdquo (not many) e
Parmecircnides dizer ldquoumrdquo (128b3ndash5) Por sugerir que haacute vaacuterios seres semelhantes em algum
aspecto e dessemelhantes em outros mesmo enquanto ele defende que natildeo pode haver
seres tanto semelhantes quanto dessemelhantes Zenatildeo eacute claramente inconsistenterdquo
(Peterson 2008 p 387)
Peterson estaacute se referindo agrave passagem por noacutes jaacute citada em que Soacutecrates
assimila o objetivo da argumentaccedilatildeo de Zenatildeo com a tese de Parmecircnides de que
tudo eacute um Segundo ela esta passagem inicia a refutaccedilatildeo do argumento ao
demonstrar que Zenatildeo eacute semelhante a Parmecircnides por ambos defenderem a tese
monista e ao mesmo tempo dessemelhante pois enquanto Zenatildeo afirma natildeo
haver muacuteltiplas coisas Parmecircnides afirma o todo ser um Contudo Peterson
parece negligenciar o fato de que em toda passagem natildeo haacute uma uacutenica ocorrecircncia
das palavras ldquosemelhanterdquo (ὅmicroοιος) ou ldquodessemelhanterdquo (ἀνόmicroοιος) Natildeo me
parece nada provaacutevel que Soacutecrates desejando demonstrar a contradiccedilatildeo apontada
por Peterson deixasse de mencionar o ponto especiacutefico de sua acusaccedilatildeo e se
limitasse a atacar aquilo que Zenatildeo ldquosugererdquo (implies) Em argumentaccedilotildees ad
hominen como esta nas quais se pretende demonstrar a existecircncia de uma
contradiccedilatildeo entre as teses que determinada pessoa defende e as atitudes desta
pessoa o valor da acusaccedilatildeo estaacute em tornar evidente a inconsistecircncia em questatildeo
Sendo assim a interpretaccedilatildeo oferecida por Peterson que pretende ler esta
passagem como a demonstraccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo acerca de temas que sequer
satildeo mencionados natildeo pode ser considerada uma interpretaccedilatildeo com suficiente
apoio textual
Nesta passagem Soacutecrates estaacute de fato realizando uma argumentaccedilatildeo ad
hominen do mesmo tipo identificado por Peterson No entanto a contradiccedilatildeo
atribuiacuteda a Zenatildeo eacute outra Como vimos ao empregar repetidamente formas
plurais para se referir aos argumentos de Zenatildeo Soacutecrates torna expliacutecita a
contradiccedilatildeo envolvida em se negar a existecircncia de muacuteltiplas coisas por meio de
muacuteltiplos argumentos Esta acusaccedilatildeo eacute cuidadosamente montada pela recorrecircncia
de expressotildees plurais para se referir aos argumentos de Zenatildeo e termina com a
204
afirmaccedilatildeo claramente irocircnica de que Zenatildeo apresenta ldquomuito numerosas provasrdquo
(τεκmicroήρια πάmicroπολλα) para demonstrar sua tese de que natildeo haacute muacuteltiplas coisas
(128b2) Podemos considerar portanto que a interpretaccedilatildeo que atribui a Soacutecrates
o reconhecimento deste segundo tipo de contradiccedilatildeo possui mais apoio textual do
que a interpretaccedilatildeo oferecida por Peterson e deve ser eleita como a interpretaccedilatildeo
correta para passagem em detrimento da interpretaccedilatildeo de Peterson que lecirc a
passagem como a identificaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo natildeo mencionada
Contudo a segunda fase da argumentaccedilatildeo de Soacutecrates representaria
segundo Peterson o passo fundamental da refutaccedilatildeo ao argumento de Zenatildeo Ela
explica esta fase da seguinte maneira
ldquoSegundo Soacutecrates explicitamente apresenta a mais profunda e devastadora objeccedilatildeo (128e5ndash129a3) de que Zenatildeo ao conduzir sua reduccedilatildeo ao absurdo presume que haacute dois opostos ndash semelhanccedila e dessemelhanccedila ndash cada um deles sendo um ser (τούτοιν δὲ δυοῖν ὄντοιν) Zenatildeo presume que a semelhanccedila ela mesma eacute um item e que a dessemelhanccedila eacute um segundo e oposto item As premissas de Zenatildeo implicam a negaccedilatildeo de sua conclusatildeo E isso eacute desastrosordquo (Peterson 2008 p 387)
Portanto a ldquodevastadora objeccedilatildeordquo apresentada por Soacutecrates consiste em
demonstrar que Zenatildeo reconhece a existecircncia de pelo menos duas coisas a
semelhanccedila e a dessemelhanccedila o que estaria em clara contradiccedilatildeo com sua tese de
que natildeo haacute muacuteltiplas coisas Segundo Peterson isto acontece na seguinte
passagem
ldquoPois bem aceito disse Soacutecrates e acredito ser como dizes Mas diz-me o seguinte natildeo julgas haver uma certa forma em si e por si da semelhanccedila e por outro lado contraacuteria a tal forma uma outra aquilo que realmente eacute dessemelhante E que nestas duas coisas que satildeo tanto eu quanto vocecirc temos participaccedilatildeordquo Ἀλλ ἀποδέχοmicroαι φάναι τὸν Σωκράτη καὶ ἡγοῦmicroαι ὡς λέγεις ἔχειν τόδε δέ microοι εἰπέ οὐ νοmicroίζεις εἶναι αὐτὸ καθαὑτὸ εἶδός τι ὁmicroοιότητος καὶ τῷ τοιούτῳ αὖ ἄλλο τι ἐναντίον ὃ ἔστιν ἀνόmicroοιον τούτοιν δὲ δυοῖν ὄντοιν καὶ ἐmicroὲ καὶ σὲ καὶ τἆλλα ἃ δὴ πολλὰ καλοῦmicroεν microεταλαmicroβάνειν (128e5ndash129a3)
Eacute realmente difiacutecil entender como Peterson com base na passagem citada
pode atribuir a Zenatildeo o reconhecimento da existecircncia destas duas coisas (a
semelhanccedila e a dessemelhanccedila) Afinal quem se refere agrave semelhanccedila e agrave
dessemelhanccedila como dois seres distintos (τούτοιν δυοῖν ὄντοιν) eacute Soacutecrates e natildeo
Zenatildeo Para atribuir o reconhecimento destas entidades a Zenatildeo Peterson afirma
205
que o verbo utilizado por Soacutecrates (νοmicroίζειν) indicaria que ele estaacute tratando de
uma noccedilatildeo comum aceita tambeacutem por Zenatildeo
De fato em seu paradoxo Zenatildeo fala da semelhanccedila e da dessemelhanccedila
como propriedades que os objetos teriam caso fossem muacuteltiplos Entretanto em
contraste com o uso de νοmicroίζειν que pode ou natildeo possuir a nuance de
significado indicada por Peterson Soacutecrates menciona uma seacuterie de termos
relativos agraves Formas que dificilmente poderiam fazer parte de um vocabulaacuterio
ldquocomumrdquo compartilhado por Zenatildeo Sendo assim o simples uso de νοmicroίζειν natildeo
eacute razatildeo suficiente para atribuirmos a Zenatildeo aquilo que Soacutecrates estaacute dizendo
Aleacutem disso caso o desejo de Soacutecrates fosse apresentar uma contradiccedilatildeo inerente agrave
argumentaccedilatildeo de Zenatildeo natildeo haveria porque fazecirc-lo por meio de uma pergunta
bastaria constatar que Zenatildeo reconhece a existecircncia do semelhante e do
semelhante e portanto admite uma multiplicidade de seres
Contudo o maior erro da argumentaccedilatildeo de Peterson natildeo estaacute em atribuir a
Zenatildeo aquilo que Soacutecrates estaacute afirmando Pois mesmo admitindo que a
argumentaccedilatildeo de Zenatildeo pressuponha a existecircncia destas duas entidades a
constataccedilatildeo deste fato sequer representaria uma refutaccedilatildeo ao paradoxo Como o
argumento de Zenatildeo eacute uma reduccedilatildeo ao absurdo o uso de noccedilotildees que se provaratildeo
contraditoacuterias eacute plenamente justificaacutevel Em seu paradoxo Zenatildeo conclui que as
coisas seriam simultaneamente semelhantes e dessemelhantes apenas caso as
coisas fossem muacuteltiplas No entanto Zenatildeo natildeo acredita que as coisas satildeo
muacuteltiplas Portanto em nenhum momento afirma seriamente a existecircncia da
semelhanccedila e da dessemelhanccedila O apelo de Zenatildeo a estas entidades eacute meramente
contra-factual e natildeo representa sua posiccedilatildeo A ldquodevastadora refutaccedilatildeordquo
apresentada por Peterson sequer se configura como uma legiacutetima refutaccedilatildeo
O uacuteltimo movimento da argumentaccedilatildeo de Soacutecrates consistiria em
ldquoenfatizar que os predicados ldquosemelhanterdquo e ldquodessemelhanterdquo satildeo incompletos e
que uma conversa ordinaacuteria (ordinary talk) eacute capaz de reconhecer diversas coisas
que satildeo tanto semelhantes quanto dessemelhantes ou possuem semelhanccedila e
dessemelhanccedila em vaacuterios aspectosrdquo (Peterson 2008 p 387) Isto aconteceria na
seguinte passagem
ldquoE [natildeo julgas] que algumas coisas tendo participaccedilatildeo na semelhanccedila se tornam semelhantes por causa disso e na medida em que nelas tenham participaccedilatildeo e que outras tendo participaccedilatildeo na dessemelhanccedila [se tornam] dessemelhantes e
206
que outras [tendo participaccedilatildeo] em ambas se tornam semelhantes e dessemelhantes E mesmo que todas as coisas tenham participaccedilatildeo em ambas essas coisas que satildeo contraacuterias e que sejam pelo participar nas duas elas mesmas em relaccedilatildeo a si mesmas tanto semelhantes quanto dessemelhantes o que haacute de espantoso Καὶ τὰ microὲν τῆς ὁmicroοιότητος microεταλαmicroβάνοντα ὅmicroοια γίγνεσθαι ταύτῃ τε καὶ κατὰ τοσοῦτον ὅσον ἂν microεταλαmicroβάνῃ τὰ δὲ τῆς ἀνοmicroοιότητος ἀνόmicroοια τὰ δὲ ἀmicroφοτέρων ἀmicroφότερα εἰ δὲ καὶ πάντα ἐναντίων ὄντων ἀmicroφοτέρων microεταλαmicroβάνει καὶ ἔστι τῷ microετέχειν ἀmicroφοῖν ὅmicroοιά τε καὶ ἀνόmicroοια αὐτὰ αὑτοῖς τί θαυmicroαστόν (129a3-b1)
Como reconhece Peterson de acordo com a interpretaccedilatildeo por ela proposta
estas perguntas de Soacutecrates apenas ldquonegam a premissa de Zenatildeo de que eacute
impossiacutevel para qualquer coisa ser tanto semelhante quanto dessemelhanterdquo
(Peterson 2008 p 387) No entanto como podemos considerar a mera negaccedilatildeo
injustificada de uma premissa uma argumentaccedilatildeo suficientemente satisfatoacuteria
Zenatildeo argumenta em termos loacutegicos e espera que uma contra-argumentaccedilatildeo lhe
seja apresentada no mesmo niacutevel Caso o comentaacuterio final de Soacutecrates se limitasse
a negar injustificadamente a premissa problemaacutetica do argumento de Zenatildeo
dificilmente poderiacuteamos considerar tal comentaacuterio parte de uma argumentaccedilatildeo
seacuteria 20
Por fim resta observar que a interpretaccedilatildeo proposta por Peterson encontra-
se em clara oposiccedilatildeo ao que um leitor dos diaacutelogos poderia esperar Segundo o
argumento de Zenatildeo eacute impossiacutevel que os seres sejam tanto semelhantes quanto
dessemelhantes ou de maneira geral que uma dada coisa possua qualquer par de
predicados opostos (F e natildeo-F) Ora um leitor acostumado com o tipo de
argumentaccedilatildeo que Soacutecrates desempenha nos diaacutelogos da fase meacutedia espera
naturalmente que as Formas sejam apresentadas como soluccedilatildeo para este
problema
Esta expectativa eacute plenamente satisfeita quando Soacutecrates pede a Zenatildeo que
aceite a existecircncia de ldquouma Forma em si e por si da Semelhanccedila e por outro lado
uma outra Forma aquilo que eacute realmente Dessemelhanterdquo (οὐ νοmicroίζεις εἶναι αὐτὸ
καθαὑτὸ εἶδός τι ὁmicroοιότητος καὶ τῷ τοιούτῳ αὖ ἄλλο τι ἐναντίον ὃ ἔστιν
ἀνόmicroοιον 129a1) Dificilmente uma apresentaccedilatildeo das Formas poderia ser feita de
20 Neste caso Soacutecrates estaria agindo como Dioacutegenes de Ciacutenope que pretendeu refutar os
argumentos de Zenatildeo contra a possibilidade do movimento simplemente andando em praccedila puacuteblica Ora eacute claro que este poderia ser o caso No entanto esta natildeo parece ser a intenccedilatildeo de Soacutecrates e dificilmente Zenatildeo e Parmecircnides demonstrariam respeito por Soacutecrates tal como demonstram no decorrer do diaacutelogo caso este fosse o teor de sua argumentaccedilatildeo
207
maneira mais expliacutecita Aleacutem do termo εἶδος Soacutecrates usa as expressotildees αὐτὸ
καθ αὑτὸ e ὃ ἔστιν ambas extremamente recorrentes nos diaacutelogos e
indubitavelmente parte do vocabulaacuterio relativo agraves Formas Fica claro portanto
que Soacutecrates identifica os seres (τὰ ὄντα) aos quais Zenatildeo se refere como objetos
sensiacutevieis e como primeiro passo na soluccedilatildeo do paradoxo introduz suas Formas
na discussatildeo
No entanto a simples apresentaccedilatildeo de entidades imunes agrave copresenccedila de
opostos natildeo se configura como uma soluccedilatildeo ao paradoxo A premissa 4 de Zenatildeo
afirma a impossibilidade das coisas serem simultaneamente semelhantes e
dessemelhantes o que certamente natildeo exclui a possibilidade de algo ser
exclusivamente semelhante ou dessemelhantes Para que a premissa 4 seja
falsificada eacute preciso que Soacutecrates demonstre como os seres podem possuir
propriedades opostas sem que isso implique em uma contradiccedilatildeo Portanto de
modo a servirem de soluccedilatildeo ao paradoxo as Formas precisam natildeo apenas estar
imunes agrave copresenccedila de opostos mas sobretudo explicar esta copresenccedila nos
objetos sensiacutevieis Para que isto seja feito Soacutecrates introduz a noccedilatildeo de
participaccedilatildeo (aqui representada pelos verbos microεταλαmicroβάνειν e microετέχειν) e
pergunta a Zenatildeo se ele estaacute disposto a aceitar que ldquoalgumas coisas tendo
participaccedilatildeo na Semelhanccedila se tornam semelhantes () que outras tendo
participaccedilatildeo na Dessemelhanccedila [se tornam] dessemelhantes e que outras [tendo
participaccedilatildeo] em ambas se tornam semelhantes e dessemelhantesrdquo (129a3-8)
Caso Zenatildeo esteja disposto a aceitar estas duas hipoacuteteses 1) que existem
Formas e 2) que os objetos sensiacuteveis participam destas Formas a aparente
contradiccedilatildeo presente na premissa 4 do seu argumento pode ser dissolvida Pois
uma vez que estes dois pontos lhe sejam concedidos Soacutecrates estaraacute apto a
demonstrar como a copresenccedila de propriedades opostas nos objetos sensiacutevieis
pode ser explicada por meio da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que estes objetos mantecircm
com as Formas21
No Parmecircnides Soacutecrates natildeo desenvolve em pormenores esta explicaccedilatildeo
se limitando a dizer que mesmo que todas as coisas sensiacuteveis tenham participaccedilatildeo
21 Note que Soacutecrates apresenta estas duas hipoacuteteses (a existecircncia das Formas e a relaccedilatildeo de
participaccedilatildeo) por meio de uma pergunta (129a1-3) Isto indica que ele estaacute introduzindo um novo material conceitual e que espera um assentimento por parte de seus interlocutores com relaccedilatildeo agrave viabilidade teoacuterica destas hipoacuteteses Como veremos a resposta de Parmecircnides seraacute admitir temporariamente a validade das hipoacuteteses de Soacutecrates com o objetivo de submetecirc-las
208
em ambas estas Formas e em consequecircncia desta participaccedilatildeo sejam semelhantes
e dessemelhantes nada haacute nisso de espantoso (129a8-b1) Esta brevidade da
explicaccedilatildeo de Soacutecrates pode ser solucionada se relacionarmos a soluccedilatildeo aqui
apresentada para o paradoxo de Zenatildeo com a explicaccedilatildeo oferecida no Feacutedon
(101-103) para o fato de Simmias ser grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates e pequeno em
relaccedilatildeo a Feacutedon A assimilaccedilatildeo entre as duas explicaccedilotildees parece justificada uma
vez que em ambos os diaacutelogos vemos Soacutecrates oferecer a Teoria das Ideias como
soluccedilatildeo para o mesmo problema a copresenccedila de propriedades (relacionais)
opostas nos objetos sensiacuteveis22
Adotando o paralelismo entre estas duas explicaccedilotildees podemos entender
que tal como acontece no Feacutedon a semelhanccedila e dessemelhanccedila no Parmecircnides
deixam de ser predicados atribuiacutedos diretamente ao sujeito em questatildeo e passam a
ser predicados das propriedades imanentes que este sujeito possui devido agrave
relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que manteacutem com as Formas Sendo assim as muacuteltiplas
coisas do paradoxo de Zenatildeo satildeo tanto semelhantes quanto dessemelhantes por
participarem simultaneamente das Formas do Semelhante e do Dessemelhante e
devido a esta participaccedilatildeo possuiacuterem as propriedades imanentes do semelhante e
do dessemelhante com partes de si Portanto quando dizemos que o objeto x eacute
semelhante e dessemelhante estamos nos referindo a este fato de maneira
inadequada Pois natildeo eacute propriamente o indiviacuteduo x que eacute semelhante e
dessemelhante mas a semelhanccedila-de-x que eacute semelhante e a dessemelhanccedila-de-x
que eacute dessemelhante Estabelecida a diferenccedila entre Forma propriedades
imanentes e objetos sensiacuteveis natildeo haacute nada de contraditoacuterio no fato de uma mesma
coisa possuir simultaneamente propriedades imanentes opostas Afinal
predicados opostos nunca estatildeo sendo atribuiacutedos propriamente agrave mesma coisa
a uma nova reduccedilatildeo ao absurdo
22 Aleacutem da identidade de temas as passagens do Feacutedon e do Parmecircnides apresentam grande semelhanccedila de vocabulaacuterio εἶδος (Feacuted102B1) αὐτὸ καθ αὑτὸ (Feacuted78D3) ὄντοιν (Feacuted71a13) αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά (Feacuted74c1 αὐτὰ τὰ ἴσα) De fato a assimilaccedilatildeo entre os dois diaacutelogos eacute extremamente comum entre os comentadores Scolnicov por exemplo afirma que ldquoesta passagem eacute uma breve reafirmaccedilatildeo da doutrina das Formas desenvolvida no Feacutedonrdquo (Scolnicov 2003 p48) Gill oferece sua explicaccedilatildeo para resoluccedilatildeo do paradoxo de Zenatildeo por meio da teoria apresentada no Feacutedon (cf Gill 2012 p19-27) e (cf Gill 1996 p12-18) Cornford tambeacutem adota a estrateacutegia de explicar a soluccedilatildeo do paradoxo atraveacutes da analogia com a soluccedilatildeo do problema da copresenccedila de opostos no Feacutedon e afirma haver jaacute em 1951 aceitaccedilatildeo geral (it is generally agreed) de que ldquoa teoria das ideias aqui apresentada eacute idecircntica agrave afirmada anteriormente no Feacutedonrdquo (Cornford 1951 p70) Ainda Brisson (Brisson 2011 p29) Sayre (Sayre 1996 p65) e Turnbull (Turnbull 1998 p 16) assumem a identidade entre a teoria do Feacutedon e a teoria do Parmecircnides
209
A hipoacutetese das Formas contradiz o conteuacutedo da premissa 4 do argumento
de Zenatildeo ao explicar aquilo que esta premissa afirmava ser impossiacutevel a
copresenccedila de propriedades opostas nos objetos sensiacuteveis Provada a falsidade da
premissa nuacutemero 4 do argumento de Zenatildeo todo paradoxo eacute desfeito Afinal a
reduccedilatildeo ao absurdo da assunccedilatildeo inicial de que as coisas satildeo muacuteltiplas depende
diretamente da existecircncia de contradiccedilatildeo entre as premissas 3 e 4
De acordo com a explicaccedilatildeo acima esboccedilada o paradoxo de Zenatildeo eacute
solucionado por Soacutecrates por meio da distinccedilatildeo ontoloacutegica entre Formas e objetos
sensiacuteveis que encontramos de maneira expliacutecita nos diaacutelogos da fase meacutedia e
impliacutecita nos argumentos dos primeiros diaacutelogos No decorrer das proacuteximas
seccedilotildees investigaremos se a ontologia defendida por Soacutecrates no Parmecircnides
pode ser identificada com aquela apresentada nestes diaacutelogos Em especial
investigaremos se a compreensatildeo acerca da natureza da participaccedilatildeo e auto-
predicaccedilatildeo das Formas que emerge da leitura do Parmecircnides pode ser identificada
com o tratamento que Soacutecrates oferece para estes temas nos diaacutelogos anteriores
Por ora basta observar que o vocabulaacuterio empregado sugere esta identificaccedilatildeo
Pois aleacutem de εἶδος tanto αὐτὸ καθ αὑτὸ quanto ὃ ἔστιν satildeo expressotildees
recorrentes nos diaacutelogos platocircnicos Estas expressotildees fazem parte do vocabulaacuterio
relativo agraves Formas que como vimos nos capiacutetulos precedentes eacute cuidadosamente
construiacutedo desde os primeiros diaacutelogos Da mesma maneira microετέχειν e
microεταλαmicroβάνειν satildeo expressotildees tipicamente socraacuteticas e fazem parte do vasto rol
de verbos empregados para descrever a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo entre Formas e
objetos sensiacuteveis tanto nos diaacutelogos iniciais quanto nos diaacutelogos da fase meacutedia
210
417 O desafio de Soacutecrates
A proximidade entre a Teoria das Ideias apresentada no Parmecircnides e a
ontologia socraacutetica dos diaacutelogos da fase meacutedia e inicial eacute reafirmada ainda no
desafio lanccedilado por Soacutecrates a seus interlocutores Logo apoacutes a apresentaccedilatildeo das
Formas como soluccedilatildeo ao problema da copresenccedila de opostos Soacutecrates compele
seus interlocutores a demonstrarem nas Formas a validade dos mesmos
problemas que Zenatildeo acabara de apontar nos objetos sensiacuteveis
A passagem possui um problema textual que precisamos enfrentar para
podermos oferecer uma interpretaccedilatildeo adequada ao sentido do texto Trata-se do
aparecimento da expressatildeo αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά em 129b1 O neutro plural dos adjetivos
gregos eacute muitas vezes usado para designar de maneira geneacuterica um conjunto de
coisas que compartilham uma mesma caracteriacutestica Assim entendido o sentido de
expressotildees como τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια seria capturado pelas traduccedilotildees ldquoas
coisas semelhantesrdquo e ldquoas coisas dessemelhantesrdquo
No entanto estas traduccedilotildees estatildeo em claro desacordo com o conteuacutedo da
fala de Soacutecrates em 129a-c Na passagem em questatildeo Soacutecrates afirma que ficaria
assombrado caso algueacutem lhe demonstrasse que αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά venha(m) a se
tornar dessemelhante(s) e τὰ ἀνόmicroοια semelhante(s) Ora como vimos Soacutecrates
havia apresentado as Formas justamente como parte de uma demonstraccedilatildeo de
que ldquoas coisas semelhantesrdquo podem perfeitamente se tornar dessemelhantes e
vice-versa Portanto natildeo podemos adotar a interpretaccedilatildeo mais usual para o uso
do neutro plural de adjetivos na leitura de nossa passagem e somos obrigados a
descartar a hipoacutetese de que as expressotildees tenham como referecircncia um conjunto
geneacuterico de objetos sensiacuteveis sob pena de estarmos atribuindo agrave Soacutecrates uma
niacutetida contradiccedilatildeo Por outro lado caso queiramos identificar estas expressotildees
como designaccedilotildees das Formas nos encontramos novamente em dificuldade
Afinal sabemos que as Formas satildeo caracterizadas por serem uacutenicas Soacute haacute uma
uacutenica Forma da Beleza em oposiccedilatildeo agrave multiplicidade de coisas belas As
expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια no entanto estatildeo no plural
Haacute uma forte tendecircncia entre os comentadores a desqualificar este uso do
211
plural e considerar ambas expressotildees como maneiras de se referir agraves Formas23
Apesar desta soluccedilatildeo ser amplamente adotada poucos satildeo os casos de defesa
textual desta leitura Agrave parte a afirmaccedilatildeo de que substantivos plurais gregos
podem ser utilizados de maneira gramaticalmente correta para designar entidades
singulares um uacutenico argumento de caraacuteter textual foi oferecido em defesa da
posiccedilatildeo de que as expressotildees representam maneiras idiossincraacuteticas de se referir
agraves Formas Rist em Equals and Intermediates in Plato (1964) argumenta que o
pronome τούτων na sentenccedila imediatamente seguinte (129b3) refere-se agrave
expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια De acordo com Rist como a sentenccedila
afirma que certas coisas participam de τούτων (τὰ τούτων microετέχοντα) ficaria
claro que as expressotildees dizem respeito agrave Formas pois soacute Formas podem ser
objeto de participaccedilatildeo (Rist 1964 p30)
Sendo assim caso o pronome τούτων seja de fato anafoacuterico em relaccedilatildeo agraves
expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια somos obrigados a aceitar o argumento de
Rist e admitir que as expressotildees no neutro plural em 129b1 designam as Formas
do Semelhante e do Dessemelhante No entanto esta natildeo parece ser a uacutenica opccedilatildeo
de leitura Na passagem em questatildeo o pronome τούτων estaacute associado agrave
ἀmicroφοτέρων e como observa Calvert ldquoquando Platatildeo se refere agraves Formas do
Semelhante e do Dessemelhante ele alterna entre o uso do dual (τούτοιν δυοῖν
ὄντοιν 129 a1 ἀmicroφοῖν a8) e o plural ἀmicroφοτέρων (a6 a7)rdquo (Clavert 1982 p53)
Nestes dois uacuteltimos casos (a6 a7) eacute certamente inquestionaacutevel que Platatildeo estaacute
usando ἀmicroφοτέρων para se referir agraves Formas Sendo assim quando lemos τούτων
ἀmicroφοτέρων em 129b3 o mais natural eacute considerar que esta expressatildeo refere-se agraves
Formas do Semelhante e do Dessemelhante apresentadas anteriormente e natildeo a
αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια
Portanto se aceitamos que estamos lidando com entidades que natildeo estatildeo
sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos e no entanto natildeo estamos nos referindo agraves
Formas os candidatos naturais ao posto de referecircncia das expressotildees αὐτὰ τὰ
ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια satildeo as propriedades imanentes da semelhanccedila e
dessemelhanccedila Como vimos no Feacutedon propriedades imanentes satildeo evocadas
23 Scolnicov por exemplo afirma categoriacamente ldquoO plural eacute irrelevanterdquo (Scolnicov 2003
p49) Allen (Allen 1997 p89) Brisson (Brisson 2011 p90) Rickless (Rickless 2007 p48) Sayre (Sayre 1996 p6) e Teloh (Teloh 1981 p152) tambeacutem tratam as expressotildees como maneiras de se referir agraves Formas Segundo Miller o uso de expressotildees plurais para designar as Formas representa uma ldquoconfusatildeo no pensamento de Soacutecratesrdquo reflexo do caraacuteter incipiente
212
como parte do argumento que procura provar a diferenccedila ontoloacutegica entre Formas
e objetos sensiacuteveis (74b7-c5) e em seguida fazem parte da explicaccedilatildeo da
copresenccedila de opostos em Simmias (101-103) Em ambas passagens as
propriedades imanentes se diferenciam dos objetos sensiacuteveis que as possuem por
natildeo estarem elas mesmas sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza estes
objetos O paralelismo entre estas passagens do Feacutedon e nossa passagem do
Parmecircnides torna-se evidente quando consideramos que αὐτὰ τὰ ἴσα (Feacuted74c) e
αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά (Parm129b1) representam as uacutenicas ocorrecircncias de expressotildees da
forma αὐτὰ + adjetivo neutro plural no corpus platocircnico
Sendo assim encontramos total uniformidade no emprego deste tipo de
expressatildeo em Platatildeo ambas ocorrecircncias satildeo usadas para designar as propriedades
imanentes dos objetos sensiacuteveis adquiridas por meio da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo
que estes objetos mantecircm com as Formas Tal como as Formas as propriedades
imanentes natildeo estatildeo sujeitas agrave copresenccedila de opostos Poreacutem em oposiccedilatildeo agrave
unidade caracteriacutestica das Formas estas entidades satildeo muacuteltiplas e possuem um
tipo de existecircncia dependente dos objetos sensiacutevieis pois estatildeo localizadas nas
coisas (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος Feacuted102d ἡmicroεῖς ὁmicroοιότητος ἔχοmicroεν Parm130b)
Estando resolvida a questatildeo da referecircncia das expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e
τὰ ἀνόmicroοια podemos analisar o desafio lanccedilado por Soacutecrates e nos questionar se
neste desafio estatildeo mantidas as caracteriacutesticas da ontologia defendida por
Soacutecrates nos diaacutelogos da juventude e da fase meacutedia ou natildeo A passagem pode ser
dividia em quatro partes
1) 129b1 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que as
propriedades imanentes αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια podem receber
predicados opostos
ldquoPois se algueacutem mostrasse que αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά se tornam dessemelhantes ou que
τὰ ἀνόmicroοια se tornam semelhantes seria assombroso creiordquo
2) 129b6-c1 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que
a Forma da Unidade eacute muacuteltiplas coisas e o Muacuteltipo eacute um
da Teoria das Ideias apresentada no Parmecircnides (Miller 1986 p38)
213
ldquoMas se aquilo que eacute realmente Um algueacutem demonstrar que isso mesmo eacute
muacuteltiplas coisas e de outra parte que o Muacuteltiplo eacute um jaacute disso me espantareirdquo
3) 129c1-3 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que
as Formas satildeo tanto unas quanto muacuteltiplas
ldquoE do mesmo modo com respeito a todas as outras coisas se algueacutem mostrar que
em si mesmos os gecircneros mesmos e as Formas mesmas satildeo afetados por essas
afecccedilotildees contraacuterias [unidade e multiplicidade] isso seraacute digno de espantordquo
4) 129d6-130a1 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem
como as Formas podem estar misturadas e separadas entre si
ldquoMas dentre as coisas que haacute pouco mencionei se algueacutem em primeiro lugar separasse uma das outras as Formas mesmas em si mesmas ndash por exemplo a Semelhanccedila a Dessemelhanccedila a Quantidade o Um o Repouso o Movimento e todas as coisas deste tipo ndash em seguida mostrasse que estas entre si podem ser misturadas e separadas eu pelo menos disse [Soacutecrates] ficaria encantado cheio de espanto Zenatildeo Quanto agravequelas coisas [sensiacuteveis] acredito terem sido tratadas por ti com muita determinaccedilatildeo Entretanto eu como digo me encantaria muito mais se algueacutem pudesse essa mesma aporia da maneira como expuseste no caso das coisas que se vecircem exibi-la dessa mesma maneira tambeacutem no caso das coisas apreendidas pelo raciociacutenio entrelaccediladas de todos os modos nas Formas mesmasrdquo
1 e 2 representam basicamente o mesmo tipo de desafio Em 1 Soacutecrates
diz que ficaria assombrado caso lhe mostrassem que as propriedades imanentes
αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια estatildeo sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos Em 2 este
desafio eacute expandido para as Formas da Unidade e da Multiplicidade e Soacutecrates
pede que lhe seja demonstrado como o Um eacute muacuteltiplas coisas e o Muacuteltiplo um No
Feacutedon (102d-e) Soacutecrates havia afirmado que o Grande em si (αὐτὸ τὸ microέγεθος)
jamais apareceraacute como grande e pequeno e que tampouco o Gr ande (τὸ ἐν ἡmicroῖν
microέγεθος ) admitiraacute o pequeno ou consentiraacute em receber a pequenez e se tornar
contraacuterio ao que ele eacute (102e2) A imunidade agrave predicaccedilatildeo de opostos eacute portanto
vaacutelida igualmente para Formas e propriedades imanentes Neste ponto αὐτὰ τὰ
ὅmicroοιά e o Semelhante em si (αὐτὸ καθαὑτὸ εἶδός ὁmicroοιότητος) diferenciam-se dos
objetos sensiacuteveis e Soacutecrates desafia seus interlocutores a lhe demonstrarem como
qualquer uma destas entidades pode estar sujeita agrave copresenccedila de opostos que
214
caracteriza os objetos empiacutericos
Logo apoacutes intimar Zenatildeo e Parmecircnides a lhe demonstrarem que a Unidade
(ὃ ἔστιν ἕν) eacute muacuteltiplas coisas e que o Muacuteltiplo eacute um Soacutecrates muda o foco de sua
argumentaccedilatildeo e deixando de falar de um par especiacutefico de Formas passa a tratar
de Formas em geral (περὶ τῶν ἄλλων ἁπάντων) Soacutecrates entatildeo compele seus
interlocutores a lhe provarem 3 que as Formas elas mesmas satildeo afetadas
simultaneamente pela unidade e multiplicidade Os comentadores costumam
entender o desafio expresso em 3 como a generalizaccedilatildeo do problema da
copresenccedila de opostos apresentado em 1 e 2 Contudo como dito anteriormente
natildeo podemos considerar uma mera casualidade o fato de Soacutecrates escolher as
propriedades da unidade e da multiplicidade para operar esta generalizaccedilatildeo O
debate entre Soacutecrates e Zenatildeo eacute motivado pelo tema da unidademultiplicidade e a
reintroduccedilatildeo deste par de conceitos neste momento remete o leitor agrave distinccedilatildeo
inicial entre a multiplicidade de objetos sensiacuteveis (as coisas que chamamos
muitas τἆλλα ἃ δὴ πολλὰ καλοῦmicroεν) e a unidade caracteriacutestica das Formas
(τούτοιν δὲ δυοῖν ὄντοιν) Devemos entender portanto que Soacutecrates em 3 natildeo
estaacute apenas generalizando o problema da copresenccedila de opostos para o conjunto
de todas as Formas mas estaacute apresentando um novo desafio Soacutecrates desafia seus
interlocutores a lhe provarem que as Formas entidades caracterizadas por serem
uacutenicas e indivisiacuteveis podem ser caracterizadas pela multiplicidade encontrada nos
objetos sensiacuteveis
Como vimos o paradoxo de Zenatildeo pressupotildee a afirmaccedilatildeo da
multiplicidade das coisas em dois niacuteveis distintos Segundo Zenatildeo os objetos
sensiacuteveis satildeo muacuteltiplos tanto numericamente quanto por serem divisiacuteveis em
muacuteltiplas partes e receberem muacuteltiplos predicados Em paralelo a esta dualidade
inerente ao conceito de multiplicidade adotado por Zenatildeo as Formas platocircnicas
satildeo ditas uacutenicas tanto numericamente por soacute haver uma Forma da Beleza em
contraste com a pluralidade de objetos belos quanto por serem incompostas e
indivisiacuteveis Neste momento do desafio devemos pressupor que os dois sentidos
de unidade e multiplicidade estatildeo em jogo e que Soacutecrates estaacute desafiando seus
interlocutores a demonstrarem a multiplicidade das Formas tout court seja ela
entendida como a existecircncia de uma multiplicidade numeacuterica (diversas Formas da
Beleza por exemplo) ou uma multiplicidade de partes ou atributos de uma mesma
Forma
215
Por fim em 4 Soacutecrates afirma que ficaria surpreso caso algueacutem
ldquoseparasse uma das outras as Formas e em seguida mostrasse que estas Formas
entre si podem ser misturadas e separadasrdquo O sentido preciso desta afirmaccedilatildeo
natildeo estaacute claro de iniacutecio e seu significado deve ser acessado pela explicaccedilatildeo que se
segue Nas sentenccedilas seguintes Soacutecrates esclarece que sua surpresa estaacute
relacionada agrave possibilidade de algueacutem expor no caso das Formas a aporia que
Zenatildeo acabara de expor com relaccedilatildeo agraves coisas sensiacuteveis Como vimos a aporia
apresentada por Zenatildeo consiste em afirmar que os objetos sensiacuteveis satildeo muacuteltiplos
e por conta disso estatildeo sujeitos agrave predicaccedilatildeo de propriedades opostas Portanto
devemos entender que o entrelaccedilamento ao qual se refere Soacutecrates implica na
demonstraccedilatildeo de que as Formas satildeo tal como os objetos sensiacuteveis muacuteltiplas e
por conta desta multiplicidade estatildeo sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos
Em sua fala Soacutecrates enumera uma seacuterie de pares de Formas opostas
SemelhanccedilaDessemelhanccedila QuantidadeUm RepousoMovimento Como
observa Allen (Allen 1997 p101) o pronome ταῦτα em 129e2 possui como
antecedente estas Formas tomadas como pares e natildeo cada uma delas
isoladamente Sendo assim a passagem afirma que natildeo podemos considerar cada
um destes pares de Formas como separados e ao mesmo tempo supor que os dois
membros do par estatildeo misturados e caracterizando um ao outro
Ora estaacute claro que o entrelaccedilamento ou participaccedilatildeo de uma Forma em
outra faria com que elas perdessem sua unidade e uniformidade caracteriacutestica e
passassem a possuir uma multiplicidade de partes e atributos24 Aleacutem disso caso
Formas opostas estejam entrelaccediladas entre si cada uma delas teraacute um predicado
contraacuterio agrave sua auto-predicaccedilatildeo (a Semelhanccedila seraacute dessemelhante o Movimento
estaraacute em repouso etc) Portanto em 4 Soacutecrates recapitula os desafios expressos
anteriormente e reafirma a distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis expressa em
sua soluccedilatildeo ao paradoxo de Zenatildeo
O desafio apresentado por Soacutecrates retoma portanto aspectos
fundamentais da apresentaccedilatildeo da Teoria das Ideias a uniformidade das Formas
que se caracterizam por estarem imunes agrave predicaccedilatildeo de opostos e a unidade
24 No argumento desenvolvido em 142c8-143a2 por exemplo conclui-se que se o um eacute entatildeo o
um eacute constituido de partes Pois afirmar que ldquoo um eacuterdquo equivale a afirmar que uma parte do um participa da unidade e outra parte participa do ser (οὐσίας microετέχειν) O argumento pressupotildee portanto que a participaccedilatildeo em mais de uma Forma (entrelaccedilamento) eacute suficiente para concluir a existecircncia de muacuteltiplas partes do objeto participante
216
destas entidades que satildeo numericamente singulares Estas caracteriacutesticas estatildeo
mutuamente implicadas pois as Formas satildeo ditas uacutenicas e homogecircneas por serem
de maneira exclusiva auto-predicativas Em contraste como as coisas sensiacuteveis
sujeitas a uma diversidade de predicados inclusive predicados opostos as Formas
satildeo exclusivamente aquilo que elas satildeo A Forma F eacute apenas F e nada mais
estando imune agrave presenccedila da propriedade oposta natildeo-F e de maneira geral a
qualquer outro tipo de predicaccedilatildeo25 Estas caracteriacutesticas das Formas satildeo a base da
distinccedilatildeo ontoloacutegica entre Formas e objetos sensiacuteveis e se encontram articuladas
na soluccedilatildeo de Soacutecrates para o paradoxo de Zenatildeo Zenatildeo acredita que as coisas
satildeo muacuteltiplas e por causa disso estatildeo sempre sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos
Com o objetivo de desfazer o paradoxo Soacutecrates apresenta um novo tipo de
entidade caracterizada pela sua unidade e uniformidade Segundo Soacutecrates estas
entidades podem desfazer o problema da copresenccedila de opostos e serem a causa
das propriedades encontradas nos objetos sensiacuteveis por estarem elas mesmas
imunes agrave multiplicidade e copresenccedila de opostos encontrada nos objetos
empiacutericos
Sendo assim a demonstraccedilatildeo de que as Formas satildeo elas mesmas sujeitas
agrave copresenccedila de opostos retiraria destas entidades a capacidade de se apresentarem
como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis Pois segundo a compreensatildeo
de causalidade apresentada por Soacutecrates no Feacutedon eacute justamente o fato do Grande
nunca se apresentar como pequeno o que faz dele o candidato mais adequado para
o cargo de causa da grandeza das coisas sensiacuteveis A Forma da Beleza deve ser
incondicionalmente bela para assegurar o seu papel de causa da beleza nas coisas
Caso contraacuterio a Beleza ela mesma violaria um dos princiacutepios baacutesicos da
causalidade e poderia ser considerada tatildeo responsaacutevel pela beleza das coisas
quanto os adereccedilos de ouro que adornam Helena e a tornam bela para um
banquete poreacutem feia e repulsiva para um funeral Por outro lado a atribuiccedilatildeo de
multiplicidade agraves Formas abriria a possibilidade do paradoxo de Zenatildeo se repetir
em cada uma destas entidades quer entendamos esta multiplicidade como uma
multiplicidade numeacuterica ou como uma multiplicidade de atributos Pois ou bem
cada Forma seria composta por partes semelhantes entre si (por serem partes de
25 As afirmaccedilotildees de que F eacute uacutenica uniforme indivisiacutevel etc representam meta-predicados
atribuidos a todas as Formas Estes meta-predicados devem ser entendidos como afirmaccedilotildees restritas ao acircmbito da Teoria das Ideias e natildeo entram em conflito com a auto-predicaccedilatildeo das
217
uma mesma Forma) e ao mesmo tempo dessemelhantes (por serem partes
distintas) ou bem as muacuteltiplas Formas de F seriam semelhantes (por serem todas
elas Formas de uma mesma propriedade F) e dessemelhantes (por serem
numericamente distintas) Em ambos os casos as Formas estariam sujeitas aos
mesmos problemas encontrados nos objetos sensiacuteveis que supostamente
deveriam solucionar
O desafio lanccedilado por Soacutecrates eacute portanto uma consequecircncia direta da
sua soluccedilatildeo para o paradoxo de Zenatildeo A validade da hipoacutetese das Formas como
soluccedilatildeo ao paradoxo depende destas entidades manterem estes dois aspectos
fundamentais de sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica imunidade agrave copresenccedila de opostos e
unidade (numeacuterica e aspectual) Afinal estas caracteriacutesticas satildeo a base da
diferenciaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis e a distinccedilatildeo entre estes dois tipos
de entidade natildeo restaria estabelecida caso estas caracteriacutesticas proacuteprias dos
objetos sensiacuteveis fossem encontradas tambeacutem nas Formas Portanto caso a
multiplicidade e predicaccedilatildeo de opostos apontadas por Zenatildeo nos objetos sensiacuteveis
sejam vaacutelidas paras Formas a soluccedilatildeo apresentada por Soacutecrates se mostraraacute falsa
e o paradoxo de Zenatildeo permaneceraacute irresoluto
A importacircncia do desafio de Soacutecrates para a compreensatildeo da estrutura do
Parmecircnides dificilmente pode ser superestimada A fala em que Soacutecrates
soluciona o paradoxo de Zenatildeo e em seguida desafia seus interlocutores a
provarem a falsidade de sua resoluccedilatildeo representa o mais longo discurso
ininterrupto do diaacutelogo e possui um forte apelo dramaacutetico No desafio que encerra
esta fala Soacutecrates usa as palavras ldquomaravilhadordquo ldquoencantadordquo e seus cognatos
nada menos do que oito vezes e deixa bem claro ao leitor quatildeo arraigado eacute o seu
comprometimento com as teses da uniformidade e unidade das Formas e quatildeo
chocante e arrasador seria o reconhecimento da falsidade destes princiacutepios
fundamentais de sua teoria Esta insistecircncia no tema do maravilhamento de
Soacutecrates faz parte da estrateacutegia dramaacutetica adotada por Platatildeo que pretende
chamar atenccedilatildeo para importacircncia destas duas caracteriacutesticas fundamentais da
constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e antecipar para o leitor o esquema geral do
ataque agrave Teoria das Ideias que seraacute realizado por Parmecircnides Como veremos
Parmecircnides aceita o desafio lanccedilado por Soacutecrates e localiza suas criacuteticas
Formas
218
justamente nos princiacutepios de uniformidade e unidade das Formas Por meio da
sequecircncia de paradoxos que compotildeem o restante da primeira parte do diaacutelogo
Parmecircnides iraacute provar a Soacutecrates como estas caracteriacutesticas das Formas mostram-
se irreconciliaacuteveis com a noccedilatildeo de participaccedilatildeo e de maneira geral com a tese de
que as Formas satildeo causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis
219
42 As criacuteticas de Parmecircnides agrave teoria da participaccedilatildeo
Apoacutes Soacutecrates terminar sua longa fala Parmecircnides que ateacute entatildeo ouvia a
discussatildeo calado volta-se para Soacutecrates e passa a formular uma seacuterie de criacuteticas agrave
distinccedilatildeo ontoloacutegica que este havia apresentado Tal como prenunciado na
complexa estrutura narrativa delineada pelo proacutelogo do diaacutelogo a fala de
Parmecircnides emerge em continuidade ao debate anteriormente desenvolvido por
Soacutecrates e Zenatildeo e toma como ponto de partida os resultados obtidos pela
discussatildeo anterior Em especial a argumentaccedilatildeo desenvolvida por Parmecircnides
pretende recuperar em forma e intenccedilatildeo o paradoxo de abertura do diaacutelogo
Formalmente as criacuteticas de Parmecircnides retomam o tipo de argumentaccedilatildeo
em reduccedilatildeo ao absurdo na qual o paradoxo de Zenatildeo havia sido formulado A
estrateacutegia consiste em aceitar de maneira provisoacuteria a teoria apresentada por
Soacutecrates com o intuito de derivar a partir do conjunto de hipoacuteteses que
constituem esta teoria contradiccedilotildees internas ou consequecircncias inaceitaacuteveis Em
intenccedilatildeo as criacuteticas pretendem restabelecer a validade deste paradoxo por meio da
demonstraccedilatildeo da inviabilidade da soluccedilatildeo oferecida por Soacutecrates Assim do
mesmo modo que Zenatildeo havia formulado seu paradoxo pretendendo proteger
Parmecircnides dos ataques de seus detratores Parmecircnides apresenta suas criacuteticas
como uma defesa de Zenatildeo a quem Soacutecrates afirma ser capaz de refutar
Em linhas gerais as criacuteticas de Parmecircnides seguem a seguinte estrutura
Parmecircnides comeccedila questionando Soacutecrates acerca da extensatildeo e populaccedilatildeo do
ldquomundo da Ideiasrdquo isto eacute que tipos de objetos sensiacuteveis possuem uma Forma
correspondente Em seguida Parmecircnides desenvolve uma seacuterie de paradoxos
intimamente relacionados entre si voltados contra a noccedilatildeo de participaccedilatildeo
adotada por Soacutecrates Na tentativa de escapar destas criacuteticas Soacutecrates procura
oferecer explicaccedilotildees distintas para natureza da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo e propotildee
primeiro que as Formas sejam entendidas como pensamentos e em seguida
como paradigmas Contudo ambas propostas levam a mais paradoxos e
Parmecircnides acaba por concluir que a participaccedilatildeo eacute impossiacutevel e que de acordo
com a concepccedilatildeo socraacutetica do que eacute uma Forma estas entidades estariam
completamente isoladas da realidade sensiacutevel o que as tornaria incognosciacuteveis e
220
irrelevantes
Caso sejam consideradas vaacutelidas as criacuteticas oferecidas por Parmecircnides
representam um ataque avassalador agrave teoria apresentada por Soacutecrates Este fato
parece ser reconhecido por Soacutecrates que diz ao final dos ataques de Parmecircnides
natildeo vislumbrar uma saiacuteda nos garantindo que ao menos no contexto dramaacutetico
do diaacutelogo o criticismo parmeniacutedico eacute tido como procedente Contudo a despeito
da aporia e do embaraccedilo demonstrados por Soacutecrates alguns comentadores negam
a importacircncia destes argumentos e afirmam que Platatildeo nunca admitiu a
legitimidade das criacuteticas aqui apresentadas
Uma maneira de desqualificar a argumentaccedilatildeo de Parmecircnide que
precisamos desde jaacute analisar consiste em reconhecer a validade dos argumentos
poreacutem negar a sua relevacircncia com relaccedilatildeo agrave Teoria das Ideias De acordo com este
tipo de interpretaccedilatildeo os paradoxos apresentados por Parmecircnides natildeo teriam como
alvo a Teoria das Ideias platocircnicas mas estariam direcionadas contra concepccedilotildees
heterodoxas acerca da natureza das Formas adotadas por membros da Academia
cujas teorias Platatildeo estaria atacando
O alvo mais constantemente apresentado eacute Eudoxo de Cnidos Eudoxo foi
um astrocircnomo e matemaacutetico extremamente respeitado e seu nome estaacute
relacionado a uma seacuterie de descobertas matemaacuteticas de seu tempo Segundo
algumas fontes Eudoxo seria associado a Academia e teria inclusive assumido o
cargo de diretor da escola (sxolarxhj) durante a viagem de Platatildeo para Sciciacutelia
em 366 (cf Philoch fr223) De fato vaacuterios testemunhos nos levam a crer que em
algum momento de sua carreira filosoacutefica Eudoxo desenvolveu uma teoria
proacutepria acerca da natureza das Formas e de acordo com o comentaacuterio de
Alexandre de Afrodiacutesia esta teoria estaria criticada por uma seacuterie de argumentos
do tratado aristoteacutelico PERI IDEWN (In Methaph 97-98)
Em Aristotles Criticism of Plato and The Academy Cherniss reconhece
uma grande similaridade entre as criacuteticas descritas por Alexandre e as criacuteticas que
encontramos no Parmecircnides A partir da identificaccedilatildeo entre estas duas seacuteries de
argumentos Cherniss conclui que o criticismo apresentado em nosso diaacutelogo estaacute
direcionado contra a noccedilatildeo imanentista de Formas defendida por Eudoxo e natildeo
contra a Teoria das Ideias descrita nos diaacutelogos de Platatildeo (Cherniss 1944 p144)
Esta interpretaccedilatildeo eacute posteriormente endossada por Cornford para quem as
criacuteticas do Parmecircnides devem ser entendidas como a rejeiccedilatildeo do proacuteprio Platatildeo agrave
221
compreensatildeo rudimentar de participaccedilatildeo defendida por Eudoxo (Cornford 1951
p87)26
Recentemente outro membro da Academia foi oferecido como alvo dos
argumentos do Parmecircnides Em The Fog Dispelled (2010) Graeser propotildee que o
Parmecircnides deve ser entendido como uma refutaccedilatildeo da concepccedilatildeo de Formas
defendida por Espeusipo sobrinho de Platatildeo e sxolarxhj da Academia durante
os oito anos seguintes agrave sua morte Segundo Graeser no Parmecircnides ldquoPlatatildeo guia
seus leitores agrave compreensatildeo de que seu criticismo das Formas inteligiacuteveis reverte-
se contra a teoria dos princiacutepios de Espeusipordquo (Graeser 2010 p17)
Para podermos avaliar a viabilidade do tipo de hipoacutetese interpretativa
defendida por Cherniss Cornford e Graeser segundo a qual as criacuteticas de
Parmecircnides estatildeo endereccediladas a uma outra teoria que natildeo a proacutepria Teoria das
Ideias encontrada nos diaacutelogos platocircnicos precisamos recapitular as
caracteriacutesticas da distinccedilatildeo ontoloacutegica oferecida por Soacutecrates como soluccedilatildeo ao
paradoxo de Zenatildeo No Parmecircnides Soacutecrates apresenta uma teoria segundo a
qual
1) Existem Formas (εἴδη) entidades em si (αὐτὰ καθ αὑτὰ τὰ)
separadas (χωρὶς) dos objetos sensiacuteveis (128e6-130b-5) e
conhecidas pela razatildeo (ἐν τοῖς λογισmicroῷ λαmicroβανοmicroένοις) (129e5-
130a2)
2) Estas Formas satildeo entidades auto-predicativas isto eacute a Forma do
Grande eacute grande a Forma do Pequeno eacute pequena etc (132a)
3) As Formas satildeo entidades singulares e indivisiacuteveis (ἓν ἕκαστον
εἶδος εἶναι) em oposiccedilatildeo agrave multiplicidade numeacuterica e
complexidade mereoloacutegica que caracteriza os objetos sensiacuteveis
4) As Formas satildeo entidades ldquounicas em aspectordquo (microονοειδὲς) isto eacute
imunes agrave copresenccedila de propriedades opostas Em oposiccedilatildeo a isto
os objetos sensiacuteveis estatildeo sempre sujeitos a este tipo de
26 Em Eudoxos in The Parmecircnides (1973) Malcolm Shofield defende que a teoria de Eudoxo eacute
discutida no Parmecircnides poreacutem natildeo na primeira parte do diaacutelogo Shoefield acredita que alguns argumentos da longa seacuterie de deduccedilotildees que compotildee a segunda parte do Parmecircnides precisam ser entendidos sobre o background da teoria de Eudoxo Como o proacuteprio Shofield reconhece (Shoefied 1973 p4-5) a hipoacutetese de que a teoria de Eudoxo eacute discutida em algumas deduccedilotildees da segunda parte do Parmecircnides jaacute havia sido levantada por Brumbaugh (cf Brumbaugh 1961 p25-26)
222
copresenccedila (129b6-c1)
5) Os objetos sensiacuteveis por outro lado participam das Formas e eacute
pela participaccedilatildeo (microετάληψις) nas Formas que adquirem as
propiedades que possuem (129a3-129b1) e os nomes pelos quais
satildeo chamadas (ἐπωνυmicroία) (130e5-131a2)
Como qualquer leitor dos diaacutelogos platocircnicos pode facilmente perceber as
sentenccedilas listadas acima definem de maneira inequiacutevoca a Teoria das Ideias que
delineamos nos capiacutetulos precedentes Como vimos a existecircncia de Formas
entidades separadas dos objetos empiacutericos e detentoras de um estatuto ontoloacutegico
proacuteprio estaacute pressuposta desde os diaacutelogos inicias Estas entidades satildeo
caracterizadas por serem inteligiacuteveis isto eacute captadas unicamente pela razatildeo
(Feacutedon 65d4-66a10) sempre idecircnticas a si mesmas e auto-predicativas
(Protaacutegoras 330c7-e1 Hiacuteppias Maior 292e Eutidemos 301b5-c2 e Feacutedon 100c4-
6) estando portanto imunes agrave predicaccedilatildeo de opostos (Hiacuteppias Maior 291d1-3
Feacutedon 102e5-6 Banquete 211a2-5 Repuacuteblica V 479a) Como resultado da soma
destas caracteriacutesticas as Formas satildeo entidades completamente isentas de
pluralidade incapazes de sofrer qualquer tipo de mudanccedila singulares e
indivisiacuteveis (microονοειδὲς ἀσύνθετα Fed78c6)
Por outro lado em oposiccedilatildeo agrave unidade e estabilidade ontoloacutegica
caracteriacutestica das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo descritos por Soacutecrates como
entidades compostas e internamente complexas sujeitas agrave mudanccedila constante e
submetidas a uma infinidade de predicaccedilotildees inclusive opostas (Hiacuteppias Maior
289a3-b7 Feacutedon 74b7-9 102b-c Repuacuteblica 479a-b)
Do mesmo modo o poder causal exercido pelas Formas sobre os objetos
sensiacuteveis e o vocabulaacuterio da participaccedilatildeo a ele relacionado possuem um papel
central nos argumentos dos diaacutelogos e podem ser encontrados desde a busca por
definiccedilotildees do Ecircutifron e do Hippias Maior ateacute os diaacutelogos da fase meacutedia como
Banquete e Feacutedon Assim desde os primeiros diaacutelogos as Formas satildeo
apresentadas como responsaacuteveis pelas caracteriacutesticas dos objetos sensiacuteveis e causa
efetiva das propriedades encontradas nestes objetos
Eacute portanto facilmente constataacutevel que as caracteriacutesticas fundamentais da
Teoria das Ideias estatildeo representadas na listagem acima e mesmo o vocabulaacuterio
empregado por Soacutecrates no Parmecircnides coincide com a terminologia dos diaacutelogos
223
anteriores Tendo em vista esta identidade vocabular e conceitual creio que
podemos descartar desde jaacute as interpretaccedilotildees que pretendem identificar qualquer
outra teoria que natildeo a Teoria das Ideias como alvo dos ataques de Parmecircnides
Afinal acreditar que as criacuteticas apresentadas no Parmecircnides estatildeo endereccediladas a
Eudoxo ou a Espeusipo equivale a tornar estas criacuteticas um mero caso de ignoratio
elenchi com relaccedilatildeo a toda argumentaccedilatildeo anteriormente desenvolvida no diaacutelogo
A distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis apresentada por Soacutecrates
como soluccedilatildeo ao paradoxo de Zenatildeo eacute a mesma formulada nos diaacutelogos meacutedios e
da juventude e este fato deve parecer oacutebvio ao leitor do Parmecircnides tanto pelo
vocabulaacuterio empregado por Soacutecrates quanto pelo motivo pelo qual a Teoria das
Ideias eacute trazida agrave discussatildeo Sendo assim seria completamente incompreensiacutevel
que Platatildeo resolvesse representar o personagem Parmecircnides criticando qualquer
outra teoria senatildeo aquela que Soacutecrates apresenta reiteradamente nos diaacutelogos em
que figura como personagem principal e que eacute anunciada no proacuteprio Parmecircnides
como soluccedilatildeo ao paradoxo de Zenatildeo27
27 Haacute ainda outra objeccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo de que as criacuteticas do Parmecircnides estatildeo direcionadas
contra teorias heterodoxas defendidas por membros da Academia em divergecircncia a Platatildeo Como observa Dancy em Two Studies in the Early Academy este tipo de interpretaccedilatildeo depende de uma hipoacutetese cronoloacutegica acerca da data de composiccedilatildeo do Parmecircnides dificilmente verificaacutevel Afinal para admitirmos que o Parmecircnides conteacutem uma criacutetica agrave teoria de Eudoxo ou Espeusipo devemos supor que na ocasiatildeo da composiccedilatildeo do diaacutelogo a teoria criticada jaacute havia sido desenvolvida No entanto nada nos impede de realizar a inferecircncia no sentido oposto e afirmar que Eudoxo ou Espeusipo propuseram suas teorias a partir de uma leitura do Parmecircnides Caso esta uacuteltima hipoacutetese cronoloacutegica esteja correta o Parmecircnides foi escrito antes da formulaccedilatildeo das teorias de Eudoxo e Espeusipo e portanto natildeo poderia conter criacuteticas a estas teorias (cf Dancy 1991 p20-24)
224
421 A separaccedilatildeo das Formas
Parmecircnides inicia seu exame enfatizando a distinccedilatildeo fundamental na qual
a hipoacutetese de Soacutecrates estaacute baseada Em sua fala Soacutecrates havia afirmado que o
Semelhante o Dessemelhante o Um o Muacuteltiplo e as demais Formas devem ser
entendidas como entidades em si e por si (αὐτὰ καθ αὑτὰ) detentoras de um
estatuto ontoloacutegico proacuteprio e marcadamente distintas dos objetos sensiacuteveis
Assumindo a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis estabelecida por Soacutecrates
Parmecircnides levanta duas questotildees acerca desta distinccedilatildeo 1) Se foi o proacuteprio
Soacutecrates quem fez a divisatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis e 2) Se a
Semelhanccedila mesma eacute algo separado da semelhanccedila que possuiacutemos e o mesmo
com relaccedilatildeo aos outros termos mencionados por Zenatildeo
ldquoE foi isso entatildeo que expressou Parmecircnides quando ele [Soacutecrates] terminou Soacutecrates disse quatildeo digno eacutes de ser admirado pelo ardor que tens pelos argumentos Mas dize-me 1) tu mesmo assim fizestes a divisatildeo tal como falas de um lado certas coisas mesmas de outro as coisas que delas participam E 2) te parece a semelhanccedila mesma ser algo separada da semelhanccedila que temos e tambeacutem o um e as muacuteltiplas coisas e todas as coisas que haacute pouco ouviste de Zenatildeo Parece-me que sim disse Soacutecratesrdquo ὅπερ οὖν καὶ παυσαmicroένου αὐτοῦ εἰπεῖν τὸν Παρmicroενίδην Ὦ Σώκρατες φάναι ὡς ἄξιος εἶ ἄγασθαι τῆς ὁρmicroῆς τῆς ἐπὶ τοὺς λόγους καί microοι εἰπέ 1) αὐτὸς σὺ οὕτω διῄρησαι ὡς λέγεις χωρὶς microὲν εἴδη αὐτὰ ἄττα χωρὶς δὲ τὰ τούτων αὖ microετέχοντα καί 2) τί σοι δοκεῖ εἶναι αὐτὴ ὁmicroοιότης χωρὶς ἧς ἡmicroεῖς ὁmicroοιότητος ἔχοmicroεν καὶ ἓν δὴ καὶ πολλὰ καὶ πάντα ὅσα νυνδὴ Ζήνωνος ἤκουες Ἔmicroοιγε φάναι τὸν Σωκράτη (130b1-5)
Parmecircnides destaca o tema da separaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis
mencionando a preposiccedilatildeoadveacuterbio χωρίς (separadoseparadamente) nada menos
do que trecircs vezes em apenas quatro linhas Devemos entender a insistecircncia de
Parmecircnides sobre este ponto como um artifiacutecio dramaacutetico cujo objetivo eacute chamar
a atenccedilatildeo do leitor para questatildeo da ldquoseparaccedilatildeordquo entre Formas e objetos sensiacuteveis
na qual a teoria de Soacutecrates estaacute fundamentada Soacutecrates jaacute havia usado o termo
χωρίς com relaccedilatildeo agraves Formas anteriormente (διαιρῆται χωρὶς αὐτὰ καθ αὑτὰ τὰ
εἴδη 129d7) E de fato sua teoria parece envolver algum modo de separaccedilatildeo entre
duas classes distintas de objetos pois Soacutecrates afirma haver aleacutem das muacuteltiplas
coisas apontadas por Zenatildeo um outro conjunto de objetos distintos das coisas
225
sensiacuteveis e detentores de um estatuto ontoloacutegico proacuteprio as Formas Mas o que
significa afirmar que as Formas satildeo entidades separadas Com o que exatamente
estaria Soacutecrates se comprometendo ao responder afirmativamente agrave pergunta de
Parmecircnides
Em seu sentido mais baacutesico podemos entender a afirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo
entre duas entidades como equivalente agrave atribuiccedilatildeo de natildeo-identidade numeacuterica
entre elas Assim compreendido o termo ldquoseparaccedilatildeordquo natildeo teria outro papel senatildeo
enfatizar o fato pressuposto pela teoria apresentada por Soacutecrates de que a Forma
natildeo eacute idecircntica aos objetos que dela participam ou seja se o objeto x participa da
Forma F entatildeo x e F satildeo coisas numericamente distintas isto eacute separadas Uma
segunda interpretaccedilatildeo possiacutevel seria entendermos a afirmaccedilatildeo de separaccedilatildeo como
equivalente agrave afirmaccedilatildeo de independecircncia ontoloacutegica De acordo com este sentido
uma coisas eacute separada da outra se ela pode existir independentemente da outra
Portanto nesta segunda acepccedilatildeo do termo x eacute separado de y se x pode continuar
a existir ainda que y deixe de existir ou mesmo que y nunca tenha existido28 Uma
terceira opccedilatildeo seria entendermos a afirmaccedilatildeo de que x eacute separado de y como
equivalente ao isolamento ou dissociaccedilatildeo total entre estes dois itens Assim
entendida a separaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis implicaria na inexistecircncia
de contato entre estas entidades tal como quando dizemos que uma mesa estaacute
separada da parede para afirmar que estas duas coisas natildeo estatildeo em contato uma
com a outra
Soacutecrates natildeo pede esclarecimentos a Parmecircnides acerca do que estaacute sendo
entendido por ldquoseparaccedilatildeordquo e noacutes como leitores devemos buscar nas entrelinhas
do texto o significado desta expressatildeo Esta tarefa nos eacute facilitada por Platatildeo que
oferece uma informaccedilatildeo fundamental acerca do sentido da palavra χωρίς por meio
da construccedilatildeo de um paralelismo entre a afirmaccedilatildeo de que a Forma F eacute separada
(χωρίς) e a afirmaccedilatildeo de que a Forma F eacute em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτό)
Em 129b4 Parmecircnides comeccedila seu exame perguntando a Soacutecrates se ele
acredita ser a Semelhanccedila mesma algo separado (χωρίς) da semelhanccedila que noacutes
temos Logo em seguida (130b7-9) Parmecircnides formula o mesmo tipo de questatildeo
utilizando agora a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτό ldquoSeraacute que tambeacutem coisas tais
28 Note que diferente da relaccedilatildeo de natildeo-identidade a indenpendecircncia ontoloacutegica natildeo eacute uma
relaccedilatildeo simeacutetrica Podemos considerar que x possui um modo de existecircncia independente de y e ao mesmo tempo afirmarmos que y eacute ontologicamente dependente de x
226
como uma certa Forma em si e por si do Belo e do Justo [existem]rdquo Por fim em
130c1-2 Parmecircnides volta a usar o termo χωρίς e pergunta ldquoMas e uma Forma
do Homem [existiria esta Forma] separada de noacutes e de todos tais como somos
noacutesrdquo
Conforme observa Vlastos durante toda esta arguiccedilatildeo as expressotildees χωρίς
e αὐτὸ καθ αὑτό ldquosatildeo usadas intercaladamente para enunciar a mesma tese
metafiacutesica (metaphysical claim)rdquo (Vlastos 1991 p259) Como Soacutecrates natildeo se
manifesta contra a assimilaccedilatildeo do significado destas duas expressotildees e aceita sem
ressalvas o paralelismo estabelecido por Parmecircnides natildeo temos razatildeo para
duvidar de que as proposiccedilotildees ldquoA Forma F eacute separadardquo e ldquoA Forma F eacute em si e
por sirdquo possuem o mesmo significado e expressam o mesmo fato ontoloacutegico
A identidade entre o significado das expressotildees χωρίς e αὐτὸ καθ αὑτό
natildeo nos seria uacutetil contudo caso natildeo soubeacutessemos o que Soacutecrates entende pela
afirmaccedilatildeo de que as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὸ καθ αὑτό) No
entanto como vimos anteriormente a afirmaccedilatildeo de que as Formas satildeo ldquoem si e
por sirdquo eacute extremamente recorrente nos diaacutelogos e devemos entendecirc-la como
equivalente agrave tese da independecircncia ontoloacutegica das Formas As Formas satildeo ditas
αὐτὰ καθ αὑτὰ devido ao fato de apresentarem um modo de existecircncia
independente com relaccedilatildeo aos objetos sensiacuteveis que delas participam No
Banquete (211a5-b6) por exemplo a foacutermula ainda mais enfaacutetica αὐτὸ καθ αὑτὸ
microεθ αὑτοῦ eacute usada para expressar o modo de existecircncia autossuficente da Forma
do Belo que natildeo eacute afetada em absoluto pelas vicissitudes que as coisas belas do
mundo empiacuterico estatildeo fadadas a sofrer Pois ldquo() nem o nascimento nem a morte
destas coisas o fazem aumentar ou diminuir ou lhe produzem qualquer efeitordquo
(οἷον γιγνοmicroένων τε τῶν ἄλλων καὶ ἀπολλυmicroένων microηδὲν ἐκεῖνο microήτε τι πλέον
microήτε ἔλαττον γίγνεσθαι microηδὲ πάσχειν microηδέν) Gozando de uma modo de
existecircncia plenamente independente e natildeo dependendo de qualquer tipo de relaccedilatildeo
com outras entidades para ser aquilo que eacute o Belo ele mesmo permaneceraacute ldquosendo
sempre uacutenico em aspectordquo (microονοειδὲς ἀεὶ ὄν)
No Feacutedon Soacutecrates usa o mesmo paralelismo entre χωρίς (representado
pelo verbo χωρίζω) e αὐτὸ καθ αὑτό para explicar como o evento da morte que
nada mais eacute do que a separaccedilatildeo da alma do corpo faz com que estes dois
elementos passem a existir em si e por si ou seja de maneira independente
(Feacuted64C5-8) A morte significa para alma o fim da longa dependecircncia
227
estabelecida com o corpo ao qual estava relacionada durante a encarnaccedilatildeo Apoacutes a
morte tanto o corpo quanto a alma passam a gozar de um modo de existecircncia
separado O corpo existiraacute de maneira independente poreacutem apenas pelo breve
espaccedilo de tempo que separa o evento da morte de sua dissoluccedilatildeo total enquanto a
alma continuaraacute a existir separada e independente mesmo apoacutes o
desaparecimento do corpo
Em ambas as passagens a locuccedilatildeo αὐτὸ καθ αὑτό eacute usada para designar o
estatuto ontoloacutegico independente de uma entidade Sendo assim dado o
paralelismo apontado por Vlastos entre a afirmaccedilatildeo de que ldquoA Forma F eacute em si e
por sirdquo e a afirmaccedilatildeo de que ldquoA Forma F eacute separadardquo podemos concluir que
Soacutecrates ao concordar que as Formas satildeo entidades separadas estaacute se
comprometendo com a tese de que as Formas existem de maneira completamente
independente dos objetos sensiacuteveis que delas participam natildeo necessitando deles
para serem aquilo que elas satildeo29
A insistecircncia de Parmecircnides sobre a questatildeo da separaccedilatildeo das Formas
representa seu reconhecimento de que a Teoria das Ideias apresentada por
Soacutecrates estaacute fundamentalmente vinculada agrave independecircncia ontoloacutegica destas
entidades Para que as Formas se apresentem como soluccedilatildeo agraves contradiccedilotildees do
mundo empiacuterico eacute imprescindiacutevel que estas entidades demonstrem-se aptas a
manter suas caracteriacutesticas ontoloacutegicas fundamentais a despeito do que aconteccedila
com os objetos que delas participam e sobretudo a despeito de como seja
entendida a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que as vincula aos objetos sensiacuteveis Assim a
29 Alguns comentadores entendem que a pergunta de Parmecircnides pressupotildee a simetria da relaccedilatildeo
de ldquoseparaccedilatildeordquo isto eacute se x eacute separado de y entatildeo y eacute separado de x Este fato por si soacute seria suficiente para descartarmos a hipoacutetese de que o termo χωρίς e por extensatildeo a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτό possam implicar independecircncia ontoloacutegica Afinal a Teoria das Ideias certamente afirma a independecircncia ontoloacutegica das Formas frente aos objetos sensiacuteveis Poreacutem segundo estes autores a afirmaccedilatildeo da indenpendecircncia ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis frente agraves Formas estaacute em clara contradiccedilatildeo com a Teoria das Ideias Portanto como Soacutecrates aceita sem ressalvas a formulaccedilatildeo de Parmecircnides devemos entender o termo χωρίς em algum dos sentidos que natildeo implicam a independecircncia ontoloacutegica da entidade separada (cf Gill 1996 p17 n23) ou devemos admitir que o jovem Soacutecrates natildeo estaacute completamente ciente da tese com a qual estaacute se comprometendo e aceita a independecircncia ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por engano (cf Allen 1997 p23-23) Vlastos apresenta um contra-argumento a estes autores afirmando que este tipo de interpretaccedilatildeo deriva de uma leitura errocircnea do texto Segundo Vlastos natildeo haacute razatildeo para acreditarmo que a relaccedilatildeo de separaccedilatildeo estaacute sendo tratada como uma relaccedilatildeo simeacutetrica porque as ocorrecircncias de χωρίς em 130b2 e b3 devem ser entendida como adveacuterbios de διῄρησαι Assim em b2-3 natildeo estamos falando de ldquoexistir separadamenterdquo mas de ldquodistinguir separadamenterdquo e a afirmaccedilatildeo do modo de existecircncia separado das Formas soacute aconteceria na sentenccedila seguinte b4 onde natildeo haacute sinal algum de simetria (cf Vlastos 1991 p 256)
228
ecircnfase no tema da separaccedilatildeo durante a fala de abertura da argumentaccedilatildeo de
Pamecircnides antecipa ao leitor do diaacutelogo o conteuacutedo das criacuteticas que se seguiratildeo
Como veremos os argumentos de Parmecircnides pretendem demonstrar justamente
a impossibilidade das Formas preservarem sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica distintiva
enquanto estejam vinculadas aos objetos sensiacuteveis por meio da relaccedilatildeo de
participaccedilatildeo
O questionamento parmeniacutedico contudo natildeo termina por ai e suas duas
perguntas iniciais satildeo oferecidas em uma uacutenica sentenccedila como dois problemas
intimamente conectados Assim sua segunda questatildeo (130b3-4) eacute enunciada
como um mero corolaacuterio da primeira (130b2-3) se as Formas satildeo entidades
separadas dos objetos sensiacuteveis e estes objetos por sua vez satildeo separados das
Formas haveria entatildeo uma Forma do Semelhante separada da semelhanccedila que as
coisas sensiacuteveis possuem
Soacutecrates responde afirmativamente agraves duas perguntas reconhecendo a
existecircncia de uma Forma do Semelhante separada tanto dos objetos sensiacuteveis
quanto da semelhanccedila que haacute em noacutes Deste modo Parmecircnides torna expliacutecito
aquilo que jaacute havia sido antecipado pelo aparecimento da expressatildeo αὐτὰ τὰ
ὅmicroοιά isto eacute que a teoria apresentada por Soacutecrates pressupotildee a distinccedilatildeo natildeo
somente entre Formas e objetos sensiacuteveis mas tambeacutem entre Formas e
propriedades imanentes Portanto de acordo com Soacutecrates se estamos falando de
dois homens semelhantes entre si nossa anaacutelise pressupotildee a distinccedilatildeo de trecircs tipos
de entidades 1) a Forma do Semelhante 2) os indiviacuteduos em questatildeo e 3) a
semelhanccedila que estes indiviacuteduos possuem devido ao fato de participarem da
Forma do Semelhante
Como Parmecircnides demonstra perceber a distinccedilatildeo entre Formas e
propriedades imanentes eacute uma consequecircncia direta da hipoacutetese da separaccedilatildeo das
Formas As Formas satildeo entidades em si e por si separadas dos objetos sensiacuteveis
mas ao mesmo tempo se apresentam como causas das caracteriacutesticas destes
objetos Sendo assim eacute preciso supor a existecircncia de um resultado nas coisas da
accedilatildeo causal exercida pelas Formas Neste momento da discussatildeo nenhuma
informaccedilatildeo eacute passada ao leitor acerca do estatuto ontoloacutegico deste terceiro
elemento a natildeo ser o fato de que esta entidade encontra-se nas coisas sendo
portanto presente nos objetos sensiacuteveis Parmecircnides iraacute solucionar esta carecircncia
de informaccedilatildeo durante a enunciaccedilatildeo do seu ldquodilema da participaccedilatildeordquo Segundo
229
este dilema soacute haacute duas possibilidades de compreensatildeo para o que satildeo as
propriedade imanentes ou bem estas entidades satildeo as proacuteprias Formas presentes
por inteiro nos objetos que delas participam ou bem satildeo partes de Formas
compartilhadas pelos objetos sensiacuteveis por meio da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo
230
422 A extensatildeo do conjunto de Formas
Apoacutes se certificar da separaccedilatildeo entre Formas objetos sensiacuteveis e
propriedades imanentes Parmecircnides realiza trecircs perguntas acerca da extensatildeo do
conjunto de Formas Claramente sua intenccedilatildeo eacute determinar para que tipo de
coisas existe uma Formas correspondente De um ponto de vista dramaacutetico seu
interesse sobre esta questatildeo eacute extremamente natural Parmecircnides acabara de ser
apresentado agrave Teoria das Ideias e a primeira duacutevida que lhe surge eacute quais Formas
existem
Soacutecrates jaacute havia concordado que existem as Formas do Semelhante do
Dessemelhante do Um do Muacuteltiplo do Repouso e do Movimento Estas Formas
correspondem a termos gerais de aplicaccedilatildeo irrestrita pois todo elemento da
realidade precisa possuir senatildeo cada um destes pares de predicados ao menos um
membro de cada par30 Parmecircnides natildeo se deteacutem nestas Formas e se refere a elas
apenas pela designaccedilatildeo geneacuterica de ldquoas coisas que haacute pouco ouviste de Zenatildeordquo
(130b5)31
Por outro lado Parmecircnides se mostra bastante interessado em saber se
Soacutecrates admite aleacutem de Formas correspondentes a termos de aplicaccedilatildeo irrestrita
ldquouma Forma em si e por si do Justo e tambeacutem do Belo e do Bom e ainda de todas
as coisas deste tipordquo Ao que Soacutecrates responde confiantemente que sim (130b7-
10)
Ora termos com ldquoo belordquo ldquoo bomrdquo e ldquoo justordquo exemplificam as virtudes
que encontramos em diaacutelogos relacionados agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees
(δίκαιος Eut12d HiacuteppMa287c Goacuterg483d 492a Prot329c-330c Mecircn73e
30 Ryle denomina estes predicados de ldquoconceitos formaisrdquo e enfatiza o fato de que eles se
diferenciam natildeo apenas pela sua universalidade de aplicaccedilatildeo mas tambem pelo seu tipo loacutegico Pois um conceito deste tipo natildeo eacute ldquoespeciacutefico a um toacutepico mas integral a todos os toacutepicos de discurso (subject-matter) (Ryle 1965 p115) Posteriormente Ryle se refere a estes conceitos como ldquosincategoremaacuteticosrdquo (Ryle 165 p131) Gill e Turnbull por sua vez chamam as Formas correspondentes a estes predicados de ldquoFormas estruturaisrdquo (Gill 2012 p29) e (Turnbull 1998 p19) Estes autores parecem estar corretos em identificar a universalidade de aplicaccedilatildeo destes termos como seu caraacuteter distintivo Curiosamente os comentaacuterios mais antigos identificam este grupo de Formas como correspondente a termos matemaacuteticos mas este natildeo parece ser o ponto em questatildeo uma vez que ldquorepousordquo e ldquomovimentordquo estatildeo incluidos na lista
31 No Feacutedro estes mesmo predicados satildeo relacionados ao tipo de argumentaccedilatildeo desenvolvida por Zenatildeo Neste diaacutelogo Soacutecrates afirma que o Palamendes de Eleacuteia (Zenatildeo) eacute capaz de fazer sua audiecircncia crer que as coisas satildeo simultaneamente semelhantes e dessemelhantes unas e muacuteltiplas em repouso e em movimento (Feacutedr261d)
231
καλός Liacutes216d HiacuteppMa 287d-304e ἀγαθός Liacutes216d HiacuteppMa287c
Mecircn87d Goacuterg495a Prot352c) Como vimos estes diaacutelogos conteacutem
argumentos em que expressotildees como ldquoo Belo em sirdquo e ldquoa Forma do Belordquo satildeo
entendidas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder causal
exercido por estas entidades nos levou ainda a reconhecer a independecircncia e
prioridade ontoloacutegica inerente a elas e a concluir que a busca por definiccedilotildees dos
diaacutelogos iniciais deve ser entendida desde sempre como uma busca pela Forma
das virtudes e termos morais ali mencionados Nos diaacutelogos da fase meacutedia
Formas correspondentes a virtudes continuam a receber papel proeminente como
por exemplo no Feacutedon (65d 70d-71e 76d 100c-d) no Banquete (210e-211d) e
na Repuacuteblica (479a-b) Sendo assim ao aceitar a existecircncia de Formas
correspondentes a virtudes valores morais e valores eacuteticos Soacutecrates natildeo estaacute
fazendo nada mais do que manter-se coerente com aquilo que um leitor dos
diaacutelogos platocircnicos esperaria
O segundo grupo de Formas a despertar o interesse de Parmecircnides
corresponde ao que chamariacuteamos de termos sortais ldquohomemrdquo ldquofogordquo e ldquoaacuteguardquo32
As perguntas anteriores mencionam Formas correspondentes a adjetivos
predicados incompletos ou caracteriacutesticas das coisas Parmecircnides agora
questiona Soacutecrates acerca da existecircncia de Formas correspondentes a substantivos
ou expressotildees nominais usadas para designar tipos ou classes de coisas Soacutecrates
natildeo se mostra seguro acerca da existecircncia destas Formas mas tambeacutem natildeo nega
que elas possam existir afirmando apenas ter ficado muitas vezes em aporia
acerca deste assunto (130c1-4)
A inseguranccedila de Soacutecrates acerca da existecircncia de Formas correspondentes
a termos sortais eacute facilmente compreendida se levarmos em conta que nos
diaacutelogos anteriores ao Parmecircnides as Formas satildeo apresentadas sobretudo como
uma tentativa de solucionar problemas relacionados com a copresenccedila de opostos
nas coisas sensiacuteveis No primeiro grupo de diaacutelogos Soacutecrates sai em busca de
uma definiccedilatildeo precisa para termos morais por perceber que casos exemplares de
32 Estritamente falando ldquoaacuteguardquo e ldquofogordquo natildeo satildeo termos sortais pelo fato de natildeo poderem receber
adjetivos numeacutericos Assim ldquocubo de gelordquo eacute um termo sortal porque podemos falar ldquotrecircs cubos de gelordquo poreacutem o mesmo natildeo acontece com ldquoaacuteguardquo e ldquofogordquo A caracteriacutestica fundamental que une este grupo de termos eacute portanto o fato de constituirem elementos com funccedilatildeo nominal aos quais adjetivos e predicados satildeo atribuidos e que satildeo oferecidos como resposta a questotildees do tipo ldquoo que eacute istordquo No Fileacutebo (15a) Soacutecrates menciona uma Forma de Homem e no Timeu (51b) uma Forma do Fogo eacute mencionada
232
demonstraccedilatildeo de uma determinada virtude podem aparecer sob certos aspectos ou
determinadas condiccedilotildees como um exemplo do viacutecio exatamente oposto Assim
ldquodevolver a cada um o que lhe eacute proacutepriordquo (RepI 331c) pode ser considerado um
exemplo de justiccedila No entanto no caso de algueacutem tomado pela loucura exigir a
devoluccedilatildeo de suas armas a mesma definiccedilatildeo estaraacute apresentando uma caso
daquilo que eacute o oposto da justiccedila Do mesmo modo levar a julgamento aquele que
comete um crime em mateacuteria religiosa parece fazer parte daquilo que eacute a piedade
poreacutem caso esta pessoa seja seu proacuteprio pai e o julgamento venha a levaacute-lo a
morte o mesmo tipo de ato teraacute como resultado um parriciacutedio o pior e mais iacutempio
dos casos de derramamento de sangue
Durante a fase meacutedia o problema da co-presenccedila de opostos continua a
receber um papel de destaque Em uma passagem da Repuacuteblica VII (523a-524e) a
busca por uma soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila de opostos eacute apresentada
por Soacutecrates como a proacutepria razatildeo para o surgimento da Teoria das Ideias
Segundo Soacutecrates eacute o fato de um mesmo dedo parecer simultaneamente grande e
pequeno que nos leva a formular questotildees do tipo ldquoo que eacute o granderdquo ldquoo que eacute o
pequenordquo e a concluir que o Grande e o Pequeno devem ser afirmados como um
tipo de coisa separada dos objetos sensiacuteveis Contudo o dedo enquanto dedo
nunca se apresenta como o contraacuterio de si mesmo e a mente da maioria dos
homens natildeo eacute levada a formular a pergunta o que eacute o dedo E como
consequecircncia a mente da maioria dos homens tambeacutem natildeo eacute levada a postular
uma Forma correspondente ao termo sortal ldquodedordquo
Esta passagem da Repuacuteblica VII assim como nossa passagem do
Parmecircnides natildeo nega a existecircncia de Formas correspondentes a termos como
ldquodedordquo e ldquohomemrdquo De fato no livro X da Repuacuteblica o proacuteprio Soacutecrates afirma
ter o haacutebito de assumir a existecircncia de uma Forma uacutenica para cada conjunto de
coisas muacuteltiplas agraves quais chamamos por um mesmo nome (εἶδος γάρ πού τι ἓν
ἕκαστον εἰώθαmicroεν τίθεσθαι περὶ ἕκαστα τὰ πολλά οἷς ταὐτὸν ὄνοmicroα ἐπιφέροmicroεν
Rep596a6-7) Igualmente em uma passagem sobre do ldquoprodutor de nomesrdquo
(ὀνοmicroατουργός) do Craacutetilo (389a-390a) o mesmo princiacutepio segundo o qual
haveria uma Forma para cada palavra parece estar em jogo No proacuteprio
Parmecircnides Soacutecrates reconhece a possibilidade de uma aceitaccedilatildeo bastante
abrangente para o contigente de Formas afirmando jaacute ter considerado a
possibilidade do princiacutepio de postulaccedilatildeo das Formas ser ldquoo mesmo com relaccedilatildeo a
233
todas as coisasrdquo (περὶ πάντων ταὐτόν 130d5-6) A proacutepria observaccedilatildeo de
Parmenides que conclui a passagem sobre a extensatildeo do conjunto de Formas
parece apontar na mesma direccedilatildeo ao prever que nenhuma destas coisas seraacute
desprezada por Soacutecrates assim que a filosofia dele se apoderar completamente
(130e1-4)
Sendo assim a duacutevida demonstrada pelo jovem Soacutecrates acerca da
existecircncia de Formas correspondentes a termos sortais deve ser entendida em
paralelo com a passagem sobre o dedo na Repuacuteblica como um testemunho de
Platatildeo acerca da origem da Teoria das Ideias Ao que tudo indica as Formas foram
primeiro propostas como uma tentativa de soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos tanto no caso dos predicados incompletos e propriedades relacionais
dos objetos sensiacuteveis quanto no caso das virtudes e valores morais que se
negavam a ser capturados por uma soacute definiccedilatildeo As falas de Soacutecrates e
Parmecircnides em 130d5-e4 nos levam a crer que na eacutepoca de composiccedilatildeo do
Parmecircnides o nuacutemero de Formas admitidas jaacute havia sido expandido o suficiente
para incluir uma Forma correspondente a cada conjunto de muacuteltiplas coisas que
chamamos pelo mesmo nome confirmando assim a impressatildeo que nos chega dos
diaacutelogos da fase meacutedia
Em oposiccedilatildeo a estas admissotildees Soacutecrates se mostra definitivamente contra
a existecircncia de Formas correspondentes a um quarto grupo de termos enunciado
por Parmecircnides constituiacutedo por cabelo lama e sujeira (θρὶξ καὶ πηλὸς καὶ ῥύπος
) e afirma que acreditar na existecircncia destas Formas seria por demais absurdo
(130d4) Mas por que Soacutecrates se negaria admitir a existecircncia destas Formas
A explicaccedilatildeo mais comumente apresentada pelos comentadores baseia-se
no fato de que coisas como cabelo lama e sujeira seriam indignas e ignoacutebeis
demais para serem harmonizadas com a grandiloquecircncia das descriccedilotildees acerca da
natureza divina das Formas encontradas em diaacutelogos como Banquete e
Repuacuteblica33 De fato esta interpretaccedilatildeo parece estar sugerida pela fala de
Parmecircnides que caracteriza estas coisas como ridiacuteculas (γελοῖα) despreziacuteveis
(ἀτιmicroότατόν) e vis (φαυλότατον) No entanto podemos atribuir um significado
33 El Murr por exemplo afirma ldquoSe Soacutecrates natildeo pode admitir que existe uma Forma de Lama eacute
evidentemente porque ele confunde a questatildeo do valor e a questatildeo da essecircncia porque ele pensa que uma Forma da lama coisa de pouco valor seria uma Forma de pouco valorrdquo (El Murr 2010 p145) Para outros autores que defendem esta mesma linha de raciociacutenio (cf Allan 1997 p124) (cf Cornford 1951 p83) (cf Miller 1986 p 45-46) (cf Turnbull 1998
234
mais profundo para a recusa de Soacutecrates caso estejamos dispostos a reconhecer
nestes exemplos uma antecipaccedilatildeo dos problemas vinculados agrave relaccedilatildeo partetodo
que encontraremos de maneira recorrente no restante das criacuteticas de Parmecircnides
agrave hipoacutetese das Formas
Soacutecrates havia se mostrado relutante poreacutem natildeo havia negado a existecircncia
de uma Forma de Homem Parmecircnides deseja saber agora se precisamos de uma
Forma de Cabelo uma vez que tenhamos admitido uma Forma de Homem Um
homem eacute um todo composto por diversas partes como ressaltado por Soacutecrates
que usa a si proacuteprio como exemplo (129c4-d1) Seria tambeacutem a Forma do
Homem um todo composto por partes Se sim seriam entatildeo as Formas do
Cabelo e do Dedo partes da Forma do Homem Mas e estas Formas seriam elas
tambeacutem entidades compostas cujas partes corresponderiam aos componentes do
dedo e do cabelo sensiacuteveis Se natildeo entatildeo precisariacuteamos de uma Forma separada
para cada parte do corpo humano E para as partes destas partes teriacuteamos uma
Forma correspondente a cada componente do corpo humano ateacute chegarmos a um
elemento sensiacutevel completamente indivisiacutevel Por outro lado seria necessaacuterio
uma Forma de Lama caso exista uma Forma para os dois elementos a partir dos
quais a lama eacute composta terra e de aacutegua (cfTeet147c) Ou seria a lama sensiacutevel
apenas o resultado da presenccedila destas duas Formas em um uacutenico objeto Por fim
teria a sujeira uma natureza proacutepria um caraacuteter determinado Ou seria a sujeira
apenas um agregado de pequenas partes de outras coisas como terra e cabelo
cada uma delas correspondendo a uma Forma especiacutefica
As questotildees de Parmecircnides acerca da extensatildeo do conjunto de Formas natildeo
chegam a constituir propriamente uma tentativa de refutaccedilatildeo da teoria apresentada
por Soacutecrates Contudo esta primeira bateria de perguntas deixa claro ao leitor que
a hipoacutetese das Formas estaacute sujeita a criacuteticas como de fato estaacute sujeita toda e
qualquer teoria De um ponto de vista dramaacutetico estas perguntas realizam a
transiccedilatildeo entre a apresentaccedilatildeo da Teoria das Ideias e a refutaccedilatildeo desta teoria que
se daraacute no restante do diaacutelogo Atraveacutes desta pequena passagem Platatildeo apresenta
a seus leitores ateacute entatildeo acostumados a ver Soacutecrates como protagonista e
condutor principal da argumentaccedilatildeo uma clara inversatildeo de papeacuteis No restante do
Parmecircnides ao inveacutes de encontramos o Soacutecrates confiante e eloquente da Feacutedon e
p22-23)
235
do Banquete ou o Soacutecrates irocircnico e refutador do Ecircutifron e do Laacuteques
encontraremos um Soacutecrates receoso e reticente preza dos ataques de Parmecircnides
236
423 O dilema da Participaccedilatildeo
Parmecircnides inicia sua efetiva reduccedilatildeo ao absurdo da Teoria das Ideias por
meio de uma reapresentaccedilatildeo sumaacuteria da posiccedilatildeo socraacutetica
ldquoMas dize-me o seguinte34 parece-te como dizes haver certas Formas em tendo participaccedilatildeo nas quais essas outras coisas aqui recebem suas denominaccedilotildees Por exemplo se tecircm participaccedilatildeo na Semelhanccedila as coisas se tornam semelhantes se na Grandeza grandes se no Belo e na Justiccedila justas e belas Perfeitamente disse Soacutecratesrdquo τόδε δ οὖν microοι εἰπέ δοκεῖ σοι ὡς φῄς εἶναι εἴδη ἄττα ὧν τάδε τὰ ἄλλα microεταλαmicroβάνοντα τὰς ἐπωνυmicroίας αὐτῶν ἴσχειν οἷον ὁmicroοιότητος microὲν microεταλαβόντα ὅmicroοια microεγέθους δὲ microεγάλα κάλλους δὲ καὶ δικαιοσύνης δίκαιά τε καὶ καλὰ γίγνεσθαι Πάνυ γε φάναι τὸν Σωκράτη (130e4-131a1)
Nesta passagem Parmecircnides reduz a posiccedilatildeo socraacutetica a trecircs proposiccedilotildees
fundamentais 1) existem Formas 2) os objetos sensiacuteveis (τάδε τὰ ἄλλα)
participam nestas Formas e 3) devido a esta de participaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis
recebem os nomes pelos quais satildeo chamados A tese segundo a qual as coisas
recebem suas denominaccedilotildees devido ao fato de participarem nas Formas
conhecida como tese da eponiacutemia (ἐπωνυmicroία) natildeo havia sido mencionada por
Soacutecrates No entanto devemos entendecirc-la como um mero corolaacuterio linguiacutestico da
hipoacutetese de que as Formas satildeo causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis As
coisas recebem suas denominaccedilotildees pelo fato de apresentarem as caracteriacutesticas e
propriedades que apresentam Como as Formas satildeo as causas destas propriedades
Parmecircnides deduz corretamente que as coisas recebem suas denominaccedilotildees em
funccedilatildeo da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que mantecircm com as Formas 35
Como sabemos de acordo com a Teoria das Ideias o fato de que Simmias
eacute grande pressupotildee a existecircncia de duas entidades ontologicamente distintas
34 Platatildeo marca de maneira muito clara o iniacutecio de uma nova seacuterie de argumento pela frase ldquoτόδε δ οὖν microοι εἰπέrdquo Do mesmo modo o iniacutecio da passagem acerca da extensatildeo do conjunto de Formas havia sido marcado pelas palavras ldquoκαί microοι εἰπέrdquo (130b1) e posteriormente a introduccedilatildeo do argumento do terceiro homem seraacute marcado pela expressatildeo ldquoπρὸς τόδε πῶς ἔχειςrdquo (131e8) 35 Como observa Cornford (Cornford 1951 p84 n2) esta fala de Parmecircnides traz uma
referecircncia bastante direta agrave passagem do Feacutedon em que Soacutecrates propotildee sua teoria da participaccedilatildeo como uma soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila de opostos em Simmias Compare ldquoὧν τάδε τὰ ἄλλα microεταλαmicroβάνοντα τὰς ἐπωνυmicroίας αὐτῶν ἴσχεινrdquo (Parm130e5-6) com ldquoκαὶ τούτων τἆλλα microεταλαmicroβάνοντα αὐτῶν τούτων τὴν ἐπωνυmicroίαν ἴσχεινrdquo (Feacuted102b1-2)
237
Simmias e a Forma da Grandeza Aleacutem disso como Soacutecrates jaacute havia antecipado
pelo uso da expressatildeo αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e como o proacuteprio Parmecircnides jaacute havia
concluiacutedo em 130b3-4 o fato de que Simmias eacute grande pressupotildee ainda a
existecircncia da propriedade imanente grandeza-em-Simmias (Parm130b4 αὐτὴ
ὁmicroοιότης χωρὶς ἧς ἡmicroεῖς ὁmicroοιότητος ἔχοmicroεν Feacuted102d7 τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος
Feacuted103b5 οὔτε τὸ ἐν ἡmicroῖν [ἐναντίον] οὔτε τὸ ἐν τῇ φύσει) Diferente da Forma
que lhe daacute origem uma propriedade imanente eacute ontologicamente dependente do
indiviacuteduo na qual estaacute localizada Afinal sua existecircncia estaacute intimamente
conectada com a existecircncia do indiviacuteduo que a possui e podemos considerar que
caso este indiviacuteduo deixe de ser grande de todos os modos possiacuteveis a
propriedade imanente da grandeza que este indiviacuteduo apresentava cessaraacute de
existir
Podemos nos perguntar agora como estas trecircs entidades estatildeo
relacionadas Soacutecrates havia sugerido que os objetos sensiacuteveis participam das
Formas e como resultado desta participaccedilatildeo adquirem suas diversas
propriedade36 No entanto o poder causal exercido pelas Formas natildeo pode ser
considerado por si soacute suficientemente elucidativo Haacute de haver um modo
especiacutefico de relaccedilatildeo entre estas entidades que explique como as Formas podem
ser responsaacuteveis pelo surgimento das propriedades imanentes nos objetos
sensiacuteveis Parmecircnides deseja saber portanto como devemos entender a relaccedilatildeo de
participaccedilatildeo de modo a tornarmos teoricamente viaacutevel a hipoacutetese de que as coisas
sensiacuteveis adquirem suas propriedades imanentes por causa das Formas
No Feacutedon Soacutecrates havia se recusado a explicitar a natureza desta relaccedilatildeo
oferecendo de maneira inconclusiva os termos ldquopresenccedilardquo e ldquocomunhatildeordquo como
modos possiacuteveis de descrevecirc-la
ldquoNada aleacutem do Belo torna esta coisa bela seja pela sua presenccedila (παρουσία) seja
36 Assim no Parmecircnides (129a4-5) certas coisas ldquotendo participaccedilatildeo na Semelhanccedila se tornam
semelhantesrdquo (τὰ microὲν τῆς ὁmicroοιότητος microεταλαmicroβάνοντα ὅmicroοια γίγνεσθαι) isto eacute passam a possuir a propriedade imanente da semelhanccedila ldquopor causa disso e na medida em que nela tenham participaccedilatildeordquo (ταύτῃ τε καὶ κατὰ τοσοῦτον ὅσον ἂν microεταλαmicroβάνῃ) E no Feacutedon (100c4-6) ldquoSe existe alguma coisa bela aleacutem do Belo em si a uacutenica razatildeo pela qual esta coisa eacute bela eacute porque ela participa da Belo em si E digo o mesmo com relaccedilatildeo a todo o restordquo (εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν οὐδὲ δι ἓν ἄλλο καλὸν εἶναι ἢ διότι microετέχει ἐκείνου τοῦ καλοῦ καὶ πάντα δὴ οὕτως λέγω) Nestas passagens Soacutecrates deixa claro por meio do emprego do dativo instrumental da conjunccedilatildeo διότι e da preposiccedilatildeo κατά + acusativo que eacute unicamente pela participaccedilatildeo nas Formas que as coisas adquirem as diversas propriedades que possuem
238
pela comunhatildeo (κοινωνία) ou como quer que ele [o Belo] venha a se adicionar agraves coisas (ὅπῃ δὴ καὶ ὅπως προσγενοmicroένη) pois natildeo irei insistir nisto apenas que eacute pelo Belo que todas as coisas belas se tornam belasrdquo οὐκ ἄλλο τι ποιεῖ αὐτὸ καλὸν ἢ ἡ ἐκείνου τοῦ καλοῦ εἴτε παρουσία εἴτε κοινωνία εἴτε ὅπῃ δὴ καὶ ὅπως προσγενοmicroένη οὐ γὰρ ἔτι τοῦτο διισχυρίζοmicroαι ἀλλ ὅτι τῷ καλῷ πάντα τὰ καλὰ [γίγνεται] καλά (Fed100d4-7)
No Parmecircnides apenas duas alternativas satildeo inicialmente apresentadas
ou bem 1) cada coisa que participa de uma Forma participa na Forma inteira ou
bem 2) cada coisa que participa de uma Forma participa em uma parte da Forma
De acordo com 1) a propriedade imanente que um objeto sensiacutevel adquire como
consequecircncia da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo equivale agrave totalidade da Forma De
acordo com 2) esta propriedade imanente equivale a apenas uma parte da Forma
Soacutecrates aceita o dilema formulado por Parmecircnides e concorda ainda que estas
duas opccedilotildees satildeo exaustivas
ldquoNatildeo eacute verdade que cada uma das coisas que tecircm participaccedilatildeo ou bem tem participaccedilatildeo na Forma inteira ou bem em uma parte dela Ou haveria uma outra participaccedilatildeo aleacutem dessas Como poderia haver disse [Soacutecrates]rdquo Οὐκοῦν ἤτοι ὅλου τοῦ εἴδους ἢ microέρους ἕκαστον τὸ microεταλαmicroβάνον microεταλαmicroβάνει ἢ ἄλλη τις ἂν microετάληψις χωρὶς τούτων γένοιτο Καὶ πῶς ἄν εἶπεν (131a4-7)
Em sua forma o dilema anuncia uma reduccedilatildeo ao absurdo 1) Se as coisas
participam das Formas entatildeo elas participam no todo ou em parte de uma Forma
Contudo 2) natildeo pode haver participaccedilatildeo no todo das Formas nem em partes das
Formas Logo 3) natildeo haacute participaccedilatildeo isto eacute as coisas natildeo participam das Formas
A validade desta reduccedilatildeo depende diretamente do reconhecimento de que as duas
opccedilotildees previstas na premissa maior do argumento esgotam todas as possibilidades
de se pensar a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis Por isso
Parmecircnides pergunta a Soacutecrates se poderia haver algum outro tipo de participaccedilatildeo
aleacutem da participaccedilatildeo no todo ou em parte de uma Forma Neste primeiro
momento Soacutecrates concorda que natildeo poderia haver reconhecendo a completude
da premissa maior do argumento de Parmecircnides e se comprometendo
antecipadamente com a validade da reduccedilatildeo37
37 Posteriormente confrontado pelos paradoxos resultantes do dilema da participaccedilatildeo Soacutecrates
iraacute propor maneiras de entender a relaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que extrapolam as opccedilotildees previstas neste dilema inicial Contudo como veremos estas propostas tampouco se mostraratildeo imunes aos ataques do saacutebio eleata
239
240
424 A estrutura do dilema de participaccedilatildeo
Eacute constantemente apontado pelos comentadores o fato de que o dilema da
participaccedilatildeo possuiria uma estrutura assimeacutetrica Enquanto o primeiro ramo do
dilema de acordo com o qual as coisas participam no todo de uma Forma levaria
a uma impossibilidade loacutegica a argumentaccedilatildeo que contradiz o segundo ramo do
dilema seria meramente ad hominen e resultaria em apenas um par de
contradiccedilotildees especiacuteficas restritas a um determinado conjunto de Formas Esta
interpretaccedilatildeo foi proposta pela primeira vez por Reginald Allen
ldquoSoacutecrates rejeita ambas disjunccedilotildees do Dilema da Participaccedilatildeo mas a modalidade destas disjunccedilotildees eacute bastante diferente A primeira disjunccedilatildeo dada a pluralidade de participantes envolve uma absurdidade loacutegica (hellip) A segunda disjunccedilatildeo seja verdadeira ou como Soacutecrates acredita falsa natildeo envolve uma absurdidade loacutegica (hellip) Portanto se natildeo haacute participaccedilatildeo no todo nem na parte da Ideia entatildeo natildeo haacute participaccedilatildeo mas se haacute participaccedilatildeo ela natildeo pode ser no todo mas deve ser na parte de uma Ideiardquo (Allen 1997 p133)
Apesar da aceitaccedilatildeo geral que a interpretaccedilatildeo de Allen tem recebido38 sua
leitura natildeo deve ser assumida de antematildeo Em primeiro lugar porque levanta o
seguinte problema interpretativo se o segundo ramo do dilema apresenta uma
opccedilatildeo logicamente viaacutevel por que Soacutecrates natildeo se apega a esta opccedilatildeo procurando
apresentar maneiras plausiacuteveis de entender as propriedades imanentes como partes
das Formas Ao contraacuterio do que seria esperado caso a participaccedilatildeo em partes das
Formas fosse a uacutenica opccedilatildeo logicamente possiacutevel Soacutecrates procura manter
durante toda seacuterie de argumentos a unidade das Formas se mostrando
decididamente contra a hipoacutetese de que elas possam ser divididas
Aleacutem disso a leitura assimeacutetrica para o dilema da participaccedilatildeo eacute
responsaacutevel por um problema interpretativo ainda mais fundamental que ameaccedila
a proacutepria relevacircncia das criacuteticas de Parmecircnides e como consequecircncia a unidade
temaacutetica do diaacutelogo Allen considera o segundo ramo do dilema como uma opccedilatildeo
logicamente viaacutevel por entender que apenas as Formas do Grande do Pequeno e
do Igual estatildeo sujeitas a paradoxos caso optemos pela participaccedilatildeo em partes das
38 Brisson (Brisson 2011 p37 n76) Curd (Curd 1986 p128) e Harte (Harte 2002 p66-67) dentre outros assumem a assimetria do dilema adotando a interpretaccedilatildeo proposta por Allen
241
Formas Contudo os argumentos sobre estas trecircs Formas natildeo constituem o passo
decisivo na refutaccedilatildeo deste ramo do dilema Na verdade estes paradoxos apenas
ilustram algumas das consequecircncias indesejaacuteveis decorrentes da efetiva divisatildeo
das Formas que jaacute havia sido admitida por Soacutecrates em 131c9-10 Esta mudanccedila
de foco acaba impedindo Allen de reconhecer que eacute a proacutepria divisatildeo das Formas
o que leva agrave rejeiccedilatildeo da hipoacutetese da participaccedilatildeo em partes das Formas
Ao contraacuterio do que Allen acredita ambos os braccedilos do dilema apresentam
argumentos contra uma mesma tese cuja importacircncia eacute fundamental para a
validade da Teoria das Ideias a tese de que as Formas satildeo entidades uacutenicas
(singulares e indivisiacuteveis) e portanto essencialmente distintas dos objetos
sensiacuteveis
Em toda sua argumentaccedilatildeo Parmecircnides utiliza o adjetivo ldquoumrdquo de maneira
ambiacutegua ora para designar a singularidade (unidade numeacuterica) ora para designar
a uniformidade (indivisibilidade) de uma Forma O dilema da participaccedilatildeo
pretende demonstrar como estes dois sentidos de unidade natildeo podem ser
atribuiacutedos simultaneamente agraves Formas caso estas entidades estejam submetidas
agrave relaccedilatildeo de participaccedilatildeo Assim no primeiro ramo do dilema a integridade das
Formas natildeo eacute posta em questatildeo mas a sua singularidade eacute comprometida Pois
estando presentes por inteiro em cada um dos seus participantes as Formas se
multiplicariam e passariam a existir em nuacutemero igual ao das coisas que delas
participam Por outro lado no segundo ramo do dilema natildeo eacute mais a unidade
numeacuterica das Formas que eacute posta em questatildeo mas a sua indivisibilidade Pois
uma vez divididas pelos seus participantes as Formas passariam a ter tantas partes
quantos objetos que delas participam
Esta estrateacutegia estabelecida pelo dilema da participaccedilatildeo organiza todo o
conjunto de criacuteticas apresentadas por Parmecircnides na primeira parte do diaacutelogo E
eacute justamente isso que a leitura assimeacutetrica de Allen nos impede de reconhecer As
diversas criacuteticas apresentadas por Parmecircnides constituem passos distintos de um
mesmo argumento cujo uacutenico objetivo eacute demonstrar a impossibilidade de se
conceber as Formas como unidades perfeitas isto eacute singulares e indivisiacuteveis
O dilema da participaccedilatildeo reproduz em sua forma a estrateacutegia geral das
criacuteticas de Parmecircnides que pretendem demonstrar a incompatibilidade entre duas
teses centrais da Teoria das Ideias 1) a tese de que as Formas satildeo as causas das
propriedades dos objetos sensiacuteveis e 2) a tese de que as Formas satildeo entidades
242
uacutenicas singulares e indivisiacuteveis Se observarmos a conclusatildeo de cada um dos
argumentos podemos ver que Parmecircnides insiste a todo instante na
impossibilidade de se manter simultaneamente estas duas afirmaccedilotildees
1) Se a participaccedilatildeo se daacute na totalidade da Forma entatildeo as Formas
satildeo indivisiacuteveis poreacutem natildeo satildeo numericamente uacutenicas (132b1-2
Ἓν ἄρα ὂν καὶ ταὐτὸν ἐν πολλοῖς καὶ χωρὶς οὖσιν ὅλον ἅmicroα
ἐνέσται καὶ οὕτως αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς ἂν εἴη)
2) Se a participaccedilatildeo se daacute em uma parte da Forma entatildeo as Formas
satildeo numericamente uacutenicas poreacutem natildeo satildeo indivisiacuteveis (132c9-
10Ἦ οὖν ἐθελήσεις ὦ Σώκρατες φάναι τὸ ἓν εἶδος ἡmicroῖν τῇ
ἀληθείᾳ microερίζεσθαι καὶ ἔτι ἓν ἔσται
2) Perceber uma Forma uacutenica sobre uma multiplicidade de objetos
sensiacuteveis implica em um regresso ao infinito e o que seria uma
Forma uacutenica mostra-se ldquoilimitada em quantidaderdquo (132b1-2καὶ
οὐκέτι δὴ ἓν ἕκαστόν σοι τῶν εἰδῶν ἔσται ἀλλὰ ἄπειρα τὸ
πλῆθος)
3) Sustentar que cada Forma eacute um ldquopensamentordquo (νόηmicroα) permite que
ela seja tanto uacutenica quanto indivisiacutevel Poreacutem neste caso a proacutepria
noccedilatildeo de participaccedilatildeo se mostra absurda (132c9-11 οὐκ ἀνάγκῃ ᾗ
τἆλλα φῂς τῶν εἰδῶν microετέχειν ἢ δοκεῖ σοι ἐκ νοηmicroάτων ἕκαστον
εἶναι καὶ πάντα νοεῖν ἢ νοήmicroατα ὄντα ἀνόητα εἶναι)
4) Sustentar que a Formas satildeo ldquoparadigmasrdquo (παραδείγmicroατα) garante
sua indivisibilidade poreacutem o regresso ao infinito resurge e as
Formas passam novamente a se multiplicar indefinidamente
(133a1-3 καὶ οὐδέποτε παύσεται ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον ἐὰν
τὸ εἶδος τῷ ἑαυτοῦ microετέχοντι ὅmicroοιον γίγνηται)
Como podemos perceber a duplicidade de sentido que o termo ἓν recebe
nos argumentos de Parmecircnides equivale agrave duplicidade de sentido que o termo
πολλά adquire durante a argumentaccedilatildeo de Zenatildeo De um ponto de vista dramaacutetico
a formulaccedilatildeo do dilema da participaccedilatildeo representa o momento em que
Parmecircnides aceitando o desafio lanccedilado por Soacutecrates inicia sua demonstraccedilatildeo de
que as Formas natildeo estatildeo aptas a manter as caracteriacutesticas ontoloacutegicas que as
243
distinguem dos objetos sensiacuteveis e as tornam imunes ao paradoxo de Zenatildeo Caso
Soacutecrates natildeo se mostre capaz de articular uma explicaccedilatildeo para a hipoacutetese da
participaccedilatildeo que salve ao mesmo tempo a singularidade e a indivisibilidade das
Formas Parmecircnides teraacute demonstrado que as Formas natildeo constituem uma soluccedilatildeo
teoricamente viaacutevel para o paradoxo de abertura do diaacutelogo Afinal privadas de
sua singularidade e uniformidade caracteriacutesticas as Formas estaratildeo elas tambeacutem
sujeitas aos paradoxos de Zenatildeo O tema da unidade das Formas eacute portanto o
elemento fundamental de ligaccedilatildeo entre as criacuteticas de Parmecircnides e os argumentos
anteriormente desenvolvidos por Soacutecrates e Zenatildeo
244
425 Participaccedilatildeo no todo da Forma
No primeiro ramo do dilema proposto por Parmecircnides os objetos
sensiacuteveis participam no todo de uma Forma (ὅλου τοῦ εἴδους) Como
consequecircncia as coisas recebem como sua propriedade imanente a totalidade de
uma Forma que por sua vez passa a estar presente (ἐν ἐνεῖναι) inteira em cada
um de seus participantes
ldquoEntatildeo parece-te que a Forma inteira sendo uma39 estaacute em cada uma das muacuteltiplas coisas Ou como seria ldquoMas o que impede Parmecircnides [que ela esteja que ela seja uma]40 Entatildeo sendo uma e a mesma estaraacute inteira simultaneamente em coisas que satildeo muacuteltiplas e separadas e assim ela estaria separada de si mesma41rdquo Πότερον οὖν δοκεῖ σοι ὅλον τὸ εἶδος ἐν ἑκάστῳ εἶναι τῶν πολλῶν ἓν ὄν ἢ πῶς Τί γὰρ κωλύει φάναι τὸν Σωκράτη ὦ Παρmicroενίδη [ἓν εἶναι ἐνεῖναι ] Ἓν ἄρα ὂν καὶ ταὐτὸν ἐν πολλοῖς καὶ χωρὶς οὖσιν ὅλον ἅmicroα ἐνέσται καὶ οὕτως αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς ἂν εἴη (131a8-b2)
Com este breve argumento Parmecircnides pretende demonstrar que para que
possam estar presentes por inteiro em uma multiplicidade de coisas distintas as
Formas precisam tambeacutem ser muacuteltiplas Apesar de extremamente conciso o
argumento pode ser entendido da seguinte maneira De acordo com a premissa de
participaccedilatildeo no todo de uma Forma se os objetos x y e z participam da Forma F
a Forma F estaacute presente por inteiro em x y e z Ora as variaacuteveis x y e z
representam objetos sensiacuteveis distintos ldquocoisas muacuteltiplas e separadasrdquo (πολλοῖς
καὶ χωρὶς) Sendo assim para que possa estar presente como um todo (ὅλον τὸ
39 ldquoSendo umardquo (ἓν ὄν) significa aqui ldquosendo numericamente uacutenicardquo Este sentido eacute mais
claramente explicitado em 131b1 pela expressatildeo ἓν ὂν καὶ ταὐτὸν ὅλον em que a qualificaccedilatildeo καὶ ταὐτὸν eacute acrescentada para destacar que segundo a hipoacutetese adotada uma mesma Forma uacutenica deve estar por inteiro em cada um dos muacuteltiplos participantes
40 A maior parte dos tradutores modernos leem a uacuteltima claacuteusula desta sentenccedila como ἐνεῖναι (que ela esteja) corrigindo os manuscritos antigos nos quais consta ἓν εἶναι (que seja uma) A hipoacutetese que jaacute aparece em Proacuteclus e foi ressucitada por Schleiermacher parece fazer sentido Afinal sem esta correccedilatildeo Soacutecrates estaria mudando o foco da discussatildeo e antecipando de maneira surpreendente a conclusatildeo do argumento de Parmecircnides A questatildeo contudo eacute irrelevante para validade de argumentaccedilatildeo aqui proposta uma vez que segundo nossa interpretaccedilatildeo Parmecircnides pretende demonstrar justamente a contradiccedilatildeo entre a hipoacutetese da presenccedila da Forma nas coisas (ἐνεῖναι) e a hipoacutetese de sua unidade (ἓν εἶναι)
41 ldquoSeparada de si mesmardquo (αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς) Uma vez que esta expressatildeo eacute apresentada em contraste com ἓν ὂν καὶ ταὐτὸν devemos enterder que ldquoseparar-se de si mesmordquo significa ldquomultiplicar-serdquo ldquotornar-se (numericamente) muacuteltiplordquo em oposiccedilatildeo a ldquomanter-se (numericamente) singularrdquo ou ldquoser um e o mesmordquo (ἓν ὂν καὶ ταὐτὸν)
245
εἶδος) em cada uma destas coisas a Forma F deve ser ela mesma separada de si
mesma isto eacute muacuteltipla Portanto caso optemos pelo primeiro ramo do dilema da
participaccedilatildeo natildeo podemos falar de uma uacutenica Forma F pois o que temos eacute uma
diversidade de Formas Fx Fy e Fz cada uma das quais presente em um dos
objetos sensiacuteveis que participam de F
Eacute preciso notar que este argumento pressupotildee a participaccedilatildeo simultacircnea
de uma multiplicidade de coisas em uma mesma Forma Nenhuma contradiccedilatildeo
surgiria caso Soacutecrates estivesse disposto a reconhecer que a participaccedilatildeo se daacute de
maneira exclusiva com cada Forma tendo apenas um participante por vez Assim
Soacutecrates poderia participar da Forma do Homem apenas no caso de que Platatildeo
natildeo participasse no mesmo momento desta Forma Parmecircnides parece
reconhecer este fato e acrescenta a palavra ἅmicroα (simultaneamente) em sua
conclusatildeo do argumento Soacutecrates no entanto sequer considera a hipoacutetese de um
modo de participaccedilatildeo exclusivo Afinal a adoccedilatildeo de tal hipoacutetese significaria
privar as Formas de seu papel de causa universal o que tornaria a proacutepria relaccedilatildeo
de participaccedilatildeo irrelevante como explicaccedilatildeo para a diversidade de fenocircmenos do
mundo sensiacutevel
246
426 Participaccedilatildeo em partes da Forma
Na tentativa de salvar a singularidade das Formas sem ter que abandonar
o caraacuteter muacuteltiplo e simultacircneo da participaccedilatildeo Soacutecrates apresenta uma analogia
uma Forma natildeo estaria separada de si mesma caso ela fosse como o dia que pode
estar em diferentes lugares sem perder sua singularidade isto eacute sem deixar de ser
um e o mesmo dia (ἡmicroέρα microία καὶ ἡ αὐτὴ)
ldquoNatildeo estaria disse ele se pelo menos como o dia que sendo um e o mesmo estaacute em muitos lugares simultaneamente e nem por isso estaacute ele mesmo separado de si mesmo se assim tambeacutem cada uma das Formas fosse uma e a mesma [estando] simultaneamente em todas as coisasrdquo Οὐκ ἄν εἴ γε φάναι οἷον [εἰ] ἡmicroέρα [εἴη] microία καὶ ἡ αὐτὴ οὖσα πολλαχοῦ ἅmicroα ἐστὶ καὶ οὐδέν τι microᾶλλον αὐτὴ αὑτῆς χωρίς ἐστιν εἰ οὕτω καὶ ἕκαστον τῶν εἰδῶν ἓν ἐν πᾶσιν ἅmicroα ταὐτὸν εἴη (131b3-6)
Parmecircnides responde propondo uma nova analogia
ldquoDe bela maneira Soacutecrates disse ele fazes uma e a mesma coisa [estar] simultaneamente em muitos lugares como se cobrindo com uma vela muitos homens dissesses ser ela inteira uma sobre muacuteltiplos Ou natildeo eacute algo deste tipo que acreditas estar dizendo Talvez disse elerdquo Ἡδέως γε φάναι ὦ Σώκρατες ἓν ταὐτὸν ἅmicroα πολλαχοῦ ποιεῖς οἷον εἰ ἱστίῳ καταπετάσας πολλοὺς ἀνθρώπους φαίης ἓν ἐπὶ πολλοῖς εἶναι ὅλον ἢ οὐ τὸ τοιοῦτον ἡγῇ λέγειν Ἴσως φάναι (131b7-c1)
Eacute comum entre os comentadores a opiniatildeo de que a metaacutefora apresentada
por Parmecircnides natildeo possui as mesmas virtudes da metaacutefora socraacutetica e que apenas
a inexperiecircncia do jovem Soacutecrates pode explicar a sua aceitaccedilatildeo da equivalecircncia
entre estas duas maneiras de entender a relaccedilatildeo entre Formas e coisas (cf Sayre
1996 p76) (cf Miller 1986 p49) Mas o que exatamente Soacutecrates poderia estar
entendendo por ldquodiardquo neste argumento Qual eacute o sentido de sua analogia e de que
maneira esta analogia poderia apresentar uma alternativa viaacutevel para compreensatildeo
da participaccedilatildeo no todo de uma Forma
A primeira opccedilatildeo eacute que Soacutecrates esteja entendo por ldquodiardquo a ldquoluz do diardquo
Neste caso a proposta de Parmecircnides eacute certamente equivalente e apenas torna
mais clara a metaacutefora socraacutetica Afinal a luz do dia possui uma natureza material
247
e nada mais eacute do que uma espeacutecie de substacircncia homogecircnea que cobre
simultaneamente diferentes lugares A luminosidade do dia banha distintos
lugares exatamente como uma vela estendida sobre diversas pessoas Contudo
assim entendida a metaacutefora socraacutetica natildeo realiza o objetivo em vista do qual eacute
formulada O que Soacutecrates precisa demonstrar natildeo eacute meramente que a luz de um
mesmo dia ilumina diferentes lugares ao mesmo tempo Para que a metaacutefora
cumpra seu papel Soacutecrates precisa demonstrar como estes diferentes lugares
podem estar iluminados simultaneamente pela totalidade da luz de um mesmo
dia isto eacute como a luz do dia ldquosendo uma e a mesmardquo pode estar por inteiro em
cada um dos lugares que ilumina
A segunda opccedilatildeo de interpretaccedilatildeo para metaacutefora socraacutetica parece a
princiacutepio mais promissora Eacute possiacutevel que Soacutecrates esteja entendendo por ldquodiardquo o
periacuteodo de tempo em que esta luminosidade recobre a terra e que sendo um e o
mesmo estaria presente simultaneamente em Atenas e Esparta Neste caso a
analogia socraacutetica ldquoum dia sobre muitos lugaresrdquo possuiria o meacuterito de ressaltar a
imaterialidade das Formas o que eacute completamente perdido na analogia ldquouma vela
sobre muitas pessoasrdquo apresentada por Parmecircnides Pois quando Soacutecrates afirma
que o mesmo dia estaacute ao mesmo tempo em diferentes lugares o que ele estaacute
dizendo eacute que um mesmo intervalo de tempo ocorre simultaneamente em
lugares distintos Assim no mesmo intervalo de tempo em que Soacutecrates eacute julgado
em Atenas Lisandro se diverte em Esparta
Apesar de trivialmente correta esta segunda interpretaccedilatildeo para a analogia
do dia tampouco parece servir para os propoacutesitos de Soacutecrates Para que sua
metaacutefora lhe seja uacutetil na presente argumentaccedilatildeo Soacutecrates precisaria demonstrar
natildeo que diversas coisas acontecem simultaneamente em um mesmo dia mas que
o mesmo dia estaacute presente por inteiro em cada um dos momentos em que estas
coisas acontecem Ningueacutem negaria o fato de que um determinado momento do
dia ocorre simultaneamente em diferentes lugares Poreacutem o ponto em disputa eacute se
podemos ou natildeo entender cada um destes momentos como equivalentes agrave
totalidade de um mesmo dia Ora eacute claro que uma resposta afirmativa para esta
questatildeo seria absurda uma vez que colapsaria a totalidade de um dia em cada um
dos momentos de que eacute composto O dia entendido como um intervalo de tempo
possui duraccedilatildeo da mesma maneira que um objeto fiacutesico possui extensatildeo Sendo
assim os momentos sucessivos de um dia natildeo podem ser considerados idecircnticos agrave
248
totalidade deste dia do mesmo modo que as diversas partes de um objeto extenso
natildeo satildeo idecircnticas agrave totalidade da qual fazem parte Aleacutem disso uma interpretaccedilatildeo
temporal para a metaacutefora do dia ainda estaacute sujeita agrave seguinte circularidade se
entendermos ldquosimultaneamenterdquo no seu sentido usual de ldquoao mesmo tempordquo a
analogia de Soacutecrates estaria afirmando que ldquoum mesmo intervalo de tempordquo
ocorre ldquoao mesmo tempordquo em diferentes lugares o que eacute claramente absurdo 42
O que Parmecircnides revela ao transformar a imagem de um dia sobre vaacuterios
lugares na imagem de uma vela sobre diversas pessoas eacute que ambas estas coisas (o
dia e a vela) quando consideradas com a devida atenccedilatildeo natildeo se apresentam como
entidades uacutenicas e indivisiacuteveis tal como Soacutecrates pretende fazer crer O fato de
falarmos de ldquoum diardquo como uma entidade singular natildeo nos garante que estejamos
tratando de fato de uma entidade uacutenica e indivisiacutevel Noacutes tambeacutem nos referimos
agrave ldquoguerra de Troacuteiardquo como um evento singular no entanto eacute muito claro que a
guerra de Troacuteia constitui na verdade uma seacuterie de eventos distintos Da mesma
maneira quando falamos de uma vela sobre diversas pessoas (ou diversas pessoas
sob um mesmo teto) tratamos esta vela (ou este teto) como um entidade singular
Neste caso poreacutem eacute mais faacutecil perceber que natildeo eacute a totalidade da vela que se
encontra sobre cada um dos indiviacuteduos mas apenas uma parte dela
Portanto ao formular a metaacutefora de uma vela sobre uma multiplicidade de
pessoas Parmecircnides natildeo estaacute deturpando a metaacutefora socraacutetica ou destituindo-a de
seu valor como soluccedilatildeo ao problema da participaccedilatildeo Muito pelo contraacuterio ao
reinterpretar a analogia socraacutetica Parmecircnides apenas torna evidente as
consequecircncias da proposta inicial apresentada por Soacutecrates Afirmar que uma
Forma uacutenica estaacute sobre muitas coisas equivale a afirmar que cada coisa possui
sobre si uma parte desta Forma exatamente da mesma maneira que a luz que
banha Soacutecrates pela manhatilde eacute apenas uma parte da totalidade da luz que ilumina a
Aacutetica e do mesmo modo que o momento da manhatilde em que Soacutecrates toma seu
banho de sol eacute apenas uma parte do intervalo de tempo que compotildee um dia
ldquoSeraacute entatildeo que a vela inteira estaria sobre cada um ou uma parte dela sobre um outra sobre outro Uma parte Logo Soacutecrates disse ele satildeo divisiacuteveis as Formas mesmas e as coisas que delas
42 Esta circularidade foi observada primeiramente por Allen que acaba por descartar
completamente a possibilidade da metaacutefora socraacutetica estar se referindo ao dia em seu sentido temporal (cf Allen 1997 p132)
249
participam participariam de uma de suas partes e natildeo eacute mais o todo que estaria em cada uma das coisas mas sim uma parte caberia a cada coisa Parece pelo menos que eacute assim Seraacute entatildeo Soacutecrates que estaraacutes disposto a dizer que a Forma uma em verdade se nos divide e ainda seraacute uma43 De maneira alguma disse Soacutecratesrdquo Ἦ οὖν ὅλον ἐφ ἑκάστῳ τὸ ἱστίον εἴη ἄν ἢ microέρος αὐτοῦ ἄλλο ἐπ ἄλλῳ Μέρος Μεριστὰ ἄρα φάναι ὦ Σώκρατες ἔστιν αὐτὰ τὰ εἴδη καὶ τὰ microετέχοντα αὐτῶν microέρους ἂν microετέχοι καὶ οὐκέτι ἐν ἑκάστῳ ὅλον ἀλλὰ microέρος ἑκάστου ἂν εἴη Φαίνεται οὕτω γε Ἦ οὖν ἐθελήσεις ὦ Σώκρατες φάναι τὸ ἓν εἶδος ἡmicroῖν τῇ ἀληθείᾳ microερίζεσθαι καὶ ἔτι ἓν ἔσται Οὐδαmicroῶς εἰπεῖν (131c2-11)
A tentativa de oferecer uma metaacutefora como explicaccedilatildeo para a hipoacutetese da
participaccedilatildeo no todo de uma Forma apenas forccedilou Soacutecrates na direccedilatildeo do segundo
ramo do dilema Tal como uma vela estendida sobre uma multiplicidade de
indiviacuteduos a Forma se mostra agora divida por seus participantes Cada um dos
objetos sensiacuteveis que participam de uma Forma recebe como sua propriedade
imanente uma parte desta Forma Isto eacute se x e y participam da Forma F entatildeo
uma parte de F estaacute em x e uma parte de F estaacute em y Eacute preciso observar que cada
um destes objetos recebe sua propriedade imanente de maneira exclusiva Pois se
considerarmos a propriedade imanente F-em-x como idecircntica agrave propriedade
imanente F-em-y nos encontraremos novamente submetidos ao argumento do
primeiro ramo do dilema Sendo assim como resultado da adoccedilatildeo do segundo
ramo do dilema da participaccedilatildeo as Formas passam a possuir um nuacutemero de partes
igual ao nuacutemero de objetos que delas participam
Novamente o caraacuteter unitaacuterio das Formas se mostra incompatiacutevel com a
hipoacutetese de que os objetos sensiacuteveis participam nas Formas Neste caso poreacutem
natildeo eacute a singularidade numeacuterica das Formas o que eacute perdido na relaccedilatildeo com os
muacuteltiplos objetos do mundo sensiacutevel mas a uniformidade ou integridade das
Formas isto eacute sua indivisibilidade
Soacutecrates reconhece prontamente o absurdo desta conclusatildeo e se recusa a
admitir que uma Forma uacutenica possa estar dividida pelos objetos sensiacuteveis que
dela participam (τὸ ἓν εἶδος ἡmicroῖν τῇ ἀληθείᾳ microερίζεσθαι) Este resultado por si soacute
43 καὶ ἔτι ἓν ἔσται aqui ldquoser umrdquo significa ldquoser indivisiacutevelrdquo como deixa claro o contraste
estabelecido por Parmecircnides entre esta claacuteusula e o verbo microερίζεσθαι (dividir-se) Como jaacute observamos neste segundo ramo do dilema da participaccedilatildeo eacute a noccedilatildeo de integridade ou indivisibilidade das Forma que se mostra incompatiacutevel com a hipoacutetese da participaccedilatildeo
250
jaacute eacute suficiente para descartar o segundo ramo do dilema e com ele a hipoacutetese de
que as coisas participam em partes das Formas A partir deste momento a reduccedilatildeo
ao absurdo operada pelo dilema jaacute estaacute realizada Segundo as premissas do
dilema soacute haacute participaccedilatildeo no todo ou em parte de uma Forma Contudo a
participaccedilatildeo no todo acaba por multiplicar as Formas e a participaccedilatildeo em partes
por dividi-las Como as Formas satildeo por definiccedilatildeo entidades singulares e
indivisiacuteveis entatildeo natildeo pode haver participaccedilatildeo nas Formas
Entretanto Parmecircnides natildeo se daacute por satisfeito com este resultado e passa
a apresentar uma seacuterie de argumentos que pretendem ilustrar as consequecircncias
absurdas agraves quais seriacuteamos levados caso aceitaacutessemos a efetiva divisatildeo das
Formas
ldquoPois vecirc disse Parmecircnides Se dividires a Grandeza mesma e se cada uma das muacuteltiplas coisas grandes for grande em virtude de uma parte da Grandeza [parte esta] menor que a Grandeza mesma seraacute que isso natildeo pareceraacute absurdo Perfeitamente disse ele Mas como Cada coisa recebendo uma parte do Igual uma [parte] pequena que eacute menor que o Igual mesmo teraacute algo com que seraacute igual ao que quer que seja Impossiacutevel E mais eacute uma parte do Pequeno que algum de noacutes teraacute e o Pequeno seraacute maior que essa parte mesma sendo esta uma parte dele e assim pois o Pequeno seraacute maior e aquilo a que for adicionada a parte subtraiacuteda seraacute menor e natildeo maior que antes Isso natildeo poderia ocorrer disse ele Ὅρα γάρ φάναι εἰ αὐτὸ τὸ microέγεθος microεριεῖς καὶ ἕκαστον τῶν πολλῶν microεγάλων microεγέθους microέρει σmicroικροτέρῳ αὐτοῦ τοῦ microεγέθους microέγα ἔσται ἆρα οὐκ ἄλογον φανεῖται Πάνυ γ ἔφη Τί δέ τοῦ ἴσου microέρος ἕκαστον σmicroικρὸν ἀπολαβόν τι ἕξει ᾧ ἐλάττονι ὄντι αὐτοῦ τοῦ ἴσου τὸ ἔχον ἴσον τῳ ἔσται Ἀδύνατον Ἀλλὰ τοῦ σmicroικροῦ microέρος τις ἡmicroῶν ἕξει τούτου δὲ αὐτοῦ τὸ σmicroικρὸν microεῖζον ἔσται ἅτε microέρους ἑαυτοῦ ὄντος καὶ οὕτω δὴ αὐτὸ τὸ σmicroικρὸν microεῖζον ἔσται ᾧ δ ἂν προστεθῇ τὸ ἀφαιρεθέν τοῦτο σmicroικρότερον ἔσται ἀλλ οὐ microεῖζον ἢ πρίν Οὐκ ἂν γένοιτο φάναι τοῦτό γε (131c12-e2)
Na tentativa de estabelecer de maneira ainda mais clara a inviabilidade do
segundo ramo do dilema da participaccedilatildeo satildeo apresentadas trecircs consequecircncias
absurdas decorrentes da hipoacutetese de que os objetos sensiacuteveis participam em partes
das Formas Segundo a argumentaccedilatildeo de Parmecircnides caso adotemos o segundo
ramo do dilema
1) Uma coisa grande seraacute grande em virtude de uma parte da
251
Grandeza menor do que a Grandeza mesma e portanto seraacute grande
em virtude daquilo que eacute pequeno
2) Uma coisa igual seraacute igual em virtude de uma parte pequena da
Igualdade e portanto seraacute igual em virtude daquilo que eacute desigual
3) Se subtrairmos uma parte do Pequeno o Pequeno em si seraacute maior
do que cada uma de suas partes e portanto o Pequeno seraacute maior
Por outro lado o objeto sensiacutevel que receber uma de suas partes se
tornaraacute menor e natildeo maior em virtude desta adiccedilatildeo
Para que possamos entender o que torna estas conclusotildees inaceitaacuteveis do
ponto de vista de Soacutecrates e sua Teoria das Ideias precisamos ter em mente o
poder causal exercido pelas Formas sobre os objetos sensiacuteveis De acordo com a
teoria da causalidade defendida por Soacutecrates uma causa deve possuir a
caracteriacutestica que ela produz nas coisas Assim no Protaacutegoras (332b1) Soacutecrates
afirma que eacute ldquopela temperanccedila que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (σωφροσύνῃ
σωφρονοῦσιν) no Teeteto (145d11) que eacute ldquopela sabedoria que os saacutebios satildeo
saacutebiordquo (Σοφίᾳ δέ γ οἶmicroαι σοφοὶ οἱ σοφοί) e no Hiacuteppias Maior que eacute ldquopelo belo
que todas as coisas belas satildeo belasrdquo (Ἆρ οὖν οὐ καὶ τὰ καλὰ πάντα τῷ καλῷ ἐστι
καλά) Nestas passagens Soacutecrates faz uso do dativo instrumental para apresentar
em uma sentenccedila cuja forma eacute aparentemente tautoloacutegica aquilo que ele e seus
interlocutores tomam como uma verdade autoevidente Isto eacute que a despeito do
estatuto ontoloacutegico que estejamos dispostos a atribuir para a causa das
propriedades dos objetos sensiacuteveis eacute impossiacutevel pensar que esta causa natildeo
possua ela mesma a propriedade que produz Em paralelo a esta assunccedilatildeo
Soacutecrates e seus interlocutores tomam como autocontraditoacuteria a hipoacutetese de que
uma causa possa ser caracterizada pela propriedade oposta agravequela de que eacute causa
Pois ldquoeacute iloacutegico (ἄλογόν) [admitir] que algueacutem seja corajoso pelo medo e pela
covardiardquo (καίτοι ἄλογόν γε δέει τινὰ καὶ δειλίᾳ ἀνδρεῖον εἶναι Feacuted68d) e ldquoeacute
assombroso (τέρας) que algo grande seja grande em virtude de alguma coisa
pequenardquo (καὶ τοῦτο δὴ τέρας εἶναι τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι Feacuted101b1-
2)44
44 Para outras passagens em que Soacutecrates afirma a impossibilidade de que uma causa possa ser
caracterizada pela propriedade oposta agravequela de que eacute causa Feacuted 68d 68e 100a-b Rep335c-d Prot355d Teet 199d
252
Como vimos este princiacutepio baacutesico relativo agrave noccedilatildeo de causalidade eacute
ostensivamente apresentado no Feacutedon como a razatildeo para o fato de podermos de
maneira segura oferecer as Formas como causas das propriedades dos objetos
sensiacuteveis Em Feacuted102d6-8 Soacutecrates expande estes criteacuterios para as propriedades
imanentes afirmando que ldquonatildeo apenas a Grandeza em si jamais admitiraacute ser
simultaneamente grande e pequena como tambeacutem a grandeza-em-noacutes jamais
admitiraacute a pequenezrdquo (οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ
σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν)45
No Parmecircnides (129b1-2) encontramos esta mesma alegaccedilatildeo repetida quanto
Soacutecrates desafia seus interlocutores a lhe demonstrarem que a propriedade
imanente da semelhanccedila (αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά) pode se tornar dessemelhante e a
propriedade imanente da dessemelhanccedila semelhante
Portanto de acordo com a Teoria das Ideias para que possamos dizer que
um determinado objeto sensiacutevel x eacute F eacute preciso que tanto a Forma F quanto a
propriedade imanente F-em-x sejam unicamente caracterizadas pelo predicado F
isto eacute sejam auto-predicativas e natildeo apareccedilam nunca como o contraacuterio de F
Nos argumentos 1 e 2 Parmecircnides demonstra que a adoccedilatildeo do segundo
ramo do dilema natildeo pode ser harmonizada com a hipoacutetese de que as propriedades
imanentes satildeo entidades uniformes unicamente caracterizadas pela auto-
predicaccedilatildeo e completamente isentas da predicaccedilatildeo de opostos De acordo com o
segundo ramo do dilema um objeto x eacute grande por apresentar como sua
propriedade imanente uma parte da Grandeza Contudo por ser apenas uma parte
a grandeza-em-x eacute menor do que a Grandeza em si que representa o todo do qual
a grandeza-em-x eacute uma parte Consequentemente x eacute grande em virtude de uma
propriedade imanente que eacute ela mesma pequena Da mesma maneira se um
objeto y eacute igual em virtude de uma parte do Igual menor do que o Igual em si
entatildeo y eacute igual em virtude daquilo que eacute desigual
Em 3 Parmecircnides muda o foco de sua criacutetica A propriedade imanente
pequeno-em-x considerada como uma parte do Pequeno em si eacute de fato
pequena e natildeo estaria sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos Contudo neste caso a
45 O mesmo ponto eacute reafirmado em 102e5-103a1 Eacute preciso notar que tal afirmaccedilatildeo estaacute em pleno
acordo com o papel das propriedades imanentes na soluccedilatildeo de Soacutecrates para o problema da copresenccedila de opostos Afinal admtir que uma propriedade imanente eacute caracterizada por seu oposto seria equivalente a afirmar que um mesmo elemento constituinte de Soacutecrates eacute simultaneamente grande e pequeno o que natildeo solucionaria o problema da copresenccedila de
253
contradiccedilatildeo eacute encontrada na proacutepria Forma do Pequeno Pois se a Forma do
Pequeno eacute maior do que cada uma de suas partes o Pequeno em si eacute grande
Novamente nos vemos frente a uma impossibilidade loacutegica pois a causa das
coisas serem pequenas seria ela mesma grande Com relaccedilatildeo ao poder causal
exercido pela Forma do Pequeno Parmecircnides ainda acrescenta uma uacuteltima
perplexidade caso entendamos que um objeto z torna-se pequeno por adquirir a
propriedade imanente pequeno-em-z seremos obrigados a admitir que o objeto z
torna-se pequeno em virtude de uma adiccedilatildeo o que estaacute em claro desacordo com os
princiacutepios baacutesicos da matemaacutetica
As conclusotildees obtidas por Parmecircnides demonstram que a hipoacutetese da
participaccedilatildeo em partes das Formas teria como consequecircncia a predicaccedilatildeo de
opostos da Forma do Pequeno e das propriedades imanentes do grande e do igual
Consequentemente o poder causal exercido por estas trecircs Formas especiacuteficas
tornar-se-ia inexplicaacutevel uma vez que um dos princiacutepios baacutesicos da causalidade
seria violado e estas entidades estariam sujeitas ao problema da predicaccedilatildeo de
opostos para o qual deveriam servir de soluccedilatildeo
Como podemos perceber estes trecircs argumentos apresentam paradoxos
especiacuteficos relativos apenas agraves Formas do Grande do Igual e do Pequeno
fugindo portanto da generalidade encontrada na argumentaccedilatildeo de Parmecircnides ateacute
aqui Aleacutem disso estes argumentos satildeo estruturalmente desnecessaacuterios uma vez
que Soacutecrates jaacute havia admitido a inviabilidade do segundo ramo do dilema ao
concluir que seria impossiacutevel aceitar que uma Forma uacutenica possa estar dividida
por seus participantes (τὸ ἓν εἶδος microερίζεσθαι)46
Podemos nos perguntar por que Platatildeo incluiria esta descontinuidade
umas vez que os argumentos seguintes voltaratildeo a ser dirigidos contra o conjunto
de Formas em sua generalidade Minha opiniatildeo eacute que Platatildeo apresenta estes trecircs
argumentos como encerramento dos problemas relativos ao dilema da participaccedilatildeo
com o intuito de chamar a atenccedilatildeo do leitor para o tema da auto-predicaccedilatildeo das
Formas O fato de que as Formas satildeo entidades auto-predicativas estaacute diretamente
opostos
46 De fato no momento mesmo em que Soacutecrates aceita a analogia da vela oferecida por Parmecircnides o segundo ramo do dilema da participaccedilatildeo torna-se inviaacutevel Afinal o fato de Soacutecrates possuir diversas partes havia sido suficiente para concluir que ele Soacutecrates eacute muacuteltiplo Sendo assim por paridade de raciociacutenio o fato de mais de um objeto sensiacutevel participar de uma mesma Forma que estende suas diversas partes sobre estes objetos eacute suficiente para concluir a multiplicidade desta Forma
254
relacionado com os paradoxos relativos agraves Formas do Grande do Igual e do
Pequeno e seraacute fundamental na compreensatildeo dos dois regressos ao infinito que
seratildeo apresentados nos proacuteximos argumentos Contudo em todos estes
argumentos a caracteriacutestica de auto-prediccedilatildeo das Formas aparece como uma
premissa pressuposta nunca textualmente expressa Portanto ao apresentar esta
seacuterie de trecircs paradoxos nos quais a auto-predicaccedilatildeo das Formas estaacute claramente
em jogo Platatildeo oferece aos leitores do Parmecircnides uma chave de leitura para a
compreensatildeo dos regressos que seratildeo apresentados em seguida
255
427 A validade do dilema da participaccedilatildeo como criacutetica agrave Teoria das Ideias
O dilema da participaccedilatildeo constitui uma reduccedilatildeo ao absurdo formalmente
vaacutelida Soacutecrates havia sustentado que 1) existem Formas e 2) os objetos sensiacuteveis
participam nestas Formas O dilema apresenta duas alternativas exaustivas de
compreensatildeo para o que seria a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo e ambas se mostram
inaceitaacuteveis para Teoria das Ideias Logo o dilema da participaccedilatildeo implica na
falsidade da tese 2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis participam nas Formas Eacute
claro contudo que a validade destas duas teses eacute plenamente independente
Parmecircnides provou que a tese 2) eacute falsa a despeito do fato de que a tese 1) possa
ser verdadeira e as Formas possam ser consideradas entidades reais
No entanto desde jaacute cabe a pergunta qual seria a vantagem teoacuterica de se
admitir a existecircncia das Formas sem que fique esclarecida a natureza da relaccedilatildeo
que estas entidades mantecircm com os objetos do mundo empiacuterico Uma satisfatoacuteria
compreensatildeo para natureza da relaccedilatildeo entre Formas e coisas mostra-se essencial
para validade da hipoacutetese das Formas pois a incapacidade de elucidar o modo
especiacutefico de relacionamento entre estes dois niacuteveis distintos da realidade teria
como resultado a total irrelevacircncia da postulaccedilatildeo das Formas Isto porque
isoladas das coisas do mundo sensiacutevel as Formas passariam a representar
entidades teoricamente irrelevantes e a postulaccedilatildeo destas entidades natildeo passaria
de uma supeacuterflua duplicaccedilatildeo da realidade empiacuterica
Contudo nada disso estaraacute em jogo caso as criacuteticas de Parmecircnides
comprovem-se irrelevantes para a Teoria das Ideias ou simplesmente falaciosas
Assim na tradiccedilatildeo de comentaacuterios ao Parmecircnides diversos autores procuraram
desqualificar natildeo apenas o sentido geral da argumentaccedilatildeo parmeniacutedica sob a
alegaccedilatildeo de que suas criacuteticas natildeo passam de uma grande piada ou de um mero
exerciacutecio eriacutestico como tambeacutem cada um dos argumentos separadamente Na
tentativa de invalidar o dilema da participaccedilatildeo e salvar a Teoria das Ideias deste
primeiro conjunto de criacuteticas trecircs estrateacutegias foram adotadas pelos comentadores
A primeira estrateacutegia jaacute foi por noacutes mencionada e consiste em afirmar que o
dilema da participaccedilatildeo natildeo diz respeito agrave Teoria das Ideias socraacutetica mas a uma
outra teoria qualquer Contudo como vimos a proacutepria estrutura do Parmecircnides
256
proiacutebe este tipo de interpretaccedilatildeo No Parmecircnides eacute o proacuteprio Soacutecrates quem
apresenta a Teoria das Ideias e como demonstramos esta apresentaccedilatildeo guarda
todas as caracteriacutesticas essenciais da Teoria das Ideias encontrada nos diaacutelogos da
Juventude e Fase Meacutedia Sendo assim natildeo podemos descartar a validade do
dilema da participaccedilatildeo pela simples alegaccedilatildeo de que estamos lidando com um
caso de ignoratio elenchi
Uma segunda opccedilatildeo consiste em considerar o dilema da participaccedilatildeo como
formalmente correto poreacutem materialmente falso isto eacute fundado em falsas
premissas De acordo com este tipo de interpretaccedilatildeo que remonta ao comentaacuterio
de Proacuteclus (In Parm 859-862) o sentido de ldquoparticipaccedilatildeordquo inerente agraves criacuteticas de
Parmecircnides natildeo condiz com o sentido que esta expressatildeo recebe nos outros
diaacutelogos platocircnicos em que a Teoria das Ideias eacute apresentada Assim Cornford
comentando o dilema afirma que ldquoo argumento pressupotildee que o exemplar da
Grandeza que cabe agrave participaccedilatildeo de uma coisa grande eacute uma parte da Forma
entendida como um pedaccedilo (bit) no qual a Forma eacute cortada (cut up)rdquo De acordo
com Cornford este raciociacutenio entende os conceitos de ldquoparterdquo e ldquotodordquo em seu
ldquosentido mais grosseiro e materialrdquo (Cornford 1951 p85)
Adotando a mesma linha interpretativa Sprague alega que Parmecircnides soacute
pode chegar a suas conclusotildees porque interpreta ldquoparticipaccedilatildeordquo em um sentido
fiacutesico (physical sense) Segundo Sprague ldquouma reductio ad absurdum foi
construiacuteda mas apenas por meio de uma distorccedilatildeo da dualidade essencial da
teoria [das Ideias] e da relaccedilatildeo entre estes dois tipos de entidades [relaccedilatildeo esta]
que Platatildeo procura exprimir por meio de expressotildees como ldquoestar presenterdquo e
ldquoparticiparrdquo (Sprague 1967 p96)
Portanto de acordo estes autores o dilema da participaccedilatildeo apesar de
formalmente vaacutelido natildeo se apresenta como uma criacutetica honesta agrave Teoria das
Ideias Segundo este argumento Parmecircnides estaria interpretando de maneira
errocircnea o sentido do termo ldquoparticipaccedilatildeordquo O uso dos conceitos de todoparte
maiormenor e a compreensatildeo de ldquoparticipaccedilatildeordquo como a presenccedila da Forma nos
objetos sensiacuteveis seriam evidecircncias de uma reificaccedilatildeo da realidade inteligiacutevel que
segundo estes comentadores representaria uma brutal e inaceitaacutevel distorccedilatildeo da
verdadeira posiccedilatildeo socraacutetica
Ora a primeira objeccedilatildeo que podemos oferecer a este tipo de interpretaccedilatildeo
consiste em apresentar o fato dramaacutetico de que em nenhum momento da
257
discussatildeo Soacutecrates protesta contra esta suposta deformaccedilatildeo de sua teoria Quando
Parmecircnides comeccedila a formular suas criacuteticas Soacutecrates jaacute havia apresentado sua
distinccedilatildeo fundamental entre ldquoas coisas que se vecircemrdquo (τοῖς ὁρωmicroένοις ) e ldquoas
coisas apreendidas pelo raciociacuteniordquo (τοῖς λογισmicroῷ λαmicroβανοmicroένοις ) estabelecendo
claros paracircmetros de diferenciaccedilatildeo entre estes dois tipos de entidades objetos
sensiacuteveis e Formas Caso o dilema da participaccedilatildeo se apresentasse como o
resultado da mera negligecircncia desta distinccedilatildeo fundamental o mais natural seria
que Soacutecrates reafirmasse esta distinccedilatildeo e bloqueasse a argumentaccedilatildeo parmeniacutedica
desde o iniacutecio Simplesmente natildeo haacute razatildeo para acreditarmos que Platatildeo tenha
decidido representar Soacutecrates em aporia por conta de um argumento decorrente da
negligecircncia da distinccedilatildeo proposta pelo proacuteprio Soacutecrates entre entidades sensiacuteveis
e inteligiacuteveis
O dilema da participaccedilatildeo funda-se no vocabulaacuterio empregado por Soacutecrates
para descrever a relaccedilatildeo entre Formas e coisas natildeo soacute no Parmecircnides como
tambeacutem por toda fase meacutedia e inicial Segundo Soacutecrates as coisas sensiacuteveis
ldquoparticipamrdquo (metexousin metalambanousin) das Formas ou ldquocomunicam-serdquo
(koinwnou=sin koinwnian e)xousin) com elas Como resultado desta relaccedilatildeo as
coisas sensiacuteveis passam a ldquopossuirrdquo (e)xousin) ou ldquoreceberrdquo (dexontai) as Formas
As Formas por sua vez passam a ldquoestar presentesrdquo (πάρεστιν) ou a ldquoestar nasrdquo
(e)neστι) coisas Portanto ao propor que a noccedilatildeo de participaccedilatildeo soacute pode ser
entendida por meio da disjunccedilatildeo partetodo Parmecircnides estaacute oferecendo
paracircmetros baacutesicos de compreensatildeo e anaacutelise para um conceito apresentado pelo
proacuteprio Soacutecrates
Os argumentos de Parmecircnides podem inclusive ser construiacutedos
formalmente sem que uma interpretaccedilatildeo material das Formas seja de qualquer
modo pressuposta Afinal a disjunccedilatildeo partetodo se mostra como uacutenica opccedilatildeo
vaacutelida para compreensatildeo de uma relaccedilatildeo descrita como ldquoa participaccedilatildeo da
entidade x na entidade yrdquo independente do estatuto ontoloacutegico atribuiacutedo e estas
entidades Uma evidecircncia disto encontra-se no fato de que nos Elementos (I
axioma 5) Euclides lista o axioma de que ldquoo todo eacute maior do que as partesrdquo (Καὶ
τὸ ὅλον τοῦ microέρους microεῖζον [ἐστιν]) como uma ldquonoccedilatildeo comumrdquo Tais ldquonoccedilotildees
comunsrdquo (koinai e)nnoiai) satildeo definidas como princiacutepios indemonstraacuteveis
comuns a todas as ciecircncias e que portanto ultrapassam o campo da geometria e
natildeo tecircm sua validade restrita aos raciociacutenios envolvendo coisas estendidas no
258
espaccedilo (cf Heath 1956 p221-222)
Sendo assim natildeo haacute porque desqualificar o dilema da participaccedilatildeo sob a
alegaccedilatildeo de que este argumento funda-se em uma ldquocoisificaccedilatildeordquo falaciosa da
hipoacutetese das Formas Os argumentos de Parmecircnides ilustram contradiccedilotildees
decorrentes de uma determinada interpretaccedilatildeo para relaccedilatildeo entre objetos
empiacutericos e Formas proposta pelo proacuteprio Soacutecrates e que natildeo estaacute diretamente
fundada na atribuiccedilatildeo de uma natureza material para as Formas mas deriva do
reconhecimento de que qualquer tipo de participaccedilatildeo deve ser entendida por meio
dos conceitos baacutesicos de parte e todo Soacutecrates havia proposto que as coisas
sensiacuteveis participam das Formas e como consequecircncia desta participaccedilatildeo
adquirem suas diversas propriedades imanentes Natildeo haacute falaacutecia alguma em se
apresentar a disjunccedilatildeo todoparte como modos exaustivos de se compreender esta
relaccedilatildeo Pois de fato estas satildeo as uacutenicas maneiras logicamente possiacuteveis de
entendermos uma relaccedilatildeo descrita deste modo
Uma terceira maneira de desqualificar a validade do dilema consiste em
alegar tal como faz David Ross (Ross 1951 p88-89) que os argumentos de
Parmecircnides baseiam-se em uma interpretaccedilatildeo literal para termos que Soacutecrates
apresenta como meras metaacuteforas Segundo este tipo de interpretaccedilatildeo Soacutecrates
estaria imune agraves criacuteticas de Parmecircnides pelo fato de natildeo se propor a definir de
maneira precisa a relaccedilatildeo entre Formas e coisas Para Ross os conceitos de
ldquoparticipaccedilatildeordquo e ldquocomunhatildeordquo satildeo apresentados por Soacutecrates como ilustraccedilotildees
aproximadas para uma relaccedilatildeo reconhecida como na verdade indescritiacutevel
Ora eacute claro que tal objeccedilatildeo sequer constitui um argumento contra a
validade do dilema parmeniacutedico A noccedilatildeo de que a relaccedilatildeo entre Formas e coisas eacute
uma relaccedilatildeo uacutenica para qual nenhuma definiccedilatildeo satisfatoacuteria pode ser apresentada eacute
conveniente apenas como uma soluccedilatildeo ad hoc para os problemas levantados por
Parmecircnides De fato esta explicaccedilatildeo pressupotildee a validade das criacuteticas de
Parmecircnides para concluir que o termo ldquoparticipaccedilatildeordquo eacute meramente metafoacuterico e
natildeo se pretende como uma definiccedilatildeo seacuteria Aleacutem disso nos vemos novamente
frente ao fato dramaacutetico de que Soacutecrates em momento algum atribui uma
natureza sui generis e indescritiacutevel para relaccedilatildeo entre Formas e coisas Em total
oposiccedilatildeo ao que esperariacuteamos caso Platatildeo desejasse indicar o caraacuteter indefiniacutevel
desta relaccedilatildeo Soacutecrates iraacute propor no decorrer do diaacutelogo maneiras alternativas de
entender o relacionamento entre Formas e coisas o que evidencia a crenccedila deste