4 o diálogo parmênides e a ontologia socrática

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176 4 O Diálogo Parmênides e a Ontologia Socrática 4.1. Apresentação do diálogo Parmênides. Qualquer introdução suficientemente completa ao diálogo Parmênides precisa abordar, ainda que de maneira resumida, o tema da autenticidade deste diálogo. Isto porque a maior parte dos diálogos platônicos já teve sua autoria contestada e o Parmênides, até mesmo pelas particularidades que seu texto apresenta, não foi poupado deste tipo de acusação. No que toca à tradição antiga de comentários, 1 no entanto, nenhuma dúvida parece ter surgido com relação à autenticidade de nosso diálogo. Além disso, os diversos manuscritos e compilações de obras platônicas vindos da antiguidade apresentam o Parmênides como uma obra legítima, sem levantar qualquer suspeita acerca de sua autenticidade. Como sabemos, a maior parte dos manuscritos dos diálogos de Platão que possuímos pode ter sua origem traçada, com razoável segurança, a uma fonte comum datada dos primeiros anos da era cristã, período em que o astrólogo e filósofo egípcio Thrasillus (-36 D.C.) organizou uma edição de todos os diálogos considerados, por ele, como autênticos. De acordo com Diógens Laércio (III, 56-61), Thrasillus dividiu os diálogos em tetralogias e, na listagem reproduzida por Diógenes, podemos encontrar o Parmênides encabeçando a terceira tetralogia; seguido por Filébo, Banquete e Fédro. Sendo assim, podemos considerar que o Parmênides era tido como uma obra autêntica, pelo menos, desde o primeiro século depois de 1 O Parmênides, ainda na antiguidade, adquire um lugar de destaque no conjunto da obra platônica e é minuciosamente interpretado por vários comentadores da tradição antiga, dentre os quais Próclo (412-485 D.C), cujo comentário ao Parmênides chegou até nós e no qual uma vasta tradição de comentadores anteriores é constantemente citada, sem nunca pôr em questão a legitimidade deste diálogo.

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Page 1: 4 O Diálogo Parmênides e a Ontologia Socrática

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4 O Diaacutelogo Parmecircnides e a Ontologia Socraacutetica

41 Apresentaccedilatildeo do diaacutelogo Parmecircnides

Qualquer introduccedilatildeo suficientemente completa ao diaacutelogo Parmecircnides

precisa abordar ainda que de maneira resumida o tema da autenticidade deste

diaacutelogo Isto porque a maior parte dos diaacutelogos platocircnicos jaacute teve sua autoria

contestada e o Parmecircnides ateacute mesmo pelas particularidades que seu texto

apresenta natildeo foi poupado deste tipo de acusaccedilatildeo No que toca agrave tradiccedilatildeo antiga

de comentaacuterios1 no entanto nenhuma duacutevida parece ter surgido com relaccedilatildeo agrave

autenticidade de nosso diaacutelogo

Aleacutem disso os diversos manuscritos e compilaccedilotildees de obras platocircnicas

vindos da antiguidade apresentam o Parmecircnides como uma obra legiacutetima sem

levantar qualquer suspeita acerca de sua autenticidade Como sabemos a

maior parte dos manuscritos dos diaacutelogos de Platatildeo que possuiacutemos pode ter sua

origem traccedilada com razoaacutevel seguranccedila a uma fonte comum datada dos

primeiros anos da era cristatilde periacuteodo em que o astroacutelogo e filoacutesofo egiacutepcio

Thrasillus (-36 DC) organizou uma ediccedilatildeo de todos os diaacutelogos considerados

por ele como autecircnticos De acordo com Dioacutegens Laeacutercio (III 56-61) Thrasillus

dividiu os diaacutelogos em tetralogias e na listagem reproduzida por Dioacutegenes

podemos encontrar o Parmecircnides encabeccedilando a terceira tetralogia seguido por

Fileacutebo Banquete e Feacutedro Sendo assim podemos considerar que o Parmecircnides

era tido como uma obra autecircntica pelo menos desde o primeiro seacuteculo depois de

1 O Parmecircnides ainda na antiguidade adquire um lugar de destaque no conjunto da obra

platocircnica e eacute minuciosamente interpretado por vaacuterios comentadores da tradiccedilatildeo antiga dentre os

quais Proacuteclo (412-485 DC) cujo comentaacuterio ao Parmecircnides chegou ateacute noacutes e no qual uma vasta

tradiccedilatildeo de comentadores anteriores eacute constantemente citada sem nunca pocircr em questatildeo a

legitimidade deste diaacutelogo

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cristo

Eacute bem verdade contudo que Dioacutegenes apresenta uma segunda listagem de

obras platocircnicas mais antiga na qual os diaacutelogos estatildeo organizados em trilogias e

na qual o Parmecircnides natildeo aparece No entanto podemos ter como certo que estas

trilogias atribuidas agrave Aristoacutefanes de Bizacircncio natildeo pretendiam abarcar toda a obra

platocircnica o que fica claro a partir da afirmaccedilatildeo final de Dioacutegenes de que ldquoas

outras obras natildeo eram organizadas em grupo mas individualmenterdquo

(ta d a)lla kaq e(n kai a)taktwj) O fato de que o Parmecircnides figurava entre

estas ldquooutras obrasrdquo eacute assegurado pela discussatildeo subsequente na qual Dioacutegenes

aborda o problema da autecircnticidade dos diaacutelogos platocircnicos e natildeo cita nosso

diaacutelogo entre aqueles ldquodeclarados espuacuterios por consentimento geralrdquo Aleacutem disso

sabemos que Dioacutegenes considerava o Parmecircnides um diaacutelogo autecircntico pelo uso

que ele faz deste diaacutelogo na sua descriccedilatildeo das vidas de Parmecircnides e Zenatildeo (IX

23-25) Portanto uma vez que Dioacutegenes estaacute de posse da listagem de Aristoacutefanes

de Bizacircncio e natildeo cita o Parmecircnides como uma obra de autenticidade discutida

podemos estender o reconhecimento da legitimidade de nosso diaacutelogo ateacute meados

dos segundo seacuteculo antes de cristo eacutepoca em que Aristoacutefanes realizou sua

compilaccedilatildeo dos diaacutelogos

A tradiccedilatildeo de comentadores modernos contudo duvidou muitas vezes da

autenticidade do Parmecircnides sobretudo por meio da alegaccedilatildeo de que o conteuacutedo

deste diaacutelogo natildeo estaria de acordo com o sentido geral da filosofia platocircnica2

Conforme nos reporta Waddell Socher declara a obra como inautecircntica sob a

alegaccedilatildeo de que no Parmecircnides um assunto eminentemente platocircnico eacute tratado

com ldquoum violento espiacuterito destrutivordquo (Waddell 1894 pxiii) Waddell considera

este tipo de objeccedilatildeo plenamente plausiacutevel e dedica vaacuterias paacuteginas de sua

introduccedilatildeo para demonstrar como o modo de argumentaccedilatildeo do Parmecircnides natildeo

2 De acordo com a narrativa oferecida por Lutoslawski (Lutoslawski 1897 p38 53-55) o

primeiro autor a duvidar da legitimidade do Parmecircnides foi Socher em sua obra Ueber Platons Schriften (1820) na qual contesta ainda a autoria dos diaacutelogos Sofista e Poliacutetico Ueberweg (1861) tambeacutem suspeita da autenticidade do Parmecircnides e atribui a sua composiccedilatildeo a um disciacutepulo da Academia Schaarschmidt (1866) por fim considera natildeo soacute o Parmecircnides como a maior parte dos diaacutelogos que possuimos inautecircnticos aceitando como legiacutetimos apenas nove dos trinta e seis diaacutelogos que nos chegaram Como podemos ver a questatildeo da autoria dos diaacutelogos havia se tornado um ponto de intenso debate entre os comentadores alematildees do seacuteculo XIX Um dos motivos para o surgimento deste tipo de discussatildeo encontra-se no fato de que este autores estavam interessados em construir um quadro geral do pensamento de Platatildeo portanto apelavam para a inautenticidade de uma obra sempre que ela natildeo se encaixava em seus esquemas interpretativos

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pode ser considerado mais ldquodestrutivordquo do que aquele encontrado em outras

passagens do corpus nas quais temas ldquotipicamente platocircnicosrdquo tambeacutem satildeo alvo

de duras investidas por exemplo os ataques do Teeteto agrave possibilidade do

conhecimento e a criacutetica aos amantes das ideias no Sofista (Waddell 1894 pxiii-

xvi)

Parece muito claro no entanto que o tipo de argumento apresentado por

Socher estaacute necessariamente fadado a uma peticcedilatildeo de princiacutepio como jaacute foi

assinalado com relaccedilatildeo ao fato de Schleiermacher considerar possiacutevel distinguir

obras autecircnticas e espuacuterias com base na doutrina por elas apresentada Este tipo de

argumento pressupotildee que o comentador possua um acesso privilegiado ao

conteuacutedo doutrinal dos diaacutelogos de tal modo que de posse deste conhecimento

esteja na posiccedilatildeo de julgar quais diaacutelogos estatildeo de acordo ou natildeo com este

conteuacutedo Eacute oacutebvio no entanto que o acesso ao conteuacutedo doutrinal dos diaacutelogos soacute

pode advir de uma escolha preacutevia de quais diaacutelogos apresentam este conteuacutedo

Sendo assim o comentador que advoga esta linha de raciociacutenio estaacute claramente

retido em um ciacuterculo vicioso pois a doutrina dos diaacutelogos que ele considera

legiacutetimos deriva diretamente da sua escolha de quais diaacutelogos satildeo legiacutetimos ou

natildeo Sendo assim natildeo temos razatildeo para considerar argumentos de caraacuteter

doutrinaacuterio na discussatildeo acerca da autenticidade do Parmecircnides Simplesmente

natildeo temos acesso direto ao que seria a verdadeira filosofia platocircnica de modo a

podermos julgar o grau de adequaccedilatildeo do Parmecircnides a esta filosofia

Com relaccedilatildeo ao texto do Parmecircnides contudo eacute possiacutevel considerar se a

forma na qual ele eacute escrito se assemelha ou natildeo ao que encontramos em outros

diaacutelogos Neste sentido Waddell que escreve antes da aceitaccedilatildeo geral do meacutetodo

estilomeacutetrico faz algumas observaccedilotildees que me limito a reproduzir

ldquoNovamente ele [o Parmecircnides] estaacute escrito em estilo platocircnico pelo que noacutes queremos dizer vaacuterias coisas Ele eacute natildeo somente um diaacutelogo () mas o tipo de diaacutelogo e os personagens satildeo platocircnicos Ele comeccedila de uma maneira dramaticamente viacutevida o que pode ser posto em paralelo a vaacuterias obras platocircnicas entatildeo quando o proacuteprio tema eacute introduzido os personagens dramaacuteticos tornam-se subordinados e deixam de ser uma parte essencial da composiccedilatildeo O mesmo ocorre na Repuacuteblica quando as preliminares estatildeo resolvidas e a obra construtiva comeccedila qual importacircncia tecircm as perguntas de Glauco e Adimanto Eles simplesmente confirmam Soacutecrates dando a ele a oportunidade para reiniciar o argumento salvando a obra de ser um mero tratado e fornecendo ao orador principal uma anapaula Este eacute o mesmo serviccedilo prestado por Aristoacuteteles no Parmecircnides Mesmo a artificialidade da narrativa pode ser

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considerada um argumento a seu favor Um imitador dificilmente estaria disposto a fazer de sua obra um relato de um relato de um relatordquo (Waddell 1894 pxvii)

Temos ainda como um argumento a favor da autenticidade de nosso

diaacutelogo o fato de que encontramos em diversas obras do corpus platocircnico

referecircncias bastante claras tanto ao conteuacutedo filosoacutefico discutido no Parmecircnides

quanto agrave cena dramaacutetica nele descrita A apresentaccedilatildeo destas passagens ao lado de

passagens do proacuteprio Parmecircnides deve ser suficiente para deixar claro ao leitor o

grau de intertextualidade existente Assim com relaccedilatildeo primeiro destes dois tipos

de referecircncias encontramos as seguintes passagens no corpus em que haacute clara

alusatildeo a assuntos tratados no Parmecircnides Fileb14c-15 cf Parm129 c-d 131a e

ainda Fed102b cf Parm130e Com relaccedilatildeo ao segundo tipo de referecircncia

encontramos passagens de outros diaacutelogos em que a conversa narrada no

Parmecircnides eacute explicitamente evocada por Soacutecrates Teet183 cf Parm127b e

Sofist217c(237a) cf Parm 1373

Por fim eacute preciso observar que o Parmecircnides foi objeto de intensa anaacutelise

estilomeacutetrica pois a especificidade de seu vocabulaacuterio sempre se mostrou um

desafio para o estabelecimento de sua posiccedilatildeo no interior da seacuterie de diaacutelogos Os

resultados destas anaacutelises estiliacutesticas na grande maioria da vezes indicaram a

autenticidade de nosso diaacutelogo como podemos constatar pelas compilaccedilotildees

desenvolvidas por Lutoslawski (1897) e Brandwood (1990)

No entanto nossa apresentaccedilatildeo ficaria incompleta caso natildeo citaacutessemos os

argumentos desenvolvidos por Ritter com o objetivo de questionar a autenticidade

do Parmecircnides Em sua obra Untersuchungen uumlber Platon (1888) Ritter se

propotildee a verificar a autenticidade de certos diaacutelogos ldquoduvidososrdquo por meio de

uma anaacutelise estiliacutestica destas obras A metodologia adotada por Ritter eacute certamente

questionaacutevel Pois segundo ele ldquoqualquer obra suspeita que apresente uma

3 Deixo ao leitor o julgamento acerca do grau de paralelismo existente entre esta passagens

Anteriormente argumentei contra o uso deste tipo de referecircncia textual entre os diaacutelogos como forma de estabelecer relaccedilotildees cronoloacutegicas de composiccedilatildeo pois conforme dito na ocasiatildeo o fato do Teeteto fazer menccedilatildeo ao Parmecircnides natildeo implica necessariamente que Platatildeo tenha escrito o Teeteto antes Platatildeo pode muito bem ter mencionado uma cena dramaacutetica sobre a qual ainda intencionava escrever A existecircncia deste tipo de menccedilatildeo me parece poder seu usado contudo para sustentar a autenticidade de uma obra em relaccedilatildeo a outra Claro que natildeo estamos falando de uma prova definitiva de autenticidade pois um falsaacuterio poderia estar citando obras conhecidas de Platatildeo No entanto como vimos a intertextualidade e a referecircncia entre diaacutelogos eacute uma propriedade essencial da obra platocircnica e portanto um diaacutelogo tatildeo inserido em relaccedilotildees intertextuais como o Parmecircnides compartilha segundo meu ponto de vista de uma das caracteriacutesticas principais da obra platocircnica

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surpreendente mistura de expressotildees caracteriacutesticas de diferentes periacuteodos

[estiliacutesticos] deve ser imediatamente declarada espuacuteriardquo (cf Brandwood 1990

p83) Ora tal afirmaccedilatildeo reflete uma confianccedila claramente exacerbada acerca das

capacidades do meacutetodo estilomeacutetrico Afinal para podermos declarar tatildeo

prontamente a inautenticidade de uma obra segundo este criteacuterio devemos

acreditar que Platatildeo natildeo sofreu mudanccedilas gradativas de estilo mas tornou-se

praticamente um novo autor a cada mudanccedila de fase No entanto apesar de

nenhum dos pontos apresentados por Ritter poder ser usado como prova absoluta

para inautenticidade a soma destes elementos poderia a princiacutepio fortalecer

argumentos de outra natureza aumentando assim o grau de suspeita com relaccedilatildeo

agrave autoria de algum diaacutelogo Com relaccedilatildeo ao Parmecircnides Ritter apresenta a

seguinte lista de elementos desviantes

1) No Parmecircnides a distribuiccedilatildeo de palavras usadas para introduzir

discursos diretos eacute diferente daquela que encontramos nos outros

diaacutelogos Para a terceira pessoa do verbo φηmicroί por exemplo

temos no Parmecircnides a seguinte relaccedilatildeo 19 ἔφη 2 εἶπε 0 ἦ δ

ὅς Nos outros diaacutelogos temos apenas um caso de εἶπε (RepVII) e

encontramos em meacutedia 1 ἦ δ ὅς para cada 5 ἔφη

2) O Parmecircnides emprega apenas nomes no caso vocativo como

forma de dirigir a palavra a algueacutem enquanto os outros diaacutelogos

usam foacutermulas como ὦ ἄριστε ὦ ἑταῖρε e ὦ φίλε com frequecircncia

(Men 47 Teet 50 Feacutedr 37 Craacutet33 poreacutem Fileacuteb 7)

3) A mudanccedila de orador eacute mais frequente no Parmecircnides do que em

qualquer outra obra a meacutedia do Parmecircnides eacute de 9 a 10 mudanccedilas

de orador por paacutegina enquanto que a maior frequecircncia em outras

obras estaacute no Sofista com apenas 4 por paacutegina

4) Duas foacutermulas de resposta satildeo usadas mais no Parmecircnides do que

em qualquer outra obra ἀδύνατον e ἀνάγκη

5) οὐδὲ microὴν como jaacute havia sido notado por Dittenberger ocorre mais

no Parmecircnides do que em qualquer outra obra

6) Finalmente πῶς δ οὔ aparece de forma preponderante em relaccedilatildeo

a πῶς γὰρ οὐ (216) enquanto nas outras obras esta relaccedilatildeo nunca

eacute tatildeo diacutespare sendo o Poliacutetico (148) o diaacutelogo com a proporccedilatildeo

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mais proacutexima agravequela do Parmecircnides

(Brandwood 1990 p86)

Estas idiossincrasias de estilo contudo podem ser compreendidas caso

tenhamos em mente que o Parmecircnides possui longas falas de personagens que natildeo

aparecem em nenhum outro diaacutelogo platocircnico Eacute portanto natural que a

linguagem deste diaacutelogo desvie do restante da obra platocircnica Sendo assim o natildeo

uso de expressotildees vocativas como ὦ ἄριστε por exemplo pode muito bem ser

uma decisatildeo plenamente consciente de Platatildeo Assim considerada a ausecircncia

destas expressotildees no Parmecircnides denota apenas o caraacuteter direto da argumentaccedilatildeo

desenvolvida pelos personagens Parmecircnides e Zenatildeo4 Da mesma maneira a

mudanccedila constante de orador deve-se claramente ao estilo e extensatildeo da

argumentaccedilatildeo desenvolvida na segunda parte do diaacutelogo na qual cada pequeno

passo no desenvolvimento loacutegico dos argumentos eacute confirmado pelo interlocutor

O mesmo vale com relaccedilatildeo ao uso constante das expressotildees ἀδύνατον e ἀνάγκη

que demonstram apenas o reconhecimento por parte dos interlocutores da

necessidade loacutegica inerente aos argumentos desenvolvidos no diaacutelogo Por fim

como observa Brandwood eacute preciso notar que o caraacuteter geral do Parmecircnides eacute tatildeo

proacuteprio e diverge tanto daquilo que encontramos em outros diaacutelogos que a

admissatildeo de sua autenticidade prejudicaria o argumento de Ritter com relaccedilatildeo agrave

inautenticidade de outras obras uma vez que tal argumentaccedilatildeo funda-se

exclusivamente em uma anaacutelise estiliacutestica (cf Brandwood 1990 p86)

Portanto sobre a questatildeo da autenticidade de nossa obra podemos

apresentar os seguintes resultados

1) O Parmecircnides eacute tido como autecircntico por Thrasillus (36 DC) e

muito provavelmente tambeacutem por Aristoacutefanes de Bizacircncio (180

AC) aleacutem de nenhum comentador antigo jamais ter levantado

duacutevidas sobre sua autenticidade

2) Temos fortes razotildees para acreditar que Platatildeo refere-se ao

Parmecircnides em diversas outras obras e por assim dizer nosso

diaacutelogo possui um papel de destaque na intertextualidade platocircnica

4 Aleacutem disso a ausecircncia de expressotildees como ὦ ἄριστε e ὦ ἑταῖρε eacute apenas um dos resultados da

teacutecnica de evitar hiatos adotada por Platatildeo durante a uacuteltima fase de sua carreira literaacuteria Afinal ambas expressotildees possuem hiatos e podem ser facilmente substituiacutedas

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3) A imensa maioria das anaacutelises estilomeacutetricas apresenta o

Parmecircnides como um diaacutelogo legiacutetimo Aleacutem disso a

argumentaccedilatildeo de Ritter uacutenico autor a desenvolver argumentos

estiliacutesticos contra a autenticidade de nosso diaacutelogo estaacute claramente

sujeita a criacuteticas de ordem metodoloacutegica e pelo menos a metade

de sua lista de caracteriacutesticas estiliacutesticas desviantes do Parmecircnides

(pontos 2 3 e 4) pode ser facilmente compreendida como o

resultado direto do tipo de argumentaccedilatildeo apresentada no diaacutelogo

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411 A Posiccedilatildeo do Parmecircnides no interior da obra de Platatildeo

Tendo apresentado nossas consideraccedilotildees acerca da autenticidade do

Parmecircnides passamos agora ao natildeo menos conturbado assunto do

posicionamento desta obra no interior da seacuterie de diaacutelogos platocircnicos Como

vimos os comentadores do inicio do seacuteculo XIX natildeo estavam de posse de um

criteacuterio objetivo para a ordenaccedilatildeo dos diaacutelogos contavam apenas com os criteacuterios

bastante duvidosos de referecircncia intertextual e menccedilatildeo a fatos histoacutericos

conhecidos Sendo assim as ordenaccedilotildees de diaacutelogos oferecidas por estes

comentadores fundavam-se basicamente naquilo que cada um considerava ser o

conteuacutedo da filosofia platocircnica o que os levava a resultados bastante inusitados

Deste modo a despeito disto parecer impensaacutevel para um leitor moderno

o Parmecircnides foi considerado pela maior parte dos helenistas alematildees do seacuteculo

XIX um dos primeiros diaacutelogos de Platatildeo Schleiermacher por exemplo

considera o Parmecircnides uma das primeiras obras e encontra em nosso diaacutelogo tal

como encontra no Feacutedro e no Protaacutegoras uma ldquomaneira jovial de expressatildeordquo

(Schleiermacher 1836 p115) Esta afirmaccedilatildeo de Schleiermacher eacute

posteriormente reafirmada por Hermann (1839) que ainda aponta na bibliografia

de Platatildeo uma justificativa para a identificaccedilatildeo do Parmecircnides como uma obra da

juventude Com base no testemunho de um certo Hermoacutegenes (cf Dioacutegenes

Laeacutercio II 106 III 6) segundo o qual Platatildeo teria fugido para Meacutegara logo apoacutes

a morte de Soacutecrates Hermann atribui a composiccedilatildeo do Parmecircnides ao momento

em que Platatildeo tendo por volta de vinte anos estaria entrando em contato com

pensadores de fora do circuito ateniense e socraacutetico De acordo com Hermann a

presenccedila de Parmecircnides e Zenatildeo no diaacutelogo evidencia a influecircncia megaacuterica sob a

qual o diaacutelogo teria sido escrito

A identificaccedilatildeo do Parmecircnides como uma das primeiras obras de Platatildeo

permanece prevalecente entre os classicistas alematildees ateacute Ueberweg (1861)

Ueberweg eacute o primeiro autor a questionar a veracidade do depoimento acerca da

fuga de Platatildeo para Meacutegara desfazendo assim a crenccedila no periacuteodo megaacuterico de

Platatildeo Contudo Ueberweg atribui uma data tatildeo tardia para a composiccedilatildeo do

Parmecircnides que eacute levado a crer que nosso diaacutelogo eacute uma obra espuacuteria escrita por

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algum membro da academia apoacutes a morte de Platatildeo Com o fim do mito do

periacuteodo megaacuterico de Platatildeo passamos a encontrar as propostas mais discrepantes

acerca do posicionamento do Parmecircnides e no extremo oposto da posiccedilatildeo de

Schleiermacher Zeller (1883) identifica o Parmecircnides como o diaacutelogo (natildeo-

escrito) Filosoacutefo colocando-o no fim da trilogia iniciada por Sofista e Poliacutetico no

fim da carreira literaacuteria de Platatildeo5

Com o aparecimento do meacutetodo estilomeacutetrico o Parmecircnides deixa de

figurar nos extremos das cronologias de composiccedilatildeo dos diaacutelogos e passa a ocupar

uma posiccedilatildeo intermediaacuteria que vai em pouco tempo se tornar bastante

consolidada Para sermos precisos o primeiro dos estudos estilomeacutetricos aquele

de Campbell (1867) coloca o Parmecircnides estranhamente como um dos primeiros

diaacutelogos proacuteximo a obras como Ecircutifron Apologia e Ion No entanto esta

posiccedilatildeo eacute tatildeo discrepante das expectativas gerais acerca do Parmecircnides que o

proacuteprio Campbell recusa-se a aceitaacute-la e atribui este resultado a ldquocircunstacircncias

excepcionaisrdquo sem especificar quais satildeo estas circunstacircncias (Campbell 1867

pxxxiii)

A partir do refinamento dos criteacuterios de anaacutelise estiliacutestica operado por

Dittenberger (1896) o Parmecircnides passa a ser colocado entre os uacuteltimos diaacutelogos

ocupando especialmente a posiccedilatildeo de primeiro diaacutelogo da uacuteltima fase estiliacutestica de

Platatildeo Tal posicionamento para o Parmecircnides eacute subsequentemente consolidado

pelos criteacuterios de Ritter von Arnim e Baron (cf Brandwood 1990 p251) De

fato Campbell trinta anos depois de sua primeira publicaccedilatildeo sobre o assunto

lanccedila um artigo especificamente sobre o estilo do Parmecircnides no qual apresenta

novos resultados e conclui que nosso diaacutelogo eacute certamente posterior a obras

como Repuacuteblica e Feacutedro De modo geral o trabalho de Campbell sobre o

vocabulaacuterio do Parmecircnides tambeacutem corrobora a posiccedilatildeo de Dittenberger

identificando nosso diaacutelogo ao lado do Teeteto como obras diretamente

anteriores ao Sofista e ao Poliacutetico (Campbell 1896 p129-136) Todos estes

resultados satildeo ainda reforccedilados pelas circunstacircncias jaacute notadas por Ueberweg de

que o Parmecircnides possui muito pouca accedilatildeo dramaacutetica quando comparado a

diaacutelogos como Repuacuteblica e Banquete possui trechos de discurso direto inseridos

5 Para um resumo das posiccedilotildees dos comentadores alematildees do seacuteculo XIX acerca da cronologia

de composiccedilatildeo das obras de Platatildeo (cf Lutoslawski 1897 p35-63)

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em meio a um longo discurso indireto6 e sobretudo natildeo apresenta Soacutecrates como

orador principal trecircs caracteriacutesticas proacuteprias dos diaacutelogos da uacuteltima fase

Finalmente resta observar que mesmo natildeo sendo possiacutevel determinar a

posiccedilatildeo exata de um diaacutelogo no interior de cada fase estiliacutestica podemos dizer que

o Parmecircnides possui um estilo claramente transicional possuindo um vocabulaacuterio

relativo agrave apresentaccedilatildeo claacutessica da Teoria das Ideias tal como exposta nos

diaacutelogos da fase meacutedia e ao mesmo tempo inovaccedilotildees de estilo caracteriacutesticas dos

diaacutelogos da uacuteltima fase Some-se a isso o fato de que o conteuacutedo do Parmecircnides

parece ilustrar exatamente esta dualidade apresentando uma primeira parte

voltada para questotildees relativas agrave formulaccedilatildeo claacutessica da Teoria das Ideias poreacutem

com um caraacuteter criacutetico e uma segunda parte na qual o personagem Soacutecrates

praticamente desaparece e um estilo completamente novo de argumentaccedilatildeo eacute

apresentado

Em funccedilatildeo desta soma de fatores a partir da virada do seacuteculo XX nosso

diaacutelogo passa a figurar em uma posiccedilatildeo intermediaacuteria entre a segunda e terceira

fase da obra de Platatildeo de maneira virtualmente inquestionaacutevel Esta hipoacutetese

permanece tatildeo consolidada entre os comentadores contemporacircneos que mesmo

com a imensa diversidade de interpretaccedilotildees apresentadas para nosso diaacutelogo

simplesmente desconheccedilo qualquer publicaccedilatildeo lanccedilada nos uacuteltimos cem anos em

que este posicionamento para o Parmecircnides no interior da obra de Platatildeo seja

questionado

6 Este aspecto formal eacute particularmente visiacutevel na segunda parte do Parmecircnides onde um uacutenico

φάναι inicial (137c4) antecede vaacuterias paacuteginas de discurso em forma direta

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412 O Proacutelogo do Parmecircnides

O Parmecircnides descreve um diaacutelogo travado entre Soacutecrates ainda bastante

jovem Zenatildeo Parmecircnides e Aristoacuteteles natildeo o filoacutesofo mas um jovem que viria a

se tornar um dos trinta tiranos A conversa que nos chega natildeo eacute narrada por um

dos presentes no encontro mas por Ceacutefalo que o tinha ouvido de Antifonte meio

irmatildeo de Platatildeo que havia ouvido e memorizado a conversa a partir do relato de

Pitodoro Pitodoro por sua vez havia ouvido a conversa por ser companheiro de

Zenatildeo e ter abrigado os visitantes durante sua estada em Atenas (AlcibI 119a)

Apesar de natildeo ser o uacutenico diaacutelogo a apresentar este tipo de encadeamento

narrativo7 o Parmecircnides eacute o diaacutelogo no qual o relato que nos eacute oferecido estaacute

mais distante da conversa original tanto no tempo quanto no nuacutemero de ldquoelosrdquo da

cadeia narrativa Afinal aquele que lecirc o Parmecircnides (e portanto ldquoouverdquo a

narrativa de Ceacutefalo) encontra-se no quarto estaacutegio de uma cadeia de transmissatildeo

do conteuacutedo de uma conversa que teria acontecido haacute pelo menos cinquenta anos

antes do momento dramaacutetico em que Ceacutefalo oferece seu relato8 A estrutura

narrativa descrita no proacutelogo do Parmecircnides pode ser representada pela seguinte

figura

[ZENAtildeO PARMEcircNIDES SOacuteCRATES ARISTOacuteTELES]

[PITODORO ANTIFONTE]

[ANTIFONTE CEacuteFALO]

[CEacuteFALO LEITOR]

7 O Feacutedon o Banquete e o Teeteto tambeacutem satildeo narrados por pessoas que natildeo presenciaram os

acontecimentos descritos 8 A data dramaacutetica para a realizaccedilatildeo do suposto encontro entre Parmecircnides Soacutecrates e Zenatildeo eacute

estabelecida pela menccedilatildeo agraves Grande Panateneacuteias festivais realizados de quatro em quatro anos em honra a Atenaacute Segundo o diaacutelogo Parmecircnides e Zenatildeo estariam em visita a Atenas com o objetivo de participar deste festival De acordo com as informaccedilotildees que nos satildeo fornecidas acerca da idade dos personagens do diaacutelogo (127b-c Parmecircnides teria por volta de sessenta e cinco anos Zenatildeo estaria proacuteximo dos quarenta e Soacutecrates era ainda bastante jovem) podemos estabelecer o festival do ano de 449450 AC como a data base para o encontro narrado Como Ceacutefalo natildeo busca o proacuteprio Soacutecrates para ouvir o relato deste encontro podemos deduzir ainda que no momento da chegada de Ceacutefalo e sua comitiva em Atenas Soacutecrates jaacute havia sido executado fato ocorrido em 399 AC Sendo assim ao menos cinquenta anos separam o relato de Antifonte do momento do encontro inicial Natildeo temos razatildeo para acreditar que o relato de Ceacutefalo esteja ocorrendo muito depois desta data mas as indicaccedilotildees satildeo precisas o suficiente para deixar claro ao leitor a consideraacutevel distacircncia entre a narrativa que nos chega e a conversa original

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Deste modo o Parmecircnides relata uma conversa travada entre Zenatildeo

Parmecircnides Soacutecrates e Aristoacuteteles que foi narrada por Pitodoro a Antifonte que

narrou a Ceacutefalo que por sua vez narra ao leitor Este fato nos eacute lembrado em

pelo menos duas passagens do texto nas quais a cadeia de transmissatildeo eacute

explicitada (130a e 136e) Aleacutem disso esta estrutura nunca desaparece plenamente

de vista para o leitor do texto grego pois todo o diaacutelogo eacute em forma de discurso

indireto com discursos diretos inseridos Eacute claro portanto que tamanha

complexidade de estrutura narrativa natildeo pode ser acidental Platatildeo certamente

intencionava passar alguma mensagem por meio da apresentaccedilatildeo de um proacutelogo

tatildeo cuidadosamente construiacutedo e eacute tarefa do inteacuterprete levantar hipoacuteteses acerca

destas intenccedilotildees

Como a maior parte dos comentadores observa a primeira liccedilatildeo que

podemos tirar da estrutura narrativa do Parmecircnides diz respeito agrave ausecircncia total de

veracidade histoacuterica do relato Ao estabelecer uma longa distacircncia temporal entre

a narrativa que nos eacute oferecida e o fato dramaacutetico que nos eacute narrado Platatildeo indica

ao leitor que o conteuacutedo do Parmecircnides eacute plenamente ficcional e que ningueacutem

deve tentar confirmar nenhum dos seus detalhes mesmo que um encontro entre

Parmecircnides e Soacutecrates tenha de fato acontecido coisa que a maior parte dos

comentadores considera improvaacutevel ou mesmo impossiacutevel9

A segunda conclusatildeo que podemos extrair da complexa estrutura narrativa

apresentada no Parmecircnides diz respeito ao efeito dramaacutetico que este tipo de

proacutelogo pretende criar no leitor Nosso diaacutelogo se inicia com a histoacuteria de que

cinquenta anos apoacutes um encontro entre Parmecircnides Zenatildeo e Soacutecrates um grupo

de pessoas ldquobastante interessadas em questotildees de sabedoriardquo (microάλα φιλόσοφοι) eacute

levado a deixar Clazocircmenas para cruzar o mar Egeu em busca de um ateniense

que acreditam ter informaccedilotildees sobre o que teria se passado nesta reuniatildeo Este

ateniense apesar de natildeo haver estado presente no encontro ocorrido antes mesmo

de seu nascimento considerava o conteuacutedo da conversa ali desenrolada tatildeo

importante que decidiu dedicar-se a decoraacute-la durante sua juventude A pessoa de

9 A ausecircncia de pretensatildeo histoacuterica eacute notada por praticamente todos os comentadores recentes

Mansfeld adotando 462461 como data dramaacutetica para o suposto encontro entre Parmecircnides e Soacutecrates acredita ainda que este evento nunca poderia ter acontecido como descrito por Platatildeo pois nesta data Soacutecrates teria apenas oito anos de idade ldquoNem ao menos se espera que os leitores do Parmecircnides acreditem que o encontro tenha realmente ocorridordquo (Mansfeld

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quem este ateniense ouviu a histoacuteria Pitodoro tampouco participou ativamente da

conversa poreacutem igualmente decorou o conteuacutedo do diaacutelogo e passou adiante10

O proacutelogo do Parmecircnides nos gera assim uma sensaccedilatildeo de curiosidade

acerca do texto que estamos prestes a ter acesso Aleacutem disso a longa lista de

pessoas dedicadas agrave preservaccedilatildeo do conteuacutedo desta conversa assim como a longa

jornada de Ceacutefalo e seus companheiros em busca desta narrativa nos garante a

seriedade e a importacircncia daquilo que nos seraacute revelado Como observa Allen ldquoa

proacutepria introduccedilatildeo do Parmecircnides por si soacute nos proiacutebe tratar o diaacutelogo como um

tipo estranho de piada ou trivializar o diaacutelogo como uma mera ginaacutestica ou um

exerciacutecio de detecccedilatildeo de simples falaacuteciasrdquo (Allen 1997 p71) O proacutelogo do

Parmecircnides adverte o leitor a se preparar desde o iniacutecio para a profundidade e

relevacircncia do conteuacutedo que seraacute apresentado

A caracteriacutestica mais importante da abertura de nosso diaacutelogo no entanto

parece ter passado despercebida para maior parte dos comentadores Trata-se do

fato de que a complexa estrutura narrativa montada no proacutelogo do Parmecircnides

encontra-se refletida na estrutura argumentativa do diaacutelogo Diferente da maior

parte dos diaacutelogos nos quais um mesmo interlocutor expotildee suas teses ou conduz a

refutaccedilatildeo de outro(s) personagem(s) o Parmecircnides eacute constituiacutedo por uma seacuterie de

momentos argumentativos distintos Nosso diaacutelogo comeccedila com a leitura dos

argumentos de Zenatildeo e uma menccedilatildeo aos detratores de Parmecircnides contra quem

estes argumentos satildeo endereccedilados Logo em seguida Soacutecrates aparece em cena e

passa a argumentar contra Zenatildeo Por fim Parmecircnides entra na discussatildeo e passa

a apresentar argumentos contra Soacutecrates Desta maneira temos Parmecircnides

oferecendo criacuteticas agrave Teoria das Ideias de Soacutecrates que havia sido apresentada

como uma refutaccedilatildeo agrave argumentaccedilatildeo de Zenatildeo que por sua vez havia sido

apresentada como uma criacutetica agrave tese pluralista defendida pelos detratores de

Parmecircnides Esta estrutura argumentativa pode ser representada pelo seguinte

1986 p44)

10 Eacute importante notar que no momento em que Ceacutefalo chega agrave Atenas em busca de informaccedilotildees sobre o encontro de Soacutecrates Zenatildeo e Parmecircnides todas as pessoas que estavam presentes neste encontro jaacute estatildeo mortas incluindo o proacuteprio Soacutecrates Portanto para Antifonte e Ceacutefalo assim como para o leitor do diaacutelogo o Parmecircnides narra momentos da vida de figuras de uma geraccedilatildeo passada uma geraccedilatildeo de grande importacircncia para a comunidade filosoacutefica grega cujas conversas e debates merecem ser lembrados e revividos meio seacuteculo apoacutes seu acontecimento O proacutelogo do Parmecircnides presta assim uma homenagem a esta geraccedilatildeo de pensadores jaacute perdida e o fato de Platatildeo fazer com que vaacuterios personagens tenham se dedicado ao ato de memorizar o conteuacutedo de um encontro entre estas pessoas indica ainda o apreccedilo de Platatildeo por estes indiviacuteduos

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esquema

[ PARMEcircNIDES PLURALISTAS]

[ PLURALISTAS ZENAtildeO]

[ ZENAtildeO SOacuteCRATES]

[SOacuteCRATES PARMEcircNIDES]

Da mesma forma que nossa histoacuteria eacute narrada por uma pessoa que conta o

que lhe foi narrado por outra pessoa que contou o que lhe foi narrado por outra

os argumentos do diaacutelogo satildeo ordenados de tal modo que cada um deles remete

aos resultados alcanccedilados pelos argumentos precedentes ao mesmo tempo em que

fornece a base para o argumento que se seguiraacute A estrutura argumentativa do

Parmecircnides encontra-se assim refletida e prenunciada na estrutura narrativa

descrita no proacutelogo do diaacutelogo

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413 O paradoxo de Zenatildeo

O primeiro argumento apresentado ao leitor do Parmecircnides eacute atribuiacutedo a

Zenatildeo Como sabemos Zenatildeo foi um defensor do monismo eleata e seus

argumentos receberam muito prestiacutegio ainda na antiguidade O interesse acerca

do pensamento de Zenatildeo faz com que muitos comentadores do Parmecircnides

analisem o paradoxo zenoniano presente no diaacutelogo em comparaccedilatildeo aos

argumentos do Zenatildeo histoacuterico Esta atitude pode ser vista por exemplo em

Proacuteclus que interpreta o paradoxo presente no Parmecircnides em funccedilatildeo do

conteuacutedo de uma obra atribuiacuteda a Zenatildeo na qual este paradoxo estaria descrito (In

Parm 694)11

Nos comentadores modernos esta abordagem tambeacutem parece prevalecer

Assim Cornford (Cornford 1951 p 53-62) dedica toda primeira seccedilatildeo de seu

comentaacuterio ao Parmecircnides agrave questatildeo da relaccedilatildeo entre Zenatildeo e seus oponentes da

escola pitagoacuterica Brisson (Brisson 1990 p15-28) igualmente passa boa parte

de sua introduccedilatildeo ao Parmecircnides discutindo a relaccedilatildeo entre as teses de Zenatildeo e

Parmecircnides natildeo como personagens do drama platocircnico mas como figuras

histoacutericas Ambos os autores mesmo reconhecendo a escassez de fontes sobre o

tema acabam por projetar a sua compreensatildeo do pensamento do Zenatildeo histoacuterico

na interpretaccedilatildeo do papel desta figura no interior de nosso diaacutelogo

Em contrapartida a esta atitude a importacircncia do paradoxo de Zenatildeo na

interpretaccedilatildeo do Parmecircnides tem sido na maior parte das vezes negligenciada

pelos comentadores Como observa Harte ldquomuito constantemente o interesse em

examinar a relaccedilatildeo entre as deduccedilotildees [da segunda parte do diaacutelogo] e a criacutetica de

Parmecircnides agraves Formas deu-se agraves custas de uma consideraccedilatildeo da conversa inicial

entre Soacutecrates e Zenatildeordquo (Harte 2002 p52) Uma das razotildees para esta negligecircncia

estaacute sem duacutevida no fato de que os comentadores consideram relativamente clara

a relaccedilatildeo desta conversa inicial com o restante da obra Segundo a opiniatildeo geral o

paradoxo de Zenatildeo serve como um pretexto para que Soacutecrates apresente a Teoria

11 Dillon em sua introduccedilatildeo ao Comentaacuterio ao Parmecircnides de Proacuteclus defende a tese de que

Proacuteclus daacute claros sinais de possuir um manuscrito da obra de Zenatildeo e que portanto devemos considerar vaacutelidas suas observaccedilotildees sobre o conteuacutedo desta obra A mais famosa destas observaccedilotildees afirma que o paradoxo apresentado no Parmecircnides fazia parte de um livro que conteria quarenta argumentos (cf MorrowampDillon 1987 p xxviii-xliii)

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das Ideias Sendo assim os comentadores tecem raacutepidas consideraccedilotildees sobre o

paradoxo de Zenatildeo e na maior parte das vezes jaacute em funccedilatildeo da soluccedilatildeo

apresentada por Soacutecrates para este paradoxo12

No entanto caso adotemos este tipo de interpretaccedilatildeo para o papel do

paradoxo de Zenatildeo no diaacutelogo estaremos de iniacutecio comprometendo a unidade da

argumentaccedilatildeo do Parmecircnides Pois segundo este ponto de vista o paradoxo de

Zenatildeo natildeo estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do restante do diaacutelogo e

natildeo passa de uma deixa dramaacutetica para entrada em cena de Soacutecrates e sua teoria

Sendo assim evitarei abrir a caixa de pandora do conteuacutedo do pensamento

eleaacutetico e me limitarei a oferecer uma interpretaccedilatildeo para o paradoxo de Zenatildeo agrave

altura do papel de destaque que este argumento recebe no nosso diaacutelogo No

Parmecircnides o paradoxo de Zenatildeo daacute ensejo a toda discussatildeo subsequente

Portanto segundo o princiacutepio de relaccedilatildeo entre os argumentos do diaacutelogo esboccedilado

na seccedilatildeo precedente os conceitos envolvidos neste paradoxo devem ressoar por

todo o restante da argumentaccedilatildeo

12 Allen (1997) eacute uma exceccedilatildeo

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414 Dois sentidos de multiplicidade e unidade implicado s na argumentaccedilatildeo zenoniana

A narrativa de Ceacutefalo inicia-se com a descriccedilatildeo de uma leitura puacuteblica dos

ldquoescritos de Zenatildeordquo (τῶν τοῦ Ζήνωνος γραmicromicroάτων) realizada na casa de Pitodoro

Eacute o proacuteprio Zenatildeo quem realiza a leitura e Soacutecrates acompanhado de muitos

outros faz parte da audiecircncia que se reuniu ansiosa para escutar o que seria dito

uma vez que esta era a primeira vez que tais escritos eram trazidos para Atenas

Ao final da apresentaccedilatildeo Soacutecrates pede para que seja lida novamente a primeira

hipoacutetese do primeiro argumento e ao fim diz

ldquoQue queres dizer com isso Zenatildeo Que se os seres satildeo muacuteltiplos entatildeo eacute preciso que eles sejam tanto semelhantes quanto dessemelhantes mas que isso eacute impossiacutevel pois nem as coisas dessemelhantes podem ser semelhantes nem as semelhantes dessemelhantes Natildeo eacute isso que queres dizerrdquo Πῶς φάναι ὦ Ζήνων τοῦτο λέγεις εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα ὡς ἄρα δεῖ αὐτὰ ὅmicroοιά τε εἶναι καὶ ἀνόmicroοια τοῦτο δὲ δὴ ἀδύνατον οὔτε γὰρ τὰ ἀνόmicroοια ὅmicroοια οὔτε τὰ ὅmicroοια ἀνόmicroοια οἷόν τε εἶναι οὐχ οὕτω λέγεις (127e1-5)

Zenatildeo responde afirmativamente e somos apresentados assim ao primeiro

argumento do diaacutelogo Platatildeo constroacutei este argumento de maneira bastante

resumida nos fornecendo apenas as premissas e a conclusatildeo da argumentaccedilatildeo

zenoniana Fica claro a partir do resumo de Soacutecrates que estamos lidando com

uma reduccedilatildeo ao absurdo da tese pluralista segundo a qual os seres satildeo muacuteltipos

(πολλά ἐστι τὰ ὄντα) O sentido preciso desta tese contudo natildeo estaacute claro de

imediato Sobretudo porque logo depois Soacutecrates iraacute reformulaacute-la por meio do

condicional ldquose os muacuteltipos satildeordquo ou ldquose haacute muacuteltiplas [coisas]rdquo (εἰ πολλά ἐστιν)

(128d5) No primeiro caso εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα o adjetivo πολλά (muacuteltiplos) eacute

apresentado como um predicado do sujeito ὄντα (seres) significando que os seres

satildeo muacuteltiplos no sentido de que possuem vaacuterios atributos Jaacute no segundo caso o

adjetivo substantivado [τὰ] πολλά torna-se o sujeito de uma sentenccedila absoluta

podendo ser traduzida por ldquose muacuteltiplas [coisas] satildeordquo ou ldquose haacute muacuteltiplas

[coisas]rdquo13

13 A diferenccedila entre estas duas formulaccedilotildees natildeo eacute tatildeo bem definida em grego quanto sugerem as

traduccedilotildees por mim apresentadas Afinal τὰ ὄντα pode estar subentendido como sujeito da

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Temos portanto dois sentidos distintos para o argumento de Zenatildeo O

argumento pode estar visando demonstrar a impossibilidade de uma pluralidade

numeacuterica isto eacute da tese de que haacute mais de uma coisa no mundo ou pode estar

visando demonstrar a impossibilidade de uma mesma coisa possuir mais de um

atributo Neste uacuteltimo caso seu objetivo eacute demonstrar que cada coisa eacute

perfeitamente simples homogecircnea e indivisiacutevel Naturalmente estas duas teses

satildeo independentes uma da outra Afinal podemos sustentar que soacute haacute uma coisa

no mundo poreacutem considerando esta coisa como muacuteltipla dotada de vaacuterias partes

ou atributos Ao passo que por outro lado podemos sustentar que haacute vaacuterias

coisas no entanto considerarmos cada uma delas como simples e indivisiacutevel

Soacutecrates contudo oferece tanto εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα quanto εἰ πολλά ἐστιν

como formulaccedilotildees vaacutelidas para uma mesma hipoacutetese Sendo assim devemos

entender que ao menos em nosso diaacutelogo estas duas teses estatildeo sendo

apresentadas em conjunto representando dois lados de uma mesma moeda ou

duas perspectivas complementares de uma mesma posiccedilatildeo filosoacutefica

Os personagens do Parmecircnides parecem reconhecer esta dualidade

inerente agrave argumentaccedilatildeo zenoniana Soacutecrates por exemplo daacute sinais de sua

compreensatildeo deste fato ao ressaltar ora um ora outro aspecto da argumentaccedilatildeo

zenoniana Em 127e8-128a1 por exemplo Soacutecrates pergunta a Zenatildeo

ldquoSeraacute que eacute isso que querem dizer teus argumentos natildeo outra coisa senatildeo sustentar decididamente contra tudo o que se afirma que natildeo haacute muacuteltiplas coisas (οὐ πολλά ἐστι) E disso mesmo crecircs ser prova para ti cada um dos argumentos de sorte que tambeacutem acreditas apresentar tantas provas de que natildeo haacute muacuteltiplas coisas quantos argumentos escrevestesrdquo ἆρα τοῦτό ἐστιν ὃ βούλονταί σου οἱ λόγοι οὐκ ἄλλο τι ἢ διαmicroάχεσθαι παρὰ πάντα τὰ λεγόmicroενα ὡς οὐ πολλά ἐστι καὶ τούτου αὐτοῦ οἴει σοι τεκmicroήριον εἶναι ἕκαστον τῶν λόγων ὥστε καὶ ἡγῇ τοσαῦτα τεκmicroήρια παρέχεσθαι ὅσουσπερ λόγους γέγραφας ὡς οὐκ ἔστι πολλά (127e8-128a1)

Nesta passagem por meio do uso repetitivo de expressotildees no plural

Soacutecrates indica a incongruecircncia da atitude de Zenatildeo que afirma que natildeo haver

muacuteltiplas coisas (οὐ πολλά ἐστι) natildeo obstante fazendo uso de muacuteltiplos

argumentos para provar esta afirmaccedilatildeo Como observa Soacutecrates ao tentar provar a

segunda sentenccedila o que tornaria as duas formulaccedilatildeo idecircnticas Trata-se de um caso de ambiguidade sintaacutetica em que as duas leituras satildeo possiacuteveis para cada uma das formulaccedilotildees De acordo com minha interpretaccedilatildeo este tipo de ambiguidade recorrente na primeira parte do diaacutelogo eacute proposital

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inexistecircncia de uma pluralidade de coisas por meio de muacuteltiplos argumentos

Zenatildeo comete um claacutessico caso de paradoxo performativo dando prova

justamente daquilo que ele nega ser possiacutevel

Ora fica claro que neste momento Soacutecrates estaacute tratando o argumento de

Zenatildeo como uma prova da impossibilidade da existecircncia de muacuteltiplos indiviacuteduos

ou como uma defesa da tese de que soacute haacute uma uacutenica coisa (monismo numeacuterico)

Esta identificaccedilatildeo eacute ainda reafirmada por Soacutecrates quando ele estabelece logo em

seguida a equivalecircncia entre o argumento de Zenatildeo e a tese parmeniacutedica de que

ldquoo todo eacute umrdquo (ἓν εἶναι τὸ πᾶν)

Este comentaacuterio eacute geralmente considerado como a palavra final de

Soacutecrates acerca do sentido da argumentaccedilatildeo zenoniana sendo seguido por uma

longa fala em que a Teoria das Ideias eacute apresentada e o paradoxo de Zenatildeo eacute

superado e natildeo mais invocado na discussatildeo Esta leitura do texto leva a maior

parte dos comentadores a considerar o paradoxo de Zenatildeo como uma defesa

apenas da tese do monismo numeacuterico sem que esteja implicada no paradoxo uma

prova da impossibilidade das coisas possuiacuterem muacuteltiplos atributos14 O defensor

mais radical deste tipo de interpretaccedilatildeo eacute sem duacutevida Luc Brisson (1990) que

com base nesta passagem pretende natildeo apenas limitar a argumentaccedilatildeo de Zenatildeo a

uma afirmaccedilatildeo do monismo numeacuterico como tambeacutem identificar a expressatildeo τὸ

πᾶν traduzida por ele como ldquoo universordquo ou ldquoo conjunto de todos os conjuntos de

todas as coisas sensiacuteveisrdquo como o sujeito impliacutecito de todas as formulaccedilotildees da

tese unitarista (cf Brisson 1990 p18-27)15

Entretanto a identificaccedilatildeo da argumentaccedilatildeo de Zenatildeo com o monismo

numeacuterico de Parmecircnides soacute eacute estabelecida explicitamente nesta passagem Por

todo o restante do diaacutelogo Platatildeo faz uso de expressotildees deliberadamente

ambiacuteguas para se referir tanto agrave tese pluralista alvo do paradoxo de Zenatildeo quanto

14 Vide por exemplo o comentaacuterio de Rossvaer ldquoZenatildeo toma como ponto de partida a hipoacutetese

de que as coisas satildeo muacuteltiplas Mas natildeo eacute exatamente isso o que ele quer dizer O que ele quer dizer eacute que o Ser (o todo) eacute Um tal como seu mestre (Rossvaer1983 p15) No mesmo sentido (cf Coxon 1999 p97) O uacutenico autor que reconhece a dualidade implicada na argumentaccedilatildeo de Zenatildeo eacute El Murr (2010) embora a interpretaccedilatildeo oferecida por MacCabe (1996) tambeacutem pressuponha este reconhecimento

15 Bisson vai aleacutem e identifica τὸ πᾶν como o sujeito subentendido de todas as hipoacuteteses da segunda parte do Parmecircnides (cf Brisson 1990 p18-27) No entanto ao afirmar a expressatildeo τὸ πᾶν como o sujeito oculto de todas as expressotildees em que o um aparece ligado ao verbo ldquoserrdquo tanto na primeira quanto na segunda parte do diaacutelogo Brisson estaacute oferecendo uma interpretaccedilatildeo claramente violenta ao texto do Parmecircnides Afinal Platatildeo dificilmente esconderia a chave para compreensatildeo de todo o diaacutelogo em uma uacutenica ocorrecircncia da expressatildeo

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agrave tese monista defendida por Zenatildeo e Parmecircnides Isto fica claro a partir do

inventaacuterio realizado por Giovanni Casertano que nos lista todas as formulaccedilotildees

das teses monista e pluralista presentes no Parmecircnides divididas entre afirmaccedilotildees

diretas e formulaccedilotildees hipoteacuteticas (cf Cassertano 1990 p386-388) Como

afirmaccedilotildees hipoteacuteticas em sentenccedilas condicionais temos

1) εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα (127e1)

2) εἰ γὰρ πολλὰ εἴη (127e7)

3) εἰ ἕν ἐστι (128d1)

4) εἰ πολλά ἐστιν (128d5)

5) ἡ τοῦ ἓν εἶναι (128d5)

6) εἰ πολλά ἐστι (136a6)

7) εἰ microή ἐστι πολλά (136a6)

Como assertivas diretas temos

8) ἀδύνατον δὴ καὶ πολλὰ εἶναι (127e6-7)

9) ὡς οὐ πολλά ἐστι (127e9)

10) ὡς οὐκ ἔστι πολλά (127e9-128a1)

11) ἓν φῂς εἶναι τὸ πᾶν (128a7-b1)

12) οὐ πολλά φησιν εἶναι (128b2)

13) τὸν microὲν ἓν φάναι τὸν δὲ microὴ πολλά (128b3)

14) τὰ πολλὰ λέγοντας

15) τῆς ἐmicroαυτοῦ ὑποθέσεως () εἴτε ἕν ἐστιν εἴτε microὴ ἕν (137b3-4)

Com base neste inventaacuterio eacute possiacutevel constatar que somente na passagem

nuacutemero 11 τὸ πᾶν eacute apresentado como o sujeito expliacutecito da hipoacutetese de

Parmecircnides Por todo o restante do diaacutelogo Platatildeo faz uso de expressotildees

ambiacuteguas sem sujeito definido para se referir tanto agraves teses de Parmecircnides e

Zenatildeo quanto agraves teses dos defensores do pluralismo16 Portanto dado o grande

nuacutemero de passagens em que a tese monista de Zenatildeo e Parmecircnides natildeo aparece

τὸ πᾶν em meio a esta fala aparentemente despretenciosa de Soacutecrates

16 Com a exceccedilatildeo eacute claro da sentenccedila nuacutemero 1 que como jaacute observamos apresenta πολλά como predicativo do sujeito τὰ ὄντα

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diretamente vinculada ao monismo numeacuterico natildeo temos razatildeo para projetar

aquilo que encontramos em uma uacutenica passagem como a interpretaccedilatildeo definitiva

para todas as outras

Caso tenhamos em mente a ambiguidade inerente agrave formulaccedilatildeo do

paradoxo de Zenatildeo poderemos notar que o segundo sentido de multiplicidade

implicado na sua argumentaccedilatildeo emerge como a interpretaccedilatildeo natural para outras

passagens do diaacutelogo Em uma destas passagens a possibilidade de um mesmo

indiviacuteduo possuir uma multiplicidade de partes eacute apresentada por Soacutecrates como

um dos resultados da sua soluccedilatildeo para o paradoxo Em 129c Soacutecrates diz

ldquoMas se algueacutem demonstrar que eu sou um17 e muacuteltiplas coisas que haacute nisso de espantoso Quando quiser mostrar que eu sou muacuteltiplas coisas diraacute que uma coisa eacute meu lado direito outra o esquerdo e que uma coisa eacute a frente outra a parte de traacutes e do mesmo modo com relaccedilatildeo agrave parte inferior e posterior pois participo creio da quantidade e por outro lado quando [quiser mostra] que sou um diraacute que dos sete que aqui estatildeo eu sou um homem participante que sou tambeacutem do umrdquo εἰ δ ἐmicroὲ ἕν τις ἀποδείξει ὄντα καὶ πολλά τί θαυmicroαστόν λέγων ὅταν microὲν βούληται πολλὰ ἀποφῆναι ὡς ἕτερα microὲν τὰ ἐπὶ δεξιά microού ἐστιν ἕτερα δὲ τὰ ἐπ ἀριστερά καὶ ἕτερα microὲν τὰ πρόσθεν ἕτερα δὲ τὰ ὄπισθεν καὶ ἄνω καὶ κάτω ὡσαύτως ndash πλήθους γὰρ οἶmicroαι microετέχω ndash ὅταν δὲ ἕν ἐρεῖ ὡς ἑπτὰ ἡmicroῶν ὄντων εἷς ἐγώ εἰmicroι ἄνθρωπος microετέχων καὶ τοῦ ἑνός (129c4-d1)

A importacircncia desta fala de Soacutecrates na compreensatildeo do conteuacutedo da

argumentaccedilatildeo de Zenatildeo natildeo parece ter sido notada pelos comentadores Isto deve-

se ao fato desta colocaccedilatildeo fazer parte de um discurso mais amplo no qual

Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que suas Formas estatildeo

sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos tal como estatildeo sujeitos os objetos sensiacuteveis

Contudo se limitarmos nossa interpretaccedilatildeo destas palavras de Soacutecrates agrave questatildeo

da copresenccedila de opostos a introduccedilatildeo do tema da unidade e multiplicidade torna-

se completamente incidental Afinal Soacutecrates poderia ter apresentado seu desafio

por meio de qualquer outro par de propriedades opostas Na verdade de acordo

com esta linha de raciociacutenio o aparecimento dos conceitos de unidade e

multiplicidade nesta passagem eacute inclusive desnecessaacuterio uma vez que Soacutecrates

jaacute havia formulado seu desafio por meio das propriedades ldquosemelhanterdquo e

ldquodessemelhanterdquo No entanto natildeo podemos considerar meramente ocasional esta

especiacutefica formulaccedilatildeo sobretudo em meio a uma discussatildeo centrada na questatildeo da

17 Coloco ldquoumrdquo em itaacutelico nesta e nas seguintes passagens para diferenciar o atributo ldquoser-umrdquo

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viabilidade teoacuterica da noccedilatildeo de multiplicidade Eacute claro que na dinacircmica

conversacional do diaacutelogo qualquer afirmaccedilatildeo sobre o tema da

unidademultiplicidade remete o leitor diretamente ao paradoxo de Zenatildeo e agrave

compreensatildeo de seu significado

A observaccedilatildeo de Soacutecrates deixa de ser irrelevante e passa a fazer sentido

se entendermos o paradoxo de Zenatildeo como uma prova tambeacutem da

impossibilidade de uma coisa uacutenica qualquer possuir muacuteltiplos atributos Soacutecrates

estaacute tornando expliacutecito nesta passagem o segundo sentido de multiplicidade

negado pela argumentaccedilatildeo de Zenatildeo a multiplicidade de partes ou atributos de

um mesmo indiviacuteduo Segundo Soacutecrates natildeo haacute nada de espantoso ao contraacuterio

do que pretende afirmar Zenatildeo no fato de uma dada coisa uacutenica ser tambeacutem

muacuteltipla dotada de vaacuterias partes

Portando para defender o monismo de seu mestre Parmecircnides Zenatildeo

pretende demonstrar a contradiccedilatildeo envolvida na admissatildeo da multiplicidade tout

court quer esta seja entendia como uma multiplicidade de indiviacuteduos quer como

uma multiplicidade de atributos de um mesmo indiviacuteduo Como veremos o

reconhecimento desta dualidade da argumentaccedilatildeo zenoniana se mostraraacute essencial

para a compreensatildeo dos argumentos seguintes Pois estes dois sentidos de

multiplicidade estaratildeo implicados na soluccedilatildeo de Soacutecrates para o paradoxos de

Zenatildeo assim como faratildeo parte da estrateacutegia utilizada por Parmecircnides na sua

contra-argumentaccedilatildeo agrave soluccedilatildeo socraacutetica

do artigo indefinido

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415 A reduccedilatildeo ao absurdo da tese pluralista

Tendo estabelecido os dois sentidos de multiplicidade afirmados pela tese

pluralista e negados pelo monismo de Zenatildeo e Parmecircnides podemos passar para a

anaacutelise do argumento zenoniano De acordo com o resumo apresentado por

Soacutecrates em 127e1-5 a reduccedilatildeo ao absurdo da tese pluralista eacute operada por Zenatildeo

por meio do seguinte raciociacutenio

1) Suponha que os seres satildeo muacuteltiplos (tese provisoriamente

assumida)

2) Se eles satildeo muacuteltiplos entatildeo eles satildeo tanto semelhantes quanto

dessemelhantes

3) Logo os seres satildeo tanto semelhantes quanto dessemelhantes (a

partir de 1 amp 2)

4) Ora eacute impossiacutevel que uma mesma coisa seja semelhante e

dessemelhante

5) Portanto os seres natildeo satildeo muacuteltiplos (afirma-se a negaccedilatildeo de 1

com base na contradiccedilatildeo entre 3 amp 4) 18

A invenccedilatildeo do meacutetodo de reduccedilatildeo ao absurdo que consiste em assumir

temporariamente uma tese para a partir dela derivar uma contradiccedilatildeo e assim

concluir a negaccedilatildeo da tese inicial natildeo deve ser atribuiacuteda a Zenatildeo embora

saibamos que ele tenha usado extensivamente este meacutetodo argumentativo

Segundo Thomas Heath o meacutetodo de reduccedilatildeo ao absurdo pode ter sua origem

traccedilada ateacute a escola pitagoacuterica e no tempo de Platatildeo este argumento jaacute era usado

largamente em provas matemaacuteticas envolvendo teoria dos nuacutemeros (cf Heath

1960 p294-295) Sendo assim podemos considerar que os leitores de Platatildeo natildeo

viam com estranheza este tipo de argumentaccedilatildeo

18 Trata-se de um argumento em Modus Tollendo Tollens isto eacute um argumento que neganto

(tollendo) o consequente da implicaccedilatildeo expressa na premissa nega (tollens) por consequecircncia loacutegica tambeacutem o antecedente Em notaccedilatildeo formal P rarr Q

~Q ~P

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Da mesma maneira a premissa nuacutemero 2 do argumento de Zenatildeo parece

bastante plausiacutevel e dificilmente teria sua validade objetada Zenatildeo pode estar

argumentando por exemplo que os muacuteltiplos seres como seres satildeo semelhantes

entre si enquanto que como muacuteltiplos e portanto numericamente distintos uns

dos outros satildeo dessemelhantes ou ainda que as diversas partes de um indiviacuteduo

satildeo semelhantes entre si enquanto partes de um mesmo indiviacuteduo poreacutem

dessemelhantes enquanto partes distintas

No entanto chama muita atenccedilatildeo o conteuacutedo da premissa nuacutemero 4 do

argumento Segundo esta premissa uma mesma coisa natildeo pode ser ao mesmo

tempo semelhante e dessemelhante Mas por quecirc Podemos pensar em miriacuteades

de casos em que uma mesma coisa eacute tanto semelhante quanto dessemelhante

Soacutecrates e Platatildeo por exemplo satildeo semelhantes pelo fato de ambos serem

atenienses no entanto satildeo dessemelhantes em vaacuterios outros aspectos como em

idade condiccedilatildeo social etc Enquanto inteacuterpretes devemos tentar entender porque

os interlocutores do Parmecircnides consideram intrigante e paradoxal o fato de uma

dada coisa possuir simultaneamente propriedades opostas mesmo quando estas

propriedades representam termos relativos (semelhante-dessemelhante maior-

menor etc)

A explicaccedilatildeo mais constantemente apresentada pelos comentadores segue

a mesma linha de raciociacutenio da criacutetica desenvolvida por Vlastos que citamos

anteriormente Zenatildeo estaria tratando predicados relacionais como predicados

monaacutedicos (ou adjetivos) Assim ele estaria ignorando o complemento existente

nos predicados relacionais e tratando a propriedade ldquoser semelhante a xrdquo como

equivalente agrave propriedade ldquoser semelhante simpliciterrdquo isto eacute estaria tratando um

predicado incompleto (que necessita de um complemento para ser significativo)

como um predicado completo (significativo por si soacute) Negligenciada a diferenccedila

entre estes dois tipos de predicados uma sentenccedila do tipo ldquoA eacute maior que B e

menor que Crdquo passa a ser equivalente a ldquoA eacute maior e menor simpliciterrdquo

tornando-se tatildeo contraditoacuteria quanto a sentenccedila ldquoA eacute quadrado e redondordquo

Este tipo de interpretaccedilatildeo foi primeiramente apresentada por Cornford

segundo o qual ldquonenhuma distinccedilatildeo eacute traccedilada entre qualidades e relaccedilotildees

Grandeza eacute tratada como se fosse uma qualidade como Brancura inerente agrave

pessoa granderdquo (Cornford 1951 p78) Cornford observa ainda que este tipo de

raciociacutenio parece ser particularmente favorecido pela sintaxe grega que permite

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sentenccedilas do tipo ldquoSimmias eacute grande em relaccedilatildeo (πρὸς) a Soacutecratesrdquo ou ainda

ldquoSimmias tem grandeza com relaccedilatildeo (πρὸς) a Soacutecratesrdquo nas quais o segundo

termo da relaccedilatildeo binaacuteria ldquoser-maior-querdquo natildeo eacute necessariamente introduzido por

um pronome relativo mas pode ser introduzido pela preposiccedilatildeo πρὸς Este fato

sintaacutetico teria supostamente induzido os pensadores gregos a negligenciar o

caraacuteter relacional de propriedades como ldquoser-semelhante-ardquo ou ldquoser-maior-querdquo

os levando a classificaacute-las como propriedades monaacutedicas do tipo ldquoser-brancordquo ou

ldquoser-belordquo

No entanto esta anaacutelise linguiacutestica por si soacute natildeo pode ser considerada

uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria Caso assim fosse Soacutecrates poderia simplesmente

argumentar em termos estritamente gramaticais e afirmar que usamos sentenccedilas

significativas com predicados relativos cotidianamente e que portanto o

paradoxo de Zenatildeo deveria ser simplesmente desconsiderado Pois soacute haacute

contradiccedilatildeo quando propriedades opostas satildeo atribuiacutedas a uma mesma coisa ao

mesmo tempo da mesma maneira e em relaccedilatildeo a uma mesma coisa 19

A ausecircncia de distinccedilatildeo entre predicados relacionais e predicados

completos no argumento de Zenatildeo no entanto nos remete diretamente a um tema

extremamente recorrente nos diaacutelogos a copresenccedila de propriedades opostas

Como vimos em diversos diaacutelogos Soacutecrates e seus interlocutores consideram a

copresenccedila de propriedades opostas nos objetos sensiacuteveis algo intrigante e

merecedor de uma explicaccedilatildeo teoacuterica complexa Na realidade o fato das entidades

sensiacuteveis estarem submetidas a este tipo de predicaccedilatildeo constitui aquilo que mais

propriamente as caracteriza o que fica claro pelo uso de predicados relacionais

nas demonstraccedilotildees socraacuteticas da diferenccedila entre o modo de ser das Formas e o

modo de ser das coisas do mundo sensiacutevel Assim submetidas a uma

multiplicidade de relaccedilotildees as entidades sensiacuteveis estatildeo sempre sujeitas agrave

predicaccedilatildeo de opostos o que eacute tido por Soacutecrates como uma evidecircncia de

contradiccedilatildeo interna e deficiecircncia ontoloacutegica nestes objetos

Portanto devemos entender que os predicados ldquosemelhanterdquo e

ldquodessemelhanterdquo do argumento de Zenatildeo estatildeo sendo empregados para ilustrar o

fato de que os objetos sensiacuteveis tecircm suas propriedades definidas pelas relaccedilotildees

em que estatildeo inseridos o que resulta na copresenccedila de opostos em um mesmo

19 De fato em uma passagem da Repuacuteblica IV (436b-c) Soacutecrates formula uma versatildeo da Lei da

Natildeo-Contradiccedilatildeo na qual todas estas qualificaccedilotildees satildeo mencionadas

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objeto e lhes confere um caraacuteter contraditoacuterio Ora eacute evidente que a extinccedilatildeo das

muacutetuas relaccedilotildees existentes entre os objetos sensiacuteveis seria suficiente para eliminar

o problema da copresenccedila de opostos pois um uacutenico objeto privado de qualquer

relaccedilatildeo eacute somente idecircntico a si mesmo

Eacute justamente esta a estrateacutegia da argumentaccedilatildeo zenoniana Reduzindo a

multiplicidade dos objetos sensiacuteveis a uma uacutenica entidade Zenatildeo elimina por

completo as muacuteltiplas relaccedilotildees entre eles consequentemente resolvendo o

problema da copresenccedila de opostos Assim enquanto Soacutecrates usa a copresenccedila

de opostos para caracterizar a deficiecircncia do mundo sensiacutevel e ainda postular a

existecircncia de entidades natildeo submetidas agraves relaccedilotildees que geram esta copresenccedila

Zenatildeo usa esta caracteriacutestica para negar toda possibilidade de multiplicidade

extinguindo por completo qualquer tipo de relaccedilatildeo e postulando a existecircncia de

uma uacutenica coisa privada de qualquer atributo salvo sua auto-identidade

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416 A soluccedilatildeo de Soacutecrates para o paradoxo de Zenatildeo

A despeito de todas as polecircmicas acerca da interpretaccedilatildeo do Parmecircnides a

compreensatildeo da soluccedilatildeo oferecida por Soacutecrates ao paradoxo de Zenatildeo destaca-se

como um ponto de notaacutevel consenso Os comentadores parecem concordar que a

estrateacutegia adotada por Soacutecrates consiste em desafiar o conteuacutedo da premissa

nuacutemero 4 do argumento de Zenatildeo por meio da distinccedilatildeo entre dois tipo de

entidades Formas e objetos sensiacuteveis Soacutecrates entende que os seres (τὰ ὄντα)

sobre os quais fala Zenatildeo satildeo objetos sensiacuteveis e como soluccedilatildeo ao paradoxo

apresenta as Formas como um tipo de entidade imune agrave copresenccedila de opostos

apontada por Zenatildeo

Recentemente contudo ateacute mesmo este aparente consenso foi ameaccedilado

Sandra Peterson em seu capiacutetulo sobre o Parmecircnides para The Oxford Handbook

of Plato (2008) distingue sua proacutepria interpretaccedilatildeo das interpretaccedilotildees que

atribuem a Soacutecrates uma apresentaccedilatildeo teacutecnica da Teoria das Ideias Ela acredita

que ldquose consideramos que Soacutecrates ostenta uma nova teoria de caraacuteter teacutecnico

com entidades desconhecidas [isto eacute as Formas] (hellip) natildeo percebemos o genuiacuteno

poder de sua simples refutaccedilatildeordquo (Peterson 2008 p383-411)

No entanto como se daria a soluccedilatildeo do paradoxo caso Soacutecrates natildeo

apelasse para Formas inteligiacuteveis Segundo a interpretaccedilatildeo proposta por Peterson

ldquoSoacutecrates simplesmente aponta pressuposiccedilotildees inegaacuteveis da fala cotidiana

(undeniable presuppositions of customary speech)rdquo para refutar Zenatildeo (Peterson

2008 p387) De acordo com Peterson a estrateacutegia geral da argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates consiste em demonstrar que predicados opostos satildeo ordinariamente

atribuiacutedos agraves coisas Sendo assim seu objetivo natildeo seria provar a invalidade do

argumento de Zenatildeo mas sim a sua irrelevacircncia ao fim de sua argumentaccedilatildeo

Soacutecrates teria demonstrado que o argumento de Zenatildeo natildeo apresenta um

paradoxo mas apenas uma verdade amplamente reconhecida

Peterson reconstroacutei a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates em trecircs movimentos

distintos que analisaremos separadamente O primeiro movimento eacute descrito por

ela da seguinte maneira

ldquoPrimeiro de 127e a 128b apoacutes ter esclarecido que o argumento de Zenatildeo eacute uma reduccedilatildeo

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ao absurdo da afirmaccedilatildeo de que os seres satildeo muacuteltiplos Soacutecrates leva Zenatildeo a expor sua

proacutepria crenccedila de que muacuteltiplas coisas satildeo semelhantes e dessemelhantes como por

exemplo quando Zenatildeo daacute a entender que ele e Parmecircnides satildeo semelhantes por dizerem

as mesmas coisas (128b5) e dessemelhantes por Zenatildeo dizer ldquonatildeo muacuteltiplosrdquo (not many) e

Parmecircnides dizer ldquoumrdquo (128b3ndash5) Por sugerir que haacute vaacuterios seres semelhantes em algum

aspecto e dessemelhantes em outros mesmo enquanto ele defende que natildeo pode haver

seres tanto semelhantes quanto dessemelhantes Zenatildeo eacute claramente inconsistenterdquo

(Peterson 2008 p 387)

Peterson estaacute se referindo agrave passagem por noacutes jaacute citada em que Soacutecrates

assimila o objetivo da argumentaccedilatildeo de Zenatildeo com a tese de Parmecircnides de que

tudo eacute um Segundo ela esta passagem inicia a refutaccedilatildeo do argumento ao

demonstrar que Zenatildeo eacute semelhante a Parmecircnides por ambos defenderem a tese

monista e ao mesmo tempo dessemelhante pois enquanto Zenatildeo afirma natildeo

haver muacuteltiplas coisas Parmecircnides afirma o todo ser um Contudo Peterson

parece negligenciar o fato de que em toda passagem natildeo haacute uma uacutenica ocorrecircncia

das palavras ldquosemelhanterdquo (ὅmicroοιος) ou ldquodessemelhanterdquo (ἀνόmicroοιος) Natildeo me

parece nada provaacutevel que Soacutecrates desejando demonstrar a contradiccedilatildeo apontada

por Peterson deixasse de mencionar o ponto especiacutefico de sua acusaccedilatildeo e se

limitasse a atacar aquilo que Zenatildeo ldquosugererdquo (implies) Em argumentaccedilotildees ad

hominen como esta nas quais se pretende demonstrar a existecircncia de uma

contradiccedilatildeo entre as teses que determinada pessoa defende e as atitudes desta

pessoa o valor da acusaccedilatildeo estaacute em tornar evidente a inconsistecircncia em questatildeo

Sendo assim a interpretaccedilatildeo oferecida por Peterson que pretende ler esta

passagem como a demonstraccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo acerca de temas que sequer

satildeo mencionados natildeo pode ser considerada uma interpretaccedilatildeo com suficiente

apoio textual

Nesta passagem Soacutecrates estaacute de fato realizando uma argumentaccedilatildeo ad

hominen do mesmo tipo identificado por Peterson No entanto a contradiccedilatildeo

atribuiacuteda a Zenatildeo eacute outra Como vimos ao empregar repetidamente formas

plurais para se referir aos argumentos de Zenatildeo Soacutecrates torna expliacutecita a

contradiccedilatildeo envolvida em se negar a existecircncia de muacuteltiplas coisas por meio de

muacuteltiplos argumentos Esta acusaccedilatildeo eacute cuidadosamente montada pela recorrecircncia

de expressotildees plurais para se referir aos argumentos de Zenatildeo e termina com a

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afirmaccedilatildeo claramente irocircnica de que Zenatildeo apresenta ldquomuito numerosas provasrdquo

(τεκmicroήρια πάmicroπολλα) para demonstrar sua tese de que natildeo haacute muacuteltiplas coisas

(128b2) Podemos considerar portanto que a interpretaccedilatildeo que atribui a Soacutecrates

o reconhecimento deste segundo tipo de contradiccedilatildeo possui mais apoio textual do

que a interpretaccedilatildeo oferecida por Peterson e deve ser eleita como a interpretaccedilatildeo

correta para passagem em detrimento da interpretaccedilatildeo de Peterson que lecirc a

passagem como a identificaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo natildeo mencionada

Contudo a segunda fase da argumentaccedilatildeo de Soacutecrates representaria

segundo Peterson o passo fundamental da refutaccedilatildeo ao argumento de Zenatildeo Ela

explica esta fase da seguinte maneira

ldquoSegundo Soacutecrates explicitamente apresenta a mais profunda e devastadora objeccedilatildeo (128e5ndash129a3) de que Zenatildeo ao conduzir sua reduccedilatildeo ao absurdo presume que haacute dois opostos ndash semelhanccedila e dessemelhanccedila ndash cada um deles sendo um ser (τούτοιν δὲ δυοῖν ὄντοιν) Zenatildeo presume que a semelhanccedila ela mesma eacute um item e que a dessemelhanccedila eacute um segundo e oposto item As premissas de Zenatildeo implicam a negaccedilatildeo de sua conclusatildeo E isso eacute desastrosordquo (Peterson 2008 p 387)

Portanto a ldquodevastadora objeccedilatildeordquo apresentada por Soacutecrates consiste em

demonstrar que Zenatildeo reconhece a existecircncia de pelo menos duas coisas a

semelhanccedila e a dessemelhanccedila o que estaria em clara contradiccedilatildeo com sua tese de

que natildeo haacute muacuteltiplas coisas Segundo Peterson isto acontece na seguinte

passagem

ldquoPois bem aceito disse Soacutecrates e acredito ser como dizes Mas diz-me o seguinte natildeo julgas haver uma certa forma em si e por si da semelhanccedila e por outro lado contraacuteria a tal forma uma outra aquilo que realmente eacute dessemelhante E que nestas duas coisas que satildeo tanto eu quanto vocecirc temos participaccedilatildeordquo Ἀλλ ἀποδέχοmicroαι φάναι τὸν Σωκράτη καὶ ἡγοῦmicroαι ὡς λέγεις ἔχειν τόδε δέ microοι εἰπέ οὐ νοmicroίζεις εἶναι αὐτὸ καθαὑτὸ εἶδός τι ὁmicroοιότητος καὶ τῷ τοιούτῳ αὖ ἄλλο τι ἐναντίον ὃ ἔστιν ἀνόmicroοιον τούτοιν δὲ δυοῖν ὄντοιν καὶ ἐmicroὲ καὶ σὲ καὶ τἆλλα ἃ δὴ πολλὰ καλοῦmicroεν microεταλαmicroβάνειν (128e5ndash129a3)

Eacute realmente difiacutecil entender como Peterson com base na passagem citada

pode atribuir a Zenatildeo o reconhecimento da existecircncia destas duas coisas (a

semelhanccedila e a dessemelhanccedila) Afinal quem se refere agrave semelhanccedila e agrave

dessemelhanccedila como dois seres distintos (τούτοιν δυοῖν ὄντοιν) eacute Soacutecrates e natildeo

Zenatildeo Para atribuir o reconhecimento destas entidades a Zenatildeo Peterson afirma

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que o verbo utilizado por Soacutecrates (νοmicroίζειν) indicaria que ele estaacute tratando de

uma noccedilatildeo comum aceita tambeacutem por Zenatildeo

De fato em seu paradoxo Zenatildeo fala da semelhanccedila e da dessemelhanccedila

como propriedades que os objetos teriam caso fossem muacuteltiplos Entretanto em

contraste com o uso de νοmicroίζειν que pode ou natildeo possuir a nuance de

significado indicada por Peterson Soacutecrates menciona uma seacuterie de termos

relativos agraves Formas que dificilmente poderiam fazer parte de um vocabulaacuterio

ldquocomumrdquo compartilhado por Zenatildeo Sendo assim o simples uso de νοmicroίζειν natildeo

eacute razatildeo suficiente para atribuirmos a Zenatildeo aquilo que Soacutecrates estaacute dizendo

Aleacutem disso caso o desejo de Soacutecrates fosse apresentar uma contradiccedilatildeo inerente agrave

argumentaccedilatildeo de Zenatildeo natildeo haveria porque fazecirc-lo por meio de uma pergunta

bastaria constatar que Zenatildeo reconhece a existecircncia do semelhante e do

semelhante e portanto admite uma multiplicidade de seres

Contudo o maior erro da argumentaccedilatildeo de Peterson natildeo estaacute em atribuir a

Zenatildeo aquilo que Soacutecrates estaacute afirmando Pois mesmo admitindo que a

argumentaccedilatildeo de Zenatildeo pressuponha a existecircncia destas duas entidades a

constataccedilatildeo deste fato sequer representaria uma refutaccedilatildeo ao paradoxo Como o

argumento de Zenatildeo eacute uma reduccedilatildeo ao absurdo o uso de noccedilotildees que se provaratildeo

contraditoacuterias eacute plenamente justificaacutevel Em seu paradoxo Zenatildeo conclui que as

coisas seriam simultaneamente semelhantes e dessemelhantes apenas caso as

coisas fossem muacuteltiplas No entanto Zenatildeo natildeo acredita que as coisas satildeo

muacuteltiplas Portanto em nenhum momento afirma seriamente a existecircncia da

semelhanccedila e da dessemelhanccedila O apelo de Zenatildeo a estas entidades eacute meramente

contra-factual e natildeo representa sua posiccedilatildeo A ldquodevastadora refutaccedilatildeordquo

apresentada por Peterson sequer se configura como uma legiacutetima refutaccedilatildeo

O uacuteltimo movimento da argumentaccedilatildeo de Soacutecrates consistiria em

ldquoenfatizar que os predicados ldquosemelhanterdquo e ldquodessemelhanterdquo satildeo incompletos e

que uma conversa ordinaacuteria (ordinary talk) eacute capaz de reconhecer diversas coisas

que satildeo tanto semelhantes quanto dessemelhantes ou possuem semelhanccedila e

dessemelhanccedila em vaacuterios aspectosrdquo (Peterson 2008 p 387) Isto aconteceria na

seguinte passagem

ldquoE [natildeo julgas] que algumas coisas tendo participaccedilatildeo na semelhanccedila se tornam semelhantes por causa disso e na medida em que nelas tenham participaccedilatildeo e que outras tendo participaccedilatildeo na dessemelhanccedila [se tornam] dessemelhantes e

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que outras [tendo participaccedilatildeo] em ambas se tornam semelhantes e dessemelhantes E mesmo que todas as coisas tenham participaccedilatildeo em ambas essas coisas que satildeo contraacuterias e que sejam pelo participar nas duas elas mesmas em relaccedilatildeo a si mesmas tanto semelhantes quanto dessemelhantes o que haacute de espantoso Καὶ τὰ microὲν τῆς ὁmicroοιότητος microεταλαmicroβάνοντα ὅmicroοια γίγνεσθαι ταύτῃ τε καὶ κατὰ τοσοῦτον ὅσον ἂν microεταλαmicroβάνῃ τὰ δὲ τῆς ἀνοmicroοιότητος ἀνόmicroοια τὰ δὲ ἀmicroφοτέρων ἀmicroφότερα εἰ δὲ καὶ πάντα ἐναντίων ὄντων ἀmicroφοτέρων microεταλαmicroβάνει καὶ ἔστι τῷ microετέχειν ἀmicroφοῖν ὅmicroοιά τε καὶ ἀνόmicroοια αὐτὰ αὑτοῖς τί θαυmicroαστόν (129a3-b1)

Como reconhece Peterson de acordo com a interpretaccedilatildeo por ela proposta

estas perguntas de Soacutecrates apenas ldquonegam a premissa de Zenatildeo de que eacute

impossiacutevel para qualquer coisa ser tanto semelhante quanto dessemelhanterdquo

(Peterson 2008 p 387) No entanto como podemos considerar a mera negaccedilatildeo

injustificada de uma premissa uma argumentaccedilatildeo suficientemente satisfatoacuteria

Zenatildeo argumenta em termos loacutegicos e espera que uma contra-argumentaccedilatildeo lhe

seja apresentada no mesmo niacutevel Caso o comentaacuterio final de Soacutecrates se limitasse

a negar injustificadamente a premissa problemaacutetica do argumento de Zenatildeo

dificilmente poderiacuteamos considerar tal comentaacuterio parte de uma argumentaccedilatildeo

seacuteria 20

Por fim resta observar que a interpretaccedilatildeo proposta por Peterson encontra-

se em clara oposiccedilatildeo ao que um leitor dos diaacutelogos poderia esperar Segundo o

argumento de Zenatildeo eacute impossiacutevel que os seres sejam tanto semelhantes quanto

dessemelhantes ou de maneira geral que uma dada coisa possua qualquer par de

predicados opostos (F e natildeo-F) Ora um leitor acostumado com o tipo de

argumentaccedilatildeo que Soacutecrates desempenha nos diaacutelogos da fase meacutedia espera

naturalmente que as Formas sejam apresentadas como soluccedilatildeo para este

problema

Esta expectativa eacute plenamente satisfeita quando Soacutecrates pede a Zenatildeo que

aceite a existecircncia de ldquouma Forma em si e por si da Semelhanccedila e por outro lado

uma outra Forma aquilo que eacute realmente Dessemelhanterdquo (οὐ νοmicroίζεις εἶναι αὐτὸ

καθαὑτὸ εἶδός τι ὁmicroοιότητος καὶ τῷ τοιούτῳ αὖ ἄλλο τι ἐναντίον ὃ ἔστιν

ἀνόmicroοιον 129a1) Dificilmente uma apresentaccedilatildeo das Formas poderia ser feita de

20 Neste caso Soacutecrates estaria agindo como Dioacutegenes de Ciacutenope que pretendeu refutar os

argumentos de Zenatildeo contra a possibilidade do movimento simplemente andando em praccedila puacuteblica Ora eacute claro que este poderia ser o caso No entanto esta natildeo parece ser a intenccedilatildeo de Soacutecrates e dificilmente Zenatildeo e Parmecircnides demonstrariam respeito por Soacutecrates tal como demonstram no decorrer do diaacutelogo caso este fosse o teor de sua argumentaccedilatildeo

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maneira mais expliacutecita Aleacutem do termo εἶδος Soacutecrates usa as expressotildees αὐτὸ

καθ αὑτὸ e ὃ ἔστιν ambas extremamente recorrentes nos diaacutelogos e

indubitavelmente parte do vocabulaacuterio relativo agraves Formas Fica claro portanto

que Soacutecrates identifica os seres (τὰ ὄντα) aos quais Zenatildeo se refere como objetos

sensiacutevieis e como primeiro passo na soluccedilatildeo do paradoxo introduz suas Formas

na discussatildeo

No entanto a simples apresentaccedilatildeo de entidades imunes agrave copresenccedila de

opostos natildeo se configura como uma soluccedilatildeo ao paradoxo A premissa 4 de Zenatildeo

afirma a impossibilidade das coisas serem simultaneamente semelhantes e

dessemelhantes o que certamente natildeo exclui a possibilidade de algo ser

exclusivamente semelhante ou dessemelhantes Para que a premissa 4 seja

falsificada eacute preciso que Soacutecrates demonstre como os seres podem possuir

propriedades opostas sem que isso implique em uma contradiccedilatildeo Portanto de

modo a servirem de soluccedilatildeo ao paradoxo as Formas precisam natildeo apenas estar

imunes agrave copresenccedila de opostos mas sobretudo explicar esta copresenccedila nos

objetos sensiacutevieis Para que isto seja feito Soacutecrates introduz a noccedilatildeo de

participaccedilatildeo (aqui representada pelos verbos microεταλαmicroβάνειν e microετέχειν) e

pergunta a Zenatildeo se ele estaacute disposto a aceitar que ldquoalgumas coisas tendo

participaccedilatildeo na Semelhanccedila se tornam semelhantes () que outras tendo

participaccedilatildeo na Dessemelhanccedila [se tornam] dessemelhantes e que outras [tendo

participaccedilatildeo] em ambas se tornam semelhantes e dessemelhantesrdquo (129a3-8)

Caso Zenatildeo esteja disposto a aceitar estas duas hipoacuteteses 1) que existem

Formas e 2) que os objetos sensiacuteveis participam destas Formas a aparente

contradiccedilatildeo presente na premissa 4 do seu argumento pode ser dissolvida Pois

uma vez que estes dois pontos lhe sejam concedidos Soacutecrates estaraacute apto a

demonstrar como a copresenccedila de propriedades opostas nos objetos sensiacutevieis

pode ser explicada por meio da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que estes objetos mantecircm

com as Formas21

No Parmecircnides Soacutecrates natildeo desenvolve em pormenores esta explicaccedilatildeo

se limitando a dizer que mesmo que todas as coisas sensiacuteveis tenham participaccedilatildeo

21 Note que Soacutecrates apresenta estas duas hipoacuteteses (a existecircncia das Formas e a relaccedilatildeo de

participaccedilatildeo) por meio de uma pergunta (129a1-3) Isto indica que ele estaacute introduzindo um novo material conceitual e que espera um assentimento por parte de seus interlocutores com relaccedilatildeo agrave viabilidade teoacuterica destas hipoacuteteses Como veremos a resposta de Parmecircnides seraacute admitir temporariamente a validade das hipoacuteteses de Soacutecrates com o objetivo de submetecirc-las

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em ambas estas Formas e em consequecircncia desta participaccedilatildeo sejam semelhantes

e dessemelhantes nada haacute nisso de espantoso (129a8-b1) Esta brevidade da

explicaccedilatildeo de Soacutecrates pode ser solucionada se relacionarmos a soluccedilatildeo aqui

apresentada para o paradoxo de Zenatildeo com a explicaccedilatildeo oferecida no Feacutedon

(101-103) para o fato de Simmias ser grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates e pequeno em

relaccedilatildeo a Feacutedon A assimilaccedilatildeo entre as duas explicaccedilotildees parece justificada uma

vez que em ambos os diaacutelogos vemos Soacutecrates oferecer a Teoria das Ideias como

soluccedilatildeo para o mesmo problema a copresenccedila de propriedades (relacionais)

opostas nos objetos sensiacuteveis22

Adotando o paralelismo entre estas duas explicaccedilotildees podemos entender

que tal como acontece no Feacutedon a semelhanccedila e dessemelhanccedila no Parmecircnides

deixam de ser predicados atribuiacutedos diretamente ao sujeito em questatildeo e passam a

ser predicados das propriedades imanentes que este sujeito possui devido agrave

relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que manteacutem com as Formas Sendo assim as muacuteltiplas

coisas do paradoxo de Zenatildeo satildeo tanto semelhantes quanto dessemelhantes por

participarem simultaneamente das Formas do Semelhante e do Dessemelhante e

devido a esta participaccedilatildeo possuiacuterem as propriedades imanentes do semelhante e

do dessemelhante com partes de si Portanto quando dizemos que o objeto x eacute

semelhante e dessemelhante estamos nos referindo a este fato de maneira

inadequada Pois natildeo eacute propriamente o indiviacuteduo x que eacute semelhante e

dessemelhante mas a semelhanccedila-de-x que eacute semelhante e a dessemelhanccedila-de-x

que eacute dessemelhante Estabelecida a diferenccedila entre Forma propriedades

imanentes e objetos sensiacuteveis natildeo haacute nada de contraditoacuterio no fato de uma mesma

coisa possuir simultaneamente propriedades imanentes opostas Afinal

predicados opostos nunca estatildeo sendo atribuiacutedos propriamente agrave mesma coisa

a uma nova reduccedilatildeo ao absurdo

22 Aleacutem da identidade de temas as passagens do Feacutedon e do Parmecircnides apresentam grande semelhanccedila de vocabulaacuterio εἶδος (Feacuted102B1) αὐτὸ καθ αὑτὸ (Feacuted78D3) ὄντοιν (Feacuted71a13) αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά (Feacuted74c1 αὐτὰ τὰ ἴσα) De fato a assimilaccedilatildeo entre os dois diaacutelogos eacute extremamente comum entre os comentadores Scolnicov por exemplo afirma que ldquoesta passagem eacute uma breve reafirmaccedilatildeo da doutrina das Formas desenvolvida no Feacutedonrdquo (Scolnicov 2003 p48) Gill oferece sua explicaccedilatildeo para resoluccedilatildeo do paradoxo de Zenatildeo por meio da teoria apresentada no Feacutedon (cf Gill 2012 p19-27) e (cf Gill 1996 p12-18) Cornford tambeacutem adota a estrateacutegia de explicar a soluccedilatildeo do paradoxo atraveacutes da analogia com a soluccedilatildeo do problema da copresenccedila de opostos no Feacutedon e afirma haver jaacute em 1951 aceitaccedilatildeo geral (it is generally agreed) de que ldquoa teoria das ideias aqui apresentada eacute idecircntica agrave afirmada anteriormente no Feacutedonrdquo (Cornford 1951 p70) Ainda Brisson (Brisson 2011 p29) Sayre (Sayre 1996 p65) e Turnbull (Turnbull 1998 p 16) assumem a identidade entre a teoria do Feacutedon e a teoria do Parmecircnides

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A hipoacutetese das Formas contradiz o conteuacutedo da premissa 4 do argumento

de Zenatildeo ao explicar aquilo que esta premissa afirmava ser impossiacutevel a

copresenccedila de propriedades opostas nos objetos sensiacuteveis Provada a falsidade da

premissa nuacutemero 4 do argumento de Zenatildeo todo paradoxo eacute desfeito Afinal a

reduccedilatildeo ao absurdo da assunccedilatildeo inicial de que as coisas satildeo muacuteltiplas depende

diretamente da existecircncia de contradiccedilatildeo entre as premissas 3 e 4

De acordo com a explicaccedilatildeo acima esboccedilada o paradoxo de Zenatildeo eacute

solucionado por Soacutecrates por meio da distinccedilatildeo ontoloacutegica entre Formas e objetos

sensiacuteveis que encontramos de maneira expliacutecita nos diaacutelogos da fase meacutedia e

impliacutecita nos argumentos dos primeiros diaacutelogos No decorrer das proacuteximas

seccedilotildees investigaremos se a ontologia defendida por Soacutecrates no Parmecircnides

pode ser identificada com aquela apresentada nestes diaacutelogos Em especial

investigaremos se a compreensatildeo acerca da natureza da participaccedilatildeo e auto-

predicaccedilatildeo das Formas que emerge da leitura do Parmecircnides pode ser identificada

com o tratamento que Soacutecrates oferece para estes temas nos diaacutelogos anteriores

Por ora basta observar que o vocabulaacuterio empregado sugere esta identificaccedilatildeo

Pois aleacutem de εἶδος tanto αὐτὸ καθ αὑτὸ quanto ὃ ἔστιν satildeo expressotildees

recorrentes nos diaacutelogos platocircnicos Estas expressotildees fazem parte do vocabulaacuterio

relativo agraves Formas que como vimos nos capiacutetulos precedentes eacute cuidadosamente

construiacutedo desde os primeiros diaacutelogos Da mesma maneira microετέχειν e

microεταλαmicroβάνειν satildeo expressotildees tipicamente socraacuteticas e fazem parte do vasto rol

de verbos empregados para descrever a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo entre Formas e

objetos sensiacuteveis tanto nos diaacutelogos iniciais quanto nos diaacutelogos da fase meacutedia

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417 O desafio de Soacutecrates

A proximidade entre a Teoria das Ideias apresentada no Parmecircnides e a

ontologia socraacutetica dos diaacutelogos da fase meacutedia e inicial eacute reafirmada ainda no

desafio lanccedilado por Soacutecrates a seus interlocutores Logo apoacutes a apresentaccedilatildeo das

Formas como soluccedilatildeo ao problema da copresenccedila de opostos Soacutecrates compele

seus interlocutores a demonstrarem nas Formas a validade dos mesmos

problemas que Zenatildeo acabara de apontar nos objetos sensiacuteveis

A passagem possui um problema textual que precisamos enfrentar para

podermos oferecer uma interpretaccedilatildeo adequada ao sentido do texto Trata-se do

aparecimento da expressatildeo αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά em 129b1 O neutro plural dos adjetivos

gregos eacute muitas vezes usado para designar de maneira geneacuterica um conjunto de

coisas que compartilham uma mesma caracteriacutestica Assim entendido o sentido de

expressotildees como τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια seria capturado pelas traduccedilotildees ldquoas

coisas semelhantesrdquo e ldquoas coisas dessemelhantesrdquo

No entanto estas traduccedilotildees estatildeo em claro desacordo com o conteuacutedo da

fala de Soacutecrates em 129a-c Na passagem em questatildeo Soacutecrates afirma que ficaria

assombrado caso algueacutem lhe demonstrasse que αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά venha(m) a se

tornar dessemelhante(s) e τὰ ἀνόmicroοια semelhante(s) Ora como vimos Soacutecrates

havia apresentado as Formas justamente como parte de uma demonstraccedilatildeo de

que ldquoas coisas semelhantesrdquo podem perfeitamente se tornar dessemelhantes e

vice-versa Portanto natildeo podemos adotar a interpretaccedilatildeo mais usual para o uso

do neutro plural de adjetivos na leitura de nossa passagem e somos obrigados a

descartar a hipoacutetese de que as expressotildees tenham como referecircncia um conjunto

geneacuterico de objetos sensiacuteveis sob pena de estarmos atribuindo agrave Soacutecrates uma

niacutetida contradiccedilatildeo Por outro lado caso queiramos identificar estas expressotildees

como designaccedilotildees das Formas nos encontramos novamente em dificuldade

Afinal sabemos que as Formas satildeo caracterizadas por serem uacutenicas Soacute haacute uma

uacutenica Forma da Beleza em oposiccedilatildeo agrave multiplicidade de coisas belas As

expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια no entanto estatildeo no plural

Haacute uma forte tendecircncia entre os comentadores a desqualificar este uso do

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plural e considerar ambas expressotildees como maneiras de se referir agraves Formas23

Apesar desta soluccedilatildeo ser amplamente adotada poucos satildeo os casos de defesa

textual desta leitura Agrave parte a afirmaccedilatildeo de que substantivos plurais gregos

podem ser utilizados de maneira gramaticalmente correta para designar entidades

singulares um uacutenico argumento de caraacuteter textual foi oferecido em defesa da

posiccedilatildeo de que as expressotildees representam maneiras idiossincraacuteticas de se referir

agraves Formas Rist em Equals and Intermediates in Plato (1964) argumenta que o

pronome τούτων na sentenccedila imediatamente seguinte (129b3) refere-se agrave

expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια De acordo com Rist como a sentenccedila

afirma que certas coisas participam de τούτων (τὰ τούτων microετέχοντα) ficaria

claro que as expressotildees dizem respeito agrave Formas pois soacute Formas podem ser

objeto de participaccedilatildeo (Rist 1964 p30)

Sendo assim caso o pronome τούτων seja de fato anafoacuterico em relaccedilatildeo agraves

expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια somos obrigados a aceitar o argumento de

Rist e admitir que as expressotildees no neutro plural em 129b1 designam as Formas

do Semelhante e do Dessemelhante No entanto esta natildeo parece ser a uacutenica opccedilatildeo

de leitura Na passagem em questatildeo o pronome τούτων estaacute associado agrave

ἀmicroφοτέρων e como observa Calvert ldquoquando Platatildeo se refere agraves Formas do

Semelhante e do Dessemelhante ele alterna entre o uso do dual (τούτοιν δυοῖν

ὄντοιν 129 a1 ἀmicroφοῖν a8) e o plural ἀmicroφοτέρων (a6 a7)rdquo (Clavert 1982 p53)

Nestes dois uacuteltimos casos (a6 a7) eacute certamente inquestionaacutevel que Platatildeo estaacute

usando ἀmicroφοτέρων para se referir agraves Formas Sendo assim quando lemos τούτων

ἀmicroφοτέρων em 129b3 o mais natural eacute considerar que esta expressatildeo refere-se agraves

Formas do Semelhante e do Dessemelhante apresentadas anteriormente e natildeo a

αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια

Portanto se aceitamos que estamos lidando com entidades que natildeo estatildeo

sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos e no entanto natildeo estamos nos referindo agraves

Formas os candidatos naturais ao posto de referecircncia das expressotildees αὐτὰ τὰ

ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια satildeo as propriedades imanentes da semelhanccedila e

dessemelhanccedila Como vimos no Feacutedon propriedades imanentes satildeo evocadas

23 Scolnicov por exemplo afirma categoriacamente ldquoO plural eacute irrelevanterdquo (Scolnicov 2003

p49) Allen (Allen 1997 p89) Brisson (Brisson 2011 p90) Rickless (Rickless 2007 p48) Sayre (Sayre 1996 p6) e Teloh (Teloh 1981 p152) tambeacutem tratam as expressotildees como maneiras de se referir agraves Formas Segundo Miller o uso de expressotildees plurais para designar as Formas representa uma ldquoconfusatildeo no pensamento de Soacutecratesrdquo reflexo do caraacuteter incipiente

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como parte do argumento que procura provar a diferenccedila ontoloacutegica entre Formas

e objetos sensiacuteveis (74b7-c5) e em seguida fazem parte da explicaccedilatildeo da

copresenccedila de opostos em Simmias (101-103) Em ambas passagens as

propriedades imanentes se diferenciam dos objetos sensiacuteveis que as possuem por

natildeo estarem elas mesmas sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza estes

objetos O paralelismo entre estas passagens do Feacutedon e nossa passagem do

Parmecircnides torna-se evidente quando consideramos que αὐτὰ τὰ ἴσα (Feacuted74c) e

αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά (Parm129b1) representam as uacutenicas ocorrecircncias de expressotildees da

forma αὐτὰ + adjetivo neutro plural no corpus platocircnico

Sendo assim encontramos total uniformidade no emprego deste tipo de

expressatildeo em Platatildeo ambas ocorrecircncias satildeo usadas para designar as propriedades

imanentes dos objetos sensiacuteveis adquiridas por meio da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo

que estes objetos mantecircm com as Formas Tal como as Formas as propriedades

imanentes natildeo estatildeo sujeitas agrave copresenccedila de opostos Poreacutem em oposiccedilatildeo agrave

unidade caracteriacutestica das Formas estas entidades satildeo muacuteltiplas e possuem um

tipo de existecircncia dependente dos objetos sensiacutevieis pois estatildeo localizadas nas

coisas (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος Feacuted102d ἡmicroεῖς ὁmicroοιότητος ἔχοmicroεν Parm130b)

Estando resolvida a questatildeo da referecircncia das expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e

τὰ ἀνόmicroοια podemos analisar o desafio lanccedilado por Soacutecrates e nos questionar se

neste desafio estatildeo mantidas as caracteriacutesticas da ontologia defendida por

Soacutecrates nos diaacutelogos da juventude e da fase meacutedia ou natildeo A passagem pode ser

dividia em quatro partes

1) 129b1 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que as

propriedades imanentes αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια podem receber

predicados opostos

ldquoPois se algueacutem mostrasse que αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά se tornam dessemelhantes ou que

τὰ ἀνόmicroοια se tornam semelhantes seria assombroso creiordquo

2) 129b6-c1 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que

a Forma da Unidade eacute muacuteltiplas coisas e o Muacuteltipo eacute um

da Teoria das Ideias apresentada no Parmecircnides (Miller 1986 p38)

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ldquoMas se aquilo que eacute realmente Um algueacutem demonstrar que isso mesmo eacute

muacuteltiplas coisas e de outra parte que o Muacuteltiplo eacute um jaacute disso me espantareirdquo

3) 129c1-3 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que

as Formas satildeo tanto unas quanto muacuteltiplas

ldquoE do mesmo modo com respeito a todas as outras coisas se algueacutem mostrar que

em si mesmos os gecircneros mesmos e as Formas mesmas satildeo afetados por essas

afecccedilotildees contraacuterias [unidade e multiplicidade] isso seraacute digno de espantordquo

4) 129d6-130a1 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem

como as Formas podem estar misturadas e separadas entre si

ldquoMas dentre as coisas que haacute pouco mencionei se algueacutem em primeiro lugar separasse uma das outras as Formas mesmas em si mesmas ndash por exemplo a Semelhanccedila a Dessemelhanccedila a Quantidade o Um o Repouso o Movimento e todas as coisas deste tipo ndash em seguida mostrasse que estas entre si podem ser misturadas e separadas eu pelo menos disse [Soacutecrates] ficaria encantado cheio de espanto Zenatildeo Quanto agravequelas coisas [sensiacuteveis] acredito terem sido tratadas por ti com muita determinaccedilatildeo Entretanto eu como digo me encantaria muito mais se algueacutem pudesse essa mesma aporia da maneira como expuseste no caso das coisas que se vecircem exibi-la dessa mesma maneira tambeacutem no caso das coisas apreendidas pelo raciociacutenio entrelaccediladas de todos os modos nas Formas mesmasrdquo

1 e 2 representam basicamente o mesmo tipo de desafio Em 1 Soacutecrates

diz que ficaria assombrado caso lhe mostrassem que as propriedades imanentes

αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια estatildeo sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos Em 2 este

desafio eacute expandido para as Formas da Unidade e da Multiplicidade e Soacutecrates

pede que lhe seja demonstrado como o Um eacute muacuteltiplas coisas e o Muacuteltiplo um No

Feacutedon (102d-e) Soacutecrates havia afirmado que o Grande em si (αὐτὸ τὸ microέγεθος)

jamais apareceraacute como grande e pequeno e que tampouco o Gr ande (τὸ ἐν ἡmicroῖν

microέγεθος ) admitiraacute o pequeno ou consentiraacute em receber a pequenez e se tornar

contraacuterio ao que ele eacute (102e2) A imunidade agrave predicaccedilatildeo de opostos eacute portanto

vaacutelida igualmente para Formas e propriedades imanentes Neste ponto αὐτὰ τὰ

ὅmicroοιά e o Semelhante em si (αὐτὸ καθαὑτὸ εἶδός ὁmicroοιότητος) diferenciam-se dos

objetos sensiacuteveis e Soacutecrates desafia seus interlocutores a lhe demonstrarem como

qualquer uma destas entidades pode estar sujeita agrave copresenccedila de opostos que

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caracteriza os objetos empiacutericos

Logo apoacutes intimar Zenatildeo e Parmecircnides a lhe demonstrarem que a Unidade

(ὃ ἔστιν ἕν) eacute muacuteltiplas coisas e que o Muacuteltiplo eacute um Soacutecrates muda o foco de sua

argumentaccedilatildeo e deixando de falar de um par especiacutefico de Formas passa a tratar

de Formas em geral (περὶ τῶν ἄλλων ἁπάντων) Soacutecrates entatildeo compele seus

interlocutores a lhe provarem 3 que as Formas elas mesmas satildeo afetadas

simultaneamente pela unidade e multiplicidade Os comentadores costumam

entender o desafio expresso em 3 como a generalizaccedilatildeo do problema da

copresenccedila de opostos apresentado em 1 e 2 Contudo como dito anteriormente

natildeo podemos considerar uma mera casualidade o fato de Soacutecrates escolher as

propriedades da unidade e da multiplicidade para operar esta generalizaccedilatildeo O

debate entre Soacutecrates e Zenatildeo eacute motivado pelo tema da unidademultiplicidade e a

reintroduccedilatildeo deste par de conceitos neste momento remete o leitor agrave distinccedilatildeo

inicial entre a multiplicidade de objetos sensiacuteveis (as coisas que chamamos

muitas τἆλλα ἃ δὴ πολλὰ καλοῦmicroεν) e a unidade caracteriacutestica das Formas

(τούτοιν δὲ δυοῖν ὄντοιν) Devemos entender portanto que Soacutecrates em 3 natildeo

estaacute apenas generalizando o problema da copresenccedila de opostos para o conjunto

de todas as Formas mas estaacute apresentando um novo desafio Soacutecrates desafia seus

interlocutores a lhe provarem que as Formas entidades caracterizadas por serem

uacutenicas e indivisiacuteveis podem ser caracterizadas pela multiplicidade encontrada nos

objetos sensiacuteveis

Como vimos o paradoxo de Zenatildeo pressupotildee a afirmaccedilatildeo da

multiplicidade das coisas em dois niacuteveis distintos Segundo Zenatildeo os objetos

sensiacuteveis satildeo muacuteltiplos tanto numericamente quanto por serem divisiacuteveis em

muacuteltiplas partes e receberem muacuteltiplos predicados Em paralelo a esta dualidade

inerente ao conceito de multiplicidade adotado por Zenatildeo as Formas platocircnicas

satildeo ditas uacutenicas tanto numericamente por soacute haver uma Forma da Beleza em

contraste com a pluralidade de objetos belos quanto por serem incompostas e

indivisiacuteveis Neste momento do desafio devemos pressupor que os dois sentidos

de unidade e multiplicidade estatildeo em jogo e que Soacutecrates estaacute desafiando seus

interlocutores a demonstrarem a multiplicidade das Formas tout court seja ela

entendida como a existecircncia de uma multiplicidade numeacuterica (diversas Formas da

Beleza por exemplo) ou uma multiplicidade de partes ou atributos de uma mesma

Forma

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Por fim em 4 Soacutecrates afirma que ficaria surpreso caso algueacutem

ldquoseparasse uma das outras as Formas e em seguida mostrasse que estas Formas

entre si podem ser misturadas e separadasrdquo O sentido preciso desta afirmaccedilatildeo

natildeo estaacute claro de iniacutecio e seu significado deve ser acessado pela explicaccedilatildeo que se

segue Nas sentenccedilas seguintes Soacutecrates esclarece que sua surpresa estaacute

relacionada agrave possibilidade de algueacutem expor no caso das Formas a aporia que

Zenatildeo acabara de expor com relaccedilatildeo agraves coisas sensiacuteveis Como vimos a aporia

apresentada por Zenatildeo consiste em afirmar que os objetos sensiacuteveis satildeo muacuteltiplos

e por conta disso estatildeo sujeitos agrave predicaccedilatildeo de propriedades opostas Portanto

devemos entender que o entrelaccedilamento ao qual se refere Soacutecrates implica na

demonstraccedilatildeo de que as Formas satildeo tal como os objetos sensiacuteveis muacuteltiplas e

por conta desta multiplicidade estatildeo sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos

Em sua fala Soacutecrates enumera uma seacuterie de pares de Formas opostas

SemelhanccedilaDessemelhanccedila QuantidadeUm RepousoMovimento Como

observa Allen (Allen 1997 p101) o pronome ταῦτα em 129e2 possui como

antecedente estas Formas tomadas como pares e natildeo cada uma delas

isoladamente Sendo assim a passagem afirma que natildeo podemos considerar cada

um destes pares de Formas como separados e ao mesmo tempo supor que os dois

membros do par estatildeo misturados e caracterizando um ao outro

Ora estaacute claro que o entrelaccedilamento ou participaccedilatildeo de uma Forma em

outra faria com que elas perdessem sua unidade e uniformidade caracteriacutestica e

passassem a possuir uma multiplicidade de partes e atributos24 Aleacutem disso caso

Formas opostas estejam entrelaccediladas entre si cada uma delas teraacute um predicado

contraacuterio agrave sua auto-predicaccedilatildeo (a Semelhanccedila seraacute dessemelhante o Movimento

estaraacute em repouso etc) Portanto em 4 Soacutecrates recapitula os desafios expressos

anteriormente e reafirma a distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis expressa em

sua soluccedilatildeo ao paradoxo de Zenatildeo

O desafio apresentado por Soacutecrates retoma portanto aspectos

fundamentais da apresentaccedilatildeo da Teoria das Ideias a uniformidade das Formas

que se caracterizam por estarem imunes agrave predicaccedilatildeo de opostos e a unidade

24 No argumento desenvolvido em 142c8-143a2 por exemplo conclui-se que se o um eacute entatildeo o

um eacute constituido de partes Pois afirmar que ldquoo um eacuterdquo equivale a afirmar que uma parte do um participa da unidade e outra parte participa do ser (οὐσίας microετέχειν) O argumento pressupotildee portanto que a participaccedilatildeo em mais de uma Forma (entrelaccedilamento) eacute suficiente para concluir a existecircncia de muacuteltiplas partes do objeto participante

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destas entidades que satildeo numericamente singulares Estas caracteriacutesticas estatildeo

mutuamente implicadas pois as Formas satildeo ditas uacutenicas e homogecircneas por serem

de maneira exclusiva auto-predicativas Em contraste como as coisas sensiacuteveis

sujeitas a uma diversidade de predicados inclusive predicados opostos as Formas

satildeo exclusivamente aquilo que elas satildeo A Forma F eacute apenas F e nada mais

estando imune agrave presenccedila da propriedade oposta natildeo-F e de maneira geral a

qualquer outro tipo de predicaccedilatildeo25 Estas caracteriacutesticas das Formas satildeo a base da

distinccedilatildeo ontoloacutegica entre Formas e objetos sensiacuteveis e se encontram articuladas

na soluccedilatildeo de Soacutecrates para o paradoxo de Zenatildeo Zenatildeo acredita que as coisas

satildeo muacuteltiplas e por causa disso estatildeo sempre sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos

Com o objetivo de desfazer o paradoxo Soacutecrates apresenta um novo tipo de

entidade caracterizada pela sua unidade e uniformidade Segundo Soacutecrates estas

entidades podem desfazer o problema da copresenccedila de opostos e serem a causa

das propriedades encontradas nos objetos sensiacuteveis por estarem elas mesmas

imunes agrave multiplicidade e copresenccedila de opostos encontrada nos objetos

empiacutericos

Sendo assim a demonstraccedilatildeo de que as Formas satildeo elas mesmas sujeitas

agrave copresenccedila de opostos retiraria destas entidades a capacidade de se apresentarem

como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis Pois segundo a compreensatildeo

de causalidade apresentada por Soacutecrates no Feacutedon eacute justamente o fato do Grande

nunca se apresentar como pequeno o que faz dele o candidato mais adequado para

o cargo de causa da grandeza das coisas sensiacuteveis A Forma da Beleza deve ser

incondicionalmente bela para assegurar o seu papel de causa da beleza nas coisas

Caso contraacuterio a Beleza ela mesma violaria um dos princiacutepios baacutesicos da

causalidade e poderia ser considerada tatildeo responsaacutevel pela beleza das coisas

quanto os adereccedilos de ouro que adornam Helena e a tornam bela para um

banquete poreacutem feia e repulsiva para um funeral Por outro lado a atribuiccedilatildeo de

multiplicidade agraves Formas abriria a possibilidade do paradoxo de Zenatildeo se repetir

em cada uma destas entidades quer entendamos esta multiplicidade como uma

multiplicidade numeacuterica ou como uma multiplicidade de atributos Pois ou bem

cada Forma seria composta por partes semelhantes entre si (por serem partes de

25 As afirmaccedilotildees de que F eacute uacutenica uniforme indivisiacutevel etc representam meta-predicados

atribuidos a todas as Formas Estes meta-predicados devem ser entendidos como afirmaccedilotildees restritas ao acircmbito da Teoria das Ideias e natildeo entram em conflito com a auto-predicaccedilatildeo das

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uma mesma Forma) e ao mesmo tempo dessemelhantes (por serem partes

distintas) ou bem as muacuteltiplas Formas de F seriam semelhantes (por serem todas

elas Formas de uma mesma propriedade F) e dessemelhantes (por serem

numericamente distintas) Em ambos os casos as Formas estariam sujeitas aos

mesmos problemas encontrados nos objetos sensiacuteveis que supostamente

deveriam solucionar

O desafio lanccedilado por Soacutecrates eacute portanto uma consequecircncia direta da

sua soluccedilatildeo para o paradoxo de Zenatildeo A validade da hipoacutetese das Formas como

soluccedilatildeo ao paradoxo depende destas entidades manterem estes dois aspectos

fundamentais de sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica imunidade agrave copresenccedila de opostos e

unidade (numeacuterica e aspectual) Afinal estas caracteriacutesticas satildeo a base da

diferenciaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis e a distinccedilatildeo entre estes dois tipos

de entidade natildeo restaria estabelecida caso estas caracteriacutesticas proacuteprias dos

objetos sensiacuteveis fossem encontradas tambeacutem nas Formas Portanto caso a

multiplicidade e predicaccedilatildeo de opostos apontadas por Zenatildeo nos objetos sensiacuteveis

sejam vaacutelidas paras Formas a soluccedilatildeo apresentada por Soacutecrates se mostraraacute falsa

e o paradoxo de Zenatildeo permaneceraacute irresoluto

A importacircncia do desafio de Soacutecrates para a compreensatildeo da estrutura do

Parmecircnides dificilmente pode ser superestimada A fala em que Soacutecrates

soluciona o paradoxo de Zenatildeo e em seguida desafia seus interlocutores a

provarem a falsidade de sua resoluccedilatildeo representa o mais longo discurso

ininterrupto do diaacutelogo e possui um forte apelo dramaacutetico No desafio que encerra

esta fala Soacutecrates usa as palavras ldquomaravilhadordquo ldquoencantadordquo e seus cognatos

nada menos do que oito vezes e deixa bem claro ao leitor quatildeo arraigado eacute o seu

comprometimento com as teses da uniformidade e unidade das Formas e quatildeo

chocante e arrasador seria o reconhecimento da falsidade destes princiacutepios

fundamentais de sua teoria Esta insistecircncia no tema do maravilhamento de

Soacutecrates faz parte da estrateacutegia dramaacutetica adotada por Platatildeo que pretende

chamar atenccedilatildeo para importacircncia destas duas caracteriacutesticas fundamentais da

constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e antecipar para o leitor o esquema geral do

ataque agrave Teoria das Ideias que seraacute realizado por Parmecircnides Como veremos

Parmecircnides aceita o desafio lanccedilado por Soacutecrates e localiza suas criacuteticas

Formas

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justamente nos princiacutepios de uniformidade e unidade das Formas Por meio da

sequecircncia de paradoxos que compotildeem o restante da primeira parte do diaacutelogo

Parmecircnides iraacute provar a Soacutecrates como estas caracteriacutesticas das Formas mostram-

se irreconciliaacuteveis com a noccedilatildeo de participaccedilatildeo e de maneira geral com a tese de

que as Formas satildeo causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis

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42 As criacuteticas de Parmecircnides agrave teoria da participaccedilatildeo

Apoacutes Soacutecrates terminar sua longa fala Parmecircnides que ateacute entatildeo ouvia a

discussatildeo calado volta-se para Soacutecrates e passa a formular uma seacuterie de criacuteticas agrave

distinccedilatildeo ontoloacutegica que este havia apresentado Tal como prenunciado na

complexa estrutura narrativa delineada pelo proacutelogo do diaacutelogo a fala de

Parmecircnides emerge em continuidade ao debate anteriormente desenvolvido por

Soacutecrates e Zenatildeo e toma como ponto de partida os resultados obtidos pela

discussatildeo anterior Em especial a argumentaccedilatildeo desenvolvida por Parmecircnides

pretende recuperar em forma e intenccedilatildeo o paradoxo de abertura do diaacutelogo

Formalmente as criacuteticas de Parmecircnides retomam o tipo de argumentaccedilatildeo

em reduccedilatildeo ao absurdo na qual o paradoxo de Zenatildeo havia sido formulado A

estrateacutegia consiste em aceitar de maneira provisoacuteria a teoria apresentada por

Soacutecrates com o intuito de derivar a partir do conjunto de hipoacuteteses que

constituem esta teoria contradiccedilotildees internas ou consequecircncias inaceitaacuteveis Em

intenccedilatildeo as criacuteticas pretendem restabelecer a validade deste paradoxo por meio da

demonstraccedilatildeo da inviabilidade da soluccedilatildeo oferecida por Soacutecrates Assim do

mesmo modo que Zenatildeo havia formulado seu paradoxo pretendendo proteger

Parmecircnides dos ataques de seus detratores Parmecircnides apresenta suas criacuteticas

como uma defesa de Zenatildeo a quem Soacutecrates afirma ser capaz de refutar

Em linhas gerais as criacuteticas de Parmecircnides seguem a seguinte estrutura

Parmecircnides comeccedila questionando Soacutecrates acerca da extensatildeo e populaccedilatildeo do

ldquomundo da Ideiasrdquo isto eacute que tipos de objetos sensiacuteveis possuem uma Forma

correspondente Em seguida Parmecircnides desenvolve uma seacuterie de paradoxos

intimamente relacionados entre si voltados contra a noccedilatildeo de participaccedilatildeo

adotada por Soacutecrates Na tentativa de escapar destas criacuteticas Soacutecrates procura

oferecer explicaccedilotildees distintas para natureza da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo e propotildee

primeiro que as Formas sejam entendidas como pensamentos e em seguida

como paradigmas Contudo ambas propostas levam a mais paradoxos e

Parmecircnides acaba por concluir que a participaccedilatildeo eacute impossiacutevel e que de acordo

com a concepccedilatildeo socraacutetica do que eacute uma Forma estas entidades estariam

completamente isoladas da realidade sensiacutevel o que as tornaria incognosciacuteveis e

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irrelevantes

Caso sejam consideradas vaacutelidas as criacuteticas oferecidas por Parmecircnides

representam um ataque avassalador agrave teoria apresentada por Soacutecrates Este fato

parece ser reconhecido por Soacutecrates que diz ao final dos ataques de Parmecircnides

natildeo vislumbrar uma saiacuteda nos garantindo que ao menos no contexto dramaacutetico

do diaacutelogo o criticismo parmeniacutedico eacute tido como procedente Contudo a despeito

da aporia e do embaraccedilo demonstrados por Soacutecrates alguns comentadores negam

a importacircncia destes argumentos e afirmam que Platatildeo nunca admitiu a

legitimidade das criacuteticas aqui apresentadas

Uma maneira de desqualificar a argumentaccedilatildeo de Parmecircnide que

precisamos desde jaacute analisar consiste em reconhecer a validade dos argumentos

poreacutem negar a sua relevacircncia com relaccedilatildeo agrave Teoria das Ideias De acordo com este

tipo de interpretaccedilatildeo os paradoxos apresentados por Parmecircnides natildeo teriam como

alvo a Teoria das Ideias platocircnicas mas estariam direcionadas contra concepccedilotildees

heterodoxas acerca da natureza das Formas adotadas por membros da Academia

cujas teorias Platatildeo estaria atacando

O alvo mais constantemente apresentado eacute Eudoxo de Cnidos Eudoxo foi

um astrocircnomo e matemaacutetico extremamente respeitado e seu nome estaacute

relacionado a uma seacuterie de descobertas matemaacuteticas de seu tempo Segundo

algumas fontes Eudoxo seria associado a Academia e teria inclusive assumido o

cargo de diretor da escola (sxolarxhj) durante a viagem de Platatildeo para Sciciacutelia

em 366 (cf Philoch fr223) De fato vaacuterios testemunhos nos levam a crer que em

algum momento de sua carreira filosoacutefica Eudoxo desenvolveu uma teoria

proacutepria acerca da natureza das Formas e de acordo com o comentaacuterio de

Alexandre de Afrodiacutesia esta teoria estaria criticada por uma seacuterie de argumentos

do tratado aristoteacutelico PERI IDEWN (In Methaph 97-98)

Em Aristotles Criticism of Plato and The Academy Cherniss reconhece

uma grande similaridade entre as criacuteticas descritas por Alexandre e as criacuteticas que

encontramos no Parmecircnides A partir da identificaccedilatildeo entre estas duas seacuteries de

argumentos Cherniss conclui que o criticismo apresentado em nosso diaacutelogo estaacute

direcionado contra a noccedilatildeo imanentista de Formas defendida por Eudoxo e natildeo

contra a Teoria das Ideias descrita nos diaacutelogos de Platatildeo (Cherniss 1944 p144)

Esta interpretaccedilatildeo eacute posteriormente endossada por Cornford para quem as

criacuteticas do Parmecircnides devem ser entendidas como a rejeiccedilatildeo do proacuteprio Platatildeo agrave

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compreensatildeo rudimentar de participaccedilatildeo defendida por Eudoxo (Cornford 1951

p87)26

Recentemente outro membro da Academia foi oferecido como alvo dos

argumentos do Parmecircnides Em The Fog Dispelled (2010) Graeser propotildee que o

Parmecircnides deve ser entendido como uma refutaccedilatildeo da concepccedilatildeo de Formas

defendida por Espeusipo sobrinho de Platatildeo e sxolarxhj da Academia durante

os oito anos seguintes agrave sua morte Segundo Graeser no Parmecircnides ldquoPlatatildeo guia

seus leitores agrave compreensatildeo de que seu criticismo das Formas inteligiacuteveis reverte-

se contra a teoria dos princiacutepios de Espeusipordquo (Graeser 2010 p17)

Para podermos avaliar a viabilidade do tipo de hipoacutetese interpretativa

defendida por Cherniss Cornford e Graeser segundo a qual as criacuteticas de

Parmecircnides estatildeo endereccediladas a uma outra teoria que natildeo a proacutepria Teoria das

Ideias encontrada nos diaacutelogos platocircnicos precisamos recapitular as

caracteriacutesticas da distinccedilatildeo ontoloacutegica oferecida por Soacutecrates como soluccedilatildeo ao

paradoxo de Zenatildeo No Parmecircnides Soacutecrates apresenta uma teoria segundo a

qual

1) Existem Formas (εἴδη) entidades em si (αὐτὰ καθ αὑτὰ τὰ)

separadas (χωρὶς) dos objetos sensiacuteveis (128e6-130b-5) e

conhecidas pela razatildeo (ἐν τοῖς λογισmicroῷ λαmicroβανοmicroένοις) (129e5-

130a2)

2) Estas Formas satildeo entidades auto-predicativas isto eacute a Forma do

Grande eacute grande a Forma do Pequeno eacute pequena etc (132a)

3) As Formas satildeo entidades singulares e indivisiacuteveis (ἓν ἕκαστον

εἶδος εἶναι) em oposiccedilatildeo agrave multiplicidade numeacuterica e

complexidade mereoloacutegica que caracteriza os objetos sensiacuteveis

4) As Formas satildeo entidades ldquounicas em aspectordquo (microονοειδὲς) isto eacute

imunes agrave copresenccedila de propriedades opostas Em oposiccedilatildeo a isto

os objetos sensiacuteveis estatildeo sempre sujeitos a este tipo de

26 Em Eudoxos in The Parmecircnides (1973) Malcolm Shofield defende que a teoria de Eudoxo eacute

discutida no Parmecircnides poreacutem natildeo na primeira parte do diaacutelogo Shoefield acredita que alguns argumentos da longa seacuterie de deduccedilotildees que compotildee a segunda parte do Parmecircnides precisam ser entendidos sobre o background da teoria de Eudoxo Como o proacuteprio Shofield reconhece (Shoefied 1973 p4-5) a hipoacutetese de que a teoria de Eudoxo eacute discutida em algumas deduccedilotildees da segunda parte do Parmecircnides jaacute havia sido levantada por Brumbaugh (cf Brumbaugh 1961 p25-26)

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copresenccedila (129b6-c1)

5) Os objetos sensiacuteveis por outro lado participam das Formas e eacute

pela participaccedilatildeo (microετάληψις) nas Formas que adquirem as

propiedades que possuem (129a3-129b1) e os nomes pelos quais

satildeo chamadas (ἐπωνυmicroία) (130e5-131a2)

Como qualquer leitor dos diaacutelogos platocircnicos pode facilmente perceber as

sentenccedilas listadas acima definem de maneira inequiacutevoca a Teoria das Ideias que

delineamos nos capiacutetulos precedentes Como vimos a existecircncia de Formas

entidades separadas dos objetos empiacutericos e detentoras de um estatuto ontoloacutegico

proacuteprio estaacute pressuposta desde os diaacutelogos inicias Estas entidades satildeo

caracterizadas por serem inteligiacuteveis isto eacute captadas unicamente pela razatildeo

(Feacutedon 65d4-66a10) sempre idecircnticas a si mesmas e auto-predicativas

(Protaacutegoras 330c7-e1 Hiacuteppias Maior 292e Eutidemos 301b5-c2 e Feacutedon 100c4-

6) estando portanto imunes agrave predicaccedilatildeo de opostos (Hiacuteppias Maior 291d1-3

Feacutedon 102e5-6 Banquete 211a2-5 Repuacuteblica V 479a) Como resultado da soma

destas caracteriacutesticas as Formas satildeo entidades completamente isentas de

pluralidade incapazes de sofrer qualquer tipo de mudanccedila singulares e

indivisiacuteveis (microονοειδὲς ἀσύνθετα Fed78c6)

Por outro lado em oposiccedilatildeo agrave unidade e estabilidade ontoloacutegica

caracteriacutestica das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo descritos por Soacutecrates como

entidades compostas e internamente complexas sujeitas agrave mudanccedila constante e

submetidas a uma infinidade de predicaccedilotildees inclusive opostas (Hiacuteppias Maior

289a3-b7 Feacutedon 74b7-9 102b-c Repuacuteblica 479a-b)

Do mesmo modo o poder causal exercido pelas Formas sobre os objetos

sensiacuteveis e o vocabulaacuterio da participaccedilatildeo a ele relacionado possuem um papel

central nos argumentos dos diaacutelogos e podem ser encontrados desde a busca por

definiccedilotildees do Ecircutifron e do Hippias Maior ateacute os diaacutelogos da fase meacutedia como

Banquete e Feacutedon Assim desde os primeiros diaacutelogos as Formas satildeo

apresentadas como responsaacuteveis pelas caracteriacutesticas dos objetos sensiacuteveis e causa

efetiva das propriedades encontradas nestes objetos

Eacute portanto facilmente constataacutevel que as caracteriacutesticas fundamentais da

Teoria das Ideias estatildeo representadas na listagem acima e mesmo o vocabulaacuterio

empregado por Soacutecrates no Parmecircnides coincide com a terminologia dos diaacutelogos

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anteriores Tendo em vista esta identidade vocabular e conceitual creio que

podemos descartar desde jaacute as interpretaccedilotildees que pretendem identificar qualquer

outra teoria que natildeo a Teoria das Ideias como alvo dos ataques de Parmecircnides

Afinal acreditar que as criacuteticas apresentadas no Parmecircnides estatildeo endereccediladas a

Eudoxo ou a Espeusipo equivale a tornar estas criacuteticas um mero caso de ignoratio

elenchi com relaccedilatildeo a toda argumentaccedilatildeo anteriormente desenvolvida no diaacutelogo

A distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis apresentada por Soacutecrates

como soluccedilatildeo ao paradoxo de Zenatildeo eacute a mesma formulada nos diaacutelogos meacutedios e

da juventude e este fato deve parecer oacutebvio ao leitor do Parmecircnides tanto pelo

vocabulaacuterio empregado por Soacutecrates quanto pelo motivo pelo qual a Teoria das

Ideias eacute trazida agrave discussatildeo Sendo assim seria completamente incompreensiacutevel

que Platatildeo resolvesse representar o personagem Parmecircnides criticando qualquer

outra teoria senatildeo aquela que Soacutecrates apresenta reiteradamente nos diaacutelogos em

que figura como personagem principal e que eacute anunciada no proacuteprio Parmecircnides

como soluccedilatildeo ao paradoxo de Zenatildeo27

27 Haacute ainda outra objeccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo de que as criacuteticas do Parmecircnides estatildeo direcionadas

contra teorias heterodoxas defendidas por membros da Academia em divergecircncia a Platatildeo Como observa Dancy em Two Studies in the Early Academy este tipo de interpretaccedilatildeo depende de uma hipoacutetese cronoloacutegica acerca da data de composiccedilatildeo do Parmecircnides dificilmente verificaacutevel Afinal para admitirmos que o Parmecircnides conteacutem uma criacutetica agrave teoria de Eudoxo ou Espeusipo devemos supor que na ocasiatildeo da composiccedilatildeo do diaacutelogo a teoria criticada jaacute havia sido desenvolvida No entanto nada nos impede de realizar a inferecircncia no sentido oposto e afirmar que Eudoxo ou Espeusipo propuseram suas teorias a partir de uma leitura do Parmecircnides Caso esta uacuteltima hipoacutetese cronoloacutegica esteja correta o Parmecircnides foi escrito antes da formulaccedilatildeo das teorias de Eudoxo e Espeusipo e portanto natildeo poderia conter criacuteticas a estas teorias (cf Dancy 1991 p20-24)

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421 A separaccedilatildeo das Formas

Parmecircnides inicia seu exame enfatizando a distinccedilatildeo fundamental na qual

a hipoacutetese de Soacutecrates estaacute baseada Em sua fala Soacutecrates havia afirmado que o

Semelhante o Dessemelhante o Um o Muacuteltiplo e as demais Formas devem ser

entendidas como entidades em si e por si (αὐτὰ καθ αὑτὰ) detentoras de um

estatuto ontoloacutegico proacuteprio e marcadamente distintas dos objetos sensiacuteveis

Assumindo a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis estabelecida por Soacutecrates

Parmecircnides levanta duas questotildees acerca desta distinccedilatildeo 1) Se foi o proacuteprio

Soacutecrates quem fez a divisatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis e 2) Se a

Semelhanccedila mesma eacute algo separado da semelhanccedila que possuiacutemos e o mesmo

com relaccedilatildeo aos outros termos mencionados por Zenatildeo

ldquoE foi isso entatildeo que expressou Parmecircnides quando ele [Soacutecrates] terminou Soacutecrates disse quatildeo digno eacutes de ser admirado pelo ardor que tens pelos argumentos Mas dize-me 1) tu mesmo assim fizestes a divisatildeo tal como falas de um lado certas coisas mesmas de outro as coisas que delas participam E 2) te parece a semelhanccedila mesma ser algo separada da semelhanccedila que temos e tambeacutem o um e as muacuteltiplas coisas e todas as coisas que haacute pouco ouviste de Zenatildeo Parece-me que sim disse Soacutecratesrdquo ὅπερ οὖν καὶ παυσαmicroένου αὐτοῦ εἰπεῖν τὸν Παρmicroενίδην Ὦ Σώκρατες φάναι ὡς ἄξιος εἶ ἄγασθαι τῆς ὁρmicroῆς τῆς ἐπὶ τοὺς λόγους καί microοι εἰπέ 1) αὐτὸς σὺ οὕτω διῄρησαι ὡς λέγεις χωρὶς microὲν εἴδη αὐτὰ ἄττα χωρὶς δὲ τὰ τούτων αὖ microετέχοντα καί 2) τί σοι δοκεῖ εἶναι αὐτὴ ὁmicroοιότης χωρὶς ἧς ἡmicroεῖς ὁmicroοιότητος ἔχοmicroεν καὶ ἓν δὴ καὶ πολλὰ καὶ πάντα ὅσα νυνδὴ Ζήνωνος ἤκουες Ἔmicroοιγε φάναι τὸν Σωκράτη (130b1-5)

Parmecircnides destaca o tema da separaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis

mencionando a preposiccedilatildeoadveacuterbio χωρίς (separadoseparadamente) nada menos

do que trecircs vezes em apenas quatro linhas Devemos entender a insistecircncia de

Parmecircnides sobre este ponto como um artifiacutecio dramaacutetico cujo objetivo eacute chamar

a atenccedilatildeo do leitor para questatildeo da ldquoseparaccedilatildeordquo entre Formas e objetos sensiacuteveis

na qual a teoria de Soacutecrates estaacute fundamentada Soacutecrates jaacute havia usado o termo

χωρίς com relaccedilatildeo agraves Formas anteriormente (διαιρῆται χωρὶς αὐτὰ καθ αὑτὰ τὰ

εἴδη 129d7) E de fato sua teoria parece envolver algum modo de separaccedilatildeo entre

duas classes distintas de objetos pois Soacutecrates afirma haver aleacutem das muacuteltiplas

coisas apontadas por Zenatildeo um outro conjunto de objetos distintos das coisas

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sensiacuteveis e detentores de um estatuto ontoloacutegico proacuteprio as Formas Mas o que

significa afirmar que as Formas satildeo entidades separadas Com o que exatamente

estaria Soacutecrates se comprometendo ao responder afirmativamente agrave pergunta de

Parmecircnides

Em seu sentido mais baacutesico podemos entender a afirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo

entre duas entidades como equivalente agrave atribuiccedilatildeo de natildeo-identidade numeacuterica

entre elas Assim compreendido o termo ldquoseparaccedilatildeordquo natildeo teria outro papel senatildeo

enfatizar o fato pressuposto pela teoria apresentada por Soacutecrates de que a Forma

natildeo eacute idecircntica aos objetos que dela participam ou seja se o objeto x participa da

Forma F entatildeo x e F satildeo coisas numericamente distintas isto eacute separadas Uma

segunda interpretaccedilatildeo possiacutevel seria entendermos a afirmaccedilatildeo de separaccedilatildeo como

equivalente agrave afirmaccedilatildeo de independecircncia ontoloacutegica De acordo com este sentido

uma coisas eacute separada da outra se ela pode existir independentemente da outra

Portanto nesta segunda acepccedilatildeo do termo x eacute separado de y se x pode continuar

a existir ainda que y deixe de existir ou mesmo que y nunca tenha existido28 Uma

terceira opccedilatildeo seria entendermos a afirmaccedilatildeo de que x eacute separado de y como

equivalente ao isolamento ou dissociaccedilatildeo total entre estes dois itens Assim

entendida a separaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis implicaria na inexistecircncia

de contato entre estas entidades tal como quando dizemos que uma mesa estaacute

separada da parede para afirmar que estas duas coisas natildeo estatildeo em contato uma

com a outra

Soacutecrates natildeo pede esclarecimentos a Parmecircnides acerca do que estaacute sendo

entendido por ldquoseparaccedilatildeordquo e noacutes como leitores devemos buscar nas entrelinhas

do texto o significado desta expressatildeo Esta tarefa nos eacute facilitada por Platatildeo que

oferece uma informaccedilatildeo fundamental acerca do sentido da palavra χωρίς por meio

da construccedilatildeo de um paralelismo entre a afirmaccedilatildeo de que a Forma F eacute separada

(χωρίς) e a afirmaccedilatildeo de que a Forma F eacute em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτό)

Em 129b4 Parmecircnides comeccedila seu exame perguntando a Soacutecrates se ele

acredita ser a Semelhanccedila mesma algo separado (χωρίς) da semelhanccedila que noacutes

temos Logo em seguida (130b7-9) Parmecircnides formula o mesmo tipo de questatildeo

utilizando agora a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτό ldquoSeraacute que tambeacutem coisas tais

28 Note que diferente da relaccedilatildeo de natildeo-identidade a indenpendecircncia ontoloacutegica natildeo eacute uma

relaccedilatildeo simeacutetrica Podemos considerar que x possui um modo de existecircncia independente de y e ao mesmo tempo afirmarmos que y eacute ontologicamente dependente de x

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como uma certa Forma em si e por si do Belo e do Justo [existem]rdquo Por fim em

130c1-2 Parmecircnides volta a usar o termo χωρίς e pergunta ldquoMas e uma Forma

do Homem [existiria esta Forma] separada de noacutes e de todos tais como somos

noacutesrdquo

Conforme observa Vlastos durante toda esta arguiccedilatildeo as expressotildees χωρίς

e αὐτὸ καθ αὑτό ldquosatildeo usadas intercaladamente para enunciar a mesma tese

metafiacutesica (metaphysical claim)rdquo (Vlastos 1991 p259) Como Soacutecrates natildeo se

manifesta contra a assimilaccedilatildeo do significado destas duas expressotildees e aceita sem

ressalvas o paralelismo estabelecido por Parmecircnides natildeo temos razatildeo para

duvidar de que as proposiccedilotildees ldquoA Forma F eacute separadardquo e ldquoA Forma F eacute em si e

por sirdquo possuem o mesmo significado e expressam o mesmo fato ontoloacutegico

A identidade entre o significado das expressotildees χωρίς e αὐτὸ καθ αὑτό

natildeo nos seria uacutetil contudo caso natildeo soubeacutessemos o que Soacutecrates entende pela

afirmaccedilatildeo de que as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὸ καθ αὑτό) No

entanto como vimos anteriormente a afirmaccedilatildeo de que as Formas satildeo ldquoem si e

por sirdquo eacute extremamente recorrente nos diaacutelogos e devemos entendecirc-la como

equivalente agrave tese da independecircncia ontoloacutegica das Formas As Formas satildeo ditas

αὐτὰ καθ αὑτὰ devido ao fato de apresentarem um modo de existecircncia

independente com relaccedilatildeo aos objetos sensiacuteveis que delas participam No

Banquete (211a5-b6) por exemplo a foacutermula ainda mais enfaacutetica αὐτὸ καθ αὑτὸ

microεθ αὑτοῦ eacute usada para expressar o modo de existecircncia autossuficente da Forma

do Belo que natildeo eacute afetada em absoluto pelas vicissitudes que as coisas belas do

mundo empiacuterico estatildeo fadadas a sofrer Pois ldquo() nem o nascimento nem a morte

destas coisas o fazem aumentar ou diminuir ou lhe produzem qualquer efeitordquo

(οἷον γιγνοmicroένων τε τῶν ἄλλων καὶ ἀπολλυmicroένων microηδὲν ἐκεῖνο microήτε τι πλέον

microήτε ἔλαττον γίγνεσθαι microηδὲ πάσχειν microηδέν) Gozando de uma modo de

existecircncia plenamente independente e natildeo dependendo de qualquer tipo de relaccedilatildeo

com outras entidades para ser aquilo que eacute o Belo ele mesmo permaneceraacute ldquosendo

sempre uacutenico em aspectordquo (microονοειδὲς ἀεὶ ὄν)

No Feacutedon Soacutecrates usa o mesmo paralelismo entre χωρίς (representado

pelo verbo χωρίζω) e αὐτὸ καθ αὑτό para explicar como o evento da morte que

nada mais eacute do que a separaccedilatildeo da alma do corpo faz com que estes dois

elementos passem a existir em si e por si ou seja de maneira independente

(Feacuted64C5-8) A morte significa para alma o fim da longa dependecircncia

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estabelecida com o corpo ao qual estava relacionada durante a encarnaccedilatildeo Apoacutes a

morte tanto o corpo quanto a alma passam a gozar de um modo de existecircncia

separado O corpo existiraacute de maneira independente poreacutem apenas pelo breve

espaccedilo de tempo que separa o evento da morte de sua dissoluccedilatildeo total enquanto a

alma continuaraacute a existir separada e independente mesmo apoacutes o

desaparecimento do corpo

Em ambas as passagens a locuccedilatildeo αὐτὸ καθ αὑτό eacute usada para designar o

estatuto ontoloacutegico independente de uma entidade Sendo assim dado o

paralelismo apontado por Vlastos entre a afirmaccedilatildeo de que ldquoA Forma F eacute em si e

por sirdquo e a afirmaccedilatildeo de que ldquoA Forma F eacute separadardquo podemos concluir que

Soacutecrates ao concordar que as Formas satildeo entidades separadas estaacute se

comprometendo com a tese de que as Formas existem de maneira completamente

independente dos objetos sensiacuteveis que delas participam natildeo necessitando deles

para serem aquilo que elas satildeo29

A insistecircncia de Parmecircnides sobre a questatildeo da separaccedilatildeo das Formas

representa seu reconhecimento de que a Teoria das Ideias apresentada por

Soacutecrates estaacute fundamentalmente vinculada agrave independecircncia ontoloacutegica destas

entidades Para que as Formas se apresentem como soluccedilatildeo agraves contradiccedilotildees do

mundo empiacuterico eacute imprescindiacutevel que estas entidades demonstrem-se aptas a

manter suas caracteriacutesticas ontoloacutegicas fundamentais a despeito do que aconteccedila

com os objetos que delas participam e sobretudo a despeito de como seja

entendida a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que as vincula aos objetos sensiacuteveis Assim a

29 Alguns comentadores entendem que a pergunta de Parmecircnides pressupotildee a simetria da relaccedilatildeo

de ldquoseparaccedilatildeordquo isto eacute se x eacute separado de y entatildeo y eacute separado de x Este fato por si soacute seria suficiente para descartarmos a hipoacutetese de que o termo χωρίς e por extensatildeo a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτό possam implicar independecircncia ontoloacutegica Afinal a Teoria das Ideias certamente afirma a independecircncia ontoloacutegica das Formas frente aos objetos sensiacuteveis Poreacutem segundo estes autores a afirmaccedilatildeo da indenpendecircncia ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis frente agraves Formas estaacute em clara contradiccedilatildeo com a Teoria das Ideias Portanto como Soacutecrates aceita sem ressalvas a formulaccedilatildeo de Parmecircnides devemos entender o termo χωρίς em algum dos sentidos que natildeo implicam a independecircncia ontoloacutegica da entidade separada (cf Gill 1996 p17 n23) ou devemos admitir que o jovem Soacutecrates natildeo estaacute completamente ciente da tese com a qual estaacute se comprometendo e aceita a independecircncia ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por engano (cf Allen 1997 p23-23) Vlastos apresenta um contra-argumento a estes autores afirmando que este tipo de interpretaccedilatildeo deriva de uma leitura errocircnea do texto Segundo Vlastos natildeo haacute razatildeo para acreditarmo que a relaccedilatildeo de separaccedilatildeo estaacute sendo tratada como uma relaccedilatildeo simeacutetrica porque as ocorrecircncias de χωρίς em 130b2 e b3 devem ser entendida como adveacuterbios de διῄρησαι Assim em b2-3 natildeo estamos falando de ldquoexistir separadamenterdquo mas de ldquodistinguir separadamenterdquo e a afirmaccedilatildeo do modo de existecircncia separado das Formas soacute aconteceria na sentenccedila seguinte b4 onde natildeo haacute sinal algum de simetria (cf Vlastos 1991 p 256)

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ecircnfase no tema da separaccedilatildeo durante a fala de abertura da argumentaccedilatildeo de

Pamecircnides antecipa ao leitor do diaacutelogo o conteuacutedo das criacuteticas que se seguiratildeo

Como veremos os argumentos de Parmecircnides pretendem demonstrar justamente

a impossibilidade das Formas preservarem sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica distintiva

enquanto estejam vinculadas aos objetos sensiacuteveis por meio da relaccedilatildeo de

participaccedilatildeo

O questionamento parmeniacutedico contudo natildeo termina por ai e suas duas

perguntas iniciais satildeo oferecidas em uma uacutenica sentenccedila como dois problemas

intimamente conectados Assim sua segunda questatildeo (130b3-4) eacute enunciada

como um mero corolaacuterio da primeira (130b2-3) se as Formas satildeo entidades

separadas dos objetos sensiacuteveis e estes objetos por sua vez satildeo separados das

Formas haveria entatildeo uma Forma do Semelhante separada da semelhanccedila que as

coisas sensiacuteveis possuem

Soacutecrates responde afirmativamente agraves duas perguntas reconhecendo a

existecircncia de uma Forma do Semelhante separada tanto dos objetos sensiacuteveis

quanto da semelhanccedila que haacute em noacutes Deste modo Parmecircnides torna expliacutecito

aquilo que jaacute havia sido antecipado pelo aparecimento da expressatildeo αὐτὰ τὰ

ὅmicroοιά isto eacute que a teoria apresentada por Soacutecrates pressupotildee a distinccedilatildeo natildeo

somente entre Formas e objetos sensiacuteveis mas tambeacutem entre Formas e

propriedades imanentes Portanto de acordo com Soacutecrates se estamos falando de

dois homens semelhantes entre si nossa anaacutelise pressupotildee a distinccedilatildeo de trecircs tipos

de entidades 1) a Forma do Semelhante 2) os indiviacuteduos em questatildeo e 3) a

semelhanccedila que estes indiviacuteduos possuem devido ao fato de participarem da

Forma do Semelhante

Como Parmecircnides demonstra perceber a distinccedilatildeo entre Formas e

propriedades imanentes eacute uma consequecircncia direta da hipoacutetese da separaccedilatildeo das

Formas As Formas satildeo entidades em si e por si separadas dos objetos sensiacuteveis

mas ao mesmo tempo se apresentam como causas das caracteriacutesticas destes

objetos Sendo assim eacute preciso supor a existecircncia de um resultado nas coisas da

accedilatildeo causal exercida pelas Formas Neste momento da discussatildeo nenhuma

informaccedilatildeo eacute passada ao leitor acerca do estatuto ontoloacutegico deste terceiro

elemento a natildeo ser o fato de que esta entidade encontra-se nas coisas sendo

portanto presente nos objetos sensiacuteveis Parmecircnides iraacute solucionar esta carecircncia

de informaccedilatildeo durante a enunciaccedilatildeo do seu ldquodilema da participaccedilatildeordquo Segundo

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este dilema soacute haacute duas possibilidades de compreensatildeo para o que satildeo as

propriedade imanentes ou bem estas entidades satildeo as proacuteprias Formas presentes

por inteiro nos objetos que delas participam ou bem satildeo partes de Formas

compartilhadas pelos objetos sensiacuteveis por meio da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo

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422 A extensatildeo do conjunto de Formas

Apoacutes se certificar da separaccedilatildeo entre Formas objetos sensiacuteveis e

propriedades imanentes Parmecircnides realiza trecircs perguntas acerca da extensatildeo do

conjunto de Formas Claramente sua intenccedilatildeo eacute determinar para que tipo de

coisas existe uma Formas correspondente De um ponto de vista dramaacutetico seu

interesse sobre esta questatildeo eacute extremamente natural Parmecircnides acabara de ser

apresentado agrave Teoria das Ideias e a primeira duacutevida que lhe surge eacute quais Formas

existem

Soacutecrates jaacute havia concordado que existem as Formas do Semelhante do

Dessemelhante do Um do Muacuteltiplo do Repouso e do Movimento Estas Formas

correspondem a termos gerais de aplicaccedilatildeo irrestrita pois todo elemento da

realidade precisa possuir senatildeo cada um destes pares de predicados ao menos um

membro de cada par30 Parmecircnides natildeo se deteacutem nestas Formas e se refere a elas

apenas pela designaccedilatildeo geneacuterica de ldquoas coisas que haacute pouco ouviste de Zenatildeordquo

(130b5)31

Por outro lado Parmecircnides se mostra bastante interessado em saber se

Soacutecrates admite aleacutem de Formas correspondentes a termos de aplicaccedilatildeo irrestrita

ldquouma Forma em si e por si do Justo e tambeacutem do Belo e do Bom e ainda de todas

as coisas deste tipordquo Ao que Soacutecrates responde confiantemente que sim (130b7-

10)

Ora termos com ldquoo belordquo ldquoo bomrdquo e ldquoo justordquo exemplificam as virtudes

que encontramos em diaacutelogos relacionados agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees

(δίκαιος Eut12d HiacuteppMa287c Goacuterg483d 492a Prot329c-330c Mecircn73e

30 Ryle denomina estes predicados de ldquoconceitos formaisrdquo e enfatiza o fato de que eles se

diferenciam natildeo apenas pela sua universalidade de aplicaccedilatildeo mas tambem pelo seu tipo loacutegico Pois um conceito deste tipo natildeo eacute ldquoespeciacutefico a um toacutepico mas integral a todos os toacutepicos de discurso (subject-matter) (Ryle 1965 p115) Posteriormente Ryle se refere a estes conceitos como ldquosincategoremaacuteticosrdquo (Ryle 165 p131) Gill e Turnbull por sua vez chamam as Formas correspondentes a estes predicados de ldquoFormas estruturaisrdquo (Gill 2012 p29) e (Turnbull 1998 p19) Estes autores parecem estar corretos em identificar a universalidade de aplicaccedilatildeo destes termos como seu caraacuteter distintivo Curiosamente os comentaacuterios mais antigos identificam este grupo de Formas como correspondente a termos matemaacuteticos mas este natildeo parece ser o ponto em questatildeo uma vez que ldquorepousordquo e ldquomovimentordquo estatildeo incluidos na lista

31 No Feacutedro estes mesmo predicados satildeo relacionados ao tipo de argumentaccedilatildeo desenvolvida por Zenatildeo Neste diaacutelogo Soacutecrates afirma que o Palamendes de Eleacuteia (Zenatildeo) eacute capaz de fazer sua audiecircncia crer que as coisas satildeo simultaneamente semelhantes e dessemelhantes unas e muacuteltiplas em repouso e em movimento (Feacutedr261d)

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καλός Liacutes216d HiacuteppMa 287d-304e ἀγαθός Liacutes216d HiacuteppMa287c

Mecircn87d Goacuterg495a Prot352c) Como vimos estes diaacutelogos conteacutem

argumentos em que expressotildees como ldquoo Belo em sirdquo e ldquoa Forma do Belordquo satildeo

entendidas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder causal

exercido por estas entidades nos levou ainda a reconhecer a independecircncia e

prioridade ontoloacutegica inerente a elas e a concluir que a busca por definiccedilotildees dos

diaacutelogos iniciais deve ser entendida desde sempre como uma busca pela Forma

das virtudes e termos morais ali mencionados Nos diaacutelogos da fase meacutedia

Formas correspondentes a virtudes continuam a receber papel proeminente como

por exemplo no Feacutedon (65d 70d-71e 76d 100c-d) no Banquete (210e-211d) e

na Repuacuteblica (479a-b) Sendo assim ao aceitar a existecircncia de Formas

correspondentes a virtudes valores morais e valores eacuteticos Soacutecrates natildeo estaacute

fazendo nada mais do que manter-se coerente com aquilo que um leitor dos

diaacutelogos platocircnicos esperaria

O segundo grupo de Formas a despertar o interesse de Parmecircnides

corresponde ao que chamariacuteamos de termos sortais ldquohomemrdquo ldquofogordquo e ldquoaacuteguardquo32

As perguntas anteriores mencionam Formas correspondentes a adjetivos

predicados incompletos ou caracteriacutesticas das coisas Parmecircnides agora

questiona Soacutecrates acerca da existecircncia de Formas correspondentes a substantivos

ou expressotildees nominais usadas para designar tipos ou classes de coisas Soacutecrates

natildeo se mostra seguro acerca da existecircncia destas Formas mas tambeacutem natildeo nega

que elas possam existir afirmando apenas ter ficado muitas vezes em aporia

acerca deste assunto (130c1-4)

A inseguranccedila de Soacutecrates acerca da existecircncia de Formas correspondentes

a termos sortais eacute facilmente compreendida se levarmos em conta que nos

diaacutelogos anteriores ao Parmecircnides as Formas satildeo apresentadas sobretudo como

uma tentativa de solucionar problemas relacionados com a copresenccedila de opostos

nas coisas sensiacuteveis No primeiro grupo de diaacutelogos Soacutecrates sai em busca de

uma definiccedilatildeo precisa para termos morais por perceber que casos exemplares de

32 Estritamente falando ldquoaacuteguardquo e ldquofogordquo natildeo satildeo termos sortais pelo fato de natildeo poderem receber

adjetivos numeacutericos Assim ldquocubo de gelordquo eacute um termo sortal porque podemos falar ldquotrecircs cubos de gelordquo poreacutem o mesmo natildeo acontece com ldquoaacuteguardquo e ldquofogordquo A caracteriacutestica fundamental que une este grupo de termos eacute portanto o fato de constituirem elementos com funccedilatildeo nominal aos quais adjetivos e predicados satildeo atribuidos e que satildeo oferecidos como resposta a questotildees do tipo ldquoo que eacute istordquo No Fileacutebo (15a) Soacutecrates menciona uma Forma de Homem e no Timeu (51b) uma Forma do Fogo eacute mencionada

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demonstraccedilatildeo de uma determinada virtude podem aparecer sob certos aspectos ou

determinadas condiccedilotildees como um exemplo do viacutecio exatamente oposto Assim

ldquodevolver a cada um o que lhe eacute proacutepriordquo (RepI 331c) pode ser considerado um

exemplo de justiccedila No entanto no caso de algueacutem tomado pela loucura exigir a

devoluccedilatildeo de suas armas a mesma definiccedilatildeo estaraacute apresentando uma caso

daquilo que eacute o oposto da justiccedila Do mesmo modo levar a julgamento aquele que

comete um crime em mateacuteria religiosa parece fazer parte daquilo que eacute a piedade

poreacutem caso esta pessoa seja seu proacuteprio pai e o julgamento venha a levaacute-lo a

morte o mesmo tipo de ato teraacute como resultado um parriciacutedio o pior e mais iacutempio

dos casos de derramamento de sangue

Durante a fase meacutedia o problema da co-presenccedila de opostos continua a

receber um papel de destaque Em uma passagem da Repuacuteblica VII (523a-524e) a

busca por uma soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila de opostos eacute apresentada

por Soacutecrates como a proacutepria razatildeo para o surgimento da Teoria das Ideias

Segundo Soacutecrates eacute o fato de um mesmo dedo parecer simultaneamente grande e

pequeno que nos leva a formular questotildees do tipo ldquoo que eacute o granderdquo ldquoo que eacute o

pequenordquo e a concluir que o Grande e o Pequeno devem ser afirmados como um

tipo de coisa separada dos objetos sensiacuteveis Contudo o dedo enquanto dedo

nunca se apresenta como o contraacuterio de si mesmo e a mente da maioria dos

homens natildeo eacute levada a formular a pergunta o que eacute o dedo E como

consequecircncia a mente da maioria dos homens tambeacutem natildeo eacute levada a postular

uma Forma correspondente ao termo sortal ldquodedordquo

Esta passagem da Repuacuteblica VII assim como nossa passagem do

Parmecircnides natildeo nega a existecircncia de Formas correspondentes a termos como

ldquodedordquo e ldquohomemrdquo De fato no livro X da Repuacuteblica o proacuteprio Soacutecrates afirma

ter o haacutebito de assumir a existecircncia de uma Forma uacutenica para cada conjunto de

coisas muacuteltiplas agraves quais chamamos por um mesmo nome (εἶδος γάρ πού τι ἓν

ἕκαστον εἰώθαmicroεν τίθεσθαι περὶ ἕκαστα τὰ πολλά οἷς ταὐτὸν ὄνοmicroα ἐπιφέροmicroεν

Rep596a6-7) Igualmente em uma passagem sobre do ldquoprodutor de nomesrdquo

(ὀνοmicroατουργός) do Craacutetilo (389a-390a) o mesmo princiacutepio segundo o qual

haveria uma Forma para cada palavra parece estar em jogo No proacuteprio

Parmecircnides Soacutecrates reconhece a possibilidade de uma aceitaccedilatildeo bastante

abrangente para o contigente de Formas afirmando jaacute ter considerado a

possibilidade do princiacutepio de postulaccedilatildeo das Formas ser ldquoo mesmo com relaccedilatildeo a

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todas as coisasrdquo (περὶ πάντων ταὐτόν 130d5-6) A proacutepria observaccedilatildeo de

Parmenides que conclui a passagem sobre a extensatildeo do conjunto de Formas

parece apontar na mesma direccedilatildeo ao prever que nenhuma destas coisas seraacute

desprezada por Soacutecrates assim que a filosofia dele se apoderar completamente

(130e1-4)

Sendo assim a duacutevida demonstrada pelo jovem Soacutecrates acerca da

existecircncia de Formas correspondentes a termos sortais deve ser entendida em

paralelo com a passagem sobre o dedo na Repuacuteblica como um testemunho de

Platatildeo acerca da origem da Teoria das Ideias Ao que tudo indica as Formas foram

primeiro propostas como uma tentativa de soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos tanto no caso dos predicados incompletos e propriedades relacionais

dos objetos sensiacuteveis quanto no caso das virtudes e valores morais que se

negavam a ser capturados por uma soacute definiccedilatildeo As falas de Soacutecrates e

Parmecircnides em 130d5-e4 nos levam a crer que na eacutepoca de composiccedilatildeo do

Parmecircnides o nuacutemero de Formas admitidas jaacute havia sido expandido o suficiente

para incluir uma Forma correspondente a cada conjunto de muacuteltiplas coisas que

chamamos pelo mesmo nome confirmando assim a impressatildeo que nos chega dos

diaacutelogos da fase meacutedia

Em oposiccedilatildeo a estas admissotildees Soacutecrates se mostra definitivamente contra

a existecircncia de Formas correspondentes a um quarto grupo de termos enunciado

por Parmecircnides constituiacutedo por cabelo lama e sujeira (θρὶξ καὶ πηλὸς καὶ ῥύπος

) e afirma que acreditar na existecircncia destas Formas seria por demais absurdo

(130d4) Mas por que Soacutecrates se negaria admitir a existecircncia destas Formas

A explicaccedilatildeo mais comumente apresentada pelos comentadores baseia-se

no fato de que coisas como cabelo lama e sujeira seriam indignas e ignoacutebeis

demais para serem harmonizadas com a grandiloquecircncia das descriccedilotildees acerca da

natureza divina das Formas encontradas em diaacutelogos como Banquete e

Repuacuteblica33 De fato esta interpretaccedilatildeo parece estar sugerida pela fala de

Parmecircnides que caracteriza estas coisas como ridiacuteculas (γελοῖα) despreziacuteveis

(ἀτιmicroότατόν) e vis (φαυλότατον) No entanto podemos atribuir um significado

33 El Murr por exemplo afirma ldquoSe Soacutecrates natildeo pode admitir que existe uma Forma de Lama eacute

evidentemente porque ele confunde a questatildeo do valor e a questatildeo da essecircncia porque ele pensa que uma Forma da lama coisa de pouco valor seria uma Forma de pouco valorrdquo (El Murr 2010 p145) Para outros autores que defendem esta mesma linha de raciociacutenio (cf Allan 1997 p124) (cf Cornford 1951 p83) (cf Miller 1986 p 45-46) (cf Turnbull 1998

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mais profundo para a recusa de Soacutecrates caso estejamos dispostos a reconhecer

nestes exemplos uma antecipaccedilatildeo dos problemas vinculados agrave relaccedilatildeo partetodo

que encontraremos de maneira recorrente no restante das criacuteticas de Parmecircnides

agrave hipoacutetese das Formas

Soacutecrates havia se mostrado relutante poreacutem natildeo havia negado a existecircncia

de uma Forma de Homem Parmecircnides deseja saber agora se precisamos de uma

Forma de Cabelo uma vez que tenhamos admitido uma Forma de Homem Um

homem eacute um todo composto por diversas partes como ressaltado por Soacutecrates

que usa a si proacuteprio como exemplo (129c4-d1) Seria tambeacutem a Forma do

Homem um todo composto por partes Se sim seriam entatildeo as Formas do

Cabelo e do Dedo partes da Forma do Homem Mas e estas Formas seriam elas

tambeacutem entidades compostas cujas partes corresponderiam aos componentes do

dedo e do cabelo sensiacuteveis Se natildeo entatildeo precisariacuteamos de uma Forma separada

para cada parte do corpo humano E para as partes destas partes teriacuteamos uma

Forma correspondente a cada componente do corpo humano ateacute chegarmos a um

elemento sensiacutevel completamente indivisiacutevel Por outro lado seria necessaacuterio

uma Forma de Lama caso exista uma Forma para os dois elementos a partir dos

quais a lama eacute composta terra e de aacutegua (cfTeet147c) Ou seria a lama sensiacutevel

apenas o resultado da presenccedila destas duas Formas em um uacutenico objeto Por fim

teria a sujeira uma natureza proacutepria um caraacuteter determinado Ou seria a sujeira

apenas um agregado de pequenas partes de outras coisas como terra e cabelo

cada uma delas correspondendo a uma Forma especiacutefica

As questotildees de Parmecircnides acerca da extensatildeo do conjunto de Formas natildeo

chegam a constituir propriamente uma tentativa de refutaccedilatildeo da teoria apresentada

por Soacutecrates Contudo esta primeira bateria de perguntas deixa claro ao leitor que

a hipoacutetese das Formas estaacute sujeita a criacuteticas como de fato estaacute sujeita toda e

qualquer teoria De um ponto de vista dramaacutetico estas perguntas realizam a

transiccedilatildeo entre a apresentaccedilatildeo da Teoria das Ideias e a refutaccedilatildeo desta teoria que

se daraacute no restante do diaacutelogo Atraveacutes desta pequena passagem Platatildeo apresenta

a seus leitores ateacute entatildeo acostumados a ver Soacutecrates como protagonista e

condutor principal da argumentaccedilatildeo uma clara inversatildeo de papeacuteis No restante do

Parmecircnides ao inveacutes de encontramos o Soacutecrates confiante e eloquente da Feacutedon e

p22-23)

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do Banquete ou o Soacutecrates irocircnico e refutador do Ecircutifron e do Laacuteques

encontraremos um Soacutecrates receoso e reticente preza dos ataques de Parmecircnides

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423 O dilema da Participaccedilatildeo

Parmecircnides inicia sua efetiva reduccedilatildeo ao absurdo da Teoria das Ideias por

meio de uma reapresentaccedilatildeo sumaacuteria da posiccedilatildeo socraacutetica

ldquoMas dize-me o seguinte34 parece-te como dizes haver certas Formas em tendo participaccedilatildeo nas quais essas outras coisas aqui recebem suas denominaccedilotildees Por exemplo se tecircm participaccedilatildeo na Semelhanccedila as coisas se tornam semelhantes se na Grandeza grandes se no Belo e na Justiccedila justas e belas Perfeitamente disse Soacutecratesrdquo τόδε δ οὖν microοι εἰπέ δοκεῖ σοι ὡς φῄς εἶναι εἴδη ἄττα ὧν τάδε τὰ ἄλλα microεταλαmicroβάνοντα τὰς ἐπωνυmicroίας αὐτῶν ἴσχειν οἷον ὁmicroοιότητος microὲν microεταλαβόντα ὅmicroοια microεγέθους δὲ microεγάλα κάλλους δὲ καὶ δικαιοσύνης δίκαιά τε καὶ καλὰ γίγνεσθαι Πάνυ γε φάναι τὸν Σωκράτη (130e4-131a1)

Nesta passagem Parmecircnides reduz a posiccedilatildeo socraacutetica a trecircs proposiccedilotildees

fundamentais 1) existem Formas 2) os objetos sensiacuteveis (τάδε τὰ ἄλλα)

participam nestas Formas e 3) devido a esta de participaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis

recebem os nomes pelos quais satildeo chamados A tese segundo a qual as coisas

recebem suas denominaccedilotildees devido ao fato de participarem nas Formas

conhecida como tese da eponiacutemia (ἐπωνυmicroία) natildeo havia sido mencionada por

Soacutecrates No entanto devemos entendecirc-la como um mero corolaacuterio linguiacutestico da

hipoacutetese de que as Formas satildeo causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis As

coisas recebem suas denominaccedilotildees pelo fato de apresentarem as caracteriacutesticas e

propriedades que apresentam Como as Formas satildeo as causas destas propriedades

Parmecircnides deduz corretamente que as coisas recebem suas denominaccedilotildees em

funccedilatildeo da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que mantecircm com as Formas 35

Como sabemos de acordo com a Teoria das Ideias o fato de que Simmias

eacute grande pressupotildee a existecircncia de duas entidades ontologicamente distintas

34 Platatildeo marca de maneira muito clara o iniacutecio de uma nova seacuterie de argumento pela frase ldquoτόδε δ οὖν microοι εἰπέrdquo Do mesmo modo o iniacutecio da passagem acerca da extensatildeo do conjunto de Formas havia sido marcado pelas palavras ldquoκαί microοι εἰπέrdquo (130b1) e posteriormente a introduccedilatildeo do argumento do terceiro homem seraacute marcado pela expressatildeo ldquoπρὸς τόδε πῶς ἔχειςrdquo (131e8) 35 Como observa Cornford (Cornford 1951 p84 n2) esta fala de Parmecircnides traz uma

referecircncia bastante direta agrave passagem do Feacutedon em que Soacutecrates propotildee sua teoria da participaccedilatildeo como uma soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila de opostos em Simmias Compare ldquoὧν τάδε τὰ ἄλλα microεταλαmicroβάνοντα τὰς ἐπωνυmicroίας αὐτῶν ἴσχεινrdquo (Parm130e5-6) com ldquoκαὶ τούτων τἆλλα microεταλαmicroβάνοντα αὐτῶν τούτων τὴν ἐπωνυmicroίαν ἴσχεινrdquo (Feacuted102b1-2)

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Simmias e a Forma da Grandeza Aleacutem disso como Soacutecrates jaacute havia antecipado

pelo uso da expressatildeo αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e como o proacuteprio Parmecircnides jaacute havia

concluiacutedo em 130b3-4 o fato de que Simmias eacute grande pressupotildee ainda a

existecircncia da propriedade imanente grandeza-em-Simmias (Parm130b4 αὐτὴ

ὁmicroοιότης χωρὶς ἧς ἡmicroεῖς ὁmicroοιότητος ἔχοmicroεν Feacuted102d7 τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος

Feacuted103b5 οὔτε τὸ ἐν ἡmicroῖν [ἐναντίον] οὔτε τὸ ἐν τῇ φύσει) Diferente da Forma

que lhe daacute origem uma propriedade imanente eacute ontologicamente dependente do

indiviacuteduo na qual estaacute localizada Afinal sua existecircncia estaacute intimamente

conectada com a existecircncia do indiviacuteduo que a possui e podemos considerar que

caso este indiviacuteduo deixe de ser grande de todos os modos possiacuteveis a

propriedade imanente da grandeza que este indiviacuteduo apresentava cessaraacute de

existir

Podemos nos perguntar agora como estas trecircs entidades estatildeo

relacionadas Soacutecrates havia sugerido que os objetos sensiacuteveis participam das

Formas e como resultado desta participaccedilatildeo adquirem suas diversas

propriedade36 No entanto o poder causal exercido pelas Formas natildeo pode ser

considerado por si soacute suficientemente elucidativo Haacute de haver um modo

especiacutefico de relaccedilatildeo entre estas entidades que explique como as Formas podem

ser responsaacuteveis pelo surgimento das propriedades imanentes nos objetos

sensiacuteveis Parmecircnides deseja saber portanto como devemos entender a relaccedilatildeo de

participaccedilatildeo de modo a tornarmos teoricamente viaacutevel a hipoacutetese de que as coisas

sensiacuteveis adquirem suas propriedades imanentes por causa das Formas

No Feacutedon Soacutecrates havia se recusado a explicitar a natureza desta relaccedilatildeo

oferecendo de maneira inconclusiva os termos ldquopresenccedilardquo e ldquocomunhatildeordquo como

modos possiacuteveis de descrevecirc-la

ldquoNada aleacutem do Belo torna esta coisa bela seja pela sua presenccedila (παρουσία) seja

36 Assim no Parmecircnides (129a4-5) certas coisas ldquotendo participaccedilatildeo na Semelhanccedila se tornam

semelhantesrdquo (τὰ microὲν τῆς ὁmicroοιότητος microεταλαmicroβάνοντα ὅmicroοια γίγνεσθαι) isto eacute passam a possuir a propriedade imanente da semelhanccedila ldquopor causa disso e na medida em que nela tenham participaccedilatildeordquo (ταύτῃ τε καὶ κατὰ τοσοῦτον ὅσον ἂν microεταλαmicroβάνῃ) E no Feacutedon (100c4-6) ldquoSe existe alguma coisa bela aleacutem do Belo em si a uacutenica razatildeo pela qual esta coisa eacute bela eacute porque ela participa da Belo em si E digo o mesmo com relaccedilatildeo a todo o restordquo (εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν οὐδὲ δι ἓν ἄλλο καλὸν εἶναι ἢ διότι microετέχει ἐκείνου τοῦ καλοῦ καὶ πάντα δὴ οὕτως λέγω) Nestas passagens Soacutecrates deixa claro por meio do emprego do dativo instrumental da conjunccedilatildeo διότι e da preposiccedilatildeo κατά + acusativo que eacute unicamente pela participaccedilatildeo nas Formas que as coisas adquirem as diversas propriedades que possuem

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pela comunhatildeo (κοινωνία) ou como quer que ele [o Belo] venha a se adicionar agraves coisas (ὅπῃ δὴ καὶ ὅπως προσγενοmicroένη) pois natildeo irei insistir nisto apenas que eacute pelo Belo que todas as coisas belas se tornam belasrdquo οὐκ ἄλλο τι ποιεῖ αὐτὸ καλὸν ἢ ἡ ἐκείνου τοῦ καλοῦ εἴτε παρουσία εἴτε κοινωνία εἴτε ὅπῃ δὴ καὶ ὅπως προσγενοmicroένη οὐ γὰρ ἔτι τοῦτο διισχυρίζοmicroαι ἀλλ ὅτι τῷ καλῷ πάντα τὰ καλὰ [γίγνεται] καλά (Fed100d4-7)

No Parmecircnides apenas duas alternativas satildeo inicialmente apresentadas

ou bem 1) cada coisa que participa de uma Forma participa na Forma inteira ou

bem 2) cada coisa que participa de uma Forma participa em uma parte da Forma

De acordo com 1) a propriedade imanente que um objeto sensiacutevel adquire como

consequecircncia da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo equivale agrave totalidade da Forma De

acordo com 2) esta propriedade imanente equivale a apenas uma parte da Forma

Soacutecrates aceita o dilema formulado por Parmecircnides e concorda ainda que estas

duas opccedilotildees satildeo exaustivas

ldquoNatildeo eacute verdade que cada uma das coisas que tecircm participaccedilatildeo ou bem tem participaccedilatildeo na Forma inteira ou bem em uma parte dela Ou haveria uma outra participaccedilatildeo aleacutem dessas Como poderia haver disse [Soacutecrates]rdquo Οὐκοῦν ἤτοι ὅλου τοῦ εἴδους ἢ microέρους ἕκαστον τὸ microεταλαmicroβάνον microεταλαmicroβάνει ἢ ἄλλη τις ἂν microετάληψις χωρὶς τούτων γένοιτο Καὶ πῶς ἄν εἶπεν (131a4-7)

Em sua forma o dilema anuncia uma reduccedilatildeo ao absurdo 1) Se as coisas

participam das Formas entatildeo elas participam no todo ou em parte de uma Forma

Contudo 2) natildeo pode haver participaccedilatildeo no todo das Formas nem em partes das

Formas Logo 3) natildeo haacute participaccedilatildeo isto eacute as coisas natildeo participam das Formas

A validade desta reduccedilatildeo depende diretamente do reconhecimento de que as duas

opccedilotildees previstas na premissa maior do argumento esgotam todas as possibilidades

de se pensar a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis Por isso

Parmecircnides pergunta a Soacutecrates se poderia haver algum outro tipo de participaccedilatildeo

aleacutem da participaccedilatildeo no todo ou em parte de uma Forma Neste primeiro

momento Soacutecrates concorda que natildeo poderia haver reconhecendo a completude

da premissa maior do argumento de Parmecircnides e se comprometendo

antecipadamente com a validade da reduccedilatildeo37

37 Posteriormente confrontado pelos paradoxos resultantes do dilema da participaccedilatildeo Soacutecrates

iraacute propor maneiras de entender a relaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que extrapolam as opccedilotildees previstas neste dilema inicial Contudo como veremos estas propostas tampouco se mostraratildeo imunes aos ataques do saacutebio eleata

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424 A estrutura do dilema de participaccedilatildeo

Eacute constantemente apontado pelos comentadores o fato de que o dilema da

participaccedilatildeo possuiria uma estrutura assimeacutetrica Enquanto o primeiro ramo do

dilema de acordo com o qual as coisas participam no todo de uma Forma levaria

a uma impossibilidade loacutegica a argumentaccedilatildeo que contradiz o segundo ramo do

dilema seria meramente ad hominen e resultaria em apenas um par de

contradiccedilotildees especiacuteficas restritas a um determinado conjunto de Formas Esta

interpretaccedilatildeo foi proposta pela primeira vez por Reginald Allen

ldquoSoacutecrates rejeita ambas disjunccedilotildees do Dilema da Participaccedilatildeo mas a modalidade destas disjunccedilotildees eacute bastante diferente A primeira disjunccedilatildeo dada a pluralidade de participantes envolve uma absurdidade loacutegica (hellip) A segunda disjunccedilatildeo seja verdadeira ou como Soacutecrates acredita falsa natildeo envolve uma absurdidade loacutegica (hellip) Portanto se natildeo haacute participaccedilatildeo no todo nem na parte da Ideia entatildeo natildeo haacute participaccedilatildeo mas se haacute participaccedilatildeo ela natildeo pode ser no todo mas deve ser na parte de uma Ideiardquo (Allen 1997 p133)

Apesar da aceitaccedilatildeo geral que a interpretaccedilatildeo de Allen tem recebido38 sua

leitura natildeo deve ser assumida de antematildeo Em primeiro lugar porque levanta o

seguinte problema interpretativo se o segundo ramo do dilema apresenta uma

opccedilatildeo logicamente viaacutevel por que Soacutecrates natildeo se apega a esta opccedilatildeo procurando

apresentar maneiras plausiacuteveis de entender as propriedades imanentes como partes

das Formas Ao contraacuterio do que seria esperado caso a participaccedilatildeo em partes das

Formas fosse a uacutenica opccedilatildeo logicamente possiacutevel Soacutecrates procura manter

durante toda seacuterie de argumentos a unidade das Formas se mostrando

decididamente contra a hipoacutetese de que elas possam ser divididas

Aleacutem disso a leitura assimeacutetrica para o dilema da participaccedilatildeo eacute

responsaacutevel por um problema interpretativo ainda mais fundamental que ameaccedila

a proacutepria relevacircncia das criacuteticas de Parmecircnides e como consequecircncia a unidade

temaacutetica do diaacutelogo Allen considera o segundo ramo do dilema como uma opccedilatildeo

logicamente viaacutevel por entender que apenas as Formas do Grande do Pequeno e

do Igual estatildeo sujeitas a paradoxos caso optemos pela participaccedilatildeo em partes das

38 Brisson (Brisson 2011 p37 n76) Curd (Curd 1986 p128) e Harte (Harte 2002 p66-67) dentre outros assumem a assimetria do dilema adotando a interpretaccedilatildeo proposta por Allen

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Formas Contudo os argumentos sobre estas trecircs Formas natildeo constituem o passo

decisivo na refutaccedilatildeo deste ramo do dilema Na verdade estes paradoxos apenas

ilustram algumas das consequecircncias indesejaacuteveis decorrentes da efetiva divisatildeo

das Formas que jaacute havia sido admitida por Soacutecrates em 131c9-10 Esta mudanccedila

de foco acaba impedindo Allen de reconhecer que eacute a proacutepria divisatildeo das Formas

o que leva agrave rejeiccedilatildeo da hipoacutetese da participaccedilatildeo em partes das Formas

Ao contraacuterio do que Allen acredita ambos os braccedilos do dilema apresentam

argumentos contra uma mesma tese cuja importacircncia eacute fundamental para a

validade da Teoria das Ideias a tese de que as Formas satildeo entidades uacutenicas

(singulares e indivisiacuteveis) e portanto essencialmente distintas dos objetos

sensiacuteveis

Em toda sua argumentaccedilatildeo Parmecircnides utiliza o adjetivo ldquoumrdquo de maneira

ambiacutegua ora para designar a singularidade (unidade numeacuterica) ora para designar

a uniformidade (indivisibilidade) de uma Forma O dilema da participaccedilatildeo

pretende demonstrar como estes dois sentidos de unidade natildeo podem ser

atribuiacutedos simultaneamente agraves Formas caso estas entidades estejam submetidas

agrave relaccedilatildeo de participaccedilatildeo Assim no primeiro ramo do dilema a integridade das

Formas natildeo eacute posta em questatildeo mas a sua singularidade eacute comprometida Pois

estando presentes por inteiro em cada um dos seus participantes as Formas se

multiplicariam e passariam a existir em nuacutemero igual ao das coisas que delas

participam Por outro lado no segundo ramo do dilema natildeo eacute mais a unidade

numeacuterica das Formas que eacute posta em questatildeo mas a sua indivisibilidade Pois

uma vez divididas pelos seus participantes as Formas passariam a ter tantas partes

quantos objetos que delas participam

Esta estrateacutegia estabelecida pelo dilema da participaccedilatildeo organiza todo o

conjunto de criacuteticas apresentadas por Parmecircnides na primeira parte do diaacutelogo E

eacute justamente isso que a leitura assimeacutetrica de Allen nos impede de reconhecer As

diversas criacuteticas apresentadas por Parmecircnides constituem passos distintos de um

mesmo argumento cujo uacutenico objetivo eacute demonstrar a impossibilidade de se

conceber as Formas como unidades perfeitas isto eacute singulares e indivisiacuteveis

O dilema da participaccedilatildeo reproduz em sua forma a estrateacutegia geral das

criacuteticas de Parmecircnides que pretendem demonstrar a incompatibilidade entre duas

teses centrais da Teoria das Ideias 1) a tese de que as Formas satildeo as causas das

propriedades dos objetos sensiacuteveis e 2) a tese de que as Formas satildeo entidades

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uacutenicas singulares e indivisiacuteveis Se observarmos a conclusatildeo de cada um dos

argumentos podemos ver que Parmecircnides insiste a todo instante na

impossibilidade de se manter simultaneamente estas duas afirmaccedilotildees

1) Se a participaccedilatildeo se daacute na totalidade da Forma entatildeo as Formas

satildeo indivisiacuteveis poreacutem natildeo satildeo numericamente uacutenicas (132b1-2

Ἓν ἄρα ὂν καὶ ταὐτὸν ἐν πολλοῖς καὶ χωρὶς οὖσιν ὅλον ἅmicroα

ἐνέσται καὶ οὕτως αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς ἂν εἴη)

2) Se a participaccedilatildeo se daacute em uma parte da Forma entatildeo as Formas

satildeo numericamente uacutenicas poreacutem natildeo satildeo indivisiacuteveis (132c9-

10Ἦ οὖν ἐθελήσεις ὦ Σώκρατες φάναι τὸ ἓν εἶδος ἡmicroῖν τῇ

ἀληθείᾳ microερίζεσθαι καὶ ἔτι ἓν ἔσται

2) Perceber uma Forma uacutenica sobre uma multiplicidade de objetos

sensiacuteveis implica em um regresso ao infinito e o que seria uma

Forma uacutenica mostra-se ldquoilimitada em quantidaderdquo (132b1-2καὶ

οὐκέτι δὴ ἓν ἕκαστόν σοι τῶν εἰδῶν ἔσται ἀλλὰ ἄπειρα τὸ

πλῆθος)

3) Sustentar que cada Forma eacute um ldquopensamentordquo (νόηmicroα) permite que

ela seja tanto uacutenica quanto indivisiacutevel Poreacutem neste caso a proacutepria

noccedilatildeo de participaccedilatildeo se mostra absurda (132c9-11 οὐκ ἀνάγκῃ ᾗ

τἆλλα φῂς τῶν εἰδῶν microετέχειν ἢ δοκεῖ σοι ἐκ νοηmicroάτων ἕκαστον

εἶναι καὶ πάντα νοεῖν ἢ νοήmicroατα ὄντα ἀνόητα εἶναι)

4) Sustentar que a Formas satildeo ldquoparadigmasrdquo (παραδείγmicroατα) garante

sua indivisibilidade poreacutem o regresso ao infinito resurge e as

Formas passam novamente a se multiplicar indefinidamente

(133a1-3 καὶ οὐδέποτε παύσεται ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον ἐὰν

τὸ εἶδος τῷ ἑαυτοῦ microετέχοντι ὅmicroοιον γίγνηται)

Como podemos perceber a duplicidade de sentido que o termo ἓν recebe

nos argumentos de Parmecircnides equivale agrave duplicidade de sentido que o termo

πολλά adquire durante a argumentaccedilatildeo de Zenatildeo De um ponto de vista dramaacutetico

a formulaccedilatildeo do dilema da participaccedilatildeo representa o momento em que

Parmecircnides aceitando o desafio lanccedilado por Soacutecrates inicia sua demonstraccedilatildeo de

que as Formas natildeo estatildeo aptas a manter as caracteriacutesticas ontoloacutegicas que as

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distinguem dos objetos sensiacuteveis e as tornam imunes ao paradoxo de Zenatildeo Caso

Soacutecrates natildeo se mostre capaz de articular uma explicaccedilatildeo para a hipoacutetese da

participaccedilatildeo que salve ao mesmo tempo a singularidade e a indivisibilidade das

Formas Parmecircnides teraacute demonstrado que as Formas natildeo constituem uma soluccedilatildeo

teoricamente viaacutevel para o paradoxo de abertura do diaacutelogo Afinal privadas de

sua singularidade e uniformidade caracteriacutesticas as Formas estaratildeo elas tambeacutem

sujeitas aos paradoxos de Zenatildeo O tema da unidade das Formas eacute portanto o

elemento fundamental de ligaccedilatildeo entre as criacuteticas de Parmecircnides e os argumentos

anteriormente desenvolvidos por Soacutecrates e Zenatildeo

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425 Participaccedilatildeo no todo da Forma

No primeiro ramo do dilema proposto por Parmecircnides os objetos

sensiacuteveis participam no todo de uma Forma (ὅλου τοῦ εἴδους) Como

consequecircncia as coisas recebem como sua propriedade imanente a totalidade de

uma Forma que por sua vez passa a estar presente (ἐν ἐνεῖναι) inteira em cada

um de seus participantes

ldquoEntatildeo parece-te que a Forma inteira sendo uma39 estaacute em cada uma das muacuteltiplas coisas Ou como seria ldquoMas o que impede Parmecircnides [que ela esteja que ela seja uma]40 Entatildeo sendo uma e a mesma estaraacute inteira simultaneamente em coisas que satildeo muacuteltiplas e separadas e assim ela estaria separada de si mesma41rdquo Πότερον οὖν δοκεῖ σοι ὅλον τὸ εἶδος ἐν ἑκάστῳ εἶναι τῶν πολλῶν ἓν ὄν ἢ πῶς Τί γὰρ κωλύει φάναι τὸν Σωκράτη ὦ Παρmicroενίδη [ἓν εἶναι ἐνεῖναι ] Ἓν ἄρα ὂν καὶ ταὐτὸν ἐν πολλοῖς καὶ χωρὶς οὖσιν ὅλον ἅmicroα ἐνέσται καὶ οὕτως αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς ἂν εἴη (131a8-b2)

Com este breve argumento Parmecircnides pretende demonstrar que para que

possam estar presentes por inteiro em uma multiplicidade de coisas distintas as

Formas precisam tambeacutem ser muacuteltiplas Apesar de extremamente conciso o

argumento pode ser entendido da seguinte maneira De acordo com a premissa de

participaccedilatildeo no todo de uma Forma se os objetos x y e z participam da Forma F

a Forma F estaacute presente por inteiro em x y e z Ora as variaacuteveis x y e z

representam objetos sensiacuteveis distintos ldquocoisas muacuteltiplas e separadasrdquo (πολλοῖς

καὶ χωρὶς) Sendo assim para que possa estar presente como um todo (ὅλον τὸ

39 ldquoSendo umardquo (ἓν ὄν) significa aqui ldquosendo numericamente uacutenicardquo Este sentido eacute mais

claramente explicitado em 131b1 pela expressatildeo ἓν ὂν καὶ ταὐτὸν ὅλον em que a qualificaccedilatildeo καὶ ταὐτὸν eacute acrescentada para destacar que segundo a hipoacutetese adotada uma mesma Forma uacutenica deve estar por inteiro em cada um dos muacuteltiplos participantes

40 A maior parte dos tradutores modernos leem a uacuteltima claacuteusula desta sentenccedila como ἐνεῖναι (que ela esteja) corrigindo os manuscritos antigos nos quais consta ἓν εἶναι (que seja uma) A hipoacutetese que jaacute aparece em Proacuteclus e foi ressucitada por Schleiermacher parece fazer sentido Afinal sem esta correccedilatildeo Soacutecrates estaria mudando o foco da discussatildeo e antecipando de maneira surpreendente a conclusatildeo do argumento de Parmecircnides A questatildeo contudo eacute irrelevante para validade de argumentaccedilatildeo aqui proposta uma vez que segundo nossa interpretaccedilatildeo Parmecircnides pretende demonstrar justamente a contradiccedilatildeo entre a hipoacutetese da presenccedila da Forma nas coisas (ἐνεῖναι) e a hipoacutetese de sua unidade (ἓν εἶναι)

41 ldquoSeparada de si mesmardquo (αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς) Uma vez que esta expressatildeo eacute apresentada em contraste com ἓν ὂν καὶ ταὐτὸν devemos enterder que ldquoseparar-se de si mesmordquo significa ldquomultiplicar-serdquo ldquotornar-se (numericamente) muacuteltiplordquo em oposiccedilatildeo a ldquomanter-se (numericamente) singularrdquo ou ldquoser um e o mesmordquo (ἓν ὂν καὶ ταὐτὸν)

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εἶδος) em cada uma destas coisas a Forma F deve ser ela mesma separada de si

mesma isto eacute muacuteltipla Portanto caso optemos pelo primeiro ramo do dilema da

participaccedilatildeo natildeo podemos falar de uma uacutenica Forma F pois o que temos eacute uma

diversidade de Formas Fx Fy e Fz cada uma das quais presente em um dos

objetos sensiacuteveis que participam de F

Eacute preciso notar que este argumento pressupotildee a participaccedilatildeo simultacircnea

de uma multiplicidade de coisas em uma mesma Forma Nenhuma contradiccedilatildeo

surgiria caso Soacutecrates estivesse disposto a reconhecer que a participaccedilatildeo se daacute de

maneira exclusiva com cada Forma tendo apenas um participante por vez Assim

Soacutecrates poderia participar da Forma do Homem apenas no caso de que Platatildeo

natildeo participasse no mesmo momento desta Forma Parmecircnides parece

reconhecer este fato e acrescenta a palavra ἅmicroα (simultaneamente) em sua

conclusatildeo do argumento Soacutecrates no entanto sequer considera a hipoacutetese de um

modo de participaccedilatildeo exclusivo Afinal a adoccedilatildeo de tal hipoacutetese significaria

privar as Formas de seu papel de causa universal o que tornaria a proacutepria relaccedilatildeo

de participaccedilatildeo irrelevante como explicaccedilatildeo para a diversidade de fenocircmenos do

mundo sensiacutevel

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426 Participaccedilatildeo em partes da Forma

Na tentativa de salvar a singularidade das Formas sem ter que abandonar

o caraacuteter muacuteltiplo e simultacircneo da participaccedilatildeo Soacutecrates apresenta uma analogia

uma Forma natildeo estaria separada de si mesma caso ela fosse como o dia que pode

estar em diferentes lugares sem perder sua singularidade isto eacute sem deixar de ser

um e o mesmo dia (ἡmicroέρα microία καὶ ἡ αὐτὴ)

ldquoNatildeo estaria disse ele se pelo menos como o dia que sendo um e o mesmo estaacute em muitos lugares simultaneamente e nem por isso estaacute ele mesmo separado de si mesmo se assim tambeacutem cada uma das Formas fosse uma e a mesma [estando] simultaneamente em todas as coisasrdquo Οὐκ ἄν εἴ γε φάναι οἷον [εἰ] ἡmicroέρα [εἴη] microία καὶ ἡ αὐτὴ οὖσα πολλαχοῦ ἅmicroα ἐστὶ καὶ οὐδέν τι microᾶλλον αὐτὴ αὑτῆς χωρίς ἐστιν εἰ οὕτω καὶ ἕκαστον τῶν εἰδῶν ἓν ἐν πᾶσιν ἅmicroα ταὐτὸν εἴη (131b3-6)

Parmecircnides responde propondo uma nova analogia

ldquoDe bela maneira Soacutecrates disse ele fazes uma e a mesma coisa [estar] simultaneamente em muitos lugares como se cobrindo com uma vela muitos homens dissesses ser ela inteira uma sobre muacuteltiplos Ou natildeo eacute algo deste tipo que acreditas estar dizendo Talvez disse elerdquo Ἡδέως γε φάναι ὦ Σώκρατες ἓν ταὐτὸν ἅmicroα πολλαχοῦ ποιεῖς οἷον εἰ ἱστίῳ καταπετάσας πολλοὺς ἀνθρώπους φαίης ἓν ἐπὶ πολλοῖς εἶναι ὅλον ἢ οὐ τὸ τοιοῦτον ἡγῇ λέγειν Ἴσως φάναι (131b7-c1)

Eacute comum entre os comentadores a opiniatildeo de que a metaacutefora apresentada

por Parmecircnides natildeo possui as mesmas virtudes da metaacutefora socraacutetica e que apenas

a inexperiecircncia do jovem Soacutecrates pode explicar a sua aceitaccedilatildeo da equivalecircncia

entre estas duas maneiras de entender a relaccedilatildeo entre Formas e coisas (cf Sayre

1996 p76) (cf Miller 1986 p49) Mas o que exatamente Soacutecrates poderia estar

entendendo por ldquodiardquo neste argumento Qual eacute o sentido de sua analogia e de que

maneira esta analogia poderia apresentar uma alternativa viaacutevel para compreensatildeo

da participaccedilatildeo no todo de uma Forma

A primeira opccedilatildeo eacute que Soacutecrates esteja entendo por ldquodiardquo a ldquoluz do diardquo

Neste caso a proposta de Parmecircnides eacute certamente equivalente e apenas torna

mais clara a metaacutefora socraacutetica Afinal a luz do dia possui uma natureza material

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e nada mais eacute do que uma espeacutecie de substacircncia homogecircnea que cobre

simultaneamente diferentes lugares A luminosidade do dia banha distintos

lugares exatamente como uma vela estendida sobre diversas pessoas Contudo

assim entendida a metaacutefora socraacutetica natildeo realiza o objetivo em vista do qual eacute

formulada O que Soacutecrates precisa demonstrar natildeo eacute meramente que a luz de um

mesmo dia ilumina diferentes lugares ao mesmo tempo Para que a metaacutefora

cumpra seu papel Soacutecrates precisa demonstrar como estes diferentes lugares

podem estar iluminados simultaneamente pela totalidade da luz de um mesmo

dia isto eacute como a luz do dia ldquosendo uma e a mesmardquo pode estar por inteiro em

cada um dos lugares que ilumina

A segunda opccedilatildeo de interpretaccedilatildeo para metaacutefora socraacutetica parece a

princiacutepio mais promissora Eacute possiacutevel que Soacutecrates esteja entendendo por ldquodiardquo o

periacuteodo de tempo em que esta luminosidade recobre a terra e que sendo um e o

mesmo estaria presente simultaneamente em Atenas e Esparta Neste caso a

analogia socraacutetica ldquoum dia sobre muitos lugaresrdquo possuiria o meacuterito de ressaltar a

imaterialidade das Formas o que eacute completamente perdido na analogia ldquouma vela

sobre muitas pessoasrdquo apresentada por Parmecircnides Pois quando Soacutecrates afirma

que o mesmo dia estaacute ao mesmo tempo em diferentes lugares o que ele estaacute

dizendo eacute que um mesmo intervalo de tempo ocorre simultaneamente em

lugares distintos Assim no mesmo intervalo de tempo em que Soacutecrates eacute julgado

em Atenas Lisandro se diverte em Esparta

Apesar de trivialmente correta esta segunda interpretaccedilatildeo para a analogia

do dia tampouco parece servir para os propoacutesitos de Soacutecrates Para que sua

metaacutefora lhe seja uacutetil na presente argumentaccedilatildeo Soacutecrates precisaria demonstrar

natildeo que diversas coisas acontecem simultaneamente em um mesmo dia mas que

o mesmo dia estaacute presente por inteiro em cada um dos momentos em que estas

coisas acontecem Ningueacutem negaria o fato de que um determinado momento do

dia ocorre simultaneamente em diferentes lugares Poreacutem o ponto em disputa eacute se

podemos ou natildeo entender cada um destes momentos como equivalentes agrave

totalidade de um mesmo dia Ora eacute claro que uma resposta afirmativa para esta

questatildeo seria absurda uma vez que colapsaria a totalidade de um dia em cada um

dos momentos de que eacute composto O dia entendido como um intervalo de tempo

possui duraccedilatildeo da mesma maneira que um objeto fiacutesico possui extensatildeo Sendo

assim os momentos sucessivos de um dia natildeo podem ser considerados idecircnticos agrave

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totalidade deste dia do mesmo modo que as diversas partes de um objeto extenso

natildeo satildeo idecircnticas agrave totalidade da qual fazem parte Aleacutem disso uma interpretaccedilatildeo

temporal para a metaacutefora do dia ainda estaacute sujeita agrave seguinte circularidade se

entendermos ldquosimultaneamenterdquo no seu sentido usual de ldquoao mesmo tempordquo a

analogia de Soacutecrates estaria afirmando que ldquoum mesmo intervalo de tempordquo

ocorre ldquoao mesmo tempordquo em diferentes lugares o que eacute claramente absurdo 42

O que Parmecircnides revela ao transformar a imagem de um dia sobre vaacuterios

lugares na imagem de uma vela sobre diversas pessoas eacute que ambas estas coisas (o

dia e a vela) quando consideradas com a devida atenccedilatildeo natildeo se apresentam como

entidades uacutenicas e indivisiacuteveis tal como Soacutecrates pretende fazer crer O fato de

falarmos de ldquoum diardquo como uma entidade singular natildeo nos garante que estejamos

tratando de fato de uma entidade uacutenica e indivisiacutevel Noacutes tambeacutem nos referimos

agrave ldquoguerra de Troacuteiardquo como um evento singular no entanto eacute muito claro que a

guerra de Troacuteia constitui na verdade uma seacuterie de eventos distintos Da mesma

maneira quando falamos de uma vela sobre diversas pessoas (ou diversas pessoas

sob um mesmo teto) tratamos esta vela (ou este teto) como um entidade singular

Neste caso poreacutem eacute mais faacutecil perceber que natildeo eacute a totalidade da vela que se

encontra sobre cada um dos indiviacuteduos mas apenas uma parte dela

Portanto ao formular a metaacutefora de uma vela sobre uma multiplicidade de

pessoas Parmecircnides natildeo estaacute deturpando a metaacutefora socraacutetica ou destituindo-a de

seu valor como soluccedilatildeo ao problema da participaccedilatildeo Muito pelo contraacuterio ao

reinterpretar a analogia socraacutetica Parmecircnides apenas torna evidente as

consequecircncias da proposta inicial apresentada por Soacutecrates Afirmar que uma

Forma uacutenica estaacute sobre muitas coisas equivale a afirmar que cada coisa possui

sobre si uma parte desta Forma exatamente da mesma maneira que a luz que

banha Soacutecrates pela manhatilde eacute apenas uma parte da totalidade da luz que ilumina a

Aacutetica e do mesmo modo que o momento da manhatilde em que Soacutecrates toma seu

banho de sol eacute apenas uma parte do intervalo de tempo que compotildee um dia

ldquoSeraacute entatildeo que a vela inteira estaria sobre cada um ou uma parte dela sobre um outra sobre outro Uma parte Logo Soacutecrates disse ele satildeo divisiacuteveis as Formas mesmas e as coisas que delas

42 Esta circularidade foi observada primeiramente por Allen que acaba por descartar

completamente a possibilidade da metaacutefora socraacutetica estar se referindo ao dia em seu sentido temporal (cf Allen 1997 p132)

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participam participariam de uma de suas partes e natildeo eacute mais o todo que estaria em cada uma das coisas mas sim uma parte caberia a cada coisa Parece pelo menos que eacute assim Seraacute entatildeo Soacutecrates que estaraacutes disposto a dizer que a Forma uma em verdade se nos divide e ainda seraacute uma43 De maneira alguma disse Soacutecratesrdquo Ἦ οὖν ὅλον ἐφ ἑκάστῳ τὸ ἱστίον εἴη ἄν ἢ microέρος αὐτοῦ ἄλλο ἐπ ἄλλῳ Μέρος Μεριστὰ ἄρα φάναι ὦ Σώκρατες ἔστιν αὐτὰ τὰ εἴδη καὶ τὰ microετέχοντα αὐτῶν microέρους ἂν microετέχοι καὶ οὐκέτι ἐν ἑκάστῳ ὅλον ἀλλὰ microέρος ἑκάστου ἂν εἴη Φαίνεται οὕτω γε Ἦ οὖν ἐθελήσεις ὦ Σώκρατες φάναι τὸ ἓν εἶδος ἡmicroῖν τῇ ἀληθείᾳ microερίζεσθαι καὶ ἔτι ἓν ἔσται Οὐδαmicroῶς εἰπεῖν (131c2-11)

A tentativa de oferecer uma metaacutefora como explicaccedilatildeo para a hipoacutetese da

participaccedilatildeo no todo de uma Forma apenas forccedilou Soacutecrates na direccedilatildeo do segundo

ramo do dilema Tal como uma vela estendida sobre uma multiplicidade de

indiviacuteduos a Forma se mostra agora divida por seus participantes Cada um dos

objetos sensiacuteveis que participam de uma Forma recebe como sua propriedade

imanente uma parte desta Forma Isto eacute se x e y participam da Forma F entatildeo

uma parte de F estaacute em x e uma parte de F estaacute em y Eacute preciso observar que cada

um destes objetos recebe sua propriedade imanente de maneira exclusiva Pois se

considerarmos a propriedade imanente F-em-x como idecircntica agrave propriedade

imanente F-em-y nos encontraremos novamente submetidos ao argumento do

primeiro ramo do dilema Sendo assim como resultado da adoccedilatildeo do segundo

ramo do dilema da participaccedilatildeo as Formas passam a possuir um nuacutemero de partes

igual ao nuacutemero de objetos que delas participam

Novamente o caraacuteter unitaacuterio das Formas se mostra incompatiacutevel com a

hipoacutetese de que os objetos sensiacuteveis participam nas Formas Neste caso poreacutem

natildeo eacute a singularidade numeacuterica das Formas o que eacute perdido na relaccedilatildeo com os

muacuteltiplos objetos do mundo sensiacutevel mas a uniformidade ou integridade das

Formas isto eacute sua indivisibilidade

Soacutecrates reconhece prontamente o absurdo desta conclusatildeo e se recusa a

admitir que uma Forma uacutenica possa estar dividida pelos objetos sensiacuteveis que

dela participam (τὸ ἓν εἶδος ἡmicroῖν τῇ ἀληθείᾳ microερίζεσθαι) Este resultado por si soacute

43 καὶ ἔτι ἓν ἔσται aqui ldquoser umrdquo significa ldquoser indivisiacutevelrdquo como deixa claro o contraste

estabelecido por Parmecircnides entre esta claacuteusula e o verbo microερίζεσθαι (dividir-se) Como jaacute observamos neste segundo ramo do dilema da participaccedilatildeo eacute a noccedilatildeo de integridade ou indivisibilidade das Forma que se mostra incompatiacutevel com a hipoacutetese da participaccedilatildeo

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jaacute eacute suficiente para descartar o segundo ramo do dilema e com ele a hipoacutetese de

que as coisas participam em partes das Formas A partir deste momento a reduccedilatildeo

ao absurdo operada pelo dilema jaacute estaacute realizada Segundo as premissas do

dilema soacute haacute participaccedilatildeo no todo ou em parte de uma Forma Contudo a

participaccedilatildeo no todo acaba por multiplicar as Formas e a participaccedilatildeo em partes

por dividi-las Como as Formas satildeo por definiccedilatildeo entidades singulares e

indivisiacuteveis entatildeo natildeo pode haver participaccedilatildeo nas Formas

Entretanto Parmecircnides natildeo se daacute por satisfeito com este resultado e passa

a apresentar uma seacuterie de argumentos que pretendem ilustrar as consequecircncias

absurdas agraves quais seriacuteamos levados caso aceitaacutessemos a efetiva divisatildeo das

Formas

ldquoPois vecirc disse Parmecircnides Se dividires a Grandeza mesma e se cada uma das muacuteltiplas coisas grandes for grande em virtude de uma parte da Grandeza [parte esta] menor que a Grandeza mesma seraacute que isso natildeo pareceraacute absurdo Perfeitamente disse ele Mas como Cada coisa recebendo uma parte do Igual uma [parte] pequena que eacute menor que o Igual mesmo teraacute algo com que seraacute igual ao que quer que seja Impossiacutevel E mais eacute uma parte do Pequeno que algum de noacutes teraacute e o Pequeno seraacute maior que essa parte mesma sendo esta uma parte dele e assim pois o Pequeno seraacute maior e aquilo a que for adicionada a parte subtraiacuteda seraacute menor e natildeo maior que antes Isso natildeo poderia ocorrer disse ele Ὅρα γάρ φάναι εἰ αὐτὸ τὸ microέγεθος microεριεῖς καὶ ἕκαστον τῶν πολλῶν microεγάλων microεγέθους microέρει σmicroικροτέρῳ αὐτοῦ τοῦ microεγέθους microέγα ἔσται ἆρα οὐκ ἄλογον φανεῖται Πάνυ γ ἔφη Τί δέ τοῦ ἴσου microέρος ἕκαστον σmicroικρὸν ἀπολαβόν τι ἕξει ᾧ ἐλάττονι ὄντι αὐτοῦ τοῦ ἴσου τὸ ἔχον ἴσον τῳ ἔσται Ἀδύνατον Ἀλλὰ τοῦ σmicroικροῦ microέρος τις ἡmicroῶν ἕξει τούτου δὲ αὐτοῦ τὸ σmicroικρὸν microεῖζον ἔσται ἅτε microέρους ἑαυτοῦ ὄντος καὶ οὕτω δὴ αὐτὸ τὸ σmicroικρὸν microεῖζον ἔσται ᾧ δ ἂν προστεθῇ τὸ ἀφαιρεθέν τοῦτο σmicroικρότερον ἔσται ἀλλ οὐ microεῖζον ἢ πρίν Οὐκ ἂν γένοιτο φάναι τοῦτό γε (131c12-e2)

Na tentativa de estabelecer de maneira ainda mais clara a inviabilidade do

segundo ramo do dilema da participaccedilatildeo satildeo apresentadas trecircs consequecircncias

absurdas decorrentes da hipoacutetese de que os objetos sensiacuteveis participam em partes

das Formas Segundo a argumentaccedilatildeo de Parmecircnides caso adotemos o segundo

ramo do dilema

1) Uma coisa grande seraacute grande em virtude de uma parte da

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Grandeza menor do que a Grandeza mesma e portanto seraacute grande

em virtude daquilo que eacute pequeno

2) Uma coisa igual seraacute igual em virtude de uma parte pequena da

Igualdade e portanto seraacute igual em virtude daquilo que eacute desigual

3) Se subtrairmos uma parte do Pequeno o Pequeno em si seraacute maior

do que cada uma de suas partes e portanto o Pequeno seraacute maior

Por outro lado o objeto sensiacutevel que receber uma de suas partes se

tornaraacute menor e natildeo maior em virtude desta adiccedilatildeo

Para que possamos entender o que torna estas conclusotildees inaceitaacuteveis do

ponto de vista de Soacutecrates e sua Teoria das Ideias precisamos ter em mente o

poder causal exercido pelas Formas sobre os objetos sensiacuteveis De acordo com a

teoria da causalidade defendida por Soacutecrates uma causa deve possuir a

caracteriacutestica que ela produz nas coisas Assim no Protaacutegoras (332b1) Soacutecrates

afirma que eacute ldquopela temperanccedila que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (σωφροσύνῃ

σωφρονοῦσιν) no Teeteto (145d11) que eacute ldquopela sabedoria que os saacutebios satildeo

saacutebiordquo (Σοφίᾳ δέ γ οἶmicroαι σοφοὶ οἱ σοφοί) e no Hiacuteppias Maior que eacute ldquopelo belo

que todas as coisas belas satildeo belasrdquo (Ἆρ οὖν οὐ καὶ τὰ καλὰ πάντα τῷ καλῷ ἐστι

καλά) Nestas passagens Soacutecrates faz uso do dativo instrumental para apresentar

em uma sentenccedila cuja forma eacute aparentemente tautoloacutegica aquilo que ele e seus

interlocutores tomam como uma verdade autoevidente Isto eacute que a despeito do

estatuto ontoloacutegico que estejamos dispostos a atribuir para a causa das

propriedades dos objetos sensiacuteveis eacute impossiacutevel pensar que esta causa natildeo

possua ela mesma a propriedade que produz Em paralelo a esta assunccedilatildeo

Soacutecrates e seus interlocutores tomam como autocontraditoacuteria a hipoacutetese de que

uma causa possa ser caracterizada pela propriedade oposta agravequela de que eacute causa

Pois ldquoeacute iloacutegico (ἄλογόν) [admitir] que algueacutem seja corajoso pelo medo e pela

covardiardquo (καίτοι ἄλογόν γε δέει τινὰ καὶ δειλίᾳ ἀνδρεῖον εἶναι Feacuted68d) e ldquoeacute

assombroso (τέρας) que algo grande seja grande em virtude de alguma coisa

pequenardquo (καὶ τοῦτο δὴ τέρας εἶναι τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι Feacuted101b1-

2)44

44 Para outras passagens em que Soacutecrates afirma a impossibilidade de que uma causa possa ser

caracterizada pela propriedade oposta agravequela de que eacute causa Feacuted 68d 68e 100a-b Rep335c-d Prot355d Teet 199d

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Como vimos este princiacutepio baacutesico relativo agrave noccedilatildeo de causalidade eacute

ostensivamente apresentado no Feacutedon como a razatildeo para o fato de podermos de

maneira segura oferecer as Formas como causas das propriedades dos objetos

sensiacuteveis Em Feacuted102d6-8 Soacutecrates expande estes criteacuterios para as propriedades

imanentes afirmando que ldquonatildeo apenas a Grandeza em si jamais admitiraacute ser

simultaneamente grande e pequena como tambeacutem a grandeza-em-noacutes jamais

admitiraacute a pequenezrdquo (οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ

σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν)45

No Parmecircnides (129b1-2) encontramos esta mesma alegaccedilatildeo repetida quanto

Soacutecrates desafia seus interlocutores a lhe demonstrarem que a propriedade

imanente da semelhanccedila (αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά) pode se tornar dessemelhante e a

propriedade imanente da dessemelhanccedila semelhante

Portanto de acordo com a Teoria das Ideias para que possamos dizer que

um determinado objeto sensiacutevel x eacute F eacute preciso que tanto a Forma F quanto a

propriedade imanente F-em-x sejam unicamente caracterizadas pelo predicado F

isto eacute sejam auto-predicativas e natildeo apareccedilam nunca como o contraacuterio de F

Nos argumentos 1 e 2 Parmecircnides demonstra que a adoccedilatildeo do segundo

ramo do dilema natildeo pode ser harmonizada com a hipoacutetese de que as propriedades

imanentes satildeo entidades uniformes unicamente caracterizadas pela auto-

predicaccedilatildeo e completamente isentas da predicaccedilatildeo de opostos De acordo com o

segundo ramo do dilema um objeto x eacute grande por apresentar como sua

propriedade imanente uma parte da Grandeza Contudo por ser apenas uma parte

a grandeza-em-x eacute menor do que a Grandeza em si que representa o todo do qual

a grandeza-em-x eacute uma parte Consequentemente x eacute grande em virtude de uma

propriedade imanente que eacute ela mesma pequena Da mesma maneira se um

objeto y eacute igual em virtude de uma parte do Igual menor do que o Igual em si

entatildeo y eacute igual em virtude daquilo que eacute desigual

Em 3 Parmecircnides muda o foco de sua criacutetica A propriedade imanente

pequeno-em-x considerada como uma parte do Pequeno em si eacute de fato

pequena e natildeo estaria sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos Contudo neste caso a

45 O mesmo ponto eacute reafirmado em 102e5-103a1 Eacute preciso notar que tal afirmaccedilatildeo estaacute em pleno

acordo com o papel das propriedades imanentes na soluccedilatildeo de Soacutecrates para o problema da copresenccedila de opostos Afinal admtir que uma propriedade imanente eacute caracterizada por seu oposto seria equivalente a afirmar que um mesmo elemento constituinte de Soacutecrates eacute simultaneamente grande e pequeno o que natildeo solucionaria o problema da copresenccedila de

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contradiccedilatildeo eacute encontrada na proacutepria Forma do Pequeno Pois se a Forma do

Pequeno eacute maior do que cada uma de suas partes o Pequeno em si eacute grande

Novamente nos vemos frente a uma impossibilidade loacutegica pois a causa das

coisas serem pequenas seria ela mesma grande Com relaccedilatildeo ao poder causal

exercido pela Forma do Pequeno Parmecircnides ainda acrescenta uma uacuteltima

perplexidade caso entendamos que um objeto z torna-se pequeno por adquirir a

propriedade imanente pequeno-em-z seremos obrigados a admitir que o objeto z

torna-se pequeno em virtude de uma adiccedilatildeo o que estaacute em claro desacordo com os

princiacutepios baacutesicos da matemaacutetica

As conclusotildees obtidas por Parmecircnides demonstram que a hipoacutetese da

participaccedilatildeo em partes das Formas teria como consequecircncia a predicaccedilatildeo de

opostos da Forma do Pequeno e das propriedades imanentes do grande e do igual

Consequentemente o poder causal exercido por estas trecircs Formas especiacuteficas

tornar-se-ia inexplicaacutevel uma vez que um dos princiacutepios baacutesicos da causalidade

seria violado e estas entidades estariam sujeitas ao problema da predicaccedilatildeo de

opostos para o qual deveriam servir de soluccedilatildeo

Como podemos perceber estes trecircs argumentos apresentam paradoxos

especiacuteficos relativos apenas agraves Formas do Grande do Igual e do Pequeno

fugindo portanto da generalidade encontrada na argumentaccedilatildeo de Parmecircnides ateacute

aqui Aleacutem disso estes argumentos satildeo estruturalmente desnecessaacuterios uma vez

que Soacutecrates jaacute havia admitido a inviabilidade do segundo ramo do dilema ao

concluir que seria impossiacutevel aceitar que uma Forma uacutenica possa estar dividida

por seus participantes (τὸ ἓν εἶδος microερίζεσθαι)46

Podemos nos perguntar por que Platatildeo incluiria esta descontinuidade

umas vez que os argumentos seguintes voltaratildeo a ser dirigidos contra o conjunto

de Formas em sua generalidade Minha opiniatildeo eacute que Platatildeo apresenta estes trecircs

argumentos como encerramento dos problemas relativos ao dilema da participaccedilatildeo

com o intuito de chamar a atenccedilatildeo do leitor para o tema da auto-predicaccedilatildeo das

Formas O fato de que as Formas satildeo entidades auto-predicativas estaacute diretamente

opostos

46 De fato no momento mesmo em que Soacutecrates aceita a analogia da vela oferecida por Parmecircnides o segundo ramo do dilema da participaccedilatildeo torna-se inviaacutevel Afinal o fato de Soacutecrates possuir diversas partes havia sido suficiente para concluir que ele Soacutecrates eacute muacuteltiplo Sendo assim por paridade de raciociacutenio o fato de mais de um objeto sensiacutevel participar de uma mesma Forma que estende suas diversas partes sobre estes objetos eacute suficiente para concluir a multiplicidade desta Forma

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relacionado com os paradoxos relativos agraves Formas do Grande do Igual e do

Pequeno e seraacute fundamental na compreensatildeo dos dois regressos ao infinito que

seratildeo apresentados nos proacuteximos argumentos Contudo em todos estes

argumentos a caracteriacutestica de auto-prediccedilatildeo das Formas aparece como uma

premissa pressuposta nunca textualmente expressa Portanto ao apresentar esta

seacuterie de trecircs paradoxos nos quais a auto-predicaccedilatildeo das Formas estaacute claramente

em jogo Platatildeo oferece aos leitores do Parmecircnides uma chave de leitura para a

compreensatildeo dos regressos que seratildeo apresentados em seguida

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427 A validade do dilema da participaccedilatildeo como criacutetica agrave Teoria das Ideias

O dilema da participaccedilatildeo constitui uma reduccedilatildeo ao absurdo formalmente

vaacutelida Soacutecrates havia sustentado que 1) existem Formas e 2) os objetos sensiacuteveis

participam nestas Formas O dilema apresenta duas alternativas exaustivas de

compreensatildeo para o que seria a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo e ambas se mostram

inaceitaacuteveis para Teoria das Ideias Logo o dilema da participaccedilatildeo implica na

falsidade da tese 2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis participam nas Formas Eacute

claro contudo que a validade destas duas teses eacute plenamente independente

Parmecircnides provou que a tese 2) eacute falsa a despeito do fato de que a tese 1) possa

ser verdadeira e as Formas possam ser consideradas entidades reais

No entanto desde jaacute cabe a pergunta qual seria a vantagem teoacuterica de se

admitir a existecircncia das Formas sem que fique esclarecida a natureza da relaccedilatildeo

que estas entidades mantecircm com os objetos do mundo empiacuterico Uma satisfatoacuteria

compreensatildeo para natureza da relaccedilatildeo entre Formas e coisas mostra-se essencial

para validade da hipoacutetese das Formas pois a incapacidade de elucidar o modo

especiacutefico de relacionamento entre estes dois niacuteveis distintos da realidade teria

como resultado a total irrelevacircncia da postulaccedilatildeo das Formas Isto porque

isoladas das coisas do mundo sensiacutevel as Formas passariam a representar

entidades teoricamente irrelevantes e a postulaccedilatildeo destas entidades natildeo passaria

de uma supeacuterflua duplicaccedilatildeo da realidade empiacuterica

Contudo nada disso estaraacute em jogo caso as criacuteticas de Parmecircnides

comprovem-se irrelevantes para a Teoria das Ideias ou simplesmente falaciosas

Assim na tradiccedilatildeo de comentaacuterios ao Parmecircnides diversos autores procuraram

desqualificar natildeo apenas o sentido geral da argumentaccedilatildeo parmeniacutedica sob a

alegaccedilatildeo de que suas criacuteticas natildeo passam de uma grande piada ou de um mero

exerciacutecio eriacutestico como tambeacutem cada um dos argumentos separadamente Na

tentativa de invalidar o dilema da participaccedilatildeo e salvar a Teoria das Ideias deste

primeiro conjunto de criacuteticas trecircs estrateacutegias foram adotadas pelos comentadores

A primeira estrateacutegia jaacute foi por noacutes mencionada e consiste em afirmar que o

dilema da participaccedilatildeo natildeo diz respeito agrave Teoria das Ideias socraacutetica mas a uma

outra teoria qualquer Contudo como vimos a proacutepria estrutura do Parmecircnides

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proiacutebe este tipo de interpretaccedilatildeo No Parmecircnides eacute o proacuteprio Soacutecrates quem

apresenta a Teoria das Ideias e como demonstramos esta apresentaccedilatildeo guarda

todas as caracteriacutesticas essenciais da Teoria das Ideias encontrada nos diaacutelogos da

Juventude e Fase Meacutedia Sendo assim natildeo podemos descartar a validade do

dilema da participaccedilatildeo pela simples alegaccedilatildeo de que estamos lidando com um

caso de ignoratio elenchi

Uma segunda opccedilatildeo consiste em considerar o dilema da participaccedilatildeo como

formalmente correto poreacutem materialmente falso isto eacute fundado em falsas

premissas De acordo com este tipo de interpretaccedilatildeo que remonta ao comentaacuterio

de Proacuteclus (In Parm 859-862) o sentido de ldquoparticipaccedilatildeordquo inerente agraves criacuteticas de

Parmecircnides natildeo condiz com o sentido que esta expressatildeo recebe nos outros

diaacutelogos platocircnicos em que a Teoria das Ideias eacute apresentada Assim Cornford

comentando o dilema afirma que ldquoo argumento pressupotildee que o exemplar da

Grandeza que cabe agrave participaccedilatildeo de uma coisa grande eacute uma parte da Forma

entendida como um pedaccedilo (bit) no qual a Forma eacute cortada (cut up)rdquo De acordo

com Cornford este raciociacutenio entende os conceitos de ldquoparterdquo e ldquotodordquo em seu

ldquosentido mais grosseiro e materialrdquo (Cornford 1951 p85)

Adotando a mesma linha interpretativa Sprague alega que Parmecircnides soacute

pode chegar a suas conclusotildees porque interpreta ldquoparticipaccedilatildeordquo em um sentido

fiacutesico (physical sense) Segundo Sprague ldquouma reductio ad absurdum foi

construiacuteda mas apenas por meio de uma distorccedilatildeo da dualidade essencial da

teoria [das Ideias] e da relaccedilatildeo entre estes dois tipos de entidades [relaccedilatildeo esta]

que Platatildeo procura exprimir por meio de expressotildees como ldquoestar presenterdquo e

ldquoparticiparrdquo (Sprague 1967 p96)

Portanto de acordo estes autores o dilema da participaccedilatildeo apesar de

formalmente vaacutelido natildeo se apresenta como uma criacutetica honesta agrave Teoria das

Ideias Segundo este argumento Parmecircnides estaria interpretando de maneira

errocircnea o sentido do termo ldquoparticipaccedilatildeordquo O uso dos conceitos de todoparte

maiormenor e a compreensatildeo de ldquoparticipaccedilatildeordquo como a presenccedila da Forma nos

objetos sensiacuteveis seriam evidecircncias de uma reificaccedilatildeo da realidade inteligiacutevel que

segundo estes comentadores representaria uma brutal e inaceitaacutevel distorccedilatildeo da

verdadeira posiccedilatildeo socraacutetica

Ora a primeira objeccedilatildeo que podemos oferecer a este tipo de interpretaccedilatildeo

consiste em apresentar o fato dramaacutetico de que em nenhum momento da

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discussatildeo Soacutecrates protesta contra esta suposta deformaccedilatildeo de sua teoria Quando

Parmecircnides comeccedila a formular suas criacuteticas Soacutecrates jaacute havia apresentado sua

distinccedilatildeo fundamental entre ldquoas coisas que se vecircemrdquo (τοῖς ὁρωmicroένοις ) e ldquoas

coisas apreendidas pelo raciociacuteniordquo (τοῖς λογισmicroῷ λαmicroβανοmicroένοις ) estabelecendo

claros paracircmetros de diferenciaccedilatildeo entre estes dois tipos de entidades objetos

sensiacuteveis e Formas Caso o dilema da participaccedilatildeo se apresentasse como o

resultado da mera negligecircncia desta distinccedilatildeo fundamental o mais natural seria

que Soacutecrates reafirmasse esta distinccedilatildeo e bloqueasse a argumentaccedilatildeo parmeniacutedica

desde o iniacutecio Simplesmente natildeo haacute razatildeo para acreditarmos que Platatildeo tenha

decidido representar Soacutecrates em aporia por conta de um argumento decorrente da

negligecircncia da distinccedilatildeo proposta pelo proacuteprio Soacutecrates entre entidades sensiacuteveis

e inteligiacuteveis

O dilema da participaccedilatildeo funda-se no vocabulaacuterio empregado por Soacutecrates

para descrever a relaccedilatildeo entre Formas e coisas natildeo soacute no Parmecircnides como

tambeacutem por toda fase meacutedia e inicial Segundo Soacutecrates as coisas sensiacuteveis

ldquoparticipamrdquo (metexousin metalambanousin) das Formas ou ldquocomunicam-serdquo

(koinwnou=sin koinwnian e)xousin) com elas Como resultado desta relaccedilatildeo as

coisas sensiacuteveis passam a ldquopossuirrdquo (e)xousin) ou ldquoreceberrdquo (dexontai) as Formas

As Formas por sua vez passam a ldquoestar presentesrdquo (πάρεστιν) ou a ldquoestar nasrdquo

(e)neστι) coisas Portanto ao propor que a noccedilatildeo de participaccedilatildeo soacute pode ser

entendida por meio da disjunccedilatildeo partetodo Parmecircnides estaacute oferecendo

paracircmetros baacutesicos de compreensatildeo e anaacutelise para um conceito apresentado pelo

proacuteprio Soacutecrates

Os argumentos de Parmecircnides podem inclusive ser construiacutedos

formalmente sem que uma interpretaccedilatildeo material das Formas seja de qualquer

modo pressuposta Afinal a disjunccedilatildeo partetodo se mostra como uacutenica opccedilatildeo

vaacutelida para compreensatildeo de uma relaccedilatildeo descrita como ldquoa participaccedilatildeo da

entidade x na entidade yrdquo independente do estatuto ontoloacutegico atribuiacutedo e estas

entidades Uma evidecircncia disto encontra-se no fato de que nos Elementos (I

axioma 5) Euclides lista o axioma de que ldquoo todo eacute maior do que as partesrdquo (Καὶ

τὸ ὅλον τοῦ microέρους microεῖζον [ἐστιν]) como uma ldquonoccedilatildeo comumrdquo Tais ldquonoccedilotildees

comunsrdquo (koinai e)nnoiai) satildeo definidas como princiacutepios indemonstraacuteveis

comuns a todas as ciecircncias e que portanto ultrapassam o campo da geometria e

natildeo tecircm sua validade restrita aos raciociacutenios envolvendo coisas estendidas no

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espaccedilo (cf Heath 1956 p221-222)

Sendo assim natildeo haacute porque desqualificar o dilema da participaccedilatildeo sob a

alegaccedilatildeo de que este argumento funda-se em uma ldquocoisificaccedilatildeordquo falaciosa da

hipoacutetese das Formas Os argumentos de Parmecircnides ilustram contradiccedilotildees

decorrentes de uma determinada interpretaccedilatildeo para relaccedilatildeo entre objetos

empiacutericos e Formas proposta pelo proacuteprio Soacutecrates e que natildeo estaacute diretamente

fundada na atribuiccedilatildeo de uma natureza material para as Formas mas deriva do

reconhecimento de que qualquer tipo de participaccedilatildeo deve ser entendida por meio

dos conceitos baacutesicos de parte e todo Soacutecrates havia proposto que as coisas

sensiacuteveis participam das Formas e como consequecircncia desta participaccedilatildeo

adquirem suas diversas propriedades imanentes Natildeo haacute falaacutecia alguma em se

apresentar a disjunccedilatildeo todoparte como modos exaustivos de se compreender esta

relaccedilatildeo Pois de fato estas satildeo as uacutenicas maneiras logicamente possiacuteveis de

entendermos uma relaccedilatildeo descrita deste modo

Uma terceira maneira de desqualificar a validade do dilema consiste em

alegar tal como faz David Ross (Ross 1951 p88-89) que os argumentos de

Parmecircnides baseiam-se em uma interpretaccedilatildeo literal para termos que Soacutecrates

apresenta como meras metaacuteforas Segundo este tipo de interpretaccedilatildeo Soacutecrates

estaria imune agraves criacuteticas de Parmecircnides pelo fato de natildeo se propor a definir de

maneira precisa a relaccedilatildeo entre Formas e coisas Para Ross os conceitos de

ldquoparticipaccedilatildeordquo e ldquocomunhatildeordquo satildeo apresentados por Soacutecrates como ilustraccedilotildees

aproximadas para uma relaccedilatildeo reconhecida como na verdade indescritiacutevel

Ora eacute claro que tal objeccedilatildeo sequer constitui um argumento contra a

validade do dilema parmeniacutedico A noccedilatildeo de que a relaccedilatildeo entre Formas e coisas eacute

uma relaccedilatildeo uacutenica para qual nenhuma definiccedilatildeo satisfatoacuteria pode ser apresentada eacute

conveniente apenas como uma soluccedilatildeo ad hoc para os problemas levantados por

Parmecircnides De fato esta explicaccedilatildeo pressupotildee a validade das criacuteticas de

Parmecircnides para concluir que o termo ldquoparticipaccedilatildeordquo eacute meramente metafoacuterico e

natildeo se pretende como uma definiccedilatildeo seacuteria Aleacutem disso nos vemos novamente

frente ao fato dramaacutetico de que Soacutecrates em momento algum atribui uma

natureza sui generis e indescritiacutevel para relaccedilatildeo entre Formas e coisas Em total

oposiccedilatildeo ao que esperariacuteamos caso Platatildeo desejasse indicar o caraacuteter indefiniacutevel

desta relaccedilatildeo Soacutecrates iraacute propor no decorrer do diaacutelogo maneiras alternativas de

entender o relacionamento entre Formas e coisas o que evidencia a crenccedila deste

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personagem na possibilidade de uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria para esta relaccedilatildeo De

qualquer maneira o fato de Soacutecrates propor o termo ldquoparticipaccedilatildeordquo como uma

descriccedilatildeo metafoacuterica para o relacionamento entre Formas e coisas natildeo invalida ou

deslegitima as criacuteticas de Parmecircnides Afinal mesmo uma metaacutefora deve ser

investigada quando aparece no interior de uma hipoacutetese filosoacutefica Portanto

ainda que se trate de um uso meramente ilustrativo da palavra ldquoparticipaccedilatildeordquo este

uso deve ser analisado na intenccedilatildeo de concluirmos se este termo configura-se

como uma ilustraccedilatildeo adequada para a relaccedilatildeo entre Formas e coisas ou natildeo

A confirmaccedilatildeo dramaacutetica da relevacircncia da argumentaccedilatildeo de Parmecircnides e

ainda da validade do seu dilema como uma apresentaccedilatildeo exaustiva das

possibilidades de compreensatildeo da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo encontra-se nas linhas

que encerram este estaacutegio da discussatildeo

ldquoEntatildeo de que maneira Soacutecrates disse ele as outras coisas para ti teratildeo participaccedilatildeo nas Formas natildeo podendo ter participaccedilatildeo nem quanto agrave parte nem quanto ao todo Por Zeus disse ele natildeo me parece de modo algum ser faacutecil determinar tal coisardquo Τίνα οὖν τρόπον εἰπεῖν ὦ Σώκρατες τῶν εἰδῶν σοι τὰ ἄλλα microεταλήψεται microήτε κατὰ microέρη microήτε κατὰ ὅλα microεταλαmicroβάνειν δυνάmicroενα Οὐ microὰ τὸν ∆ία φάναι οὔ microοι δοκεῖ εὔκολον εἶναι τὸ τοιοῦτον οὐδαmicroῶς διορίσασθαι (131e3-7)

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43 O Argumento do Terceiro Homem e a multiplicaccedilatildeo inf inita das Formas

Tendo terminado suas objeccedilotildees agrave noccedilatildeo de participaccedilatildeo defendida por

Soacutecrates Parmecircnides inicia uma segunda seacuterie de criacuteticas na qual seratildeo

apresentados dois casos daquilo que ficou conhecido na literatura secundaacuteria

como ldquoArgumento do Terceiro Homemrdquo A expressatildeo ldquoo terceiro homemrdquo (ὁ

τρίτος ἄνθρωπος) pode ser encontrada mais de uma vez na obra de Aristoacuteteles

(RefSof178b36 179a3 Meta990b17 1039a2-3 1059b8 1079a13) onde eacute

usada para designar um conjunto heterogecircneo de criacuteticas agrave Teoria das Ideias Em

seus comentaacuterios agrave Metafiacutesica Alexandre de Afrodiacutesia nos fornece diversos

exemplos de argumentos que receberam esta denominaccedilatildeo geneacuterica Enquanto

alguns dos exemplos descritos por Alexandre natildeo possuem qualquer relaccedilatildeo com

as criacuteticas do Parmecircnides uma de suas descriccedilotildees apresenta profunda semelhanccedila

com os dois argumentos que encontramos em nosso diaacutelogo47

ldquoSe um termo predicado verdadeiramente de uma multiplicidade de coisas existe separadamente (κεχωρισmicroένον) das coisas de que eacute predicado (hellip) entatildeo haveraacute um terceiro Homem Pois se o Homem que eacute predicado eacute diferente das coisas de que eacute predicado e possui uma existecircncia independente e se eacute predicado tanto dos indiviacuteduos quantos das Formas haveraacute um terceiro Homem ao lado dos indiviacuteduos e da Forma E do mesmo modo um quarto predicado deste terceiro da Forma e dos indiviacuteduos e um quinto e assim indefinidamente ( ἐπ ἄπειρον)rdquo εἰ τὸ κατηγορούmicroενόν τινων πλειόνων ἀληθῶς καὶ ἔστιν ἄλλο παρὰ τὰ ὧν κατηγορεῖται κεχωρισmicroένον αὐτῶν () ἀλλ εἰ τοῦτο ἔσται τις τρίτος ἄνθρωπος εἰ γὰρ ἄλλος ὁ κατηγορούmicroενος ὧν κατηγορεῖται καὶ κατ ἰδίαν ὑφεστώς κατηγορεῖται δὲ κατά τε τῶν καθ ἕκαστα καὶ κατὰ τῆς ἰδέας ὁ ἄνθρωπος ἔσται τρίτος τις ἄνθρωπος παρά τε τοὺς καθ ἕκαστα καὶ τὴν ἰδέαν οὕτως δὲ καὶ τέταρτος ὁ κατά τε τούτου καὶ τῆς ἰδέας καὶ τῶν καθ ἕκαστα κατηγορούmicroενος ὁmicroοίως δὲ καὶ πέmicroπτος καὶ τοῦτο ἐπ ἄπειρον (InMetaph 8422-8523)

Como podemos perceber o argumento descrito por Alexandre pretende a

partir do reconhecimento da existecircncia de uma uacutenica Forma de Homem gerar

uma multiplicidade indefinida (ἄπειρον) destas Formas No Parmecircnides esta

conclusatildeo seraacute usada para demonstrar mais uma vez a impossibilidade de

47 O primeiro argumento denominado de Terceiro Homem por Alexandre eacute atribuiacutedo a Eudemos

(In Metaph842-7 859-11) O segundo (847-16) eacute atribuiacutedo de maneira imprecisa a ldquosofistasrdquo O terceiro (8416-21) eacute atribuiacutedo a Polixeno um contemporacircneo de Platatildeo e o quarto agrave Aristoacuteteles (8422-8523) Destes quatro apenas o uacuteltimo deles guarda semelhanccedilas

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mantermos simultaneamente a tese da unidade das Formas e a tese de que as

Formas satildeo responsaacuteveis pelas propriedades dos objetos sensiacuteveis Por meio de

seu dilema Parmecircnides havia provado que a noccedilatildeo de participaccedilatildeo implica em

qualquer das acepccedilotildees possiacuteveis para este termo na anulaccedilatildeo da tese da unidade

das Formas Afinal entendida como uma relaccedilatildeo no todo de uma Forma a

participaccedilatildeo acarretaria na multiplicaccedilatildeo destas entidades de modo que seriacuteamos

obrigados a admitir tantas Formas de F quantas entidades sensiacuteveis possuidoras

desta propriedade Por outro lado entendida como uma relaccedilatildeo entre os muacuteltiplos

Fs sensiacuteveis e partes da Forma F a participaccedilatildeo acabaria por destruir a integridade

das Formas e cada Forma teria tantas partes quantos participantes se tornando

uma entidade internamente complexa e sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos Como

proacuteximo passo de sua demonstraccedilatildeo Parmecircnides pretende demonstrar que de

acordo com a teoria apresentada por Soacutecrates as Formas estatildeo fadadas a uma

multiplicaccedilatildeo infinita

Assim como havia feito ao introduzir o dilema da participaccedilatildeo

Parmecircnides marca muito claramente o iniacutecio de uma nova seacuterie de argumentos

ldquoPois bem E em relaccedilatildeo ao seguinte como pensas Em relaccedilatildeo a quecirc Creio que tu crecircs que cada Forma eacute uma48 pelo seguinte quando algumas coisas muacuteltiplas te parecem ser grandes talvez te pareccedila a ti que as olhas todas haver uma certa ideia49 uma e a mesma em todas donde acreditas o grande ser um Dizes a verdade [Soacutecrates] disse Mas e quanto ao Grande ele mesmo e agraves outras coisas grandes Se olhares da mesma maneira com a alma para todos esses natildeo apareceraacute de novo um Grande um em virtude do qual eacute necessaacuterio todas aquelas coisas aparecerem como grandes Parece que sim Logo uma outra Forma da Grandeza apareceraacute surgindo ao lado da Grandeza ela mesma e das coisas que destas participam E sobre todas essas [apareceraacute] de novo uma outra de modo a em virtude dela todas essas parecerem grandes E natildeo mais seraacute uma cada uma das tuas Formas mas ilimitadas em quantidaderdquo Τί δὲ δή πρὸς τόδε πῶς ἔχεις Τὸ ποῖον Οἶmicroαί σε ἐκ τοῦ τοιοῦδε ἓν ἕκαστον εἶδος οἴεσθαι εἶναι ὅταν πόλλ ἄττα microεγάλα σοι δόξῃ εἶναι microία τις ἴσως δοκεῖ ἰδέα ἡ αὐτὴ εἶναι ἐπὶ πάντα ἰδόντι ὅθεν ἓν τὸ

com o par de argumentos encontrados no Parmecircnides

48 Aqui novamente ἓν designa a unidade numeacuterica de cada Forma Compare as expressotildees ἓν ἕκαστον εἶδος com πόλλ ἄττα microεγάλα e πάντα microεγάλα usadas para descrever a multiplicidade de objetos grandes sensiacuteveis

49 Natildeo me parece claro que Soacutecrates esteja usando ἰδέα em sua acepccedilatildeo teacutecnica de Forma platocircnica nesta sentenccedila apesar desta leitura ser certamente uma opccedilatildeo viaacutevel Em funccedilatildeo desta indefiniccedilatildeo optei por deixar a palavra ldquoideiardquo sem a maiuacutescula que venho usando para designar as Formas

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microέγα ἡγῇ εἶναι Ἀληθῆ λέγεις φάναι Τί δ αὐτὸ τὸ microέγα καὶ τἆλλα τὰ microεγάλα ἐὰν ὡσαύτως τῇ ψυχῇ ἐπὶ πάντα ἴδῃς οὐχὶ ἕν τι αὖ microέγα φανεῖται ᾧ ταῦτα πάντα microεγάλα φαίνεσθαι Ἔοικεν Ἄλλο ἄρα εἶδος microεγέθους ἀναφανήσεται παρ αὐτό τε τὸ microέγεθος γεγονὸς καὶ τὰ microετέχοντα αὐτοῦ καὶ ἐπὶ τούτοις αὖ πᾶσιν ἕτερον ᾧ ταῦτα πάντα microεγάλα ἔσται καὶ οὐκέτι δὴ ἓν ἕκαστόν σοι τῶν εἰδῶν ἔσται ἀλλὰ ἄπειρα τὸ πλῆθος (131e8-132b2)

Esta primeira versatildeo do Argumento do Terceiro Homem desenvolve-se de

maneira muito claramente anaacuteloga ao argumento descrito por Alexandre Se as

coisas satildeo grandes por causa (ᾧ) da Grandeza e se paralelamente podemos

considerar a Grandeza ela mesma uma coisa grande entatildeo devemos supor a

existecircncia de uma segunda Forma da Grandeza causa da propriedade da grandeza

tanto das coisas grandes quanto da primeira Grandeza Aleacutem disso considerando

esta segunda Forma da Grandeza novamente uma coisa grande uma terceira

Forma surgiria e assim ad infinitum Portanto segundo este raciociacutenio nenhuma

Forma seria numericamente uacutenica uma vez que o proacuteprio poder causal exercido

pelas Formas seria razatildeo de sua infinita multiplicaccedilatildeo Frente a esta multiplicaccedilatildeo

indesejada das Formas Soacutecrates procura uma saiacuteda inteiramente diversa

formulando uma hipoacutetese completamente inesperada50

ldquoMas Parmecircnides disse Soacutecrates vai ver cada uma dessas Formas eacute um pensamento e natildeo lhe cabe surgir em nenhum outro lugar a natildeo ser nas almas Pois sendo assim cada uma seria uma e natildeo mais seria afetada pelo que haacute pouco foi ditordquo Ἀλλά φάναι ὦ Παρmicroενίδη τὸν Σωκράτη microὴ τῶν εἰδῶν ἕκαστον ᾖ τούτων νόηmicroα καὶ οὐδαmicroοῦ αὐτῷ προσήκῃ ἐγγίγνεσθαι ἄλλοθι ἢ ἐν ψυχαῖς οὕτω γὰρ ἂν ἕν γε ἕκαστον εἴη καὶ οὐκ ἂν ἔτι πάσχοι ἃ νυνδὴ ἐλέγετο (132b3-6)

Tendo defendido anteriormente que as Formas satildeo entidades inteligiacuteveis

isto eacute apreendidas pela razatildeo Soacutecrates procura escapar dos paradoxos de

Parmecircnides afirmando que as Formas satildeo elas mesmas pensamentos (νοήmicroατα)

Entendidas como pensamentos cada uma das Formas manteria sua unidade

caracteriacutestica e natildeo estaria em qualquer outro lugar senatildeo na alma daquele que a

percebe Eacute importante notar contudo que natildeo devemos interpretar a sugestatildeo de

50 A idiossincrasia da proposta de Soacutecrates estaacute refletida no fato de que excluindo a presente

passagem e uma citaccedilatildeo ao poema de Parmecircnides no Sofista a palavra νόηmicroα soacute aparece trecircs vezes em toda obra platocircnica e em contextos sem grande importacircncia (cf Men95e5 Banq197e5 Pol260d8)

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Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de um subjetivismo radical de acordo com o qual as

Formas deixariam de possuir um estatuto ontoloacutegico separado e passariam a ser

completamente dependentes da mente daqueles que as concebe Caso o presente

passo da argumentaccedilatildeo socraacutetica pudesse ser entendido como a transformaccedilatildeo das

Formas em meros conteuacutedos de pensamento ou produtos da atividade da mente

humana estariacuteamos frente a uma nova concepccedilatildeo de Formas certamente

problemaacutetica poreacutem completamente distinta da noccedilatildeo de Formas defendida por

Soacutecrates desde o iniacutecio da discussatildeo Neste caso a proposta de Soacutecrates

representaria muito mais o abandono total da hipoacutetese das Formas do que uma

tentativa de reformulaccedilatildeo desta hipoacutetese

Como nada no texto indica que Soacutecrates esteja rompendo por completo

com a Teoria das Ideias devemos acreditar que a proposta de compreensatildeo das

Formas como pensamentos representa apenas mais uma tentativa de manter a

unidade e integridade caracteriacutesticas destas entidades sem que permaneccedila

inviabilizada a relaccedilatildeo causal que elas mantecircm com os objetos do mundo sensiacutevel

O que Soacutecrates pretende afirmar portanto eacute que as Formas devem ser entendidas

como conceitos universais acessiacuteveis pela alma humana Assim as coisas se

relacionariam com as Formas apenas por meio do pensamento humano e

poderiacuteamos salvar a hipoacutetese da causalidade das Formas ao menos no que diz

respeito agrave nossa apreensatildeo do mundo sensiacutevel Ao mesmo tempo permaneceriam

mantidas as caracteriacutesticas ontoloacutegicas de unidade e integridade das Formas

Parmecircnides no entanto demonstra rapidamente a impossibilidade desta

proposta se todo pensamento eacute pensamento de alguma coisa (νόηmicroα hellip τινός) e

ainda eacute pensamento de alguma coisa que eacute (τινός hellip ὄντος) entatildeo a hipoacutetese de

que a relaccedilatildeo entre Formas e coisas se daacute apenas no acircmbito da mente humana eacute

insustentaacutevel e o pensamento deve novamente ser entendido como uma Forma

uacutenica sobre uma multiplicidade de coisas sensiacuteveis (εἶδος hellip ἓν εἶναι ἀεὶ ὂν τὸ

αὐτὸ ἐπὶ πᾶσιν)

Ficando restabelecido o relacionamento direto entre Formas e coisas pois

todo pensamento eacute pensamento de alguma coisa a proposta de Soacutecrates se mostra

evidentemente contraditoacuteria Afinal se as Formas satildeo pensamentos e as coisas

participam nas Formas entatildeo todas as coisas participam do pensamento e

consequentemente o pensamento estaacute em todas as coisas Ora eacute evidente que nos

dois casos contradiccedilotildees surgiriam Por um lado se todas as coisas participam do

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pensamento entatildeo todas as coisas pensam (πάντα νοεῖν) o que eacute absurdo Por

outro lado por estar presente em todas as coisas o pensamento estaria presente

em coisas que pensam como homens poreacutem tambeacutem em coisas que natildeo pensam

Neste segundo caso teriacuteamos coisas que satildeo pensamento na medida em que

possuem pensamentos em si (ἐκ νοηmicroάτων ἕκαστον εἶναι) poreacutem natildeo pensam

(νοήmicroατα ὄντα ἀνόητα εἶναι) Para usarmos um exemplo concreto se uma pedra

possui a Forma da Grandeza e esta Forma por sua vez eacute um pensamento entatildeo

ou bem temos que admitir que a pedra eacute capaz de pensar ou bem temos que

admitir que a pedra possui em si um pensamento poreacutem natildeo pensa Por fim

atraveacutes destes simples argumentos Soacutecrates eacute levado mais uma vez a reconhecer

o evidente fracasso de sua tentativa

Apesar de sua sugestatildeo anterior ter sido enunciada com certa hesitaccedilatildeo51

Soacutecrates agora se mostra bastante confiante para apresentar uma nova proposta

Ele entatildeo afirma que as Formas devem ser entendidas como paradigmas

(παραδείγmicroατα) enquanto que as coisas sensiacuteveis que delas participam devem ser

entendidas como imagens produzidas a partir das Formas (εἰκασθῆναι αὐτοῖς)

ldquoMas Parmecircnides a mim estaacute sendo evidente que o que se passa eacute antes o seguinte que estas Formas estatildeo na natureza como paradigmas e que as outras coisas se parecem com elas e satildeo semelhanccedilas delas E que essa participaccedilatildeo nas Formas para estas outras coisas natildeo vem a ser senatildeo o serem estas feitas como imagens daquelasrdquo ἀλλ ὦ Παρmicroενίδη microάλιστα ἔmicroοιγε καταφαίνεται ὧδε ἔχειν τὰ microὲν εἴδη ταῦτα ὥσπερ παραδείγmicroατα ἑστάναι ἐν τῇ φύσει τὰ δὲ ἄλλα τούτοις ἐοικέναι καὶ εἶναι ὁmicroοιώmicroατα καὶ ἡ microέθεξις αὕτη τοῖς ἄλλοις γίγνεσθαι τῶν εἰδῶν οὐκ ἄλλη τις ἢ εἰκασθῆναι αὐτοῖς (132c12-d4)

Esta uacuteltima proposta possui a aparente virtude de anunciar uma explicaccedilatildeo

completamente nova para relaccedilatildeo de participaccedilatildeo ao inveacutes de simplesmente

oferecer mais um modo de entendermos a presenccedila das Formas nas coisas Frente

a todas as criacuteticas anteriormente formuladas por Parmecircnides Soacutecrates introduz agrave

discussatildeo a possibilidade das Formas serem entendidas como modelos ou

paradigmas aos quais os objetos sensiacuteveis se assemelham Entendida desta

maneira a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo natildeo implicaria na presenccedila das Formas nas

coisas e portanto representaria uma real alternativa ao dilema formulado por

51 Compare as palavras que iniciam sua proposta anterior (Ἀλλά hellip microὴ) com as palavras usadas

para introduzir sua presente proposta (microάλιστα ἔmicroοιγε καταφαίνεται)

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Parmecircnides no iniacutecio da discussatildeo e que vem dominando o debate desde entatildeo

De acordo com a presente sugestatildeo uma Forma deve ser entendida com

um modelo enquanto os objetos sensiacuteveis seriam como as diversas coacutepias que um

artista produz a partir da contemplaccedilatildeo deste modelo Portanto segundo a

descriccedilatildeo socraacutetica participar de uma determinada Forma seria equivalente a ser

semelhante ou ser uma coacutepia desta Forma Note que a princiacutepio a relaccedilatildeo ldquoser-

semelhante-ardquo pode ser entendida como uma relaccedilatildeo assimeacutetrica Ou seja

podemos pensar casos em que x eacute semelhante a y poreacutem y natildeo eacute semelhante a x

Pense por exemplo na relaccedilatildeo estabelecida entre Soacutecrates e as diversas

representaccedilotildees graacuteficas de Soacutecrates que foram produzidas no decorrer da histoacuteria

Podemos perfeitamente conceber que todas estas representaccedilotildees se assemelham a

Soacutecrates enquanto por outro lado Soacutecrates natildeo se assemelha a nenhuma delas

Entendida desta maneira a compreensatildeo de participaccedilatildeo como semelhanccedila natildeo

daria lugar a um regresso ao infinito No entanto Parmecircnides iraacute focar sua criacutetica

na demonstraccedilatildeo de que a relaccedilatildeo de semelhanccedila pressupotildee um caraacuteter simeacutetrico

ainda que Soacutecrates natildeo esteja plenamente consciente disto

ldquoSe entatildeo algo se parece com uma Forma disse Parmecircnides eacute possiacutevel essa Forma natildeo ser semelhante agravequilo que eacute feito como sua imagem na medida em que esta foi feita semelhante a ela Ou seraacute que haacute um meio de o semelhante natildeo ser semelhante ao semelhante Natildeo haacute Mas seraacute que natildeo eacute fortemente necessaacuterio o semelhante participar da mesma coisa uma que [seu] semelhante Eacute necessaacuterio sim Aquilo de que participando as coisas semelhantes seratildeo semelhantes natildeo seraacute a Forma mesma Absolutamente sim Logo natildeo eacute possiacutevel algo ser semelhante agrave Forma nem a Forma ser semelhante a outra coisa Senatildeo ao lado da Forma sempre apareceraacute outra Forma e se esta for semelhante a algo apareceraacute de novo outra e nunca cessaraacute de surgir sempre uma nova Forma se a Forma for semelhante ao que dela participardquo Εἰ οὖν τι ἔφη ἔοικεν τῷ εἴδει οἷόν τε ἐκεῖνο τὸ εἶδος microὴ ὅmicroοιον εἶναι τῷ εἰκασθέντι καθ ὅσον αὐτῷ ἀφωmicroοιώθη ἢ ἔστι τις microηχανὴ τὸ ὅmicroοιον microὴ ὁmicroοίῳ ὅmicroοιον εἶναι Οὐκ ἔστι Τὸ δὲ ὅmicroοιον τῷ ὁmicroοίῳ ἆρ οὐ microεγάλη ἀνάγκη ἑνὸς τοῦ αὐτοῦ microετέχειν Ἀνάγκη Οὗ δ ἂν τὰ ὅmicroοια microετέχοντα ὅmicroοια ᾖ οὐκ ἐκεῖνο ἔσται αὐτὸ τὸ εἶδος Παντάπασι microὲν οὖν Οὐκ ἄρα οἷόν τέ τι τῷ εἴδει ὅmicroοιον εἶναι οὐδὲ τὸ εἶδος ἄλλῳ εἰ δὲ microή παρὰ τὸ εἶδος ἀεὶ ἄλλο ἀναφανήσεται εἶδος καὶ ἂν ἐκεῖνό τῳ ὅmicroοιον ᾖ ἕτερον αὖ καὶ οὐδέποτε παύσεται ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον ἐὰν τὸ εἶδος τῷ ἑαυτοῦ microετέχοντι ὅmicroοιον γίγνηται (132d5-133a1)

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A demonstraccedilatildeo de Parmecircnides guarda novamente profundas

similaridades com o tipo de regresso ao infinito descrito por Alexandre de

Afrodiacutesia De acordo com a proposta socraacutetica diversas coisas belas possuem a

propriedade da beleza porque satildeo semelhantes agrave Beleza ela mesma (ἔοικεν τῷ

εἴδει) Parmecircnides entatildeo argumenta que caso as muacuteltiplas coisas belas sensiacuteveis

sejam semelhantes agrave Forma da Beleza entatildeo a Forma da Beleza seraacute tambeacutem

semelhante a elas Afinal devemos pressupor que coisas semelhantes se

assemelham por compartilhar alguma propriedade em comum (τὸ ὅmicroοιον τῷ

ὁmicroοίῳ ἀνάγκη ἑνὸς τοῦ αὐτοῦ microετέχειν) em nosso exemplo a propriedade da

beleza Neste caso contudo uma nova Forma da Beleza surgiria Esta nova

Forma teria a funccedilatildeo de explicar a beleza compartilhada pelas coisas belas e pela

Beleza ela mesma (παρὰ τὸ εἶδος ἀεὶ ἄλλο ἀναφανήσεται εἶδος) Tal como

ocorrido anteriormente este processo se repetiria indefinidamente (οὐδέποτε

παύσεται ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον) e acabariacuteamos por ter que admitir a

existecircncia de uma infinidade de Formas da Beleza numericamente distintas

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431 A formalizaccedilatildeo do Argumento do Terceiro Homem

O lugar de destaque que criacuteticas agrave Teoria das Ideias envolvendo regressotildees

ao infinito receberam ainda no tempo de Platatildeo fica comprovado pelas menccedilotildees

de Aristoacuteteles a estes argumentos O comentaacuterio de Alexandre nos garante ainda

que tal posiccedilatildeo de destaque se manteacutem por todo periacuteodo heleniacutestico Apesar disso

a tradiccedilatildeo de comentaacuterios moderna iniciada na Alemanha do seacuteculo XIX parece

ter relegado este tipo de argumento agrave condiccedilatildeo de uma simples falaacutecia ou

colocando-o em peacute de igualdade aos argumentos decorrentes do dilema da

participaccedilatildeo (cf Waddell 1894 p94-95 99-100) Esta situaccedilatildeo modifica-se

completamente a partir da segunda metade do seacuteculo XX quando a publicaccedilatildeo de

um artigo de Gregory Vlastos (1955) restitui ao Argumento do Terceiro Homem

entendido agora estritamente como a demonstraccedilatildeo de uma multiplicaccedilatildeo infinita

do nuacutemero de Formas seu lugar de importacircncia em meio agraves criacuteticas agrave Teoria das

Ideias

O artigo de Vlastos possui como tema central a reconstruccedilatildeo da estrutura

loacutegica dos argumentos encontrados no Parmecircnides Como vimos anteriormente

uma leitura das passagens em que as duas versotildees do regresso estatildeo anunciadas

permite um entendimento relativamente claro do raciociacutenio envolvido Poreacutem

como o amplo debate que se seguiu agrave publicaccedilatildeo do artigo de Vlastos demonstra

a reconstruccedilatildeo precisa das premissas implicadas no argumento natildeo eacute uma tarefa

simples Afinal eacute evidente que da maneira como estatildeo formulados no

Parmecircnides os argumentos necessitam de premissas natildeo expressas para que

sejam considerados vaacutelidos De fato a uacutenica premissa explicitamente apresentada

no texto de nosso diaacutelogo tanto no argumento de 131e-132b quanto no argumento

de 132d-133a eacute aquela que afirma a partir de uma multiplicidade de coisas que

recebem um determinado predicado F a existecircncia de uma Forma F em virtude da

qual todas as coisas recebem o predicado F Esta premissa eacute chamada por Vlastos

de premissa ldquoUm sobre Muitosrdquo (UM) e eacute apresentada em seu artigo de 1955

por meio da seguinte formulaccedilatildeo

(UMv) Se vaacuterias coisas a b c satildeo todas F entatildeo deve haver uma Forma uacutenica F-

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idade em virtude da qual apreendemos a b c como F

A argumentaccedilatildeo prosseguiria da seguinte maneira A partir de uma

multiplicidade de coisas F aplicariacuteamos a premissa (UM) para gerarmos uma

Forma de F-idade Esta Forma eacute entatildeo adicionada agrave coleccedilatildeo inicial e por meio de

mais uma aplicaccedilatildeo de (UM) gerariacuteamos outra Forma Esta nova Forma eacute

adicionada agrave coleccedilatildeo anterior e a premissa (UM) eacute aplicada novamente para gerar

uma nova Forma O mesmo processo poderia ser repetido ad infinitum

Eacute muito claro contudo que a premissa (UM) por si soacute natildeo eacute capaz de

gerar o regresso previamente descrito Afinal nenhuma claacuteusula foi oferecida para

a aplicaccedilatildeo reiterada da premissa (UM) aleacutem de nada nos obrigar a considerar

que cada nova aplicaccedilatildeo de (UM) seja responsaacutevel pelo surgimento de uma nova

Forma numericamente distinta daquela que foi gerada na aplicaccedilatildeo anterior deste

mesmo princiacutepio

Em vista disto Vlastos conclui que ldquoPlatatildeo devia ter algo mais em menterdquo

(Vlastos 1955 p236) e propotildee que na condiccedilatildeo de inteacuterpretes completemos as

lacunas do texto platocircnico Assim como justificativa para reitera aplicaccedilatildeo da

premissa (UM) Vlastos propotildee a seguinte premissa adicional

(APv) F-idade eacute F

Por meio desta premissa de ldquoAuto-Predicaccedilatildeordquo (AP)52 podemos explicar a

adiccedilatildeo da Forma F-idade ao grupo de coisas a b c Afinal (AP) garante que a

Forma F-idade eacute F tal como a b c Desta maneira apoacutes cada aplicaccedilatildeo de (UM)

estariacuteamos frente a um novo conjunto de entidades (Formas e coisas) todas elas

possuidoras de um mesmo predicado F o que nos permitiria uma nova aplicaccedilatildeo

de (UM)

Por outro lado para justificar a inferecircncia de que cada aplicaccedilatildeo de (OM)

produz uma Forma inteiramente nova Vlastos propotildee a seguinte premissa

(NIv) Se x eacute F entatildeo x natildeo pode ser idecircntico a F-idade

52 Entenderei durante toda discussatildeo subsequente que (AP) implica na univocidade de aplicaccedilatildeo

do predicado F isto eacute F-idade eacute F do mesmo modo que um objeto sensiacutevel x eacute F

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Por meio da adiccedilatildeo desta segunda premissa podemos garantir a natildeo

identidade entre cada uma das Formas geradas pelas diferentes aplicaccedilotildees de

(UM) Isto porque segundo (NI) qualquer coisa que seja F em virtude da

participaccedilatildeo em uma determinada Forma natildeo pode ser idecircntica agrave Forma da qual

participa Portanto a Forma produzida pela segunda aplicaccedilatildeo de (UM) natildeo pode

ser idecircntica agrave Forma produzida pela primeira aplicaccedilatildeo de (UM) caso contraacuterio

violaria (NI) e seria idecircntica agrave Forma em virtude da qual ela mesma eacute F

A accedilatildeo conjunta destas trecircs premissas eacute capaz de gerar o regresso ao

infinito que o personagem Parmecircnides apresenta explicitamente como a conclusatildeo

de seu argumento tanto em 132b quanto em 133a Contudo conforme notado pelo

proacuteprio Vlastos as duas premissas por ele adicionadas ao texto do diaacutelogo

possuem a caracteriacutestica de serem mutuamente inconsistentes Afinal a partir de

(NI) podemos facilmente inferir que F-idade natildeo eacute F contudo isto eacute justamente o

contraditoacuterio do que afirma (AP) Vlastos no entanto permanece convencido de

que estas satildeo exatamente as premissas que devemos atribuir a Soacutecrates E em

vista disto conclui que Platatildeo natildeo estava plenamente ciente das implicaccedilotildees de

seu argumento e nos apresenta estes dois regressos como um ldquoregistro de sua

honesta perplexidaderdquo (Vlastos 1955 p254)

Diversas publicaccedilotildees se seguiram ao artigo de Vlastos muitas delas com o

claro objetivo de formular um conjunto de premissas que natildeo estivesse sujeito agrave

inconsistecircncia encontrada na proposta inicial Sellars (1955) por exemplo

observa que Vlastos havia usado a expressatildeo ldquoF-idaderdquo como um designador

direto para as Formas e como alternativa propotildee que entendamos esta expressatildeo

como uma variaacutevel sujeita agrave quantificaccedilatildeo Assim concebidas as premissas do

Argumento do Terceiro Homem receberiam a seguinte formulaccedilatildeo

(UMs) Se vaacuterias coisas satildeo F entatildeo deve haver alguma F-idade em virtude da

qual estas coisas satildeo F

(APs)Todas F-idades satildeo F

(NIs) Se x eacute F entatildeo x natildeo eacute idecircntico agrave F-idade em virtude da qual x eacute F

(Sellars 1955 p418-419)

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Estas trecircs premissas satildeo de fato mutuamente consistentes aleacutem de serem

capazes de gerar o regresso ao infinito necessaacuterio para conclusatildeo dos argumentos

No entanto segundo Vlastos (1969) a formulaccedilatildeo proposta por Sellars para a

premissa (UMs) natildeo corresponde ao que encontramos no texto do Parmecircnides

Afinal em nosso diaacutelogo estaacute explicitamente afirmado que uma uacutenica Forma eacute

gerada a partir de uma determinada multiplicidade de coisas F (microία τις ἰδέα ἡ αὐτὴ

εἶναι ἐπὶ πάντα) enquanto a formulaccedilatildeo de Sellars faz uso de um quantificador

existencial ordinaacuterio cujo sentido deve ser entendido como ldquopelo menos uma

Formardquo

Concluindo que nenhuma formulaccedilatildeo de (UM) poderia estar correta sem

respeitar a singularidade implicada no raciociacutenio platocircnico Vlastos oferece uma

revisatildeo de seu conjunto de premissas

(UMv) Se qualquer conjunto de coisas compartilha uma mesma caracteriacutestica

entatildeo existe uma uacutenica Forma correspondente a esta caracteriacutestica e cada uma

destas coisas possui esta caracteriacutestica por participar nesta Forma

(APv) A Forma correspondente a uma determinada caracteriacutestica possui ela

mesma esta caracteriacutestica

(NIv) Se qualquer coisa possui uma determinada caracteriacutestica por participar em

uma Forma entatildeo esta coisa natildeo eacute idecircntica a esta Forma

(Vlastos 1969 p348-351)

Nesta nova formulaccedilatildeo do Argumento do Terceiro Homem natildeo haacute conflito

entre (AP) e (NI) Contudo se tomarmos as trecircs premissas em conjunto vemos

surgir uma nova inconsistecircncia Pois suponha que haacute uma seacuterie de coisas

possuidoras de uma mesma caracteriacutestica F entatildeo de acordo com (UMv) haveraacute

uma uacutenica Forma F correspondente agrave caracteriacutestica F Esta Forma por sua vez

possuiraacute ela mesma a caracteriacutestica F (APv) e compartilharaacute esta caracteriacutestica

com seus participantes No entanto por compartilhar de uma mesma caracteriacutestica

F a Forma F necessariamente participaria da Forma correspondente a esta

caracteriacutestica (UMv) Ora esta Forma eacute a proacutepria Forma F e portanto a Forma F

participaria de si mesma o que contradiz a premissa (Niv) A nova proposta de

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Vlastos resolveu a inconsistecircncia entre (NI) e (AP) apenas para criar outra

inconsistecircncia agora envolvendo as trecircs premissas do argumento

O problema de termos um conjunto inconsistente de premissas eacute que neste

caso o regresso ao infinito eacute gerado trivialmente isto eacute qualquer conjunto

inconsistente de premissas seria suficiente para gerar o regresso assim como o

mesmo conjunto de premissas poderia ser usado para gerar qualquer conclusatildeo na

medida em que ex falso sequitur quodlibet Assim entendido portanto o

argumento natildeo constituiria uma criacutetica vaacutelida agrave Teoria das Ideias e representaria

apenas uma evidecircncia indireta da contradiccedilatildeo inerente agraves premissas desta teoria

Surpreendentemente Vlastos acolhe esta particularidade de sua

interpretaccedilatildeo E mesmo em seus artigos posteriores continua mantendo a opiniatildeo

de que ambos os regressos apresentados no Parmecircnides satildeo muito mais

expressotildees imprecisas da perplexidade de Platatildeo do que argumentos vaacutelidos e

criacuteticas relevantes agrave sua concepccedilatildeo de Formas Assim Vlastos conclui que o

resultado da multiplicaccedilatildeo infinita do nuacutemero de Formas natildeo passa de ldquoum mero

bocircnus (hellip) adicionado somente pelo seu efeito retoacutericordquo (Vlastos 1969 p352)

Este tipo de interpretaccedilatildeo no entanto natildeo parece estar de acordo com o

texto de nosso diaacutelogo Em primeiro lugar teriacuteamos que menosprezar o fato de

que o texto claramente afirma a produccedilatildeo de um regresso ao infinito como o

resultado de ambos os argumentos apresentados por Parmecircnides (οὐκέτι δὴ ἓν

ἕκαστόν σοι τῶν εἰδῶν ἔσται ἀλλὰ ἄπειρα τὸ πλῆθος 132b2 οὐδέποτε παύσεται

ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον 133a1) e segundo Vlastos este resultado seria

apenas um acreacutescimo retoacuterico A multiplicaccedilatildeo infinita do nuacutemero de Formas estaacute

de pleno acordo com a estrutura geral das criacuteticas de Parmecircnides que como jaacute

sabemos concentram-se em demonstrar a impossibilidade das Formas manterem

sua unidade (numeacuterica e aspectual) ao mesmo tempo em que satildeo causas das

propriedades dos objetos sensiacuteveis

Em segundo lugar aceitar a sugestatildeo de que o conjunto de premissas

envolvido em nossos argumentos eacute inevitavelmente inconsistente equivale a

afirmar que Platatildeo representa o personagem Parmecircnides propondo criacuteticas

confusas nas quais a conclusatildeo natildeo se segue das premissas Esta admissatildeo

entretanto tornaria este par de argumentos completamente desviante agrave estrutura de

argumentaccedilatildeo que identificamos em nosso diaacutelogo Pois ateacute aqui toda seacuterie de

argumentos demonstrou possuir rigor loacutegico Devemos portanto buscar um

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conjunto consistente de premissas para nossos argumentos de modo a tornaacute-los

vaacutelidos e condizentes com a estrutura dramaacutetica que identificamos ateacute o presente

momento da discussatildeo

De fato diversos autores se dedicaram agrave tarefa de construir um conjunto

consistente de premissas para estes argumentos Como ficou comprovado a

formulaccedilatildeo deste conjunto depende da possibilidade de usarmos quantificaccedilotildees de

segunda ordem sobretudo se pretendemos manter a claacuteusula de singularidade em

(UM) defendida por Vlastos (cf Cohen 1971 p448-475) (cf Mignucci 1990)

Isto eacute precisariacuteamos usar variaacuteveis natildeo apenas sobre Formas e coisas mas

tambeacutem sobre funccedilotildees e conjuntos de Formas e coisas para mantermos a correccedilatildeo

do argumento sem abrir matildeo da formulaccedilatildeo singular de (UM) proposta por

Vlastos53

Formulaccedilotildees envolvendo um aparato loacutegico muito complexo no entanto

possuem a desvantagem de se distanciarem demais de um argumento apresentado

em linguagem relativamente simples E ainda estatildeo sujeitas agrave criacutetica de que

Platatildeo natildeo poderia ter pensado nestes termos na medida em que tais categorias

ainda natildeo faziam parte das anaacutelises loacutegicas disponiacuteveis em seu tempo

Devemos lembrar contudo que o conjunto de premissas apresentado por

Sellars (1955) jaacute possuiacutea o caraacuteter de ser consistente e gerar de maneira vaacutelida a

conclusatildeo expressamente apresentada por Parmecircnides Este conjunto havia sido

descartado por Vlastos com base em uma argumentaccedilatildeo puramente textual De

acordo Vlastos (1969) a formulaccedilatildeo do princiacutepio (UMs) natildeo faria jus agrave fala de

Parmecircnides em 132a2 Pois nesta sentenccedila estaria expressamente afirmado que

uma uacutenica Forma F pode ser gerada a partir de um conjunto qualquer de coisas F

(microία τις ἰδέα ἡ αὐτὴ εἶναι ἐπὶ πάντα) enquanto a formulaccedilatildeo de Sellars faz

menccedilatildeo a ldquoalguma Formardquo

A criacutetica de Vlastos se desenvolve da seguinte maneira em 132a1 a

expressatildeo ldquocada uma Formardquo (ἓν ἕκαστον εἶδος) estaacute apresentada em oposiccedilatildeo agrave

ldquoilimitadas em quantidadesrdquo (ἄπειρα τὸ πλῆθος 132b2) De maneira a manter esta

oposiccedilatildeo devemos entender ldquouma Formardquo como equivalente a ldquoapenas uma

53 Cohen em ldquoThe Logic of the Third Manrdquo (1971) constroacutei usando quantificaccedilotildees de segunda

ordem um conjunto consistente de premissas com base em uma analogia com os postulados de Peano e a derivaccedilatildeo da sequecircncia de nuacutemeros racionais Mignucci (1990) tambeacutem propotildee um conjunto consistente de premissas capazes de gerar o regresso desejado poreacutem novamente com base em um instrumental da loacutegica de segunda ordem

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Formardquo Portanto alega Vlastos o mesmo sentido deve ser atribuiacutedo agrave expressatildeo

ldquouma certa ideiardquo (microία τις ἰδέα) em 132a2 Assim o que Parmecircnides estaria

dizendo eacute que deve haver uma uacutenica Forma capaz de explicar porque toda e

qualquer coisa F recebe este predicado Como consequecircncia Vlastos afirma que

devemos incluir uma claacuteusula de singularidade na formulaccedilatildeo de (UM) a despeito

da correccedilatildeo loacutegica do argumento (Vlastos 1969 p354-355)

A pergunta que devemos fazer eacute se a interpretaccedilatildeo de Vlastos para a

expressatildeo microία τις ἰδέα eacute a uacutenica possiacutevel Na realidade como o proacuteprio Vlastos

afirma a oposiccedilatildeo necessaacuteria entre ldquouma Formardquo e ldquomuacuteltiplas Formasrdquo estaacute

estabelecida pelo contraste entre as expressotildees ἓν ἕκαστον εἶδος e ἄπειρα τὸ

πλῆθος Portanto o sentido geral de nosso argumento que pretende gerar uma

infinidade de Formas como maneira de contradizer a tese socraacutetica da

singularidade destas entidades jaacute estaacute garantido de antematildeo a despeito de como

entendamos a expressatildeo microία τις ἰδέα A razatildeo principal oferecida por Vlastos para

a leitura estritamente singular de microία τις ἰδέα estaacute no fato de que esta expressatildeo

encontra-se localizada entre ἓν ἕκαστον εἶδος (132a1) e ἓν τὸ microέγα (132a3) e

sendo assim devemos entender que as trecircs foacutermulas expressam por proximidade

e analogia exatamente a mesma tese

Ora podemos concordar que tanto em (132a1) quanto (132a3) o termo ἓν

significa ldquoapenas umardquo Contudo disto natildeo se segue que o termo microία em microία τις

ἰδέα ἡ αὐτὴ εἶναι possui o mesmo significado Em (132a1) e (132a3) o termo ἓν

aparece como um predicado enquanto o termo microία eacute um adjetivo do sujeito ἰδέα

na expressatildeo controversa Haacute uma grande diferenccedila entre se dizer que ldquox eacute umrdquo e

se dizer que ldquoum x eacute Frdquo Mesmo se no primeiro caso podemos afirmar que ldquoumrdquo

equivale a ldquoapenas umrdquo natildeo temos razotildees suficiente para afirmar que no segundo

caso ldquoumrdquo natildeo possa estar significando ldquopelo menos umrdquo Por possuiacuterem funccedilotildees

sintaacuteticas distintas os termos ἓν e microία podem ter significados distintos sem que o

texto seja considerado contraditoacuterio ou obscuro

Frente agrave validade da leitura de 132a2 como (UMs) podemos considerar o

conjunto de premissas apresentado por Sellars (Sellars 1955 p418-419) como

uma formalizaccedilatildeo adequada para os pressupostos envolvidos no Argumento do

Terceiro Homem Esta formalizaccedilatildeo possui a virtude de tornar os argumentos

apresentados pelo personagem Parmecircnides vaacutelidos ao mesmo tempo em que

apresenta premissas plausiacuteveis e facilmente identificaacuteveis na argumentaccedilatildeo

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desenvolvida por Soacutecrates Adotando o conjunto de premissas apresentado por

Sellars o raciociacutenio por traacutes dos argumentos de Parmecircnides poderia ser

esquematizado da seguinte maneira

Para o argumento de 131e-132b

1) A partir de uma multiplicidade a b c de coisas grandes

afirmamos a existecircncia da Forma do Grande (UMs)

2) A Forma do Grande eacute incluiacuteda no conjunto de coisas grandes

(APs)

3) A Forma do Grande natildeo pode ser grande em virtude de si mesma

(NIs)

4) Logo o conjunto de coisas grandes a b c Forma do Grande natildeo

pode ser considerado grande em virtude da Forma do Grande e

precisamos afirmar a existecircncia de uma nova Forma Grande2

(UMs)

5) A Forma do Grande2 eacute incluiacuteda no conjunto de coisas grandes

(APs)

6) A Forma do Grande2 natildeo pode ser grande em virtude de si mesma

(NIs)

7) Logo o conjunto de coisas grandes a b c Forma do Grande

Forma do Grande2 natildeo pode ser considerado grande em virtude

da Forma do Grande2 e precisamos afirmar a existecircncia de uma

nova Forma Grande3 (UMs)

etc

Para o argumento de 132d-133a

1) Diversas coisas a b c satildeo F em virtude de serem semelhantes agrave

Forma F (UMs)

2) a b c satildeo semelhantes agrave Forma F por compartilharem com esta

Forma a propriedade de serem F (APs)

3) A Forma F natildeo pode ser F em virtude de ser semelhante a si

mesma (NIs)

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4) Logo o conjunto a b c Forma F natildeo pode ser considerado F em

virtude de cada um de seus membros ser semelhante agrave Forma F e

precisamos afirmar a existecircncia de uma nova Forma F2 (UMs)

5) a b c Forma F satildeo semelhantes agrave Forma F2 por compartilharem

com esta Forma a propriedade de serem F (APs)

6) A Forma F2 natildeo pode ser F em virtude de ser semelhante a si

mesma (NIs)

7) Logo o conjunto a b c Forma F Forma F2 natildeo pode ser

considerado F em virtude de cada um de seus membros ser

semelhante agrave Forma F2 e precisamos afirmar a existecircncia de uma

nova Forma F3 (UMs)

etc

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432 A auto-predicaccedilatildeo das Formas

Fazendo uso dos dois regressos acima descritos Parmecircnides eacute capaz de

mais uma vez demonstrar a impossibilidade de serem mantidas simultaneamente

a tese do poder causal das Formas e a tese de que as Formas satildeo entidades uacutenicas

Eacute evidente contudo que os regressos apresentados por Parmecircnides soacute podem ser

considerados legiacutetimas criacuteticas agrave teoria socraacutetica caso as trecircs premissas em que

estes argumentos estatildeo baseados sejam de fato adotadas por Soacutecrates

Se olharmos para as trecircs assunccedilotildees necessaacuterias para a validade do

Argumento do Terceiro Homem podemos reconhecer que duas delas satildeo muito

evidentemente defendidas por Soacutecrates A premissa (UM) por exemplo formaliza

o poder causal atribuiacutedo agraves Formas pela Teoria das Ideias Como vimos uma das

hipoacuteteses centrais da teoria defendida por Soacutecrates desde os primeiros diaacutelogos

afirma que os objetos sensiacuteveis adquirem suas propriedades por meio da

participaccedilatildeo nas Formas De fato em Repuacuteblica 596a6-7 Soacutecrates trata como

parte de seu ldquomeacutetodo habitualrdquo (εἰωθυίας microεθόδου) afirmar a existecircncia (τίθεσθαι)

de uma uacutenica Forma para ldquocada conjunto de muacuteltiplas coisas agraves quais atribuiacutemos

um mesmo nomerdquo (ἕκαστα τὰ πολλά οἷς ταὐτὸν ὄνοmicroα ἐπιφέροmicroεν)54 Da mesma

maneira a premissa (NI) natildeo passa de uma implicaccedilatildeo direta da tese socraacutetica

segundo a qual as Formas satildeo entidades separadas Como sabemos a separaccedilatildeo

das Formas equivale agrave afirmaccedilatildeo da independecircncia ontoloacutegica destas entidades

que natildeo necessitam dos objetos sensiacuteveis para existirem Ora da afirmaccedilatildeo de que

as Formas satildeo entidades ontologicamente independentes dos objetos que delas

participam segue-se (NI) ldquoSe qualquer coisa possui uma determinada

caracteriacutestica por participar em uma Forma entatildeo esta coisa natildeo eacute idecircntica a esta

Formardquo

A premissa (AP) contudo foi alvo de grande controversa e diversos

comentadores contestam sua legitimidade como parte da Teoria das Ideias Estes

comentadores tecircm que lidar com o fato de que Soacutecrates em diversos diaacutelogos faz

54 Note que na formulaccedilatildeo socraacutetica de (UM) em Repuacuteblica 596a6-7 εἶδος τι ἓν ἕκαστον estaacute em

oposiccedilatildeo a ἕκαστα τὰ πολλά o que natildeo inviabiliza a leitura de Sellars Na reconstruccedilatildeo acima proposta por exemplo cada conjunto de muacuteltiplas coisas ( ἕκαστα τὰ πολλά) corresponde a uma uacutenica Forma (εἶδος τι ἓν ἕκαστον) apesar dos elementos envolvidos participarem de mais de um conjunto e portanto terem mais de uma Forma como causa de suas propriedades

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afirmaccedilotildees na forma ldquoa F-idade eacute Frdquo No Hippiacuteas Maior (292e) por exemplo

Soacutecrates afirma que ldquoo Belo eacute sempre belordquo (ἀεὶ γάρ που τό γε καλὸν καλόν) No

Protaacutegoras (330c-e) explica que se existe alguma coisa chamada ldquoJusticcedilardquo ou

ldquoPiedaderdquo entatildeo a Justiccedila eacute necessariamente justa (ἡ δικαιοσύνη οἷον δίκαιον

εἶναι) e a Piedade pia (αὐτή γε ἡ ὁσιότης ὅσιον) Aleacutem disso no Banquete (210e-

211b) a Forma do Belo eacute claramente apresentada como algo belo Na realidade

como vimos o Belo ele mesmo eacute sempre belo (microονοειδὲς ἀεὶ ὄν) em contraste

com os objetos belos sensiacuteveis que satildeo belos em determinadas relaccedilotildees poreacutem

natildeo em outras (τῇ microὲν καλόν τῇ δ αἰσχρόν τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ etc) Aleacutem

disso atraveacutes do Feacutedon sabemos que Soacutecrates adota uma compreensatildeo da relaccedilatildeo

de causalidade segundo a qual uma Forma deve possuir a propriedade de que eacute

causa nos objetos sensiacuteveis

Frente a todas estas evidecircncias os comentadores adotam basicamente duas

estrateacutegias para negar que estas afirmaccedilotildees possam representar o

comprometimento de Soacutecrates com (AP) De acordo com um primeiro grupo de

inteacuterpretes as asserccedilotildees socraacuteticas na forma ldquoA F-idade eacute Frdquo ou ldquoo F ele mesmo eacute

Frdquo natildeo devem ser entendidas como oferecendo uma descriccedilatildeo ou caracterizaccedilatildeo

da Forma de F Isto eacute tais sentenccedilas seriam apenas aparentes exemplos de

predicaccedilatildeo Na realidade contudo natildeo teriam a funccedilatildeo de atribuir o predicado F agrave

Forma que ocupa o lugar de sujeito da sentenccedila Deste modo natildeo poderiam

representar ldquoauto-predicaccedilotildeesrdquo na medida em que sequer seriam casos de

predicaccedilatildeo A segunda estrateacutegia adotada pelos comentadores para negar que

Soacutecrates esteja comprometido com (AP) consiste em afirmar que apesar de

verdadeiras predicaccedilotildees sentenccedilas na forma ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo podem ser

equiparadas a sentenccedilas na forma ldquox eacute Frdquo em que x corresponde a uma entidade

sensiacutevel Teriacuteamos assim dois tipos distintos de predicaccedilatildeo a Forma F eacute F

poreacutem de um modo completamente diferente da coisa x ser F Natildeo havendo

uniformidade na maneira em que estes dois tipos de entidades recebem seus

predicados natildeo estaria justificada a inclusatildeo de F-idade no conjunto de coisas (a

b c) e o regresso estaria bloqueado em seu primeiro passo

Cada uma destas duas estrateacutegias baacutesicas de negar a validade de (AP) foi

defendida por mais de um argumento Portanto trataremos delas separadamente a

comeccedilar pelos comentadores que afirmam o primeiro tipo de abordagem segundo

o qual as sentenccedilas na forma ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo representam tentativas de

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descriccedilotildees das Formas e portanto natildeo satildeo legiacutetimas predicaccedilotildees

Reginald Allen (1960) baseia-se nas noccedilotildees de eponiacutemia e homoniacutemia

para afirmar que quando Soacutecrates chama uma determinada Forma F de F ele natildeo

estaacute propriamente atribuindo a esta Forma a caracteriacutestica de ser-F Segundo

Allen nas sentenccedilas do tipo ldquox eacute Frdquo em que particulares ocupam o lugar do

sujeito o predicado F estaacute normalmente descrevendo ou classificando o sujeito x

Contudo nas sentenccedilas auto-predicativas em que uma Forma estaacute ocupando o

lugar do sujeito o termo F possui uma funccedilatildeo completamente distinta e deve ser

entendido como um nome proacuteprio Allen faz uso de duas passagens no Feacutedon para

defender sua teoria Na primeira delas (78e1) Soacutecrates afirma que os objetos

sensiacuteveis satildeo homocircnimos (ὁmicroωνύmicroων) das Formas Enquanto na segunda

passagem (102b) oferece a explicaccedilatildeo de que as coisas sensiacuteveis ldquorecebem os

nomes das Formas em que participamrdquo (τἆλλα microεταλαmicroβάνοντα αὐτῶν τούτων

τὴν ἐπωνυmicroίαν ἴσχειν)

De acordo com Allen (1960 p45) estas duas passagens seriam suficientes

para afirmarmos que segundo a teoria defendida por Soacutecrates toda sentenccedila na

estrutura sujeito-predicado natildeo passa de uma reproduccedilatildeo por homoniacutemia das

relaccedilotildees entre Formas e coisas Isto eacute estas poucas linhas seriam evidecircncia

suficiente para atribuirmos a Soacutecrates uma teoria da significaccedilatildeo em que toda

predicaccedilatildeo ficaria reduzida a uma anaacutelise das relaccedilotildees de designaccedilatildeo atraveacutes de

nomes Assim em virtude da participaccedilatildeo na Forma F os objetos sensiacuteveis

recebem o nome desta Forma com uma de suas designaccedilotildees ganhando o direito

de serem verdadeiramente chamados de F

Apesar do iacutenfimo apoio textual oferecido como suporte para a atribuiccedilatildeo

de uma teoria da linguagem tatildeo extravagante a Soacutecrates Allen distingue em

seguida dois modos de designaccedilatildeo Um nome possuiria uma designaccedilatildeo

primaacuteria quando aplicado a uma Forma e uma designaccedilatildeo secundaacuteria quando

aplicado aos objetos sensiacuteveis Em sua designaccedilatildeo primaacuteria o termo F seria usado

como um nome proacuteprio que identifica a Forma F poreacutem natildeo a descreve A

relaccedilatildeo de designaccedilatildeo secundaacuteria por outro lado seria essencialmente derivativa

e atribuiria a uma entidade sensiacutevel um nome que lhe pertence apenas

indiretamente devido agrave relaccedilatildeo de homoniacutemia que esta entidade manteacutem com

uma Forma

Aceitando a explicaccedilatildeo de Allen somos obrigados a reconhecer que

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sentenccedilas do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo servem para descrever a F-idade uma vez

que o termo F natildeo passa de um mais um nome desta Forma Assim todo caso de

aparente auto-predicaccedilatildeo das Formas natildeo passaria de uma tautologia entre

sinocircnimos e natildeo afirmaria nada aleacutem da identidade da Forma F com ela mesma Eacute

evidente que neste caso a foacutermula ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo constituiria uma legiacutetima

predicaccedilatildeo e portanto natildeo poderia ser usada como evidecircncia do

comprometimento de Soacutecrates com (AP)

O maior problema da interpretaccedilatildeo de Allen eacute que os poucos textos por ele

apresentados natildeo parecem oferecer o suporte necessaacuterio para sua caracterizaccedilatildeo

da concepccedilatildeo socraacutetica de predicaccedilatildeo como designaccedilatildeo Segundo Allen as coisas

sensiacuteveis recebem os nomes das Formas No entanto se analisarmos as passagens

do Feacutedon citadas por Allen assim como a passagem do proacuteprio Parmecircnides em

que a noccedilatildeo de eponiacutemia eacute evocada veremos que em nenhuma delas eacute possiacutevel

encontrar o termo F como um nome para as Formas Em Feacutedon 102b-c Soacutecrates

menciona a Grandeza (microέγεθος) e a Pequenez (σmicroικρότητα) como nomes de

Formas No Parmecircnides aparecem ainda os termos Igualdade (ὁmicroοιότητος) e

Justiccedila (δικαιοσύνης) Ora todas estas passagens mencionam apenas substantivos

abstratos (F-idade) como designadores diretos das Formas Uma anaacutelise

tautoloacutegica para sentenccedilas auto-predicativas no entanto depende que as Formas

sejam designadas natildeo soacute como F-idade mas tambeacutem como F Sem uma afirmaccedilatildeo

expliacutecita de que o termo F pode servir como um nome para as Formas natildeo temos

como derivar uma identidade a partir da sentenccedila ldquoF-idade eacute Frdquo

A outra passagem apresentada por Allen (Feacuted78e) na qual se afirma a

homoniacutemia entre Formas e coisas tampouco apresenta F como uma designaccedilatildeo

primaacuteria das Formas Nesta passagem as designaccedilotildees citadas para as Formas satildeo

o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) e o Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

Novamente natildeo temos o termo desejado apenas a expressatildeo ldquoo F ele mesmordquo

(αὐτὸ τὸ F) Tal como no caso da eponiacutemia para que sentenccedilas auto-predicativas

envolvendo Formas ficassem seguramente estabelecidas como tautologias

precisariacuteamos que aleacutem de ldquoF-idaderdquo e ldquoo F ele mesmordquo o proacuteprio termo F

servisse como nome para as Formas Contudo natildeo eacute isso que encontramos em

qualquer dos textos apresentados por Allen55

55 Como reconhece Malcolm quem primeiro formulou este tipo de objeccedilatildeo a Allen outros textos

apresentam o termo F como nome da Forma F-idade por exemplo Eut10d Fed76d

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De fato mesmo se nas passagens elencadas por Allen o termo F fosse

apresentado como um designador direto da Forma F-idade natildeo teriacuteamos razotildees

suficientes para descartar por completo a possibilidade de (AP) representar um

real princiacutepio da Teoria das Ideias Afinal natildeo eacute apenas nos contextos de

homoniacutemia e eponiacutemia mencionados por Allen que Soacutecrates descreve uma Forma

como possuidora da propriedade de que eacute causa nos objetos sensiacuteveis Considere

por exemplo a Forma do Belo no Banquete Como vimos neste diaacutelogo a Forma

do Belo eacute caracterizada como ldquoalgo maravilhosamente belo por naturezardquo (τι

θαυmicroαστὸν τὴν φύσιν καλόν) sem que seja feita qualquer menccedilatildeo a questotildees de

homoniacutemia ou relaccedilotildees de significado Mesmo que a anaacutelise de Allen nos

fornecesse uma interpretaccedilatildeo vaacutelida para a teoria socraacutetica da predicaccedilatildeo

passagens como esta do Banquete (210e-211b) ainda poderiam ser usadas para

comprometer Soacutecrates com (AP) Afinal como poderiacuteamos explicar a doutrina de

que o Belo eacute o objeto maior de desejo eroacutetico por ser sempre belo (microονοειδὲς ἀεὶ

ὄν) Segundo Allen isto seria equivalente a afirmarmos que o Belo eacute o objeto

maior de desejo eroacutetico por ser sempre igual a ele mesmo Tal afirmaccedilatildeo

contudo eacute claramente insustentaacutevel uma vez que cada coisa eacute sempre igual a ela

mesma e portanto todas elas seriam o objeto maior de desejo eroacutetico

Este uacuteltimo tipo de objeccedilatildeo se estende a todos aqueles que pretendem

interpretar sentenccedilas do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo como casos de identidade a despeito

de aceitarem a anaacutelise de predicaccedilotildees como relaccedilotildees de homoniacutemia proposta por

Allen Cherniss (1957) o primeiro a propor que devemos entender sentenccedilas auto-

predicativas envolvendo Formas como casos de identidade distingue entre ter F e

ser F Segundo Cherniss enquanto os objetos sensiacuteveis tecircm uma propriedade F

em virtude de sua participaccedilatildeo na Forma F a F-idade eacute a propriedade F Assim

somente em sentenccedilas contendo particulares sensiacuteveis como sujeitos o predicado

estaria fornecendo uma descriccedilatildeo do sujeito em questatildeo Em sentenccedilas na forma

ldquoa F-idade eacute Frdquo por outro lado teriacuteamos uma afirmaccedilatildeo de identidade e natildeo uma

predicaccedilatildeo ordinaacuteria

Ora a primeira coisa que devemos notar eacute que nada na anaacutelise de Cherniss

proiacutebe que a F-idade possa ser F e simultaneamente ter F como um legiacutetimo

Sof255a No entanto na medida em que toda teoria de Allen jaacute possui escasso apoio textual podemos considerar o fato de que o termo F natildeo aparece como um designador das Formas nas passagens por ele apresentadas como uma evidecircncia contra sua interpretaccedilatildeo (cf Malcolm

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predicado E caso Cherniss argumente que soacute eacute possiacutevel ter uma propriedade em

virtude da participaccedilatildeo em uma Forma podemos coerentemente responder que ou

bem F-idade tem F por participar de si mesma ou bem precisariacuteamos de uma

segunda Forma F-idade para explicar a propriedade F que F-idade tem

Estariacuteamos assim novamente no caso de decidir sobre a validade de (AP)

mesmo aceitando a anaacutelise de Cherniss que a princiacutepio deveria servir de soluccedilatildeo

para este dilema Aleacutem disso considerando que Cherniss venha a negar

completamente a possibilidade de uma Forma F ter a propriedade F e mantenha

que toda sentenccedila do tipo ldquoA F-idade eacute Frdquo deve ser entendia como uma predicaccedilatildeo

de identidade algumas afirmaccedilotildees de Soacutecrates resultariam em inaceitaacuteveis contra-

sensos Considere por exemplo o que fala Soacutecrates em Feacutedon 100c4-6

ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute bela (εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν56) aleacutem do Belo ele mesmo (πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o restordquo φαίνεται γάρ microοι εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν οὐδὲ δι ἓν ἄλλο καλὸν εἶναι ἢ διότι microετέχει ἐκείνου τοῦ καλοῦ (100c4-6)

Esta sentenccedila afirma claramente que 1) o Belo ele mesmo eacute belo e 2) que

se alguma outra coisa tambeacutem eacute bela entatildeo ela eacute bela por participar no Belo ele

mesmo Ora de acordo com Allen e Cherniss 1) dever ser entendido como ldquoo

Belo ele mesmo eacute idecircntico ao Belordquo Sendo assim 2) estaria afirmando a seguinte

absurdidade ldquoSe alguma outra coisa eacute idecircntica ao Belo ele mesmo entatildeo esta

coisa eacute idecircntica ao Belo ele mesmo porque participa no Belo ele mesmordquo Isto no

entanto contradiz de maneira oacutebvia a Teoria das Ideias Afinal toda coisa bela

incluindo objetos sensiacuteveis seria idecircntica agrave Forma da Beleza Aleacutem disso a

proacutepria participaccedilatildeo teria como resultado a identidade entre a coisa participante e

a Forma participada

Uma uacuteltima interpretaccedilatildeo que pretende negar que a sentenccedila ldquoa F-idade eacute

Frdquo forneccedila uma descriccedilatildeo da Forma F-idade foi apresentada pelo proacuteprio Vlastos

quem primeiro identificou (AP) Anos depois de sua primeira publicaccedilatildeo sobre o

assunto Vlastos decide mudar sua interpretaccedilatildeo para o sentido de sentenccedilas auto-

predicativas envolvendo Formas Segundo ele a compreensatildeo de sentenccedilas da

1991 p 67-68)

56 Note que a mesma ocorrecircncia de καλὸν serve de predicado tanto para τί ἄλλο quanto para αὐτὸ τὸ καλόν Portanto a mesma anaacutelise deve ser oferecida para ldquo τί ἄλλο ἐστιν καλὸνrdquo e ldquo αὐτὸ

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forma ldquoa F-idade eacute Frdquo como casos de (AP) levaria a contradiccedilotildees tatildeo evidentes

que Platatildeo natildeo poderia ter deixado de notaacute-las No Protaacutegoras (330c7-8) por

exemplo Soacutecrates afirma que a ldquoJusticcedila eacute justardquo e logo apoacutes que a ldquoPiedade eacute

piardquo De acordo com Vlastos estas sentenccedilas natildeo podem representar descriccedilotildees

pois na condiccedilatildeo de Formas a Justiccedila e a Piedade natildeo poderiam ser justas ou

pias Estes atributos morais aplicam-se a pessoas ou atitudes e natildeo faria qualquer

sentido afirmar que uma entidade inteligiacutevel universal possui uma qualidade

moral Assim Vlastos admite que o Belo do Banquete seja belo ou que a Unidade

seja uacutenica pois a proacutepria condiccedilatildeo de Formas platocircnicas exige que natildeo soacute o Belo

e a Unidade mas de fato todas as Formas sejam belas e uacutenicas Poreacutem nenhuma

Forma incluindo a Justiccedila poderia ser justa na medida em que nenhuma entidade

inteligiacutevel universal eacute capaz de realizar atitudes passiacuteveis de julgamento moral

Como anaacutelise para sentenccedilas do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo nas quais o termo F

natildeo representa uma caracteriacutestica proacutepria das Formas enquanto Formas Vlastos

propotildee a seguinte anaacutelise ldquoNecessariamente se x participa de F-idade entatildeo x eacute

Frdquo (Vlastos 1972 p252-265) Deste modo afirmaccedilotildees do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo

natildeo teriam uma Forma como sujeito mas ofereceriam uma descriccedilatildeo da classe de

coisas que participam em F-idade Inspirado em uma passagem de Satildeo Paulo

(Carta aos Coriacutentios I 13 4-8) Vlastos denomina o tipo de predicaccedilatildeo por ele

descrito como ldquopredicaccedilatildeo paulinardquo

Em sua epiacutestola Satildeo Paulo faz afirmaccedilotildees como ldquoa caridade eacute piardquo e ldquoa

caridade eacute magnacircnimardquo De acordo com Vlastos o que S Paulo pretende dizer

por meio destas sentenccedilas eacute que ldquotodo aquele que eacute caridoso eacute tambeacutem piedoso e

magnacircnimordquo Assim transposto para o contexto platocircnico as afirmaccedilotildees do

Protaacutegoras natildeo estariam afirmando rigorosamente nada sobre as Formas da

Justiccedila e Piedade mas apenas sustentando a tese de que ldquotodo aquele que participa

da Justiccedila eacute justordquo Deste modo casos problemaacuteticos de auto-predicaccedilatildeo de

Formas ficariam reduzidos a casos de predicaccedilotildees gerais sobre coisas sensiacuteveis

O problema gerado pela anaacutelise proposta por Vlastos possui natureza

essencialmente conceitual Para comeccedilar a teoria da predicaccedilatildeo paulina pressupotildee

que sentenccedilas envolvendo Formas como sujeito possam ser diretamente

traduzidas em sentenccedilas envolvendo somente particulares sensiacuteveis isto eacute no

τὸ καλόν ἐστιν καλὸνrdquo

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caso de termos uma sentenccedila do tipo ldquoa F-idade eacute xrdquo estariacuteamos falando natildeo da F-

idade mas do conjunto de coisas sensiacuteveis que satildeo F Como observa Fronterotta

(2001 p250-251) isto vai de encontro agrave proacutepria concepccedilatildeo de Forma como uma

entidade separada dos objetos sensiacuteveis que dela participam De acordo com a

ontologia socraacutetica a Forma F-idade natildeo corresponde agrave soma dos objetos que satildeo

F mas caracteriza-se por ser ontologicamente distinta destas coisas Portanto

qualquer anaacutelise que resulte em confusatildeo ou sobreposiccedilatildeo entre o que eacute a F-idade

e o que satildeo os muacuteltiplos objetos sensiacuteveis que possuem a propriedade de serem F

estaacute sujeita agrave criacutetica de estar ignorando a distinccedilatildeo mais fundamental da Teoria das

Ideias

Suponha por exemplo uma relaccedilatildeo entre Formas expressa na sentenccedila ldquoa

F-idade eacute a G-idaderdquo Segundo Vlastos estas sentenccedilas deveriam ter sua

veracidade comprovada por meio da verificaccedilatildeo da relaccedilatildeo de inclusatildeo entre o

conjunto de coisas que satildeo F e o conjunto de coisas que satildeo G Uma relaccedilatildeo entre

Formas ficaria reduzida no espiacuterito da teoria da predicaccedilatildeo paulina a uma relaccedilatildeo

entre extensotildees de conjuntos de coisas Entretanto isto violaria a prioridade

ontoloacutegica e epistemoloacutegica das Formas em relaccedilatildeo aos objetos sensiacuteveis e uma

relaccedilatildeo entre coisas seria responsaacutevel pelo estabelecimento de uma relaccedilatildeo entre

Formas quando uma anaacutelise fiel aos princiacutepios da Teoria das Ideias deveria

apresentar exatamente o oposto

Podemos concluir portanto que nenhum dos autores acima mencionados

conseguiram oferecer uma anaacutelise para sentenccedilas do tipo ldquoA F-idade eacute Frdquo que

livrasse Soacutecrates de (AP) e consequentemente do Argumento do Terceiro

Homem Tentar afirmar que sentenccedilas auto-predicativas envolvendo Formas natildeo

oferecem descriccedilotildees e portanto natildeo satildeo legiacutetimas predicaccedilotildees resulta em

distorccedilotildees tatildeo gritantes do conteuacutedo dos diaacutelogos que natildeo podemos aceitar este

tipo de anaacutelise

Tendo descartado as interpretaccedilotildees que pretendem livrar Soacutecrates de (AP)

por meio da afirmaccedilatildeo de que a sentenccedila ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo constituiria uma

descriccedilatildeo da Forma F-idade podemos nos voltar para a segunda estrateacutegia adota

pelos comentadores com o objetivo de invalidar o Argumento do Terceiro

Homem Como dito anteriormente este segundo grupo de inteacuterpretes assume que

sentenccedilas auto-predicativas oferecem uma descriccedilatildeo da Forma que ocupa o lugar

de sujeito poreacutem alegam que esta descriccedilatildeo natildeo eacute suficiente para agruparmos a

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Forma F-idade com os diversos objetos sensiacuteveis que satildeo F Isto porque a Forma

F-idade natildeo receberia o predicado F da mesma maneira que objetos sensiacuteveis (a

b c) o recebem Teriacuteamos portanto dois tipos distintos de predicaccedilatildeo a F-idade eacute

F poreacutem de um modo completamente diferente das coisas (a b c) serem F Uma

vez que o predicado F natildeo estaria sendo aplicado de maneira uniacutevoca a Formas e

coisas a inclusatildeo de F-idade no conjunto de coisas (a b c) necessaacuteria para

gerarmos o regresso ao infinito natildeo estaria justificada e todo o argumento seria

invalidado

De acordo com os proponentes desta tese a fonte textual para atribuirmos

este tipo de interpretaccedilatildeo a Platatildeo estaria nos textos em que Soacutecrates descreve a

relaccedilatildeo entre Formas e coisas como uma relaccedilatildeo anaacuteloga agravequela entre um Modelo

ou Original (παραδείγmicroατα) e suas coacutepias (εἰκόνες) imagens (ei)dwla) ou

imitaccedilotildees (mimhmata) Uma vez que tenhamos em mente afirmam estes

comentadores que Soacutecrates entende a relaccedilatildeo entre Formas e coisas da mesma

maneira que entendemos a relaccedilatildeo entre um Modelo e suas coacutepias (um Original e

suas imagens) seremos levados a concluir que a sentenccedila ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo

atribui o predicado F a seu sujeito do mesmo modo que a sentenccedila ldquox eacute Frdquo atribui

o predicado F ao objeto sensiacutevel x

Ora para que este argumento seja realmente efetivo eacute preciso que fique

especificado exatamente qual eacute esta relaccedilatildeo entre um ModeloOriginal e suas

coacutepiasimagens que quando transposta para relaccedilatildeo entre Formas e coisas

sensiacuteveis eacute capaz de falsificar (AP) Uma explicaccedilatildeo repetidamente apresentada

pelos comentadores baseia-se na relaccedilatildeo entre um padratildeo (standard) de medida e

as muacuteltiplas coisas que podem ser alvo de mediccedilatildeo em comparaccedilatildeo a este

padratildeo57 De acordo com este tipo de argumentaccedilatildeo uma Forma deveria ser

comparada a um Modelo de medida como por exemplo o padratildeo do Metro

contido na Academia de Medidas Francesa Aceitando esta analogia seriacuteamos

levados a ver que assim como o Metro padratildeo natildeo possui a medida de um metro

uma vez que ele eacute o proacuteprio modelo para a aplicaccedilatildeo deste predicado tambeacutem F-

idade natildeo pode ser dita F ou classificada como uma coisa F

Um testemunho de grande peso eacute neste contexto evocado pelos

defensores deste tipo de interpretaccedilatildeo que citam Wittgenstein ldquoHaacute uma uacutenica

57 Este tipo de argmentaccedilatildeo eacute explicitamente adotado por Bluck em ldquoForms as Standardsrdquo (1957)

e Allen (1960 p 45-47) sendo por vezes defendido por Patterson (1985)

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coisa sobre a qual natildeo podemos dizer que tem um metro de comprimento nem que

natildeo tem um metro de comprimento esta coisa eacute o padratildeo do metro situado em

Parisrdquo (Investigaccedilotildees Filosoacuteficas 50) Esta afirmaccedilatildeo seria suficiente para colocar

Wittgenstein ao lado daqueles que acham que assim como natildeo podemos dizer do

padratildeo do Metro que ele possui um metro de comprimento tampouco poderiacuteamos

dizer de F-idade que ela eacute F

Conforme demonstrado por Malcolm (1991 p 70-72) a explicaccedilatildeo para a

enigmaacutetica sentenccedila de Wittgenstein deve ser buscada na sua teoria de que nomear

e descrever satildeo essencialmente atos de fala distintos De fato na seccedilatildeo

imediatamente anterior a esta afirmaccedilatildeo Wittgenstein nos diz ldquoNomear e

descrever natildeo estatildeo no mesmo niacutevel a nomeaccedilatildeo eacute uma preparaccedilatildeo para

descriccedilatildeordquo (Investigaccedilotildees Filosoacuteficas 49) Devemos entender portanto que ao

nomearmos uma determinada barra de ferro em Paris como o Modelo do Metro

natildeo estamos descrevendo esta barra mas estabelecendo um padratildeo que serviraacute

para posterior descriccedilatildeo desta medida Assim o criteacuterio de verdade da sentenccedila ldquoo

Metro tem um metrordquo eacute estabelecido por nomeaccedilatildeo enquanto o criteacuterio de

verdade para descriccedilatildeo ldquoesta mesa tem um metrordquo eacute estabelecido por comparaccedilatildeo

ao Modelo de metro ldquoesta mesa tem um metrordquo soacute eacute uma sentenccedila verdadeira

quando a mesa possuir o mesmo comprimento do Metro Modelo

A pergunta que devemos fazer eacute se este ato de nomeaccedilatildeo anula por

completo a possibilidade de subsequentes descriccedilotildees deste Modelo Considerando

por exemplo que o ato de nomeaccedilatildeo se daacute uma uacutenica vez entatildeo nunca mais

poderiacuteamos fazer afirmaccedilotildees sobre o comprimento da barra de ferro situada na

Academia de Medidas Francesa Eacute muito mais razoaacutevel acreditarmos que seu

estabelecimento como Modelo eacute aquilo que nos permite descrevecirc-la como tendo

um metro de comprimento Nada parece obrigar que o estabelecimento de um

padratildeo sirva de preparaccedilatildeo para que apenas outras coisas sejam descritas

Podemos considerar inclusive que o estabelecimento de um padratildeo depende da

realizaccedilatildeo de dois atos simultacircneos a descriccedilatildeo de uma propriedade deste padratildeo

e a nomeaccedilatildeo desta entidade como Modelo para subsequente aplicaccedilotildees desta

descriccedilatildeo Sendo assim creio que a afirmaccedilatildeo de Wittgenstein estaacute restrita ao

acircmbito do momento de estabelecimento do Modelo do Metro De fato para

estabelecermos um comprimento como padratildeo de metro precisamos nomeaacute-lo e

natildeo descrevecirc-lo Poreacutem apoacutes estabelecido este padratildeo natildeo haacute motivo aparente

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para negar que possamos descrever o Metro Modelo como tendo um metro de

comprimento

Assim se utilizarmos a relaccedilatildeo entre o padratildeo do Metro e as coisas

descritas como tendo um metro de comprimento para entender a relaccedilatildeo entre

Formas e coisas veremos que esta analogia natildeo eacute suficiente para combater a

validade de (AP) Mesmo natildeo havendo um momento de nomeaccedilatildeo da Forma de F-

idade como padratildeo o que os comentadores que fazem uso da discussatildeo iniciada

por Wittgenstein pretendem afirmar eacute que assim como o criteacuterio de

estabelecimento da verdade de ldquoa mesa tem um metrordquo natildeo pode ser o mesmo

criteacuterio de estabelecimento da verdade de ldquoo Metro tem um metrordquo tambeacutem o

criteacuterio de verdade de ldquoF-idade eacute Frdquo deve ser distinto do criteacuterio de verdade de ldquoa

eacute Frdquo

Contudo se as coisas de um metro possuem a mesma medida do padratildeo de

Metro entatildeo logicamente o padratildeo de Metro possui a mesma medida das coisas

de um metro Sendo assim se o comprimento destas coisas pode ser descrito pelo

predicado ldquoter um metrordquo entatildeo o Metro padratildeo tambeacutem deve poder ser descrito

pelo mesmo predicado No caso das Formas se a b c satildeo F em virtude da F-

idade entatildeo de acordo com a analogia proposta a b c possuem a mesma

propriedade que F-idade e somos obrigados a admitir que ldquoa F-idade eacute Frdquo do

mesmo modo que ldquoa b c satildeo Frdquo a despeito do criteacuterio para o estabelecimento da

verdade das sentenccedilas ldquoa eacute Frdquo ldquob eacute Frdquo e ldquoc eacute Frdquo ser diferente daquele usado para

estabelecer a verdade de ldquoa F-idade eacute Frdquo Entender a relaccedilatildeo entre Formas e coisas

como anaacuteloga agrave relaccedilatildeo entre um padratildeo e as coisas descritas a partir deste padratildeo

natildeo fornece uma saiacuteda ao Argumento do Terceiro Homem

Outra proposta de compreensatildeo para a natureza da remissatildeo

Modelocoacutepias parece oferecer uma explicaccedilatildeo muito mais promissora para

relaccedilatildeo entre Formas e coisas Alguns autores como Allen (1960 p48-52) Geach

(1956) e Patterson (1985) sugerem que entendamos a relaccedilatildeo entre Formas e

coisas em analogia agrave relaccedilatildeo entre um determinado objeto e suas muacuteltiplas

imagens Neste tipo de relaccedilatildeo alegam estes comentadores eacute muito claro que as

imagens natildeo satildeo um caso de F da mesma maneira que o original eacute F Pense por

exemplo na relaccedilatildeo entre um gato e as diversas fotos deste gato Parece muito

oacutebvio que o gato original recebe o predicado ldquoser-um-gatordquo de um modo muito

diferente de suas imagens pois estas falando estritamente natildeo satildeo gatos

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Seguindo esta analogia a Forma da F-idade seria a uacutenica coisa realmente F

enquanto as muacuteltiplas coisas sensiacuteveis receberiam este predicado de uma maneira

derivativa por serem uma imagem de F-idade De acordo com esta interpretaccedilatildeo

Formas seriam Modelos ou Originais (παραδείγmicroατα) dos quais os objetos

sensiacuteveis representariam imagens (ei)dwla εἰκόνες) ou imitaccedilotildees (mimhmata)

Uma primeira criacutetica possiacutevel a esta interpretaccedilatildeo consiste em afirmar que

a relaccedilatildeo Originalimagens eacute de natureza muito estrita para servir como uma

explicaccedilatildeo adequada para relaccedilatildeo entre Formas e coisas Uma imagem deve

representar com maior ou menor sucesso as caracteriacutesticas aspectuais de seu

original e inversamente um original deve conter as caracteriacutesticas aspectuais de

suas imagens Poreacutem qual original de aacutervore poderia conter em si as

caracteriacutesticas aspectuais de todas as aacutervores sensiacuteveis Se um triacircngulo precisa

ser ou isoacutesceles ou equilaacutetero ou escaleno e natildeo pode ter estas trecircs caracteriacutesticas

simultaneamente como a Triangularidade poderia servir como um uacutenico Modelo

para imagens com caracteriacutesticas mutuamente excludentes

Esta criacutetica contudo pode ser facilmente contornada por meio da alegaccedilatildeo

de que a relaccedilatildeo Originalimagens natildeo precisa ser entendida de maneira tatildeo

restrita Eacute possiacutevel pensar por exemplo que o Original soacute possuiria as

caracteriacutesticas aspectuais essenciais enquanto as diferenccedilas especiacuteficas estariam

manifestas apenas em suas imagens A Triangularidade teria a caracteriacutestica de

possuir trecircs lados iguais e apenas suas imagens sensiacuteveis seriam triacircngulos

equilaacuteteros isoacutesceles ou escalenos Outra saiacuteda seria aumentar o nuacutemero de

Originais afirmando a existecircncia de uma Forma da Triangularidade Isoacutesceles

outra Escalena e outra Equilaacutetero Estas modificaccedilotildees no entanto teriam como

resultado por um lado uma extensatildeo indesejada do conjunto de Formas que

passaria a incluir Formas de espeacutecies e por outro lado o enfraquecimento da

proacutepria analogia entre Originalimagens proposta inicialmente

Patterson (1985 p42) adota a primeira destas duas linhas de

argumentaccedilatildeo e procura evitar resultados problemaacuteticos traccedilando uma diferenccedila

entre coacutepias e imagens Para Patterson enquanto ser-uma-coacutepia implicaria em

assemelhar-se ao Original mantendo suas caracteriacutesticas aspectuais ser-uma-

imagem natildeo traria esta implicaccedilatildeo Para defender esta distinccedilatildeo Patterson eacute

obrigado a forccedilar o vocabulaacuterio platocircnico entendendo por imagens natildeo soacute o termo

ei)dwla como tambeacutem o(moiw=mata εἰκόνες e mimhmata que agrave primeira vista

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implicariam na estrita semelhanccedila entre Original e coacutepias

Apoacutes destituir a relaccedilatildeo Originalimagens da necessidade de semelhanccedila

entre seus dois elementos Patterson reinterpreta sua analogia inicial como uma

relaccedilatildeo entre ldquouma natureza abstrata e um exemplo concreto ou entre a natureza

inteligiacutevel de F ele mesmo e aquilo que concretamente possui ou tem a natureza

de F ele mesmordquo (Patterson 1985 p 95) Ora eacute muito evidente que atraveacutes deste

movimento Patterson estaacute abandonando por completo a relaccedilatildeo Originalimagem

inicialmente proposta e passando a entender os objetos sensiacuteveis ldquoexemplos

concretosrdquo das Formas que por sua vez satildeo entendidas como ldquonaturezas

inteligiacuteveis ou abstratasrdquo

Como o caso de Patterson deixa evidente compreender a relaccedilatildeo

Originalimagens sem pressupor qualquer niacutevel de semelhanccedila entre estes dois

elementos representa uma grande subversatildeo agrave natureza desta relaccedilatildeo Poreacutem

mesmo que seja possiacutevel compreender que uma imagem natildeo se assemelha ao

original de que eacute imagem seria preciso demonstrar ainda que o personagem

Soacutecrates estaacute entendendo a relaccedilatildeo entre Formas e coisas sensiacuteveis em analogia a

esta compreensatildeo sui generis de imagens que natildeo guardam qualquer semelhanccedila

com seu original Se olharmos para as passagens em que Soacutecrates trata os objetos

sensiacuteveis como imagens ou imitaccedilotildees das Formas no entanto veremos que a

relaccedilatildeo de semelhanccedila entre Formas e coisas estaacute sempre pressuposta

Um exemplo oferecido por Patterson (1985 p61) sugere que imagens

sonhadas natildeo se assemelham de modo algum aos seus originais pois natildeo podem

realmente possuir as propriedades que seus originais possuem Contudo para que

seja estabelecida uma relaccedilatildeo de semelhanccedila natildeo eacute preciso que as imagens sejam

como seus originas basta que as imagens pareccedilam com seus originais Uma prova

disto eacute que reconhecemos quando algueacutem familiar aparece em nossos sonhos Se

somos capazes de reconhecer algueacutem em sonhos eacute porque a imagem que

experienciamos se assemelha de algum modo agrave pessoal real Soacutecrates parece

corroborar esta anaacutelise trivial para relaccedilatildeo entre imagens sonhadas e originais e

na Repuacuteblica (476c5-7) nos explica que o sonhar (τὸ ὀνειρώττειν) quer

dormindo quer acordado nada mais eacute do que ldquocrer que o semelhante a algo (τὸ

ὅmicroοιόν τῳ) natildeo eacute semelhante a algo mas aquilo mesmo com o que se parece (microὴ

ὅmicroοιον ἀλλ αὐτὸ ἡγῆται εἶναι ᾧ ἔοικεν)rdquo

As passagens em que o termo εἰκών eacute usado para designar objetos

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sensiacuteveis tampouco parecem oferecer o material necessaacuterio para a anaacutelise de

ldquoimagens natildeo semelhantes a seu originalrdquo desejada por Patterson Em Repuacuteblica

(506b) Soacutecrates eacute instigado a discursar sobre o Bem poreacutem se recusa

consentindo em falar sobre ldquoo rebento do Bem e o que haacute de mais semelhante

possiacutevel a elerdquo (ὃς δὲ ἔκγονός τε τοῦ ἀγαθοῦ φαίνεται καὶ ὁmicroοιότατος ἐκείνῳ

506e3) Este rebento mais tarde nos eacute revelado trata-se do sol e em 509a9

Soacutecrates se refere a ele como ldquoa imagem do Bemrdquo (τὴν εἰκόνα αὐτοῦ)

Novamente a relaccedilatildeo entre imagem e original se daacute por semelhanccedila O sol eacute uma

imagem do Bem porque eacute ldquoo que haacute de mais semelhante a elerdquo (ὁmicroοιότατος

ἐκείνῳ)

Do mesmo modo na passagem da linha dividida a primeira seccedilatildeo da linha

estaacute reservada agraves imagens Soacutecrates oferece a seguinte explicaccedilatildeo para o que estas

imagens satildeo

ldquoChamo imagens (τὰς εἰκόνας) em primeiro lugar as sombras (τὰς σκιάς) em seguida os reflexos nas aacuteguas (τὰ ἐν τοῖς ὕδασι φαντάσmicroατα) e em todas aquelas superfiacutecies que satildeo compactas lisas e brilhantes e tudo mais deste tipordquo λέγω δὲ τὰς εἰκόνας πρῶτον microὲν τὰς σκιάς ἔπειτα τὰ ἐν τοῖς ὕδασι φαντάσmicroατα καὶ ἐν τοῖς ὅσα πυκνά τε καὶ λεῖα καὶ φανὰ συνέστηκεν καὶ πᾶν τὸ τοιοῦτον (510a1-3)

A descriccedilatildeo de εἰκόνες como ldquosombrasrdquo e ldquofantasmasrdquo parece favorecer a

equaccedilatildeo entre os termos εἰκών e ei)dwlon e a noccedilatildeo de imagem-dessemelhante

desejada por Patterson No entanto na continuaccedilatildeo do argumento Soacutecrates pede

para que na segunda seccedilatildeo da linha sejam colocadas as coisas que datildeo origens agraves

imagens da primeira seccedilatildeo isto eacute os objetos empiacutericos sensiacuteveis Em seguida

Soacutecrates passa para a parte do inteligiacutevel e descreve a primeira seccedilatildeo desta parte

como aquela em que a alma utiliza como se fossem imagens (ὡς εἰκόσιν χρωmicroένη

ψυχὴ) as coisas que antes eram imitadas (τοῖς τότε microιmicroηθεῖσιν) O exemplo

utilizado por Soacutecrates vem da Geometria

ldquoSabes tambeacutem que eles (os geocircmetras) utilizam figuras visiacuteveis e constroem raciociacutenios sobre elas embora natildeo seja nelas que pensem mas em outras coisas agraves quais essas se parecem (οἷς ταῦτα ἔοικε) construindo raciociacutenios em vista do quadrado ele mesmo (τοῦ τετραγώνου αὐτοῦ) da diagonal ela mesma (διαmicroέτρου αὐτῆς) e natildeo da diagonal que traccedilam e assim tambeacutem para as outras figuras Todas aquelas que eles modelam ou traccedilam das quais haacute sombras e imagens nas aacuteguas (ὧν καὶ σκιαὶ καὶ ἐν ὕδασιν εἰκόνες εἰσίν) eles as utilizam como se fossem imagens (ὡς εἰκόσιν αὖ χρώmicroενοι) ao procurar ver aquelas coisas mesmas que

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natildeo se vecircem senatildeo pelo pensamentordquo Οὐκοῦν καὶ ὅτι τοῖς ὁρωmicroένοις εἴδεσι προσχρῶνται καὶ τοὺς λόγους περὶ αὐτῶν ποιοῦνται οὐ περὶ τούτων διανοούmicroενοι ἀλλ ἐκείνων πέρι οἷς ταῦτα ἔοικε τοῦ τετραγώνου αὐτοῦ ἕνεκα τοὺς λόγους ποιούmicroενοι καὶ διαmicroέτρου αὐτῆς ἀλλ οὐ ταύτης ἣν γράφουσιν καὶ τἆλλα οὕτως αὐτὰ microὲν ταῦτα ἃ πλάττουσίν τε καὶ γράφουσιν ὧν καὶ σκιαὶ καὶ ἐν ὕδασιν εἰκόνες εἰσίν τούτοις microὲν ὡς εἰκόσιν αὖ χρώmicroενοι ζητοῦντες δὲ αὐτὰ ἐκεῖνα ἰδεῖν ἃ οὐκ ἂν ἄλλως ἴδοι τις ἢ τῇ διανοίᾳ (510d5-511a1)

O resultado final das relaccedilotildees de proporccedilatildeo entre os diversos segmentos da

linha eacute que os objetos sensiacuteveis satildeo imagens (εἰκόνες) das Formas tal como as

sombras e reflexos na aacutegua (σκιάς τὰ ἐν τοῖς ὕδασι φαντάσmicroατα) satildeo imagens

destes mesmos objetos Contudo o que a menccedilatildeo aos procedimentos geomeacutetricos

deixa claro eacute que a relaccedilatildeo entre imagens e original deve ser entendida durante

toda passagem por meio da noccedilatildeo de semelhanccedila Do mesmo modo que minhas

imagens (sombras e reflexos em uma superfiacutecie daacutegua) se parecem comigo

tambeacutem os graacuteficos e desenhos satildeo utilizados pelos geocircmetras como se fossem

imagens (ὡς εἰκόσιν αὖ χρώmicroενοι) das Formas inteligiacuteveis porque com elas se

parecem (οἷς ταῦτα ἔοικε) Em suma imagens (εἰκόνες) satildeo imagens de coisas

com as quais guardam similaridades e compartilham propriedades de outro modo

natildeo haveria porque um geocircmetra desenhar quadrados com a intenccedilatildeo de estudar o

Quadrado ideal

Portanto considero as passagens acima citadas suficientes para comprovar

que Soacutecrates entendia por εἰκόνες o que normalmente entendemos por imagens

isto eacute algo fundamentalmente distinto daquilo de que eacute imagem poreacutem que

guarda algum tipo de semelhanccedila com o original ao qual remete Sendo assim

podemos descartar a interpretaccedilatildeo de Patterson que pretende fazer uso da relaccedilatildeo

Originalimagens como forma de compreensatildeo da relaccedilatildeo Formascoisas poreacutem

negando que haja qualquer tipo de semelhanccedila entre os dois elementos de cada

uma destes pares

A relaccedilatildeo Originalimagens contudo natildeo pode ser completamente

abandonada como um possiacutevel modelo de compreensatildeo para relaccedilatildeo entre Formas

e coisas pois a partir desta analogia ainda eacute possiacutevel extrairmos uma interpretaccedilatildeo

que falsifique (AP) Considere a relaccedilatildeo entre Simmias e os diversos retratos de

Simmias Quando pegamos um dos retratos de Simmias e perguntamos quem eacute a

pessoa neste retrato A resposta que recebemos eacute esta pessoa eacute Simmias

Evidentemente esta resposta nos eacute dada em funccedilatildeo da semelhanccedila entre o

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Simmias original e a imagem de Simmias no retrato pois eacute esta semelhanccedila o que

nos permite dizer que tanto Simmias quanto suas imagens possuem a propriedade

de ser-Simmias Apesar disto estas coisas possuem a propriedade de ser-Simmias

de maneiras distintas a imagem de Simmias no retrato eacute Simmias poreacutem em um

sentido diferente daquele em que Simmias eacute Simmias Como vimos a

transposiccedilatildeo desta relaccedilatildeo para o caso envolvendo Formas e coisas poderia

fornecer uma saiacuteda ao Argumento do Terceiro Homem Afinal de acordo com este

modelo a Forma F-idade eacute F de uma maneira distinta das coisas (a b c) o que

falsificaria (AP)

No entanto uma nova criacutetica pode ser dirigida agravequeles que defendem este

tipo de interpretaccedilatildeo segundo a qual a F-idade e os muacuteltiplos objetos sensiacuteveis

que dela satildeo imagens natildeo recebem o predicado F univocamente Afinal se uma

coisa sensiacutevel natildeo possui o predicado F do mesmo modo que a F-idade como esta

Forma poderia servir de Modelo (Original ou Paradigma) para a aplicaccedilatildeo do

predicado que esta coisa sensiacutevel possui

Suponha por exemplo que F1 e F2 representam os diferentes modos em

que o predicado F pode ser aplicado Assim diriacuteamos que a F-idade eacute F1

enquanto um objeto sensiacutevel x eacute F2 Neste caso como F-idade que eacute

exclusivamente F1 poderia servir de Modelo ou Paradigma para aplicaccedilatildeo do

predicado F2 nos objetos sensiacuteveis Para ser um ModeloOriginalParadigma dos

objetos sensiacuteveis que recebem o predicado F a Forma precisa ser um

ModeloOriginalParadigma de aplicaccedilatildeo do mesmo predicado F possuiacutedo pelos

objetos sensiacuteveis Pois se a relaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis estaacute fundada

no fato de que os objetos sensiacuteveis recebem o predicado F em virtude da F-idade

por que neste caso exatamente F-idade e natildeo outra Forma seria a causa da

propriedade F nas coisas sensiacuteveis Caso natildeo aceitemos que Formas e coisas

compartilhem um mesmo predicado de maneira uniacutevoca natildeo temos razotildees

suficientes para identificar a F-idade (ao inveacutes de G-idade) como causa da

caracteriacutestica F encontrada nos objetos sensiacuteveis

Em Feacutedon (74b-c) por exemplo a visatildeo de um par de pedaccedilos de

madeiras iguais em comprimento eacute capaz de nos fazer lembrar a Forma da

Igualdade com a qual tivemos contato antes de nascermos Ora se o par de

madeiras em questatildeo natildeo possui a mesma propriedade que a Forma da Igualdade

por que entatildeo nos lembrariacuteamos desta Forma e natildeo de qualquer outra Da mesma

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maneira o Banquete (210-211) nos apresenta um percurso de ascensatildeo que inicia-

se nos corpos discursos e ciecircncias sensiacuteveis para chegar ao Belo ele mesmo

Aceitando que o Belo natildeo compartilha uma mesma propriedade com estes corpos

discursos e ciecircncias por que seriam exatamente estas coisas sensiacuteveis que

formariam o caminho para o Belo

Em resposta a este tipo de criacuteticas algumas interpretaccedilotildees pretendem

abordar a diferenccedila entre o modo de uma Forma e uma coisa sensiacutevel receberem o

mesmo predicado F por meio da qualificaccedilatildeo da relaccedilatildeo de predicaccedilatildeo Assim

estariacuteamos falando de um mesmo predicado F poreacutem de duas relaccedilotildees de

predicaccedilatildeo natildeo uniacutevocas Podemos pensar por exemplo que enquanto a Forma F-

idade recebe o predicado F de maneira necessaacuteria os objetos sensiacuteveis satildeo F

apenas de maneira contingente Supostamente esta explicaccedilatildeo seria suficiente

para evidenciar dois modos natildeo-uniacutevocos de predicaccedilatildeo portanto falsificando

(AP) sem trazer as indesejadas consequecircncias acima descritas

Na realidade contudo esta distinccedilatildeo natildeo eacute capaz de desqualificar

univocidade Caso contraacuterio teriacuteamos que admitir que as sentenccedilas ldquoTodo

torcedor do Vasco eacute necessariamente vascaiacutenordquo e ldquoEu sou contingentemente

vascaiacutenordquo apresentam o predicado ldquoser-vascaiacutenordquo de maneira distinta Aleacutem disso

teriacuteamos que negar que a sentenccedila ldquoEu sou contingentemente torcedor do Vascordquo

pode ser corretamente inferida das duas sentenccedilas anteriores Acrescentar um

operador modal como qualificaccedilatildeo do predicado F natildeo eacute suficiente para produzir

um novo predicado natildeo-uniacuteco a F Portanto sob a luz desta distinccedilatildeo Formas e

coisas continuam possuindo o mesmo predicado e tanto (AP) quanto o Argumento

do Terceiro Homem continuam vaacutelidos

Outra tentativa de negar a aparente univocidade entre a aplicaccedilatildeo de um

predicado a uma Forma e a aplicaccedilatildeo deste mesmo predicado aos objetos

sensiacuteveis consiste em apelar para distinccedilatildeo entre predicaccedilatildeo per se e predicaccedilatildeo

per aliud Em paralelo agrave distinccedilatildeo aristoteacutelica entre predicaccedilatildeo essencial e

predicaccedilatildeo acidental alguns comentadores reconhecem em Platatildeo a diferenciaccedilatildeo

entre um tipo de predicaccedilatildeo ldquoem virtude de sua proacutepria naturezardquo (per se) e um

segundo tipo de predicaccedilatildeo ldquoem virtude de outra coisardquo (per aliud) Assim

enquanto as Formas receberiam seus predicados per se de maneira proacutepria os

objetos sensiacuteveis receberiam seus predicados per aliud de maneira derivativa

Entendida deste modo a auto-predicaccedilatildeo de uma Forma seria uma espeacutecie de

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definiccedilatildeo miacutenima desta entidade Alegadamente isto faria com que natildeo

pudeacutessemos reduzir sentenccedilas auto-predicativas envolvendo Formas a meras

identidades ao mesmo tempo em que diferenciariacuteamos dois modos natildeo uniacutevocos

de predicaccedilatildeo

De fato esta distinccedilatildeo parece se encaixar nos paracircmetros traccedilados pela

Teoria das Ideias Tal como as substacircncias aristoteacutelicas as Formas recebem seus

predicados de maneira natildeo derivativa (per se) enquanto as coisas que participam

das Formas recebem seus predicados em virtude desta participaccedilatildeo (per aliud) No

entanto a questatildeo relevante para nossa discussatildeo eacute se este tipo de distinccedilatildeo eacute

capaz de falsificar (AP) e bloquear a reduccedilatildeo ao infinito proposta por Parmecircnides

Como observa Teloh (1981 p124) a distinccedilatildeo proposta explica a aplicaccedilatildeo

de predicados por meio de relaccedilotildees entre entidades mas certamente este tipo de

explicaccedilatildeo eacute compatiacutevel com predicados uniacutevocos A aplicaccedilatildeo de um predicado a

entidades de tipos distintos por si soacute natildeo eacute suficiente para concluirmos uma

diferenccedila de sentido deste predicado Mesmo entendendo as Formas como sujeitos

proacuteprios de F e os objetos sensiacuteveis como sujeitos derivados deste mesmo

predicado natildeo somos obrigados a abandonar a tese da unidade de sentido do

predicado em questatildeo Por outro lado caso usemos esta distinccedilatildeo como base para

uma diferenciaccedilatildeo de sentido entre predicados per se e per aliud voltaremos ao

problema anteriormente descrito de considerar as Formas como causas de

propriedades que natildeo possuem e inversamente os objetos sensiacuteveis como

recebendo por derivaccedilatildeo predicados distintos daqueles possuiacutedos pelas Formas

O maior problema da distinccedilatildeo entre aplicaccedilatildeo per se e per aliud como

soluccedilatildeo ao Argumento do Terceiro Homem contudo estaacute no fato desta distinccedilatildeo

natildeo poder ser encontrada na Teoria das Ideias apresentada pelo personagem

Soacutecrates no Parmecircnides ou em qualquer outro diaacutelogo O primeiro autor a

reconhecer a possibilidade de uma aplicaccedilatildeo da diferenciaccedilatildeo entre estes dois

modos natildeo uniacutevocos de aplicaccedilatildeo de um mesmo predicado foi Frede (1967) De

acordo com Frede a diferenccedila entre uma predicaccedilatildeo que definiria o que uma coisa

eacute em virtude de si mesmo e uma predicaccedilatildeo ordinaacuteria que apenas descreveria os

atributos desta coisa estaacute pressuposta na investigaccedilatildeo sobre as relaccedilotildees entre os

gecircneros do Sofista sobretudo em 255c12-13 Posteriormente Meinwald (1991)

aplicou a distinccedilatildeo proposta por Frede em sua anaacutelise dos argumentos da segunda

parte do Parmecircnides afirmando explicitamente que a diferenciaccedilatildeo entre

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predicaccedilotildees per se e per aliud seria capaz de bloquear o Argumento do Terceiro

Homem

Ora em nenhum destes dois casos eacute o personagem Soacutecrates quem propotildee

as anaacutelises que dariam ensejo agrave distinccedilatildeo entre os dois modos natildeo uniacutevocos de

predicaccedilatildeo No Sofista quem apresenta as relaccedilotildees entre os gecircneros supremos eacute

um Estrangeiro de Eleacuteia enquanto no Parmecircnides eacute o proacuteprio Parmecircnides quem

conduz as deduccedilotildees da segunda parte do diaacutelogo Em ambos os casos Soacutecrates

natildeo estaacute envolvido nas discussotildees e muito menos apresenta explicitamente sua

Teoria das Ideias como fonte da distinccedilatildeo em questatildeo Portanto mesmo que

admitamos que uma diferenciaccedilatildeo entre predicaccedilotildees per se e per aliud pode

bloquear os regressos apresentados por Parmecircnides o que natildeo necessariamente eacute

o caso como explica Teloh (1981 p124) natildeo temos motivos algum para afirmar

que Soacutecrates estaacute de posse desta distinccedilatildeo Sendo assim como criacutetica agrave

formulaccedilatildeo claacutessica da Teoria das Ideias o Argumento do Terceiro Homem segue

sendo vaacutelido

Deste modo podemos concluir que a segunda estrateacutegia adotada para

falsificar (AP) e livrar a Teoria das Ideias do regresso ao infinito demonstrado por

Parmecircnides tampouco representa uma alternativa viaacutevel Entender a F-idade em

analogia a um padratildeo (standard) como o Metro Modelo natildeo impede que usemos

o predicado F para descrevecirc-la Por outro lado ao tentarmos apelar para relaccedilatildeo

Originalimagens como forma de entender modos natildeo uniacutevocos de se possuir um

mesmo predicado ou bem acabamos por ter que aceitar a semelhanccedila entre

imagens e Original abrindo caminho para o Argumento do Terceiro Homem ou

bem somos obrigados a reconhecer a existecircncia de imagens natildeo semelhantes a

seus originais o que eacute certamente absurdo aleacutem de ir contra o texto dos diaacutelogos

Por fim a tentativa de distinguir entre dois sentidos de aplicaccedilatildeo de um mesmo

predicado implica em tornar os objetos sensiacuteveis tatildeo distintos das Formas das

quais derivam seus predicados que o proacuteprio papel causal das Formas acaba por

tornar-se arbitraacuterio

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44 Conclusatildeo do quarto capiacutetulo

Como resultado de suas criacuteticas Parmecircnides passa a pressupor que natildeo

pode haver qualquer tipo de relaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis Sua

conclusatildeo estaacute fundada no fato de Soacutecrates se mostrar incapaz de fornecer uma

explicaccedilatildeo para natureza da relaccedilatildeo entre estes dois acircmbitos da realidade que natildeo

resulte na destruiccedilatildeo da unidade caracteriacutestica das Formas

ldquoEstaacute vendo entatildeo Soacutecrates quatildeo grande eacute a aporia se algueacutem determinar as Formas sendo em si e por si Sim certamente Pois fica sabendo que por assim dizer ainda natildeo a tocas tamanha eacute a aporia que surge se sempre ao definir algo puseres cada um dos seres como uma Forma uacutenicardquo Ὁρᾷς οὖν φάναι ὦ Σώκρατες ὅση ἡ ἀπορία ἐάν τις ὡς εἴδη ὄντα αὐτὰ καθ αὑτὰ διορίζηται Καὶ microάλα Εὖ τοίνυν ἴσθι φάναι ὅτι ὡς ἔπος εἰπεῖν οὐδέπω ἅπτῃ αὐτῆς ὅση ἐστὶν ἡ ἀπορία εἰ ἓν εἶδος ἕκαστον τῶν ὄντων ἀεί τι ἀφοριζόmicroενος θήσεις (133a8-b2)

A menccedilatildeo de Parmecircnides agrave independecircncia ontoloacutegica (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e agrave

unidade caracteriacutestica das Formas (ἓν εἶδος ἕκαστον τῶν ὄντων) retoma os temas

enunciados na abertura de suas criacutetica Por serem ldquoem si e por sirdquo e

necessariamente unitaacuterias as Formas natildeo podem estar em noacutes (microηδεmicroίαν αὐτῶν

εἶναι ἐν ἡmicroῖν 133c6-7) Afinal cada uma das explicaccedilotildees socraacuteticas para relaccedilatildeo

entre Formas e coisas resultou na multiplicaccedilatildeo (numeacuterica ou aspectual) das

Formas Como por princiacutepio natildeo podemos aceitar que as Formas deixem de ser

entidades uacutenicas Parmecircnides passa a apresentar as consequecircncias paradoxais

decorrentes da postulaccedilatildeo de entidades uniformes e ontologicamente

independentes poreacutem completamente separadas das coisas sensiacuteveis

ldquoHaacute muitas outras dificuldade disse ele mas a maior eacute a seguinte se algueacutem dissesse que nem mesmo cabe serem elas as Formas conhecidas se forem tal como dizemos que devem ser a este algueacutem que assim falasse natildeo poderia provar que se engana (hellip) Como assim Parmecircnides disse Soacutecrates Porque Soacutecrates creio que tu e qualquer outro que potildee haver alguma essecircncia mesma em si e por si de cada coisas (αὐτήν τινα καθ αὑτὴν ἑκάστου οὐσίαν) concordariacuteeis antes de mais nada que nenhuma delas estaacute entre noacutes (microηδεmicroίαν αὐτῶν εἶναι ἐν ἡmicroῖν)

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Pois neste caso como seria ela ainda em si e por si disse Soacutecrates Eacute correto o que dizes disse Parmecircnides Entatildeo tambeacutem dentre as Formas todas aquelas que satildeo o que satildeo na relaccedilatildeo umas com as outras eacute na relaccedilatildeo delas mesmas umas com as outras que elas tecircm a sua essecircncia e natildeo na relaccedilatildeo com as coisas entre noacutes (hellip) Quanto as coisas que satildeo entre noacutes estas por sua vez sendo homocircnimas daquelas satildeo elas mesmas na relaccedilatildeo umas com as outras e natildeo na relaccedilatildeo com as Formas () Que queres dizer disse Soacutecrates Por exemplo disse Parmecircnides se algum de noacutes eacute senhor ou escravo de algueacutem natildeo eacute certamente daquele Senhor mesmo (αὐτοῦ δεσπότου) daquilo que eacute realmente Senhor (ὃ ἔστι δεσπότης) que ele eacute escravo nem eacute do Escravo mesmo (αὐτοῦ δούλου) daquilo que realmente eacute Escravo (ὃ ἔστι δοῦλος) que o senhor eacute senhor mas sendo homem eacute de um homem que ele eacute ambas essas coisas Por outro lado a Senhoria mesma eacute o que eacute da Escravidatildeo mesma e do mesmo modo a Escravidatildeo mesma eacute Escravidatildeo da Senhoria mesma As coisas entre noacutes natildeo tecircm seu poder em relaccedilatildeo agravequelas nem aquelas em relaccedilatildeo a noacutes Πολλὰ microὲν καὶ ἄλλα φάναι microέγιστον δὲ τόδε εἴ τις φαίη microηδὲ προσήκειν αὐτὰ γιγνώσκεσθαι ὄντα τοιαῦτα οἷά φαmicroεν δεῖν εἶναι τὰ εἴδη τῷ ταῦτα λέγοντι οὐκ ἂν ἔχοι τις ἐνδείξασθαι ὅτι ψεύδεται () Πῇ δή ὦ Παρmicroενίδη φάναι τὸν Σωκράτη Ὅτι ὦ Σώκρατες οἶmicroαι ἂν καὶ σὲ καὶ ἄλλον ὅστις αὐτήν τινα καθ αὑτὴν ἑκάστου οὐσίαν τίθεται εἶναι ὁmicroολογῆσαι ἂν πρῶτον microὲν microηδεmicroίαν αὐτῶν εἶναι ἐν ἡmicroῖν Πῶς γὰρ ἂν αὐτὴ καθ αὑτὴν ἔτι εἴη φάναι τὸν Σωκράτη Οὐκοῦν καὶ ὅσαι τῶν ἰδεῶν πρὸς ἀλλήλας εἰσὶν αἵ εἰσιν αὐταὶ πρὸς αὑτὰς τὴν οὐσίαν ἔχουσιν ἀλλ οὐ πρὸς τὰ παρ ἡmicroῖν () τὰ δὲ παρ ἡmicroῖν ταῦτα ὁmicroώνυmicroα ὄντα ἐκείνοις αὐτὰ αὖ πρὸς αὑτά ἐστιν ἀλλ οὐ πρὸς τὰ εἴδη (hellip) Πῶς λέγεις φάναι τὸν Σωκράτη Οἷον φάναι τὸν Παρmicroενίδην εἴ τις ἡmicroῶν του δεσπότης ἢ δοῦλός ἐστιν οὐκ αὐτοῦ δεσπότου δήπου ὃ ἔστι δεσπότης ἐκείνου δοῦλός ἐστιν οὐδὲ αὐτοῦ δούλου ὃ ἔστι δοῦλος δεσπότης ὁ δεσπότης ἀλλ ἄνθρωπος ὢν ἀνθρώπου ἀmicroφότερα ταῦτ ἐστίν αὐτὴ δὲ δεσποτεία αὐτῆς δουλείας ἐστὶν ὅ ἐστι καὶ δουλεία ὡσαύτως αὐτὴ δουλεία αὐτῆς δεσποτείας ἀλλ οὐ τὰ ἐν ἡmicroῖν πρὸς ἐκεῖνα τὴν δύναmicroιν ἔχει οὐδὲ ἐκεῖνα πρὸς ἡmicroᾶς (133b4-e5)

Desprovidos do poder causal exercido pelas Formas os objetos sensiacuteveis

manifestam suas propriedades unicamente em funccedilatildeo das relaccedilotildees mantidas entre

si Parmecircnides continua falando em participaccedilatildeo (microετέχοντες 133d2) No entanto

tendo sido eliminada a possibilidade de relaccedilatildeo causal entre Formas e coisas a

participaccedilatildeo restringe-se a cada uma destas duas esferas da realidade objetos

sensiacuteveis participam de relaccedilotildees com outros objetos sensiacuteveis enquanto Formas

participam de relaccedilotildees com outras Formas Como consequecircncia a Forma do

Senhor possui a propriedade de ser-senhor apenas em relaccedilatildeo agrave Forma do Escravo

e por outro lado o senhor sensiacutevel adquire esta propriedade unicamente em

funccedilatildeo da sua relaccedilatildeo com um escravo sensiacutevel

Neste caso contudo seraacute preciso reconhecer que caso exista uma ciecircncia

das Formas esta ciecircncia estaacute restrita ao acircmbito das entidades inteligiacuteveis e nada

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diz sobre as coisas do mundo sensiacutevel E por outro lado a ciecircncia relativa aos

objetos sensiacuteveis estaria limitada a seu proacuteprio acircmbito da realidade e em nada

dependeria das Formas

ldquoEntatildeo disse ele tambeacutem a Ciecircncia mesma (ἐπιστήmicroη αὐτὴ) aquilo que realmente eacute Ciecircncia (ὃ ἔστι ἐπιστήmicroη) eacute daquela Verdade mesma daquilo que realmente eacute Verdade (τῆς ὃ ἔστιν ἀλήθεια αὐτῆς) que ela seria ciecircncia natildeo eacute Perfeitamente () Mas a ciecircncia entre noacutes (παρ ἡmicroῖν ἐπιστήmicroη) natildeo seria ciecircncia da verdade entre noacutes (παρ ἡmicroῖν ἀληθείας) e por sua vez cada ciecircncia entre noacutes natildeo resultaria ser ciecircncia de cada um dos seres entre noacutes (τῶν παρ ἡmicroῖν ὄντων ἑκάστου) Necessariamente (hellip) Logo por noacutes pelo menos nenhuma das Formas eacute conhecida jaacute que natildeo participamos da Ciecircncia mesma Parece que natildeo Logo eacute-nos incognosciacutevel tanto o Belo mesmo o que realmente eacute (αὐτὸ τὸ καλὸν ὃ ἔστι) como o Bem e todas as coisas que concebemos como sendo Ideias mesmas (πάντα ἃ δὴ ὡς ἰδέας αὐτὰς οὔσας)rdquo Οὐκοῦν καὶ ἐπιστήmicroη φάναι αὐτὴ microὲν ὃ ἔστι ἐπιστήmicroη τῆς ὃ ἔστιν ἀλήθεια αὐτῆς ἂν ἐκείνης εἴη ἐπιστήmicroη Πάνυ γε Ἡ δὲ παρ ἡmicroῖν ἐπιστήmicroη οὐ τῆς παρ ἡmicroῖν ἂν ἀληθείας εἴη καὶ αὖ ἑκάστη ἡ παρ ἡmicroῖν ἐπιστήmicroη τῶν παρ ἡmicroῖν ὄντων ἑκάστου ἂν ἐπιστήmicroη συmicroβαίνοι εἶναι Ἀνάγκη Οὐκ ἄρα ὑπό γε ἡmicroῶν γιγνώσκεται τῶν εἰδῶν οὐδέν ἐπειδὴ αὐτῆς ἐπιστήmicroης οὐ microετέχοmicroεν Οὐκ ἔοικεν Ἄγνωστον ἄρα ἡmicroῖν καὶ αὐτὸ τὸ καλὸν ὃ ἔστι καὶ τὸ ἀγαθὸν καὶ πάντα ἃ δὴ ὡς ἰδέας αὐτὰς οὔσας ὑπολαmicroβάνοmicroεν

Como resultado teriacuteamos que nos contentar com o conhecimento

imperfeito que a instabilidade ontoloacutegica das coisas sensiacuteveis eacute capaz de nos

proporcionar e reconhecer que somente os deuses poderiam obter o conhecimento

seguro fornecido pelas Formas O argumento como um todo nos convida a

questionar o valor da postulaccedilatildeo de entidades inteligiacuteveis Afinal se as coisas

sensiacuteveis recebem suas propriedades por meio das relaccedilotildees que mantecircm entre si

natildeo teriacuteamos motivos para nos preocupar com as Formas entidades

completamente irrelevantes para o andamento e conhecimento do mundo em que

vivemos

Restringindo o resultado da argumentaccedilatildeo de Parmecircnides ao nosso

diaacutelogo podemos concluir que a Teoria das Ideias natildeo representa uma saiacuteda

legiacutetima ao problema da predicaccedilatildeo de opostos exemplificado no paradoxo de

Zenatildeo Afinal para figurarem em uma relaccedilatildeo de participaccedilatildeo com os objetos

sensiacuteveis as Formas precisariam abrir matildeo de sua unidade caracteriacutestica o que as

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submeteria ao mesmo tipo de problema relacionado agrave predicaccedilatildeo de opostos

apontado por Zenatildeo nos objetos sensiacuteveis

No entanto as criacuteticas de Parmecircnides extrapolam o acircmbito do debate

contido no Parmecircnides e configuram-se como uma refutaccedilatildeo da proacutepria ontologia

socraacutetica Pois se Soacutecrates propotildee que entendamos as Formas como causas das

propriedades dos objetos sensiacuteveis entatildeo haacute de haver algum tipo de relaccedilatildeo entre

estas entidades A argumentaccedilatildeo acima exposta contudo demonstra que uma

explicaccedilatildeo para este relacionamento que natildeo resulte na destruiccedilatildeo do proacuteprio

modo de ser das Formas ainda natildeo estaacute disponiacutevel Afinal cada uma das hipoacuteteses

socraacuteticas para natureza da relaccedilatildeo entre coisas e Formas levou inexoravelmente agrave

dissoluccedilatildeo da unidade caracteriacutestica destas entidades Por outro lado caso

quiseacutessemos sustentar a unidade das Formas a qualquer custo afirmando sua

completa separaccedilatildeo das coisas sensiacuteveis as Formas passariam a ser

incognosciacuteveis e completamente irrelevantes

Haacute portanto um niacutetido paradoxo no interior da ontologia socraacutetica

Somente porque possui um modo de ser natildeo relacional e separado uma Forma eacute

ontologicamente prioritaacuteria uacutenica indivisiacutevel e auto-predicativa podendo ser

apresentada como causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e soluccedilatildeo para o

problema da copresenccedila de opostos No entanto para cumprirem seu papel de

causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis as Formas precisam estar em relaccedilatildeo

com as entidades do mundo empiacuterico E como demonstra Parmecircnides esta

relaccedilatildeo eacute suficiente para modificar a natureza das Formas tornando-as entidades

muacuteltiplas sujeitas a predicaccedilatildeo de opostos e tatildeo auto-contraditoacuterias quanto os

objetos sensiacuteveis

Portanto se a interpretaccedilatildeo aqui proposta estaacute correta a primeira parte do

diaacutelogo Parmecircnides revela um problema real e indiscutiacutevel na Teoria das Ideias

defendida pelo personagem Soacutecrates nos diaacutelogos meacutedios e iniciais Natildeo por

acaso Platatildeo como resultado final de sua anaacutelise criacutetica da ontologia socraacutetica

coloca na boca de Parmecircnides as seguintes palavras carregadas de dramaticidade

ldquoQue faraacutes da Filosofia Para onde te voltaraacutes sendo estas coisas desconhecidasrdquo

Τί οὖν ποιήσεις φιλοσοφίας πέρι πῇ τρέψῃ ἀγνοουmicroένων τούτων (135c5-6)

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Page 2: 4 O Diálogo Parmênides e a Ontologia Socrática

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cristo

Eacute bem verdade contudo que Dioacutegenes apresenta uma segunda listagem de

obras platocircnicas mais antiga na qual os diaacutelogos estatildeo organizados em trilogias e

na qual o Parmecircnides natildeo aparece No entanto podemos ter como certo que estas

trilogias atribuidas agrave Aristoacutefanes de Bizacircncio natildeo pretendiam abarcar toda a obra

platocircnica o que fica claro a partir da afirmaccedilatildeo final de Dioacutegenes de que ldquoas

outras obras natildeo eram organizadas em grupo mas individualmenterdquo

(ta d a)lla kaq e(n kai a)taktwj) O fato de que o Parmecircnides figurava entre

estas ldquooutras obrasrdquo eacute assegurado pela discussatildeo subsequente na qual Dioacutegenes

aborda o problema da autecircnticidade dos diaacutelogos platocircnicos e natildeo cita nosso

diaacutelogo entre aqueles ldquodeclarados espuacuterios por consentimento geralrdquo Aleacutem disso

sabemos que Dioacutegenes considerava o Parmecircnides um diaacutelogo autecircntico pelo uso

que ele faz deste diaacutelogo na sua descriccedilatildeo das vidas de Parmecircnides e Zenatildeo (IX

23-25) Portanto uma vez que Dioacutegenes estaacute de posse da listagem de Aristoacutefanes

de Bizacircncio e natildeo cita o Parmecircnides como uma obra de autenticidade discutida

podemos estender o reconhecimento da legitimidade de nosso diaacutelogo ateacute meados

dos segundo seacuteculo antes de cristo eacutepoca em que Aristoacutefanes realizou sua

compilaccedilatildeo dos diaacutelogos

A tradiccedilatildeo de comentadores modernos contudo duvidou muitas vezes da

autenticidade do Parmecircnides sobretudo por meio da alegaccedilatildeo de que o conteuacutedo

deste diaacutelogo natildeo estaria de acordo com o sentido geral da filosofia platocircnica2

Conforme nos reporta Waddell Socher declara a obra como inautecircntica sob a

alegaccedilatildeo de que no Parmecircnides um assunto eminentemente platocircnico eacute tratado

com ldquoum violento espiacuterito destrutivordquo (Waddell 1894 pxiii) Waddell considera

este tipo de objeccedilatildeo plenamente plausiacutevel e dedica vaacuterias paacuteginas de sua

introduccedilatildeo para demonstrar como o modo de argumentaccedilatildeo do Parmecircnides natildeo

2 De acordo com a narrativa oferecida por Lutoslawski (Lutoslawski 1897 p38 53-55) o

primeiro autor a duvidar da legitimidade do Parmecircnides foi Socher em sua obra Ueber Platons Schriften (1820) na qual contesta ainda a autoria dos diaacutelogos Sofista e Poliacutetico Ueberweg (1861) tambeacutem suspeita da autenticidade do Parmecircnides e atribui a sua composiccedilatildeo a um disciacutepulo da Academia Schaarschmidt (1866) por fim considera natildeo soacute o Parmecircnides como a maior parte dos diaacutelogos que possuimos inautecircnticos aceitando como legiacutetimos apenas nove dos trinta e seis diaacutelogos que nos chegaram Como podemos ver a questatildeo da autoria dos diaacutelogos havia se tornado um ponto de intenso debate entre os comentadores alematildees do seacuteculo XIX Um dos motivos para o surgimento deste tipo de discussatildeo encontra-se no fato de que este autores estavam interessados em construir um quadro geral do pensamento de Platatildeo portanto apelavam para a inautenticidade de uma obra sempre que ela natildeo se encaixava em seus esquemas interpretativos

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pode ser considerado mais ldquodestrutivordquo do que aquele encontrado em outras

passagens do corpus nas quais temas ldquotipicamente platocircnicosrdquo tambeacutem satildeo alvo

de duras investidas por exemplo os ataques do Teeteto agrave possibilidade do

conhecimento e a criacutetica aos amantes das ideias no Sofista (Waddell 1894 pxiii-

xvi)

Parece muito claro no entanto que o tipo de argumento apresentado por

Socher estaacute necessariamente fadado a uma peticcedilatildeo de princiacutepio como jaacute foi

assinalado com relaccedilatildeo ao fato de Schleiermacher considerar possiacutevel distinguir

obras autecircnticas e espuacuterias com base na doutrina por elas apresentada Este tipo de

argumento pressupotildee que o comentador possua um acesso privilegiado ao

conteuacutedo doutrinal dos diaacutelogos de tal modo que de posse deste conhecimento

esteja na posiccedilatildeo de julgar quais diaacutelogos estatildeo de acordo ou natildeo com este

conteuacutedo Eacute oacutebvio no entanto que o acesso ao conteuacutedo doutrinal dos diaacutelogos soacute

pode advir de uma escolha preacutevia de quais diaacutelogos apresentam este conteuacutedo

Sendo assim o comentador que advoga esta linha de raciociacutenio estaacute claramente

retido em um ciacuterculo vicioso pois a doutrina dos diaacutelogos que ele considera

legiacutetimos deriva diretamente da sua escolha de quais diaacutelogos satildeo legiacutetimos ou

natildeo Sendo assim natildeo temos razatildeo para considerar argumentos de caraacuteter

doutrinaacuterio na discussatildeo acerca da autenticidade do Parmecircnides Simplesmente

natildeo temos acesso direto ao que seria a verdadeira filosofia platocircnica de modo a

podermos julgar o grau de adequaccedilatildeo do Parmecircnides a esta filosofia

Com relaccedilatildeo ao texto do Parmecircnides contudo eacute possiacutevel considerar se a

forma na qual ele eacute escrito se assemelha ou natildeo ao que encontramos em outros

diaacutelogos Neste sentido Waddell que escreve antes da aceitaccedilatildeo geral do meacutetodo

estilomeacutetrico faz algumas observaccedilotildees que me limito a reproduzir

ldquoNovamente ele [o Parmecircnides] estaacute escrito em estilo platocircnico pelo que noacutes queremos dizer vaacuterias coisas Ele eacute natildeo somente um diaacutelogo () mas o tipo de diaacutelogo e os personagens satildeo platocircnicos Ele comeccedila de uma maneira dramaticamente viacutevida o que pode ser posto em paralelo a vaacuterias obras platocircnicas entatildeo quando o proacuteprio tema eacute introduzido os personagens dramaacuteticos tornam-se subordinados e deixam de ser uma parte essencial da composiccedilatildeo O mesmo ocorre na Repuacuteblica quando as preliminares estatildeo resolvidas e a obra construtiva comeccedila qual importacircncia tecircm as perguntas de Glauco e Adimanto Eles simplesmente confirmam Soacutecrates dando a ele a oportunidade para reiniciar o argumento salvando a obra de ser um mero tratado e fornecendo ao orador principal uma anapaula Este eacute o mesmo serviccedilo prestado por Aristoacuteteles no Parmecircnides Mesmo a artificialidade da narrativa pode ser

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considerada um argumento a seu favor Um imitador dificilmente estaria disposto a fazer de sua obra um relato de um relato de um relatordquo (Waddell 1894 pxvii)

Temos ainda como um argumento a favor da autenticidade de nosso

diaacutelogo o fato de que encontramos em diversas obras do corpus platocircnico

referecircncias bastante claras tanto ao conteuacutedo filosoacutefico discutido no Parmecircnides

quanto agrave cena dramaacutetica nele descrita A apresentaccedilatildeo destas passagens ao lado de

passagens do proacuteprio Parmecircnides deve ser suficiente para deixar claro ao leitor o

grau de intertextualidade existente Assim com relaccedilatildeo primeiro destes dois tipos

de referecircncias encontramos as seguintes passagens no corpus em que haacute clara

alusatildeo a assuntos tratados no Parmecircnides Fileb14c-15 cf Parm129 c-d 131a e

ainda Fed102b cf Parm130e Com relaccedilatildeo ao segundo tipo de referecircncia

encontramos passagens de outros diaacutelogos em que a conversa narrada no

Parmecircnides eacute explicitamente evocada por Soacutecrates Teet183 cf Parm127b e

Sofist217c(237a) cf Parm 1373

Por fim eacute preciso observar que o Parmecircnides foi objeto de intensa anaacutelise

estilomeacutetrica pois a especificidade de seu vocabulaacuterio sempre se mostrou um

desafio para o estabelecimento de sua posiccedilatildeo no interior da seacuterie de diaacutelogos Os

resultados destas anaacutelises estiliacutesticas na grande maioria da vezes indicaram a

autenticidade de nosso diaacutelogo como podemos constatar pelas compilaccedilotildees

desenvolvidas por Lutoslawski (1897) e Brandwood (1990)

No entanto nossa apresentaccedilatildeo ficaria incompleta caso natildeo citaacutessemos os

argumentos desenvolvidos por Ritter com o objetivo de questionar a autenticidade

do Parmecircnides Em sua obra Untersuchungen uumlber Platon (1888) Ritter se

propotildee a verificar a autenticidade de certos diaacutelogos ldquoduvidososrdquo por meio de

uma anaacutelise estiliacutestica destas obras A metodologia adotada por Ritter eacute certamente

questionaacutevel Pois segundo ele ldquoqualquer obra suspeita que apresente uma

3 Deixo ao leitor o julgamento acerca do grau de paralelismo existente entre esta passagens

Anteriormente argumentei contra o uso deste tipo de referecircncia textual entre os diaacutelogos como forma de estabelecer relaccedilotildees cronoloacutegicas de composiccedilatildeo pois conforme dito na ocasiatildeo o fato do Teeteto fazer menccedilatildeo ao Parmecircnides natildeo implica necessariamente que Platatildeo tenha escrito o Teeteto antes Platatildeo pode muito bem ter mencionado uma cena dramaacutetica sobre a qual ainda intencionava escrever A existecircncia deste tipo de menccedilatildeo me parece poder seu usado contudo para sustentar a autenticidade de uma obra em relaccedilatildeo a outra Claro que natildeo estamos falando de uma prova definitiva de autenticidade pois um falsaacuterio poderia estar citando obras conhecidas de Platatildeo No entanto como vimos a intertextualidade e a referecircncia entre diaacutelogos eacute uma propriedade essencial da obra platocircnica e portanto um diaacutelogo tatildeo inserido em relaccedilotildees intertextuais como o Parmecircnides compartilha segundo meu ponto de vista de uma das caracteriacutesticas principais da obra platocircnica

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surpreendente mistura de expressotildees caracteriacutesticas de diferentes periacuteodos

[estiliacutesticos] deve ser imediatamente declarada espuacuteriardquo (cf Brandwood 1990

p83) Ora tal afirmaccedilatildeo reflete uma confianccedila claramente exacerbada acerca das

capacidades do meacutetodo estilomeacutetrico Afinal para podermos declarar tatildeo

prontamente a inautenticidade de uma obra segundo este criteacuterio devemos

acreditar que Platatildeo natildeo sofreu mudanccedilas gradativas de estilo mas tornou-se

praticamente um novo autor a cada mudanccedila de fase No entanto apesar de

nenhum dos pontos apresentados por Ritter poder ser usado como prova absoluta

para inautenticidade a soma destes elementos poderia a princiacutepio fortalecer

argumentos de outra natureza aumentando assim o grau de suspeita com relaccedilatildeo

agrave autoria de algum diaacutelogo Com relaccedilatildeo ao Parmecircnides Ritter apresenta a

seguinte lista de elementos desviantes

1) No Parmecircnides a distribuiccedilatildeo de palavras usadas para introduzir

discursos diretos eacute diferente daquela que encontramos nos outros

diaacutelogos Para a terceira pessoa do verbo φηmicroί por exemplo

temos no Parmecircnides a seguinte relaccedilatildeo 19 ἔφη 2 εἶπε 0 ἦ δ

ὅς Nos outros diaacutelogos temos apenas um caso de εἶπε (RepVII) e

encontramos em meacutedia 1 ἦ δ ὅς para cada 5 ἔφη

2) O Parmecircnides emprega apenas nomes no caso vocativo como

forma de dirigir a palavra a algueacutem enquanto os outros diaacutelogos

usam foacutermulas como ὦ ἄριστε ὦ ἑταῖρε e ὦ φίλε com frequecircncia

(Men 47 Teet 50 Feacutedr 37 Craacutet33 poreacutem Fileacuteb 7)

3) A mudanccedila de orador eacute mais frequente no Parmecircnides do que em

qualquer outra obra a meacutedia do Parmecircnides eacute de 9 a 10 mudanccedilas

de orador por paacutegina enquanto que a maior frequecircncia em outras

obras estaacute no Sofista com apenas 4 por paacutegina

4) Duas foacutermulas de resposta satildeo usadas mais no Parmecircnides do que

em qualquer outra obra ἀδύνατον e ἀνάγκη

5) οὐδὲ microὴν como jaacute havia sido notado por Dittenberger ocorre mais

no Parmecircnides do que em qualquer outra obra

6) Finalmente πῶς δ οὔ aparece de forma preponderante em relaccedilatildeo

a πῶς γὰρ οὐ (216) enquanto nas outras obras esta relaccedilatildeo nunca

eacute tatildeo diacutespare sendo o Poliacutetico (148) o diaacutelogo com a proporccedilatildeo

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mais proacutexima agravequela do Parmecircnides

(Brandwood 1990 p86)

Estas idiossincrasias de estilo contudo podem ser compreendidas caso

tenhamos em mente que o Parmecircnides possui longas falas de personagens que natildeo

aparecem em nenhum outro diaacutelogo platocircnico Eacute portanto natural que a

linguagem deste diaacutelogo desvie do restante da obra platocircnica Sendo assim o natildeo

uso de expressotildees vocativas como ὦ ἄριστε por exemplo pode muito bem ser

uma decisatildeo plenamente consciente de Platatildeo Assim considerada a ausecircncia

destas expressotildees no Parmecircnides denota apenas o caraacuteter direto da argumentaccedilatildeo

desenvolvida pelos personagens Parmecircnides e Zenatildeo4 Da mesma maneira a

mudanccedila constante de orador deve-se claramente ao estilo e extensatildeo da

argumentaccedilatildeo desenvolvida na segunda parte do diaacutelogo na qual cada pequeno

passo no desenvolvimento loacutegico dos argumentos eacute confirmado pelo interlocutor

O mesmo vale com relaccedilatildeo ao uso constante das expressotildees ἀδύνατον e ἀνάγκη

que demonstram apenas o reconhecimento por parte dos interlocutores da

necessidade loacutegica inerente aos argumentos desenvolvidos no diaacutelogo Por fim

como observa Brandwood eacute preciso notar que o caraacuteter geral do Parmecircnides eacute tatildeo

proacuteprio e diverge tanto daquilo que encontramos em outros diaacutelogos que a

admissatildeo de sua autenticidade prejudicaria o argumento de Ritter com relaccedilatildeo agrave

inautenticidade de outras obras uma vez que tal argumentaccedilatildeo funda-se

exclusivamente em uma anaacutelise estiliacutestica (cf Brandwood 1990 p86)

Portanto sobre a questatildeo da autenticidade de nossa obra podemos

apresentar os seguintes resultados

1) O Parmecircnides eacute tido como autecircntico por Thrasillus (36 DC) e

muito provavelmente tambeacutem por Aristoacutefanes de Bizacircncio (180

AC) aleacutem de nenhum comentador antigo jamais ter levantado

duacutevidas sobre sua autenticidade

2) Temos fortes razotildees para acreditar que Platatildeo refere-se ao

Parmecircnides em diversas outras obras e por assim dizer nosso

diaacutelogo possui um papel de destaque na intertextualidade platocircnica

4 Aleacutem disso a ausecircncia de expressotildees como ὦ ἄριστε e ὦ ἑταῖρε eacute apenas um dos resultados da

teacutecnica de evitar hiatos adotada por Platatildeo durante a uacuteltima fase de sua carreira literaacuteria Afinal ambas expressotildees possuem hiatos e podem ser facilmente substituiacutedas

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3) A imensa maioria das anaacutelises estilomeacutetricas apresenta o

Parmecircnides como um diaacutelogo legiacutetimo Aleacutem disso a

argumentaccedilatildeo de Ritter uacutenico autor a desenvolver argumentos

estiliacutesticos contra a autenticidade de nosso diaacutelogo estaacute claramente

sujeita a criacuteticas de ordem metodoloacutegica e pelo menos a metade

de sua lista de caracteriacutesticas estiliacutesticas desviantes do Parmecircnides

(pontos 2 3 e 4) pode ser facilmente compreendida como o

resultado direto do tipo de argumentaccedilatildeo apresentada no diaacutelogo

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411 A Posiccedilatildeo do Parmecircnides no interior da obra de Platatildeo

Tendo apresentado nossas consideraccedilotildees acerca da autenticidade do

Parmecircnides passamos agora ao natildeo menos conturbado assunto do

posicionamento desta obra no interior da seacuterie de diaacutelogos platocircnicos Como

vimos os comentadores do inicio do seacuteculo XIX natildeo estavam de posse de um

criteacuterio objetivo para a ordenaccedilatildeo dos diaacutelogos contavam apenas com os criteacuterios

bastante duvidosos de referecircncia intertextual e menccedilatildeo a fatos histoacutericos

conhecidos Sendo assim as ordenaccedilotildees de diaacutelogos oferecidas por estes

comentadores fundavam-se basicamente naquilo que cada um considerava ser o

conteuacutedo da filosofia platocircnica o que os levava a resultados bastante inusitados

Deste modo a despeito disto parecer impensaacutevel para um leitor moderno

o Parmecircnides foi considerado pela maior parte dos helenistas alematildees do seacuteculo

XIX um dos primeiros diaacutelogos de Platatildeo Schleiermacher por exemplo

considera o Parmecircnides uma das primeiras obras e encontra em nosso diaacutelogo tal

como encontra no Feacutedro e no Protaacutegoras uma ldquomaneira jovial de expressatildeordquo

(Schleiermacher 1836 p115) Esta afirmaccedilatildeo de Schleiermacher eacute

posteriormente reafirmada por Hermann (1839) que ainda aponta na bibliografia

de Platatildeo uma justificativa para a identificaccedilatildeo do Parmecircnides como uma obra da

juventude Com base no testemunho de um certo Hermoacutegenes (cf Dioacutegenes

Laeacutercio II 106 III 6) segundo o qual Platatildeo teria fugido para Meacutegara logo apoacutes

a morte de Soacutecrates Hermann atribui a composiccedilatildeo do Parmecircnides ao momento

em que Platatildeo tendo por volta de vinte anos estaria entrando em contato com

pensadores de fora do circuito ateniense e socraacutetico De acordo com Hermann a

presenccedila de Parmecircnides e Zenatildeo no diaacutelogo evidencia a influecircncia megaacuterica sob a

qual o diaacutelogo teria sido escrito

A identificaccedilatildeo do Parmecircnides como uma das primeiras obras de Platatildeo

permanece prevalecente entre os classicistas alematildees ateacute Ueberweg (1861)

Ueberweg eacute o primeiro autor a questionar a veracidade do depoimento acerca da

fuga de Platatildeo para Meacutegara desfazendo assim a crenccedila no periacuteodo megaacuterico de

Platatildeo Contudo Ueberweg atribui uma data tatildeo tardia para a composiccedilatildeo do

Parmecircnides que eacute levado a crer que nosso diaacutelogo eacute uma obra espuacuteria escrita por

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algum membro da academia apoacutes a morte de Platatildeo Com o fim do mito do

periacuteodo megaacuterico de Platatildeo passamos a encontrar as propostas mais discrepantes

acerca do posicionamento do Parmecircnides e no extremo oposto da posiccedilatildeo de

Schleiermacher Zeller (1883) identifica o Parmecircnides como o diaacutelogo (natildeo-

escrito) Filosoacutefo colocando-o no fim da trilogia iniciada por Sofista e Poliacutetico no

fim da carreira literaacuteria de Platatildeo5

Com o aparecimento do meacutetodo estilomeacutetrico o Parmecircnides deixa de

figurar nos extremos das cronologias de composiccedilatildeo dos diaacutelogos e passa a ocupar

uma posiccedilatildeo intermediaacuteria que vai em pouco tempo se tornar bastante

consolidada Para sermos precisos o primeiro dos estudos estilomeacutetricos aquele

de Campbell (1867) coloca o Parmecircnides estranhamente como um dos primeiros

diaacutelogos proacuteximo a obras como Ecircutifron Apologia e Ion No entanto esta

posiccedilatildeo eacute tatildeo discrepante das expectativas gerais acerca do Parmecircnides que o

proacuteprio Campbell recusa-se a aceitaacute-la e atribui este resultado a ldquocircunstacircncias

excepcionaisrdquo sem especificar quais satildeo estas circunstacircncias (Campbell 1867

pxxxiii)

A partir do refinamento dos criteacuterios de anaacutelise estiliacutestica operado por

Dittenberger (1896) o Parmecircnides passa a ser colocado entre os uacuteltimos diaacutelogos

ocupando especialmente a posiccedilatildeo de primeiro diaacutelogo da uacuteltima fase estiliacutestica de

Platatildeo Tal posicionamento para o Parmecircnides eacute subsequentemente consolidado

pelos criteacuterios de Ritter von Arnim e Baron (cf Brandwood 1990 p251) De

fato Campbell trinta anos depois de sua primeira publicaccedilatildeo sobre o assunto

lanccedila um artigo especificamente sobre o estilo do Parmecircnides no qual apresenta

novos resultados e conclui que nosso diaacutelogo eacute certamente posterior a obras

como Repuacuteblica e Feacutedro De modo geral o trabalho de Campbell sobre o

vocabulaacuterio do Parmecircnides tambeacutem corrobora a posiccedilatildeo de Dittenberger

identificando nosso diaacutelogo ao lado do Teeteto como obras diretamente

anteriores ao Sofista e ao Poliacutetico (Campbell 1896 p129-136) Todos estes

resultados satildeo ainda reforccedilados pelas circunstacircncias jaacute notadas por Ueberweg de

que o Parmecircnides possui muito pouca accedilatildeo dramaacutetica quando comparado a

diaacutelogos como Repuacuteblica e Banquete possui trechos de discurso direto inseridos

5 Para um resumo das posiccedilotildees dos comentadores alematildees do seacuteculo XIX acerca da cronologia

de composiccedilatildeo das obras de Platatildeo (cf Lutoslawski 1897 p35-63)

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em meio a um longo discurso indireto6 e sobretudo natildeo apresenta Soacutecrates como

orador principal trecircs caracteriacutesticas proacuteprias dos diaacutelogos da uacuteltima fase

Finalmente resta observar que mesmo natildeo sendo possiacutevel determinar a

posiccedilatildeo exata de um diaacutelogo no interior de cada fase estiliacutestica podemos dizer que

o Parmecircnides possui um estilo claramente transicional possuindo um vocabulaacuterio

relativo agrave apresentaccedilatildeo claacutessica da Teoria das Ideias tal como exposta nos

diaacutelogos da fase meacutedia e ao mesmo tempo inovaccedilotildees de estilo caracteriacutesticas dos

diaacutelogos da uacuteltima fase Some-se a isso o fato de que o conteuacutedo do Parmecircnides

parece ilustrar exatamente esta dualidade apresentando uma primeira parte

voltada para questotildees relativas agrave formulaccedilatildeo claacutessica da Teoria das Ideias poreacutem

com um caraacuteter criacutetico e uma segunda parte na qual o personagem Soacutecrates

praticamente desaparece e um estilo completamente novo de argumentaccedilatildeo eacute

apresentado

Em funccedilatildeo desta soma de fatores a partir da virada do seacuteculo XX nosso

diaacutelogo passa a figurar em uma posiccedilatildeo intermediaacuteria entre a segunda e terceira

fase da obra de Platatildeo de maneira virtualmente inquestionaacutevel Esta hipoacutetese

permanece tatildeo consolidada entre os comentadores contemporacircneos que mesmo

com a imensa diversidade de interpretaccedilotildees apresentadas para nosso diaacutelogo

simplesmente desconheccedilo qualquer publicaccedilatildeo lanccedilada nos uacuteltimos cem anos em

que este posicionamento para o Parmecircnides no interior da obra de Platatildeo seja

questionado

6 Este aspecto formal eacute particularmente visiacutevel na segunda parte do Parmecircnides onde um uacutenico

φάναι inicial (137c4) antecede vaacuterias paacuteginas de discurso em forma direta

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412 O Proacutelogo do Parmecircnides

O Parmecircnides descreve um diaacutelogo travado entre Soacutecrates ainda bastante

jovem Zenatildeo Parmecircnides e Aristoacuteteles natildeo o filoacutesofo mas um jovem que viria a

se tornar um dos trinta tiranos A conversa que nos chega natildeo eacute narrada por um

dos presentes no encontro mas por Ceacutefalo que o tinha ouvido de Antifonte meio

irmatildeo de Platatildeo que havia ouvido e memorizado a conversa a partir do relato de

Pitodoro Pitodoro por sua vez havia ouvido a conversa por ser companheiro de

Zenatildeo e ter abrigado os visitantes durante sua estada em Atenas (AlcibI 119a)

Apesar de natildeo ser o uacutenico diaacutelogo a apresentar este tipo de encadeamento

narrativo7 o Parmecircnides eacute o diaacutelogo no qual o relato que nos eacute oferecido estaacute

mais distante da conversa original tanto no tempo quanto no nuacutemero de ldquoelosrdquo da

cadeia narrativa Afinal aquele que lecirc o Parmecircnides (e portanto ldquoouverdquo a

narrativa de Ceacutefalo) encontra-se no quarto estaacutegio de uma cadeia de transmissatildeo

do conteuacutedo de uma conversa que teria acontecido haacute pelo menos cinquenta anos

antes do momento dramaacutetico em que Ceacutefalo oferece seu relato8 A estrutura

narrativa descrita no proacutelogo do Parmecircnides pode ser representada pela seguinte

figura

[ZENAtildeO PARMEcircNIDES SOacuteCRATES ARISTOacuteTELES]

[PITODORO ANTIFONTE]

[ANTIFONTE CEacuteFALO]

[CEacuteFALO LEITOR]

7 O Feacutedon o Banquete e o Teeteto tambeacutem satildeo narrados por pessoas que natildeo presenciaram os

acontecimentos descritos 8 A data dramaacutetica para a realizaccedilatildeo do suposto encontro entre Parmecircnides Soacutecrates e Zenatildeo eacute

estabelecida pela menccedilatildeo agraves Grande Panateneacuteias festivais realizados de quatro em quatro anos em honra a Atenaacute Segundo o diaacutelogo Parmecircnides e Zenatildeo estariam em visita a Atenas com o objetivo de participar deste festival De acordo com as informaccedilotildees que nos satildeo fornecidas acerca da idade dos personagens do diaacutelogo (127b-c Parmecircnides teria por volta de sessenta e cinco anos Zenatildeo estaria proacuteximo dos quarenta e Soacutecrates era ainda bastante jovem) podemos estabelecer o festival do ano de 449450 AC como a data base para o encontro narrado Como Ceacutefalo natildeo busca o proacuteprio Soacutecrates para ouvir o relato deste encontro podemos deduzir ainda que no momento da chegada de Ceacutefalo e sua comitiva em Atenas Soacutecrates jaacute havia sido executado fato ocorrido em 399 AC Sendo assim ao menos cinquenta anos separam o relato de Antifonte do momento do encontro inicial Natildeo temos razatildeo para acreditar que o relato de Ceacutefalo esteja ocorrendo muito depois desta data mas as indicaccedilotildees satildeo precisas o suficiente para deixar claro ao leitor a consideraacutevel distacircncia entre a narrativa que nos chega e a conversa original

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Deste modo o Parmecircnides relata uma conversa travada entre Zenatildeo

Parmecircnides Soacutecrates e Aristoacuteteles que foi narrada por Pitodoro a Antifonte que

narrou a Ceacutefalo que por sua vez narra ao leitor Este fato nos eacute lembrado em

pelo menos duas passagens do texto nas quais a cadeia de transmissatildeo eacute

explicitada (130a e 136e) Aleacutem disso esta estrutura nunca desaparece plenamente

de vista para o leitor do texto grego pois todo o diaacutelogo eacute em forma de discurso

indireto com discursos diretos inseridos Eacute claro portanto que tamanha

complexidade de estrutura narrativa natildeo pode ser acidental Platatildeo certamente

intencionava passar alguma mensagem por meio da apresentaccedilatildeo de um proacutelogo

tatildeo cuidadosamente construiacutedo e eacute tarefa do inteacuterprete levantar hipoacuteteses acerca

destas intenccedilotildees

Como a maior parte dos comentadores observa a primeira liccedilatildeo que

podemos tirar da estrutura narrativa do Parmecircnides diz respeito agrave ausecircncia total de

veracidade histoacuterica do relato Ao estabelecer uma longa distacircncia temporal entre

a narrativa que nos eacute oferecida e o fato dramaacutetico que nos eacute narrado Platatildeo indica

ao leitor que o conteuacutedo do Parmecircnides eacute plenamente ficcional e que ningueacutem

deve tentar confirmar nenhum dos seus detalhes mesmo que um encontro entre

Parmecircnides e Soacutecrates tenha de fato acontecido coisa que a maior parte dos

comentadores considera improvaacutevel ou mesmo impossiacutevel9

A segunda conclusatildeo que podemos extrair da complexa estrutura narrativa

apresentada no Parmecircnides diz respeito ao efeito dramaacutetico que este tipo de

proacutelogo pretende criar no leitor Nosso diaacutelogo se inicia com a histoacuteria de que

cinquenta anos apoacutes um encontro entre Parmecircnides Zenatildeo e Soacutecrates um grupo

de pessoas ldquobastante interessadas em questotildees de sabedoriardquo (microάλα φιλόσοφοι) eacute

levado a deixar Clazocircmenas para cruzar o mar Egeu em busca de um ateniense

que acreditam ter informaccedilotildees sobre o que teria se passado nesta reuniatildeo Este

ateniense apesar de natildeo haver estado presente no encontro ocorrido antes mesmo

de seu nascimento considerava o conteuacutedo da conversa ali desenrolada tatildeo

importante que decidiu dedicar-se a decoraacute-la durante sua juventude A pessoa de

9 A ausecircncia de pretensatildeo histoacuterica eacute notada por praticamente todos os comentadores recentes

Mansfeld adotando 462461 como data dramaacutetica para o suposto encontro entre Parmecircnides e Soacutecrates acredita ainda que este evento nunca poderia ter acontecido como descrito por Platatildeo pois nesta data Soacutecrates teria apenas oito anos de idade ldquoNem ao menos se espera que os leitores do Parmecircnides acreditem que o encontro tenha realmente ocorridordquo (Mansfeld

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quem este ateniense ouviu a histoacuteria Pitodoro tampouco participou ativamente da

conversa poreacutem igualmente decorou o conteuacutedo do diaacutelogo e passou adiante10

O proacutelogo do Parmecircnides nos gera assim uma sensaccedilatildeo de curiosidade

acerca do texto que estamos prestes a ter acesso Aleacutem disso a longa lista de

pessoas dedicadas agrave preservaccedilatildeo do conteuacutedo desta conversa assim como a longa

jornada de Ceacutefalo e seus companheiros em busca desta narrativa nos garante a

seriedade e a importacircncia daquilo que nos seraacute revelado Como observa Allen ldquoa

proacutepria introduccedilatildeo do Parmecircnides por si soacute nos proiacutebe tratar o diaacutelogo como um

tipo estranho de piada ou trivializar o diaacutelogo como uma mera ginaacutestica ou um

exerciacutecio de detecccedilatildeo de simples falaacuteciasrdquo (Allen 1997 p71) O proacutelogo do

Parmecircnides adverte o leitor a se preparar desde o iniacutecio para a profundidade e

relevacircncia do conteuacutedo que seraacute apresentado

A caracteriacutestica mais importante da abertura de nosso diaacutelogo no entanto

parece ter passado despercebida para maior parte dos comentadores Trata-se do

fato de que a complexa estrutura narrativa montada no proacutelogo do Parmecircnides

encontra-se refletida na estrutura argumentativa do diaacutelogo Diferente da maior

parte dos diaacutelogos nos quais um mesmo interlocutor expotildee suas teses ou conduz a

refutaccedilatildeo de outro(s) personagem(s) o Parmecircnides eacute constituiacutedo por uma seacuterie de

momentos argumentativos distintos Nosso diaacutelogo comeccedila com a leitura dos

argumentos de Zenatildeo e uma menccedilatildeo aos detratores de Parmecircnides contra quem

estes argumentos satildeo endereccedilados Logo em seguida Soacutecrates aparece em cena e

passa a argumentar contra Zenatildeo Por fim Parmecircnides entra na discussatildeo e passa

a apresentar argumentos contra Soacutecrates Desta maneira temos Parmecircnides

oferecendo criacuteticas agrave Teoria das Ideias de Soacutecrates que havia sido apresentada

como uma refutaccedilatildeo agrave argumentaccedilatildeo de Zenatildeo que por sua vez havia sido

apresentada como uma criacutetica agrave tese pluralista defendida pelos detratores de

Parmecircnides Esta estrutura argumentativa pode ser representada pelo seguinte

1986 p44)

10 Eacute importante notar que no momento em que Ceacutefalo chega agrave Atenas em busca de informaccedilotildees sobre o encontro de Soacutecrates Zenatildeo e Parmecircnides todas as pessoas que estavam presentes neste encontro jaacute estatildeo mortas incluindo o proacuteprio Soacutecrates Portanto para Antifonte e Ceacutefalo assim como para o leitor do diaacutelogo o Parmecircnides narra momentos da vida de figuras de uma geraccedilatildeo passada uma geraccedilatildeo de grande importacircncia para a comunidade filosoacutefica grega cujas conversas e debates merecem ser lembrados e revividos meio seacuteculo apoacutes seu acontecimento O proacutelogo do Parmecircnides presta assim uma homenagem a esta geraccedilatildeo de pensadores jaacute perdida e o fato de Platatildeo fazer com que vaacuterios personagens tenham se dedicado ao ato de memorizar o conteuacutedo de um encontro entre estas pessoas indica ainda o apreccedilo de Platatildeo por estes indiviacuteduos

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esquema

[ PARMEcircNIDES PLURALISTAS]

[ PLURALISTAS ZENAtildeO]

[ ZENAtildeO SOacuteCRATES]

[SOacuteCRATES PARMEcircNIDES]

Da mesma forma que nossa histoacuteria eacute narrada por uma pessoa que conta o

que lhe foi narrado por outra pessoa que contou o que lhe foi narrado por outra

os argumentos do diaacutelogo satildeo ordenados de tal modo que cada um deles remete

aos resultados alcanccedilados pelos argumentos precedentes ao mesmo tempo em que

fornece a base para o argumento que se seguiraacute A estrutura argumentativa do

Parmecircnides encontra-se assim refletida e prenunciada na estrutura narrativa

descrita no proacutelogo do diaacutelogo

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413 O paradoxo de Zenatildeo

O primeiro argumento apresentado ao leitor do Parmecircnides eacute atribuiacutedo a

Zenatildeo Como sabemos Zenatildeo foi um defensor do monismo eleata e seus

argumentos receberam muito prestiacutegio ainda na antiguidade O interesse acerca

do pensamento de Zenatildeo faz com que muitos comentadores do Parmecircnides

analisem o paradoxo zenoniano presente no diaacutelogo em comparaccedilatildeo aos

argumentos do Zenatildeo histoacuterico Esta atitude pode ser vista por exemplo em

Proacuteclus que interpreta o paradoxo presente no Parmecircnides em funccedilatildeo do

conteuacutedo de uma obra atribuiacuteda a Zenatildeo na qual este paradoxo estaria descrito (In

Parm 694)11

Nos comentadores modernos esta abordagem tambeacutem parece prevalecer

Assim Cornford (Cornford 1951 p 53-62) dedica toda primeira seccedilatildeo de seu

comentaacuterio ao Parmecircnides agrave questatildeo da relaccedilatildeo entre Zenatildeo e seus oponentes da

escola pitagoacuterica Brisson (Brisson 1990 p15-28) igualmente passa boa parte

de sua introduccedilatildeo ao Parmecircnides discutindo a relaccedilatildeo entre as teses de Zenatildeo e

Parmecircnides natildeo como personagens do drama platocircnico mas como figuras

histoacutericas Ambos os autores mesmo reconhecendo a escassez de fontes sobre o

tema acabam por projetar a sua compreensatildeo do pensamento do Zenatildeo histoacuterico

na interpretaccedilatildeo do papel desta figura no interior de nosso diaacutelogo

Em contrapartida a esta atitude a importacircncia do paradoxo de Zenatildeo na

interpretaccedilatildeo do Parmecircnides tem sido na maior parte das vezes negligenciada

pelos comentadores Como observa Harte ldquomuito constantemente o interesse em

examinar a relaccedilatildeo entre as deduccedilotildees [da segunda parte do diaacutelogo] e a criacutetica de

Parmecircnides agraves Formas deu-se agraves custas de uma consideraccedilatildeo da conversa inicial

entre Soacutecrates e Zenatildeordquo (Harte 2002 p52) Uma das razotildees para esta negligecircncia

estaacute sem duacutevida no fato de que os comentadores consideram relativamente clara

a relaccedilatildeo desta conversa inicial com o restante da obra Segundo a opiniatildeo geral o

paradoxo de Zenatildeo serve como um pretexto para que Soacutecrates apresente a Teoria

11 Dillon em sua introduccedilatildeo ao Comentaacuterio ao Parmecircnides de Proacuteclus defende a tese de que

Proacuteclus daacute claros sinais de possuir um manuscrito da obra de Zenatildeo e que portanto devemos considerar vaacutelidas suas observaccedilotildees sobre o conteuacutedo desta obra A mais famosa destas observaccedilotildees afirma que o paradoxo apresentado no Parmecircnides fazia parte de um livro que conteria quarenta argumentos (cf MorrowampDillon 1987 p xxviii-xliii)

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das Ideias Sendo assim os comentadores tecem raacutepidas consideraccedilotildees sobre o

paradoxo de Zenatildeo e na maior parte das vezes jaacute em funccedilatildeo da soluccedilatildeo

apresentada por Soacutecrates para este paradoxo12

No entanto caso adotemos este tipo de interpretaccedilatildeo para o papel do

paradoxo de Zenatildeo no diaacutelogo estaremos de iniacutecio comprometendo a unidade da

argumentaccedilatildeo do Parmecircnides Pois segundo este ponto de vista o paradoxo de

Zenatildeo natildeo estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do restante do diaacutelogo e

natildeo passa de uma deixa dramaacutetica para entrada em cena de Soacutecrates e sua teoria

Sendo assim evitarei abrir a caixa de pandora do conteuacutedo do pensamento

eleaacutetico e me limitarei a oferecer uma interpretaccedilatildeo para o paradoxo de Zenatildeo agrave

altura do papel de destaque que este argumento recebe no nosso diaacutelogo No

Parmecircnides o paradoxo de Zenatildeo daacute ensejo a toda discussatildeo subsequente

Portanto segundo o princiacutepio de relaccedilatildeo entre os argumentos do diaacutelogo esboccedilado

na seccedilatildeo precedente os conceitos envolvidos neste paradoxo devem ressoar por

todo o restante da argumentaccedilatildeo

12 Allen (1997) eacute uma exceccedilatildeo

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414 Dois sentidos de multiplicidade e unidade implicado s na argumentaccedilatildeo zenoniana

A narrativa de Ceacutefalo inicia-se com a descriccedilatildeo de uma leitura puacuteblica dos

ldquoescritos de Zenatildeordquo (τῶν τοῦ Ζήνωνος γραmicromicroάτων) realizada na casa de Pitodoro

Eacute o proacuteprio Zenatildeo quem realiza a leitura e Soacutecrates acompanhado de muitos

outros faz parte da audiecircncia que se reuniu ansiosa para escutar o que seria dito

uma vez que esta era a primeira vez que tais escritos eram trazidos para Atenas

Ao final da apresentaccedilatildeo Soacutecrates pede para que seja lida novamente a primeira

hipoacutetese do primeiro argumento e ao fim diz

ldquoQue queres dizer com isso Zenatildeo Que se os seres satildeo muacuteltiplos entatildeo eacute preciso que eles sejam tanto semelhantes quanto dessemelhantes mas que isso eacute impossiacutevel pois nem as coisas dessemelhantes podem ser semelhantes nem as semelhantes dessemelhantes Natildeo eacute isso que queres dizerrdquo Πῶς φάναι ὦ Ζήνων τοῦτο λέγεις εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα ὡς ἄρα δεῖ αὐτὰ ὅmicroοιά τε εἶναι καὶ ἀνόmicroοια τοῦτο δὲ δὴ ἀδύνατον οὔτε γὰρ τὰ ἀνόmicroοια ὅmicroοια οὔτε τὰ ὅmicroοια ἀνόmicroοια οἷόν τε εἶναι οὐχ οὕτω λέγεις (127e1-5)

Zenatildeo responde afirmativamente e somos apresentados assim ao primeiro

argumento do diaacutelogo Platatildeo constroacutei este argumento de maneira bastante

resumida nos fornecendo apenas as premissas e a conclusatildeo da argumentaccedilatildeo

zenoniana Fica claro a partir do resumo de Soacutecrates que estamos lidando com

uma reduccedilatildeo ao absurdo da tese pluralista segundo a qual os seres satildeo muacuteltipos

(πολλά ἐστι τὰ ὄντα) O sentido preciso desta tese contudo natildeo estaacute claro de

imediato Sobretudo porque logo depois Soacutecrates iraacute reformulaacute-la por meio do

condicional ldquose os muacuteltipos satildeordquo ou ldquose haacute muacuteltiplas [coisas]rdquo (εἰ πολλά ἐστιν)

(128d5) No primeiro caso εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα o adjetivo πολλά (muacuteltiplos) eacute

apresentado como um predicado do sujeito ὄντα (seres) significando que os seres

satildeo muacuteltiplos no sentido de que possuem vaacuterios atributos Jaacute no segundo caso o

adjetivo substantivado [τὰ] πολλά torna-se o sujeito de uma sentenccedila absoluta

podendo ser traduzida por ldquose muacuteltiplas [coisas] satildeordquo ou ldquose haacute muacuteltiplas

[coisas]rdquo13

13 A diferenccedila entre estas duas formulaccedilotildees natildeo eacute tatildeo bem definida em grego quanto sugerem as

traduccedilotildees por mim apresentadas Afinal τὰ ὄντα pode estar subentendido como sujeito da

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Temos portanto dois sentidos distintos para o argumento de Zenatildeo O

argumento pode estar visando demonstrar a impossibilidade de uma pluralidade

numeacuterica isto eacute da tese de que haacute mais de uma coisa no mundo ou pode estar

visando demonstrar a impossibilidade de uma mesma coisa possuir mais de um

atributo Neste uacuteltimo caso seu objetivo eacute demonstrar que cada coisa eacute

perfeitamente simples homogecircnea e indivisiacutevel Naturalmente estas duas teses

satildeo independentes uma da outra Afinal podemos sustentar que soacute haacute uma coisa

no mundo poreacutem considerando esta coisa como muacuteltipla dotada de vaacuterias partes

ou atributos Ao passo que por outro lado podemos sustentar que haacute vaacuterias

coisas no entanto considerarmos cada uma delas como simples e indivisiacutevel

Soacutecrates contudo oferece tanto εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα quanto εἰ πολλά ἐστιν

como formulaccedilotildees vaacutelidas para uma mesma hipoacutetese Sendo assim devemos

entender que ao menos em nosso diaacutelogo estas duas teses estatildeo sendo

apresentadas em conjunto representando dois lados de uma mesma moeda ou

duas perspectivas complementares de uma mesma posiccedilatildeo filosoacutefica

Os personagens do Parmecircnides parecem reconhecer esta dualidade

inerente agrave argumentaccedilatildeo zenoniana Soacutecrates por exemplo daacute sinais de sua

compreensatildeo deste fato ao ressaltar ora um ora outro aspecto da argumentaccedilatildeo

zenoniana Em 127e8-128a1 por exemplo Soacutecrates pergunta a Zenatildeo

ldquoSeraacute que eacute isso que querem dizer teus argumentos natildeo outra coisa senatildeo sustentar decididamente contra tudo o que se afirma que natildeo haacute muacuteltiplas coisas (οὐ πολλά ἐστι) E disso mesmo crecircs ser prova para ti cada um dos argumentos de sorte que tambeacutem acreditas apresentar tantas provas de que natildeo haacute muacuteltiplas coisas quantos argumentos escrevestesrdquo ἆρα τοῦτό ἐστιν ὃ βούλονταί σου οἱ λόγοι οὐκ ἄλλο τι ἢ διαmicroάχεσθαι παρὰ πάντα τὰ λεγόmicroενα ὡς οὐ πολλά ἐστι καὶ τούτου αὐτοῦ οἴει σοι τεκmicroήριον εἶναι ἕκαστον τῶν λόγων ὥστε καὶ ἡγῇ τοσαῦτα τεκmicroήρια παρέχεσθαι ὅσουσπερ λόγους γέγραφας ὡς οὐκ ἔστι πολλά (127e8-128a1)

Nesta passagem por meio do uso repetitivo de expressotildees no plural

Soacutecrates indica a incongruecircncia da atitude de Zenatildeo que afirma que natildeo haver

muacuteltiplas coisas (οὐ πολλά ἐστι) natildeo obstante fazendo uso de muacuteltiplos

argumentos para provar esta afirmaccedilatildeo Como observa Soacutecrates ao tentar provar a

segunda sentenccedila o que tornaria as duas formulaccedilatildeo idecircnticas Trata-se de um caso de ambiguidade sintaacutetica em que as duas leituras satildeo possiacuteveis para cada uma das formulaccedilotildees De acordo com minha interpretaccedilatildeo este tipo de ambiguidade recorrente na primeira parte do diaacutelogo eacute proposital

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inexistecircncia de uma pluralidade de coisas por meio de muacuteltiplos argumentos

Zenatildeo comete um claacutessico caso de paradoxo performativo dando prova

justamente daquilo que ele nega ser possiacutevel

Ora fica claro que neste momento Soacutecrates estaacute tratando o argumento de

Zenatildeo como uma prova da impossibilidade da existecircncia de muacuteltiplos indiviacuteduos

ou como uma defesa da tese de que soacute haacute uma uacutenica coisa (monismo numeacuterico)

Esta identificaccedilatildeo eacute ainda reafirmada por Soacutecrates quando ele estabelece logo em

seguida a equivalecircncia entre o argumento de Zenatildeo e a tese parmeniacutedica de que

ldquoo todo eacute umrdquo (ἓν εἶναι τὸ πᾶν)

Este comentaacuterio eacute geralmente considerado como a palavra final de

Soacutecrates acerca do sentido da argumentaccedilatildeo zenoniana sendo seguido por uma

longa fala em que a Teoria das Ideias eacute apresentada e o paradoxo de Zenatildeo eacute

superado e natildeo mais invocado na discussatildeo Esta leitura do texto leva a maior

parte dos comentadores a considerar o paradoxo de Zenatildeo como uma defesa

apenas da tese do monismo numeacuterico sem que esteja implicada no paradoxo uma

prova da impossibilidade das coisas possuiacuterem muacuteltiplos atributos14 O defensor

mais radical deste tipo de interpretaccedilatildeo eacute sem duacutevida Luc Brisson (1990) que

com base nesta passagem pretende natildeo apenas limitar a argumentaccedilatildeo de Zenatildeo a

uma afirmaccedilatildeo do monismo numeacuterico como tambeacutem identificar a expressatildeo τὸ

πᾶν traduzida por ele como ldquoo universordquo ou ldquoo conjunto de todos os conjuntos de

todas as coisas sensiacuteveisrdquo como o sujeito impliacutecito de todas as formulaccedilotildees da

tese unitarista (cf Brisson 1990 p18-27)15

Entretanto a identificaccedilatildeo da argumentaccedilatildeo de Zenatildeo com o monismo

numeacuterico de Parmecircnides soacute eacute estabelecida explicitamente nesta passagem Por

todo o restante do diaacutelogo Platatildeo faz uso de expressotildees deliberadamente

ambiacuteguas para se referir tanto agrave tese pluralista alvo do paradoxo de Zenatildeo quanto

14 Vide por exemplo o comentaacuterio de Rossvaer ldquoZenatildeo toma como ponto de partida a hipoacutetese

de que as coisas satildeo muacuteltiplas Mas natildeo eacute exatamente isso o que ele quer dizer O que ele quer dizer eacute que o Ser (o todo) eacute Um tal como seu mestre (Rossvaer1983 p15) No mesmo sentido (cf Coxon 1999 p97) O uacutenico autor que reconhece a dualidade implicada na argumentaccedilatildeo de Zenatildeo eacute El Murr (2010) embora a interpretaccedilatildeo oferecida por MacCabe (1996) tambeacutem pressuponha este reconhecimento

15 Bisson vai aleacutem e identifica τὸ πᾶν como o sujeito subentendido de todas as hipoacuteteses da segunda parte do Parmecircnides (cf Brisson 1990 p18-27) No entanto ao afirmar a expressatildeo τὸ πᾶν como o sujeito oculto de todas as expressotildees em que o um aparece ligado ao verbo ldquoserrdquo tanto na primeira quanto na segunda parte do diaacutelogo Brisson estaacute oferecendo uma interpretaccedilatildeo claramente violenta ao texto do Parmecircnides Afinal Platatildeo dificilmente esconderia a chave para compreensatildeo de todo o diaacutelogo em uma uacutenica ocorrecircncia da expressatildeo

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agrave tese monista defendida por Zenatildeo e Parmecircnides Isto fica claro a partir do

inventaacuterio realizado por Giovanni Casertano que nos lista todas as formulaccedilotildees

das teses monista e pluralista presentes no Parmecircnides divididas entre afirmaccedilotildees

diretas e formulaccedilotildees hipoteacuteticas (cf Cassertano 1990 p386-388) Como

afirmaccedilotildees hipoteacuteticas em sentenccedilas condicionais temos

1) εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα (127e1)

2) εἰ γὰρ πολλὰ εἴη (127e7)

3) εἰ ἕν ἐστι (128d1)

4) εἰ πολλά ἐστιν (128d5)

5) ἡ τοῦ ἓν εἶναι (128d5)

6) εἰ πολλά ἐστι (136a6)

7) εἰ microή ἐστι πολλά (136a6)

Como assertivas diretas temos

8) ἀδύνατον δὴ καὶ πολλὰ εἶναι (127e6-7)

9) ὡς οὐ πολλά ἐστι (127e9)

10) ὡς οὐκ ἔστι πολλά (127e9-128a1)

11) ἓν φῂς εἶναι τὸ πᾶν (128a7-b1)

12) οὐ πολλά φησιν εἶναι (128b2)

13) τὸν microὲν ἓν φάναι τὸν δὲ microὴ πολλά (128b3)

14) τὰ πολλὰ λέγοντας

15) τῆς ἐmicroαυτοῦ ὑποθέσεως () εἴτε ἕν ἐστιν εἴτε microὴ ἕν (137b3-4)

Com base neste inventaacuterio eacute possiacutevel constatar que somente na passagem

nuacutemero 11 τὸ πᾶν eacute apresentado como o sujeito expliacutecito da hipoacutetese de

Parmecircnides Por todo o restante do diaacutelogo Platatildeo faz uso de expressotildees

ambiacuteguas sem sujeito definido para se referir tanto agraves teses de Parmecircnides e

Zenatildeo quanto agraves teses dos defensores do pluralismo16 Portanto dado o grande

nuacutemero de passagens em que a tese monista de Zenatildeo e Parmecircnides natildeo aparece

τὸ πᾶν em meio a esta fala aparentemente despretenciosa de Soacutecrates

16 Com a exceccedilatildeo eacute claro da sentenccedila nuacutemero 1 que como jaacute observamos apresenta πολλά como predicativo do sujeito τὰ ὄντα

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diretamente vinculada ao monismo numeacuterico natildeo temos razatildeo para projetar

aquilo que encontramos em uma uacutenica passagem como a interpretaccedilatildeo definitiva

para todas as outras

Caso tenhamos em mente a ambiguidade inerente agrave formulaccedilatildeo do

paradoxo de Zenatildeo poderemos notar que o segundo sentido de multiplicidade

implicado na sua argumentaccedilatildeo emerge como a interpretaccedilatildeo natural para outras

passagens do diaacutelogo Em uma destas passagens a possibilidade de um mesmo

indiviacuteduo possuir uma multiplicidade de partes eacute apresentada por Soacutecrates como

um dos resultados da sua soluccedilatildeo para o paradoxo Em 129c Soacutecrates diz

ldquoMas se algueacutem demonstrar que eu sou um17 e muacuteltiplas coisas que haacute nisso de espantoso Quando quiser mostrar que eu sou muacuteltiplas coisas diraacute que uma coisa eacute meu lado direito outra o esquerdo e que uma coisa eacute a frente outra a parte de traacutes e do mesmo modo com relaccedilatildeo agrave parte inferior e posterior pois participo creio da quantidade e por outro lado quando [quiser mostra] que sou um diraacute que dos sete que aqui estatildeo eu sou um homem participante que sou tambeacutem do umrdquo εἰ δ ἐmicroὲ ἕν τις ἀποδείξει ὄντα καὶ πολλά τί θαυmicroαστόν λέγων ὅταν microὲν βούληται πολλὰ ἀποφῆναι ὡς ἕτερα microὲν τὰ ἐπὶ δεξιά microού ἐστιν ἕτερα δὲ τὰ ἐπ ἀριστερά καὶ ἕτερα microὲν τὰ πρόσθεν ἕτερα δὲ τὰ ὄπισθεν καὶ ἄνω καὶ κάτω ὡσαύτως ndash πλήθους γὰρ οἶmicroαι microετέχω ndash ὅταν δὲ ἕν ἐρεῖ ὡς ἑπτὰ ἡmicroῶν ὄντων εἷς ἐγώ εἰmicroι ἄνθρωπος microετέχων καὶ τοῦ ἑνός (129c4-d1)

A importacircncia desta fala de Soacutecrates na compreensatildeo do conteuacutedo da

argumentaccedilatildeo de Zenatildeo natildeo parece ter sido notada pelos comentadores Isto deve-

se ao fato desta colocaccedilatildeo fazer parte de um discurso mais amplo no qual

Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que suas Formas estatildeo

sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos tal como estatildeo sujeitos os objetos sensiacuteveis

Contudo se limitarmos nossa interpretaccedilatildeo destas palavras de Soacutecrates agrave questatildeo

da copresenccedila de opostos a introduccedilatildeo do tema da unidade e multiplicidade torna-

se completamente incidental Afinal Soacutecrates poderia ter apresentado seu desafio

por meio de qualquer outro par de propriedades opostas Na verdade de acordo

com esta linha de raciociacutenio o aparecimento dos conceitos de unidade e

multiplicidade nesta passagem eacute inclusive desnecessaacuterio uma vez que Soacutecrates

jaacute havia formulado seu desafio por meio das propriedades ldquosemelhanterdquo e

ldquodessemelhanterdquo No entanto natildeo podemos considerar meramente ocasional esta

especiacutefica formulaccedilatildeo sobretudo em meio a uma discussatildeo centrada na questatildeo da

17 Coloco ldquoumrdquo em itaacutelico nesta e nas seguintes passagens para diferenciar o atributo ldquoser-umrdquo

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viabilidade teoacuterica da noccedilatildeo de multiplicidade Eacute claro que na dinacircmica

conversacional do diaacutelogo qualquer afirmaccedilatildeo sobre o tema da

unidademultiplicidade remete o leitor diretamente ao paradoxo de Zenatildeo e agrave

compreensatildeo de seu significado

A observaccedilatildeo de Soacutecrates deixa de ser irrelevante e passa a fazer sentido

se entendermos o paradoxo de Zenatildeo como uma prova tambeacutem da

impossibilidade de uma coisa uacutenica qualquer possuir muacuteltiplos atributos Soacutecrates

estaacute tornando expliacutecito nesta passagem o segundo sentido de multiplicidade

negado pela argumentaccedilatildeo de Zenatildeo a multiplicidade de partes ou atributos de

um mesmo indiviacuteduo Segundo Soacutecrates natildeo haacute nada de espantoso ao contraacuterio

do que pretende afirmar Zenatildeo no fato de uma dada coisa uacutenica ser tambeacutem

muacuteltipla dotada de vaacuterias partes

Portando para defender o monismo de seu mestre Parmecircnides Zenatildeo

pretende demonstrar a contradiccedilatildeo envolvida na admissatildeo da multiplicidade tout

court quer esta seja entendia como uma multiplicidade de indiviacuteduos quer como

uma multiplicidade de atributos de um mesmo indiviacuteduo Como veremos o

reconhecimento desta dualidade da argumentaccedilatildeo zenoniana se mostraraacute essencial

para a compreensatildeo dos argumentos seguintes Pois estes dois sentidos de

multiplicidade estaratildeo implicados na soluccedilatildeo de Soacutecrates para o paradoxos de

Zenatildeo assim como faratildeo parte da estrateacutegia utilizada por Parmecircnides na sua

contra-argumentaccedilatildeo agrave soluccedilatildeo socraacutetica

do artigo indefinido

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415 A reduccedilatildeo ao absurdo da tese pluralista

Tendo estabelecido os dois sentidos de multiplicidade afirmados pela tese

pluralista e negados pelo monismo de Zenatildeo e Parmecircnides podemos passar para a

anaacutelise do argumento zenoniano De acordo com o resumo apresentado por

Soacutecrates em 127e1-5 a reduccedilatildeo ao absurdo da tese pluralista eacute operada por Zenatildeo

por meio do seguinte raciociacutenio

1) Suponha que os seres satildeo muacuteltiplos (tese provisoriamente

assumida)

2) Se eles satildeo muacuteltiplos entatildeo eles satildeo tanto semelhantes quanto

dessemelhantes

3) Logo os seres satildeo tanto semelhantes quanto dessemelhantes (a

partir de 1 amp 2)

4) Ora eacute impossiacutevel que uma mesma coisa seja semelhante e

dessemelhante

5) Portanto os seres natildeo satildeo muacuteltiplos (afirma-se a negaccedilatildeo de 1

com base na contradiccedilatildeo entre 3 amp 4) 18

A invenccedilatildeo do meacutetodo de reduccedilatildeo ao absurdo que consiste em assumir

temporariamente uma tese para a partir dela derivar uma contradiccedilatildeo e assim

concluir a negaccedilatildeo da tese inicial natildeo deve ser atribuiacuteda a Zenatildeo embora

saibamos que ele tenha usado extensivamente este meacutetodo argumentativo

Segundo Thomas Heath o meacutetodo de reduccedilatildeo ao absurdo pode ter sua origem

traccedilada ateacute a escola pitagoacuterica e no tempo de Platatildeo este argumento jaacute era usado

largamente em provas matemaacuteticas envolvendo teoria dos nuacutemeros (cf Heath

1960 p294-295) Sendo assim podemos considerar que os leitores de Platatildeo natildeo

viam com estranheza este tipo de argumentaccedilatildeo

18 Trata-se de um argumento em Modus Tollendo Tollens isto eacute um argumento que neganto

(tollendo) o consequente da implicaccedilatildeo expressa na premissa nega (tollens) por consequecircncia loacutegica tambeacutem o antecedente Em notaccedilatildeo formal P rarr Q

~Q ~P

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Da mesma maneira a premissa nuacutemero 2 do argumento de Zenatildeo parece

bastante plausiacutevel e dificilmente teria sua validade objetada Zenatildeo pode estar

argumentando por exemplo que os muacuteltiplos seres como seres satildeo semelhantes

entre si enquanto que como muacuteltiplos e portanto numericamente distintos uns

dos outros satildeo dessemelhantes ou ainda que as diversas partes de um indiviacuteduo

satildeo semelhantes entre si enquanto partes de um mesmo indiviacuteduo poreacutem

dessemelhantes enquanto partes distintas

No entanto chama muita atenccedilatildeo o conteuacutedo da premissa nuacutemero 4 do

argumento Segundo esta premissa uma mesma coisa natildeo pode ser ao mesmo

tempo semelhante e dessemelhante Mas por quecirc Podemos pensar em miriacuteades

de casos em que uma mesma coisa eacute tanto semelhante quanto dessemelhante

Soacutecrates e Platatildeo por exemplo satildeo semelhantes pelo fato de ambos serem

atenienses no entanto satildeo dessemelhantes em vaacuterios outros aspectos como em

idade condiccedilatildeo social etc Enquanto inteacuterpretes devemos tentar entender porque

os interlocutores do Parmecircnides consideram intrigante e paradoxal o fato de uma

dada coisa possuir simultaneamente propriedades opostas mesmo quando estas

propriedades representam termos relativos (semelhante-dessemelhante maior-

menor etc)

A explicaccedilatildeo mais constantemente apresentada pelos comentadores segue

a mesma linha de raciociacutenio da criacutetica desenvolvida por Vlastos que citamos

anteriormente Zenatildeo estaria tratando predicados relacionais como predicados

monaacutedicos (ou adjetivos) Assim ele estaria ignorando o complemento existente

nos predicados relacionais e tratando a propriedade ldquoser semelhante a xrdquo como

equivalente agrave propriedade ldquoser semelhante simpliciterrdquo isto eacute estaria tratando um

predicado incompleto (que necessita de um complemento para ser significativo)

como um predicado completo (significativo por si soacute) Negligenciada a diferenccedila

entre estes dois tipos de predicados uma sentenccedila do tipo ldquoA eacute maior que B e

menor que Crdquo passa a ser equivalente a ldquoA eacute maior e menor simpliciterrdquo

tornando-se tatildeo contraditoacuteria quanto a sentenccedila ldquoA eacute quadrado e redondordquo

Este tipo de interpretaccedilatildeo foi primeiramente apresentada por Cornford

segundo o qual ldquonenhuma distinccedilatildeo eacute traccedilada entre qualidades e relaccedilotildees

Grandeza eacute tratada como se fosse uma qualidade como Brancura inerente agrave

pessoa granderdquo (Cornford 1951 p78) Cornford observa ainda que este tipo de

raciociacutenio parece ser particularmente favorecido pela sintaxe grega que permite

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sentenccedilas do tipo ldquoSimmias eacute grande em relaccedilatildeo (πρὸς) a Soacutecratesrdquo ou ainda

ldquoSimmias tem grandeza com relaccedilatildeo (πρὸς) a Soacutecratesrdquo nas quais o segundo

termo da relaccedilatildeo binaacuteria ldquoser-maior-querdquo natildeo eacute necessariamente introduzido por

um pronome relativo mas pode ser introduzido pela preposiccedilatildeo πρὸς Este fato

sintaacutetico teria supostamente induzido os pensadores gregos a negligenciar o

caraacuteter relacional de propriedades como ldquoser-semelhante-ardquo ou ldquoser-maior-querdquo

os levando a classificaacute-las como propriedades monaacutedicas do tipo ldquoser-brancordquo ou

ldquoser-belordquo

No entanto esta anaacutelise linguiacutestica por si soacute natildeo pode ser considerada

uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria Caso assim fosse Soacutecrates poderia simplesmente

argumentar em termos estritamente gramaticais e afirmar que usamos sentenccedilas

significativas com predicados relativos cotidianamente e que portanto o

paradoxo de Zenatildeo deveria ser simplesmente desconsiderado Pois soacute haacute

contradiccedilatildeo quando propriedades opostas satildeo atribuiacutedas a uma mesma coisa ao

mesmo tempo da mesma maneira e em relaccedilatildeo a uma mesma coisa 19

A ausecircncia de distinccedilatildeo entre predicados relacionais e predicados

completos no argumento de Zenatildeo no entanto nos remete diretamente a um tema

extremamente recorrente nos diaacutelogos a copresenccedila de propriedades opostas

Como vimos em diversos diaacutelogos Soacutecrates e seus interlocutores consideram a

copresenccedila de propriedades opostas nos objetos sensiacuteveis algo intrigante e

merecedor de uma explicaccedilatildeo teoacuterica complexa Na realidade o fato das entidades

sensiacuteveis estarem submetidas a este tipo de predicaccedilatildeo constitui aquilo que mais

propriamente as caracteriza o que fica claro pelo uso de predicados relacionais

nas demonstraccedilotildees socraacuteticas da diferenccedila entre o modo de ser das Formas e o

modo de ser das coisas do mundo sensiacutevel Assim submetidas a uma

multiplicidade de relaccedilotildees as entidades sensiacuteveis estatildeo sempre sujeitas agrave

predicaccedilatildeo de opostos o que eacute tido por Soacutecrates como uma evidecircncia de

contradiccedilatildeo interna e deficiecircncia ontoloacutegica nestes objetos

Portanto devemos entender que os predicados ldquosemelhanterdquo e

ldquodessemelhanterdquo do argumento de Zenatildeo estatildeo sendo empregados para ilustrar o

fato de que os objetos sensiacuteveis tecircm suas propriedades definidas pelas relaccedilotildees

em que estatildeo inseridos o que resulta na copresenccedila de opostos em um mesmo

19 De fato em uma passagem da Repuacuteblica IV (436b-c) Soacutecrates formula uma versatildeo da Lei da

Natildeo-Contradiccedilatildeo na qual todas estas qualificaccedilotildees satildeo mencionadas

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objeto e lhes confere um caraacuteter contraditoacuterio Ora eacute evidente que a extinccedilatildeo das

muacutetuas relaccedilotildees existentes entre os objetos sensiacuteveis seria suficiente para eliminar

o problema da copresenccedila de opostos pois um uacutenico objeto privado de qualquer

relaccedilatildeo eacute somente idecircntico a si mesmo

Eacute justamente esta a estrateacutegia da argumentaccedilatildeo zenoniana Reduzindo a

multiplicidade dos objetos sensiacuteveis a uma uacutenica entidade Zenatildeo elimina por

completo as muacuteltiplas relaccedilotildees entre eles consequentemente resolvendo o

problema da copresenccedila de opostos Assim enquanto Soacutecrates usa a copresenccedila

de opostos para caracterizar a deficiecircncia do mundo sensiacutevel e ainda postular a

existecircncia de entidades natildeo submetidas agraves relaccedilotildees que geram esta copresenccedila

Zenatildeo usa esta caracteriacutestica para negar toda possibilidade de multiplicidade

extinguindo por completo qualquer tipo de relaccedilatildeo e postulando a existecircncia de

uma uacutenica coisa privada de qualquer atributo salvo sua auto-identidade

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416 A soluccedilatildeo de Soacutecrates para o paradoxo de Zenatildeo

A despeito de todas as polecircmicas acerca da interpretaccedilatildeo do Parmecircnides a

compreensatildeo da soluccedilatildeo oferecida por Soacutecrates ao paradoxo de Zenatildeo destaca-se

como um ponto de notaacutevel consenso Os comentadores parecem concordar que a

estrateacutegia adotada por Soacutecrates consiste em desafiar o conteuacutedo da premissa

nuacutemero 4 do argumento de Zenatildeo por meio da distinccedilatildeo entre dois tipo de

entidades Formas e objetos sensiacuteveis Soacutecrates entende que os seres (τὰ ὄντα)

sobre os quais fala Zenatildeo satildeo objetos sensiacuteveis e como soluccedilatildeo ao paradoxo

apresenta as Formas como um tipo de entidade imune agrave copresenccedila de opostos

apontada por Zenatildeo

Recentemente contudo ateacute mesmo este aparente consenso foi ameaccedilado

Sandra Peterson em seu capiacutetulo sobre o Parmecircnides para The Oxford Handbook

of Plato (2008) distingue sua proacutepria interpretaccedilatildeo das interpretaccedilotildees que

atribuem a Soacutecrates uma apresentaccedilatildeo teacutecnica da Teoria das Ideias Ela acredita

que ldquose consideramos que Soacutecrates ostenta uma nova teoria de caraacuteter teacutecnico

com entidades desconhecidas [isto eacute as Formas] (hellip) natildeo percebemos o genuiacuteno

poder de sua simples refutaccedilatildeordquo (Peterson 2008 p383-411)

No entanto como se daria a soluccedilatildeo do paradoxo caso Soacutecrates natildeo

apelasse para Formas inteligiacuteveis Segundo a interpretaccedilatildeo proposta por Peterson

ldquoSoacutecrates simplesmente aponta pressuposiccedilotildees inegaacuteveis da fala cotidiana

(undeniable presuppositions of customary speech)rdquo para refutar Zenatildeo (Peterson

2008 p387) De acordo com Peterson a estrateacutegia geral da argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates consiste em demonstrar que predicados opostos satildeo ordinariamente

atribuiacutedos agraves coisas Sendo assim seu objetivo natildeo seria provar a invalidade do

argumento de Zenatildeo mas sim a sua irrelevacircncia ao fim de sua argumentaccedilatildeo

Soacutecrates teria demonstrado que o argumento de Zenatildeo natildeo apresenta um

paradoxo mas apenas uma verdade amplamente reconhecida

Peterson reconstroacutei a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates em trecircs movimentos

distintos que analisaremos separadamente O primeiro movimento eacute descrito por

ela da seguinte maneira

ldquoPrimeiro de 127e a 128b apoacutes ter esclarecido que o argumento de Zenatildeo eacute uma reduccedilatildeo

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ao absurdo da afirmaccedilatildeo de que os seres satildeo muacuteltiplos Soacutecrates leva Zenatildeo a expor sua

proacutepria crenccedila de que muacuteltiplas coisas satildeo semelhantes e dessemelhantes como por

exemplo quando Zenatildeo daacute a entender que ele e Parmecircnides satildeo semelhantes por dizerem

as mesmas coisas (128b5) e dessemelhantes por Zenatildeo dizer ldquonatildeo muacuteltiplosrdquo (not many) e

Parmecircnides dizer ldquoumrdquo (128b3ndash5) Por sugerir que haacute vaacuterios seres semelhantes em algum

aspecto e dessemelhantes em outros mesmo enquanto ele defende que natildeo pode haver

seres tanto semelhantes quanto dessemelhantes Zenatildeo eacute claramente inconsistenterdquo

(Peterson 2008 p 387)

Peterson estaacute se referindo agrave passagem por noacutes jaacute citada em que Soacutecrates

assimila o objetivo da argumentaccedilatildeo de Zenatildeo com a tese de Parmecircnides de que

tudo eacute um Segundo ela esta passagem inicia a refutaccedilatildeo do argumento ao

demonstrar que Zenatildeo eacute semelhante a Parmecircnides por ambos defenderem a tese

monista e ao mesmo tempo dessemelhante pois enquanto Zenatildeo afirma natildeo

haver muacuteltiplas coisas Parmecircnides afirma o todo ser um Contudo Peterson

parece negligenciar o fato de que em toda passagem natildeo haacute uma uacutenica ocorrecircncia

das palavras ldquosemelhanterdquo (ὅmicroοιος) ou ldquodessemelhanterdquo (ἀνόmicroοιος) Natildeo me

parece nada provaacutevel que Soacutecrates desejando demonstrar a contradiccedilatildeo apontada

por Peterson deixasse de mencionar o ponto especiacutefico de sua acusaccedilatildeo e se

limitasse a atacar aquilo que Zenatildeo ldquosugererdquo (implies) Em argumentaccedilotildees ad

hominen como esta nas quais se pretende demonstrar a existecircncia de uma

contradiccedilatildeo entre as teses que determinada pessoa defende e as atitudes desta

pessoa o valor da acusaccedilatildeo estaacute em tornar evidente a inconsistecircncia em questatildeo

Sendo assim a interpretaccedilatildeo oferecida por Peterson que pretende ler esta

passagem como a demonstraccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo acerca de temas que sequer

satildeo mencionados natildeo pode ser considerada uma interpretaccedilatildeo com suficiente

apoio textual

Nesta passagem Soacutecrates estaacute de fato realizando uma argumentaccedilatildeo ad

hominen do mesmo tipo identificado por Peterson No entanto a contradiccedilatildeo

atribuiacuteda a Zenatildeo eacute outra Como vimos ao empregar repetidamente formas

plurais para se referir aos argumentos de Zenatildeo Soacutecrates torna expliacutecita a

contradiccedilatildeo envolvida em se negar a existecircncia de muacuteltiplas coisas por meio de

muacuteltiplos argumentos Esta acusaccedilatildeo eacute cuidadosamente montada pela recorrecircncia

de expressotildees plurais para se referir aos argumentos de Zenatildeo e termina com a

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afirmaccedilatildeo claramente irocircnica de que Zenatildeo apresenta ldquomuito numerosas provasrdquo

(τεκmicroήρια πάmicroπολλα) para demonstrar sua tese de que natildeo haacute muacuteltiplas coisas

(128b2) Podemos considerar portanto que a interpretaccedilatildeo que atribui a Soacutecrates

o reconhecimento deste segundo tipo de contradiccedilatildeo possui mais apoio textual do

que a interpretaccedilatildeo oferecida por Peterson e deve ser eleita como a interpretaccedilatildeo

correta para passagem em detrimento da interpretaccedilatildeo de Peterson que lecirc a

passagem como a identificaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo natildeo mencionada

Contudo a segunda fase da argumentaccedilatildeo de Soacutecrates representaria

segundo Peterson o passo fundamental da refutaccedilatildeo ao argumento de Zenatildeo Ela

explica esta fase da seguinte maneira

ldquoSegundo Soacutecrates explicitamente apresenta a mais profunda e devastadora objeccedilatildeo (128e5ndash129a3) de que Zenatildeo ao conduzir sua reduccedilatildeo ao absurdo presume que haacute dois opostos ndash semelhanccedila e dessemelhanccedila ndash cada um deles sendo um ser (τούτοιν δὲ δυοῖν ὄντοιν) Zenatildeo presume que a semelhanccedila ela mesma eacute um item e que a dessemelhanccedila eacute um segundo e oposto item As premissas de Zenatildeo implicam a negaccedilatildeo de sua conclusatildeo E isso eacute desastrosordquo (Peterson 2008 p 387)

Portanto a ldquodevastadora objeccedilatildeordquo apresentada por Soacutecrates consiste em

demonstrar que Zenatildeo reconhece a existecircncia de pelo menos duas coisas a

semelhanccedila e a dessemelhanccedila o que estaria em clara contradiccedilatildeo com sua tese de

que natildeo haacute muacuteltiplas coisas Segundo Peterson isto acontece na seguinte

passagem

ldquoPois bem aceito disse Soacutecrates e acredito ser como dizes Mas diz-me o seguinte natildeo julgas haver uma certa forma em si e por si da semelhanccedila e por outro lado contraacuteria a tal forma uma outra aquilo que realmente eacute dessemelhante E que nestas duas coisas que satildeo tanto eu quanto vocecirc temos participaccedilatildeordquo Ἀλλ ἀποδέχοmicroαι φάναι τὸν Σωκράτη καὶ ἡγοῦmicroαι ὡς λέγεις ἔχειν τόδε δέ microοι εἰπέ οὐ νοmicroίζεις εἶναι αὐτὸ καθαὑτὸ εἶδός τι ὁmicroοιότητος καὶ τῷ τοιούτῳ αὖ ἄλλο τι ἐναντίον ὃ ἔστιν ἀνόmicroοιον τούτοιν δὲ δυοῖν ὄντοιν καὶ ἐmicroὲ καὶ σὲ καὶ τἆλλα ἃ δὴ πολλὰ καλοῦmicroεν microεταλαmicroβάνειν (128e5ndash129a3)

Eacute realmente difiacutecil entender como Peterson com base na passagem citada

pode atribuir a Zenatildeo o reconhecimento da existecircncia destas duas coisas (a

semelhanccedila e a dessemelhanccedila) Afinal quem se refere agrave semelhanccedila e agrave

dessemelhanccedila como dois seres distintos (τούτοιν δυοῖν ὄντοιν) eacute Soacutecrates e natildeo

Zenatildeo Para atribuir o reconhecimento destas entidades a Zenatildeo Peterson afirma

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que o verbo utilizado por Soacutecrates (νοmicroίζειν) indicaria que ele estaacute tratando de

uma noccedilatildeo comum aceita tambeacutem por Zenatildeo

De fato em seu paradoxo Zenatildeo fala da semelhanccedila e da dessemelhanccedila

como propriedades que os objetos teriam caso fossem muacuteltiplos Entretanto em

contraste com o uso de νοmicroίζειν que pode ou natildeo possuir a nuance de

significado indicada por Peterson Soacutecrates menciona uma seacuterie de termos

relativos agraves Formas que dificilmente poderiam fazer parte de um vocabulaacuterio

ldquocomumrdquo compartilhado por Zenatildeo Sendo assim o simples uso de νοmicroίζειν natildeo

eacute razatildeo suficiente para atribuirmos a Zenatildeo aquilo que Soacutecrates estaacute dizendo

Aleacutem disso caso o desejo de Soacutecrates fosse apresentar uma contradiccedilatildeo inerente agrave

argumentaccedilatildeo de Zenatildeo natildeo haveria porque fazecirc-lo por meio de uma pergunta

bastaria constatar que Zenatildeo reconhece a existecircncia do semelhante e do

semelhante e portanto admite uma multiplicidade de seres

Contudo o maior erro da argumentaccedilatildeo de Peterson natildeo estaacute em atribuir a

Zenatildeo aquilo que Soacutecrates estaacute afirmando Pois mesmo admitindo que a

argumentaccedilatildeo de Zenatildeo pressuponha a existecircncia destas duas entidades a

constataccedilatildeo deste fato sequer representaria uma refutaccedilatildeo ao paradoxo Como o

argumento de Zenatildeo eacute uma reduccedilatildeo ao absurdo o uso de noccedilotildees que se provaratildeo

contraditoacuterias eacute plenamente justificaacutevel Em seu paradoxo Zenatildeo conclui que as

coisas seriam simultaneamente semelhantes e dessemelhantes apenas caso as

coisas fossem muacuteltiplas No entanto Zenatildeo natildeo acredita que as coisas satildeo

muacuteltiplas Portanto em nenhum momento afirma seriamente a existecircncia da

semelhanccedila e da dessemelhanccedila O apelo de Zenatildeo a estas entidades eacute meramente

contra-factual e natildeo representa sua posiccedilatildeo A ldquodevastadora refutaccedilatildeordquo

apresentada por Peterson sequer se configura como uma legiacutetima refutaccedilatildeo

O uacuteltimo movimento da argumentaccedilatildeo de Soacutecrates consistiria em

ldquoenfatizar que os predicados ldquosemelhanterdquo e ldquodessemelhanterdquo satildeo incompletos e

que uma conversa ordinaacuteria (ordinary talk) eacute capaz de reconhecer diversas coisas

que satildeo tanto semelhantes quanto dessemelhantes ou possuem semelhanccedila e

dessemelhanccedila em vaacuterios aspectosrdquo (Peterson 2008 p 387) Isto aconteceria na

seguinte passagem

ldquoE [natildeo julgas] que algumas coisas tendo participaccedilatildeo na semelhanccedila se tornam semelhantes por causa disso e na medida em que nelas tenham participaccedilatildeo e que outras tendo participaccedilatildeo na dessemelhanccedila [se tornam] dessemelhantes e

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que outras [tendo participaccedilatildeo] em ambas se tornam semelhantes e dessemelhantes E mesmo que todas as coisas tenham participaccedilatildeo em ambas essas coisas que satildeo contraacuterias e que sejam pelo participar nas duas elas mesmas em relaccedilatildeo a si mesmas tanto semelhantes quanto dessemelhantes o que haacute de espantoso Καὶ τὰ microὲν τῆς ὁmicroοιότητος microεταλαmicroβάνοντα ὅmicroοια γίγνεσθαι ταύτῃ τε καὶ κατὰ τοσοῦτον ὅσον ἂν microεταλαmicroβάνῃ τὰ δὲ τῆς ἀνοmicroοιότητος ἀνόmicroοια τὰ δὲ ἀmicroφοτέρων ἀmicroφότερα εἰ δὲ καὶ πάντα ἐναντίων ὄντων ἀmicroφοτέρων microεταλαmicroβάνει καὶ ἔστι τῷ microετέχειν ἀmicroφοῖν ὅmicroοιά τε καὶ ἀνόmicroοια αὐτὰ αὑτοῖς τί θαυmicroαστόν (129a3-b1)

Como reconhece Peterson de acordo com a interpretaccedilatildeo por ela proposta

estas perguntas de Soacutecrates apenas ldquonegam a premissa de Zenatildeo de que eacute

impossiacutevel para qualquer coisa ser tanto semelhante quanto dessemelhanterdquo

(Peterson 2008 p 387) No entanto como podemos considerar a mera negaccedilatildeo

injustificada de uma premissa uma argumentaccedilatildeo suficientemente satisfatoacuteria

Zenatildeo argumenta em termos loacutegicos e espera que uma contra-argumentaccedilatildeo lhe

seja apresentada no mesmo niacutevel Caso o comentaacuterio final de Soacutecrates se limitasse

a negar injustificadamente a premissa problemaacutetica do argumento de Zenatildeo

dificilmente poderiacuteamos considerar tal comentaacuterio parte de uma argumentaccedilatildeo

seacuteria 20

Por fim resta observar que a interpretaccedilatildeo proposta por Peterson encontra-

se em clara oposiccedilatildeo ao que um leitor dos diaacutelogos poderia esperar Segundo o

argumento de Zenatildeo eacute impossiacutevel que os seres sejam tanto semelhantes quanto

dessemelhantes ou de maneira geral que uma dada coisa possua qualquer par de

predicados opostos (F e natildeo-F) Ora um leitor acostumado com o tipo de

argumentaccedilatildeo que Soacutecrates desempenha nos diaacutelogos da fase meacutedia espera

naturalmente que as Formas sejam apresentadas como soluccedilatildeo para este

problema

Esta expectativa eacute plenamente satisfeita quando Soacutecrates pede a Zenatildeo que

aceite a existecircncia de ldquouma Forma em si e por si da Semelhanccedila e por outro lado

uma outra Forma aquilo que eacute realmente Dessemelhanterdquo (οὐ νοmicroίζεις εἶναι αὐτὸ

καθαὑτὸ εἶδός τι ὁmicroοιότητος καὶ τῷ τοιούτῳ αὖ ἄλλο τι ἐναντίον ὃ ἔστιν

ἀνόmicroοιον 129a1) Dificilmente uma apresentaccedilatildeo das Formas poderia ser feita de

20 Neste caso Soacutecrates estaria agindo como Dioacutegenes de Ciacutenope que pretendeu refutar os

argumentos de Zenatildeo contra a possibilidade do movimento simplemente andando em praccedila puacuteblica Ora eacute claro que este poderia ser o caso No entanto esta natildeo parece ser a intenccedilatildeo de Soacutecrates e dificilmente Zenatildeo e Parmecircnides demonstrariam respeito por Soacutecrates tal como demonstram no decorrer do diaacutelogo caso este fosse o teor de sua argumentaccedilatildeo

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maneira mais expliacutecita Aleacutem do termo εἶδος Soacutecrates usa as expressotildees αὐτὸ

καθ αὑτὸ e ὃ ἔστιν ambas extremamente recorrentes nos diaacutelogos e

indubitavelmente parte do vocabulaacuterio relativo agraves Formas Fica claro portanto

que Soacutecrates identifica os seres (τὰ ὄντα) aos quais Zenatildeo se refere como objetos

sensiacutevieis e como primeiro passo na soluccedilatildeo do paradoxo introduz suas Formas

na discussatildeo

No entanto a simples apresentaccedilatildeo de entidades imunes agrave copresenccedila de

opostos natildeo se configura como uma soluccedilatildeo ao paradoxo A premissa 4 de Zenatildeo

afirma a impossibilidade das coisas serem simultaneamente semelhantes e

dessemelhantes o que certamente natildeo exclui a possibilidade de algo ser

exclusivamente semelhante ou dessemelhantes Para que a premissa 4 seja

falsificada eacute preciso que Soacutecrates demonstre como os seres podem possuir

propriedades opostas sem que isso implique em uma contradiccedilatildeo Portanto de

modo a servirem de soluccedilatildeo ao paradoxo as Formas precisam natildeo apenas estar

imunes agrave copresenccedila de opostos mas sobretudo explicar esta copresenccedila nos

objetos sensiacutevieis Para que isto seja feito Soacutecrates introduz a noccedilatildeo de

participaccedilatildeo (aqui representada pelos verbos microεταλαmicroβάνειν e microετέχειν) e

pergunta a Zenatildeo se ele estaacute disposto a aceitar que ldquoalgumas coisas tendo

participaccedilatildeo na Semelhanccedila se tornam semelhantes () que outras tendo

participaccedilatildeo na Dessemelhanccedila [se tornam] dessemelhantes e que outras [tendo

participaccedilatildeo] em ambas se tornam semelhantes e dessemelhantesrdquo (129a3-8)

Caso Zenatildeo esteja disposto a aceitar estas duas hipoacuteteses 1) que existem

Formas e 2) que os objetos sensiacuteveis participam destas Formas a aparente

contradiccedilatildeo presente na premissa 4 do seu argumento pode ser dissolvida Pois

uma vez que estes dois pontos lhe sejam concedidos Soacutecrates estaraacute apto a

demonstrar como a copresenccedila de propriedades opostas nos objetos sensiacutevieis

pode ser explicada por meio da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que estes objetos mantecircm

com as Formas21

No Parmecircnides Soacutecrates natildeo desenvolve em pormenores esta explicaccedilatildeo

se limitando a dizer que mesmo que todas as coisas sensiacuteveis tenham participaccedilatildeo

21 Note que Soacutecrates apresenta estas duas hipoacuteteses (a existecircncia das Formas e a relaccedilatildeo de

participaccedilatildeo) por meio de uma pergunta (129a1-3) Isto indica que ele estaacute introduzindo um novo material conceitual e que espera um assentimento por parte de seus interlocutores com relaccedilatildeo agrave viabilidade teoacuterica destas hipoacuteteses Como veremos a resposta de Parmecircnides seraacute admitir temporariamente a validade das hipoacuteteses de Soacutecrates com o objetivo de submetecirc-las

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em ambas estas Formas e em consequecircncia desta participaccedilatildeo sejam semelhantes

e dessemelhantes nada haacute nisso de espantoso (129a8-b1) Esta brevidade da

explicaccedilatildeo de Soacutecrates pode ser solucionada se relacionarmos a soluccedilatildeo aqui

apresentada para o paradoxo de Zenatildeo com a explicaccedilatildeo oferecida no Feacutedon

(101-103) para o fato de Simmias ser grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates e pequeno em

relaccedilatildeo a Feacutedon A assimilaccedilatildeo entre as duas explicaccedilotildees parece justificada uma

vez que em ambos os diaacutelogos vemos Soacutecrates oferecer a Teoria das Ideias como

soluccedilatildeo para o mesmo problema a copresenccedila de propriedades (relacionais)

opostas nos objetos sensiacuteveis22

Adotando o paralelismo entre estas duas explicaccedilotildees podemos entender

que tal como acontece no Feacutedon a semelhanccedila e dessemelhanccedila no Parmecircnides

deixam de ser predicados atribuiacutedos diretamente ao sujeito em questatildeo e passam a

ser predicados das propriedades imanentes que este sujeito possui devido agrave

relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que manteacutem com as Formas Sendo assim as muacuteltiplas

coisas do paradoxo de Zenatildeo satildeo tanto semelhantes quanto dessemelhantes por

participarem simultaneamente das Formas do Semelhante e do Dessemelhante e

devido a esta participaccedilatildeo possuiacuterem as propriedades imanentes do semelhante e

do dessemelhante com partes de si Portanto quando dizemos que o objeto x eacute

semelhante e dessemelhante estamos nos referindo a este fato de maneira

inadequada Pois natildeo eacute propriamente o indiviacuteduo x que eacute semelhante e

dessemelhante mas a semelhanccedila-de-x que eacute semelhante e a dessemelhanccedila-de-x

que eacute dessemelhante Estabelecida a diferenccedila entre Forma propriedades

imanentes e objetos sensiacuteveis natildeo haacute nada de contraditoacuterio no fato de uma mesma

coisa possuir simultaneamente propriedades imanentes opostas Afinal

predicados opostos nunca estatildeo sendo atribuiacutedos propriamente agrave mesma coisa

a uma nova reduccedilatildeo ao absurdo

22 Aleacutem da identidade de temas as passagens do Feacutedon e do Parmecircnides apresentam grande semelhanccedila de vocabulaacuterio εἶδος (Feacuted102B1) αὐτὸ καθ αὑτὸ (Feacuted78D3) ὄντοιν (Feacuted71a13) αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά (Feacuted74c1 αὐτὰ τὰ ἴσα) De fato a assimilaccedilatildeo entre os dois diaacutelogos eacute extremamente comum entre os comentadores Scolnicov por exemplo afirma que ldquoesta passagem eacute uma breve reafirmaccedilatildeo da doutrina das Formas desenvolvida no Feacutedonrdquo (Scolnicov 2003 p48) Gill oferece sua explicaccedilatildeo para resoluccedilatildeo do paradoxo de Zenatildeo por meio da teoria apresentada no Feacutedon (cf Gill 2012 p19-27) e (cf Gill 1996 p12-18) Cornford tambeacutem adota a estrateacutegia de explicar a soluccedilatildeo do paradoxo atraveacutes da analogia com a soluccedilatildeo do problema da copresenccedila de opostos no Feacutedon e afirma haver jaacute em 1951 aceitaccedilatildeo geral (it is generally agreed) de que ldquoa teoria das ideias aqui apresentada eacute idecircntica agrave afirmada anteriormente no Feacutedonrdquo (Cornford 1951 p70) Ainda Brisson (Brisson 2011 p29) Sayre (Sayre 1996 p65) e Turnbull (Turnbull 1998 p 16) assumem a identidade entre a teoria do Feacutedon e a teoria do Parmecircnides

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A hipoacutetese das Formas contradiz o conteuacutedo da premissa 4 do argumento

de Zenatildeo ao explicar aquilo que esta premissa afirmava ser impossiacutevel a

copresenccedila de propriedades opostas nos objetos sensiacuteveis Provada a falsidade da

premissa nuacutemero 4 do argumento de Zenatildeo todo paradoxo eacute desfeito Afinal a

reduccedilatildeo ao absurdo da assunccedilatildeo inicial de que as coisas satildeo muacuteltiplas depende

diretamente da existecircncia de contradiccedilatildeo entre as premissas 3 e 4

De acordo com a explicaccedilatildeo acima esboccedilada o paradoxo de Zenatildeo eacute

solucionado por Soacutecrates por meio da distinccedilatildeo ontoloacutegica entre Formas e objetos

sensiacuteveis que encontramos de maneira expliacutecita nos diaacutelogos da fase meacutedia e

impliacutecita nos argumentos dos primeiros diaacutelogos No decorrer das proacuteximas

seccedilotildees investigaremos se a ontologia defendida por Soacutecrates no Parmecircnides

pode ser identificada com aquela apresentada nestes diaacutelogos Em especial

investigaremos se a compreensatildeo acerca da natureza da participaccedilatildeo e auto-

predicaccedilatildeo das Formas que emerge da leitura do Parmecircnides pode ser identificada

com o tratamento que Soacutecrates oferece para estes temas nos diaacutelogos anteriores

Por ora basta observar que o vocabulaacuterio empregado sugere esta identificaccedilatildeo

Pois aleacutem de εἶδος tanto αὐτὸ καθ αὑτὸ quanto ὃ ἔστιν satildeo expressotildees

recorrentes nos diaacutelogos platocircnicos Estas expressotildees fazem parte do vocabulaacuterio

relativo agraves Formas que como vimos nos capiacutetulos precedentes eacute cuidadosamente

construiacutedo desde os primeiros diaacutelogos Da mesma maneira microετέχειν e

microεταλαmicroβάνειν satildeo expressotildees tipicamente socraacuteticas e fazem parte do vasto rol

de verbos empregados para descrever a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo entre Formas e

objetos sensiacuteveis tanto nos diaacutelogos iniciais quanto nos diaacutelogos da fase meacutedia

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417 O desafio de Soacutecrates

A proximidade entre a Teoria das Ideias apresentada no Parmecircnides e a

ontologia socraacutetica dos diaacutelogos da fase meacutedia e inicial eacute reafirmada ainda no

desafio lanccedilado por Soacutecrates a seus interlocutores Logo apoacutes a apresentaccedilatildeo das

Formas como soluccedilatildeo ao problema da copresenccedila de opostos Soacutecrates compele

seus interlocutores a demonstrarem nas Formas a validade dos mesmos

problemas que Zenatildeo acabara de apontar nos objetos sensiacuteveis

A passagem possui um problema textual que precisamos enfrentar para

podermos oferecer uma interpretaccedilatildeo adequada ao sentido do texto Trata-se do

aparecimento da expressatildeo αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά em 129b1 O neutro plural dos adjetivos

gregos eacute muitas vezes usado para designar de maneira geneacuterica um conjunto de

coisas que compartilham uma mesma caracteriacutestica Assim entendido o sentido de

expressotildees como τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια seria capturado pelas traduccedilotildees ldquoas

coisas semelhantesrdquo e ldquoas coisas dessemelhantesrdquo

No entanto estas traduccedilotildees estatildeo em claro desacordo com o conteuacutedo da

fala de Soacutecrates em 129a-c Na passagem em questatildeo Soacutecrates afirma que ficaria

assombrado caso algueacutem lhe demonstrasse que αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά venha(m) a se

tornar dessemelhante(s) e τὰ ἀνόmicroοια semelhante(s) Ora como vimos Soacutecrates

havia apresentado as Formas justamente como parte de uma demonstraccedilatildeo de

que ldquoas coisas semelhantesrdquo podem perfeitamente se tornar dessemelhantes e

vice-versa Portanto natildeo podemos adotar a interpretaccedilatildeo mais usual para o uso

do neutro plural de adjetivos na leitura de nossa passagem e somos obrigados a

descartar a hipoacutetese de que as expressotildees tenham como referecircncia um conjunto

geneacuterico de objetos sensiacuteveis sob pena de estarmos atribuindo agrave Soacutecrates uma

niacutetida contradiccedilatildeo Por outro lado caso queiramos identificar estas expressotildees

como designaccedilotildees das Formas nos encontramos novamente em dificuldade

Afinal sabemos que as Formas satildeo caracterizadas por serem uacutenicas Soacute haacute uma

uacutenica Forma da Beleza em oposiccedilatildeo agrave multiplicidade de coisas belas As

expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια no entanto estatildeo no plural

Haacute uma forte tendecircncia entre os comentadores a desqualificar este uso do

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plural e considerar ambas expressotildees como maneiras de se referir agraves Formas23

Apesar desta soluccedilatildeo ser amplamente adotada poucos satildeo os casos de defesa

textual desta leitura Agrave parte a afirmaccedilatildeo de que substantivos plurais gregos

podem ser utilizados de maneira gramaticalmente correta para designar entidades

singulares um uacutenico argumento de caraacuteter textual foi oferecido em defesa da

posiccedilatildeo de que as expressotildees representam maneiras idiossincraacuteticas de se referir

agraves Formas Rist em Equals and Intermediates in Plato (1964) argumenta que o

pronome τούτων na sentenccedila imediatamente seguinte (129b3) refere-se agrave

expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια De acordo com Rist como a sentenccedila

afirma que certas coisas participam de τούτων (τὰ τούτων microετέχοντα) ficaria

claro que as expressotildees dizem respeito agrave Formas pois soacute Formas podem ser

objeto de participaccedilatildeo (Rist 1964 p30)

Sendo assim caso o pronome τούτων seja de fato anafoacuterico em relaccedilatildeo agraves

expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια somos obrigados a aceitar o argumento de

Rist e admitir que as expressotildees no neutro plural em 129b1 designam as Formas

do Semelhante e do Dessemelhante No entanto esta natildeo parece ser a uacutenica opccedilatildeo

de leitura Na passagem em questatildeo o pronome τούτων estaacute associado agrave

ἀmicroφοτέρων e como observa Calvert ldquoquando Platatildeo se refere agraves Formas do

Semelhante e do Dessemelhante ele alterna entre o uso do dual (τούτοιν δυοῖν

ὄντοιν 129 a1 ἀmicroφοῖν a8) e o plural ἀmicroφοτέρων (a6 a7)rdquo (Clavert 1982 p53)

Nestes dois uacuteltimos casos (a6 a7) eacute certamente inquestionaacutevel que Platatildeo estaacute

usando ἀmicroφοτέρων para se referir agraves Formas Sendo assim quando lemos τούτων

ἀmicroφοτέρων em 129b3 o mais natural eacute considerar que esta expressatildeo refere-se agraves

Formas do Semelhante e do Dessemelhante apresentadas anteriormente e natildeo a

αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια

Portanto se aceitamos que estamos lidando com entidades que natildeo estatildeo

sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos e no entanto natildeo estamos nos referindo agraves

Formas os candidatos naturais ao posto de referecircncia das expressotildees αὐτὰ τὰ

ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια satildeo as propriedades imanentes da semelhanccedila e

dessemelhanccedila Como vimos no Feacutedon propriedades imanentes satildeo evocadas

23 Scolnicov por exemplo afirma categoriacamente ldquoO plural eacute irrelevanterdquo (Scolnicov 2003

p49) Allen (Allen 1997 p89) Brisson (Brisson 2011 p90) Rickless (Rickless 2007 p48) Sayre (Sayre 1996 p6) e Teloh (Teloh 1981 p152) tambeacutem tratam as expressotildees como maneiras de se referir agraves Formas Segundo Miller o uso de expressotildees plurais para designar as Formas representa uma ldquoconfusatildeo no pensamento de Soacutecratesrdquo reflexo do caraacuteter incipiente

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como parte do argumento que procura provar a diferenccedila ontoloacutegica entre Formas

e objetos sensiacuteveis (74b7-c5) e em seguida fazem parte da explicaccedilatildeo da

copresenccedila de opostos em Simmias (101-103) Em ambas passagens as

propriedades imanentes se diferenciam dos objetos sensiacuteveis que as possuem por

natildeo estarem elas mesmas sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza estes

objetos O paralelismo entre estas passagens do Feacutedon e nossa passagem do

Parmecircnides torna-se evidente quando consideramos que αὐτὰ τὰ ἴσα (Feacuted74c) e

αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά (Parm129b1) representam as uacutenicas ocorrecircncias de expressotildees da

forma αὐτὰ + adjetivo neutro plural no corpus platocircnico

Sendo assim encontramos total uniformidade no emprego deste tipo de

expressatildeo em Platatildeo ambas ocorrecircncias satildeo usadas para designar as propriedades

imanentes dos objetos sensiacuteveis adquiridas por meio da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo

que estes objetos mantecircm com as Formas Tal como as Formas as propriedades

imanentes natildeo estatildeo sujeitas agrave copresenccedila de opostos Poreacutem em oposiccedilatildeo agrave

unidade caracteriacutestica das Formas estas entidades satildeo muacuteltiplas e possuem um

tipo de existecircncia dependente dos objetos sensiacutevieis pois estatildeo localizadas nas

coisas (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος Feacuted102d ἡmicroεῖς ὁmicroοιότητος ἔχοmicroεν Parm130b)

Estando resolvida a questatildeo da referecircncia das expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e

τὰ ἀνόmicroοια podemos analisar o desafio lanccedilado por Soacutecrates e nos questionar se

neste desafio estatildeo mantidas as caracteriacutesticas da ontologia defendida por

Soacutecrates nos diaacutelogos da juventude e da fase meacutedia ou natildeo A passagem pode ser

dividia em quatro partes

1) 129b1 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que as

propriedades imanentes αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια podem receber

predicados opostos

ldquoPois se algueacutem mostrasse que αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά se tornam dessemelhantes ou que

τὰ ἀνόmicroοια se tornam semelhantes seria assombroso creiordquo

2) 129b6-c1 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que

a Forma da Unidade eacute muacuteltiplas coisas e o Muacuteltipo eacute um

da Teoria das Ideias apresentada no Parmecircnides (Miller 1986 p38)

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ldquoMas se aquilo que eacute realmente Um algueacutem demonstrar que isso mesmo eacute

muacuteltiplas coisas e de outra parte que o Muacuteltiplo eacute um jaacute disso me espantareirdquo

3) 129c1-3 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que

as Formas satildeo tanto unas quanto muacuteltiplas

ldquoE do mesmo modo com respeito a todas as outras coisas se algueacutem mostrar que

em si mesmos os gecircneros mesmos e as Formas mesmas satildeo afetados por essas

afecccedilotildees contraacuterias [unidade e multiplicidade] isso seraacute digno de espantordquo

4) 129d6-130a1 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem

como as Formas podem estar misturadas e separadas entre si

ldquoMas dentre as coisas que haacute pouco mencionei se algueacutem em primeiro lugar separasse uma das outras as Formas mesmas em si mesmas ndash por exemplo a Semelhanccedila a Dessemelhanccedila a Quantidade o Um o Repouso o Movimento e todas as coisas deste tipo ndash em seguida mostrasse que estas entre si podem ser misturadas e separadas eu pelo menos disse [Soacutecrates] ficaria encantado cheio de espanto Zenatildeo Quanto agravequelas coisas [sensiacuteveis] acredito terem sido tratadas por ti com muita determinaccedilatildeo Entretanto eu como digo me encantaria muito mais se algueacutem pudesse essa mesma aporia da maneira como expuseste no caso das coisas que se vecircem exibi-la dessa mesma maneira tambeacutem no caso das coisas apreendidas pelo raciociacutenio entrelaccediladas de todos os modos nas Formas mesmasrdquo

1 e 2 representam basicamente o mesmo tipo de desafio Em 1 Soacutecrates

diz que ficaria assombrado caso lhe mostrassem que as propriedades imanentes

αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια estatildeo sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos Em 2 este

desafio eacute expandido para as Formas da Unidade e da Multiplicidade e Soacutecrates

pede que lhe seja demonstrado como o Um eacute muacuteltiplas coisas e o Muacuteltiplo um No

Feacutedon (102d-e) Soacutecrates havia afirmado que o Grande em si (αὐτὸ τὸ microέγεθος)

jamais apareceraacute como grande e pequeno e que tampouco o Gr ande (τὸ ἐν ἡmicroῖν

microέγεθος ) admitiraacute o pequeno ou consentiraacute em receber a pequenez e se tornar

contraacuterio ao que ele eacute (102e2) A imunidade agrave predicaccedilatildeo de opostos eacute portanto

vaacutelida igualmente para Formas e propriedades imanentes Neste ponto αὐτὰ τὰ

ὅmicroοιά e o Semelhante em si (αὐτὸ καθαὑτὸ εἶδός ὁmicroοιότητος) diferenciam-se dos

objetos sensiacuteveis e Soacutecrates desafia seus interlocutores a lhe demonstrarem como

qualquer uma destas entidades pode estar sujeita agrave copresenccedila de opostos que

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caracteriza os objetos empiacutericos

Logo apoacutes intimar Zenatildeo e Parmecircnides a lhe demonstrarem que a Unidade

(ὃ ἔστιν ἕν) eacute muacuteltiplas coisas e que o Muacuteltiplo eacute um Soacutecrates muda o foco de sua

argumentaccedilatildeo e deixando de falar de um par especiacutefico de Formas passa a tratar

de Formas em geral (περὶ τῶν ἄλλων ἁπάντων) Soacutecrates entatildeo compele seus

interlocutores a lhe provarem 3 que as Formas elas mesmas satildeo afetadas

simultaneamente pela unidade e multiplicidade Os comentadores costumam

entender o desafio expresso em 3 como a generalizaccedilatildeo do problema da

copresenccedila de opostos apresentado em 1 e 2 Contudo como dito anteriormente

natildeo podemos considerar uma mera casualidade o fato de Soacutecrates escolher as

propriedades da unidade e da multiplicidade para operar esta generalizaccedilatildeo O

debate entre Soacutecrates e Zenatildeo eacute motivado pelo tema da unidademultiplicidade e a

reintroduccedilatildeo deste par de conceitos neste momento remete o leitor agrave distinccedilatildeo

inicial entre a multiplicidade de objetos sensiacuteveis (as coisas que chamamos

muitas τἆλλα ἃ δὴ πολλὰ καλοῦmicroεν) e a unidade caracteriacutestica das Formas

(τούτοιν δὲ δυοῖν ὄντοιν) Devemos entender portanto que Soacutecrates em 3 natildeo

estaacute apenas generalizando o problema da copresenccedila de opostos para o conjunto

de todas as Formas mas estaacute apresentando um novo desafio Soacutecrates desafia seus

interlocutores a lhe provarem que as Formas entidades caracterizadas por serem

uacutenicas e indivisiacuteveis podem ser caracterizadas pela multiplicidade encontrada nos

objetos sensiacuteveis

Como vimos o paradoxo de Zenatildeo pressupotildee a afirmaccedilatildeo da

multiplicidade das coisas em dois niacuteveis distintos Segundo Zenatildeo os objetos

sensiacuteveis satildeo muacuteltiplos tanto numericamente quanto por serem divisiacuteveis em

muacuteltiplas partes e receberem muacuteltiplos predicados Em paralelo a esta dualidade

inerente ao conceito de multiplicidade adotado por Zenatildeo as Formas platocircnicas

satildeo ditas uacutenicas tanto numericamente por soacute haver uma Forma da Beleza em

contraste com a pluralidade de objetos belos quanto por serem incompostas e

indivisiacuteveis Neste momento do desafio devemos pressupor que os dois sentidos

de unidade e multiplicidade estatildeo em jogo e que Soacutecrates estaacute desafiando seus

interlocutores a demonstrarem a multiplicidade das Formas tout court seja ela

entendida como a existecircncia de uma multiplicidade numeacuterica (diversas Formas da

Beleza por exemplo) ou uma multiplicidade de partes ou atributos de uma mesma

Forma

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Por fim em 4 Soacutecrates afirma que ficaria surpreso caso algueacutem

ldquoseparasse uma das outras as Formas e em seguida mostrasse que estas Formas

entre si podem ser misturadas e separadasrdquo O sentido preciso desta afirmaccedilatildeo

natildeo estaacute claro de iniacutecio e seu significado deve ser acessado pela explicaccedilatildeo que se

segue Nas sentenccedilas seguintes Soacutecrates esclarece que sua surpresa estaacute

relacionada agrave possibilidade de algueacutem expor no caso das Formas a aporia que

Zenatildeo acabara de expor com relaccedilatildeo agraves coisas sensiacuteveis Como vimos a aporia

apresentada por Zenatildeo consiste em afirmar que os objetos sensiacuteveis satildeo muacuteltiplos

e por conta disso estatildeo sujeitos agrave predicaccedilatildeo de propriedades opostas Portanto

devemos entender que o entrelaccedilamento ao qual se refere Soacutecrates implica na

demonstraccedilatildeo de que as Formas satildeo tal como os objetos sensiacuteveis muacuteltiplas e

por conta desta multiplicidade estatildeo sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos

Em sua fala Soacutecrates enumera uma seacuterie de pares de Formas opostas

SemelhanccedilaDessemelhanccedila QuantidadeUm RepousoMovimento Como

observa Allen (Allen 1997 p101) o pronome ταῦτα em 129e2 possui como

antecedente estas Formas tomadas como pares e natildeo cada uma delas

isoladamente Sendo assim a passagem afirma que natildeo podemos considerar cada

um destes pares de Formas como separados e ao mesmo tempo supor que os dois

membros do par estatildeo misturados e caracterizando um ao outro

Ora estaacute claro que o entrelaccedilamento ou participaccedilatildeo de uma Forma em

outra faria com que elas perdessem sua unidade e uniformidade caracteriacutestica e

passassem a possuir uma multiplicidade de partes e atributos24 Aleacutem disso caso

Formas opostas estejam entrelaccediladas entre si cada uma delas teraacute um predicado

contraacuterio agrave sua auto-predicaccedilatildeo (a Semelhanccedila seraacute dessemelhante o Movimento

estaraacute em repouso etc) Portanto em 4 Soacutecrates recapitula os desafios expressos

anteriormente e reafirma a distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis expressa em

sua soluccedilatildeo ao paradoxo de Zenatildeo

O desafio apresentado por Soacutecrates retoma portanto aspectos

fundamentais da apresentaccedilatildeo da Teoria das Ideias a uniformidade das Formas

que se caracterizam por estarem imunes agrave predicaccedilatildeo de opostos e a unidade

24 No argumento desenvolvido em 142c8-143a2 por exemplo conclui-se que se o um eacute entatildeo o

um eacute constituido de partes Pois afirmar que ldquoo um eacuterdquo equivale a afirmar que uma parte do um participa da unidade e outra parte participa do ser (οὐσίας microετέχειν) O argumento pressupotildee portanto que a participaccedilatildeo em mais de uma Forma (entrelaccedilamento) eacute suficiente para concluir a existecircncia de muacuteltiplas partes do objeto participante

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destas entidades que satildeo numericamente singulares Estas caracteriacutesticas estatildeo

mutuamente implicadas pois as Formas satildeo ditas uacutenicas e homogecircneas por serem

de maneira exclusiva auto-predicativas Em contraste como as coisas sensiacuteveis

sujeitas a uma diversidade de predicados inclusive predicados opostos as Formas

satildeo exclusivamente aquilo que elas satildeo A Forma F eacute apenas F e nada mais

estando imune agrave presenccedila da propriedade oposta natildeo-F e de maneira geral a

qualquer outro tipo de predicaccedilatildeo25 Estas caracteriacutesticas das Formas satildeo a base da

distinccedilatildeo ontoloacutegica entre Formas e objetos sensiacuteveis e se encontram articuladas

na soluccedilatildeo de Soacutecrates para o paradoxo de Zenatildeo Zenatildeo acredita que as coisas

satildeo muacuteltiplas e por causa disso estatildeo sempre sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos

Com o objetivo de desfazer o paradoxo Soacutecrates apresenta um novo tipo de

entidade caracterizada pela sua unidade e uniformidade Segundo Soacutecrates estas

entidades podem desfazer o problema da copresenccedila de opostos e serem a causa

das propriedades encontradas nos objetos sensiacuteveis por estarem elas mesmas

imunes agrave multiplicidade e copresenccedila de opostos encontrada nos objetos

empiacutericos

Sendo assim a demonstraccedilatildeo de que as Formas satildeo elas mesmas sujeitas

agrave copresenccedila de opostos retiraria destas entidades a capacidade de se apresentarem

como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis Pois segundo a compreensatildeo

de causalidade apresentada por Soacutecrates no Feacutedon eacute justamente o fato do Grande

nunca se apresentar como pequeno o que faz dele o candidato mais adequado para

o cargo de causa da grandeza das coisas sensiacuteveis A Forma da Beleza deve ser

incondicionalmente bela para assegurar o seu papel de causa da beleza nas coisas

Caso contraacuterio a Beleza ela mesma violaria um dos princiacutepios baacutesicos da

causalidade e poderia ser considerada tatildeo responsaacutevel pela beleza das coisas

quanto os adereccedilos de ouro que adornam Helena e a tornam bela para um

banquete poreacutem feia e repulsiva para um funeral Por outro lado a atribuiccedilatildeo de

multiplicidade agraves Formas abriria a possibilidade do paradoxo de Zenatildeo se repetir

em cada uma destas entidades quer entendamos esta multiplicidade como uma

multiplicidade numeacuterica ou como uma multiplicidade de atributos Pois ou bem

cada Forma seria composta por partes semelhantes entre si (por serem partes de

25 As afirmaccedilotildees de que F eacute uacutenica uniforme indivisiacutevel etc representam meta-predicados

atribuidos a todas as Formas Estes meta-predicados devem ser entendidos como afirmaccedilotildees restritas ao acircmbito da Teoria das Ideias e natildeo entram em conflito com a auto-predicaccedilatildeo das

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uma mesma Forma) e ao mesmo tempo dessemelhantes (por serem partes

distintas) ou bem as muacuteltiplas Formas de F seriam semelhantes (por serem todas

elas Formas de uma mesma propriedade F) e dessemelhantes (por serem

numericamente distintas) Em ambos os casos as Formas estariam sujeitas aos

mesmos problemas encontrados nos objetos sensiacuteveis que supostamente

deveriam solucionar

O desafio lanccedilado por Soacutecrates eacute portanto uma consequecircncia direta da

sua soluccedilatildeo para o paradoxo de Zenatildeo A validade da hipoacutetese das Formas como

soluccedilatildeo ao paradoxo depende destas entidades manterem estes dois aspectos

fundamentais de sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica imunidade agrave copresenccedila de opostos e

unidade (numeacuterica e aspectual) Afinal estas caracteriacutesticas satildeo a base da

diferenciaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis e a distinccedilatildeo entre estes dois tipos

de entidade natildeo restaria estabelecida caso estas caracteriacutesticas proacuteprias dos

objetos sensiacuteveis fossem encontradas tambeacutem nas Formas Portanto caso a

multiplicidade e predicaccedilatildeo de opostos apontadas por Zenatildeo nos objetos sensiacuteveis

sejam vaacutelidas paras Formas a soluccedilatildeo apresentada por Soacutecrates se mostraraacute falsa

e o paradoxo de Zenatildeo permaneceraacute irresoluto

A importacircncia do desafio de Soacutecrates para a compreensatildeo da estrutura do

Parmecircnides dificilmente pode ser superestimada A fala em que Soacutecrates

soluciona o paradoxo de Zenatildeo e em seguida desafia seus interlocutores a

provarem a falsidade de sua resoluccedilatildeo representa o mais longo discurso

ininterrupto do diaacutelogo e possui um forte apelo dramaacutetico No desafio que encerra

esta fala Soacutecrates usa as palavras ldquomaravilhadordquo ldquoencantadordquo e seus cognatos

nada menos do que oito vezes e deixa bem claro ao leitor quatildeo arraigado eacute o seu

comprometimento com as teses da uniformidade e unidade das Formas e quatildeo

chocante e arrasador seria o reconhecimento da falsidade destes princiacutepios

fundamentais de sua teoria Esta insistecircncia no tema do maravilhamento de

Soacutecrates faz parte da estrateacutegia dramaacutetica adotada por Platatildeo que pretende

chamar atenccedilatildeo para importacircncia destas duas caracteriacutesticas fundamentais da

constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e antecipar para o leitor o esquema geral do

ataque agrave Teoria das Ideias que seraacute realizado por Parmecircnides Como veremos

Parmecircnides aceita o desafio lanccedilado por Soacutecrates e localiza suas criacuteticas

Formas

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justamente nos princiacutepios de uniformidade e unidade das Formas Por meio da

sequecircncia de paradoxos que compotildeem o restante da primeira parte do diaacutelogo

Parmecircnides iraacute provar a Soacutecrates como estas caracteriacutesticas das Formas mostram-

se irreconciliaacuteveis com a noccedilatildeo de participaccedilatildeo e de maneira geral com a tese de

que as Formas satildeo causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis

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42 As criacuteticas de Parmecircnides agrave teoria da participaccedilatildeo

Apoacutes Soacutecrates terminar sua longa fala Parmecircnides que ateacute entatildeo ouvia a

discussatildeo calado volta-se para Soacutecrates e passa a formular uma seacuterie de criacuteticas agrave

distinccedilatildeo ontoloacutegica que este havia apresentado Tal como prenunciado na

complexa estrutura narrativa delineada pelo proacutelogo do diaacutelogo a fala de

Parmecircnides emerge em continuidade ao debate anteriormente desenvolvido por

Soacutecrates e Zenatildeo e toma como ponto de partida os resultados obtidos pela

discussatildeo anterior Em especial a argumentaccedilatildeo desenvolvida por Parmecircnides

pretende recuperar em forma e intenccedilatildeo o paradoxo de abertura do diaacutelogo

Formalmente as criacuteticas de Parmecircnides retomam o tipo de argumentaccedilatildeo

em reduccedilatildeo ao absurdo na qual o paradoxo de Zenatildeo havia sido formulado A

estrateacutegia consiste em aceitar de maneira provisoacuteria a teoria apresentada por

Soacutecrates com o intuito de derivar a partir do conjunto de hipoacuteteses que

constituem esta teoria contradiccedilotildees internas ou consequecircncias inaceitaacuteveis Em

intenccedilatildeo as criacuteticas pretendem restabelecer a validade deste paradoxo por meio da

demonstraccedilatildeo da inviabilidade da soluccedilatildeo oferecida por Soacutecrates Assim do

mesmo modo que Zenatildeo havia formulado seu paradoxo pretendendo proteger

Parmecircnides dos ataques de seus detratores Parmecircnides apresenta suas criacuteticas

como uma defesa de Zenatildeo a quem Soacutecrates afirma ser capaz de refutar

Em linhas gerais as criacuteticas de Parmecircnides seguem a seguinte estrutura

Parmecircnides comeccedila questionando Soacutecrates acerca da extensatildeo e populaccedilatildeo do

ldquomundo da Ideiasrdquo isto eacute que tipos de objetos sensiacuteveis possuem uma Forma

correspondente Em seguida Parmecircnides desenvolve uma seacuterie de paradoxos

intimamente relacionados entre si voltados contra a noccedilatildeo de participaccedilatildeo

adotada por Soacutecrates Na tentativa de escapar destas criacuteticas Soacutecrates procura

oferecer explicaccedilotildees distintas para natureza da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo e propotildee

primeiro que as Formas sejam entendidas como pensamentos e em seguida

como paradigmas Contudo ambas propostas levam a mais paradoxos e

Parmecircnides acaba por concluir que a participaccedilatildeo eacute impossiacutevel e que de acordo

com a concepccedilatildeo socraacutetica do que eacute uma Forma estas entidades estariam

completamente isoladas da realidade sensiacutevel o que as tornaria incognosciacuteveis e

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irrelevantes

Caso sejam consideradas vaacutelidas as criacuteticas oferecidas por Parmecircnides

representam um ataque avassalador agrave teoria apresentada por Soacutecrates Este fato

parece ser reconhecido por Soacutecrates que diz ao final dos ataques de Parmecircnides

natildeo vislumbrar uma saiacuteda nos garantindo que ao menos no contexto dramaacutetico

do diaacutelogo o criticismo parmeniacutedico eacute tido como procedente Contudo a despeito

da aporia e do embaraccedilo demonstrados por Soacutecrates alguns comentadores negam

a importacircncia destes argumentos e afirmam que Platatildeo nunca admitiu a

legitimidade das criacuteticas aqui apresentadas

Uma maneira de desqualificar a argumentaccedilatildeo de Parmecircnide que

precisamos desde jaacute analisar consiste em reconhecer a validade dos argumentos

poreacutem negar a sua relevacircncia com relaccedilatildeo agrave Teoria das Ideias De acordo com este

tipo de interpretaccedilatildeo os paradoxos apresentados por Parmecircnides natildeo teriam como

alvo a Teoria das Ideias platocircnicas mas estariam direcionadas contra concepccedilotildees

heterodoxas acerca da natureza das Formas adotadas por membros da Academia

cujas teorias Platatildeo estaria atacando

O alvo mais constantemente apresentado eacute Eudoxo de Cnidos Eudoxo foi

um astrocircnomo e matemaacutetico extremamente respeitado e seu nome estaacute

relacionado a uma seacuterie de descobertas matemaacuteticas de seu tempo Segundo

algumas fontes Eudoxo seria associado a Academia e teria inclusive assumido o

cargo de diretor da escola (sxolarxhj) durante a viagem de Platatildeo para Sciciacutelia

em 366 (cf Philoch fr223) De fato vaacuterios testemunhos nos levam a crer que em

algum momento de sua carreira filosoacutefica Eudoxo desenvolveu uma teoria

proacutepria acerca da natureza das Formas e de acordo com o comentaacuterio de

Alexandre de Afrodiacutesia esta teoria estaria criticada por uma seacuterie de argumentos

do tratado aristoteacutelico PERI IDEWN (In Methaph 97-98)

Em Aristotles Criticism of Plato and The Academy Cherniss reconhece

uma grande similaridade entre as criacuteticas descritas por Alexandre e as criacuteticas que

encontramos no Parmecircnides A partir da identificaccedilatildeo entre estas duas seacuteries de

argumentos Cherniss conclui que o criticismo apresentado em nosso diaacutelogo estaacute

direcionado contra a noccedilatildeo imanentista de Formas defendida por Eudoxo e natildeo

contra a Teoria das Ideias descrita nos diaacutelogos de Platatildeo (Cherniss 1944 p144)

Esta interpretaccedilatildeo eacute posteriormente endossada por Cornford para quem as

criacuteticas do Parmecircnides devem ser entendidas como a rejeiccedilatildeo do proacuteprio Platatildeo agrave

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compreensatildeo rudimentar de participaccedilatildeo defendida por Eudoxo (Cornford 1951

p87)26

Recentemente outro membro da Academia foi oferecido como alvo dos

argumentos do Parmecircnides Em The Fog Dispelled (2010) Graeser propotildee que o

Parmecircnides deve ser entendido como uma refutaccedilatildeo da concepccedilatildeo de Formas

defendida por Espeusipo sobrinho de Platatildeo e sxolarxhj da Academia durante

os oito anos seguintes agrave sua morte Segundo Graeser no Parmecircnides ldquoPlatatildeo guia

seus leitores agrave compreensatildeo de que seu criticismo das Formas inteligiacuteveis reverte-

se contra a teoria dos princiacutepios de Espeusipordquo (Graeser 2010 p17)

Para podermos avaliar a viabilidade do tipo de hipoacutetese interpretativa

defendida por Cherniss Cornford e Graeser segundo a qual as criacuteticas de

Parmecircnides estatildeo endereccediladas a uma outra teoria que natildeo a proacutepria Teoria das

Ideias encontrada nos diaacutelogos platocircnicos precisamos recapitular as

caracteriacutesticas da distinccedilatildeo ontoloacutegica oferecida por Soacutecrates como soluccedilatildeo ao

paradoxo de Zenatildeo No Parmecircnides Soacutecrates apresenta uma teoria segundo a

qual

1) Existem Formas (εἴδη) entidades em si (αὐτὰ καθ αὑτὰ τὰ)

separadas (χωρὶς) dos objetos sensiacuteveis (128e6-130b-5) e

conhecidas pela razatildeo (ἐν τοῖς λογισmicroῷ λαmicroβανοmicroένοις) (129e5-

130a2)

2) Estas Formas satildeo entidades auto-predicativas isto eacute a Forma do

Grande eacute grande a Forma do Pequeno eacute pequena etc (132a)

3) As Formas satildeo entidades singulares e indivisiacuteveis (ἓν ἕκαστον

εἶδος εἶναι) em oposiccedilatildeo agrave multiplicidade numeacuterica e

complexidade mereoloacutegica que caracteriza os objetos sensiacuteveis

4) As Formas satildeo entidades ldquounicas em aspectordquo (microονοειδὲς) isto eacute

imunes agrave copresenccedila de propriedades opostas Em oposiccedilatildeo a isto

os objetos sensiacuteveis estatildeo sempre sujeitos a este tipo de

26 Em Eudoxos in The Parmecircnides (1973) Malcolm Shofield defende que a teoria de Eudoxo eacute

discutida no Parmecircnides poreacutem natildeo na primeira parte do diaacutelogo Shoefield acredita que alguns argumentos da longa seacuterie de deduccedilotildees que compotildee a segunda parte do Parmecircnides precisam ser entendidos sobre o background da teoria de Eudoxo Como o proacuteprio Shofield reconhece (Shoefied 1973 p4-5) a hipoacutetese de que a teoria de Eudoxo eacute discutida em algumas deduccedilotildees da segunda parte do Parmecircnides jaacute havia sido levantada por Brumbaugh (cf Brumbaugh 1961 p25-26)

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copresenccedila (129b6-c1)

5) Os objetos sensiacuteveis por outro lado participam das Formas e eacute

pela participaccedilatildeo (microετάληψις) nas Formas que adquirem as

propiedades que possuem (129a3-129b1) e os nomes pelos quais

satildeo chamadas (ἐπωνυmicroία) (130e5-131a2)

Como qualquer leitor dos diaacutelogos platocircnicos pode facilmente perceber as

sentenccedilas listadas acima definem de maneira inequiacutevoca a Teoria das Ideias que

delineamos nos capiacutetulos precedentes Como vimos a existecircncia de Formas

entidades separadas dos objetos empiacutericos e detentoras de um estatuto ontoloacutegico

proacuteprio estaacute pressuposta desde os diaacutelogos inicias Estas entidades satildeo

caracterizadas por serem inteligiacuteveis isto eacute captadas unicamente pela razatildeo

(Feacutedon 65d4-66a10) sempre idecircnticas a si mesmas e auto-predicativas

(Protaacutegoras 330c7-e1 Hiacuteppias Maior 292e Eutidemos 301b5-c2 e Feacutedon 100c4-

6) estando portanto imunes agrave predicaccedilatildeo de opostos (Hiacuteppias Maior 291d1-3

Feacutedon 102e5-6 Banquete 211a2-5 Repuacuteblica V 479a) Como resultado da soma

destas caracteriacutesticas as Formas satildeo entidades completamente isentas de

pluralidade incapazes de sofrer qualquer tipo de mudanccedila singulares e

indivisiacuteveis (microονοειδὲς ἀσύνθετα Fed78c6)

Por outro lado em oposiccedilatildeo agrave unidade e estabilidade ontoloacutegica

caracteriacutestica das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo descritos por Soacutecrates como

entidades compostas e internamente complexas sujeitas agrave mudanccedila constante e

submetidas a uma infinidade de predicaccedilotildees inclusive opostas (Hiacuteppias Maior

289a3-b7 Feacutedon 74b7-9 102b-c Repuacuteblica 479a-b)

Do mesmo modo o poder causal exercido pelas Formas sobre os objetos

sensiacuteveis e o vocabulaacuterio da participaccedilatildeo a ele relacionado possuem um papel

central nos argumentos dos diaacutelogos e podem ser encontrados desde a busca por

definiccedilotildees do Ecircutifron e do Hippias Maior ateacute os diaacutelogos da fase meacutedia como

Banquete e Feacutedon Assim desde os primeiros diaacutelogos as Formas satildeo

apresentadas como responsaacuteveis pelas caracteriacutesticas dos objetos sensiacuteveis e causa

efetiva das propriedades encontradas nestes objetos

Eacute portanto facilmente constataacutevel que as caracteriacutesticas fundamentais da

Teoria das Ideias estatildeo representadas na listagem acima e mesmo o vocabulaacuterio

empregado por Soacutecrates no Parmecircnides coincide com a terminologia dos diaacutelogos

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anteriores Tendo em vista esta identidade vocabular e conceitual creio que

podemos descartar desde jaacute as interpretaccedilotildees que pretendem identificar qualquer

outra teoria que natildeo a Teoria das Ideias como alvo dos ataques de Parmecircnides

Afinal acreditar que as criacuteticas apresentadas no Parmecircnides estatildeo endereccediladas a

Eudoxo ou a Espeusipo equivale a tornar estas criacuteticas um mero caso de ignoratio

elenchi com relaccedilatildeo a toda argumentaccedilatildeo anteriormente desenvolvida no diaacutelogo

A distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis apresentada por Soacutecrates

como soluccedilatildeo ao paradoxo de Zenatildeo eacute a mesma formulada nos diaacutelogos meacutedios e

da juventude e este fato deve parecer oacutebvio ao leitor do Parmecircnides tanto pelo

vocabulaacuterio empregado por Soacutecrates quanto pelo motivo pelo qual a Teoria das

Ideias eacute trazida agrave discussatildeo Sendo assim seria completamente incompreensiacutevel

que Platatildeo resolvesse representar o personagem Parmecircnides criticando qualquer

outra teoria senatildeo aquela que Soacutecrates apresenta reiteradamente nos diaacutelogos em

que figura como personagem principal e que eacute anunciada no proacuteprio Parmecircnides

como soluccedilatildeo ao paradoxo de Zenatildeo27

27 Haacute ainda outra objeccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo de que as criacuteticas do Parmecircnides estatildeo direcionadas

contra teorias heterodoxas defendidas por membros da Academia em divergecircncia a Platatildeo Como observa Dancy em Two Studies in the Early Academy este tipo de interpretaccedilatildeo depende de uma hipoacutetese cronoloacutegica acerca da data de composiccedilatildeo do Parmecircnides dificilmente verificaacutevel Afinal para admitirmos que o Parmecircnides conteacutem uma criacutetica agrave teoria de Eudoxo ou Espeusipo devemos supor que na ocasiatildeo da composiccedilatildeo do diaacutelogo a teoria criticada jaacute havia sido desenvolvida No entanto nada nos impede de realizar a inferecircncia no sentido oposto e afirmar que Eudoxo ou Espeusipo propuseram suas teorias a partir de uma leitura do Parmecircnides Caso esta uacuteltima hipoacutetese cronoloacutegica esteja correta o Parmecircnides foi escrito antes da formulaccedilatildeo das teorias de Eudoxo e Espeusipo e portanto natildeo poderia conter criacuteticas a estas teorias (cf Dancy 1991 p20-24)

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421 A separaccedilatildeo das Formas

Parmecircnides inicia seu exame enfatizando a distinccedilatildeo fundamental na qual

a hipoacutetese de Soacutecrates estaacute baseada Em sua fala Soacutecrates havia afirmado que o

Semelhante o Dessemelhante o Um o Muacuteltiplo e as demais Formas devem ser

entendidas como entidades em si e por si (αὐτὰ καθ αὑτὰ) detentoras de um

estatuto ontoloacutegico proacuteprio e marcadamente distintas dos objetos sensiacuteveis

Assumindo a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis estabelecida por Soacutecrates

Parmecircnides levanta duas questotildees acerca desta distinccedilatildeo 1) Se foi o proacuteprio

Soacutecrates quem fez a divisatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis e 2) Se a

Semelhanccedila mesma eacute algo separado da semelhanccedila que possuiacutemos e o mesmo

com relaccedilatildeo aos outros termos mencionados por Zenatildeo

ldquoE foi isso entatildeo que expressou Parmecircnides quando ele [Soacutecrates] terminou Soacutecrates disse quatildeo digno eacutes de ser admirado pelo ardor que tens pelos argumentos Mas dize-me 1) tu mesmo assim fizestes a divisatildeo tal como falas de um lado certas coisas mesmas de outro as coisas que delas participam E 2) te parece a semelhanccedila mesma ser algo separada da semelhanccedila que temos e tambeacutem o um e as muacuteltiplas coisas e todas as coisas que haacute pouco ouviste de Zenatildeo Parece-me que sim disse Soacutecratesrdquo ὅπερ οὖν καὶ παυσαmicroένου αὐτοῦ εἰπεῖν τὸν Παρmicroενίδην Ὦ Σώκρατες φάναι ὡς ἄξιος εἶ ἄγασθαι τῆς ὁρmicroῆς τῆς ἐπὶ τοὺς λόγους καί microοι εἰπέ 1) αὐτὸς σὺ οὕτω διῄρησαι ὡς λέγεις χωρὶς microὲν εἴδη αὐτὰ ἄττα χωρὶς δὲ τὰ τούτων αὖ microετέχοντα καί 2) τί σοι δοκεῖ εἶναι αὐτὴ ὁmicroοιότης χωρὶς ἧς ἡmicroεῖς ὁmicroοιότητος ἔχοmicroεν καὶ ἓν δὴ καὶ πολλὰ καὶ πάντα ὅσα νυνδὴ Ζήνωνος ἤκουες Ἔmicroοιγε φάναι τὸν Σωκράτη (130b1-5)

Parmecircnides destaca o tema da separaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis

mencionando a preposiccedilatildeoadveacuterbio χωρίς (separadoseparadamente) nada menos

do que trecircs vezes em apenas quatro linhas Devemos entender a insistecircncia de

Parmecircnides sobre este ponto como um artifiacutecio dramaacutetico cujo objetivo eacute chamar

a atenccedilatildeo do leitor para questatildeo da ldquoseparaccedilatildeordquo entre Formas e objetos sensiacuteveis

na qual a teoria de Soacutecrates estaacute fundamentada Soacutecrates jaacute havia usado o termo

χωρίς com relaccedilatildeo agraves Formas anteriormente (διαιρῆται χωρὶς αὐτὰ καθ αὑτὰ τὰ

εἴδη 129d7) E de fato sua teoria parece envolver algum modo de separaccedilatildeo entre

duas classes distintas de objetos pois Soacutecrates afirma haver aleacutem das muacuteltiplas

coisas apontadas por Zenatildeo um outro conjunto de objetos distintos das coisas

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sensiacuteveis e detentores de um estatuto ontoloacutegico proacuteprio as Formas Mas o que

significa afirmar que as Formas satildeo entidades separadas Com o que exatamente

estaria Soacutecrates se comprometendo ao responder afirmativamente agrave pergunta de

Parmecircnides

Em seu sentido mais baacutesico podemos entender a afirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo

entre duas entidades como equivalente agrave atribuiccedilatildeo de natildeo-identidade numeacuterica

entre elas Assim compreendido o termo ldquoseparaccedilatildeordquo natildeo teria outro papel senatildeo

enfatizar o fato pressuposto pela teoria apresentada por Soacutecrates de que a Forma

natildeo eacute idecircntica aos objetos que dela participam ou seja se o objeto x participa da

Forma F entatildeo x e F satildeo coisas numericamente distintas isto eacute separadas Uma

segunda interpretaccedilatildeo possiacutevel seria entendermos a afirmaccedilatildeo de separaccedilatildeo como

equivalente agrave afirmaccedilatildeo de independecircncia ontoloacutegica De acordo com este sentido

uma coisas eacute separada da outra se ela pode existir independentemente da outra

Portanto nesta segunda acepccedilatildeo do termo x eacute separado de y se x pode continuar

a existir ainda que y deixe de existir ou mesmo que y nunca tenha existido28 Uma

terceira opccedilatildeo seria entendermos a afirmaccedilatildeo de que x eacute separado de y como

equivalente ao isolamento ou dissociaccedilatildeo total entre estes dois itens Assim

entendida a separaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis implicaria na inexistecircncia

de contato entre estas entidades tal como quando dizemos que uma mesa estaacute

separada da parede para afirmar que estas duas coisas natildeo estatildeo em contato uma

com a outra

Soacutecrates natildeo pede esclarecimentos a Parmecircnides acerca do que estaacute sendo

entendido por ldquoseparaccedilatildeordquo e noacutes como leitores devemos buscar nas entrelinhas

do texto o significado desta expressatildeo Esta tarefa nos eacute facilitada por Platatildeo que

oferece uma informaccedilatildeo fundamental acerca do sentido da palavra χωρίς por meio

da construccedilatildeo de um paralelismo entre a afirmaccedilatildeo de que a Forma F eacute separada

(χωρίς) e a afirmaccedilatildeo de que a Forma F eacute em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτό)

Em 129b4 Parmecircnides comeccedila seu exame perguntando a Soacutecrates se ele

acredita ser a Semelhanccedila mesma algo separado (χωρίς) da semelhanccedila que noacutes

temos Logo em seguida (130b7-9) Parmecircnides formula o mesmo tipo de questatildeo

utilizando agora a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτό ldquoSeraacute que tambeacutem coisas tais

28 Note que diferente da relaccedilatildeo de natildeo-identidade a indenpendecircncia ontoloacutegica natildeo eacute uma

relaccedilatildeo simeacutetrica Podemos considerar que x possui um modo de existecircncia independente de y e ao mesmo tempo afirmarmos que y eacute ontologicamente dependente de x

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como uma certa Forma em si e por si do Belo e do Justo [existem]rdquo Por fim em

130c1-2 Parmecircnides volta a usar o termo χωρίς e pergunta ldquoMas e uma Forma

do Homem [existiria esta Forma] separada de noacutes e de todos tais como somos

noacutesrdquo

Conforme observa Vlastos durante toda esta arguiccedilatildeo as expressotildees χωρίς

e αὐτὸ καθ αὑτό ldquosatildeo usadas intercaladamente para enunciar a mesma tese

metafiacutesica (metaphysical claim)rdquo (Vlastos 1991 p259) Como Soacutecrates natildeo se

manifesta contra a assimilaccedilatildeo do significado destas duas expressotildees e aceita sem

ressalvas o paralelismo estabelecido por Parmecircnides natildeo temos razatildeo para

duvidar de que as proposiccedilotildees ldquoA Forma F eacute separadardquo e ldquoA Forma F eacute em si e

por sirdquo possuem o mesmo significado e expressam o mesmo fato ontoloacutegico

A identidade entre o significado das expressotildees χωρίς e αὐτὸ καθ αὑτό

natildeo nos seria uacutetil contudo caso natildeo soubeacutessemos o que Soacutecrates entende pela

afirmaccedilatildeo de que as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὸ καθ αὑτό) No

entanto como vimos anteriormente a afirmaccedilatildeo de que as Formas satildeo ldquoem si e

por sirdquo eacute extremamente recorrente nos diaacutelogos e devemos entendecirc-la como

equivalente agrave tese da independecircncia ontoloacutegica das Formas As Formas satildeo ditas

αὐτὰ καθ αὑτὰ devido ao fato de apresentarem um modo de existecircncia

independente com relaccedilatildeo aos objetos sensiacuteveis que delas participam No

Banquete (211a5-b6) por exemplo a foacutermula ainda mais enfaacutetica αὐτὸ καθ αὑτὸ

microεθ αὑτοῦ eacute usada para expressar o modo de existecircncia autossuficente da Forma

do Belo que natildeo eacute afetada em absoluto pelas vicissitudes que as coisas belas do

mundo empiacuterico estatildeo fadadas a sofrer Pois ldquo() nem o nascimento nem a morte

destas coisas o fazem aumentar ou diminuir ou lhe produzem qualquer efeitordquo

(οἷον γιγνοmicroένων τε τῶν ἄλλων καὶ ἀπολλυmicroένων microηδὲν ἐκεῖνο microήτε τι πλέον

microήτε ἔλαττον γίγνεσθαι microηδὲ πάσχειν microηδέν) Gozando de uma modo de

existecircncia plenamente independente e natildeo dependendo de qualquer tipo de relaccedilatildeo

com outras entidades para ser aquilo que eacute o Belo ele mesmo permaneceraacute ldquosendo

sempre uacutenico em aspectordquo (microονοειδὲς ἀεὶ ὄν)

No Feacutedon Soacutecrates usa o mesmo paralelismo entre χωρίς (representado

pelo verbo χωρίζω) e αὐτὸ καθ αὑτό para explicar como o evento da morte que

nada mais eacute do que a separaccedilatildeo da alma do corpo faz com que estes dois

elementos passem a existir em si e por si ou seja de maneira independente

(Feacuted64C5-8) A morte significa para alma o fim da longa dependecircncia

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estabelecida com o corpo ao qual estava relacionada durante a encarnaccedilatildeo Apoacutes a

morte tanto o corpo quanto a alma passam a gozar de um modo de existecircncia

separado O corpo existiraacute de maneira independente poreacutem apenas pelo breve

espaccedilo de tempo que separa o evento da morte de sua dissoluccedilatildeo total enquanto a

alma continuaraacute a existir separada e independente mesmo apoacutes o

desaparecimento do corpo

Em ambas as passagens a locuccedilatildeo αὐτὸ καθ αὑτό eacute usada para designar o

estatuto ontoloacutegico independente de uma entidade Sendo assim dado o

paralelismo apontado por Vlastos entre a afirmaccedilatildeo de que ldquoA Forma F eacute em si e

por sirdquo e a afirmaccedilatildeo de que ldquoA Forma F eacute separadardquo podemos concluir que

Soacutecrates ao concordar que as Formas satildeo entidades separadas estaacute se

comprometendo com a tese de que as Formas existem de maneira completamente

independente dos objetos sensiacuteveis que delas participam natildeo necessitando deles

para serem aquilo que elas satildeo29

A insistecircncia de Parmecircnides sobre a questatildeo da separaccedilatildeo das Formas

representa seu reconhecimento de que a Teoria das Ideias apresentada por

Soacutecrates estaacute fundamentalmente vinculada agrave independecircncia ontoloacutegica destas

entidades Para que as Formas se apresentem como soluccedilatildeo agraves contradiccedilotildees do

mundo empiacuterico eacute imprescindiacutevel que estas entidades demonstrem-se aptas a

manter suas caracteriacutesticas ontoloacutegicas fundamentais a despeito do que aconteccedila

com os objetos que delas participam e sobretudo a despeito de como seja

entendida a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que as vincula aos objetos sensiacuteveis Assim a

29 Alguns comentadores entendem que a pergunta de Parmecircnides pressupotildee a simetria da relaccedilatildeo

de ldquoseparaccedilatildeordquo isto eacute se x eacute separado de y entatildeo y eacute separado de x Este fato por si soacute seria suficiente para descartarmos a hipoacutetese de que o termo χωρίς e por extensatildeo a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτό possam implicar independecircncia ontoloacutegica Afinal a Teoria das Ideias certamente afirma a independecircncia ontoloacutegica das Formas frente aos objetos sensiacuteveis Poreacutem segundo estes autores a afirmaccedilatildeo da indenpendecircncia ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis frente agraves Formas estaacute em clara contradiccedilatildeo com a Teoria das Ideias Portanto como Soacutecrates aceita sem ressalvas a formulaccedilatildeo de Parmecircnides devemos entender o termo χωρίς em algum dos sentidos que natildeo implicam a independecircncia ontoloacutegica da entidade separada (cf Gill 1996 p17 n23) ou devemos admitir que o jovem Soacutecrates natildeo estaacute completamente ciente da tese com a qual estaacute se comprometendo e aceita a independecircncia ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por engano (cf Allen 1997 p23-23) Vlastos apresenta um contra-argumento a estes autores afirmando que este tipo de interpretaccedilatildeo deriva de uma leitura errocircnea do texto Segundo Vlastos natildeo haacute razatildeo para acreditarmo que a relaccedilatildeo de separaccedilatildeo estaacute sendo tratada como uma relaccedilatildeo simeacutetrica porque as ocorrecircncias de χωρίς em 130b2 e b3 devem ser entendida como adveacuterbios de διῄρησαι Assim em b2-3 natildeo estamos falando de ldquoexistir separadamenterdquo mas de ldquodistinguir separadamenterdquo e a afirmaccedilatildeo do modo de existecircncia separado das Formas soacute aconteceria na sentenccedila seguinte b4 onde natildeo haacute sinal algum de simetria (cf Vlastos 1991 p 256)

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ecircnfase no tema da separaccedilatildeo durante a fala de abertura da argumentaccedilatildeo de

Pamecircnides antecipa ao leitor do diaacutelogo o conteuacutedo das criacuteticas que se seguiratildeo

Como veremos os argumentos de Parmecircnides pretendem demonstrar justamente

a impossibilidade das Formas preservarem sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica distintiva

enquanto estejam vinculadas aos objetos sensiacuteveis por meio da relaccedilatildeo de

participaccedilatildeo

O questionamento parmeniacutedico contudo natildeo termina por ai e suas duas

perguntas iniciais satildeo oferecidas em uma uacutenica sentenccedila como dois problemas

intimamente conectados Assim sua segunda questatildeo (130b3-4) eacute enunciada

como um mero corolaacuterio da primeira (130b2-3) se as Formas satildeo entidades

separadas dos objetos sensiacuteveis e estes objetos por sua vez satildeo separados das

Formas haveria entatildeo uma Forma do Semelhante separada da semelhanccedila que as

coisas sensiacuteveis possuem

Soacutecrates responde afirmativamente agraves duas perguntas reconhecendo a

existecircncia de uma Forma do Semelhante separada tanto dos objetos sensiacuteveis

quanto da semelhanccedila que haacute em noacutes Deste modo Parmecircnides torna expliacutecito

aquilo que jaacute havia sido antecipado pelo aparecimento da expressatildeo αὐτὰ τὰ

ὅmicroοιά isto eacute que a teoria apresentada por Soacutecrates pressupotildee a distinccedilatildeo natildeo

somente entre Formas e objetos sensiacuteveis mas tambeacutem entre Formas e

propriedades imanentes Portanto de acordo com Soacutecrates se estamos falando de

dois homens semelhantes entre si nossa anaacutelise pressupotildee a distinccedilatildeo de trecircs tipos

de entidades 1) a Forma do Semelhante 2) os indiviacuteduos em questatildeo e 3) a

semelhanccedila que estes indiviacuteduos possuem devido ao fato de participarem da

Forma do Semelhante

Como Parmecircnides demonstra perceber a distinccedilatildeo entre Formas e

propriedades imanentes eacute uma consequecircncia direta da hipoacutetese da separaccedilatildeo das

Formas As Formas satildeo entidades em si e por si separadas dos objetos sensiacuteveis

mas ao mesmo tempo se apresentam como causas das caracteriacutesticas destes

objetos Sendo assim eacute preciso supor a existecircncia de um resultado nas coisas da

accedilatildeo causal exercida pelas Formas Neste momento da discussatildeo nenhuma

informaccedilatildeo eacute passada ao leitor acerca do estatuto ontoloacutegico deste terceiro

elemento a natildeo ser o fato de que esta entidade encontra-se nas coisas sendo

portanto presente nos objetos sensiacuteveis Parmecircnides iraacute solucionar esta carecircncia

de informaccedilatildeo durante a enunciaccedilatildeo do seu ldquodilema da participaccedilatildeordquo Segundo

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este dilema soacute haacute duas possibilidades de compreensatildeo para o que satildeo as

propriedade imanentes ou bem estas entidades satildeo as proacuteprias Formas presentes

por inteiro nos objetos que delas participam ou bem satildeo partes de Formas

compartilhadas pelos objetos sensiacuteveis por meio da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo

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422 A extensatildeo do conjunto de Formas

Apoacutes se certificar da separaccedilatildeo entre Formas objetos sensiacuteveis e

propriedades imanentes Parmecircnides realiza trecircs perguntas acerca da extensatildeo do

conjunto de Formas Claramente sua intenccedilatildeo eacute determinar para que tipo de

coisas existe uma Formas correspondente De um ponto de vista dramaacutetico seu

interesse sobre esta questatildeo eacute extremamente natural Parmecircnides acabara de ser

apresentado agrave Teoria das Ideias e a primeira duacutevida que lhe surge eacute quais Formas

existem

Soacutecrates jaacute havia concordado que existem as Formas do Semelhante do

Dessemelhante do Um do Muacuteltiplo do Repouso e do Movimento Estas Formas

correspondem a termos gerais de aplicaccedilatildeo irrestrita pois todo elemento da

realidade precisa possuir senatildeo cada um destes pares de predicados ao menos um

membro de cada par30 Parmecircnides natildeo se deteacutem nestas Formas e se refere a elas

apenas pela designaccedilatildeo geneacuterica de ldquoas coisas que haacute pouco ouviste de Zenatildeordquo

(130b5)31

Por outro lado Parmecircnides se mostra bastante interessado em saber se

Soacutecrates admite aleacutem de Formas correspondentes a termos de aplicaccedilatildeo irrestrita

ldquouma Forma em si e por si do Justo e tambeacutem do Belo e do Bom e ainda de todas

as coisas deste tipordquo Ao que Soacutecrates responde confiantemente que sim (130b7-

10)

Ora termos com ldquoo belordquo ldquoo bomrdquo e ldquoo justordquo exemplificam as virtudes

que encontramos em diaacutelogos relacionados agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees

(δίκαιος Eut12d HiacuteppMa287c Goacuterg483d 492a Prot329c-330c Mecircn73e

30 Ryle denomina estes predicados de ldquoconceitos formaisrdquo e enfatiza o fato de que eles se

diferenciam natildeo apenas pela sua universalidade de aplicaccedilatildeo mas tambem pelo seu tipo loacutegico Pois um conceito deste tipo natildeo eacute ldquoespeciacutefico a um toacutepico mas integral a todos os toacutepicos de discurso (subject-matter) (Ryle 1965 p115) Posteriormente Ryle se refere a estes conceitos como ldquosincategoremaacuteticosrdquo (Ryle 165 p131) Gill e Turnbull por sua vez chamam as Formas correspondentes a estes predicados de ldquoFormas estruturaisrdquo (Gill 2012 p29) e (Turnbull 1998 p19) Estes autores parecem estar corretos em identificar a universalidade de aplicaccedilatildeo destes termos como seu caraacuteter distintivo Curiosamente os comentaacuterios mais antigos identificam este grupo de Formas como correspondente a termos matemaacuteticos mas este natildeo parece ser o ponto em questatildeo uma vez que ldquorepousordquo e ldquomovimentordquo estatildeo incluidos na lista

31 No Feacutedro estes mesmo predicados satildeo relacionados ao tipo de argumentaccedilatildeo desenvolvida por Zenatildeo Neste diaacutelogo Soacutecrates afirma que o Palamendes de Eleacuteia (Zenatildeo) eacute capaz de fazer sua audiecircncia crer que as coisas satildeo simultaneamente semelhantes e dessemelhantes unas e muacuteltiplas em repouso e em movimento (Feacutedr261d)

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καλός Liacutes216d HiacuteppMa 287d-304e ἀγαθός Liacutes216d HiacuteppMa287c

Mecircn87d Goacuterg495a Prot352c) Como vimos estes diaacutelogos conteacutem

argumentos em que expressotildees como ldquoo Belo em sirdquo e ldquoa Forma do Belordquo satildeo

entendidas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder causal

exercido por estas entidades nos levou ainda a reconhecer a independecircncia e

prioridade ontoloacutegica inerente a elas e a concluir que a busca por definiccedilotildees dos

diaacutelogos iniciais deve ser entendida desde sempre como uma busca pela Forma

das virtudes e termos morais ali mencionados Nos diaacutelogos da fase meacutedia

Formas correspondentes a virtudes continuam a receber papel proeminente como

por exemplo no Feacutedon (65d 70d-71e 76d 100c-d) no Banquete (210e-211d) e

na Repuacuteblica (479a-b) Sendo assim ao aceitar a existecircncia de Formas

correspondentes a virtudes valores morais e valores eacuteticos Soacutecrates natildeo estaacute

fazendo nada mais do que manter-se coerente com aquilo que um leitor dos

diaacutelogos platocircnicos esperaria

O segundo grupo de Formas a despertar o interesse de Parmecircnides

corresponde ao que chamariacuteamos de termos sortais ldquohomemrdquo ldquofogordquo e ldquoaacuteguardquo32

As perguntas anteriores mencionam Formas correspondentes a adjetivos

predicados incompletos ou caracteriacutesticas das coisas Parmecircnides agora

questiona Soacutecrates acerca da existecircncia de Formas correspondentes a substantivos

ou expressotildees nominais usadas para designar tipos ou classes de coisas Soacutecrates

natildeo se mostra seguro acerca da existecircncia destas Formas mas tambeacutem natildeo nega

que elas possam existir afirmando apenas ter ficado muitas vezes em aporia

acerca deste assunto (130c1-4)

A inseguranccedila de Soacutecrates acerca da existecircncia de Formas correspondentes

a termos sortais eacute facilmente compreendida se levarmos em conta que nos

diaacutelogos anteriores ao Parmecircnides as Formas satildeo apresentadas sobretudo como

uma tentativa de solucionar problemas relacionados com a copresenccedila de opostos

nas coisas sensiacuteveis No primeiro grupo de diaacutelogos Soacutecrates sai em busca de

uma definiccedilatildeo precisa para termos morais por perceber que casos exemplares de

32 Estritamente falando ldquoaacuteguardquo e ldquofogordquo natildeo satildeo termos sortais pelo fato de natildeo poderem receber

adjetivos numeacutericos Assim ldquocubo de gelordquo eacute um termo sortal porque podemos falar ldquotrecircs cubos de gelordquo poreacutem o mesmo natildeo acontece com ldquoaacuteguardquo e ldquofogordquo A caracteriacutestica fundamental que une este grupo de termos eacute portanto o fato de constituirem elementos com funccedilatildeo nominal aos quais adjetivos e predicados satildeo atribuidos e que satildeo oferecidos como resposta a questotildees do tipo ldquoo que eacute istordquo No Fileacutebo (15a) Soacutecrates menciona uma Forma de Homem e no Timeu (51b) uma Forma do Fogo eacute mencionada

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demonstraccedilatildeo de uma determinada virtude podem aparecer sob certos aspectos ou

determinadas condiccedilotildees como um exemplo do viacutecio exatamente oposto Assim

ldquodevolver a cada um o que lhe eacute proacutepriordquo (RepI 331c) pode ser considerado um

exemplo de justiccedila No entanto no caso de algueacutem tomado pela loucura exigir a

devoluccedilatildeo de suas armas a mesma definiccedilatildeo estaraacute apresentando uma caso

daquilo que eacute o oposto da justiccedila Do mesmo modo levar a julgamento aquele que

comete um crime em mateacuteria religiosa parece fazer parte daquilo que eacute a piedade

poreacutem caso esta pessoa seja seu proacuteprio pai e o julgamento venha a levaacute-lo a

morte o mesmo tipo de ato teraacute como resultado um parriciacutedio o pior e mais iacutempio

dos casos de derramamento de sangue

Durante a fase meacutedia o problema da co-presenccedila de opostos continua a

receber um papel de destaque Em uma passagem da Repuacuteblica VII (523a-524e) a

busca por uma soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila de opostos eacute apresentada

por Soacutecrates como a proacutepria razatildeo para o surgimento da Teoria das Ideias

Segundo Soacutecrates eacute o fato de um mesmo dedo parecer simultaneamente grande e

pequeno que nos leva a formular questotildees do tipo ldquoo que eacute o granderdquo ldquoo que eacute o

pequenordquo e a concluir que o Grande e o Pequeno devem ser afirmados como um

tipo de coisa separada dos objetos sensiacuteveis Contudo o dedo enquanto dedo

nunca se apresenta como o contraacuterio de si mesmo e a mente da maioria dos

homens natildeo eacute levada a formular a pergunta o que eacute o dedo E como

consequecircncia a mente da maioria dos homens tambeacutem natildeo eacute levada a postular

uma Forma correspondente ao termo sortal ldquodedordquo

Esta passagem da Repuacuteblica VII assim como nossa passagem do

Parmecircnides natildeo nega a existecircncia de Formas correspondentes a termos como

ldquodedordquo e ldquohomemrdquo De fato no livro X da Repuacuteblica o proacuteprio Soacutecrates afirma

ter o haacutebito de assumir a existecircncia de uma Forma uacutenica para cada conjunto de

coisas muacuteltiplas agraves quais chamamos por um mesmo nome (εἶδος γάρ πού τι ἓν

ἕκαστον εἰώθαmicroεν τίθεσθαι περὶ ἕκαστα τὰ πολλά οἷς ταὐτὸν ὄνοmicroα ἐπιφέροmicroεν

Rep596a6-7) Igualmente em uma passagem sobre do ldquoprodutor de nomesrdquo

(ὀνοmicroατουργός) do Craacutetilo (389a-390a) o mesmo princiacutepio segundo o qual

haveria uma Forma para cada palavra parece estar em jogo No proacuteprio

Parmecircnides Soacutecrates reconhece a possibilidade de uma aceitaccedilatildeo bastante

abrangente para o contigente de Formas afirmando jaacute ter considerado a

possibilidade do princiacutepio de postulaccedilatildeo das Formas ser ldquoo mesmo com relaccedilatildeo a

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todas as coisasrdquo (περὶ πάντων ταὐτόν 130d5-6) A proacutepria observaccedilatildeo de

Parmenides que conclui a passagem sobre a extensatildeo do conjunto de Formas

parece apontar na mesma direccedilatildeo ao prever que nenhuma destas coisas seraacute

desprezada por Soacutecrates assim que a filosofia dele se apoderar completamente

(130e1-4)

Sendo assim a duacutevida demonstrada pelo jovem Soacutecrates acerca da

existecircncia de Formas correspondentes a termos sortais deve ser entendida em

paralelo com a passagem sobre o dedo na Repuacuteblica como um testemunho de

Platatildeo acerca da origem da Teoria das Ideias Ao que tudo indica as Formas foram

primeiro propostas como uma tentativa de soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos tanto no caso dos predicados incompletos e propriedades relacionais

dos objetos sensiacuteveis quanto no caso das virtudes e valores morais que se

negavam a ser capturados por uma soacute definiccedilatildeo As falas de Soacutecrates e

Parmecircnides em 130d5-e4 nos levam a crer que na eacutepoca de composiccedilatildeo do

Parmecircnides o nuacutemero de Formas admitidas jaacute havia sido expandido o suficiente

para incluir uma Forma correspondente a cada conjunto de muacuteltiplas coisas que

chamamos pelo mesmo nome confirmando assim a impressatildeo que nos chega dos

diaacutelogos da fase meacutedia

Em oposiccedilatildeo a estas admissotildees Soacutecrates se mostra definitivamente contra

a existecircncia de Formas correspondentes a um quarto grupo de termos enunciado

por Parmecircnides constituiacutedo por cabelo lama e sujeira (θρὶξ καὶ πηλὸς καὶ ῥύπος

) e afirma que acreditar na existecircncia destas Formas seria por demais absurdo

(130d4) Mas por que Soacutecrates se negaria admitir a existecircncia destas Formas

A explicaccedilatildeo mais comumente apresentada pelos comentadores baseia-se

no fato de que coisas como cabelo lama e sujeira seriam indignas e ignoacutebeis

demais para serem harmonizadas com a grandiloquecircncia das descriccedilotildees acerca da

natureza divina das Formas encontradas em diaacutelogos como Banquete e

Repuacuteblica33 De fato esta interpretaccedilatildeo parece estar sugerida pela fala de

Parmecircnides que caracteriza estas coisas como ridiacuteculas (γελοῖα) despreziacuteveis

(ἀτιmicroότατόν) e vis (φαυλότατον) No entanto podemos atribuir um significado

33 El Murr por exemplo afirma ldquoSe Soacutecrates natildeo pode admitir que existe uma Forma de Lama eacute

evidentemente porque ele confunde a questatildeo do valor e a questatildeo da essecircncia porque ele pensa que uma Forma da lama coisa de pouco valor seria uma Forma de pouco valorrdquo (El Murr 2010 p145) Para outros autores que defendem esta mesma linha de raciociacutenio (cf Allan 1997 p124) (cf Cornford 1951 p83) (cf Miller 1986 p 45-46) (cf Turnbull 1998

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mais profundo para a recusa de Soacutecrates caso estejamos dispostos a reconhecer

nestes exemplos uma antecipaccedilatildeo dos problemas vinculados agrave relaccedilatildeo partetodo

que encontraremos de maneira recorrente no restante das criacuteticas de Parmecircnides

agrave hipoacutetese das Formas

Soacutecrates havia se mostrado relutante poreacutem natildeo havia negado a existecircncia

de uma Forma de Homem Parmecircnides deseja saber agora se precisamos de uma

Forma de Cabelo uma vez que tenhamos admitido uma Forma de Homem Um

homem eacute um todo composto por diversas partes como ressaltado por Soacutecrates

que usa a si proacuteprio como exemplo (129c4-d1) Seria tambeacutem a Forma do

Homem um todo composto por partes Se sim seriam entatildeo as Formas do

Cabelo e do Dedo partes da Forma do Homem Mas e estas Formas seriam elas

tambeacutem entidades compostas cujas partes corresponderiam aos componentes do

dedo e do cabelo sensiacuteveis Se natildeo entatildeo precisariacuteamos de uma Forma separada

para cada parte do corpo humano E para as partes destas partes teriacuteamos uma

Forma correspondente a cada componente do corpo humano ateacute chegarmos a um

elemento sensiacutevel completamente indivisiacutevel Por outro lado seria necessaacuterio

uma Forma de Lama caso exista uma Forma para os dois elementos a partir dos

quais a lama eacute composta terra e de aacutegua (cfTeet147c) Ou seria a lama sensiacutevel

apenas o resultado da presenccedila destas duas Formas em um uacutenico objeto Por fim

teria a sujeira uma natureza proacutepria um caraacuteter determinado Ou seria a sujeira

apenas um agregado de pequenas partes de outras coisas como terra e cabelo

cada uma delas correspondendo a uma Forma especiacutefica

As questotildees de Parmecircnides acerca da extensatildeo do conjunto de Formas natildeo

chegam a constituir propriamente uma tentativa de refutaccedilatildeo da teoria apresentada

por Soacutecrates Contudo esta primeira bateria de perguntas deixa claro ao leitor que

a hipoacutetese das Formas estaacute sujeita a criacuteticas como de fato estaacute sujeita toda e

qualquer teoria De um ponto de vista dramaacutetico estas perguntas realizam a

transiccedilatildeo entre a apresentaccedilatildeo da Teoria das Ideias e a refutaccedilatildeo desta teoria que

se daraacute no restante do diaacutelogo Atraveacutes desta pequena passagem Platatildeo apresenta

a seus leitores ateacute entatildeo acostumados a ver Soacutecrates como protagonista e

condutor principal da argumentaccedilatildeo uma clara inversatildeo de papeacuteis No restante do

Parmecircnides ao inveacutes de encontramos o Soacutecrates confiante e eloquente da Feacutedon e

p22-23)

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do Banquete ou o Soacutecrates irocircnico e refutador do Ecircutifron e do Laacuteques

encontraremos um Soacutecrates receoso e reticente preza dos ataques de Parmecircnides

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423 O dilema da Participaccedilatildeo

Parmecircnides inicia sua efetiva reduccedilatildeo ao absurdo da Teoria das Ideias por

meio de uma reapresentaccedilatildeo sumaacuteria da posiccedilatildeo socraacutetica

ldquoMas dize-me o seguinte34 parece-te como dizes haver certas Formas em tendo participaccedilatildeo nas quais essas outras coisas aqui recebem suas denominaccedilotildees Por exemplo se tecircm participaccedilatildeo na Semelhanccedila as coisas se tornam semelhantes se na Grandeza grandes se no Belo e na Justiccedila justas e belas Perfeitamente disse Soacutecratesrdquo τόδε δ οὖν microοι εἰπέ δοκεῖ σοι ὡς φῄς εἶναι εἴδη ἄττα ὧν τάδε τὰ ἄλλα microεταλαmicroβάνοντα τὰς ἐπωνυmicroίας αὐτῶν ἴσχειν οἷον ὁmicroοιότητος microὲν microεταλαβόντα ὅmicroοια microεγέθους δὲ microεγάλα κάλλους δὲ καὶ δικαιοσύνης δίκαιά τε καὶ καλὰ γίγνεσθαι Πάνυ γε φάναι τὸν Σωκράτη (130e4-131a1)

Nesta passagem Parmecircnides reduz a posiccedilatildeo socraacutetica a trecircs proposiccedilotildees

fundamentais 1) existem Formas 2) os objetos sensiacuteveis (τάδε τὰ ἄλλα)

participam nestas Formas e 3) devido a esta de participaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis

recebem os nomes pelos quais satildeo chamados A tese segundo a qual as coisas

recebem suas denominaccedilotildees devido ao fato de participarem nas Formas

conhecida como tese da eponiacutemia (ἐπωνυmicroία) natildeo havia sido mencionada por

Soacutecrates No entanto devemos entendecirc-la como um mero corolaacuterio linguiacutestico da

hipoacutetese de que as Formas satildeo causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis As

coisas recebem suas denominaccedilotildees pelo fato de apresentarem as caracteriacutesticas e

propriedades que apresentam Como as Formas satildeo as causas destas propriedades

Parmecircnides deduz corretamente que as coisas recebem suas denominaccedilotildees em

funccedilatildeo da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que mantecircm com as Formas 35

Como sabemos de acordo com a Teoria das Ideias o fato de que Simmias

eacute grande pressupotildee a existecircncia de duas entidades ontologicamente distintas

34 Platatildeo marca de maneira muito clara o iniacutecio de uma nova seacuterie de argumento pela frase ldquoτόδε δ οὖν microοι εἰπέrdquo Do mesmo modo o iniacutecio da passagem acerca da extensatildeo do conjunto de Formas havia sido marcado pelas palavras ldquoκαί microοι εἰπέrdquo (130b1) e posteriormente a introduccedilatildeo do argumento do terceiro homem seraacute marcado pela expressatildeo ldquoπρὸς τόδε πῶς ἔχειςrdquo (131e8) 35 Como observa Cornford (Cornford 1951 p84 n2) esta fala de Parmecircnides traz uma

referecircncia bastante direta agrave passagem do Feacutedon em que Soacutecrates propotildee sua teoria da participaccedilatildeo como uma soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila de opostos em Simmias Compare ldquoὧν τάδε τὰ ἄλλα microεταλαmicroβάνοντα τὰς ἐπωνυmicroίας αὐτῶν ἴσχεινrdquo (Parm130e5-6) com ldquoκαὶ τούτων τἆλλα microεταλαmicroβάνοντα αὐτῶν τούτων τὴν ἐπωνυmicroίαν ἴσχεινrdquo (Feacuted102b1-2)

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Simmias e a Forma da Grandeza Aleacutem disso como Soacutecrates jaacute havia antecipado

pelo uso da expressatildeo αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e como o proacuteprio Parmecircnides jaacute havia

concluiacutedo em 130b3-4 o fato de que Simmias eacute grande pressupotildee ainda a

existecircncia da propriedade imanente grandeza-em-Simmias (Parm130b4 αὐτὴ

ὁmicroοιότης χωρὶς ἧς ἡmicroεῖς ὁmicroοιότητος ἔχοmicroεν Feacuted102d7 τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος

Feacuted103b5 οὔτε τὸ ἐν ἡmicroῖν [ἐναντίον] οὔτε τὸ ἐν τῇ φύσει) Diferente da Forma

que lhe daacute origem uma propriedade imanente eacute ontologicamente dependente do

indiviacuteduo na qual estaacute localizada Afinal sua existecircncia estaacute intimamente

conectada com a existecircncia do indiviacuteduo que a possui e podemos considerar que

caso este indiviacuteduo deixe de ser grande de todos os modos possiacuteveis a

propriedade imanente da grandeza que este indiviacuteduo apresentava cessaraacute de

existir

Podemos nos perguntar agora como estas trecircs entidades estatildeo

relacionadas Soacutecrates havia sugerido que os objetos sensiacuteveis participam das

Formas e como resultado desta participaccedilatildeo adquirem suas diversas

propriedade36 No entanto o poder causal exercido pelas Formas natildeo pode ser

considerado por si soacute suficientemente elucidativo Haacute de haver um modo

especiacutefico de relaccedilatildeo entre estas entidades que explique como as Formas podem

ser responsaacuteveis pelo surgimento das propriedades imanentes nos objetos

sensiacuteveis Parmecircnides deseja saber portanto como devemos entender a relaccedilatildeo de

participaccedilatildeo de modo a tornarmos teoricamente viaacutevel a hipoacutetese de que as coisas

sensiacuteveis adquirem suas propriedades imanentes por causa das Formas

No Feacutedon Soacutecrates havia se recusado a explicitar a natureza desta relaccedilatildeo

oferecendo de maneira inconclusiva os termos ldquopresenccedilardquo e ldquocomunhatildeordquo como

modos possiacuteveis de descrevecirc-la

ldquoNada aleacutem do Belo torna esta coisa bela seja pela sua presenccedila (παρουσία) seja

36 Assim no Parmecircnides (129a4-5) certas coisas ldquotendo participaccedilatildeo na Semelhanccedila se tornam

semelhantesrdquo (τὰ microὲν τῆς ὁmicroοιότητος microεταλαmicroβάνοντα ὅmicroοια γίγνεσθαι) isto eacute passam a possuir a propriedade imanente da semelhanccedila ldquopor causa disso e na medida em que nela tenham participaccedilatildeordquo (ταύτῃ τε καὶ κατὰ τοσοῦτον ὅσον ἂν microεταλαmicroβάνῃ) E no Feacutedon (100c4-6) ldquoSe existe alguma coisa bela aleacutem do Belo em si a uacutenica razatildeo pela qual esta coisa eacute bela eacute porque ela participa da Belo em si E digo o mesmo com relaccedilatildeo a todo o restordquo (εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν οὐδὲ δι ἓν ἄλλο καλὸν εἶναι ἢ διότι microετέχει ἐκείνου τοῦ καλοῦ καὶ πάντα δὴ οὕτως λέγω) Nestas passagens Soacutecrates deixa claro por meio do emprego do dativo instrumental da conjunccedilatildeo διότι e da preposiccedilatildeo κατά + acusativo que eacute unicamente pela participaccedilatildeo nas Formas que as coisas adquirem as diversas propriedades que possuem

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pela comunhatildeo (κοινωνία) ou como quer que ele [o Belo] venha a se adicionar agraves coisas (ὅπῃ δὴ καὶ ὅπως προσγενοmicroένη) pois natildeo irei insistir nisto apenas que eacute pelo Belo que todas as coisas belas se tornam belasrdquo οὐκ ἄλλο τι ποιεῖ αὐτὸ καλὸν ἢ ἡ ἐκείνου τοῦ καλοῦ εἴτε παρουσία εἴτε κοινωνία εἴτε ὅπῃ δὴ καὶ ὅπως προσγενοmicroένη οὐ γὰρ ἔτι τοῦτο διισχυρίζοmicroαι ἀλλ ὅτι τῷ καλῷ πάντα τὰ καλὰ [γίγνεται] καλά (Fed100d4-7)

No Parmecircnides apenas duas alternativas satildeo inicialmente apresentadas

ou bem 1) cada coisa que participa de uma Forma participa na Forma inteira ou

bem 2) cada coisa que participa de uma Forma participa em uma parte da Forma

De acordo com 1) a propriedade imanente que um objeto sensiacutevel adquire como

consequecircncia da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo equivale agrave totalidade da Forma De

acordo com 2) esta propriedade imanente equivale a apenas uma parte da Forma

Soacutecrates aceita o dilema formulado por Parmecircnides e concorda ainda que estas

duas opccedilotildees satildeo exaustivas

ldquoNatildeo eacute verdade que cada uma das coisas que tecircm participaccedilatildeo ou bem tem participaccedilatildeo na Forma inteira ou bem em uma parte dela Ou haveria uma outra participaccedilatildeo aleacutem dessas Como poderia haver disse [Soacutecrates]rdquo Οὐκοῦν ἤτοι ὅλου τοῦ εἴδους ἢ microέρους ἕκαστον τὸ microεταλαmicroβάνον microεταλαmicroβάνει ἢ ἄλλη τις ἂν microετάληψις χωρὶς τούτων γένοιτο Καὶ πῶς ἄν εἶπεν (131a4-7)

Em sua forma o dilema anuncia uma reduccedilatildeo ao absurdo 1) Se as coisas

participam das Formas entatildeo elas participam no todo ou em parte de uma Forma

Contudo 2) natildeo pode haver participaccedilatildeo no todo das Formas nem em partes das

Formas Logo 3) natildeo haacute participaccedilatildeo isto eacute as coisas natildeo participam das Formas

A validade desta reduccedilatildeo depende diretamente do reconhecimento de que as duas

opccedilotildees previstas na premissa maior do argumento esgotam todas as possibilidades

de se pensar a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis Por isso

Parmecircnides pergunta a Soacutecrates se poderia haver algum outro tipo de participaccedilatildeo

aleacutem da participaccedilatildeo no todo ou em parte de uma Forma Neste primeiro

momento Soacutecrates concorda que natildeo poderia haver reconhecendo a completude

da premissa maior do argumento de Parmecircnides e se comprometendo

antecipadamente com a validade da reduccedilatildeo37

37 Posteriormente confrontado pelos paradoxos resultantes do dilema da participaccedilatildeo Soacutecrates

iraacute propor maneiras de entender a relaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que extrapolam as opccedilotildees previstas neste dilema inicial Contudo como veremos estas propostas tampouco se mostraratildeo imunes aos ataques do saacutebio eleata

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424 A estrutura do dilema de participaccedilatildeo

Eacute constantemente apontado pelos comentadores o fato de que o dilema da

participaccedilatildeo possuiria uma estrutura assimeacutetrica Enquanto o primeiro ramo do

dilema de acordo com o qual as coisas participam no todo de uma Forma levaria

a uma impossibilidade loacutegica a argumentaccedilatildeo que contradiz o segundo ramo do

dilema seria meramente ad hominen e resultaria em apenas um par de

contradiccedilotildees especiacuteficas restritas a um determinado conjunto de Formas Esta

interpretaccedilatildeo foi proposta pela primeira vez por Reginald Allen

ldquoSoacutecrates rejeita ambas disjunccedilotildees do Dilema da Participaccedilatildeo mas a modalidade destas disjunccedilotildees eacute bastante diferente A primeira disjunccedilatildeo dada a pluralidade de participantes envolve uma absurdidade loacutegica (hellip) A segunda disjunccedilatildeo seja verdadeira ou como Soacutecrates acredita falsa natildeo envolve uma absurdidade loacutegica (hellip) Portanto se natildeo haacute participaccedilatildeo no todo nem na parte da Ideia entatildeo natildeo haacute participaccedilatildeo mas se haacute participaccedilatildeo ela natildeo pode ser no todo mas deve ser na parte de uma Ideiardquo (Allen 1997 p133)

Apesar da aceitaccedilatildeo geral que a interpretaccedilatildeo de Allen tem recebido38 sua

leitura natildeo deve ser assumida de antematildeo Em primeiro lugar porque levanta o

seguinte problema interpretativo se o segundo ramo do dilema apresenta uma

opccedilatildeo logicamente viaacutevel por que Soacutecrates natildeo se apega a esta opccedilatildeo procurando

apresentar maneiras plausiacuteveis de entender as propriedades imanentes como partes

das Formas Ao contraacuterio do que seria esperado caso a participaccedilatildeo em partes das

Formas fosse a uacutenica opccedilatildeo logicamente possiacutevel Soacutecrates procura manter

durante toda seacuterie de argumentos a unidade das Formas se mostrando

decididamente contra a hipoacutetese de que elas possam ser divididas

Aleacutem disso a leitura assimeacutetrica para o dilema da participaccedilatildeo eacute

responsaacutevel por um problema interpretativo ainda mais fundamental que ameaccedila

a proacutepria relevacircncia das criacuteticas de Parmecircnides e como consequecircncia a unidade

temaacutetica do diaacutelogo Allen considera o segundo ramo do dilema como uma opccedilatildeo

logicamente viaacutevel por entender que apenas as Formas do Grande do Pequeno e

do Igual estatildeo sujeitas a paradoxos caso optemos pela participaccedilatildeo em partes das

38 Brisson (Brisson 2011 p37 n76) Curd (Curd 1986 p128) e Harte (Harte 2002 p66-67) dentre outros assumem a assimetria do dilema adotando a interpretaccedilatildeo proposta por Allen

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Formas Contudo os argumentos sobre estas trecircs Formas natildeo constituem o passo

decisivo na refutaccedilatildeo deste ramo do dilema Na verdade estes paradoxos apenas

ilustram algumas das consequecircncias indesejaacuteveis decorrentes da efetiva divisatildeo

das Formas que jaacute havia sido admitida por Soacutecrates em 131c9-10 Esta mudanccedila

de foco acaba impedindo Allen de reconhecer que eacute a proacutepria divisatildeo das Formas

o que leva agrave rejeiccedilatildeo da hipoacutetese da participaccedilatildeo em partes das Formas

Ao contraacuterio do que Allen acredita ambos os braccedilos do dilema apresentam

argumentos contra uma mesma tese cuja importacircncia eacute fundamental para a

validade da Teoria das Ideias a tese de que as Formas satildeo entidades uacutenicas

(singulares e indivisiacuteveis) e portanto essencialmente distintas dos objetos

sensiacuteveis

Em toda sua argumentaccedilatildeo Parmecircnides utiliza o adjetivo ldquoumrdquo de maneira

ambiacutegua ora para designar a singularidade (unidade numeacuterica) ora para designar

a uniformidade (indivisibilidade) de uma Forma O dilema da participaccedilatildeo

pretende demonstrar como estes dois sentidos de unidade natildeo podem ser

atribuiacutedos simultaneamente agraves Formas caso estas entidades estejam submetidas

agrave relaccedilatildeo de participaccedilatildeo Assim no primeiro ramo do dilema a integridade das

Formas natildeo eacute posta em questatildeo mas a sua singularidade eacute comprometida Pois

estando presentes por inteiro em cada um dos seus participantes as Formas se

multiplicariam e passariam a existir em nuacutemero igual ao das coisas que delas

participam Por outro lado no segundo ramo do dilema natildeo eacute mais a unidade

numeacuterica das Formas que eacute posta em questatildeo mas a sua indivisibilidade Pois

uma vez divididas pelos seus participantes as Formas passariam a ter tantas partes

quantos objetos que delas participam

Esta estrateacutegia estabelecida pelo dilema da participaccedilatildeo organiza todo o

conjunto de criacuteticas apresentadas por Parmecircnides na primeira parte do diaacutelogo E

eacute justamente isso que a leitura assimeacutetrica de Allen nos impede de reconhecer As

diversas criacuteticas apresentadas por Parmecircnides constituem passos distintos de um

mesmo argumento cujo uacutenico objetivo eacute demonstrar a impossibilidade de se

conceber as Formas como unidades perfeitas isto eacute singulares e indivisiacuteveis

O dilema da participaccedilatildeo reproduz em sua forma a estrateacutegia geral das

criacuteticas de Parmecircnides que pretendem demonstrar a incompatibilidade entre duas

teses centrais da Teoria das Ideias 1) a tese de que as Formas satildeo as causas das

propriedades dos objetos sensiacuteveis e 2) a tese de que as Formas satildeo entidades

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uacutenicas singulares e indivisiacuteveis Se observarmos a conclusatildeo de cada um dos

argumentos podemos ver que Parmecircnides insiste a todo instante na

impossibilidade de se manter simultaneamente estas duas afirmaccedilotildees

1) Se a participaccedilatildeo se daacute na totalidade da Forma entatildeo as Formas

satildeo indivisiacuteveis poreacutem natildeo satildeo numericamente uacutenicas (132b1-2

Ἓν ἄρα ὂν καὶ ταὐτὸν ἐν πολλοῖς καὶ χωρὶς οὖσιν ὅλον ἅmicroα

ἐνέσται καὶ οὕτως αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς ἂν εἴη)

2) Se a participaccedilatildeo se daacute em uma parte da Forma entatildeo as Formas

satildeo numericamente uacutenicas poreacutem natildeo satildeo indivisiacuteveis (132c9-

10Ἦ οὖν ἐθελήσεις ὦ Σώκρατες φάναι τὸ ἓν εἶδος ἡmicroῖν τῇ

ἀληθείᾳ microερίζεσθαι καὶ ἔτι ἓν ἔσται

2) Perceber uma Forma uacutenica sobre uma multiplicidade de objetos

sensiacuteveis implica em um regresso ao infinito e o que seria uma

Forma uacutenica mostra-se ldquoilimitada em quantidaderdquo (132b1-2καὶ

οὐκέτι δὴ ἓν ἕκαστόν σοι τῶν εἰδῶν ἔσται ἀλλὰ ἄπειρα τὸ

πλῆθος)

3) Sustentar que cada Forma eacute um ldquopensamentordquo (νόηmicroα) permite que

ela seja tanto uacutenica quanto indivisiacutevel Poreacutem neste caso a proacutepria

noccedilatildeo de participaccedilatildeo se mostra absurda (132c9-11 οὐκ ἀνάγκῃ ᾗ

τἆλλα φῂς τῶν εἰδῶν microετέχειν ἢ δοκεῖ σοι ἐκ νοηmicroάτων ἕκαστον

εἶναι καὶ πάντα νοεῖν ἢ νοήmicroατα ὄντα ἀνόητα εἶναι)

4) Sustentar que a Formas satildeo ldquoparadigmasrdquo (παραδείγmicroατα) garante

sua indivisibilidade poreacutem o regresso ao infinito resurge e as

Formas passam novamente a se multiplicar indefinidamente

(133a1-3 καὶ οὐδέποτε παύσεται ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον ἐὰν

τὸ εἶδος τῷ ἑαυτοῦ microετέχοντι ὅmicroοιον γίγνηται)

Como podemos perceber a duplicidade de sentido que o termo ἓν recebe

nos argumentos de Parmecircnides equivale agrave duplicidade de sentido que o termo

πολλά adquire durante a argumentaccedilatildeo de Zenatildeo De um ponto de vista dramaacutetico

a formulaccedilatildeo do dilema da participaccedilatildeo representa o momento em que

Parmecircnides aceitando o desafio lanccedilado por Soacutecrates inicia sua demonstraccedilatildeo de

que as Formas natildeo estatildeo aptas a manter as caracteriacutesticas ontoloacutegicas que as

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distinguem dos objetos sensiacuteveis e as tornam imunes ao paradoxo de Zenatildeo Caso

Soacutecrates natildeo se mostre capaz de articular uma explicaccedilatildeo para a hipoacutetese da

participaccedilatildeo que salve ao mesmo tempo a singularidade e a indivisibilidade das

Formas Parmecircnides teraacute demonstrado que as Formas natildeo constituem uma soluccedilatildeo

teoricamente viaacutevel para o paradoxo de abertura do diaacutelogo Afinal privadas de

sua singularidade e uniformidade caracteriacutesticas as Formas estaratildeo elas tambeacutem

sujeitas aos paradoxos de Zenatildeo O tema da unidade das Formas eacute portanto o

elemento fundamental de ligaccedilatildeo entre as criacuteticas de Parmecircnides e os argumentos

anteriormente desenvolvidos por Soacutecrates e Zenatildeo

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425 Participaccedilatildeo no todo da Forma

No primeiro ramo do dilema proposto por Parmecircnides os objetos

sensiacuteveis participam no todo de uma Forma (ὅλου τοῦ εἴδους) Como

consequecircncia as coisas recebem como sua propriedade imanente a totalidade de

uma Forma que por sua vez passa a estar presente (ἐν ἐνεῖναι) inteira em cada

um de seus participantes

ldquoEntatildeo parece-te que a Forma inteira sendo uma39 estaacute em cada uma das muacuteltiplas coisas Ou como seria ldquoMas o que impede Parmecircnides [que ela esteja que ela seja uma]40 Entatildeo sendo uma e a mesma estaraacute inteira simultaneamente em coisas que satildeo muacuteltiplas e separadas e assim ela estaria separada de si mesma41rdquo Πότερον οὖν δοκεῖ σοι ὅλον τὸ εἶδος ἐν ἑκάστῳ εἶναι τῶν πολλῶν ἓν ὄν ἢ πῶς Τί γὰρ κωλύει φάναι τὸν Σωκράτη ὦ Παρmicroενίδη [ἓν εἶναι ἐνεῖναι ] Ἓν ἄρα ὂν καὶ ταὐτὸν ἐν πολλοῖς καὶ χωρὶς οὖσιν ὅλον ἅmicroα ἐνέσται καὶ οὕτως αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς ἂν εἴη (131a8-b2)

Com este breve argumento Parmecircnides pretende demonstrar que para que

possam estar presentes por inteiro em uma multiplicidade de coisas distintas as

Formas precisam tambeacutem ser muacuteltiplas Apesar de extremamente conciso o

argumento pode ser entendido da seguinte maneira De acordo com a premissa de

participaccedilatildeo no todo de uma Forma se os objetos x y e z participam da Forma F

a Forma F estaacute presente por inteiro em x y e z Ora as variaacuteveis x y e z

representam objetos sensiacuteveis distintos ldquocoisas muacuteltiplas e separadasrdquo (πολλοῖς

καὶ χωρὶς) Sendo assim para que possa estar presente como um todo (ὅλον τὸ

39 ldquoSendo umardquo (ἓν ὄν) significa aqui ldquosendo numericamente uacutenicardquo Este sentido eacute mais

claramente explicitado em 131b1 pela expressatildeo ἓν ὂν καὶ ταὐτὸν ὅλον em que a qualificaccedilatildeo καὶ ταὐτὸν eacute acrescentada para destacar que segundo a hipoacutetese adotada uma mesma Forma uacutenica deve estar por inteiro em cada um dos muacuteltiplos participantes

40 A maior parte dos tradutores modernos leem a uacuteltima claacuteusula desta sentenccedila como ἐνεῖναι (que ela esteja) corrigindo os manuscritos antigos nos quais consta ἓν εἶναι (que seja uma) A hipoacutetese que jaacute aparece em Proacuteclus e foi ressucitada por Schleiermacher parece fazer sentido Afinal sem esta correccedilatildeo Soacutecrates estaria mudando o foco da discussatildeo e antecipando de maneira surpreendente a conclusatildeo do argumento de Parmecircnides A questatildeo contudo eacute irrelevante para validade de argumentaccedilatildeo aqui proposta uma vez que segundo nossa interpretaccedilatildeo Parmecircnides pretende demonstrar justamente a contradiccedilatildeo entre a hipoacutetese da presenccedila da Forma nas coisas (ἐνεῖναι) e a hipoacutetese de sua unidade (ἓν εἶναι)

41 ldquoSeparada de si mesmardquo (αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς) Uma vez que esta expressatildeo eacute apresentada em contraste com ἓν ὂν καὶ ταὐτὸν devemos enterder que ldquoseparar-se de si mesmordquo significa ldquomultiplicar-serdquo ldquotornar-se (numericamente) muacuteltiplordquo em oposiccedilatildeo a ldquomanter-se (numericamente) singularrdquo ou ldquoser um e o mesmordquo (ἓν ὂν καὶ ταὐτὸν)

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εἶδος) em cada uma destas coisas a Forma F deve ser ela mesma separada de si

mesma isto eacute muacuteltipla Portanto caso optemos pelo primeiro ramo do dilema da

participaccedilatildeo natildeo podemos falar de uma uacutenica Forma F pois o que temos eacute uma

diversidade de Formas Fx Fy e Fz cada uma das quais presente em um dos

objetos sensiacuteveis que participam de F

Eacute preciso notar que este argumento pressupotildee a participaccedilatildeo simultacircnea

de uma multiplicidade de coisas em uma mesma Forma Nenhuma contradiccedilatildeo

surgiria caso Soacutecrates estivesse disposto a reconhecer que a participaccedilatildeo se daacute de

maneira exclusiva com cada Forma tendo apenas um participante por vez Assim

Soacutecrates poderia participar da Forma do Homem apenas no caso de que Platatildeo

natildeo participasse no mesmo momento desta Forma Parmecircnides parece

reconhecer este fato e acrescenta a palavra ἅmicroα (simultaneamente) em sua

conclusatildeo do argumento Soacutecrates no entanto sequer considera a hipoacutetese de um

modo de participaccedilatildeo exclusivo Afinal a adoccedilatildeo de tal hipoacutetese significaria

privar as Formas de seu papel de causa universal o que tornaria a proacutepria relaccedilatildeo

de participaccedilatildeo irrelevante como explicaccedilatildeo para a diversidade de fenocircmenos do

mundo sensiacutevel

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426 Participaccedilatildeo em partes da Forma

Na tentativa de salvar a singularidade das Formas sem ter que abandonar

o caraacuteter muacuteltiplo e simultacircneo da participaccedilatildeo Soacutecrates apresenta uma analogia

uma Forma natildeo estaria separada de si mesma caso ela fosse como o dia que pode

estar em diferentes lugares sem perder sua singularidade isto eacute sem deixar de ser

um e o mesmo dia (ἡmicroέρα microία καὶ ἡ αὐτὴ)

ldquoNatildeo estaria disse ele se pelo menos como o dia que sendo um e o mesmo estaacute em muitos lugares simultaneamente e nem por isso estaacute ele mesmo separado de si mesmo se assim tambeacutem cada uma das Formas fosse uma e a mesma [estando] simultaneamente em todas as coisasrdquo Οὐκ ἄν εἴ γε φάναι οἷον [εἰ] ἡmicroέρα [εἴη] microία καὶ ἡ αὐτὴ οὖσα πολλαχοῦ ἅmicroα ἐστὶ καὶ οὐδέν τι microᾶλλον αὐτὴ αὑτῆς χωρίς ἐστιν εἰ οὕτω καὶ ἕκαστον τῶν εἰδῶν ἓν ἐν πᾶσιν ἅmicroα ταὐτὸν εἴη (131b3-6)

Parmecircnides responde propondo uma nova analogia

ldquoDe bela maneira Soacutecrates disse ele fazes uma e a mesma coisa [estar] simultaneamente em muitos lugares como se cobrindo com uma vela muitos homens dissesses ser ela inteira uma sobre muacuteltiplos Ou natildeo eacute algo deste tipo que acreditas estar dizendo Talvez disse elerdquo Ἡδέως γε φάναι ὦ Σώκρατες ἓν ταὐτὸν ἅmicroα πολλαχοῦ ποιεῖς οἷον εἰ ἱστίῳ καταπετάσας πολλοὺς ἀνθρώπους φαίης ἓν ἐπὶ πολλοῖς εἶναι ὅλον ἢ οὐ τὸ τοιοῦτον ἡγῇ λέγειν Ἴσως φάναι (131b7-c1)

Eacute comum entre os comentadores a opiniatildeo de que a metaacutefora apresentada

por Parmecircnides natildeo possui as mesmas virtudes da metaacutefora socraacutetica e que apenas

a inexperiecircncia do jovem Soacutecrates pode explicar a sua aceitaccedilatildeo da equivalecircncia

entre estas duas maneiras de entender a relaccedilatildeo entre Formas e coisas (cf Sayre

1996 p76) (cf Miller 1986 p49) Mas o que exatamente Soacutecrates poderia estar

entendendo por ldquodiardquo neste argumento Qual eacute o sentido de sua analogia e de que

maneira esta analogia poderia apresentar uma alternativa viaacutevel para compreensatildeo

da participaccedilatildeo no todo de uma Forma

A primeira opccedilatildeo eacute que Soacutecrates esteja entendo por ldquodiardquo a ldquoluz do diardquo

Neste caso a proposta de Parmecircnides eacute certamente equivalente e apenas torna

mais clara a metaacutefora socraacutetica Afinal a luz do dia possui uma natureza material

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e nada mais eacute do que uma espeacutecie de substacircncia homogecircnea que cobre

simultaneamente diferentes lugares A luminosidade do dia banha distintos

lugares exatamente como uma vela estendida sobre diversas pessoas Contudo

assim entendida a metaacutefora socraacutetica natildeo realiza o objetivo em vista do qual eacute

formulada O que Soacutecrates precisa demonstrar natildeo eacute meramente que a luz de um

mesmo dia ilumina diferentes lugares ao mesmo tempo Para que a metaacutefora

cumpra seu papel Soacutecrates precisa demonstrar como estes diferentes lugares

podem estar iluminados simultaneamente pela totalidade da luz de um mesmo

dia isto eacute como a luz do dia ldquosendo uma e a mesmardquo pode estar por inteiro em

cada um dos lugares que ilumina

A segunda opccedilatildeo de interpretaccedilatildeo para metaacutefora socraacutetica parece a

princiacutepio mais promissora Eacute possiacutevel que Soacutecrates esteja entendendo por ldquodiardquo o

periacuteodo de tempo em que esta luminosidade recobre a terra e que sendo um e o

mesmo estaria presente simultaneamente em Atenas e Esparta Neste caso a

analogia socraacutetica ldquoum dia sobre muitos lugaresrdquo possuiria o meacuterito de ressaltar a

imaterialidade das Formas o que eacute completamente perdido na analogia ldquouma vela

sobre muitas pessoasrdquo apresentada por Parmecircnides Pois quando Soacutecrates afirma

que o mesmo dia estaacute ao mesmo tempo em diferentes lugares o que ele estaacute

dizendo eacute que um mesmo intervalo de tempo ocorre simultaneamente em

lugares distintos Assim no mesmo intervalo de tempo em que Soacutecrates eacute julgado

em Atenas Lisandro se diverte em Esparta

Apesar de trivialmente correta esta segunda interpretaccedilatildeo para a analogia

do dia tampouco parece servir para os propoacutesitos de Soacutecrates Para que sua

metaacutefora lhe seja uacutetil na presente argumentaccedilatildeo Soacutecrates precisaria demonstrar

natildeo que diversas coisas acontecem simultaneamente em um mesmo dia mas que

o mesmo dia estaacute presente por inteiro em cada um dos momentos em que estas

coisas acontecem Ningueacutem negaria o fato de que um determinado momento do

dia ocorre simultaneamente em diferentes lugares Poreacutem o ponto em disputa eacute se

podemos ou natildeo entender cada um destes momentos como equivalentes agrave

totalidade de um mesmo dia Ora eacute claro que uma resposta afirmativa para esta

questatildeo seria absurda uma vez que colapsaria a totalidade de um dia em cada um

dos momentos de que eacute composto O dia entendido como um intervalo de tempo

possui duraccedilatildeo da mesma maneira que um objeto fiacutesico possui extensatildeo Sendo

assim os momentos sucessivos de um dia natildeo podem ser considerados idecircnticos agrave

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totalidade deste dia do mesmo modo que as diversas partes de um objeto extenso

natildeo satildeo idecircnticas agrave totalidade da qual fazem parte Aleacutem disso uma interpretaccedilatildeo

temporal para a metaacutefora do dia ainda estaacute sujeita agrave seguinte circularidade se

entendermos ldquosimultaneamenterdquo no seu sentido usual de ldquoao mesmo tempordquo a

analogia de Soacutecrates estaria afirmando que ldquoum mesmo intervalo de tempordquo

ocorre ldquoao mesmo tempordquo em diferentes lugares o que eacute claramente absurdo 42

O que Parmecircnides revela ao transformar a imagem de um dia sobre vaacuterios

lugares na imagem de uma vela sobre diversas pessoas eacute que ambas estas coisas (o

dia e a vela) quando consideradas com a devida atenccedilatildeo natildeo se apresentam como

entidades uacutenicas e indivisiacuteveis tal como Soacutecrates pretende fazer crer O fato de

falarmos de ldquoum diardquo como uma entidade singular natildeo nos garante que estejamos

tratando de fato de uma entidade uacutenica e indivisiacutevel Noacutes tambeacutem nos referimos

agrave ldquoguerra de Troacuteiardquo como um evento singular no entanto eacute muito claro que a

guerra de Troacuteia constitui na verdade uma seacuterie de eventos distintos Da mesma

maneira quando falamos de uma vela sobre diversas pessoas (ou diversas pessoas

sob um mesmo teto) tratamos esta vela (ou este teto) como um entidade singular

Neste caso poreacutem eacute mais faacutecil perceber que natildeo eacute a totalidade da vela que se

encontra sobre cada um dos indiviacuteduos mas apenas uma parte dela

Portanto ao formular a metaacutefora de uma vela sobre uma multiplicidade de

pessoas Parmecircnides natildeo estaacute deturpando a metaacutefora socraacutetica ou destituindo-a de

seu valor como soluccedilatildeo ao problema da participaccedilatildeo Muito pelo contraacuterio ao

reinterpretar a analogia socraacutetica Parmecircnides apenas torna evidente as

consequecircncias da proposta inicial apresentada por Soacutecrates Afirmar que uma

Forma uacutenica estaacute sobre muitas coisas equivale a afirmar que cada coisa possui

sobre si uma parte desta Forma exatamente da mesma maneira que a luz que

banha Soacutecrates pela manhatilde eacute apenas uma parte da totalidade da luz que ilumina a

Aacutetica e do mesmo modo que o momento da manhatilde em que Soacutecrates toma seu

banho de sol eacute apenas uma parte do intervalo de tempo que compotildee um dia

ldquoSeraacute entatildeo que a vela inteira estaria sobre cada um ou uma parte dela sobre um outra sobre outro Uma parte Logo Soacutecrates disse ele satildeo divisiacuteveis as Formas mesmas e as coisas que delas

42 Esta circularidade foi observada primeiramente por Allen que acaba por descartar

completamente a possibilidade da metaacutefora socraacutetica estar se referindo ao dia em seu sentido temporal (cf Allen 1997 p132)

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participam participariam de uma de suas partes e natildeo eacute mais o todo que estaria em cada uma das coisas mas sim uma parte caberia a cada coisa Parece pelo menos que eacute assim Seraacute entatildeo Soacutecrates que estaraacutes disposto a dizer que a Forma uma em verdade se nos divide e ainda seraacute uma43 De maneira alguma disse Soacutecratesrdquo Ἦ οὖν ὅλον ἐφ ἑκάστῳ τὸ ἱστίον εἴη ἄν ἢ microέρος αὐτοῦ ἄλλο ἐπ ἄλλῳ Μέρος Μεριστὰ ἄρα φάναι ὦ Σώκρατες ἔστιν αὐτὰ τὰ εἴδη καὶ τὰ microετέχοντα αὐτῶν microέρους ἂν microετέχοι καὶ οὐκέτι ἐν ἑκάστῳ ὅλον ἀλλὰ microέρος ἑκάστου ἂν εἴη Φαίνεται οὕτω γε Ἦ οὖν ἐθελήσεις ὦ Σώκρατες φάναι τὸ ἓν εἶδος ἡmicroῖν τῇ ἀληθείᾳ microερίζεσθαι καὶ ἔτι ἓν ἔσται Οὐδαmicroῶς εἰπεῖν (131c2-11)

A tentativa de oferecer uma metaacutefora como explicaccedilatildeo para a hipoacutetese da

participaccedilatildeo no todo de uma Forma apenas forccedilou Soacutecrates na direccedilatildeo do segundo

ramo do dilema Tal como uma vela estendida sobre uma multiplicidade de

indiviacuteduos a Forma se mostra agora divida por seus participantes Cada um dos

objetos sensiacuteveis que participam de uma Forma recebe como sua propriedade

imanente uma parte desta Forma Isto eacute se x e y participam da Forma F entatildeo

uma parte de F estaacute em x e uma parte de F estaacute em y Eacute preciso observar que cada

um destes objetos recebe sua propriedade imanente de maneira exclusiva Pois se

considerarmos a propriedade imanente F-em-x como idecircntica agrave propriedade

imanente F-em-y nos encontraremos novamente submetidos ao argumento do

primeiro ramo do dilema Sendo assim como resultado da adoccedilatildeo do segundo

ramo do dilema da participaccedilatildeo as Formas passam a possuir um nuacutemero de partes

igual ao nuacutemero de objetos que delas participam

Novamente o caraacuteter unitaacuterio das Formas se mostra incompatiacutevel com a

hipoacutetese de que os objetos sensiacuteveis participam nas Formas Neste caso poreacutem

natildeo eacute a singularidade numeacuterica das Formas o que eacute perdido na relaccedilatildeo com os

muacuteltiplos objetos do mundo sensiacutevel mas a uniformidade ou integridade das

Formas isto eacute sua indivisibilidade

Soacutecrates reconhece prontamente o absurdo desta conclusatildeo e se recusa a

admitir que uma Forma uacutenica possa estar dividida pelos objetos sensiacuteveis que

dela participam (τὸ ἓν εἶδος ἡmicroῖν τῇ ἀληθείᾳ microερίζεσθαι) Este resultado por si soacute

43 καὶ ἔτι ἓν ἔσται aqui ldquoser umrdquo significa ldquoser indivisiacutevelrdquo como deixa claro o contraste

estabelecido por Parmecircnides entre esta claacuteusula e o verbo microερίζεσθαι (dividir-se) Como jaacute observamos neste segundo ramo do dilema da participaccedilatildeo eacute a noccedilatildeo de integridade ou indivisibilidade das Forma que se mostra incompatiacutevel com a hipoacutetese da participaccedilatildeo

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jaacute eacute suficiente para descartar o segundo ramo do dilema e com ele a hipoacutetese de

que as coisas participam em partes das Formas A partir deste momento a reduccedilatildeo

ao absurdo operada pelo dilema jaacute estaacute realizada Segundo as premissas do

dilema soacute haacute participaccedilatildeo no todo ou em parte de uma Forma Contudo a

participaccedilatildeo no todo acaba por multiplicar as Formas e a participaccedilatildeo em partes

por dividi-las Como as Formas satildeo por definiccedilatildeo entidades singulares e

indivisiacuteveis entatildeo natildeo pode haver participaccedilatildeo nas Formas

Entretanto Parmecircnides natildeo se daacute por satisfeito com este resultado e passa

a apresentar uma seacuterie de argumentos que pretendem ilustrar as consequecircncias

absurdas agraves quais seriacuteamos levados caso aceitaacutessemos a efetiva divisatildeo das

Formas

ldquoPois vecirc disse Parmecircnides Se dividires a Grandeza mesma e se cada uma das muacuteltiplas coisas grandes for grande em virtude de uma parte da Grandeza [parte esta] menor que a Grandeza mesma seraacute que isso natildeo pareceraacute absurdo Perfeitamente disse ele Mas como Cada coisa recebendo uma parte do Igual uma [parte] pequena que eacute menor que o Igual mesmo teraacute algo com que seraacute igual ao que quer que seja Impossiacutevel E mais eacute uma parte do Pequeno que algum de noacutes teraacute e o Pequeno seraacute maior que essa parte mesma sendo esta uma parte dele e assim pois o Pequeno seraacute maior e aquilo a que for adicionada a parte subtraiacuteda seraacute menor e natildeo maior que antes Isso natildeo poderia ocorrer disse ele Ὅρα γάρ φάναι εἰ αὐτὸ τὸ microέγεθος microεριεῖς καὶ ἕκαστον τῶν πολλῶν microεγάλων microεγέθους microέρει σmicroικροτέρῳ αὐτοῦ τοῦ microεγέθους microέγα ἔσται ἆρα οὐκ ἄλογον φανεῖται Πάνυ γ ἔφη Τί δέ τοῦ ἴσου microέρος ἕκαστον σmicroικρὸν ἀπολαβόν τι ἕξει ᾧ ἐλάττονι ὄντι αὐτοῦ τοῦ ἴσου τὸ ἔχον ἴσον τῳ ἔσται Ἀδύνατον Ἀλλὰ τοῦ σmicroικροῦ microέρος τις ἡmicroῶν ἕξει τούτου δὲ αὐτοῦ τὸ σmicroικρὸν microεῖζον ἔσται ἅτε microέρους ἑαυτοῦ ὄντος καὶ οὕτω δὴ αὐτὸ τὸ σmicroικρὸν microεῖζον ἔσται ᾧ δ ἂν προστεθῇ τὸ ἀφαιρεθέν τοῦτο σmicroικρότερον ἔσται ἀλλ οὐ microεῖζον ἢ πρίν Οὐκ ἂν γένοιτο φάναι τοῦτό γε (131c12-e2)

Na tentativa de estabelecer de maneira ainda mais clara a inviabilidade do

segundo ramo do dilema da participaccedilatildeo satildeo apresentadas trecircs consequecircncias

absurdas decorrentes da hipoacutetese de que os objetos sensiacuteveis participam em partes

das Formas Segundo a argumentaccedilatildeo de Parmecircnides caso adotemos o segundo

ramo do dilema

1) Uma coisa grande seraacute grande em virtude de uma parte da

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Grandeza menor do que a Grandeza mesma e portanto seraacute grande

em virtude daquilo que eacute pequeno

2) Uma coisa igual seraacute igual em virtude de uma parte pequena da

Igualdade e portanto seraacute igual em virtude daquilo que eacute desigual

3) Se subtrairmos uma parte do Pequeno o Pequeno em si seraacute maior

do que cada uma de suas partes e portanto o Pequeno seraacute maior

Por outro lado o objeto sensiacutevel que receber uma de suas partes se

tornaraacute menor e natildeo maior em virtude desta adiccedilatildeo

Para que possamos entender o que torna estas conclusotildees inaceitaacuteveis do

ponto de vista de Soacutecrates e sua Teoria das Ideias precisamos ter em mente o

poder causal exercido pelas Formas sobre os objetos sensiacuteveis De acordo com a

teoria da causalidade defendida por Soacutecrates uma causa deve possuir a

caracteriacutestica que ela produz nas coisas Assim no Protaacutegoras (332b1) Soacutecrates

afirma que eacute ldquopela temperanccedila que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (σωφροσύνῃ

σωφρονοῦσιν) no Teeteto (145d11) que eacute ldquopela sabedoria que os saacutebios satildeo

saacutebiordquo (Σοφίᾳ δέ γ οἶmicroαι σοφοὶ οἱ σοφοί) e no Hiacuteppias Maior que eacute ldquopelo belo

que todas as coisas belas satildeo belasrdquo (Ἆρ οὖν οὐ καὶ τὰ καλὰ πάντα τῷ καλῷ ἐστι

καλά) Nestas passagens Soacutecrates faz uso do dativo instrumental para apresentar

em uma sentenccedila cuja forma eacute aparentemente tautoloacutegica aquilo que ele e seus

interlocutores tomam como uma verdade autoevidente Isto eacute que a despeito do

estatuto ontoloacutegico que estejamos dispostos a atribuir para a causa das

propriedades dos objetos sensiacuteveis eacute impossiacutevel pensar que esta causa natildeo

possua ela mesma a propriedade que produz Em paralelo a esta assunccedilatildeo

Soacutecrates e seus interlocutores tomam como autocontraditoacuteria a hipoacutetese de que

uma causa possa ser caracterizada pela propriedade oposta agravequela de que eacute causa

Pois ldquoeacute iloacutegico (ἄλογόν) [admitir] que algueacutem seja corajoso pelo medo e pela

covardiardquo (καίτοι ἄλογόν γε δέει τινὰ καὶ δειλίᾳ ἀνδρεῖον εἶναι Feacuted68d) e ldquoeacute

assombroso (τέρας) que algo grande seja grande em virtude de alguma coisa

pequenardquo (καὶ τοῦτο δὴ τέρας εἶναι τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι Feacuted101b1-

2)44

44 Para outras passagens em que Soacutecrates afirma a impossibilidade de que uma causa possa ser

caracterizada pela propriedade oposta agravequela de que eacute causa Feacuted 68d 68e 100a-b Rep335c-d Prot355d Teet 199d

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Como vimos este princiacutepio baacutesico relativo agrave noccedilatildeo de causalidade eacute

ostensivamente apresentado no Feacutedon como a razatildeo para o fato de podermos de

maneira segura oferecer as Formas como causas das propriedades dos objetos

sensiacuteveis Em Feacuted102d6-8 Soacutecrates expande estes criteacuterios para as propriedades

imanentes afirmando que ldquonatildeo apenas a Grandeza em si jamais admitiraacute ser

simultaneamente grande e pequena como tambeacutem a grandeza-em-noacutes jamais

admitiraacute a pequenezrdquo (οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ

σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν)45

No Parmecircnides (129b1-2) encontramos esta mesma alegaccedilatildeo repetida quanto

Soacutecrates desafia seus interlocutores a lhe demonstrarem que a propriedade

imanente da semelhanccedila (αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά) pode se tornar dessemelhante e a

propriedade imanente da dessemelhanccedila semelhante

Portanto de acordo com a Teoria das Ideias para que possamos dizer que

um determinado objeto sensiacutevel x eacute F eacute preciso que tanto a Forma F quanto a

propriedade imanente F-em-x sejam unicamente caracterizadas pelo predicado F

isto eacute sejam auto-predicativas e natildeo apareccedilam nunca como o contraacuterio de F

Nos argumentos 1 e 2 Parmecircnides demonstra que a adoccedilatildeo do segundo

ramo do dilema natildeo pode ser harmonizada com a hipoacutetese de que as propriedades

imanentes satildeo entidades uniformes unicamente caracterizadas pela auto-

predicaccedilatildeo e completamente isentas da predicaccedilatildeo de opostos De acordo com o

segundo ramo do dilema um objeto x eacute grande por apresentar como sua

propriedade imanente uma parte da Grandeza Contudo por ser apenas uma parte

a grandeza-em-x eacute menor do que a Grandeza em si que representa o todo do qual

a grandeza-em-x eacute uma parte Consequentemente x eacute grande em virtude de uma

propriedade imanente que eacute ela mesma pequena Da mesma maneira se um

objeto y eacute igual em virtude de uma parte do Igual menor do que o Igual em si

entatildeo y eacute igual em virtude daquilo que eacute desigual

Em 3 Parmecircnides muda o foco de sua criacutetica A propriedade imanente

pequeno-em-x considerada como uma parte do Pequeno em si eacute de fato

pequena e natildeo estaria sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos Contudo neste caso a

45 O mesmo ponto eacute reafirmado em 102e5-103a1 Eacute preciso notar que tal afirmaccedilatildeo estaacute em pleno

acordo com o papel das propriedades imanentes na soluccedilatildeo de Soacutecrates para o problema da copresenccedila de opostos Afinal admtir que uma propriedade imanente eacute caracterizada por seu oposto seria equivalente a afirmar que um mesmo elemento constituinte de Soacutecrates eacute simultaneamente grande e pequeno o que natildeo solucionaria o problema da copresenccedila de

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contradiccedilatildeo eacute encontrada na proacutepria Forma do Pequeno Pois se a Forma do

Pequeno eacute maior do que cada uma de suas partes o Pequeno em si eacute grande

Novamente nos vemos frente a uma impossibilidade loacutegica pois a causa das

coisas serem pequenas seria ela mesma grande Com relaccedilatildeo ao poder causal

exercido pela Forma do Pequeno Parmecircnides ainda acrescenta uma uacuteltima

perplexidade caso entendamos que um objeto z torna-se pequeno por adquirir a

propriedade imanente pequeno-em-z seremos obrigados a admitir que o objeto z

torna-se pequeno em virtude de uma adiccedilatildeo o que estaacute em claro desacordo com os

princiacutepios baacutesicos da matemaacutetica

As conclusotildees obtidas por Parmecircnides demonstram que a hipoacutetese da

participaccedilatildeo em partes das Formas teria como consequecircncia a predicaccedilatildeo de

opostos da Forma do Pequeno e das propriedades imanentes do grande e do igual

Consequentemente o poder causal exercido por estas trecircs Formas especiacuteficas

tornar-se-ia inexplicaacutevel uma vez que um dos princiacutepios baacutesicos da causalidade

seria violado e estas entidades estariam sujeitas ao problema da predicaccedilatildeo de

opostos para o qual deveriam servir de soluccedilatildeo

Como podemos perceber estes trecircs argumentos apresentam paradoxos

especiacuteficos relativos apenas agraves Formas do Grande do Igual e do Pequeno

fugindo portanto da generalidade encontrada na argumentaccedilatildeo de Parmecircnides ateacute

aqui Aleacutem disso estes argumentos satildeo estruturalmente desnecessaacuterios uma vez

que Soacutecrates jaacute havia admitido a inviabilidade do segundo ramo do dilema ao

concluir que seria impossiacutevel aceitar que uma Forma uacutenica possa estar dividida

por seus participantes (τὸ ἓν εἶδος microερίζεσθαι)46

Podemos nos perguntar por que Platatildeo incluiria esta descontinuidade

umas vez que os argumentos seguintes voltaratildeo a ser dirigidos contra o conjunto

de Formas em sua generalidade Minha opiniatildeo eacute que Platatildeo apresenta estes trecircs

argumentos como encerramento dos problemas relativos ao dilema da participaccedilatildeo

com o intuito de chamar a atenccedilatildeo do leitor para o tema da auto-predicaccedilatildeo das

Formas O fato de que as Formas satildeo entidades auto-predicativas estaacute diretamente

opostos

46 De fato no momento mesmo em que Soacutecrates aceita a analogia da vela oferecida por Parmecircnides o segundo ramo do dilema da participaccedilatildeo torna-se inviaacutevel Afinal o fato de Soacutecrates possuir diversas partes havia sido suficiente para concluir que ele Soacutecrates eacute muacuteltiplo Sendo assim por paridade de raciociacutenio o fato de mais de um objeto sensiacutevel participar de uma mesma Forma que estende suas diversas partes sobre estes objetos eacute suficiente para concluir a multiplicidade desta Forma

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relacionado com os paradoxos relativos agraves Formas do Grande do Igual e do

Pequeno e seraacute fundamental na compreensatildeo dos dois regressos ao infinito que

seratildeo apresentados nos proacuteximos argumentos Contudo em todos estes

argumentos a caracteriacutestica de auto-prediccedilatildeo das Formas aparece como uma

premissa pressuposta nunca textualmente expressa Portanto ao apresentar esta

seacuterie de trecircs paradoxos nos quais a auto-predicaccedilatildeo das Formas estaacute claramente

em jogo Platatildeo oferece aos leitores do Parmecircnides uma chave de leitura para a

compreensatildeo dos regressos que seratildeo apresentados em seguida

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427 A validade do dilema da participaccedilatildeo como criacutetica agrave Teoria das Ideias

O dilema da participaccedilatildeo constitui uma reduccedilatildeo ao absurdo formalmente

vaacutelida Soacutecrates havia sustentado que 1) existem Formas e 2) os objetos sensiacuteveis

participam nestas Formas O dilema apresenta duas alternativas exaustivas de

compreensatildeo para o que seria a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo e ambas se mostram

inaceitaacuteveis para Teoria das Ideias Logo o dilema da participaccedilatildeo implica na

falsidade da tese 2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis participam nas Formas Eacute

claro contudo que a validade destas duas teses eacute plenamente independente

Parmecircnides provou que a tese 2) eacute falsa a despeito do fato de que a tese 1) possa

ser verdadeira e as Formas possam ser consideradas entidades reais

No entanto desde jaacute cabe a pergunta qual seria a vantagem teoacuterica de se

admitir a existecircncia das Formas sem que fique esclarecida a natureza da relaccedilatildeo

que estas entidades mantecircm com os objetos do mundo empiacuterico Uma satisfatoacuteria

compreensatildeo para natureza da relaccedilatildeo entre Formas e coisas mostra-se essencial

para validade da hipoacutetese das Formas pois a incapacidade de elucidar o modo

especiacutefico de relacionamento entre estes dois niacuteveis distintos da realidade teria

como resultado a total irrelevacircncia da postulaccedilatildeo das Formas Isto porque

isoladas das coisas do mundo sensiacutevel as Formas passariam a representar

entidades teoricamente irrelevantes e a postulaccedilatildeo destas entidades natildeo passaria

de uma supeacuterflua duplicaccedilatildeo da realidade empiacuterica

Contudo nada disso estaraacute em jogo caso as criacuteticas de Parmecircnides

comprovem-se irrelevantes para a Teoria das Ideias ou simplesmente falaciosas

Assim na tradiccedilatildeo de comentaacuterios ao Parmecircnides diversos autores procuraram

desqualificar natildeo apenas o sentido geral da argumentaccedilatildeo parmeniacutedica sob a

alegaccedilatildeo de que suas criacuteticas natildeo passam de uma grande piada ou de um mero

exerciacutecio eriacutestico como tambeacutem cada um dos argumentos separadamente Na

tentativa de invalidar o dilema da participaccedilatildeo e salvar a Teoria das Ideias deste

primeiro conjunto de criacuteticas trecircs estrateacutegias foram adotadas pelos comentadores

A primeira estrateacutegia jaacute foi por noacutes mencionada e consiste em afirmar que o

dilema da participaccedilatildeo natildeo diz respeito agrave Teoria das Ideias socraacutetica mas a uma

outra teoria qualquer Contudo como vimos a proacutepria estrutura do Parmecircnides

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proiacutebe este tipo de interpretaccedilatildeo No Parmecircnides eacute o proacuteprio Soacutecrates quem

apresenta a Teoria das Ideias e como demonstramos esta apresentaccedilatildeo guarda

todas as caracteriacutesticas essenciais da Teoria das Ideias encontrada nos diaacutelogos da

Juventude e Fase Meacutedia Sendo assim natildeo podemos descartar a validade do

dilema da participaccedilatildeo pela simples alegaccedilatildeo de que estamos lidando com um

caso de ignoratio elenchi

Uma segunda opccedilatildeo consiste em considerar o dilema da participaccedilatildeo como

formalmente correto poreacutem materialmente falso isto eacute fundado em falsas

premissas De acordo com este tipo de interpretaccedilatildeo que remonta ao comentaacuterio

de Proacuteclus (In Parm 859-862) o sentido de ldquoparticipaccedilatildeordquo inerente agraves criacuteticas de

Parmecircnides natildeo condiz com o sentido que esta expressatildeo recebe nos outros

diaacutelogos platocircnicos em que a Teoria das Ideias eacute apresentada Assim Cornford

comentando o dilema afirma que ldquoo argumento pressupotildee que o exemplar da

Grandeza que cabe agrave participaccedilatildeo de uma coisa grande eacute uma parte da Forma

entendida como um pedaccedilo (bit) no qual a Forma eacute cortada (cut up)rdquo De acordo

com Cornford este raciociacutenio entende os conceitos de ldquoparterdquo e ldquotodordquo em seu

ldquosentido mais grosseiro e materialrdquo (Cornford 1951 p85)

Adotando a mesma linha interpretativa Sprague alega que Parmecircnides soacute

pode chegar a suas conclusotildees porque interpreta ldquoparticipaccedilatildeordquo em um sentido

fiacutesico (physical sense) Segundo Sprague ldquouma reductio ad absurdum foi

construiacuteda mas apenas por meio de uma distorccedilatildeo da dualidade essencial da

teoria [das Ideias] e da relaccedilatildeo entre estes dois tipos de entidades [relaccedilatildeo esta]

que Platatildeo procura exprimir por meio de expressotildees como ldquoestar presenterdquo e

ldquoparticiparrdquo (Sprague 1967 p96)

Portanto de acordo estes autores o dilema da participaccedilatildeo apesar de

formalmente vaacutelido natildeo se apresenta como uma criacutetica honesta agrave Teoria das

Ideias Segundo este argumento Parmecircnides estaria interpretando de maneira

errocircnea o sentido do termo ldquoparticipaccedilatildeordquo O uso dos conceitos de todoparte

maiormenor e a compreensatildeo de ldquoparticipaccedilatildeordquo como a presenccedila da Forma nos

objetos sensiacuteveis seriam evidecircncias de uma reificaccedilatildeo da realidade inteligiacutevel que

segundo estes comentadores representaria uma brutal e inaceitaacutevel distorccedilatildeo da

verdadeira posiccedilatildeo socraacutetica

Ora a primeira objeccedilatildeo que podemos oferecer a este tipo de interpretaccedilatildeo

consiste em apresentar o fato dramaacutetico de que em nenhum momento da

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discussatildeo Soacutecrates protesta contra esta suposta deformaccedilatildeo de sua teoria Quando

Parmecircnides comeccedila a formular suas criacuteticas Soacutecrates jaacute havia apresentado sua

distinccedilatildeo fundamental entre ldquoas coisas que se vecircemrdquo (τοῖς ὁρωmicroένοις ) e ldquoas

coisas apreendidas pelo raciociacuteniordquo (τοῖς λογισmicroῷ λαmicroβανοmicroένοις ) estabelecendo

claros paracircmetros de diferenciaccedilatildeo entre estes dois tipos de entidades objetos

sensiacuteveis e Formas Caso o dilema da participaccedilatildeo se apresentasse como o

resultado da mera negligecircncia desta distinccedilatildeo fundamental o mais natural seria

que Soacutecrates reafirmasse esta distinccedilatildeo e bloqueasse a argumentaccedilatildeo parmeniacutedica

desde o iniacutecio Simplesmente natildeo haacute razatildeo para acreditarmos que Platatildeo tenha

decidido representar Soacutecrates em aporia por conta de um argumento decorrente da

negligecircncia da distinccedilatildeo proposta pelo proacuteprio Soacutecrates entre entidades sensiacuteveis

e inteligiacuteveis

O dilema da participaccedilatildeo funda-se no vocabulaacuterio empregado por Soacutecrates

para descrever a relaccedilatildeo entre Formas e coisas natildeo soacute no Parmecircnides como

tambeacutem por toda fase meacutedia e inicial Segundo Soacutecrates as coisas sensiacuteveis

ldquoparticipamrdquo (metexousin metalambanousin) das Formas ou ldquocomunicam-serdquo

(koinwnou=sin koinwnian e)xousin) com elas Como resultado desta relaccedilatildeo as

coisas sensiacuteveis passam a ldquopossuirrdquo (e)xousin) ou ldquoreceberrdquo (dexontai) as Formas

As Formas por sua vez passam a ldquoestar presentesrdquo (πάρεστιν) ou a ldquoestar nasrdquo

(e)neστι) coisas Portanto ao propor que a noccedilatildeo de participaccedilatildeo soacute pode ser

entendida por meio da disjunccedilatildeo partetodo Parmecircnides estaacute oferecendo

paracircmetros baacutesicos de compreensatildeo e anaacutelise para um conceito apresentado pelo

proacuteprio Soacutecrates

Os argumentos de Parmecircnides podem inclusive ser construiacutedos

formalmente sem que uma interpretaccedilatildeo material das Formas seja de qualquer

modo pressuposta Afinal a disjunccedilatildeo partetodo se mostra como uacutenica opccedilatildeo

vaacutelida para compreensatildeo de uma relaccedilatildeo descrita como ldquoa participaccedilatildeo da

entidade x na entidade yrdquo independente do estatuto ontoloacutegico atribuiacutedo e estas

entidades Uma evidecircncia disto encontra-se no fato de que nos Elementos (I

axioma 5) Euclides lista o axioma de que ldquoo todo eacute maior do que as partesrdquo (Καὶ

τὸ ὅλον τοῦ microέρους microεῖζον [ἐστιν]) como uma ldquonoccedilatildeo comumrdquo Tais ldquonoccedilotildees

comunsrdquo (koinai e)nnoiai) satildeo definidas como princiacutepios indemonstraacuteveis

comuns a todas as ciecircncias e que portanto ultrapassam o campo da geometria e

natildeo tecircm sua validade restrita aos raciociacutenios envolvendo coisas estendidas no

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espaccedilo (cf Heath 1956 p221-222)

Sendo assim natildeo haacute porque desqualificar o dilema da participaccedilatildeo sob a

alegaccedilatildeo de que este argumento funda-se em uma ldquocoisificaccedilatildeordquo falaciosa da

hipoacutetese das Formas Os argumentos de Parmecircnides ilustram contradiccedilotildees

decorrentes de uma determinada interpretaccedilatildeo para relaccedilatildeo entre objetos

empiacutericos e Formas proposta pelo proacuteprio Soacutecrates e que natildeo estaacute diretamente

fundada na atribuiccedilatildeo de uma natureza material para as Formas mas deriva do

reconhecimento de que qualquer tipo de participaccedilatildeo deve ser entendida por meio

dos conceitos baacutesicos de parte e todo Soacutecrates havia proposto que as coisas

sensiacuteveis participam das Formas e como consequecircncia desta participaccedilatildeo

adquirem suas diversas propriedades imanentes Natildeo haacute falaacutecia alguma em se

apresentar a disjunccedilatildeo todoparte como modos exaustivos de se compreender esta

relaccedilatildeo Pois de fato estas satildeo as uacutenicas maneiras logicamente possiacuteveis de

entendermos uma relaccedilatildeo descrita deste modo

Uma terceira maneira de desqualificar a validade do dilema consiste em

alegar tal como faz David Ross (Ross 1951 p88-89) que os argumentos de

Parmecircnides baseiam-se em uma interpretaccedilatildeo literal para termos que Soacutecrates

apresenta como meras metaacuteforas Segundo este tipo de interpretaccedilatildeo Soacutecrates

estaria imune agraves criacuteticas de Parmecircnides pelo fato de natildeo se propor a definir de

maneira precisa a relaccedilatildeo entre Formas e coisas Para Ross os conceitos de

ldquoparticipaccedilatildeordquo e ldquocomunhatildeordquo satildeo apresentados por Soacutecrates como ilustraccedilotildees

aproximadas para uma relaccedilatildeo reconhecida como na verdade indescritiacutevel

Ora eacute claro que tal objeccedilatildeo sequer constitui um argumento contra a

validade do dilema parmeniacutedico A noccedilatildeo de que a relaccedilatildeo entre Formas e coisas eacute

uma relaccedilatildeo uacutenica para qual nenhuma definiccedilatildeo satisfatoacuteria pode ser apresentada eacute

conveniente apenas como uma soluccedilatildeo ad hoc para os problemas levantados por

Parmecircnides De fato esta explicaccedilatildeo pressupotildee a validade das criacuteticas de

Parmecircnides para concluir que o termo ldquoparticipaccedilatildeordquo eacute meramente metafoacuterico e

natildeo se pretende como uma definiccedilatildeo seacuteria Aleacutem disso nos vemos novamente

frente ao fato dramaacutetico de que Soacutecrates em momento algum atribui uma

natureza sui generis e indescritiacutevel para relaccedilatildeo entre Formas e coisas Em total

oposiccedilatildeo ao que esperariacuteamos caso Platatildeo desejasse indicar o caraacuteter indefiniacutevel

desta relaccedilatildeo Soacutecrates iraacute propor no decorrer do diaacutelogo maneiras alternativas de

entender o relacionamento entre Formas e coisas o que evidencia a crenccedila deste

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personagem na possibilidade de uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria para esta relaccedilatildeo De

qualquer maneira o fato de Soacutecrates propor o termo ldquoparticipaccedilatildeordquo como uma

descriccedilatildeo metafoacuterica para o relacionamento entre Formas e coisas natildeo invalida ou

deslegitima as criacuteticas de Parmecircnides Afinal mesmo uma metaacutefora deve ser

investigada quando aparece no interior de uma hipoacutetese filosoacutefica Portanto

ainda que se trate de um uso meramente ilustrativo da palavra ldquoparticipaccedilatildeordquo este

uso deve ser analisado na intenccedilatildeo de concluirmos se este termo configura-se

como uma ilustraccedilatildeo adequada para a relaccedilatildeo entre Formas e coisas ou natildeo

A confirmaccedilatildeo dramaacutetica da relevacircncia da argumentaccedilatildeo de Parmecircnides e

ainda da validade do seu dilema como uma apresentaccedilatildeo exaustiva das

possibilidades de compreensatildeo da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo encontra-se nas linhas

que encerram este estaacutegio da discussatildeo

ldquoEntatildeo de que maneira Soacutecrates disse ele as outras coisas para ti teratildeo participaccedilatildeo nas Formas natildeo podendo ter participaccedilatildeo nem quanto agrave parte nem quanto ao todo Por Zeus disse ele natildeo me parece de modo algum ser faacutecil determinar tal coisardquo Τίνα οὖν τρόπον εἰπεῖν ὦ Σώκρατες τῶν εἰδῶν σοι τὰ ἄλλα microεταλήψεται microήτε κατὰ microέρη microήτε κατὰ ὅλα microεταλαmicroβάνειν δυνάmicroενα Οὐ microὰ τὸν ∆ία φάναι οὔ microοι δοκεῖ εὔκολον εἶναι τὸ τοιοῦτον οὐδαmicroῶς διορίσασθαι (131e3-7)

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43 O Argumento do Terceiro Homem e a multiplicaccedilatildeo inf inita das Formas

Tendo terminado suas objeccedilotildees agrave noccedilatildeo de participaccedilatildeo defendida por

Soacutecrates Parmecircnides inicia uma segunda seacuterie de criacuteticas na qual seratildeo

apresentados dois casos daquilo que ficou conhecido na literatura secundaacuteria

como ldquoArgumento do Terceiro Homemrdquo A expressatildeo ldquoo terceiro homemrdquo (ὁ

τρίτος ἄνθρωπος) pode ser encontrada mais de uma vez na obra de Aristoacuteteles

(RefSof178b36 179a3 Meta990b17 1039a2-3 1059b8 1079a13) onde eacute

usada para designar um conjunto heterogecircneo de criacuteticas agrave Teoria das Ideias Em

seus comentaacuterios agrave Metafiacutesica Alexandre de Afrodiacutesia nos fornece diversos

exemplos de argumentos que receberam esta denominaccedilatildeo geneacuterica Enquanto

alguns dos exemplos descritos por Alexandre natildeo possuem qualquer relaccedilatildeo com

as criacuteticas do Parmecircnides uma de suas descriccedilotildees apresenta profunda semelhanccedila

com os dois argumentos que encontramos em nosso diaacutelogo47

ldquoSe um termo predicado verdadeiramente de uma multiplicidade de coisas existe separadamente (κεχωρισmicroένον) das coisas de que eacute predicado (hellip) entatildeo haveraacute um terceiro Homem Pois se o Homem que eacute predicado eacute diferente das coisas de que eacute predicado e possui uma existecircncia independente e se eacute predicado tanto dos indiviacuteduos quantos das Formas haveraacute um terceiro Homem ao lado dos indiviacuteduos e da Forma E do mesmo modo um quarto predicado deste terceiro da Forma e dos indiviacuteduos e um quinto e assim indefinidamente ( ἐπ ἄπειρον)rdquo εἰ τὸ κατηγορούmicroενόν τινων πλειόνων ἀληθῶς καὶ ἔστιν ἄλλο παρὰ τὰ ὧν κατηγορεῖται κεχωρισmicroένον αὐτῶν () ἀλλ εἰ τοῦτο ἔσται τις τρίτος ἄνθρωπος εἰ γὰρ ἄλλος ὁ κατηγορούmicroενος ὧν κατηγορεῖται καὶ κατ ἰδίαν ὑφεστώς κατηγορεῖται δὲ κατά τε τῶν καθ ἕκαστα καὶ κατὰ τῆς ἰδέας ὁ ἄνθρωπος ἔσται τρίτος τις ἄνθρωπος παρά τε τοὺς καθ ἕκαστα καὶ τὴν ἰδέαν οὕτως δὲ καὶ τέταρτος ὁ κατά τε τούτου καὶ τῆς ἰδέας καὶ τῶν καθ ἕκαστα κατηγορούmicroενος ὁmicroοίως δὲ καὶ πέmicroπτος καὶ τοῦτο ἐπ ἄπειρον (InMetaph 8422-8523)

Como podemos perceber o argumento descrito por Alexandre pretende a

partir do reconhecimento da existecircncia de uma uacutenica Forma de Homem gerar

uma multiplicidade indefinida (ἄπειρον) destas Formas No Parmecircnides esta

conclusatildeo seraacute usada para demonstrar mais uma vez a impossibilidade de

47 O primeiro argumento denominado de Terceiro Homem por Alexandre eacute atribuiacutedo a Eudemos

(In Metaph842-7 859-11) O segundo (847-16) eacute atribuiacutedo de maneira imprecisa a ldquosofistasrdquo O terceiro (8416-21) eacute atribuiacutedo a Polixeno um contemporacircneo de Platatildeo e o quarto agrave Aristoacuteteles (8422-8523) Destes quatro apenas o uacuteltimo deles guarda semelhanccedilas

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mantermos simultaneamente a tese da unidade das Formas e a tese de que as

Formas satildeo responsaacuteveis pelas propriedades dos objetos sensiacuteveis Por meio de

seu dilema Parmecircnides havia provado que a noccedilatildeo de participaccedilatildeo implica em

qualquer das acepccedilotildees possiacuteveis para este termo na anulaccedilatildeo da tese da unidade

das Formas Afinal entendida como uma relaccedilatildeo no todo de uma Forma a

participaccedilatildeo acarretaria na multiplicaccedilatildeo destas entidades de modo que seriacuteamos

obrigados a admitir tantas Formas de F quantas entidades sensiacuteveis possuidoras

desta propriedade Por outro lado entendida como uma relaccedilatildeo entre os muacuteltiplos

Fs sensiacuteveis e partes da Forma F a participaccedilatildeo acabaria por destruir a integridade

das Formas e cada Forma teria tantas partes quantos participantes se tornando

uma entidade internamente complexa e sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos Como

proacuteximo passo de sua demonstraccedilatildeo Parmecircnides pretende demonstrar que de

acordo com a teoria apresentada por Soacutecrates as Formas estatildeo fadadas a uma

multiplicaccedilatildeo infinita

Assim como havia feito ao introduzir o dilema da participaccedilatildeo

Parmecircnides marca muito claramente o iniacutecio de uma nova seacuterie de argumentos

ldquoPois bem E em relaccedilatildeo ao seguinte como pensas Em relaccedilatildeo a quecirc Creio que tu crecircs que cada Forma eacute uma48 pelo seguinte quando algumas coisas muacuteltiplas te parecem ser grandes talvez te pareccedila a ti que as olhas todas haver uma certa ideia49 uma e a mesma em todas donde acreditas o grande ser um Dizes a verdade [Soacutecrates] disse Mas e quanto ao Grande ele mesmo e agraves outras coisas grandes Se olhares da mesma maneira com a alma para todos esses natildeo apareceraacute de novo um Grande um em virtude do qual eacute necessaacuterio todas aquelas coisas aparecerem como grandes Parece que sim Logo uma outra Forma da Grandeza apareceraacute surgindo ao lado da Grandeza ela mesma e das coisas que destas participam E sobre todas essas [apareceraacute] de novo uma outra de modo a em virtude dela todas essas parecerem grandes E natildeo mais seraacute uma cada uma das tuas Formas mas ilimitadas em quantidaderdquo Τί δὲ δή πρὸς τόδε πῶς ἔχεις Τὸ ποῖον Οἶmicroαί σε ἐκ τοῦ τοιοῦδε ἓν ἕκαστον εἶδος οἴεσθαι εἶναι ὅταν πόλλ ἄττα microεγάλα σοι δόξῃ εἶναι microία τις ἴσως δοκεῖ ἰδέα ἡ αὐτὴ εἶναι ἐπὶ πάντα ἰδόντι ὅθεν ἓν τὸ

com o par de argumentos encontrados no Parmecircnides

48 Aqui novamente ἓν designa a unidade numeacuterica de cada Forma Compare as expressotildees ἓν ἕκαστον εἶδος com πόλλ ἄττα microεγάλα e πάντα microεγάλα usadas para descrever a multiplicidade de objetos grandes sensiacuteveis

49 Natildeo me parece claro que Soacutecrates esteja usando ἰδέα em sua acepccedilatildeo teacutecnica de Forma platocircnica nesta sentenccedila apesar desta leitura ser certamente uma opccedilatildeo viaacutevel Em funccedilatildeo desta indefiniccedilatildeo optei por deixar a palavra ldquoideiardquo sem a maiuacutescula que venho usando para designar as Formas

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microέγα ἡγῇ εἶναι Ἀληθῆ λέγεις φάναι Τί δ αὐτὸ τὸ microέγα καὶ τἆλλα τὰ microεγάλα ἐὰν ὡσαύτως τῇ ψυχῇ ἐπὶ πάντα ἴδῃς οὐχὶ ἕν τι αὖ microέγα φανεῖται ᾧ ταῦτα πάντα microεγάλα φαίνεσθαι Ἔοικεν Ἄλλο ἄρα εἶδος microεγέθους ἀναφανήσεται παρ αὐτό τε τὸ microέγεθος γεγονὸς καὶ τὰ microετέχοντα αὐτοῦ καὶ ἐπὶ τούτοις αὖ πᾶσιν ἕτερον ᾧ ταῦτα πάντα microεγάλα ἔσται καὶ οὐκέτι δὴ ἓν ἕκαστόν σοι τῶν εἰδῶν ἔσται ἀλλὰ ἄπειρα τὸ πλῆθος (131e8-132b2)

Esta primeira versatildeo do Argumento do Terceiro Homem desenvolve-se de

maneira muito claramente anaacuteloga ao argumento descrito por Alexandre Se as

coisas satildeo grandes por causa (ᾧ) da Grandeza e se paralelamente podemos

considerar a Grandeza ela mesma uma coisa grande entatildeo devemos supor a

existecircncia de uma segunda Forma da Grandeza causa da propriedade da grandeza

tanto das coisas grandes quanto da primeira Grandeza Aleacutem disso considerando

esta segunda Forma da Grandeza novamente uma coisa grande uma terceira

Forma surgiria e assim ad infinitum Portanto segundo este raciociacutenio nenhuma

Forma seria numericamente uacutenica uma vez que o proacuteprio poder causal exercido

pelas Formas seria razatildeo de sua infinita multiplicaccedilatildeo Frente a esta multiplicaccedilatildeo

indesejada das Formas Soacutecrates procura uma saiacuteda inteiramente diversa

formulando uma hipoacutetese completamente inesperada50

ldquoMas Parmecircnides disse Soacutecrates vai ver cada uma dessas Formas eacute um pensamento e natildeo lhe cabe surgir em nenhum outro lugar a natildeo ser nas almas Pois sendo assim cada uma seria uma e natildeo mais seria afetada pelo que haacute pouco foi ditordquo Ἀλλά φάναι ὦ Παρmicroενίδη τὸν Σωκράτη microὴ τῶν εἰδῶν ἕκαστον ᾖ τούτων νόηmicroα καὶ οὐδαmicroοῦ αὐτῷ προσήκῃ ἐγγίγνεσθαι ἄλλοθι ἢ ἐν ψυχαῖς οὕτω γὰρ ἂν ἕν γε ἕκαστον εἴη καὶ οὐκ ἂν ἔτι πάσχοι ἃ νυνδὴ ἐλέγετο (132b3-6)

Tendo defendido anteriormente que as Formas satildeo entidades inteligiacuteveis

isto eacute apreendidas pela razatildeo Soacutecrates procura escapar dos paradoxos de

Parmecircnides afirmando que as Formas satildeo elas mesmas pensamentos (νοήmicroατα)

Entendidas como pensamentos cada uma das Formas manteria sua unidade

caracteriacutestica e natildeo estaria em qualquer outro lugar senatildeo na alma daquele que a

percebe Eacute importante notar contudo que natildeo devemos interpretar a sugestatildeo de

50 A idiossincrasia da proposta de Soacutecrates estaacute refletida no fato de que excluindo a presente

passagem e uma citaccedilatildeo ao poema de Parmecircnides no Sofista a palavra νόηmicroα soacute aparece trecircs vezes em toda obra platocircnica e em contextos sem grande importacircncia (cf Men95e5 Banq197e5 Pol260d8)

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Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de um subjetivismo radical de acordo com o qual as

Formas deixariam de possuir um estatuto ontoloacutegico separado e passariam a ser

completamente dependentes da mente daqueles que as concebe Caso o presente

passo da argumentaccedilatildeo socraacutetica pudesse ser entendido como a transformaccedilatildeo das

Formas em meros conteuacutedos de pensamento ou produtos da atividade da mente

humana estariacuteamos frente a uma nova concepccedilatildeo de Formas certamente

problemaacutetica poreacutem completamente distinta da noccedilatildeo de Formas defendida por

Soacutecrates desde o iniacutecio da discussatildeo Neste caso a proposta de Soacutecrates

representaria muito mais o abandono total da hipoacutetese das Formas do que uma

tentativa de reformulaccedilatildeo desta hipoacutetese

Como nada no texto indica que Soacutecrates esteja rompendo por completo

com a Teoria das Ideias devemos acreditar que a proposta de compreensatildeo das

Formas como pensamentos representa apenas mais uma tentativa de manter a

unidade e integridade caracteriacutesticas destas entidades sem que permaneccedila

inviabilizada a relaccedilatildeo causal que elas mantecircm com os objetos do mundo sensiacutevel

O que Soacutecrates pretende afirmar portanto eacute que as Formas devem ser entendidas

como conceitos universais acessiacuteveis pela alma humana Assim as coisas se

relacionariam com as Formas apenas por meio do pensamento humano e

poderiacuteamos salvar a hipoacutetese da causalidade das Formas ao menos no que diz

respeito agrave nossa apreensatildeo do mundo sensiacutevel Ao mesmo tempo permaneceriam

mantidas as caracteriacutesticas ontoloacutegicas de unidade e integridade das Formas

Parmecircnides no entanto demonstra rapidamente a impossibilidade desta

proposta se todo pensamento eacute pensamento de alguma coisa (νόηmicroα hellip τινός) e

ainda eacute pensamento de alguma coisa que eacute (τινός hellip ὄντος) entatildeo a hipoacutetese de

que a relaccedilatildeo entre Formas e coisas se daacute apenas no acircmbito da mente humana eacute

insustentaacutevel e o pensamento deve novamente ser entendido como uma Forma

uacutenica sobre uma multiplicidade de coisas sensiacuteveis (εἶδος hellip ἓν εἶναι ἀεὶ ὂν τὸ

αὐτὸ ἐπὶ πᾶσιν)

Ficando restabelecido o relacionamento direto entre Formas e coisas pois

todo pensamento eacute pensamento de alguma coisa a proposta de Soacutecrates se mostra

evidentemente contraditoacuteria Afinal se as Formas satildeo pensamentos e as coisas

participam nas Formas entatildeo todas as coisas participam do pensamento e

consequentemente o pensamento estaacute em todas as coisas Ora eacute evidente que nos

dois casos contradiccedilotildees surgiriam Por um lado se todas as coisas participam do

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pensamento entatildeo todas as coisas pensam (πάντα νοεῖν) o que eacute absurdo Por

outro lado por estar presente em todas as coisas o pensamento estaria presente

em coisas que pensam como homens poreacutem tambeacutem em coisas que natildeo pensam

Neste segundo caso teriacuteamos coisas que satildeo pensamento na medida em que

possuem pensamentos em si (ἐκ νοηmicroάτων ἕκαστον εἶναι) poreacutem natildeo pensam

(νοήmicroατα ὄντα ἀνόητα εἶναι) Para usarmos um exemplo concreto se uma pedra

possui a Forma da Grandeza e esta Forma por sua vez eacute um pensamento entatildeo

ou bem temos que admitir que a pedra eacute capaz de pensar ou bem temos que

admitir que a pedra possui em si um pensamento poreacutem natildeo pensa Por fim

atraveacutes destes simples argumentos Soacutecrates eacute levado mais uma vez a reconhecer

o evidente fracasso de sua tentativa

Apesar de sua sugestatildeo anterior ter sido enunciada com certa hesitaccedilatildeo51

Soacutecrates agora se mostra bastante confiante para apresentar uma nova proposta

Ele entatildeo afirma que as Formas devem ser entendidas como paradigmas

(παραδείγmicroατα) enquanto que as coisas sensiacuteveis que delas participam devem ser

entendidas como imagens produzidas a partir das Formas (εἰκασθῆναι αὐτοῖς)

ldquoMas Parmecircnides a mim estaacute sendo evidente que o que se passa eacute antes o seguinte que estas Formas estatildeo na natureza como paradigmas e que as outras coisas se parecem com elas e satildeo semelhanccedilas delas E que essa participaccedilatildeo nas Formas para estas outras coisas natildeo vem a ser senatildeo o serem estas feitas como imagens daquelasrdquo ἀλλ ὦ Παρmicroενίδη microάλιστα ἔmicroοιγε καταφαίνεται ὧδε ἔχειν τὰ microὲν εἴδη ταῦτα ὥσπερ παραδείγmicroατα ἑστάναι ἐν τῇ φύσει τὰ δὲ ἄλλα τούτοις ἐοικέναι καὶ εἶναι ὁmicroοιώmicroατα καὶ ἡ microέθεξις αὕτη τοῖς ἄλλοις γίγνεσθαι τῶν εἰδῶν οὐκ ἄλλη τις ἢ εἰκασθῆναι αὐτοῖς (132c12-d4)

Esta uacuteltima proposta possui a aparente virtude de anunciar uma explicaccedilatildeo

completamente nova para relaccedilatildeo de participaccedilatildeo ao inveacutes de simplesmente

oferecer mais um modo de entendermos a presenccedila das Formas nas coisas Frente

a todas as criacuteticas anteriormente formuladas por Parmecircnides Soacutecrates introduz agrave

discussatildeo a possibilidade das Formas serem entendidas como modelos ou

paradigmas aos quais os objetos sensiacuteveis se assemelham Entendida desta

maneira a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo natildeo implicaria na presenccedila das Formas nas

coisas e portanto representaria uma real alternativa ao dilema formulado por

51 Compare as palavras que iniciam sua proposta anterior (Ἀλλά hellip microὴ) com as palavras usadas

para introduzir sua presente proposta (microάλιστα ἔmicroοιγε καταφαίνεται)

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Parmecircnides no iniacutecio da discussatildeo e que vem dominando o debate desde entatildeo

De acordo com a presente sugestatildeo uma Forma deve ser entendida com

um modelo enquanto os objetos sensiacuteveis seriam como as diversas coacutepias que um

artista produz a partir da contemplaccedilatildeo deste modelo Portanto segundo a

descriccedilatildeo socraacutetica participar de uma determinada Forma seria equivalente a ser

semelhante ou ser uma coacutepia desta Forma Note que a princiacutepio a relaccedilatildeo ldquoser-

semelhante-ardquo pode ser entendida como uma relaccedilatildeo assimeacutetrica Ou seja

podemos pensar casos em que x eacute semelhante a y poreacutem y natildeo eacute semelhante a x

Pense por exemplo na relaccedilatildeo estabelecida entre Soacutecrates e as diversas

representaccedilotildees graacuteficas de Soacutecrates que foram produzidas no decorrer da histoacuteria

Podemos perfeitamente conceber que todas estas representaccedilotildees se assemelham a

Soacutecrates enquanto por outro lado Soacutecrates natildeo se assemelha a nenhuma delas

Entendida desta maneira a compreensatildeo de participaccedilatildeo como semelhanccedila natildeo

daria lugar a um regresso ao infinito No entanto Parmecircnides iraacute focar sua criacutetica

na demonstraccedilatildeo de que a relaccedilatildeo de semelhanccedila pressupotildee um caraacuteter simeacutetrico

ainda que Soacutecrates natildeo esteja plenamente consciente disto

ldquoSe entatildeo algo se parece com uma Forma disse Parmecircnides eacute possiacutevel essa Forma natildeo ser semelhante agravequilo que eacute feito como sua imagem na medida em que esta foi feita semelhante a ela Ou seraacute que haacute um meio de o semelhante natildeo ser semelhante ao semelhante Natildeo haacute Mas seraacute que natildeo eacute fortemente necessaacuterio o semelhante participar da mesma coisa uma que [seu] semelhante Eacute necessaacuterio sim Aquilo de que participando as coisas semelhantes seratildeo semelhantes natildeo seraacute a Forma mesma Absolutamente sim Logo natildeo eacute possiacutevel algo ser semelhante agrave Forma nem a Forma ser semelhante a outra coisa Senatildeo ao lado da Forma sempre apareceraacute outra Forma e se esta for semelhante a algo apareceraacute de novo outra e nunca cessaraacute de surgir sempre uma nova Forma se a Forma for semelhante ao que dela participardquo Εἰ οὖν τι ἔφη ἔοικεν τῷ εἴδει οἷόν τε ἐκεῖνο τὸ εἶδος microὴ ὅmicroοιον εἶναι τῷ εἰκασθέντι καθ ὅσον αὐτῷ ἀφωmicroοιώθη ἢ ἔστι τις microηχανὴ τὸ ὅmicroοιον microὴ ὁmicroοίῳ ὅmicroοιον εἶναι Οὐκ ἔστι Τὸ δὲ ὅmicroοιον τῷ ὁmicroοίῳ ἆρ οὐ microεγάλη ἀνάγκη ἑνὸς τοῦ αὐτοῦ microετέχειν Ἀνάγκη Οὗ δ ἂν τὰ ὅmicroοια microετέχοντα ὅmicroοια ᾖ οὐκ ἐκεῖνο ἔσται αὐτὸ τὸ εἶδος Παντάπασι microὲν οὖν Οὐκ ἄρα οἷόν τέ τι τῷ εἴδει ὅmicroοιον εἶναι οὐδὲ τὸ εἶδος ἄλλῳ εἰ δὲ microή παρὰ τὸ εἶδος ἀεὶ ἄλλο ἀναφανήσεται εἶδος καὶ ἂν ἐκεῖνό τῳ ὅmicroοιον ᾖ ἕτερον αὖ καὶ οὐδέποτε παύσεται ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον ἐὰν τὸ εἶδος τῷ ἑαυτοῦ microετέχοντι ὅmicroοιον γίγνηται (132d5-133a1)

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A demonstraccedilatildeo de Parmecircnides guarda novamente profundas

similaridades com o tipo de regresso ao infinito descrito por Alexandre de

Afrodiacutesia De acordo com a proposta socraacutetica diversas coisas belas possuem a

propriedade da beleza porque satildeo semelhantes agrave Beleza ela mesma (ἔοικεν τῷ

εἴδει) Parmecircnides entatildeo argumenta que caso as muacuteltiplas coisas belas sensiacuteveis

sejam semelhantes agrave Forma da Beleza entatildeo a Forma da Beleza seraacute tambeacutem

semelhante a elas Afinal devemos pressupor que coisas semelhantes se

assemelham por compartilhar alguma propriedade em comum (τὸ ὅmicroοιον τῷ

ὁmicroοίῳ ἀνάγκη ἑνὸς τοῦ αὐτοῦ microετέχειν) em nosso exemplo a propriedade da

beleza Neste caso contudo uma nova Forma da Beleza surgiria Esta nova

Forma teria a funccedilatildeo de explicar a beleza compartilhada pelas coisas belas e pela

Beleza ela mesma (παρὰ τὸ εἶδος ἀεὶ ἄλλο ἀναφανήσεται εἶδος) Tal como

ocorrido anteriormente este processo se repetiria indefinidamente (οὐδέποτε

παύσεται ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον) e acabariacuteamos por ter que admitir a

existecircncia de uma infinidade de Formas da Beleza numericamente distintas

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431 A formalizaccedilatildeo do Argumento do Terceiro Homem

O lugar de destaque que criacuteticas agrave Teoria das Ideias envolvendo regressotildees

ao infinito receberam ainda no tempo de Platatildeo fica comprovado pelas menccedilotildees

de Aristoacuteteles a estes argumentos O comentaacuterio de Alexandre nos garante ainda

que tal posiccedilatildeo de destaque se manteacutem por todo periacuteodo heleniacutestico Apesar disso

a tradiccedilatildeo de comentaacuterios moderna iniciada na Alemanha do seacuteculo XIX parece

ter relegado este tipo de argumento agrave condiccedilatildeo de uma simples falaacutecia ou

colocando-o em peacute de igualdade aos argumentos decorrentes do dilema da

participaccedilatildeo (cf Waddell 1894 p94-95 99-100) Esta situaccedilatildeo modifica-se

completamente a partir da segunda metade do seacuteculo XX quando a publicaccedilatildeo de

um artigo de Gregory Vlastos (1955) restitui ao Argumento do Terceiro Homem

entendido agora estritamente como a demonstraccedilatildeo de uma multiplicaccedilatildeo infinita

do nuacutemero de Formas seu lugar de importacircncia em meio agraves criacuteticas agrave Teoria das

Ideias

O artigo de Vlastos possui como tema central a reconstruccedilatildeo da estrutura

loacutegica dos argumentos encontrados no Parmecircnides Como vimos anteriormente

uma leitura das passagens em que as duas versotildees do regresso estatildeo anunciadas

permite um entendimento relativamente claro do raciociacutenio envolvido Poreacutem

como o amplo debate que se seguiu agrave publicaccedilatildeo do artigo de Vlastos demonstra

a reconstruccedilatildeo precisa das premissas implicadas no argumento natildeo eacute uma tarefa

simples Afinal eacute evidente que da maneira como estatildeo formulados no

Parmecircnides os argumentos necessitam de premissas natildeo expressas para que

sejam considerados vaacutelidos De fato a uacutenica premissa explicitamente apresentada

no texto de nosso diaacutelogo tanto no argumento de 131e-132b quanto no argumento

de 132d-133a eacute aquela que afirma a partir de uma multiplicidade de coisas que

recebem um determinado predicado F a existecircncia de uma Forma F em virtude da

qual todas as coisas recebem o predicado F Esta premissa eacute chamada por Vlastos

de premissa ldquoUm sobre Muitosrdquo (UM) e eacute apresentada em seu artigo de 1955

por meio da seguinte formulaccedilatildeo

(UMv) Se vaacuterias coisas a b c satildeo todas F entatildeo deve haver uma Forma uacutenica F-

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idade em virtude da qual apreendemos a b c como F

A argumentaccedilatildeo prosseguiria da seguinte maneira A partir de uma

multiplicidade de coisas F aplicariacuteamos a premissa (UM) para gerarmos uma

Forma de F-idade Esta Forma eacute entatildeo adicionada agrave coleccedilatildeo inicial e por meio de

mais uma aplicaccedilatildeo de (UM) gerariacuteamos outra Forma Esta nova Forma eacute

adicionada agrave coleccedilatildeo anterior e a premissa (UM) eacute aplicada novamente para gerar

uma nova Forma O mesmo processo poderia ser repetido ad infinitum

Eacute muito claro contudo que a premissa (UM) por si soacute natildeo eacute capaz de

gerar o regresso previamente descrito Afinal nenhuma claacuteusula foi oferecida para

a aplicaccedilatildeo reiterada da premissa (UM) aleacutem de nada nos obrigar a considerar

que cada nova aplicaccedilatildeo de (UM) seja responsaacutevel pelo surgimento de uma nova

Forma numericamente distinta daquela que foi gerada na aplicaccedilatildeo anterior deste

mesmo princiacutepio

Em vista disto Vlastos conclui que ldquoPlatatildeo devia ter algo mais em menterdquo

(Vlastos 1955 p236) e propotildee que na condiccedilatildeo de inteacuterpretes completemos as

lacunas do texto platocircnico Assim como justificativa para reitera aplicaccedilatildeo da

premissa (UM) Vlastos propotildee a seguinte premissa adicional

(APv) F-idade eacute F

Por meio desta premissa de ldquoAuto-Predicaccedilatildeordquo (AP)52 podemos explicar a

adiccedilatildeo da Forma F-idade ao grupo de coisas a b c Afinal (AP) garante que a

Forma F-idade eacute F tal como a b c Desta maneira apoacutes cada aplicaccedilatildeo de (UM)

estariacuteamos frente a um novo conjunto de entidades (Formas e coisas) todas elas

possuidoras de um mesmo predicado F o que nos permitiria uma nova aplicaccedilatildeo

de (UM)

Por outro lado para justificar a inferecircncia de que cada aplicaccedilatildeo de (OM)

produz uma Forma inteiramente nova Vlastos propotildee a seguinte premissa

(NIv) Se x eacute F entatildeo x natildeo pode ser idecircntico a F-idade

52 Entenderei durante toda discussatildeo subsequente que (AP) implica na univocidade de aplicaccedilatildeo

do predicado F isto eacute F-idade eacute F do mesmo modo que um objeto sensiacutevel x eacute F

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Por meio da adiccedilatildeo desta segunda premissa podemos garantir a natildeo

identidade entre cada uma das Formas geradas pelas diferentes aplicaccedilotildees de

(UM) Isto porque segundo (NI) qualquer coisa que seja F em virtude da

participaccedilatildeo em uma determinada Forma natildeo pode ser idecircntica agrave Forma da qual

participa Portanto a Forma produzida pela segunda aplicaccedilatildeo de (UM) natildeo pode

ser idecircntica agrave Forma produzida pela primeira aplicaccedilatildeo de (UM) caso contraacuterio

violaria (NI) e seria idecircntica agrave Forma em virtude da qual ela mesma eacute F

A accedilatildeo conjunta destas trecircs premissas eacute capaz de gerar o regresso ao

infinito que o personagem Parmecircnides apresenta explicitamente como a conclusatildeo

de seu argumento tanto em 132b quanto em 133a Contudo conforme notado pelo

proacuteprio Vlastos as duas premissas por ele adicionadas ao texto do diaacutelogo

possuem a caracteriacutestica de serem mutuamente inconsistentes Afinal a partir de

(NI) podemos facilmente inferir que F-idade natildeo eacute F contudo isto eacute justamente o

contraditoacuterio do que afirma (AP) Vlastos no entanto permanece convencido de

que estas satildeo exatamente as premissas que devemos atribuir a Soacutecrates E em

vista disto conclui que Platatildeo natildeo estava plenamente ciente das implicaccedilotildees de

seu argumento e nos apresenta estes dois regressos como um ldquoregistro de sua

honesta perplexidaderdquo (Vlastos 1955 p254)

Diversas publicaccedilotildees se seguiram ao artigo de Vlastos muitas delas com o

claro objetivo de formular um conjunto de premissas que natildeo estivesse sujeito agrave

inconsistecircncia encontrada na proposta inicial Sellars (1955) por exemplo

observa que Vlastos havia usado a expressatildeo ldquoF-idaderdquo como um designador

direto para as Formas e como alternativa propotildee que entendamos esta expressatildeo

como uma variaacutevel sujeita agrave quantificaccedilatildeo Assim concebidas as premissas do

Argumento do Terceiro Homem receberiam a seguinte formulaccedilatildeo

(UMs) Se vaacuterias coisas satildeo F entatildeo deve haver alguma F-idade em virtude da

qual estas coisas satildeo F

(APs)Todas F-idades satildeo F

(NIs) Se x eacute F entatildeo x natildeo eacute idecircntico agrave F-idade em virtude da qual x eacute F

(Sellars 1955 p418-419)

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Estas trecircs premissas satildeo de fato mutuamente consistentes aleacutem de serem

capazes de gerar o regresso ao infinito necessaacuterio para conclusatildeo dos argumentos

No entanto segundo Vlastos (1969) a formulaccedilatildeo proposta por Sellars para a

premissa (UMs) natildeo corresponde ao que encontramos no texto do Parmecircnides

Afinal em nosso diaacutelogo estaacute explicitamente afirmado que uma uacutenica Forma eacute

gerada a partir de uma determinada multiplicidade de coisas F (microία τις ἰδέα ἡ αὐτὴ

εἶναι ἐπὶ πάντα) enquanto a formulaccedilatildeo de Sellars faz uso de um quantificador

existencial ordinaacuterio cujo sentido deve ser entendido como ldquopelo menos uma

Formardquo

Concluindo que nenhuma formulaccedilatildeo de (UM) poderia estar correta sem

respeitar a singularidade implicada no raciociacutenio platocircnico Vlastos oferece uma

revisatildeo de seu conjunto de premissas

(UMv) Se qualquer conjunto de coisas compartilha uma mesma caracteriacutestica

entatildeo existe uma uacutenica Forma correspondente a esta caracteriacutestica e cada uma

destas coisas possui esta caracteriacutestica por participar nesta Forma

(APv) A Forma correspondente a uma determinada caracteriacutestica possui ela

mesma esta caracteriacutestica

(NIv) Se qualquer coisa possui uma determinada caracteriacutestica por participar em

uma Forma entatildeo esta coisa natildeo eacute idecircntica a esta Forma

(Vlastos 1969 p348-351)

Nesta nova formulaccedilatildeo do Argumento do Terceiro Homem natildeo haacute conflito

entre (AP) e (NI) Contudo se tomarmos as trecircs premissas em conjunto vemos

surgir uma nova inconsistecircncia Pois suponha que haacute uma seacuterie de coisas

possuidoras de uma mesma caracteriacutestica F entatildeo de acordo com (UMv) haveraacute

uma uacutenica Forma F correspondente agrave caracteriacutestica F Esta Forma por sua vez

possuiraacute ela mesma a caracteriacutestica F (APv) e compartilharaacute esta caracteriacutestica

com seus participantes No entanto por compartilhar de uma mesma caracteriacutestica

F a Forma F necessariamente participaria da Forma correspondente a esta

caracteriacutestica (UMv) Ora esta Forma eacute a proacutepria Forma F e portanto a Forma F

participaria de si mesma o que contradiz a premissa (Niv) A nova proposta de

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Vlastos resolveu a inconsistecircncia entre (NI) e (AP) apenas para criar outra

inconsistecircncia agora envolvendo as trecircs premissas do argumento

O problema de termos um conjunto inconsistente de premissas eacute que neste

caso o regresso ao infinito eacute gerado trivialmente isto eacute qualquer conjunto

inconsistente de premissas seria suficiente para gerar o regresso assim como o

mesmo conjunto de premissas poderia ser usado para gerar qualquer conclusatildeo na

medida em que ex falso sequitur quodlibet Assim entendido portanto o

argumento natildeo constituiria uma criacutetica vaacutelida agrave Teoria das Ideias e representaria

apenas uma evidecircncia indireta da contradiccedilatildeo inerente agraves premissas desta teoria

Surpreendentemente Vlastos acolhe esta particularidade de sua

interpretaccedilatildeo E mesmo em seus artigos posteriores continua mantendo a opiniatildeo

de que ambos os regressos apresentados no Parmecircnides satildeo muito mais

expressotildees imprecisas da perplexidade de Platatildeo do que argumentos vaacutelidos e

criacuteticas relevantes agrave sua concepccedilatildeo de Formas Assim Vlastos conclui que o

resultado da multiplicaccedilatildeo infinita do nuacutemero de Formas natildeo passa de ldquoum mero

bocircnus (hellip) adicionado somente pelo seu efeito retoacutericordquo (Vlastos 1969 p352)

Este tipo de interpretaccedilatildeo no entanto natildeo parece estar de acordo com o

texto de nosso diaacutelogo Em primeiro lugar teriacuteamos que menosprezar o fato de

que o texto claramente afirma a produccedilatildeo de um regresso ao infinito como o

resultado de ambos os argumentos apresentados por Parmecircnides (οὐκέτι δὴ ἓν

ἕκαστόν σοι τῶν εἰδῶν ἔσται ἀλλὰ ἄπειρα τὸ πλῆθος 132b2 οὐδέποτε παύσεται

ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον 133a1) e segundo Vlastos este resultado seria

apenas um acreacutescimo retoacuterico A multiplicaccedilatildeo infinita do nuacutemero de Formas estaacute

de pleno acordo com a estrutura geral das criacuteticas de Parmecircnides que como jaacute

sabemos concentram-se em demonstrar a impossibilidade das Formas manterem

sua unidade (numeacuterica e aspectual) ao mesmo tempo em que satildeo causas das

propriedades dos objetos sensiacuteveis

Em segundo lugar aceitar a sugestatildeo de que o conjunto de premissas

envolvido em nossos argumentos eacute inevitavelmente inconsistente equivale a

afirmar que Platatildeo representa o personagem Parmecircnides propondo criacuteticas

confusas nas quais a conclusatildeo natildeo se segue das premissas Esta admissatildeo

entretanto tornaria este par de argumentos completamente desviante agrave estrutura de

argumentaccedilatildeo que identificamos em nosso diaacutelogo Pois ateacute aqui toda seacuterie de

argumentos demonstrou possuir rigor loacutegico Devemos portanto buscar um

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conjunto consistente de premissas para nossos argumentos de modo a tornaacute-los

vaacutelidos e condizentes com a estrutura dramaacutetica que identificamos ateacute o presente

momento da discussatildeo

De fato diversos autores se dedicaram agrave tarefa de construir um conjunto

consistente de premissas para estes argumentos Como ficou comprovado a

formulaccedilatildeo deste conjunto depende da possibilidade de usarmos quantificaccedilotildees de

segunda ordem sobretudo se pretendemos manter a claacuteusula de singularidade em

(UM) defendida por Vlastos (cf Cohen 1971 p448-475) (cf Mignucci 1990)

Isto eacute precisariacuteamos usar variaacuteveis natildeo apenas sobre Formas e coisas mas

tambeacutem sobre funccedilotildees e conjuntos de Formas e coisas para mantermos a correccedilatildeo

do argumento sem abrir matildeo da formulaccedilatildeo singular de (UM) proposta por

Vlastos53

Formulaccedilotildees envolvendo um aparato loacutegico muito complexo no entanto

possuem a desvantagem de se distanciarem demais de um argumento apresentado

em linguagem relativamente simples E ainda estatildeo sujeitas agrave criacutetica de que

Platatildeo natildeo poderia ter pensado nestes termos na medida em que tais categorias

ainda natildeo faziam parte das anaacutelises loacutegicas disponiacuteveis em seu tempo

Devemos lembrar contudo que o conjunto de premissas apresentado por

Sellars (1955) jaacute possuiacutea o caraacuteter de ser consistente e gerar de maneira vaacutelida a

conclusatildeo expressamente apresentada por Parmecircnides Este conjunto havia sido

descartado por Vlastos com base em uma argumentaccedilatildeo puramente textual De

acordo Vlastos (1969) a formulaccedilatildeo do princiacutepio (UMs) natildeo faria jus agrave fala de

Parmecircnides em 132a2 Pois nesta sentenccedila estaria expressamente afirmado que

uma uacutenica Forma F pode ser gerada a partir de um conjunto qualquer de coisas F

(microία τις ἰδέα ἡ αὐτὴ εἶναι ἐπὶ πάντα) enquanto a formulaccedilatildeo de Sellars faz

menccedilatildeo a ldquoalguma Formardquo

A criacutetica de Vlastos se desenvolve da seguinte maneira em 132a1 a

expressatildeo ldquocada uma Formardquo (ἓν ἕκαστον εἶδος) estaacute apresentada em oposiccedilatildeo agrave

ldquoilimitadas em quantidadesrdquo (ἄπειρα τὸ πλῆθος 132b2) De maneira a manter esta

oposiccedilatildeo devemos entender ldquouma Formardquo como equivalente a ldquoapenas uma

53 Cohen em ldquoThe Logic of the Third Manrdquo (1971) constroacutei usando quantificaccedilotildees de segunda

ordem um conjunto consistente de premissas com base em uma analogia com os postulados de Peano e a derivaccedilatildeo da sequecircncia de nuacutemeros racionais Mignucci (1990) tambeacutem propotildee um conjunto consistente de premissas capazes de gerar o regresso desejado poreacutem novamente com base em um instrumental da loacutegica de segunda ordem

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Formardquo Portanto alega Vlastos o mesmo sentido deve ser atribuiacutedo agrave expressatildeo

ldquouma certa ideiardquo (microία τις ἰδέα) em 132a2 Assim o que Parmecircnides estaria

dizendo eacute que deve haver uma uacutenica Forma capaz de explicar porque toda e

qualquer coisa F recebe este predicado Como consequecircncia Vlastos afirma que

devemos incluir uma claacuteusula de singularidade na formulaccedilatildeo de (UM) a despeito

da correccedilatildeo loacutegica do argumento (Vlastos 1969 p354-355)

A pergunta que devemos fazer eacute se a interpretaccedilatildeo de Vlastos para a

expressatildeo microία τις ἰδέα eacute a uacutenica possiacutevel Na realidade como o proacuteprio Vlastos

afirma a oposiccedilatildeo necessaacuteria entre ldquouma Formardquo e ldquomuacuteltiplas Formasrdquo estaacute

estabelecida pelo contraste entre as expressotildees ἓν ἕκαστον εἶδος e ἄπειρα τὸ

πλῆθος Portanto o sentido geral de nosso argumento que pretende gerar uma

infinidade de Formas como maneira de contradizer a tese socraacutetica da

singularidade destas entidades jaacute estaacute garantido de antematildeo a despeito de como

entendamos a expressatildeo microία τις ἰδέα A razatildeo principal oferecida por Vlastos para

a leitura estritamente singular de microία τις ἰδέα estaacute no fato de que esta expressatildeo

encontra-se localizada entre ἓν ἕκαστον εἶδος (132a1) e ἓν τὸ microέγα (132a3) e

sendo assim devemos entender que as trecircs foacutermulas expressam por proximidade

e analogia exatamente a mesma tese

Ora podemos concordar que tanto em (132a1) quanto (132a3) o termo ἓν

significa ldquoapenas umardquo Contudo disto natildeo se segue que o termo microία em microία τις

ἰδέα ἡ αὐτὴ εἶναι possui o mesmo significado Em (132a1) e (132a3) o termo ἓν

aparece como um predicado enquanto o termo microία eacute um adjetivo do sujeito ἰδέα

na expressatildeo controversa Haacute uma grande diferenccedila entre se dizer que ldquox eacute umrdquo e

se dizer que ldquoum x eacute Frdquo Mesmo se no primeiro caso podemos afirmar que ldquoumrdquo

equivale a ldquoapenas umrdquo natildeo temos razotildees suficiente para afirmar que no segundo

caso ldquoumrdquo natildeo possa estar significando ldquopelo menos umrdquo Por possuiacuterem funccedilotildees

sintaacuteticas distintas os termos ἓν e microία podem ter significados distintos sem que o

texto seja considerado contraditoacuterio ou obscuro

Frente agrave validade da leitura de 132a2 como (UMs) podemos considerar o

conjunto de premissas apresentado por Sellars (Sellars 1955 p418-419) como

uma formalizaccedilatildeo adequada para os pressupostos envolvidos no Argumento do

Terceiro Homem Esta formalizaccedilatildeo possui a virtude de tornar os argumentos

apresentados pelo personagem Parmecircnides vaacutelidos ao mesmo tempo em que

apresenta premissas plausiacuteveis e facilmente identificaacuteveis na argumentaccedilatildeo

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desenvolvida por Soacutecrates Adotando o conjunto de premissas apresentado por

Sellars o raciociacutenio por traacutes dos argumentos de Parmecircnides poderia ser

esquematizado da seguinte maneira

Para o argumento de 131e-132b

1) A partir de uma multiplicidade a b c de coisas grandes

afirmamos a existecircncia da Forma do Grande (UMs)

2) A Forma do Grande eacute incluiacuteda no conjunto de coisas grandes

(APs)

3) A Forma do Grande natildeo pode ser grande em virtude de si mesma

(NIs)

4) Logo o conjunto de coisas grandes a b c Forma do Grande natildeo

pode ser considerado grande em virtude da Forma do Grande e

precisamos afirmar a existecircncia de uma nova Forma Grande2

(UMs)

5) A Forma do Grande2 eacute incluiacuteda no conjunto de coisas grandes

(APs)

6) A Forma do Grande2 natildeo pode ser grande em virtude de si mesma

(NIs)

7) Logo o conjunto de coisas grandes a b c Forma do Grande

Forma do Grande2 natildeo pode ser considerado grande em virtude

da Forma do Grande2 e precisamos afirmar a existecircncia de uma

nova Forma Grande3 (UMs)

etc

Para o argumento de 132d-133a

1) Diversas coisas a b c satildeo F em virtude de serem semelhantes agrave

Forma F (UMs)

2) a b c satildeo semelhantes agrave Forma F por compartilharem com esta

Forma a propriedade de serem F (APs)

3) A Forma F natildeo pode ser F em virtude de ser semelhante a si

mesma (NIs)

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4) Logo o conjunto a b c Forma F natildeo pode ser considerado F em

virtude de cada um de seus membros ser semelhante agrave Forma F e

precisamos afirmar a existecircncia de uma nova Forma F2 (UMs)

5) a b c Forma F satildeo semelhantes agrave Forma F2 por compartilharem

com esta Forma a propriedade de serem F (APs)

6) A Forma F2 natildeo pode ser F em virtude de ser semelhante a si

mesma (NIs)

7) Logo o conjunto a b c Forma F Forma F2 natildeo pode ser

considerado F em virtude de cada um de seus membros ser

semelhante agrave Forma F2 e precisamos afirmar a existecircncia de uma

nova Forma F3 (UMs)

etc

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432 A auto-predicaccedilatildeo das Formas

Fazendo uso dos dois regressos acima descritos Parmecircnides eacute capaz de

mais uma vez demonstrar a impossibilidade de serem mantidas simultaneamente

a tese do poder causal das Formas e a tese de que as Formas satildeo entidades uacutenicas

Eacute evidente contudo que os regressos apresentados por Parmecircnides soacute podem ser

considerados legiacutetimas criacuteticas agrave teoria socraacutetica caso as trecircs premissas em que

estes argumentos estatildeo baseados sejam de fato adotadas por Soacutecrates

Se olharmos para as trecircs assunccedilotildees necessaacuterias para a validade do

Argumento do Terceiro Homem podemos reconhecer que duas delas satildeo muito

evidentemente defendidas por Soacutecrates A premissa (UM) por exemplo formaliza

o poder causal atribuiacutedo agraves Formas pela Teoria das Ideias Como vimos uma das

hipoacuteteses centrais da teoria defendida por Soacutecrates desde os primeiros diaacutelogos

afirma que os objetos sensiacuteveis adquirem suas propriedades por meio da

participaccedilatildeo nas Formas De fato em Repuacuteblica 596a6-7 Soacutecrates trata como

parte de seu ldquomeacutetodo habitualrdquo (εἰωθυίας microεθόδου) afirmar a existecircncia (τίθεσθαι)

de uma uacutenica Forma para ldquocada conjunto de muacuteltiplas coisas agraves quais atribuiacutemos

um mesmo nomerdquo (ἕκαστα τὰ πολλά οἷς ταὐτὸν ὄνοmicroα ἐπιφέροmicroεν)54 Da mesma

maneira a premissa (NI) natildeo passa de uma implicaccedilatildeo direta da tese socraacutetica

segundo a qual as Formas satildeo entidades separadas Como sabemos a separaccedilatildeo

das Formas equivale agrave afirmaccedilatildeo da independecircncia ontoloacutegica destas entidades

que natildeo necessitam dos objetos sensiacuteveis para existirem Ora da afirmaccedilatildeo de que

as Formas satildeo entidades ontologicamente independentes dos objetos que delas

participam segue-se (NI) ldquoSe qualquer coisa possui uma determinada

caracteriacutestica por participar em uma Forma entatildeo esta coisa natildeo eacute idecircntica a esta

Formardquo

A premissa (AP) contudo foi alvo de grande controversa e diversos

comentadores contestam sua legitimidade como parte da Teoria das Ideias Estes

comentadores tecircm que lidar com o fato de que Soacutecrates em diversos diaacutelogos faz

54 Note que na formulaccedilatildeo socraacutetica de (UM) em Repuacuteblica 596a6-7 εἶδος τι ἓν ἕκαστον estaacute em

oposiccedilatildeo a ἕκαστα τὰ πολλά o que natildeo inviabiliza a leitura de Sellars Na reconstruccedilatildeo acima proposta por exemplo cada conjunto de muacuteltiplas coisas ( ἕκαστα τὰ πολλά) corresponde a uma uacutenica Forma (εἶδος τι ἓν ἕκαστον) apesar dos elementos envolvidos participarem de mais de um conjunto e portanto terem mais de uma Forma como causa de suas propriedades

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afirmaccedilotildees na forma ldquoa F-idade eacute Frdquo No Hippiacuteas Maior (292e) por exemplo

Soacutecrates afirma que ldquoo Belo eacute sempre belordquo (ἀεὶ γάρ που τό γε καλὸν καλόν) No

Protaacutegoras (330c-e) explica que se existe alguma coisa chamada ldquoJusticcedilardquo ou

ldquoPiedaderdquo entatildeo a Justiccedila eacute necessariamente justa (ἡ δικαιοσύνη οἷον δίκαιον

εἶναι) e a Piedade pia (αὐτή γε ἡ ὁσιότης ὅσιον) Aleacutem disso no Banquete (210e-

211b) a Forma do Belo eacute claramente apresentada como algo belo Na realidade

como vimos o Belo ele mesmo eacute sempre belo (microονοειδὲς ἀεὶ ὄν) em contraste

com os objetos belos sensiacuteveis que satildeo belos em determinadas relaccedilotildees poreacutem

natildeo em outras (τῇ microὲν καλόν τῇ δ αἰσχρόν τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ etc) Aleacutem

disso atraveacutes do Feacutedon sabemos que Soacutecrates adota uma compreensatildeo da relaccedilatildeo

de causalidade segundo a qual uma Forma deve possuir a propriedade de que eacute

causa nos objetos sensiacuteveis

Frente a todas estas evidecircncias os comentadores adotam basicamente duas

estrateacutegias para negar que estas afirmaccedilotildees possam representar o

comprometimento de Soacutecrates com (AP) De acordo com um primeiro grupo de

inteacuterpretes as asserccedilotildees socraacuteticas na forma ldquoA F-idade eacute Frdquo ou ldquoo F ele mesmo eacute

Frdquo natildeo devem ser entendidas como oferecendo uma descriccedilatildeo ou caracterizaccedilatildeo

da Forma de F Isto eacute tais sentenccedilas seriam apenas aparentes exemplos de

predicaccedilatildeo Na realidade contudo natildeo teriam a funccedilatildeo de atribuir o predicado F agrave

Forma que ocupa o lugar de sujeito da sentenccedila Deste modo natildeo poderiam

representar ldquoauto-predicaccedilotildeesrdquo na medida em que sequer seriam casos de

predicaccedilatildeo A segunda estrateacutegia adotada pelos comentadores para negar que

Soacutecrates esteja comprometido com (AP) consiste em afirmar que apesar de

verdadeiras predicaccedilotildees sentenccedilas na forma ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo podem ser

equiparadas a sentenccedilas na forma ldquox eacute Frdquo em que x corresponde a uma entidade

sensiacutevel Teriacuteamos assim dois tipos distintos de predicaccedilatildeo a Forma F eacute F

poreacutem de um modo completamente diferente da coisa x ser F Natildeo havendo

uniformidade na maneira em que estes dois tipos de entidades recebem seus

predicados natildeo estaria justificada a inclusatildeo de F-idade no conjunto de coisas (a

b c) e o regresso estaria bloqueado em seu primeiro passo

Cada uma destas duas estrateacutegias baacutesicas de negar a validade de (AP) foi

defendida por mais de um argumento Portanto trataremos delas separadamente a

comeccedilar pelos comentadores que afirmam o primeiro tipo de abordagem segundo

o qual as sentenccedilas na forma ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo representam tentativas de

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descriccedilotildees das Formas e portanto natildeo satildeo legiacutetimas predicaccedilotildees

Reginald Allen (1960) baseia-se nas noccedilotildees de eponiacutemia e homoniacutemia

para afirmar que quando Soacutecrates chama uma determinada Forma F de F ele natildeo

estaacute propriamente atribuindo a esta Forma a caracteriacutestica de ser-F Segundo

Allen nas sentenccedilas do tipo ldquox eacute Frdquo em que particulares ocupam o lugar do

sujeito o predicado F estaacute normalmente descrevendo ou classificando o sujeito x

Contudo nas sentenccedilas auto-predicativas em que uma Forma estaacute ocupando o

lugar do sujeito o termo F possui uma funccedilatildeo completamente distinta e deve ser

entendido como um nome proacuteprio Allen faz uso de duas passagens no Feacutedon para

defender sua teoria Na primeira delas (78e1) Soacutecrates afirma que os objetos

sensiacuteveis satildeo homocircnimos (ὁmicroωνύmicroων) das Formas Enquanto na segunda

passagem (102b) oferece a explicaccedilatildeo de que as coisas sensiacuteveis ldquorecebem os

nomes das Formas em que participamrdquo (τἆλλα microεταλαmicroβάνοντα αὐτῶν τούτων

τὴν ἐπωνυmicroίαν ἴσχειν)

De acordo com Allen (1960 p45) estas duas passagens seriam suficientes

para afirmarmos que segundo a teoria defendida por Soacutecrates toda sentenccedila na

estrutura sujeito-predicado natildeo passa de uma reproduccedilatildeo por homoniacutemia das

relaccedilotildees entre Formas e coisas Isto eacute estas poucas linhas seriam evidecircncia

suficiente para atribuirmos a Soacutecrates uma teoria da significaccedilatildeo em que toda

predicaccedilatildeo ficaria reduzida a uma anaacutelise das relaccedilotildees de designaccedilatildeo atraveacutes de

nomes Assim em virtude da participaccedilatildeo na Forma F os objetos sensiacuteveis

recebem o nome desta Forma com uma de suas designaccedilotildees ganhando o direito

de serem verdadeiramente chamados de F

Apesar do iacutenfimo apoio textual oferecido como suporte para a atribuiccedilatildeo

de uma teoria da linguagem tatildeo extravagante a Soacutecrates Allen distingue em

seguida dois modos de designaccedilatildeo Um nome possuiria uma designaccedilatildeo

primaacuteria quando aplicado a uma Forma e uma designaccedilatildeo secundaacuteria quando

aplicado aos objetos sensiacuteveis Em sua designaccedilatildeo primaacuteria o termo F seria usado

como um nome proacuteprio que identifica a Forma F poreacutem natildeo a descreve A

relaccedilatildeo de designaccedilatildeo secundaacuteria por outro lado seria essencialmente derivativa

e atribuiria a uma entidade sensiacutevel um nome que lhe pertence apenas

indiretamente devido agrave relaccedilatildeo de homoniacutemia que esta entidade manteacutem com

uma Forma

Aceitando a explicaccedilatildeo de Allen somos obrigados a reconhecer que

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sentenccedilas do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo servem para descrever a F-idade uma vez

que o termo F natildeo passa de um mais um nome desta Forma Assim todo caso de

aparente auto-predicaccedilatildeo das Formas natildeo passaria de uma tautologia entre

sinocircnimos e natildeo afirmaria nada aleacutem da identidade da Forma F com ela mesma Eacute

evidente que neste caso a foacutermula ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo constituiria uma legiacutetima

predicaccedilatildeo e portanto natildeo poderia ser usada como evidecircncia do

comprometimento de Soacutecrates com (AP)

O maior problema da interpretaccedilatildeo de Allen eacute que os poucos textos por ele

apresentados natildeo parecem oferecer o suporte necessaacuterio para sua caracterizaccedilatildeo

da concepccedilatildeo socraacutetica de predicaccedilatildeo como designaccedilatildeo Segundo Allen as coisas

sensiacuteveis recebem os nomes das Formas No entanto se analisarmos as passagens

do Feacutedon citadas por Allen assim como a passagem do proacuteprio Parmecircnides em

que a noccedilatildeo de eponiacutemia eacute evocada veremos que em nenhuma delas eacute possiacutevel

encontrar o termo F como um nome para as Formas Em Feacutedon 102b-c Soacutecrates

menciona a Grandeza (microέγεθος) e a Pequenez (σmicroικρότητα) como nomes de

Formas No Parmecircnides aparecem ainda os termos Igualdade (ὁmicroοιότητος) e

Justiccedila (δικαιοσύνης) Ora todas estas passagens mencionam apenas substantivos

abstratos (F-idade) como designadores diretos das Formas Uma anaacutelise

tautoloacutegica para sentenccedilas auto-predicativas no entanto depende que as Formas

sejam designadas natildeo soacute como F-idade mas tambeacutem como F Sem uma afirmaccedilatildeo

expliacutecita de que o termo F pode servir como um nome para as Formas natildeo temos

como derivar uma identidade a partir da sentenccedila ldquoF-idade eacute Frdquo

A outra passagem apresentada por Allen (Feacuted78e) na qual se afirma a

homoniacutemia entre Formas e coisas tampouco apresenta F como uma designaccedilatildeo

primaacuteria das Formas Nesta passagem as designaccedilotildees citadas para as Formas satildeo

o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) e o Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

Novamente natildeo temos o termo desejado apenas a expressatildeo ldquoo F ele mesmordquo

(αὐτὸ τὸ F) Tal como no caso da eponiacutemia para que sentenccedilas auto-predicativas

envolvendo Formas ficassem seguramente estabelecidas como tautologias

precisariacuteamos que aleacutem de ldquoF-idaderdquo e ldquoo F ele mesmordquo o proacuteprio termo F

servisse como nome para as Formas Contudo natildeo eacute isso que encontramos em

qualquer dos textos apresentados por Allen55

55 Como reconhece Malcolm quem primeiro formulou este tipo de objeccedilatildeo a Allen outros textos

apresentam o termo F como nome da Forma F-idade por exemplo Eut10d Fed76d

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De fato mesmo se nas passagens elencadas por Allen o termo F fosse

apresentado como um designador direto da Forma F-idade natildeo teriacuteamos razotildees

suficientes para descartar por completo a possibilidade de (AP) representar um

real princiacutepio da Teoria das Ideias Afinal natildeo eacute apenas nos contextos de

homoniacutemia e eponiacutemia mencionados por Allen que Soacutecrates descreve uma Forma

como possuidora da propriedade de que eacute causa nos objetos sensiacuteveis Considere

por exemplo a Forma do Belo no Banquete Como vimos neste diaacutelogo a Forma

do Belo eacute caracterizada como ldquoalgo maravilhosamente belo por naturezardquo (τι

θαυmicroαστὸν τὴν φύσιν καλόν) sem que seja feita qualquer menccedilatildeo a questotildees de

homoniacutemia ou relaccedilotildees de significado Mesmo que a anaacutelise de Allen nos

fornecesse uma interpretaccedilatildeo vaacutelida para a teoria socraacutetica da predicaccedilatildeo

passagens como esta do Banquete (210e-211b) ainda poderiam ser usadas para

comprometer Soacutecrates com (AP) Afinal como poderiacuteamos explicar a doutrina de

que o Belo eacute o objeto maior de desejo eroacutetico por ser sempre belo (microονοειδὲς ἀεὶ

ὄν) Segundo Allen isto seria equivalente a afirmarmos que o Belo eacute o objeto

maior de desejo eroacutetico por ser sempre igual a ele mesmo Tal afirmaccedilatildeo

contudo eacute claramente insustentaacutevel uma vez que cada coisa eacute sempre igual a ela

mesma e portanto todas elas seriam o objeto maior de desejo eroacutetico

Este uacuteltimo tipo de objeccedilatildeo se estende a todos aqueles que pretendem

interpretar sentenccedilas do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo como casos de identidade a despeito

de aceitarem a anaacutelise de predicaccedilotildees como relaccedilotildees de homoniacutemia proposta por

Allen Cherniss (1957) o primeiro a propor que devemos entender sentenccedilas auto-

predicativas envolvendo Formas como casos de identidade distingue entre ter F e

ser F Segundo Cherniss enquanto os objetos sensiacuteveis tecircm uma propriedade F

em virtude de sua participaccedilatildeo na Forma F a F-idade eacute a propriedade F Assim

somente em sentenccedilas contendo particulares sensiacuteveis como sujeitos o predicado

estaria fornecendo uma descriccedilatildeo do sujeito em questatildeo Em sentenccedilas na forma

ldquoa F-idade eacute Frdquo por outro lado teriacuteamos uma afirmaccedilatildeo de identidade e natildeo uma

predicaccedilatildeo ordinaacuteria

Ora a primeira coisa que devemos notar eacute que nada na anaacutelise de Cherniss

proiacutebe que a F-idade possa ser F e simultaneamente ter F como um legiacutetimo

Sof255a No entanto na medida em que toda teoria de Allen jaacute possui escasso apoio textual podemos considerar o fato de que o termo F natildeo aparece como um designador das Formas nas passagens por ele apresentadas como uma evidecircncia contra sua interpretaccedilatildeo (cf Malcolm

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predicado E caso Cherniss argumente que soacute eacute possiacutevel ter uma propriedade em

virtude da participaccedilatildeo em uma Forma podemos coerentemente responder que ou

bem F-idade tem F por participar de si mesma ou bem precisariacuteamos de uma

segunda Forma F-idade para explicar a propriedade F que F-idade tem

Estariacuteamos assim novamente no caso de decidir sobre a validade de (AP)

mesmo aceitando a anaacutelise de Cherniss que a princiacutepio deveria servir de soluccedilatildeo

para este dilema Aleacutem disso considerando que Cherniss venha a negar

completamente a possibilidade de uma Forma F ter a propriedade F e mantenha

que toda sentenccedila do tipo ldquoA F-idade eacute Frdquo deve ser entendia como uma predicaccedilatildeo

de identidade algumas afirmaccedilotildees de Soacutecrates resultariam em inaceitaacuteveis contra-

sensos Considere por exemplo o que fala Soacutecrates em Feacutedon 100c4-6

ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute bela (εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν56) aleacutem do Belo ele mesmo (πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o restordquo φαίνεται γάρ microοι εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν οὐδὲ δι ἓν ἄλλο καλὸν εἶναι ἢ διότι microετέχει ἐκείνου τοῦ καλοῦ (100c4-6)

Esta sentenccedila afirma claramente que 1) o Belo ele mesmo eacute belo e 2) que

se alguma outra coisa tambeacutem eacute bela entatildeo ela eacute bela por participar no Belo ele

mesmo Ora de acordo com Allen e Cherniss 1) dever ser entendido como ldquoo

Belo ele mesmo eacute idecircntico ao Belordquo Sendo assim 2) estaria afirmando a seguinte

absurdidade ldquoSe alguma outra coisa eacute idecircntica ao Belo ele mesmo entatildeo esta

coisa eacute idecircntica ao Belo ele mesmo porque participa no Belo ele mesmordquo Isto no

entanto contradiz de maneira oacutebvia a Teoria das Ideias Afinal toda coisa bela

incluindo objetos sensiacuteveis seria idecircntica agrave Forma da Beleza Aleacutem disso a

proacutepria participaccedilatildeo teria como resultado a identidade entre a coisa participante e

a Forma participada

Uma uacuteltima interpretaccedilatildeo que pretende negar que a sentenccedila ldquoa F-idade eacute

Frdquo forneccedila uma descriccedilatildeo da Forma F-idade foi apresentada pelo proacuteprio Vlastos

quem primeiro identificou (AP) Anos depois de sua primeira publicaccedilatildeo sobre o

assunto Vlastos decide mudar sua interpretaccedilatildeo para o sentido de sentenccedilas auto-

predicativas envolvendo Formas Segundo ele a compreensatildeo de sentenccedilas da

1991 p 67-68)

56 Note que a mesma ocorrecircncia de καλὸν serve de predicado tanto para τί ἄλλο quanto para αὐτὸ τὸ καλόν Portanto a mesma anaacutelise deve ser oferecida para ldquo τί ἄλλο ἐστιν καλὸνrdquo e ldquo αὐτὸ

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forma ldquoa F-idade eacute Frdquo como casos de (AP) levaria a contradiccedilotildees tatildeo evidentes

que Platatildeo natildeo poderia ter deixado de notaacute-las No Protaacutegoras (330c7-8) por

exemplo Soacutecrates afirma que a ldquoJusticcedila eacute justardquo e logo apoacutes que a ldquoPiedade eacute

piardquo De acordo com Vlastos estas sentenccedilas natildeo podem representar descriccedilotildees

pois na condiccedilatildeo de Formas a Justiccedila e a Piedade natildeo poderiam ser justas ou

pias Estes atributos morais aplicam-se a pessoas ou atitudes e natildeo faria qualquer

sentido afirmar que uma entidade inteligiacutevel universal possui uma qualidade

moral Assim Vlastos admite que o Belo do Banquete seja belo ou que a Unidade

seja uacutenica pois a proacutepria condiccedilatildeo de Formas platocircnicas exige que natildeo soacute o Belo

e a Unidade mas de fato todas as Formas sejam belas e uacutenicas Poreacutem nenhuma

Forma incluindo a Justiccedila poderia ser justa na medida em que nenhuma entidade

inteligiacutevel universal eacute capaz de realizar atitudes passiacuteveis de julgamento moral

Como anaacutelise para sentenccedilas do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo nas quais o termo F

natildeo representa uma caracteriacutestica proacutepria das Formas enquanto Formas Vlastos

propotildee a seguinte anaacutelise ldquoNecessariamente se x participa de F-idade entatildeo x eacute

Frdquo (Vlastos 1972 p252-265) Deste modo afirmaccedilotildees do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo

natildeo teriam uma Forma como sujeito mas ofereceriam uma descriccedilatildeo da classe de

coisas que participam em F-idade Inspirado em uma passagem de Satildeo Paulo

(Carta aos Coriacutentios I 13 4-8) Vlastos denomina o tipo de predicaccedilatildeo por ele

descrito como ldquopredicaccedilatildeo paulinardquo

Em sua epiacutestola Satildeo Paulo faz afirmaccedilotildees como ldquoa caridade eacute piardquo e ldquoa

caridade eacute magnacircnimardquo De acordo com Vlastos o que S Paulo pretende dizer

por meio destas sentenccedilas eacute que ldquotodo aquele que eacute caridoso eacute tambeacutem piedoso e

magnacircnimordquo Assim transposto para o contexto platocircnico as afirmaccedilotildees do

Protaacutegoras natildeo estariam afirmando rigorosamente nada sobre as Formas da

Justiccedila e Piedade mas apenas sustentando a tese de que ldquotodo aquele que participa

da Justiccedila eacute justordquo Deste modo casos problemaacuteticos de auto-predicaccedilatildeo de

Formas ficariam reduzidos a casos de predicaccedilotildees gerais sobre coisas sensiacuteveis

O problema gerado pela anaacutelise proposta por Vlastos possui natureza

essencialmente conceitual Para comeccedilar a teoria da predicaccedilatildeo paulina pressupotildee

que sentenccedilas envolvendo Formas como sujeito possam ser diretamente

traduzidas em sentenccedilas envolvendo somente particulares sensiacuteveis isto eacute no

τὸ καλόν ἐστιν καλὸνrdquo

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caso de termos uma sentenccedila do tipo ldquoa F-idade eacute xrdquo estariacuteamos falando natildeo da F-

idade mas do conjunto de coisas sensiacuteveis que satildeo F Como observa Fronterotta

(2001 p250-251) isto vai de encontro agrave proacutepria concepccedilatildeo de Forma como uma

entidade separada dos objetos sensiacuteveis que dela participam De acordo com a

ontologia socraacutetica a Forma F-idade natildeo corresponde agrave soma dos objetos que satildeo

F mas caracteriza-se por ser ontologicamente distinta destas coisas Portanto

qualquer anaacutelise que resulte em confusatildeo ou sobreposiccedilatildeo entre o que eacute a F-idade

e o que satildeo os muacuteltiplos objetos sensiacuteveis que possuem a propriedade de serem F

estaacute sujeita agrave criacutetica de estar ignorando a distinccedilatildeo mais fundamental da Teoria das

Ideias

Suponha por exemplo uma relaccedilatildeo entre Formas expressa na sentenccedila ldquoa

F-idade eacute a G-idaderdquo Segundo Vlastos estas sentenccedilas deveriam ter sua

veracidade comprovada por meio da verificaccedilatildeo da relaccedilatildeo de inclusatildeo entre o

conjunto de coisas que satildeo F e o conjunto de coisas que satildeo G Uma relaccedilatildeo entre

Formas ficaria reduzida no espiacuterito da teoria da predicaccedilatildeo paulina a uma relaccedilatildeo

entre extensotildees de conjuntos de coisas Entretanto isto violaria a prioridade

ontoloacutegica e epistemoloacutegica das Formas em relaccedilatildeo aos objetos sensiacuteveis e uma

relaccedilatildeo entre coisas seria responsaacutevel pelo estabelecimento de uma relaccedilatildeo entre

Formas quando uma anaacutelise fiel aos princiacutepios da Teoria das Ideias deveria

apresentar exatamente o oposto

Podemos concluir portanto que nenhum dos autores acima mencionados

conseguiram oferecer uma anaacutelise para sentenccedilas do tipo ldquoA F-idade eacute Frdquo que

livrasse Soacutecrates de (AP) e consequentemente do Argumento do Terceiro

Homem Tentar afirmar que sentenccedilas auto-predicativas envolvendo Formas natildeo

oferecem descriccedilotildees e portanto natildeo satildeo legiacutetimas predicaccedilotildees resulta em

distorccedilotildees tatildeo gritantes do conteuacutedo dos diaacutelogos que natildeo podemos aceitar este

tipo de anaacutelise

Tendo descartado as interpretaccedilotildees que pretendem livrar Soacutecrates de (AP)

por meio da afirmaccedilatildeo de que a sentenccedila ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo constituiria uma

descriccedilatildeo da Forma F-idade podemos nos voltar para a segunda estrateacutegia adota

pelos comentadores com o objetivo de invalidar o Argumento do Terceiro

Homem Como dito anteriormente este segundo grupo de inteacuterpretes assume que

sentenccedilas auto-predicativas oferecem uma descriccedilatildeo da Forma que ocupa o lugar

de sujeito poreacutem alegam que esta descriccedilatildeo natildeo eacute suficiente para agruparmos a

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Forma F-idade com os diversos objetos sensiacuteveis que satildeo F Isto porque a Forma

F-idade natildeo receberia o predicado F da mesma maneira que objetos sensiacuteveis (a

b c) o recebem Teriacuteamos portanto dois tipos distintos de predicaccedilatildeo a F-idade eacute

F poreacutem de um modo completamente diferente das coisas (a b c) serem F Uma

vez que o predicado F natildeo estaria sendo aplicado de maneira uniacutevoca a Formas e

coisas a inclusatildeo de F-idade no conjunto de coisas (a b c) necessaacuteria para

gerarmos o regresso ao infinito natildeo estaria justificada e todo o argumento seria

invalidado

De acordo com os proponentes desta tese a fonte textual para atribuirmos

este tipo de interpretaccedilatildeo a Platatildeo estaria nos textos em que Soacutecrates descreve a

relaccedilatildeo entre Formas e coisas como uma relaccedilatildeo anaacuteloga agravequela entre um Modelo

ou Original (παραδείγmicroατα) e suas coacutepias (εἰκόνες) imagens (ei)dwla) ou

imitaccedilotildees (mimhmata) Uma vez que tenhamos em mente afirmam estes

comentadores que Soacutecrates entende a relaccedilatildeo entre Formas e coisas da mesma

maneira que entendemos a relaccedilatildeo entre um Modelo e suas coacutepias (um Original e

suas imagens) seremos levados a concluir que a sentenccedila ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo

atribui o predicado F a seu sujeito do mesmo modo que a sentenccedila ldquox eacute Frdquo atribui

o predicado F ao objeto sensiacutevel x

Ora para que este argumento seja realmente efetivo eacute preciso que fique

especificado exatamente qual eacute esta relaccedilatildeo entre um ModeloOriginal e suas

coacutepiasimagens que quando transposta para relaccedilatildeo entre Formas e coisas

sensiacuteveis eacute capaz de falsificar (AP) Uma explicaccedilatildeo repetidamente apresentada

pelos comentadores baseia-se na relaccedilatildeo entre um padratildeo (standard) de medida e

as muacuteltiplas coisas que podem ser alvo de mediccedilatildeo em comparaccedilatildeo a este

padratildeo57 De acordo com este tipo de argumentaccedilatildeo uma Forma deveria ser

comparada a um Modelo de medida como por exemplo o padratildeo do Metro

contido na Academia de Medidas Francesa Aceitando esta analogia seriacuteamos

levados a ver que assim como o Metro padratildeo natildeo possui a medida de um metro

uma vez que ele eacute o proacuteprio modelo para a aplicaccedilatildeo deste predicado tambeacutem F-

idade natildeo pode ser dita F ou classificada como uma coisa F

Um testemunho de grande peso eacute neste contexto evocado pelos

defensores deste tipo de interpretaccedilatildeo que citam Wittgenstein ldquoHaacute uma uacutenica

57 Este tipo de argmentaccedilatildeo eacute explicitamente adotado por Bluck em ldquoForms as Standardsrdquo (1957)

e Allen (1960 p 45-47) sendo por vezes defendido por Patterson (1985)

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coisa sobre a qual natildeo podemos dizer que tem um metro de comprimento nem que

natildeo tem um metro de comprimento esta coisa eacute o padratildeo do metro situado em

Parisrdquo (Investigaccedilotildees Filosoacuteficas 50) Esta afirmaccedilatildeo seria suficiente para colocar

Wittgenstein ao lado daqueles que acham que assim como natildeo podemos dizer do

padratildeo do Metro que ele possui um metro de comprimento tampouco poderiacuteamos

dizer de F-idade que ela eacute F

Conforme demonstrado por Malcolm (1991 p 70-72) a explicaccedilatildeo para a

enigmaacutetica sentenccedila de Wittgenstein deve ser buscada na sua teoria de que nomear

e descrever satildeo essencialmente atos de fala distintos De fato na seccedilatildeo

imediatamente anterior a esta afirmaccedilatildeo Wittgenstein nos diz ldquoNomear e

descrever natildeo estatildeo no mesmo niacutevel a nomeaccedilatildeo eacute uma preparaccedilatildeo para

descriccedilatildeordquo (Investigaccedilotildees Filosoacuteficas 49) Devemos entender portanto que ao

nomearmos uma determinada barra de ferro em Paris como o Modelo do Metro

natildeo estamos descrevendo esta barra mas estabelecendo um padratildeo que serviraacute

para posterior descriccedilatildeo desta medida Assim o criteacuterio de verdade da sentenccedila ldquoo

Metro tem um metrordquo eacute estabelecido por nomeaccedilatildeo enquanto o criteacuterio de

verdade para descriccedilatildeo ldquoesta mesa tem um metrordquo eacute estabelecido por comparaccedilatildeo

ao Modelo de metro ldquoesta mesa tem um metrordquo soacute eacute uma sentenccedila verdadeira

quando a mesa possuir o mesmo comprimento do Metro Modelo

A pergunta que devemos fazer eacute se este ato de nomeaccedilatildeo anula por

completo a possibilidade de subsequentes descriccedilotildees deste Modelo Considerando

por exemplo que o ato de nomeaccedilatildeo se daacute uma uacutenica vez entatildeo nunca mais

poderiacuteamos fazer afirmaccedilotildees sobre o comprimento da barra de ferro situada na

Academia de Medidas Francesa Eacute muito mais razoaacutevel acreditarmos que seu

estabelecimento como Modelo eacute aquilo que nos permite descrevecirc-la como tendo

um metro de comprimento Nada parece obrigar que o estabelecimento de um

padratildeo sirva de preparaccedilatildeo para que apenas outras coisas sejam descritas

Podemos considerar inclusive que o estabelecimento de um padratildeo depende da

realizaccedilatildeo de dois atos simultacircneos a descriccedilatildeo de uma propriedade deste padratildeo

e a nomeaccedilatildeo desta entidade como Modelo para subsequente aplicaccedilotildees desta

descriccedilatildeo Sendo assim creio que a afirmaccedilatildeo de Wittgenstein estaacute restrita ao

acircmbito do momento de estabelecimento do Modelo do Metro De fato para

estabelecermos um comprimento como padratildeo de metro precisamos nomeaacute-lo e

natildeo descrevecirc-lo Poreacutem apoacutes estabelecido este padratildeo natildeo haacute motivo aparente

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para negar que possamos descrever o Metro Modelo como tendo um metro de

comprimento

Assim se utilizarmos a relaccedilatildeo entre o padratildeo do Metro e as coisas

descritas como tendo um metro de comprimento para entender a relaccedilatildeo entre

Formas e coisas veremos que esta analogia natildeo eacute suficiente para combater a

validade de (AP) Mesmo natildeo havendo um momento de nomeaccedilatildeo da Forma de F-

idade como padratildeo o que os comentadores que fazem uso da discussatildeo iniciada

por Wittgenstein pretendem afirmar eacute que assim como o criteacuterio de

estabelecimento da verdade de ldquoa mesa tem um metrordquo natildeo pode ser o mesmo

criteacuterio de estabelecimento da verdade de ldquoo Metro tem um metrordquo tambeacutem o

criteacuterio de verdade de ldquoF-idade eacute Frdquo deve ser distinto do criteacuterio de verdade de ldquoa

eacute Frdquo

Contudo se as coisas de um metro possuem a mesma medida do padratildeo de

Metro entatildeo logicamente o padratildeo de Metro possui a mesma medida das coisas

de um metro Sendo assim se o comprimento destas coisas pode ser descrito pelo

predicado ldquoter um metrordquo entatildeo o Metro padratildeo tambeacutem deve poder ser descrito

pelo mesmo predicado No caso das Formas se a b c satildeo F em virtude da F-

idade entatildeo de acordo com a analogia proposta a b c possuem a mesma

propriedade que F-idade e somos obrigados a admitir que ldquoa F-idade eacute Frdquo do

mesmo modo que ldquoa b c satildeo Frdquo a despeito do criteacuterio para o estabelecimento da

verdade das sentenccedilas ldquoa eacute Frdquo ldquob eacute Frdquo e ldquoc eacute Frdquo ser diferente daquele usado para

estabelecer a verdade de ldquoa F-idade eacute Frdquo Entender a relaccedilatildeo entre Formas e coisas

como anaacuteloga agrave relaccedilatildeo entre um padratildeo e as coisas descritas a partir deste padratildeo

natildeo fornece uma saiacuteda ao Argumento do Terceiro Homem

Outra proposta de compreensatildeo para a natureza da remissatildeo

Modelocoacutepias parece oferecer uma explicaccedilatildeo muito mais promissora para

relaccedilatildeo entre Formas e coisas Alguns autores como Allen (1960 p48-52) Geach

(1956) e Patterson (1985) sugerem que entendamos a relaccedilatildeo entre Formas e

coisas em analogia agrave relaccedilatildeo entre um determinado objeto e suas muacuteltiplas

imagens Neste tipo de relaccedilatildeo alegam estes comentadores eacute muito claro que as

imagens natildeo satildeo um caso de F da mesma maneira que o original eacute F Pense por

exemplo na relaccedilatildeo entre um gato e as diversas fotos deste gato Parece muito

oacutebvio que o gato original recebe o predicado ldquoser-um-gatordquo de um modo muito

diferente de suas imagens pois estas falando estritamente natildeo satildeo gatos

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Seguindo esta analogia a Forma da F-idade seria a uacutenica coisa realmente F

enquanto as muacuteltiplas coisas sensiacuteveis receberiam este predicado de uma maneira

derivativa por serem uma imagem de F-idade De acordo com esta interpretaccedilatildeo

Formas seriam Modelos ou Originais (παραδείγmicroατα) dos quais os objetos

sensiacuteveis representariam imagens (ei)dwla εἰκόνες) ou imitaccedilotildees (mimhmata)

Uma primeira criacutetica possiacutevel a esta interpretaccedilatildeo consiste em afirmar que

a relaccedilatildeo Originalimagens eacute de natureza muito estrita para servir como uma

explicaccedilatildeo adequada para relaccedilatildeo entre Formas e coisas Uma imagem deve

representar com maior ou menor sucesso as caracteriacutesticas aspectuais de seu

original e inversamente um original deve conter as caracteriacutesticas aspectuais de

suas imagens Poreacutem qual original de aacutervore poderia conter em si as

caracteriacutesticas aspectuais de todas as aacutervores sensiacuteveis Se um triacircngulo precisa

ser ou isoacutesceles ou equilaacutetero ou escaleno e natildeo pode ter estas trecircs caracteriacutesticas

simultaneamente como a Triangularidade poderia servir como um uacutenico Modelo

para imagens com caracteriacutesticas mutuamente excludentes

Esta criacutetica contudo pode ser facilmente contornada por meio da alegaccedilatildeo

de que a relaccedilatildeo Originalimagens natildeo precisa ser entendida de maneira tatildeo

restrita Eacute possiacutevel pensar por exemplo que o Original soacute possuiria as

caracteriacutesticas aspectuais essenciais enquanto as diferenccedilas especiacuteficas estariam

manifestas apenas em suas imagens A Triangularidade teria a caracteriacutestica de

possuir trecircs lados iguais e apenas suas imagens sensiacuteveis seriam triacircngulos

equilaacuteteros isoacutesceles ou escalenos Outra saiacuteda seria aumentar o nuacutemero de

Originais afirmando a existecircncia de uma Forma da Triangularidade Isoacutesceles

outra Escalena e outra Equilaacutetero Estas modificaccedilotildees no entanto teriam como

resultado por um lado uma extensatildeo indesejada do conjunto de Formas que

passaria a incluir Formas de espeacutecies e por outro lado o enfraquecimento da

proacutepria analogia entre Originalimagens proposta inicialmente

Patterson (1985 p42) adota a primeira destas duas linhas de

argumentaccedilatildeo e procura evitar resultados problemaacuteticos traccedilando uma diferenccedila

entre coacutepias e imagens Para Patterson enquanto ser-uma-coacutepia implicaria em

assemelhar-se ao Original mantendo suas caracteriacutesticas aspectuais ser-uma-

imagem natildeo traria esta implicaccedilatildeo Para defender esta distinccedilatildeo Patterson eacute

obrigado a forccedilar o vocabulaacuterio platocircnico entendendo por imagens natildeo soacute o termo

ei)dwla como tambeacutem o(moiw=mata εἰκόνες e mimhmata que agrave primeira vista

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implicariam na estrita semelhanccedila entre Original e coacutepias

Apoacutes destituir a relaccedilatildeo Originalimagens da necessidade de semelhanccedila

entre seus dois elementos Patterson reinterpreta sua analogia inicial como uma

relaccedilatildeo entre ldquouma natureza abstrata e um exemplo concreto ou entre a natureza

inteligiacutevel de F ele mesmo e aquilo que concretamente possui ou tem a natureza

de F ele mesmordquo (Patterson 1985 p 95) Ora eacute muito evidente que atraveacutes deste

movimento Patterson estaacute abandonando por completo a relaccedilatildeo Originalimagem

inicialmente proposta e passando a entender os objetos sensiacuteveis ldquoexemplos

concretosrdquo das Formas que por sua vez satildeo entendidas como ldquonaturezas

inteligiacuteveis ou abstratasrdquo

Como o caso de Patterson deixa evidente compreender a relaccedilatildeo

Originalimagens sem pressupor qualquer niacutevel de semelhanccedila entre estes dois

elementos representa uma grande subversatildeo agrave natureza desta relaccedilatildeo Poreacutem

mesmo que seja possiacutevel compreender que uma imagem natildeo se assemelha ao

original de que eacute imagem seria preciso demonstrar ainda que o personagem

Soacutecrates estaacute entendendo a relaccedilatildeo entre Formas e coisas sensiacuteveis em analogia a

esta compreensatildeo sui generis de imagens que natildeo guardam qualquer semelhanccedila

com seu original Se olharmos para as passagens em que Soacutecrates trata os objetos

sensiacuteveis como imagens ou imitaccedilotildees das Formas no entanto veremos que a

relaccedilatildeo de semelhanccedila entre Formas e coisas estaacute sempre pressuposta

Um exemplo oferecido por Patterson (1985 p61) sugere que imagens

sonhadas natildeo se assemelham de modo algum aos seus originais pois natildeo podem

realmente possuir as propriedades que seus originais possuem Contudo para que

seja estabelecida uma relaccedilatildeo de semelhanccedila natildeo eacute preciso que as imagens sejam

como seus originas basta que as imagens pareccedilam com seus originais Uma prova

disto eacute que reconhecemos quando algueacutem familiar aparece em nossos sonhos Se

somos capazes de reconhecer algueacutem em sonhos eacute porque a imagem que

experienciamos se assemelha de algum modo agrave pessoal real Soacutecrates parece

corroborar esta anaacutelise trivial para relaccedilatildeo entre imagens sonhadas e originais e

na Repuacuteblica (476c5-7) nos explica que o sonhar (τὸ ὀνειρώττειν) quer

dormindo quer acordado nada mais eacute do que ldquocrer que o semelhante a algo (τὸ

ὅmicroοιόν τῳ) natildeo eacute semelhante a algo mas aquilo mesmo com o que se parece (microὴ

ὅmicroοιον ἀλλ αὐτὸ ἡγῆται εἶναι ᾧ ἔοικεν)rdquo

As passagens em que o termo εἰκών eacute usado para designar objetos

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sensiacuteveis tampouco parecem oferecer o material necessaacuterio para a anaacutelise de

ldquoimagens natildeo semelhantes a seu originalrdquo desejada por Patterson Em Repuacuteblica

(506b) Soacutecrates eacute instigado a discursar sobre o Bem poreacutem se recusa

consentindo em falar sobre ldquoo rebento do Bem e o que haacute de mais semelhante

possiacutevel a elerdquo (ὃς δὲ ἔκγονός τε τοῦ ἀγαθοῦ φαίνεται καὶ ὁmicroοιότατος ἐκείνῳ

506e3) Este rebento mais tarde nos eacute revelado trata-se do sol e em 509a9

Soacutecrates se refere a ele como ldquoa imagem do Bemrdquo (τὴν εἰκόνα αὐτοῦ)

Novamente a relaccedilatildeo entre imagem e original se daacute por semelhanccedila O sol eacute uma

imagem do Bem porque eacute ldquoo que haacute de mais semelhante a elerdquo (ὁmicroοιότατος

ἐκείνῳ)

Do mesmo modo na passagem da linha dividida a primeira seccedilatildeo da linha

estaacute reservada agraves imagens Soacutecrates oferece a seguinte explicaccedilatildeo para o que estas

imagens satildeo

ldquoChamo imagens (τὰς εἰκόνας) em primeiro lugar as sombras (τὰς σκιάς) em seguida os reflexos nas aacuteguas (τὰ ἐν τοῖς ὕδασι φαντάσmicroατα) e em todas aquelas superfiacutecies que satildeo compactas lisas e brilhantes e tudo mais deste tipordquo λέγω δὲ τὰς εἰκόνας πρῶτον microὲν τὰς σκιάς ἔπειτα τὰ ἐν τοῖς ὕδασι φαντάσmicroατα καὶ ἐν τοῖς ὅσα πυκνά τε καὶ λεῖα καὶ φανὰ συνέστηκεν καὶ πᾶν τὸ τοιοῦτον (510a1-3)

A descriccedilatildeo de εἰκόνες como ldquosombrasrdquo e ldquofantasmasrdquo parece favorecer a

equaccedilatildeo entre os termos εἰκών e ei)dwlon e a noccedilatildeo de imagem-dessemelhante

desejada por Patterson No entanto na continuaccedilatildeo do argumento Soacutecrates pede

para que na segunda seccedilatildeo da linha sejam colocadas as coisas que datildeo origens agraves

imagens da primeira seccedilatildeo isto eacute os objetos empiacutericos sensiacuteveis Em seguida

Soacutecrates passa para a parte do inteligiacutevel e descreve a primeira seccedilatildeo desta parte

como aquela em que a alma utiliza como se fossem imagens (ὡς εἰκόσιν χρωmicroένη

ψυχὴ) as coisas que antes eram imitadas (τοῖς τότε microιmicroηθεῖσιν) O exemplo

utilizado por Soacutecrates vem da Geometria

ldquoSabes tambeacutem que eles (os geocircmetras) utilizam figuras visiacuteveis e constroem raciociacutenios sobre elas embora natildeo seja nelas que pensem mas em outras coisas agraves quais essas se parecem (οἷς ταῦτα ἔοικε) construindo raciociacutenios em vista do quadrado ele mesmo (τοῦ τετραγώνου αὐτοῦ) da diagonal ela mesma (διαmicroέτρου αὐτῆς) e natildeo da diagonal que traccedilam e assim tambeacutem para as outras figuras Todas aquelas que eles modelam ou traccedilam das quais haacute sombras e imagens nas aacuteguas (ὧν καὶ σκιαὶ καὶ ἐν ὕδασιν εἰκόνες εἰσίν) eles as utilizam como se fossem imagens (ὡς εἰκόσιν αὖ χρώmicroενοι) ao procurar ver aquelas coisas mesmas que

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natildeo se vecircem senatildeo pelo pensamentordquo Οὐκοῦν καὶ ὅτι τοῖς ὁρωmicroένοις εἴδεσι προσχρῶνται καὶ τοὺς λόγους περὶ αὐτῶν ποιοῦνται οὐ περὶ τούτων διανοούmicroενοι ἀλλ ἐκείνων πέρι οἷς ταῦτα ἔοικε τοῦ τετραγώνου αὐτοῦ ἕνεκα τοὺς λόγους ποιούmicroενοι καὶ διαmicroέτρου αὐτῆς ἀλλ οὐ ταύτης ἣν γράφουσιν καὶ τἆλλα οὕτως αὐτὰ microὲν ταῦτα ἃ πλάττουσίν τε καὶ γράφουσιν ὧν καὶ σκιαὶ καὶ ἐν ὕδασιν εἰκόνες εἰσίν τούτοις microὲν ὡς εἰκόσιν αὖ χρώmicroενοι ζητοῦντες δὲ αὐτὰ ἐκεῖνα ἰδεῖν ἃ οὐκ ἂν ἄλλως ἴδοι τις ἢ τῇ διανοίᾳ (510d5-511a1)

O resultado final das relaccedilotildees de proporccedilatildeo entre os diversos segmentos da

linha eacute que os objetos sensiacuteveis satildeo imagens (εἰκόνες) das Formas tal como as

sombras e reflexos na aacutegua (σκιάς τὰ ἐν τοῖς ὕδασι φαντάσmicroατα) satildeo imagens

destes mesmos objetos Contudo o que a menccedilatildeo aos procedimentos geomeacutetricos

deixa claro eacute que a relaccedilatildeo entre imagens e original deve ser entendida durante

toda passagem por meio da noccedilatildeo de semelhanccedila Do mesmo modo que minhas

imagens (sombras e reflexos em uma superfiacutecie daacutegua) se parecem comigo

tambeacutem os graacuteficos e desenhos satildeo utilizados pelos geocircmetras como se fossem

imagens (ὡς εἰκόσιν αὖ χρώmicroενοι) das Formas inteligiacuteveis porque com elas se

parecem (οἷς ταῦτα ἔοικε) Em suma imagens (εἰκόνες) satildeo imagens de coisas

com as quais guardam similaridades e compartilham propriedades de outro modo

natildeo haveria porque um geocircmetra desenhar quadrados com a intenccedilatildeo de estudar o

Quadrado ideal

Portanto considero as passagens acima citadas suficientes para comprovar

que Soacutecrates entendia por εἰκόνες o que normalmente entendemos por imagens

isto eacute algo fundamentalmente distinto daquilo de que eacute imagem poreacutem que

guarda algum tipo de semelhanccedila com o original ao qual remete Sendo assim

podemos descartar a interpretaccedilatildeo de Patterson que pretende fazer uso da relaccedilatildeo

Originalimagens como forma de compreensatildeo da relaccedilatildeo Formascoisas poreacutem

negando que haja qualquer tipo de semelhanccedila entre os dois elementos de cada

uma destes pares

A relaccedilatildeo Originalimagens contudo natildeo pode ser completamente

abandonada como um possiacutevel modelo de compreensatildeo para relaccedilatildeo entre Formas

e coisas pois a partir desta analogia ainda eacute possiacutevel extrairmos uma interpretaccedilatildeo

que falsifique (AP) Considere a relaccedilatildeo entre Simmias e os diversos retratos de

Simmias Quando pegamos um dos retratos de Simmias e perguntamos quem eacute a

pessoa neste retrato A resposta que recebemos eacute esta pessoa eacute Simmias

Evidentemente esta resposta nos eacute dada em funccedilatildeo da semelhanccedila entre o

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Simmias original e a imagem de Simmias no retrato pois eacute esta semelhanccedila o que

nos permite dizer que tanto Simmias quanto suas imagens possuem a propriedade

de ser-Simmias Apesar disto estas coisas possuem a propriedade de ser-Simmias

de maneiras distintas a imagem de Simmias no retrato eacute Simmias poreacutem em um

sentido diferente daquele em que Simmias eacute Simmias Como vimos a

transposiccedilatildeo desta relaccedilatildeo para o caso envolvendo Formas e coisas poderia

fornecer uma saiacuteda ao Argumento do Terceiro Homem Afinal de acordo com este

modelo a Forma F-idade eacute F de uma maneira distinta das coisas (a b c) o que

falsificaria (AP)

No entanto uma nova criacutetica pode ser dirigida agravequeles que defendem este

tipo de interpretaccedilatildeo segundo a qual a F-idade e os muacuteltiplos objetos sensiacuteveis

que dela satildeo imagens natildeo recebem o predicado F univocamente Afinal se uma

coisa sensiacutevel natildeo possui o predicado F do mesmo modo que a F-idade como esta

Forma poderia servir de Modelo (Original ou Paradigma) para a aplicaccedilatildeo do

predicado que esta coisa sensiacutevel possui

Suponha por exemplo que F1 e F2 representam os diferentes modos em

que o predicado F pode ser aplicado Assim diriacuteamos que a F-idade eacute F1

enquanto um objeto sensiacutevel x eacute F2 Neste caso como F-idade que eacute

exclusivamente F1 poderia servir de Modelo ou Paradigma para aplicaccedilatildeo do

predicado F2 nos objetos sensiacuteveis Para ser um ModeloOriginalParadigma dos

objetos sensiacuteveis que recebem o predicado F a Forma precisa ser um

ModeloOriginalParadigma de aplicaccedilatildeo do mesmo predicado F possuiacutedo pelos

objetos sensiacuteveis Pois se a relaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis estaacute fundada

no fato de que os objetos sensiacuteveis recebem o predicado F em virtude da F-idade

por que neste caso exatamente F-idade e natildeo outra Forma seria a causa da

propriedade F nas coisas sensiacuteveis Caso natildeo aceitemos que Formas e coisas

compartilhem um mesmo predicado de maneira uniacutevoca natildeo temos razotildees

suficientes para identificar a F-idade (ao inveacutes de G-idade) como causa da

caracteriacutestica F encontrada nos objetos sensiacuteveis

Em Feacutedon (74b-c) por exemplo a visatildeo de um par de pedaccedilos de

madeiras iguais em comprimento eacute capaz de nos fazer lembrar a Forma da

Igualdade com a qual tivemos contato antes de nascermos Ora se o par de

madeiras em questatildeo natildeo possui a mesma propriedade que a Forma da Igualdade

por que entatildeo nos lembrariacuteamos desta Forma e natildeo de qualquer outra Da mesma

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maneira o Banquete (210-211) nos apresenta um percurso de ascensatildeo que inicia-

se nos corpos discursos e ciecircncias sensiacuteveis para chegar ao Belo ele mesmo

Aceitando que o Belo natildeo compartilha uma mesma propriedade com estes corpos

discursos e ciecircncias por que seriam exatamente estas coisas sensiacuteveis que

formariam o caminho para o Belo

Em resposta a este tipo de criacuteticas algumas interpretaccedilotildees pretendem

abordar a diferenccedila entre o modo de uma Forma e uma coisa sensiacutevel receberem o

mesmo predicado F por meio da qualificaccedilatildeo da relaccedilatildeo de predicaccedilatildeo Assim

estariacuteamos falando de um mesmo predicado F poreacutem de duas relaccedilotildees de

predicaccedilatildeo natildeo uniacutevocas Podemos pensar por exemplo que enquanto a Forma F-

idade recebe o predicado F de maneira necessaacuteria os objetos sensiacuteveis satildeo F

apenas de maneira contingente Supostamente esta explicaccedilatildeo seria suficiente

para evidenciar dois modos natildeo-uniacutevocos de predicaccedilatildeo portanto falsificando

(AP) sem trazer as indesejadas consequecircncias acima descritas

Na realidade contudo esta distinccedilatildeo natildeo eacute capaz de desqualificar

univocidade Caso contraacuterio teriacuteamos que admitir que as sentenccedilas ldquoTodo

torcedor do Vasco eacute necessariamente vascaiacutenordquo e ldquoEu sou contingentemente

vascaiacutenordquo apresentam o predicado ldquoser-vascaiacutenordquo de maneira distinta Aleacutem disso

teriacuteamos que negar que a sentenccedila ldquoEu sou contingentemente torcedor do Vascordquo

pode ser corretamente inferida das duas sentenccedilas anteriores Acrescentar um

operador modal como qualificaccedilatildeo do predicado F natildeo eacute suficiente para produzir

um novo predicado natildeo-uniacuteco a F Portanto sob a luz desta distinccedilatildeo Formas e

coisas continuam possuindo o mesmo predicado e tanto (AP) quanto o Argumento

do Terceiro Homem continuam vaacutelidos

Outra tentativa de negar a aparente univocidade entre a aplicaccedilatildeo de um

predicado a uma Forma e a aplicaccedilatildeo deste mesmo predicado aos objetos

sensiacuteveis consiste em apelar para distinccedilatildeo entre predicaccedilatildeo per se e predicaccedilatildeo

per aliud Em paralelo agrave distinccedilatildeo aristoteacutelica entre predicaccedilatildeo essencial e

predicaccedilatildeo acidental alguns comentadores reconhecem em Platatildeo a diferenciaccedilatildeo

entre um tipo de predicaccedilatildeo ldquoem virtude de sua proacutepria naturezardquo (per se) e um

segundo tipo de predicaccedilatildeo ldquoem virtude de outra coisardquo (per aliud) Assim

enquanto as Formas receberiam seus predicados per se de maneira proacutepria os

objetos sensiacuteveis receberiam seus predicados per aliud de maneira derivativa

Entendida deste modo a auto-predicaccedilatildeo de uma Forma seria uma espeacutecie de

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definiccedilatildeo miacutenima desta entidade Alegadamente isto faria com que natildeo

pudeacutessemos reduzir sentenccedilas auto-predicativas envolvendo Formas a meras

identidades ao mesmo tempo em que diferenciariacuteamos dois modos natildeo uniacutevocos

de predicaccedilatildeo

De fato esta distinccedilatildeo parece se encaixar nos paracircmetros traccedilados pela

Teoria das Ideias Tal como as substacircncias aristoteacutelicas as Formas recebem seus

predicados de maneira natildeo derivativa (per se) enquanto as coisas que participam

das Formas recebem seus predicados em virtude desta participaccedilatildeo (per aliud) No

entanto a questatildeo relevante para nossa discussatildeo eacute se este tipo de distinccedilatildeo eacute

capaz de falsificar (AP) e bloquear a reduccedilatildeo ao infinito proposta por Parmecircnides

Como observa Teloh (1981 p124) a distinccedilatildeo proposta explica a aplicaccedilatildeo

de predicados por meio de relaccedilotildees entre entidades mas certamente este tipo de

explicaccedilatildeo eacute compatiacutevel com predicados uniacutevocos A aplicaccedilatildeo de um predicado a

entidades de tipos distintos por si soacute natildeo eacute suficiente para concluirmos uma

diferenccedila de sentido deste predicado Mesmo entendendo as Formas como sujeitos

proacuteprios de F e os objetos sensiacuteveis como sujeitos derivados deste mesmo

predicado natildeo somos obrigados a abandonar a tese da unidade de sentido do

predicado em questatildeo Por outro lado caso usemos esta distinccedilatildeo como base para

uma diferenciaccedilatildeo de sentido entre predicados per se e per aliud voltaremos ao

problema anteriormente descrito de considerar as Formas como causas de

propriedades que natildeo possuem e inversamente os objetos sensiacuteveis como

recebendo por derivaccedilatildeo predicados distintos daqueles possuiacutedos pelas Formas

O maior problema da distinccedilatildeo entre aplicaccedilatildeo per se e per aliud como

soluccedilatildeo ao Argumento do Terceiro Homem contudo estaacute no fato desta distinccedilatildeo

natildeo poder ser encontrada na Teoria das Ideias apresentada pelo personagem

Soacutecrates no Parmecircnides ou em qualquer outro diaacutelogo O primeiro autor a

reconhecer a possibilidade de uma aplicaccedilatildeo da diferenciaccedilatildeo entre estes dois

modos natildeo uniacutevocos de aplicaccedilatildeo de um mesmo predicado foi Frede (1967) De

acordo com Frede a diferenccedila entre uma predicaccedilatildeo que definiria o que uma coisa

eacute em virtude de si mesmo e uma predicaccedilatildeo ordinaacuteria que apenas descreveria os

atributos desta coisa estaacute pressuposta na investigaccedilatildeo sobre as relaccedilotildees entre os

gecircneros do Sofista sobretudo em 255c12-13 Posteriormente Meinwald (1991)

aplicou a distinccedilatildeo proposta por Frede em sua anaacutelise dos argumentos da segunda

parte do Parmecircnides afirmando explicitamente que a diferenciaccedilatildeo entre

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predicaccedilotildees per se e per aliud seria capaz de bloquear o Argumento do Terceiro

Homem

Ora em nenhum destes dois casos eacute o personagem Soacutecrates quem propotildee

as anaacutelises que dariam ensejo agrave distinccedilatildeo entre os dois modos natildeo uniacutevocos de

predicaccedilatildeo No Sofista quem apresenta as relaccedilotildees entre os gecircneros supremos eacute

um Estrangeiro de Eleacuteia enquanto no Parmecircnides eacute o proacuteprio Parmecircnides quem

conduz as deduccedilotildees da segunda parte do diaacutelogo Em ambos os casos Soacutecrates

natildeo estaacute envolvido nas discussotildees e muito menos apresenta explicitamente sua

Teoria das Ideias como fonte da distinccedilatildeo em questatildeo Portanto mesmo que

admitamos que uma diferenciaccedilatildeo entre predicaccedilotildees per se e per aliud pode

bloquear os regressos apresentados por Parmecircnides o que natildeo necessariamente eacute

o caso como explica Teloh (1981 p124) natildeo temos motivos algum para afirmar

que Soacutecrates estaacute de posse desta distinccedilatildeo Sendo assim como criacutetica agrave

formulaccedilatildeo claacutessica da Teoria das Ideias o Argumento do Terceiro Homem segue

sendo vaacutelido

Deste modo podemos concluir que a segunda estrateacutegia adotada para

falsificar (AP) e livrar a Teoria das Ideias do regresso ao infinito demonstrado por

Parmecircnides tampouco representa uma alternativa viaacutevel Entender a F-idade em

analogia a um padratildeo (standard) como o Metro Modelo natildeo impede que usemos

o predicado F para descrevecirc-la Por outro lado ao tentarmos apelar para relaccedilatildeo

Originalimagens como forma de entender modos natildeo uniacutevocos de se possuir um

mesmo predicado ou bem acabamos por ter que aceitar a semelhanccedila entre

imagens e Original abrindo caminho para o Argumento do Terceiro Homem ou

bem somos obrigados a reconhecer a existecircncia de imagens natildeo semelhantes a

seus originais o que eacute certamente absurdo aleacutem de ir contra o texto dos diaacutelogos

Por fim a tentativa de distinguir entre dois sentidos de aplicaccedilatildeo de um mesmo

predicado implica em tornar os objetos sensiacuteveis tatildeo distintos das Formas das

quais derivam seus predicados que o proacuteprio papel causal das Formas acaba por

tornar-se arbitraacuterio

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44 Conclusatildeo do quarto capiacutetulo

Como resultado de suas criacuteticas Parmecircnides passa a pressupor que natildeo

pode haver qualquer tipo de relaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis Sua

conclusatildeo estaacute fundada no fato de Soacutecrates se mostrar incapaz de fornecer uma

explicaccedilatildeo para natureza da relaccedilatildeo entre estes dois acircmbitos da realidade que natildeo

resulte na destruiccedilatildeo da unidade caracteriacutestica das Formas

ldquoEstaacute vendo entatildeo Soacutecrates quatildeo grande eacute a aporia se algueacutem determinar as Formas sendo em si e por si Sim certamente Pois fica sabendo que por assim dizer ainda natildeo a tocas tamanha eacute a aporia que surge se sempre ao definir algo puseres cada um dos seres como uma Forma uacutenicardquo Ὁρᾷς οὖν φάναι ὦ Σώκρατες ὅση ἡ ἀπορία ἐάν τις ὡς εἴδη ὄντα αὐτὰ καθ αὑτὰ διορίζηται Καὶ microάλα Εὖ τοίνυν ἴσθι φάναι ὅτι ὡς ἔπος εἰπεῖν οὐδέπω ἅπτῃ αὐτῆς ὅση ἐστὶν ἡ ἀπορία εἰ ἓν εἶδος ἕκαστον τῶν ὄντων ἀεί τι ἀφοριζόmicroενος θήσεις (133a8-b2)

A menccedilatildeo de Parmecircnides agrave independecircncia ontoloacutegica (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e agrave

unidade caracteriacutestica das Formas (ἓν εἶδος ἕκαστον τῶν ὄντων) retoma os temas

enunciados na abertura de suas criacutetica Por serem ldquoem si e por sirdquo e

necessariamente unitaacuterias as Formas natildeo podem estar em noacutes (microηδεmicroίαν αὐτῶν

εἶναι ἐν ἡmicroῖν 133c6-7) Afinal cada uma das explicaccedilotildees socraacuteticas para relaccedilatildeo

entre Formas e coisas resultou na multiplicaccedilatildeo (numeacuterica ou aspectual) das

Formas Como por princiacutepio natildeo podemos aceitar que as Formas deixem de ser

entidades uacutenicas Parmecircnides passa a apresentar as consequecircncias paradoxais

decorrentes da postulaccedilatildeo de entidades uniformes e ontologicamente

independentes poreacutem completamente separadas das coisas sensiacuteveis

ldquoHaacute muitas outras dificuldade disse ele mas a maior eacute a seguinte se algueacutem dissesse que nem mesmo cabe serem elas as Formas conhecidas se forem tal como dizemos que devem ser a este algueacutem que assim falasse natildeo poderia provar que se engana (hellip) Como assim Parmecircnides disse Soacutecrates Porque Soacutecrates creio que tu e qualquer outro que potildee haver alguma essecircncia mesma em si e por si de cada coisas (αὐτήν τινα καθ αὑτὴν ἑκάστου οὐσίαν) concordariacuteeis antes de mais nada que nenhuma delas estaacute entre noacutes (microηδεmicroίαν αὐτῶν εἶναι ἐν ἡmicroῖν)

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Pois neste caso como seria ela ainda em si e por si disse Soacutecrates Eacute correto o que dizes disse Parmecircnides Entatildeo tambeacutem dentre as Formas todas aquelas que satildeo o que satildeo na relaccedilatildeo umas com as outras eacute na relaccedilatildeo delas mesmas umas com as outras que elas tecircm a sua essecircncia e natildeo na relaccedilatildeo com as coisas entre noacutes (hellip) Quanto as coisas que satildeo entre noacutes estas por sua vez sendo homocircnimas daquelas satildeo elas mesmas na relaccedilatildeo umas com as outras e natildeo na relaccedilatildeo com as Formas () Que queres dizer disse Soacutecrates Por exemplo disse Parmecircnides se algum de noacutes eacute senhor ou escravo de algueacutem natildeo eacute certamente daquele Senhor mesmo (αὐτοῦ δεσπότου) daquilo que eacute realmente Senhor (ὃ ἔστι δεσπότης) que ele eacute escravo nem eacute do Escravo mesmo (αὐτοῦ δούλου) daquilo que realmente eacute Escravo (ὃ ἔστι δοῦλος) que o senhor eacute senhor mas sendo homem eacute de um homem que ele eacute ambas essas coisas Por outro lado a Senhoria mesma eacute o que eacute da Escravidatildeo mesma e do mesmo modo a Escravidatildeo mesma eacute Escravidatildeo da Senhoria mesma As coisas entre noacutes natildeo tecircm seu poder em relaccedilatildeo agravequelas nem aquelas em relaccedilatildeo a noacutes Πολλὰ microὲν καὶ ἄλλα φάναι microέγιστον δὲ τόδε εἴ τις φαίη microηδὲ προσήκειν αὐτὰ γιγνώσκεσθαι ὄντα τοιαῦτα οἷά φαmicroεν δεῖν εἶναι τὰ εἴδη τῷ ταῦτα λέγοντι οὐκ ἂν ἔχοι τις ἐνδείξασθαι ὅτι ψεύδεται () Πῇ δή ὦ Παρmicroενίδη φάναι τὸν Σωκράτη Ὅτι ὦ Σώκρατες οἶmicroαι ἂν καὶ σὲ καὶ ἄλλον ὅστις αὐτήν τινα καθ αὑτὴν ἑκάστου οὐσίαν τίθεται εἶναι ὁmicroολογῆσαι ἂν πρῶτον microὲν microηδεmicroίαν αὐτῶν εἶναι ἐν ἡmicroῖν Πῶς γὰρ ἂν αὐτὴ καθ αὑτὴν ἔτι εἴη φάναι τὸν Σωκράτη Οὐκοῦν καὶ ὅσαι τῶν ἰδεῶν πρὸς ἀλλήλας εἰσὶν αἵ εἰσιν αὐταὶ πρὸς αὑτὰς τὴν οὐσίαν ἔχουσιν ἀλλ οὐ πρὸς τὰ παρ ἡmicroῖν () τὰ δὲ παρ ἡmicroῖν ταῦτα ὁmicroώνυmicroα ὄντα ἐκείνοις αὐτὰ αὖ πρὸς αὑτά ἐστιν ἀλλ οὐ πρὸς τὰ εἴδη (hellip) Πῶς λέγεις φάναι τὸν Σωκράτη Οἷον φάναι τὸν Παρmicroενίδην εἴ τις ἡmicroῶν του δεσπότης ἢ δοῦλός ἐστιν οὐκ αὐτοῦ δεσπότου δήπου ὃ ἔστι δεσπότης ἐκείνου δοῦλός ἐστιν οὐδὲ αὐτοῦ δούλου ὃ ἔστι δοῦλος δεσπότης ὁ δεσπότης ἀλλ ἄνθρωπος ὢν ἀνθρώπου ἀmicroφότερα ταῦτ ἐστίν αὐτὴ δὲ δεσποτεία αὐτῆς δουλείας ἐστὶν ὅ ἐστι καὶ δουλεία ὡσαύτως αὐτὴ δουλεία αὐτῆς δεσποτείας ἀλλ οὐ τὰ ἐν ἡmicroῖν πρὸς ἐκεῖνα τὴν δύναmicroιν ἔχει οὐδὲ ἐκεῖνα πρὸς ἡmicroᾶς (133b4-e5)

Desprovidos do poder causal exercido pelas Formas os objetos sensiacuteveis

manifestam suas propriedades unicamente em funccedilatildeo das relaccedilotildees mantidas entre

si Parmecircnides continua falando em participaccedilatildeo (microετέχοντες 133d2) No entanto

tendo sido eliminada a possibilidade de relaccedilatildeo causal entre Formas e coisas a

participaccedilatildeo restringe-se a cada uma destas duas esferas da realidade objetos

sensiacuteveis participam de relaccedilotildees com outros objetos sensiacuteveis enquanto Formas

participam de relaccedilotildees com outras Formas Como consequecircncia a Forma do

Senhor possui a propriedade de ser-senhor apenas em relaccedilatildeo agrave Forma do Escravo

e por outro lado o senhor sensiacutevel adquire esta propriedade unicamente em

funccedilatildeo da sua relaccedilatildeo com um escravo sensiacutevel

Neste caso contudo seraacute preciso reconhecer que caso exista uma ciecircncia

das Formas esta ciecircncia estaacute restrita ao acircmbito das entidades inteligiacuteveis e nada

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diz sobre as coisas do mundo sensiacutevel E por outro lado a ciecircncia relativa aos

objetos sensiacuteveis estaria limitada a seu proacuteprio acircmbito da realidade e em nada

dependeria das Formas

ldquoEntatildeo disse ele tambeacutem a Ciecircncia mesma (ἐπιστήmicroη αὐτὴ) aquilo que realmente eacute Ciecircncia (ὃ ἔστι ἐπιστήmicroη) eacute daquela Verdade mesma daquilo que realmente eacute Verdade (τῆς ὃ ἔστιν ἀλήθεια αὐτῆς) que ela seria ciecircncia natildeo eacute Perfeitamente () Mas a ciecircncia entre noacutes (παρ ἡmicroῖν ἐπιστήmicroη) natildeo seria ciecircncia da verdade entre noacutes (παρ ἡmicroῖν ἀληθείας) e por sua vez cada ciecircncia entre noacutes natildeo resultaria ser ciecircncia de cada um dos seres entre noacutes (τῶν παρ ἡmicroῖν ὄντων ἑκάστου) Necessariamente (hellip) Logo por noacutes pelo menos nenhuma das Formas eacute conhecida jaacute que natildeo participamos da Ciecircncia mesma Parece que natildeo Logo eacute-nos incognosciacutevel tanto o Belo mesmo o que realmente eacute (αὐτὸ τὸ καλὸν ὃ ἔστι) como o Bem e todas as coisas que concebemos como sendo Ideias mesmas (πάντα ἃ δὴ ὡς ἰδέας αὐτὰς οὔσας)rdquo Οὐκοῦν καὶ ἐπιστήmicroη φάναι αὐτὴ microὲν ὃ ἔστι ἐπιστήmicroη τῆς ὃ ἔστιν ἀλήθεια αὐτῆς ἂν ἐκείνης εἴη ἐπιστήmicroη Πάνυ γε Ἡ δὲ παρ ἡmicroῖν ἐπιστήmicroη οὐ τῆς παρ ἡmicroῖν ἂν ἀληθείας εἴη καὶ αὖ ἑκάστη ἡ παρ ἡmicroῖν ἐπιστήmicroη τῶν παρ ἡmicroῖν ὄντων ἑκάστου ἂν ἐπιστήmicroη συmicroβαίνοι εἶναι Ἀνάγκη Οὐκ ἄρα ὑπό γε ἡmicroῶν γιγνώσκεται τῶν εἰδῶν οὐδέν ἐπειδὴ αὐτῆς ἐπιστήmicroης οὐ microετέχοmicroεν Οὐκ ἔοικεν Ἄγνωστον ἄρα ἡmicroῖν καὶ αὐτὸ τὸ καλὸν ὃ ἔστι καὶ τὸ ἀγαθὸν καὶ πάντα ἃ δὴ ὡς ἰδέας αὐτὰς οὔσας ὑπολαmicroβάνοmicroεν

Como resultado teriacuteamos que nos contentar com o conhecimento

imperfeito que a instabilidade ontoloacutegica das coisas sensiacuteveis eacute capaz de nos

proporcionar e reconhecer que somente os deuses poderiam obter o conhecimento

seguro fornecido pelas Formas O argumento como um todo nos convida a

questionar o valor da postulaccedilatildeo de entidades inteligiacuteveis Afinal se as coisas

sensiacuteveis recebem suas propriedades por meio das relaccedilotildees que mantecircm entre si

natildeo teriacuteamos motivos para nos preocupar com as Formas entidades

completamente irrelevantes para o andamento e conhecimento do mundo em que

vivemos

Restringindo o resultado da argumentaccedilatildeo de Parmecircnides ao nosso

diaacutelogo podemos concluir que a Teoria das Ideias natildeo representa uma saiacuteda

legiacutetima ao problema da predicaccedilatildeo de opostos exemplificado no paradoxo de

Zenatildeo Afinal para figurarem em uma relaccedilatildeo de participaccedilatildeo com os objetos

sensiacuteveis as Formas precisariam abrir matildeo de sua unidade caracteriacutestica o que as

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submeteria ao mesmo tipo de problema relacionado agrave predicaccedilatildeo de opostos

apontado por Zenatildeo nos objetos sensiacuteveis

No entanto as criacuteticas de Parmecircnides extrapolam o acircmbito do debate

contido no Parmecircnides e configuram-se como uma refutaccedilatildeo da proacutepria ontologia

socraacutetica Pois se Soacutecrates propotildee que entendamos as Formas como causas das

propriedades dos objetos sensiacuteveis entatildeo haacute de haver algum tipo de relaccedilatildeo entre

estas entidades A argumentaccedilatildeo acima exposta contudo demonstra que uma

explicaccedilatildeo para este relacionamento que natildeo resulte na destruiccedilatildeo do proacuteprio

modo de ser das Formas ainda natildeo estaacute disponiacutevel Afinal cada uma das hipoacuteteses

socraacuteticas para natureza da relaccedilatildeo entre coisas e Formas levou inexoravelmente agrave

dissoluccedilatildeo da unidade caracteriacutestica destas entidades Por outro lado caso

quiseacutessemos sustentar a unidade das Formas a qualquer custo afirmando sua

completa separaccedilatildeo das coisas sensiacuteveis as Formas passariam a ser

incognosciacuteveis e completamente irrelevantes

Haacute portanto um niacutetido paradoxo no interior da ontologia socraacutetica

Somente porque possui um modo de ser natildeo relacional e separado uma Forma eacute

ontologicamente prioritaacuteria uacutenica indivisiacutevel e auto-predicativa podendo ser

apresentada como causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e soluccedilatildeo para o

problema da copresenccedila de opostos No entanto para cumprirem seu papel de

causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis as Formas precisam estar em relaccedilatildeo

com as entidades do mundo empiacuterico E como demonstra Parmecircnides esta

relaccedilatildeo eacute suficiente para modificar a natureza das Formas tornando-as entidades

muacuteltiplas sujeitas a predicaccedilatildeo de opostos e tatildeo auto-contraditoacuterias quanto os

objetos sensiacuteveis

Portanto se a interpretaccedilatildeo aqui proposta estaacute correta a primeira parte do

diaacutelogo Parmecircnides revela um problema real e indiscutiacutevel na Teoria das Ideias

defendida pelo personagem Soacutecrates nos diaacutelogos meacutedios e iniciais Natildeo por

acaso Platatildeo como resultado final de sua anaacutelise criacutetica da ontologia socraacutetica

coloca na boca de Parmecircnides as seguintes palavras carregadas de dramaticidade

ldquoQue faraacutes da Filosofia Para onde te voltaraacutes sendo estas coisas desconhecidasrdquo

Τί οὖν ποιήσεις φιλοσοφίας πέρι πῇ τρέψῃ ἀγνοουmicroένων τούτων (135c5-6)

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Page 3: 4 O Diálogo Parmênides e a Ontologia Socrática

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pode ser considerado mais ldquodestrutivordquo do que aquele encontrado em outras

passagens do corpus nas quais temas ldquotipicamente platocircnicosrdquo tambeacutem satildeo alvo

de duras investidas por exemplo os ataques do Teeteto agrave possibilidade do

conhecimento e a criacutetica aos amantes das ideias no Sofista (Waddell 1894 pxiii-

xvi)

Parece muito claro no entanto que o tipo de argumento apresentado por

Socher estaacute necessariamente fadado a uma peticcedilatildeo de princiacutepio como jaacute foi

assinalado com relaccedilatildeo ao fato de Schleiermacher considerar possiacutevel distinguir

obras autecircnticas e espuacuterias com base na doutrina por elas apresentada Este tipo de

argumento pressupotildee que o comentador possua um acesso privilegiado ao

conteuacutedo doutrinal dos diaacutelogos de tal modo que de posse deste conhecimento

esteja na posiccedilatildeo de julgar quais diaacutelogos estatildeo de acordo ou natildeo com este

conteuacutedo Eacute oacutebvio no entanto que o acesso ao conteuacutedo doutrinal dos diaacutelogos soacute

pode advir de uma escolha preacutevia de quais diaacutelogos apresentam este conteuacutedo

Sendo assim o comentador que advoga esta linha de raciociacutenio estaacute claramente

retido em um ciacuterculo vicioso pois a doutrina dos diaacutelogos que ele considera

legiacutetimos deriva diretamente da sua escolha de quais diaacutelogos satildeo legiacutetimos ou

natildeo Sendo assim natildeo temos razatildeo para considerar argumentos de caraacuteter

doutrinaacuterio na discussatildeo acerca da autenticidade do Parmecircnides Simplesmente

natildeo temos acesso direto ao que seria a verdadeira filosofia platocircnica de modo a

podermos julgar o grau de adequaccedilatildeo do Parmecircnides a esta filosofia

Com relaccedilatildeo ao texto do Parmecircnides contudo eacute possiacutevel considerar se a

forma na qual ele eacute escrito se assemelha ou natildeo ao que encontramos em outros

diaacutelogos Neste sentido Waddell que escreve antes da aceitaccedilatildeo geral do meacutetodo

estilomeacutetrico faz algumas observaccedilotildees que me limito a reproduzir

ldquoNovamente ele [o Parmecircnides] estaacute escrito em estilo platocircnico pelo que noacutes queremos dizer vaacuterias coisas Ele eacute natildeo somente um diaacutelogo () mas o tipo de diaacutelogo e os personagens satildeo platocircnicos Ele comeccedila de uma maneira dramaticamente viacutevida o que pode ser posto em paralelo a vaacuterias obras platocircnicas entatildeo quando o proacuteprio tema eacute introduzido os personagens dramaacuteticos tornam-se subordinados e deixam de ser uma parte essencial da composiccedilatildeo O mesmo ocorre na Repuacuteblica quando as preliminares estatildeo resolvidas e a obra construtiva comeccedila qual importacircncia tecircm as perguntas de Glauco e Adimanto Eles simplesmente confirmam Soacutecrates dando a ele a oportunidade para reiniciar o argumento salvando a obra de ser um mero tratado e fornecendo ao orador principal uma anapaula Este eacute o mesmo serviccedilo prestado por Aristoacuteteles no Parmecircnides Mesmo a artificialidade da narrativa pode ser

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considerada um argumento a seu favor Um imitador dificilmente estaria disposto a fazer de sua obra um relato de um relato de um relatordquo (Waddell 1894 pxvii)

Temos ainda como um argumento a favor da autenticidade de nosso

diaacutelogo o fato de que encontramos em diversas obras do corpus platocircnico

referecircncias bastante claras tanto ao conteuacutedo filosoacutefico discutido no Parmecircnides

quanto agrave cena dramaacutetica nele descrita A apresentaccedilatildeo destas passagens ao lado de

passagens do proacuteprio Parmecircnides deve ser suficiente para deixar claro ao leitor o

grau de intertextualidade existente Assim com relaccedilatildeo primeiro destes dois tipos

de referecircncias encontramos as seguintes passagens no corpus em que haacute clara

alusatildeo a assuntos tratados no Parmecircnides Fileb14c-15 cf Parm129 c-d 131a e

ainda Fed102b cf Parm130e Com relaccedilatildeo ao segundo tipo de referecircncia

encontramos passagens de outros diaacutelogos em que a conversa narrada no

Parmecircnides eacute explicitamente evocada por Soacutecrates Teet183 cf Parm127b e

Sofist217c(237a) cf Parm 1373

Por fim eacute preciso observar que o Parmecircnides foi objeto de intensa anaacutelise

estilomeacutetrica pois a especificidade de seu vocabulaacuterio sempre se mostrou um

desafio para o estabelecimento de sua posiccedilatildeo no interior da seacuterie de diaacutelogos Os

resultados destas anaacutelises estiliacutesticas na grande maioria da vezes indicaram a

autenticidade de nosso diaacutelogo como podemos constatar pelas compilaccedilotildees

desenvolvidas por Lutoslawski (1897) e Brandwood (1990)

No entanto nossa apresentaccedilatildeo ficaria incompleta caso natildeo citaacutessemos os

argumentos desenvolvidos por Ritter com o objetivo de questionar a autenticidade

do Parmecircnides Em sua obra Untersuchungen uumlber Platon (1888) Ritter se

propotildee a verificar a autenticidade de certos diaacutelogos ldquoduvidososrdquo por meio de

uma anaacutelise estiliacutestica destas obras A metodologia adotada por Ritter eacute certamente

questionaacutevel Pois segundo ele ldquoqualquer obra suspeita que apresente uma

3 Deixo ao leitor o julgamento acerca do grau de paralelismo existente entre esta passagens

Anteriormente argumentei contra o uso deste tipo de referecircncia textual entre os diaacutelogos como forma de estabelecer relaccedilotildees cronoloacutegicas de composiccedilatildeo pois conforme dito na ocasiatildeo o fato do Teeteto fazer menccedilatildeo ao Parmecircnides natildeo implica necessariamente que Platatildeo tenha escrito o Teeteto antes Platatildeo pode muito bem ter mencionado uma cena dramaacutetica sobre a qual ainda intencionava escrever A existecircncia deste tipo de menccedilatildeo me parece poder seu usado contudo para sustentar a autenticidade de uma obra em relaccedilatildeo a outra Claro que natildeo estamos falando de uma prova definitiva de autenticidade pois um falsaacuterio poderia estar citando obras conhecidas de Platatildeo No entanto como vimos a intertextualidade e a referecircncia entre diaacutelogos eacute uma propriedade essencial da obra platocircnica e portanto um diaacutelogo tatildeo inserido em relaccedilotildees intertextuais como o Parmecircnides compartilha segundo meu ponto de vista de uma das caracteriacutesticas principais da obra platocircnica

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surpreendente mistura de expressotildees caracteriacutesticas de diferentes periacuteodos

[estiliacutesticos] deve ser imediatamente declarada espuacuteriardquo (cf Brandwood 1990

p83) Ora tal afirmaccedilatildeo reflete uma confianccedila claramente exacerbada acerca das

capacidades do meacutetodo estilomeacutetrico Afinal para podermos declarar tatildeo

prontamente a inautenticidade de uma obra segundo este criteacuterio devemos

acreditar que Platatildeo natildeo sofreu mudanccedilas gradativas de estilo mas tornou-se

praticamente um novo autor a cada mudanccedila de fase No entanto apesar de

nenhum dos pontos apresentados por Ritter poder ser usado como prova absoluta

para inautenticidade a soma destes elementos poderia a princiacutepio fortalecer

argumentos de outra natureza aumentando assim o grau de suspeita com relaccedilatildeo

agrave autoria de algum diaacutelogo Com relaccedilatildeo ao Parmecircnides Ritter apresenta a

seguinte lista de elementos desviantes

1) No Parmecircnides a distribuiccedilatildeo de palavras usadas para introduzir

discursos diretos eacute diferente daquela que encontramos nos outros

diaacutelogos Para a terceira pessoa do verbo φηmicroί por exemplo

temos no Parmecircnides a seguinte relaccedilatildeo 19 ἔφη 2 εἶπε 0 ἦ δ

ὅς Nos outros diaacutelogos temos apenas um caso de εἶπε (RepVII) e

encontramos em meacutedia 1 ἦ δ ὅς para cada 5 ἔφη

2) O Parmecircnides emprega apenas nomes no caso vocativo como

forma de dirigir a palavra a algueacutem enquanto os outros diaacutelogos

usam foacutermulas como ὦ ἄριστε ὦ ἑταῖρε e ὦ φίλε com frequecircncia

(Men 47 Teet 50 Feacutedr 37 Craacutet33 poreacutem Fileacuteb 7)

3) A mudanccedila de orador eacute mais frequente no Parmecircnides do que em

qualquer outra obra a meacutedia do Parmecircnides eacute de 9 a 10 mudanccedilas

de orador por paacutegina enquanto que a maior frequecircncia em outras

obras estaacute no Sofista com apenas 4 por paacutegina

4) Duas foacutermulas de resposta satildeo usadas mais no Parmecircnides do que

em qualquer outra obra ἀδύνατον e ἀνάγκη

5) οὐδὲ microὴν como jaacute havia sido notado por Dittenberger ocorre mais

no Parmecircnides do que em qualquer outra obra

6) Finalmente πῶς δ οὔ aparece de forma preponderante em relaccedilatildeo

a πῶς γὰρ οὐ (216) enquanto nas outras obras esta relaccedilatildeo nunca

eacute tatildeo diacutespare sendo o Poliacutetico (148) o diaacutelogo com a proporccedilatildeo

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mais proacutexima agravequela do Parmecircnides

(Brandwood 1990 p86)

Estas idiossincrasias de estilo contudo podem ser compreendidas caso

tenhamos em mente que o Parmecircnides possui longas falas de personagens que natildeo

aparecem em nenhum outro diaacutelogo platocircnico Eacute portanto natural que a

linguagem deste diaacutelogo desvie do restante da obra platocircnica Sendo assim o natildeo

uso de expressotildees vocativas como ὦ ἄριστε por exemplo pode muito bem ser

uma decisatildeo plenamente consciente de Platatildeo Assim considerada a ausecircncia

destas expressotildees no Parmecircnides denota apenas o caraacuteter direto da argumentaccedilatildeo

desenvolvida pelos personagens Parmecircnides e Zenatildeo4 Da mesma maneira a

mudanccedila constante de orador deve-se claramente ao estilo e extensatildeo da

argumentaccedilatildeo desenvolvida na segunda parte do diaacutelogo na qual cada pequeno

passo no desenvolvimento loacutegico dos argumentos eacute confirmado pelo interlocutor

O mesmo vale com relaccedilatildeo ao uso constante das expressotildees ἀδύνατον e ἀνάγκη

que demonstram apenas o reconhecimento por parte dos interlocutores da

necessidade loacutegica inerente aos argumentos desenvolvidos no diaacutelogo Por fim

como observa Brandwood eacute preciso notar que o caraacuteter geral do Parmecircnides eacute tatildeo

proacuteprio e diverge tanto daquilo que encontramos em outros diaacutelogos que a

admissatildeo de sua autenticidade prejudicaria o argumento de Ritter com relaccedilatildeo agrave

inautenticidade de outras obras uma vez que tal argumentaccedilatildeo funda-se

exclusivamente em uma anaacutelise estiliacutestica (cf Brandwood 1990 p86)

Portanto sobre a questatildeo da autenticidade de nossa obra podemos

apresentar os seguintes resultados

1) O Parmecircnides eacute tido como autecircntico por Thrasillus (36 DC) e

muito provavelmente tambeacutem por Aristoacutefanes de Bizacircncio (180

AC) aleacutem de nenhum comentador antigo jamais ter levantado

duacutevidas sobre sua autenticidade

2) Temos fortes razotildees para acreditar que Platatildeo refere-se ao

Parmecircnides em diversas outras obras e por assim dizer nosso

diaacutelogo possui um papel de destaque na intertextualidade platocircnica

4 Aleacutem disso a ausecircncia de expressotildees como ὦ ἄριστε e ὦ ἑταῖρε eacute apenas um dos resultados da

teacutecnica de evitar hiatos adotada por Platatildeo durante a uacuteltima fase de sua carreira literaacuteria Afinal ambas expressotildees possuem hiatos e podem ser facilmente substituiacutedas

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3) A imensa maioria das anaacutelises estilomeacutetricas apresenta o

Parmecircnides como um diaacutelogo legiacutetimo Aleacutem disso a

argumentaccedilatildeo de Ritter uacutenico autor a desenvolver argumentos

estiliacutesticos contra a autenticidade de nosso diaacutelogo estaacute claramente

sujeita a criacuteticas de ordem metodoloacutegica e pelo menos a metade

de sua lista de caracteriacutesticas estiliacutesticas desviantes do Parmecircnides

(pontos 2 3 e 4) pode ser facilmente compreendida como o

resultado direto do tipo de argumentaccedilatildeo apresentada no diaacutelogo

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411 A Posiccedilatildeo do Parmecircnides no interior da obra de Platatildeo

Tendo apresentado nossas consideraccedilotildees acerca da autenticidade do

Parmecircnides passamos agora ao natildeo menos conturbado assunto do

posicionamento desta obra no interior da seacuterie de diaacutelogos platocircnicos Como

vimos os comentadores do inicio do seacuteculo XIX natildeo estavam de posse de um

criteacuterio objetivo para a ordenaccedilatildeo dos diaacutelogos contavam apenas com os criteacuterios

bastante duvidosos de referecircncia intertextual e menccedilatildeo a fatos histoacutericos

conhecidos Sendo assim as ordenaccedilotildees de diaacutelogos oferecidas por estes

comentadores fundavam-se basicamente naquilo que cada um considerava ser o

conteuacutedo da filosofia platocircnica o que os levava a resultados bastante inusitados

Deste modo a despeito disto parecer impensaacutevel para um leitor moderno

o Parmecircnides foi considerado pela maior parte dos helenistas alematildees do seacuteculo

XIX um dos primeiros diaacutelogos de Platatildeo Schleiermacher por exemplo

considera o Parmecircnides uma das primeiras obras e encontra em nosso diaacutelogo tal

como encontra no Feacutedro e no Protaacutegoras uma ldquomaneira jovial de expressatildeordquo

(Schleiermacher 1836 p115) Esta afirmaccedilatildeo de Schleiermacher eacute

posteriormente reafirmada por Hermann (1839) que ainda aponta na bibliografia

de Platatildeo uma justificativa para a identificaccedilatildeo do Parmecircnides como uma obra da

juventude Com base no testemunho de um certo Hermoacutegenes (cf Dioacutegenes

Laeacutercio II 106 III 6) segundo o qual Platatildeo teria fugido para Meacutegara logo apoacutes

a morte de Soacutecrates Hermann atribui a composiccedilatildeo do Parmecircnides ao momento

em que Platatildeo tendo por volta de vinte anos estaria entrando em contato com

pensadores de fora do circuito ateniense e socraacutetico De acordo com Hermann a

presenccedila de Parmecircnides e Zenatildeo no diaacutelogo evidencia a influecircncia megaacuterica sob a

qual o diaacutelogo teria sido escrito

A identificaccedilatildeo do Parmecircnides como uma das primeiras obras de Platatildeo

permanece prevalecente entre os classicistas alematildees ateacute Ueberweg (1861)

Ueberweg eacute o primeiro autor a questionar a veracidade do depoimento acerca da

fuga de Platatildeo para Meacutegara desfazendo assim a crenccedila no periacuteodo megaacuterico de

Platatildeo Contudo Ueberweg atribui uma data tatildeo tardia para a composiccedilatildeo do

Parmecircnides que eacute levado a crer que nosso diaacutelogo eacute uma obra espuacuteria escrita por

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algum membro da academia apoacutes a morte de Platatildeo Com o fim do mito do

periacuteodo megaacuterico de Platatildeo passamos a encontrar as propostas mais discrepantes

acerca do posicionamento do Parmecircnides e no extremo oposto da posiccedilatildeo de

Schleiermacher Zeller (1883) identifica o Parmecircnides como o diaacutelogo (natildeo-

escrito) Filosoacutefo colocando-o no fim da trilogia iniciada por Sofista e Poliacutetico no

fim da carreira literaacuteria de Platatildeo5

Com o aparecimento do meacutetodo estilomeacutetrico o Parmecircnides deixa de

figurar nos extremos das cronologias de composiccedilatildeo dos diaacutelogos e passa a ocupar

uma posiccedilatildeo intermediaacuteria que vai em pouco tempo se tornar bastante

consolidada Para sermos precisos o primeiro dos estudos estilomeacutetricos aquele

de Campbell (1867) coloca o Parmecircnides estranhamente como um dos primeiros

diaacutelogos proacuteximo a obras como Ecircutifron Apologia e Ion No entanto esta

posiccedilatildeo eacute tatildeo discrepante das expectativas gerais acerca do Parmecircnides que o

proacuteprio Campbell recusa-se a aceitaacute-la e atribui este resultado a ldquocircunstacircncias

excepcionaisrdquo sem especificar quais satildeo estas circunstacircncias (Campbell 1867

pxxxiii)

A partir do refinamento dos criteacuterios de anaacutelise estiliacutestica operado por

Dittenberger (1896) o Parmecircnides passa a ser colocado entre os uacuteltimos diaacutelogos

ocupando especialmente a posiccedilatildeo de primeiro diaacutelogo da uacuteltima fase estiliacutestica de

Platatildeo Tal posicionamento para o Parmecircnides eacute subsequentemente consolidado

pelos criteacuterios de Ritter von Arnim e Baron (cf Brandwood 1990 p251) De

fato Campbell trinta anos depois de sua primeira publicaccedilatildeo sobre o assunto

lanccedila um artigo especificamente sobre o estilo do Parmecircnides no qual apresenta

novos resultados e conclui que nosso diaacutelogo eacute certamente posterior a obras

como Repuacuteblica e Feacutedro De modo geral o trabalho de Campbell sobre o

vocabulaacuterio do Parmecircnides tambeacutem corrobora a posiccedilatildeo de Dittenberger

identificando nosso diaacutelogo ao lado do Teeteto como obras diretamente

anteriores ao Sofista e ao Poliacutetico (Campbell 1896 p129-136) Todos estes

resultados satildeo ainda reforccedilados pelas circunstacircncias jaacute notadas por Ueberweg de

que o Parmecircnides possui muito pouca accedilatildeo dramaacutetica quando comparado a

diaacutelogos como Repuacuteblica e Banquete possui trechos de discurso direto inseridos

5 Para um resumo das posiccedilotildees dos comentadores alematildees do seacuteculo XIX acerca da cronologia

de composiccedilatildeo das obras de Platatildeo (cf Lutoslawski 1897 p35-63)

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em meio a um longo discurso indireto6 e sobretudo natildeo apresenta Soacutecrates como

orador principal trecircs caracteriacutesticas proacuteprias dos diaacutelogos da uacuteltima fase

Finalmente resta observar que mesmo natildeo sendo possiacutevel determinar a

posiccedilatildeo exata de um diaacutelogo no interior de cada fase estiliacutestica podemos dizer que

o Parmecircnides possui um estilo claramente transicional possuindo um vocabulaacuterio

relativo agrave apresentaccedilatildeo claacutessica da Teoria das Ideias tal como exposta nos

diaacutelogos da fase meacutedia e ao mesmo tempo inovaccedilotildees de estilo caracteriacutesticas dos

diaacutelogos da uacuteltima fase Some-se a isso o fato de que o conteuacutedo do Parmecircnides

parece ilustrar exatamente esta dualidade apresentando uma primeira parte

voltada para questotildees relativas agrave formulaccedilatildeo claacutessica da Teoria das Ideias poreacutem

com um caraacuteter criacutetico e uma segunda parte na qual o personagem Soacutecrates

praticamente desaparece e um estilo completamente novo de argumentaccedilatildeo eacute

apresentado

Em funccedilatildeo desta soma de fatores a partir da virada do seacuteculo XX nosso

diaacutelogo passa a figurar em uma posiccedilatildeo intermediaacuteria entre a segunda e terceira

fase da obra de Platatildeo de maneira virtualmente inquestionaacutevel Esta hipoacutetese

permanece tatildeo consolidada entre os comentadores contemporacircneos que mesmo

com a imensa diversidade de interpretaccedilotildees apresentadas para nosso diaacutelogo

simplesmente desconheccedilo qualquer publicaccedilatildeo lanccedilada nos uacuteltimos cem anos em

que este posicionamento para o Parmecircnides no interior da obra de Platatildeo seja

questionado

6 Este aspecto formal eacute particularmente visiacutevel na segunda parte do Parmecircnides onde um uacutenico

φάναι inicial (137c4) antecede vaacuterias paacuteginas de discurso em forma direta

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412 O Proacutelogo do Parmecircnides

O Parmecircnides descreve um diaacutelogo travado entre Soacutecrates ainda bastante

jovem Zenatildeo Parmecircnides e Aristoacuteteles natildeo o filoacutesofo mas um jovem que viria a

se tornar um dos trinta tiranos A conversa que nos chega natildeo eacute narrada por um

dos presentes no encontro mas por Ceacutefalo que o tinha ouvido de Antifonte meio

irmatildeo de Platatildeo que havia ouvido e memorizado a conversa a partir do relato de

Pitodoro Pitodoro por sua vez havia ouvido a conversa por ser companheiro de

Zenatildeo e ter abrigado os visitantes durante sua estada em Atenas (AlcibI 119a)

Apesar de natildeo ser o uacutenico diaacutelogo a apresentar este tipo de encadeamento

narrativo7 o Parmecircnides eacute o diaacutelogo no qual o relato que nos eacute oferecido estaacute

mais distante da conversa original tanto no tempo quanto no nuacutemero de ldquoelosrdquo da

cadeia narrativa Afinal aquele que lecirc o Parmecircnides (e portanto ldquoouverdquo a

narrativa de Ceacutefalo) encontra-se no quarto estaacutegio de uma cadeia de transmissatildeo

do conteuacutedo de uma conversa que teria acontecido haacute pelo menos cinquenta anos

antes do momento dramaacutetico em que Ceacutefalo oferece seu relato8 A estrutura

narrativa descrita no proacutelogo do Parmecircnides pode ser representada pela seguinte

figura

[ZENAtildeO PARMEcircNIDES SOacuteCRATES ARISTOacuteTELES]

[PITODORO ANTIFONTE]

[ANTIFONTE CEacuteFALO]

[CEacuteFALO LEITOR]

7 O Feacutedon o Banquete e o Teeteto tambeacutem satildeo narrados por pessoas que natildeo presenciaram os

acontecimentos descritos 8 A data dramaacutetica para a realizaccedilatildeo do suposto encontro entre Parmecircnides Soacutecrates e Zenatildeo eacute

estabelecida pela menccedilatildeo agraves Grande Panateneacuteias festivais realizados de quatro em quatro anos em honra a Atenaacute Segundo o diaacutelogo Parmecircnides e Zenatildeo estariam em visita a Atenas com o objetivo de participar deste festival De acordo com as informaccedilotildees que nos satildeo fornecidas acerca da idade dos personagens do diaacutelogo (127b-c Parmecircnides teria por volta de sessenta e cinco anos Zenatildeo estaria proacuteximo dos quarenta e Soacutecrates era ainda bastante jovem) podemos estabelecer o festival do ano de 449450 AC como a data base para o encontro narrado Como Ceacutefalo natildeo busca o proacuteprio Soacutecrates para ouvir o relato deste encontro podemos deduzir ainda que no momento da chegada de Ceacutefalo e sua comitiva em Atenas Soacutecrates jaacute havia sido executado fato ocorrido em 399 AC Sendo assim ao menos cinquenta anos separam o relato de Antifonte do momento do encontro inicial Natildeo temos razatildeo para acreditar que o relato de Ceacutefalo esteja ocorrendo muito depois desta data mas as indicaccedilotildees satildeo precisas o suficiente para deixar claro ao leitor a consideraacutevel distacircncia entre a narrativa que nos chega e a conversa original

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Deste modo o Parmecircnides relata uma conversa travada entre Zenatildeo

Parmecircnides Soacutecrates e Aristoacuteteles que foi narrada por Pitodoro a Antifonte que

narrou a Ceacutefalo que por sua vez narra ao leitor Este fato nos eacute lembrado em

pelo menos duas passagens do texto nas quais a cadeia de transmissatildeo eacute

explicitada (130a e 136e) Aleacutem disso esta estrutura nunca desaparece plenamente

de vista para o leitor do texto grego pois todo o diaacutelogo eacute em forma de discurso

indireto com discursos diretos inseridos Eacute claro portanto que tamanha

complexidade de estrutura narrativa natildeo pode ser acidental Platatildeo certamente

intencionava passar alguma mensagem por meio da apresentaccedilatildeo de um proacutelogo

tatildeo cuidadosamente construiacutedo e eacute tarefa do inteacuterprete levantar hipoacuteteses acerca

destas intenccedilotildees

Como a maior parte dos comentadores observa a primeira liccedilatildeo que

podemos tirar da estrutura narrativa do Parmecircnides diz respeito agrave ausecircncia total de

veracidade histoacuterica do relato Ao estabelecer uma longa distacircncia temporal entre

a narrativa que nos eacute oferecida e o fato dramaacutetico que nos eacute narrado Platatildeo indica

ao leitor que o conteuacutedo do Parmecircnides eacute plenamente ficcional e que ningueacutem

deve tentar confirmar nenhum dos seus detalhes mesmo que um encontro entre

Parmecircnides e Soacutecrates tenha de fato acontecido coisa que a maior parte dos

comentadores considera improvaacutevel ou mesmo impossiacutevel9

A segunda conclusatildeo que podemos extrair da complexa estrutura narrativa

apresentada no Parmecircnides diz respeito ao efeito dramaacutetico que este tipo de

proacutelogo pretende criar no leitor Nosso diaacutelogo se inicia com a histoacuteria de que

cinquenta anos apoacutes um encontro entre Parmecircnides Zenatildeo e Soacutecrates um grupo

de pessoas ldquobastante interessadas em questotildees de sabedoriardquo (microάλα φιλόσοφοι) eacute

levado a deixar Clazocircmenas para cruzar o mar Egeu em busca de um ateniense

que acreditam ter informaccedilotildees sobre o que teria se passado nesta reuniatildeo Este

ateniense apesar de natildeo haver estado presente no encontro ocorrido antes mesmo

de seu nascimento considerava o conteuacutedo da conversa ali desenrolada tatildeo

importante que decidiu dedicar-se a decoraacute-la durante sua juventude A pessoa de

9 A ausecircncia de pretensatildeo histoacuterica eacute notada por praticamente todos os comentadores recentes

Mansfeld adotando 462461 como data dramaacutetica para o suposto encontro entre Parmecircnides e Soacutecrates acredita ainda que este evento nunca poderia ter acontecido como descrito por Platatildeo pois nesta data Soacutecrates teria apenas oito anos de idade ldquoNem ao menos se espera que os leitores do Parmecircnides acreditem que o encontro tenha realmente ocorridordquo (Mansfeld

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quem este ateniense ouviu a histoacuteria Pitodoro tampouco participou ativamente da

conversa poreacutem igualmente decorou o conteuacutedo do diaacutelogo e passou adiante10

O proacutelogo do Parmecircnides nos gera assim uma sensaccedilatildeo de curiosidade

acerca do texto que estamos prestes a ter acesso Aleacutem disso a longa lista de

pessoas dedicadas agrave preservaccedilatildeo do conteuacutedo desta conversa assim como a longa

jornada de Ceacutefalo e seus companheiros em busca desta narrativa nos garante a

seriedade e a importacircncia daquilo que nos seraacute revelado Como observa Allen ldquoa

proacutepria introduccedilatildeo do Parmecircnides por si soacute nos proiacutebe tratar o diaacutelogo como um

tipo estranho de piada ou trivializar o diaacutelogo como uma mera ginaacutestica ou um

exerciacutecio de detecccedilatildeo de simples falaacuteciasrdquo (Allen 1997 p71) O proacutelogo do

Parmecircnides adverte o leitor a se preparar desde o iniacutecio para a profundidade e

relevacircncia do conteuacutedo que seraacute apresentado

A caracteriacutestica mais importante da abertura de nosso diaacutelogo no entanto

parece ter passado despercebida para maior parte dos comentadores Trata-se do

fato de que a complexa estrutura narrativa montada no proacutelogo do Parmecircnides

encontra-se refletida na estrutura argumentativa do diaacutelogo Diferente da maior

parte dos diaacutelogos nos quais um mesmo interlocutor expotildee suas teses ou conduz a

refutaccedilatildeo de outro(s) personagem(s) o Parmecircnides eacute constituiacutedo por uma seacuterie de

momentos argumentativos distintos Nosso diaacutelogo comeccedila com a leitura dos

argumentos de Zenatildeo e uma menccedilatildeo aos detratores de Parmecircnides contra quem

estes argumentos satildeo endereccedilados Logo em seguida Soacutecrates aparece em cena e

passa a argumentar contra Zenatildeo Por fim Parmecircnides entra na discussatildeo e passa

a apresentar argumentos contra Soacutecrates Desta maneira temos Parmecircnides

oferecendo criacuteticas agrave Teoria das Ideias de Soacutecrates que havia sido apresentada

como uma refutaccedilatildeo agrave argumentaccedilatildeo de Zenatildeo que por sua vez havia sido

apresentada como uma criacutetica agrave tese pluralista defendida pelos detratores de

Parmecircnides Esta estrutura argumentativa pode ser representada pelo seguinte

1986 p44)

10 Eacute importante notar que no momento em que Ceacutefalo chega agrave Atenas em busca de informaccedilotildees sobre o encontro de Soacutecrates Zenatildeo e Parmecircnides todas as pessoas que estavam presentes neste encontro jaacute estatildeo mortas incluindo o proacuteprio Soacutecrates Portanto para Antifonte e Ceacutefalo assim como para o leitor do diaacutelogo o Parmecircnides narra momentos da vida de figuras de uma geraccedilatildeo passada uma geraccedilatildeo de grande importacircncia para a comunidade filosoacutefica grega cujas conversas e debates merecem ser lembrados e revividos meio seacuteculo apoacutes seu acontecimento O proacutelogo do Parmecircnides presta assim uma homenagem a esta geraccedilatildeo de pensadores jaacute perdida e o fato de Platatildeo fazer com que vaacuterios personagens tenham se dedicado ao ato de memorizar o conteuacutedo de um encontro entre estas pessoas indica ainda o apreccedilo de Platatildeo por estes indiviacuteduos

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esquema

[ PARMEcircNIDES PLURALISTAS]

[ PLURALISTAS ZENAtildeO]

[ ZENAtildeO SOacuteCRATES]

[SOacuteCRATES PARMEcircNIDES]

Da mesma forma que nossa histoacuteria eacute narrada por uma pessoa que conta o

que lhe foi narrado por outra pessoa que contou o que lhe foi narrado por outra

os argumentos do diaacutelogo satildeo ordenados de tal modo que cada um deles remete

aos resultados alcanccedilados pelos argumentos precedentes ao mesmo tempo em que

fornece a base para o argumento que se seguiraacute A estrutura argumentativa do

Parmecircnides encontra-se assim refletida e prenunciada na estrutura narrativa

descrita no proacutelogo do diaacutelogo

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413 O paradoxo de Zenatildeo

O primeiro argumento apresentado ao leitor do Parmecircnides eacute atribuiacutedo a

Zenatildeo Como sabemos Zenatildeo foi um defensor do monismo eleata e seus

argumentos receberam muito prestiacutegio ainda na antiguidade O interesse acerca

do pensamento de Zenatildeo faz com que muitos comentadores do Parmecircnides

analisem o paradoxo zenoniano presente no diaacutelogo em comparaccedilatildeo aos

argumentos do Zenatildeo histoacuterico Esta atitude pode ser vista por exemplo em

Proacuteclus que interpreta o paradoxo presente no Parmecircnides em funccedilatildeo do

conteuacutedo de uma obra atribuiacuteda a Zenatildeo na qual este paradoxo estaria descrito (In

Parm 694)11

Nos comentadores modernos esta abordagem tambeacutem parece prevalecer

Assim Cornford (Cornford 1951 p 53-62) dedica toda primeira seccedilatildeo de seu

comentaacuterio ao Parmecircnides agrave questatildeo da relaccedilatildeo entre Zenatildeo e seus oponentes da

escola pitagoacuterica Brisson (Brisson 1990 p15-28) igualmente passa boa parte

de sua introduccedilatildeo ao Parmecircnides discutindo a relaccedilatildeo entre as teses de Zenatildeo e

Parmecircnides natildeo como personagens do drama platocircnico mas como figuras

histoacutericas Ambos os autores mesmo reconhecendo a escassez de fontes sobre o

tema acabam por projetar a sua compreensatildeo do pensamento do Zenatildeo histoacuterico

na interpretaccedilatildeo do papel desta figura no interior de nosso diaacutelogo

Em contrapartida a esta atitude a importacircncia do paradoxo de Zenatildeo na

interpretaccedilatildeo do Parmecircnides tem sido na maior parte das vezes negligenciada

pelos comentadores Como observa Harte ldquomuito constantemente o interesse em

examinar a relaccedilatildeo entre as deduccedilotildees [da segunda parte do diaacutelogo] e a criacutetica de

Parmecircnides agraves Formas deu-se agraves custas de uma consideraccedilatildeo da conversa inicial

entre Soacutecrates e Zenatildeordquo (Harte 2002 p52) Uma das razotildees para esta negligecircncia

estaacute sem duacutevida no fato de que os comentadores consideram relativamente clara

a relaccedilatildeo desta conversa inicial com o restante da obra Segundo a opiniatildeo geral o

paradoxo de Zenatildeo serve como um pretexto para que Soacutecrates apresente a Teoria

11 Dillon em sua introduccedilatildeo ao Comentaacuterio ao Parmecircnides de Proacuteclus defende a tese de que

Proacuteclus daacute claros sinais de possuir um manuscrito da obra de Zenatildeo e que portanto devemos considerar vaacutelidas suas observaccedilotildees sobre o conteuacutedo desta obra A mais famosa destas observaccedilotildees afirma que o paradoxo apresentado no Parmecircnides fazia parte de um livro que conteria quarenta argumentos (cf MorrowampDillon 1987 p xxviii-xliii)

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das Ideias Sendo assim os comentadores tecem raacutepidas consideraccedilotildees sobre o

paradoxo de Zenatildeo e na maior parte das vezes jaacute em funccedilatildeo da soluccedilatildeo

apresentada por Soacutecrates para este paradoxo12

No entanto caso adotemos este tipo de interpretaccedilatildeo para o papel do

paradoxo de Zenatildeo no diaacutelogo estaremos de iniacutecio comprometendo a unidade da

argumentaccedilatildeo do Parmecircnides Pois segundo este ponto de vista o paradoxo de

Zenatildeo natildeo estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do restante do diaacutelogo e

natildeo passa de uma deixa dramaacutetica para entrada em cena de Soacutecrates e sua teoria

Sendo assim evitarei abrir a caixa de pandora do conteuacutedo do pensamento

eleaacutetico e me limitarei a oferecer uma interpretaccedilatildeo para o paradoxo de Zenatildeo agrave

altura do papel de destaque que este argumento recebe no nosso diaacutelogo No

Parmecircnides o paradoxo de Zenatildeo daacute ensejo a toda discussatildeo subsequente

Portanto segundo o princiacutepio de relaccedilatildeo entre os argumentos do diaacutelogo esboccedilado

na seccedilatildeo precedente os conceitos envolvidos neste paradoxo devem ressoar por

todo o restante da argumentaccedilatildeo

12 Allen (1997) eacute uma exceccedilatildeo

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414 Dois sentidos de multiplicidade e unidade implicado s na argumentaccedilatildeo zenoniana

A narrativa de Ceacutefalo inicia-se com a descriccedilatildeo de uma leitura puacuteblica dos

ldquoescritos de Zenatildeordquo (τῶν τοῦ Ζήνωνος γραmicromicroάτων) realizada na casa de Pitodoro

Eacute o proacuteprio Zenatildeo quem realiza a leitura e Soacutecrates acompanhado de muitos

outros faz parte da audiecircncia que se reuniu ansiosa para escutar o que seria dito

uma vez que esta era a primeira vez que tais escritos eram trazidos para Atenas

Ao final da apresentaccedilatildeo Soacutecrates pede para que seja lida novamente a primeira

hipoacutetese do primeiro argumento e ao fim diz

ldquoQue queres dizer com isso Zenatildeo Que se os seres satildeo muacuteltiplos entatildeo eacute preciso que eles sejam tanto semelhantes quanto dessemelhantes mas que isso eacute impossiacutevel pois nem as coisas dessemelhantes podem ser semelhantes nem as semelhantes dessemelhantes Natildeo eacute isso que queres dizerrdquo Πῶς φάναι ὦ Ζήνων τοῦτο λέγεις εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα ὡς ἄρα δεῖ αὐτὰ ὅmicroοιά τε εἶναι καὶ ἀνόmicroοια τοῦτο δὲ δὴ ἀδύνατον οὔτε γὰρ τὰ ἀνόmicroοια ὅmicroοια οὔτε τὰ ὅmicroοια ἀνόmicroοια οἷόν τε εἶναι οὐχ οὕτω λέγεις (127e1-5)

Zenatildeo responde afirmativamente e somos apresentados assim ao primeiro

argumento do diaacutelogo Platatildeo constroacutei este argumento de maneira bastante

resumida nos fornecendo apenas as premissas e a conclusatildeo da argumentaccedilatildeo

zenoniana Fica claro a partir do resumo de Soacutecrates que estamos lidando com

uma reduccedilatildeo ao absurdo da tese pluralista segundo a qual os seres satildeo muacuteltipos

(πολλά ἐστι τὰ ὄντα) O sentido preciso desta tese contudo natildeo estaacute claro de

imediato Sobretudo porque logo depois Soacutecrates iraacute reformulaacute-la por meio do

condicional ldquose os muacuteltipos satildeordquo ou ldquose haacute muacuteltiplas [coisas]rdquo (εἰ πολλά ἐστιν)

(128d5) No primeiro caso εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα o adjetivo πολλά (muacuteltiplos) eacute

apresentado como um predicado do sujeito ὄντα (seres) significando que os seres

satildeo muacuteltiplos no sentido de que possuem vaacuterios atributos Jaacute no segundo caso o

adjetivo substantivado [τὰ] πολλά torna-se o sujeito de uma sentenccedila absoluta

podendo ser traduzida por ldquose muacuteltiplas [coisas] satildeordquo ou ldquose haacute muacuteltiplas

[coisas]rdquo13

13 A diferenccedila entre estas duas formulaccedilotildees natildeo eacute tatildeo bem definida em grego quanto sugerem as

traduccedilotildees por mim apresentadas Afinal τὰ ὄντα pode estar subentendido como sujeito da

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Temos portanto dois sentidos distintos para o argumento de Zenatildeo O

argumento pode estar visando demonstrar a impossibilidade de uma pluralidade

numeacuterica isto eacute da tese de que haacute mais de uma coisa no mundo ou pode estar

visando demonstrar a impossibilidade de uma mesma coisa possuir mais de um

atributo Neste uacuteltimo caso seu objetivo eacute demonstrar que cada coisa eacute

perfeitamente simples homogecircnea e indivisiacutevel Naturalmente estas duas teses

satildeo independentes uma da outra Afinal podemos sustentar que soacute haacute uma coisa

no mundo poreacutem considerando esta coisa como muacuteltipla dotada de vaacuterias partes

ou atributos Ao passo que por outro lado podemos sustentar que haacute vaacuterias

coisas no entanto considerarmos cada uma delas como simples e indivisiacutevel

Soacutecrates contudo oferece tanto εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα quanto εἰ πολλά ἐστιν

como formulaccedilotildees vaacutelidas para uma mesma hipoacutetese Sendo assim devemos

entender que ao menos em nosso diaacutelogo estas duas teses estatildeo sendo

apresentadas em conjunto representando dois lados de uma mesma moeda ou

duas perspectivas complementares de uma mesma posiccedilatildeo filosoacutefica

Os personagens do Parmecircnides parecem reconhecer esta dualidade

inerente agrave argumentaccedilatildeo zenoniana Soacutecrates por exemplo daacute sinais de sua

compreensatildeo deste fato ao ressaltar ora um ora outro aspecto da argumentaccedilatildeo

zenoniana Em 127e8-128a1 por exemplo Soacutecrates pergunta a Zenatildeo

ldquoSeraacute que eacute isso que querem dizer teus argumentos natildeo outra coisa senatildeo sustentar decididamente contra tudo o que se afirma que natildeo haacute muacuteltiplas coisas (οὐ πολλά ἐστι) E disso mesmo crecircs ser prova para ti cada um dos argumentos de sorte que tambeacutem acreditas apresentar tantas provas de que natildeo haacute muacuteltiplas coisas quantos argumentos escrevestesrdquo ἆρα τοῦτό ἐστιν ὃ βούλονταί σου οἱ λόγοι οὐκ ἄλλο τι ἢ διαmicroάχεσθαι παρὰ πάντα τὰ λεγόmicroενα ὡς οὐ πολλά ἐστι καὶ τούτου αὐτοῦ οἴει σοι τεκmicroήριον εἶναι ἕκαστον τῶν λόγων ὥστε καὶ ἡγῇ τοσαῦτα τεκmicroήρια παρέχεσθαι ὅσουσπερ λόγους γέγραφας ὡς οὐκ ἔστι πολλά (127e8-128a1)

Nesta passagem por meio do uso repetitivo de expressotildees no plural

Soacutecrates indica a incongruecircncia da atitude de Zenatildeo que afirma que natildeo haver

muacuteltiplas coisas (οὐ πολλά ἐστι) natildeo obstante fazendo uso de muacuteltiplos

argumentos para provar esta afirmaccedilatildeo Como observa Soacutecrates ao tentar provar a

segunda sentenccedila o que tornaria as duas formulaccedilatildeo idecircnticas Trata-se de um caso de ambiguidade sintaacutetica em que as duas leituras satildeo possiacuteveis para cada uma das formulaccedilotildees De acordo com minha interpretaccedilatildeo este tipo de ambiguidade recorrente na primeira parte do diaacutelogo eacute proposital

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inexistecircncia de uma pluralidade de coisas por meio de muacuteltiplos argumentos

Zenatildeo comete um claacutessico caso de paradoxo performativo dando prova

justamente daquilo que ele nega ser possiacutevel

Ora fica claro que neste momento Soacutecrates estaacute tratando o argumento de

Zenatildeo como uma prova da impossibilidade da existecircncia de muacuteltiplos indiviacuteduos

ou como uma defesa da tese de que soacute haacute uma uacutenica coisa (monismo numeacuterico)

Esta identificaccedilatildeo eacute ainda reafirmada por Soacutecrates quando ele estabelece logo em

seguida a equivalecircncia entre o argumento de Zenatildeo e a tese parmeniacutedica de que

ldquoo todo eacute umrdquo (ἓν εἶναι τὸ πᾶν)

Este comentaacuterio eacute geralmente considerado como a palavra final de

Soacutecrates acerca do sentido da argumentaccedilatildeo zenoniana sendo seguido por uma

longa fala em que a Teoria das Ideias eacute apresentada e o paradoxo de Zenatildeo eacute

superado e natildeo mais invocado na discussatildeo Esta leitura do texto leva a maior

parte dos comentadores a considerar o paradoxo de Zenatildeo como uma defesa

apenas da tese do monismo numeacuterico sem que esteja implicada no paradoxo uma

prova da impossibilidade das coisas possuiacuterem muacuteltiplos atributos14 O defensor

mais radical deste tipo de interpretaccedilatildeo eacute sem duacutevida Luc Brisson (1990) que

com base nesta passagem pretende natildeo apenas limitar a argumentaccedilatildeo de Zenatildeo a

uma afirmaccedilatildeo do monismo numeacuterico como tambeacutem identificar a expressatildeo τὸ

πᾶν traduzida por ele como ldquoo universordquo ou ldquoo conjunto de todos os conjuntos de

todas as coisas sensiacuteveisrdquo como o sujeito impliacutecito de todas as formulaccedilotildees da

tese unitarista (cf Brisson 1990 p18-27)15

Entretanto a identificaccedilatildeo da argumentaccedilatildeo de Zenatildeo com o monismo

numeacuterico de Parmecircnides soacute eacute estabelecida explicitamente nesta passagem Por

todo o restante do diaacutelogo Platatildeo faz uso de expressotildees deliberadamente

ambiacuteguas para se referir tanto agrave tese pluralista alvo do paradoxo de Zenatildeo quanto

14 Vide por exemplo o comentaacuterio de Rossvaer ldquoZenatildeo toma como ponto de partida a hipoacutetese

de que as coisas satildeo muacuteltiplas Mas natildeo eacute exatamente isso o que ele quer dizer O que ele quer dizer eacute que o Ser (o todo) eacute Um tal como seu mestre (Rossvaer1983 p15) No mesmo sentido (cf Coxon 1999 p97) O uacutenico autor que reconhece a dualidade implicada na argumentaccedilatildeo de Zenatildeo eacute El Murr (2010) embora a interpretaccedilatildeo oferecida por MacCabe (1996) tambeacutem pressuponha este reconhecimento

15 Bisson vai aleacutem e identifica τὸ πᾶν como o sujeito subentendido de todas as hipoacuteteses da segunda parte do Parmecircnides (cf Brisson 1990 p18-27) No entanto ao afirmar a expressatildeo τὸ πᾶν como o sujeito oculto de todas as expressotildees em que o um aparece ligado ao verbo ldquoserrdquo tanto na primeira quanto na segunda parte do diaacutelogo Brisson estaacute oferecendo uma interpretaccedilatildeo claramente violenta ao texto do Parmecircnides Afinal Platatildeo dificilmente esconderia a chave para compreensatildeo de todo o diaacutelogo em uma uacutenica ocorrecircncia da expressatildeo

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agrave tese monista defendida por Zenatildeo e Parmecircnides Isto fica claro a partir do

inventaacuterio realizado por Giovanni Casertano que nos lista todas as formulaccedilotildees

das teses monista e pluralista presentes no Parmecircnides divididas entre afirmaccedilotildees

diretas e formulaccedilotildees hipoteacuteticas (cf Cassertano 1990 p386-388) Como

afirmaccedilotildees hipoteacuteticas em sentenccedilas condicionais temos

1) εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα (127e1)

2) εἰ γὰρ πολλὰ εἴη (127e7)

3) εἰ ἕν ἐστι (128d1)

4) εἰ πολλά ἐστιν (128d5)

5) ἡ τοῦ ἓν εἶναι (128d5)

6) εἰ πολλά ἐστι (136a6)

7) εἰ microή ἐστι πολλά (136a6)

Como assertivas diretas temos

8) ἀδύνατον δὴ καὶ πολλὰ εἶναι (127e6-7)

9) ὡς οὐ πολλά ἐστι (127e9)

10) ὡς οὐκ ἔστι πολλά (127e9-128a1)

11) ἓν φῂς εἶναι τὸ πᾶν (128a7-b1)

12) οὐ πολλά φησιν εἶναι (128b2)

13) τὸν microὲν ἓν φάναι τὸν δὲ microὴ πολλά (128b3)

14) τὰ πολλὰ λέγοντας

15) τῆς ἐmicroαυτοῦ ὑποθέσεως () εἴτε ἕν ἐστιν εἴτε microὴ ἕν (137b3-4)

Com base neste inventaacuterio eacute possiacutevel constatar que somente na passagem

nuacutemero 11 τὸ πᾶν eacute apresentado como o sujeito expliacutecito da hipoacutetese de

Parmecircnides Por todo o restante do diaacutelogo Platatildeo faz uso de expressotildees

ambiacuteguas sem sujeito definido para se referir tanto agraves teses de Parmecircnides e

Zenatildeo quanto agraves teses dos defensores do pluralismo16 Portanto dado o grande

nuacutemero de passagens em que a tese monista de Zenatildeo e Parmecircnides natildeo aparece

τὸ πᾶν em meio a esta fala aparentemente despretenciosa de Soacutecrates

16 Com a exceccedilatildeo eacute claro da sentenccedila nuacutemero 1 que como jaacute observamos apresenta πολλά como predicativo do sujeito τὰ ὄντα

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diretamente vinculada ao monismo numeacuterico natildeo temos razatildeo para projetar

aquilo que encontramos em uma uacutenica passagem como a interpretaccedilatildeo definitiva

para todas as outras

Caso tenhamos em mente a ambiguidade inerente agrave formulaccedilatildeo do

paradoxo de Zenatildeo poderemos notar que o segundo sentido de multiplicidade

implicado na sua argumentaccedilatildeo emerge como a interpretaccedilatildeo natural para outras

passagens do diaacutelogo Em uma destas passagens a possibilidade de um mesmo

indiviacuteduo possuir uma multiplicidade de partes eacute apresentada por Soacutecrates como

um dos resultados da sua soluccedilatildeo para o paradoxo Em 129c Soacutecrates diz

ldquoMas se algueacutem demonstrar que eu sou um17 e muacuteltiplas coisas que haacute nisso de espantoso Quando quiser mostrar que eu sou muacuteltiplas coisas diraacute que uma coisa eacute meu lado direito outra o esquerdo e que uma coisa eacute a frente outra a parte de traacutes e do mesmo modo com relaccedilatildeo agrave parte inferior e posterior pois participo creio da quantidade e por outro lado quando [quiser mostra] que sou um diraacute que dos sete que aqui estatildeo eu sou um homem participante que sou tambeacutem do umrdquo εἰ δ ἐmicroὲ ἕν τις ἀποδείξει ὄντα καὶ πολλά τί θαυmicroαστόν λέγων ὅταν microὲν βούληται πολλὰ ἀποφῆναι ὡς ἕτερα microὲν τὰ ἐπὶ δεξιά microού ἐστιν ἕτερα δὲ τὰ ἐπ ἀριστερά καὶ ἕτερα microὲν τὰ πρόσθεν ἕτερα δὲ τὰ ὄπισθεν καὶ ἄνω καὶ κάτω ὡσαύτως ndash πλήθους γὰρ οἶmicroαι microετέχω ndash ὅταν δὲ ἕν ἐρεῖ ὡς ἑπτὰ ἡmicroῶν ὄντων εἷς ἐγώ εἰmicroι ἄνθρωπος microετέχων καὶ τοῦ ἑνός (129c4-d1)

A importacircncia desta fala de Soacutecrates na compreensatildeo do conteuacutedo da

argumentaccedilatildeo de Zenatildeo natildeo parece ter sido notada pelos comentadores Isto deve-

se ao fato desta colocaccedilatildeo fazer parte de um discurso mais amplo no qual

Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que suas Formas estatildeo

sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos tal como estatildeo sujeitos os objetos sensiacuteveis

Contudo se limitarmos nossa interpretaccedilatildeo destas palavras de Soacutecrates agrave questatildeo

da copresenccedila de opostos a introduccedilatildeo do tema da unidade e multiplicidade torna-

se completamente incidental Afinal Soacutecrates poderia ter apresentado seu desafio

por meio de qualquer outro par de propriedades opostas Na verdade de acordo

com esta linha de raciociacutenio o aparecimento dos conceitos de unidade e

multiplicidade nesta passagem eacute inclusive desnecessaacuterio uma vez que Soacutecrates

jaacute havia formulado seu desafio por meio das propriedades ldquosemelhanterdquo e

ldquodessemelhanterdquo No entanto natildeo podemos considerar meramente ocasional esta

especiacutefica formulaccedilatildeo sobretudo em meio a uma discussatildeo centrada na questatildeo da

17 Coloco ldquoumrdquo em itaacutelico nesta e nas seguintes passagens para diferenciar o atributo ldquoser-umrdquo

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viabilidade teoacuterica da noccedilatildeo de multiplicidade Eacute claro que na dinacircmica

conversacional do diaacutelogo qualquer afirmaccedilatildeo sobre o tema da

unidademultiplicidade remete o leitor diretamente ao paradoxo de Zenatildeo e agrave

compreensatildeo de seu significado

A observaccedilatildeo de Soacutecrates deixa de ser irrelevante e passa a fazer sentido

se entendermos o paradoxo de Zenatildeo como uma prova tambeacutem da

impossibilidade de uma coisa uacutenica qualquer possuir muacuteltiplos atributos Soacutecrates

estaacute tornando expliacutecito nesta passagem o segundo sentido de multiplicidade

negado pela argumentaccedilatildeo de Zenatildeo a multiplicidade de partes ou atributos de

um mesmo indiviacuteduo Segundo Soacutecrates natildeo haacute nada de espantoso ao contraacuterio

do que pretende afirmar Zenatildeo no fato de uma dada coisa uacutenica ser tambeacutem

muacuteltipla dotada de vaacuterias partes

Portando para defender o monismo de seu mestre Parmecircnides Zenatildeo

pretende demonstrar a contradiccedilatildeo envolvida na admissatildeo da multiplicidade tout

court quer esta seja entendia como uma multiplicidade de indiviacuteduos quer como

uma multiplicidade de atributos de um mesmo indiviacuteduo Como veremos o

reconhecimento desta dualidade da argumentaccedilatildeo zenoniana se mostraraacute essencial

para a compreensatildeo dos argumentos seguintes Pois estes dois sentidos de

multiplicidade estaratildeo implicados na soluccedilatildeo de Soacutecrates para o paradoxos de

Zenatildeo assim como faratildeo parte da estrateacutegia utilizada por Parmecircnides na sua

contra-argumentaccedilatildeo agrave soluccedilatildeo socraacutetica

do artigo indefinido

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415 A reduccedilatildeo ao absurdo da tese pluralista

Tendo estabelecido os dois sentidos de multiplicidade afirmados pela tese

pluralista e negados pelo monismo de Zenatildeo e Parmecircnides podemos passar para a

anaacutelise do argumento zenoniano De acordo com o resumo apresentado por

Soacutecrates em 127e1-5 a reduccedilatildeo ao absurdo da tese pluralista eacute operada por Zenatildeo

por meio do seguinte raciociacutenio

1) Suponha que os seres satildeo muacuteltiplos (tese provisoriamente

assumida)

2) Se eles satildeo muacuteltiplos entatildeo eles satildeo tanto semelhantes quanto

dessemelhantes

3) Logo os seres satildeo tanto semelhantes quanto dessemelhantes (a

partir de 1 amp 2)

4) Ora eacute impossiacutevel que uma mesma coisa seja semelhante e

dessemelhante

5) Portanto os seres natildeo satildeo muacuteltiplos (afirma-se a negaccedilatildeo de 1

com base na contradiccedilatildeo entre 3 amp 4) 18

A invenccedilatildeo do meacutetodo de reduccedilatildeo ao absurdo que consiste em assumir

temporariamente uma tese para a partir dela derivar uma contradiccedilatildeo e assim

concluir a negaccedilatildeo da tese inicial natildeo deve ser atribuiacuteda a Zenatildeo embora

saibamos que ele tenha usado extensivamente este meacutetodo argumentativo

Segundo Thomas Heath o meacutetodo de reduccedilatildeo ao absurdo pode ter sua origem

traccedilada ateacute a escola pitagoacuterica e no tempo de Platatildeo este argumento jaacute era usado

largamente em provas matemaacuteticas envolvendo teoria dos nuacutemeros (cf Heath

1960 p294-295) Sendo assim podemos considerar que os leitores de Platatildeo natildeo

viam com estranheza este tipo de argumentaccedilatildeo

18 Trata-se de um argumento em Modus Tollendo Tollens isto eacute um argumento que neganto

(tollendo) o consequente da implicaccedilatildeo expressa na premissa nega (tollens) por consequecircncia loacutegica tambeacutem o antecedente Em notaccedilatildeo formal P rarr Q

~Q ~P

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Da mesma maneira a premissa nuacutemero 2 do argumento de Zenatildeo parece

bastante plausiacutevel e dificilmente teria sua validade objetada Zenatildeo pode estar

argumentando por exemplo que os muacuteltiplos seres como seres satildeo semelhantes

entre si enquanto que como muacuteltiplos e portanto numericamente distintos uns

dos outros satildeo dessemelhantes ou ainda que as diversas partes de um indiviacuteduo

satildeo semelhantes entre si enquanto partes de um mesmo indiviacuteduo poreacutem

dessemelhantes enquanto partes distintas

No entanto chama muita atenccedilatildeo o conteuacutedo da premissa nuacutemero 4 do

argumento Segundo esta premissa uma mesma coisa natildeo pode ser ao mesmo

tempo semelhante e dessemelhante Mas por quecirc Podemos pensar em miriacuteades

de casos em que uma mesma coisa eacute tanto semelhante quanto dessemelhante

Soacutecrates e Platatildeo por exemplo satildeo semelhantes pelo fato de ambos serem

atenienses no entanto satildeo dessemelhantes em vaacuterios outros aspectos como em

idade condiccedilatildeo social etc Enquanto inteacuterpretes devemos tentar entender porque

os interlocutores do Parmecircnides consideram intrigante e paradoxal o fato de uma

dada coisa possuir simultaneamente propriedades opostas mesmo quando estas

propriedades representam termos relativos (semelhante-dessemelhante maior-

menor etc)

A explicaccedilatildeo mais constantemente apresentada pelos comentadores segue

a mesma linha de raciociacutenio da criacutetica desenvolvida por Vlastos que citamos

anteriormente Zenatildeo estaria tratando predicados relacionais como predicados

monaacutedicos (ou adjetivos) Assim ele estaria ignorando o complemento existente

nos predicados relacionais e tratando a propriedade ldquoser semelhante a xrdquo como

equivalente agrave propriedade ldquoser semelhante simpliciterrdquo isto eacute estaria tratando um

predicado incompleto (que necessita de um complemento para ser significativo)

como um predicado completo (significativo por si soacute) Negligenciada a diferenccedila

entre estes dois tipos de predicados uma sentenccedila do tipo ldquoA eacute maior que B e

menor que Crdquo passa a ser equivalente a ldquoA eacute maior e menor simpliciterrdquo

tornando-se tatildeo contraditoacuteria quanto a sentenccedila ldquoA eacute quadrado e redondordquo

Este tipo de interpretaccedilatildeo foi primeiramente apresentada por Cornford

segundo o qual ldquonenhuma distinccedilatildeo eacute traccedilada entre qualidades e relaccedilotildees

Grandeza eacute tratada como se fosse uma qualidade como Brancura inerente agrave

pessoa granderdquo (Cornford 1951 p78) Cornford observa ainda que este tipo de

raciociacutenio parece ser particularmente favorecido pela sintaxe grega que permite

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sentenccedilas do tipo ldquoSimmias eacute grande em relaccedilatildeo (πρὸς) a Soacutecratesrdquo ou ainda

ldquoSimmias tem grandeza com relaccedilatildeo (πρὸς) a Soacutecratesrdquo nas quais o segundo

termo da relaccedilatildeo binaacuteria ldquoser-maior-querdquo natildeo eacute necessariamente introduzido por

um pronome relativo mas pode ser introduzido pela preposiccedilatildeo πρὸς Este fato

sintaacutetico teria supostamente induzido os pensadores gregos a negligenciar o

caraacuteter relacional de propriedades como ldquoser-semelhante-ardquo ou ldquoser-maior-querdquo

os levando a classificaacute-las como propriedades monaacutedicas do tipo ldquoser-brancordquo ou

ldquoser-belordquo

No entanto esta anaacutelise linguiacutestica por si soacute natildeo pode ser considerada

uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria Caso assim fosse Soacutecrates poderia simplesmente

argumentar em termos estritamente gramaticais e afirmar que usamos sentenccedilas

significativas com predicados relativos cotidianamente e que portanto o

paradoxo de Zenatildeo deveria ser simplesmente desconsiderado Pois soacute haacute

contradiccedilatildeo quando propriedades opostas satildeo atribuiacutedas a uma mesma coisa ao

mesmo tempo da mesma maneira e em relaccedilatildeo a uma mesma coisa 19

A ausecircncia de distinccedilatildeo entre predicados relacionais e predicados

completos no argumento de Zenatildeo no entanto nos remete diretamente a um tema

extremamente recorrente nos diaacutelogos a copresenccedila de propriedades opostas

Como vimos em diversos diaacutelogos Soacutecrates e seus interlocutores consideram a

copresenccedila de propriedades opostas nos objetos sensiacuteveis algo intrigante e

merecedor de uma explicaccedilatildeo teoacuterica complexa Na realidade o fato das entidades

sensiacuteveis estarem submetidas a este tipo de predicaccedilatildeo constitui aquilo que mais

propriamente as caracteriza o que fica claro pelo uso de predicados relacionais

nas demonstraccedilotildees socraacuteticas da diferenccedila entre o modo de ser das Formas e o

modo de ser das coisas do mundo sensiacutevel Assim submetidas a uma

multiplicidade de relaccedilotildees as entidades sensiacuteveis estatildeo sempre sujeitas agrave

predicaccedilatildeo de opostos o que eacute tido por Soacutecrates como uma evidecircncia de

contradiccedilatildeo interna e deficiecircncia ontoloacutegica nestes objetos

Portanto devemos entender que os predicados ldquosemelhanterdquo e

ldquodessemelhanterdquo do argumento de Zenatildeo estatildeo sendo empregados para ilustrar o

fato de que os objetos sensiacuteveis tecircm suas propriedades definidas pelas relaccedilotildees

em que estatildeo inseridos o que resulta na copresenccedila de opostos em um mesmo

19 De fato em uma passagem da Repuacuteblica IV (436b-c) Soacutecrates formula uma versatildeo da Lei da

Natildeo-Contradiccedilatildeo na qual todas estas qualificaccedilotildees satildeo mencionadas

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objeto e lhes confere um caraacuteter contraditoacuterio Ora eacute evidente que a extinccedilatildeo das

muacutetuas relaccedilotildees existentes entre os objetos sensiacuteveis seria suficiente para eliminar

o problema da copresenccedila de opostos pois um uacutenico objeto privado de qualquer

relaccedilatildeo eacute somente idecircntico a si mesmo

Eacute justamente esta a estrateacutegia da argumentaccedilatildeo zenoniana Reduzindo a

multiplicidade dos objetos sensiacuteveis a uma uacutenica entidade Zenatildeo elimina por

completo as muacuteltiplas relaccedilotildees entre eles consequentemente resolvendo o

problema da copresenccedila de opostos Assim enquanto Soacutecrates usa a copresenccedila

de opostos para caracterizar a deficiecircncia do mundo sensiacutevel e ainda postular a

existecircncia de entidades natildeo submetidas agraves relaccedilotildees que geram esta copresenccedila

Zenatildeo usa esta caracteriacutestica para negar toda possibilidade de multiplicidade

extinguindo por completo qualquer tipo de relaccedilatildeo e postulando a existecircncia de

uma uacutenica coisa privada de qualquer atributo salvo sua auto-identidade

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416 A soluccedilatildeo de Soacutecrates para o paradoxo de Zenatildeo

A despeito de todas as polecircmicas acerca da interpretaccedilatildeo do Parmecircnides a

compreensatildeo da soluccedilatildeo oferecida por Soacutecrates ao paradoxo de Zenatildeo destaca-se

como um ponto de notaacutevel consenso Os comentadores parecem concordar que a

estrateacutegia adotada por Soacutecrates consiste em desafiar o conteuacutedo da premissa

nuacutemero 4 do argumento de Zenatildeo por meio da distinccedilatildeo entre dois tipo de

entidades Formas e objetos sensiacuteveis Soacutecrates entende que os seres (τὰ ὄντα)

sobre os quais fala Zenatildeo satildeo objetos sensiacuteveis e como soluccedilatildeo ao paradoxo

apresenta as Formas como um tipo de entidade imune agrave copresenccedila de opostos

apontada por Zenatildeo

Recentemente contudo ateacute mesmo este aparente consenso foi ameaccedilado

Sandra Peterson em seu capiacutetulo sobre o Parmecircnides para The Oxford Handbook

of Plato (2008) distingue sua proacutepria interpretaccedilatildeo das interpretaccedilotildees que

atribuem a Soacutecrates uma apresentaccedilatildeo teacutecnica da Teoria das Ideias Ela acredita

que ldquose consideramos que Soacutecrates ostenta uma nova teoria de caraacuteter teacutecnico

com entidades desconhecidas [isto eacute as Formas] (hellip) natildeo percebemos o genuiacuteno

poder de sua simples refutaccedilatildeordquo (Peterson 2008 p383-411)

No entanto como se daria a soluccedilatildeo do paradoxo caso Soacutecrates natildeo

apelasse para Formas inteligiacuteveis Segundo a interpretaccedilatildeo proposta por Peterson

ldquoSoacutecrates simplesmente aponta pressuposiccedilotildees inegaacuteveis da fala cotidiana

(undeniable presuppositions of customary speech)rdquo para refutar Zenatildeo (Peterson

2008 p387) De acordo com Peterson a estrateacutegia geral da argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates consiste em demonstrar que predicados opostos satildeo ordinariamente

atribuiacutedos agraves coisas Sendo assim seu objetivo natildeo seria provar a invalidade do

argumento de Zenatildeo mas sim a sua irrelevacircncia ao fim de sua argumentaccedilatildeo

Soacutecrates teria demonstrado que o argumento de Zenatildeo natildeo apresenta um

paradoxo mas apenas uma verdade amplamente reconhecida

Peterson reconstroacutei a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates em trecircs movimentos

distintos que analisaremos separadamente O primeiro movimento eacute descrito por

ela da seguinte maneira

ldquoPrimeiro de 127e a 128b apoacutes ter esclarecido que o argumento de Zenatildeo eacute uma reduccedilatildeo

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ao absurdo da afirmaccedilatildeo de que os seres satildeo muacuteltiplos Soacutecrates leva Zenatildeo a expor sua

proacutepria crenccedila de que muacuteltiplas coisas satildeo semelhantes e dessemelhantes como por

exemplo quando Zenatildeo daacute a entender que ele e Parmecircnides satildeo semelhantes por dizerem

as mesmas coisas (128b5) e dessemelhantes por Zenatildeo dizer ldquonatildeo muacuteltiplosrdquo (not many) e

Parmecircnides dizer ldquoumrdquo (128b3ndash5) Por sugerir que haacute vaacuterios seres semelhantes em algum

aspecto e dessemelhantes em outros mesmo enquanto ele defende que natildeo pode haver

seres tanto semelhantes quanto dessemelhantes Zenatildeo eacute claramente inconsistenterdquo

(Peterson 2008 p 387)

Peterson estaacute se referindo agrave passagem por noacutes jaacute citada em que Soacutecrates

assimila o objetivo da argumentaccedilatildeo de Zenatildeo com a tese de Parmecircnides de que

tudo eacute um Segundo ela esta passagem inicia a refutaccedilatildeo do argumento ao

demonstrar que Zenatildeo eacute semelhante a Parmecircnides por ambos defenderem a tese

monista e ao mesmo tempo dessemelhante pois enquanto Zenatildeo afirma natildeo

haver muacuteltiplas coisas Parmecircnides afirma o todo ser um Contudo Peterson

parece negligenciar o fato de que em toda passagem natildeo haacute uma uacutenica ocorrecircncia

das palavras ldquosemelhanterdquo (ὅmicroοιος) ou ldquodessemelhanterdquo (ἀνόmicroοιος) Natildeo me

parece nada provaacutevel que Soacutecrates desejando demonstrar a contradiccedilatildeo apontada

por Peterson deixasse de mencionar o ponto especiacutefico de sua acusaccedilatildeo e se

limitasse a atacar aquilo que Zenatildeo ldquosugererdquo (implies) Em argumentaccedilotildees ad

hominen como esta nas quais se pretende demonstrar a existecircncia de uma

contradiccedilatildeo entre as teses que determinada pessoa defende e as atitudes desta

pessoa o valor da acusaccedilatildeo estaacute em tornar evidente a inconsistecircncia em questatildeo

Sendo assim a interpretaccedilatildeo oferecida por Peterson que pretende ler esta

passagem como a demonstraccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo acerca de temas que sequer

satildeo mencionados natildeo pode ser considerada uma interpretaccedilatildeo com suficiente

apoio textual

Nesta passagem Soacutecrates estaacute de fato realizando uma argumentaccedilatildeo ad

hominen do mesmo tipo identificado por Peterson No entanto a contradiccedilatildeo

atribuiacuteda a Zenatildeo eacute outra Como vimos ao empregar repetidamente formas

plurais para se referir aos argumentos de Zenatildeo Soacutecrates torna expliacutecita a

contradiccedilatildeo envolvida em se negar a existecircncia de muacuteltiplas coisas por meio de

muacuteltiplos argumentos Esta acusaccedilatildeo eacute cuidadosamente montada pela recorrecircncia

de expressotildees plurais para se referir aos argumentos de Zenatildeo e termina com a

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afirmaccedilatildeo claramente irocircnica de que Zenatildeo apresenta ldquomuito numerosas provasrdquo

(τεκmicroήρια πάmicroπολλα) para demonstrar sua tese de que natildeo haacute muacuteltiplas coisas

(128b2) Podemos considerar portanto que a interpretaccedilatildeo que atribui a Soacutecrates

o reconhecimento deste segundo tipo de contradiccedilatildeo possui mais apoio textual do

que a interpretaccedilatildeo oferecida por Peterson e deve ser eleita como a interpretaccedilatildeo

correta para passagem em detrimento da interpretaccedilatildeo de Peterson que lecirc a

passagem como a identificaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo natildeo mencionada

Contudo a segunda fase da argumentaccedilatildeo de Soacutecrates representaria

segundo Peterson o passo fundamental da refutaccedilatildeo ao argumento de Zenatildeo Ela

explica esta fase da seguinte maneira

ldquoSegundo Soacutecrates explicitamente apresenta a mais profunda e devastadora objeccedilatildeo (128e5ndash129a3) de que Zenatildeo ao conduzir sua reduccedilatildeo ao absurdo presume que haacute dois opostos ndash semelhanccedila e dessemelhanccedila ndash cada um deles sendo um ser (τούτοιν δὲ δυοῖν ὄντοιν) Zenatildeo presume que a semelhanccedila ela mesma eacute um item e que a dessemelhanccedila eacute um segundo e oposto item As premissas de Zenatildeo implicam a negaccedilatildeo de sua conclusatildeo E isso eacute desastrosordquo (Peterson 2008 p 387)

Portanto a ldquodevastadora objeccedilatildeordquo apresentada por Soacutecrates consiste em

demonstrar que Zenatildeo reconhece a existecircncia de pelo menos duas coisas a

semelhanccedila e a dessemelhanccedila o que estaria em clara contradiccedilatildeo com sua tese de

que natildeo haacute muacuteltiplas coisas Segundo Peterson isto acontece na seguinte

passagem

ldquoPois bem aceito disse Soacutecrates e acredito ser como dizes Mas diz-me o seguinte natildeo julgas haver uma certa forma em si e por si da semelhanccedila e por outro lado contraacuteria a tal forma uma outra aquilo que realmente eacute dessemelhante E que nestas duas coisas que satildeo tanto eu quanto vocecirc temos participaccedilatildeordquo Ἀλλ ἀποδέχοmicroαι φάναι τὸν Σωκράτη καὶ ἡγοῦmicroαι ὡς λέγεις ἔχειν τόδε δέ microοι εἰπέ οὐ νοmicroίζεις εἶναι αὐτὸ καθαὑτὸ εἶδός τι ὁmicroοιότητος καὶ τῷ τοιούτῳ αὖ ἄλλο τι ἐναντίον ὃ ἔστιν ἀνόmicroοιον τούτοιν δὲ δυοῖν ὄντοιν καὶ ἐmicroὲ καὶ σὲ καὶ τἆλλα ἃ δὴ πολλὰ καλοῦmicroεν microεταλαmicroβάνειν (128e5ndash129a3)

Eacute realmente difiacutecil entender como Peterson com base na passagem citada

pode atribuir a Zenatildeo o reconhecimento da existecircncia destas duas coisas (a

semelhanccedila e a dessemelhanccedila) Afinal quem se refere agrave semelhanccedila e agrave

dessemelhanccedila como dois seres distintos (τούτοιν δυοῖν ὄντοιν) eacute Soacutecrates e natildeo

Zenatildeo Para atribuir o reconhecimento destas entidades a Zenatildeo Peterson afirma

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que o verbo utilizado por Soacutecrates (νοmicroίζειν) indicaria que ele estaacute tratando de

uma noccedilatildeo comum aceita tambeacutem por Zenatildeo

De fato em seu paradoxo Zenatildeo fala da semelhanccedila e da dessemelhanccedila

como propriedades que os objetos teriam caso fossem muacuteltiplos Entretanto em

contraste com o uso de νοmicroίζειν que pode ou natildeo possuir a nuance de

significado indicada por Peterson Soacutecrates menciona uma seacuterie de termos

relativos agraves Formas que dificilmente poderiam fazer parte de um vocabulaacuterio

ldquocomumrdquo compartilhado por Zenatildeo Sendo assim o simples uso de νοmicroίζειν natildeo

eacute razatildeo suficiente para atribuirmos a Zenatildeo aquilo que Soacutecrates estaacute dizendo

Aleacutem disso caso o desejo de Soacutecrates fosse apresentar uma contradiccedilatildeo inerente agrave

argumentaccedilatildeo de Zenatildeo natildeo haveria porque fazecirc-lo por meio de uma pergunta

bastaria constatar que Zenatildeo reconhece a existecircncia do semelhante e do

semelhante e portanto admite uma multiplicidade de seres

Contudo o maior erro da argumentaccedilatildeo de Peterson natildeo estaacute em atribuir a

Zenatildeo aquilo que Soacutecrates estaacute afirmando Pois mesmo admitindo que a

argumentaccedilatildeo de Zenatildeo pressuponha a existecircncia destas duas entidades a

constataccedilatildeo deste fato sequer representaria uma refutaccedilatildeo ao paradoxo Como o

argumento de Zenatildeo eacute uma reduccedilatildeo ao absurdo o uso de noccedilotildees que se provaratildeo

contraditoacuterias eacute plenamente justificaacutevel Em seu paradoxo Zenatildeo conclui que as

coisas seriam simultaneamente semelhantes e dessemelhantes apenas caso as

coisas fossem muacuteltiplas No entanto Zenatildeo natildeo acredita que as coisas satildeo

muacuteltiplas Portanto em nenhum momento afirma seriamente a existecircncia da

semelhanccedila e da dessemelhanccedila O apelo de Zenatildeo a estas entidades eacute meramente

contra-factual e natildeo representa sua posiccedilatildeo A ldquodevastadora refutaccedilatildeordquo

apresentada por Peterson sequer se configura como uma legiacutetima refutaccedilatildeo

O uacuteltimo movimento da argumentaccedilatildeo de Soacutecrates consistiria em

ldquoenfatizar que os predicados ldquosemelhanterdquo e ldquodessemelhanterdquo satildeo incompletos e

que uma conversa ordinaacuteria (ordinary talk) eacute capaz de reconhecer diversas coisas

que satildeo tanto semelhantes quanto dessemelhantes ou possuem semelhanccedila e

dessemelhanccedila em vaacuterios aspectosrdquo (Peterson 2008 p 387) Isto aconteceria na

seguinte passagem

ldquoE [natildeo julgas] que algumas coisas tendo participaccedilatildeo na semelhanccedila se tornam semelhantes por causa disso e na medida em que nelas tenham participaccedilatildeo e que outras tendo participaccedilatildeo na dessemelhanccedila [se tornam] dessemelhantes e

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que outras [tendo participaccedilatildeo] em ambas se tornam semelhantes e dessemelhantes E mesmo que todas as coisas tenham participaccedilatildeo em ambas essas coisas que satildeo contraacuterias e que sejam pelo participar nas duas elas mesmas em relaccedilatildeo a si mesmas tanto semelhantes quanto dessemelhantes o que haacute de espantoso Καὶ τὰ microὲν τῆς ὁmicroοιότητος microεταλαmicroβάνοντα ὅmicroοια γίγνεσθαι ταύτῃ τε καὶ κατὰ τοσοῦτον ὅσον ἂν microεταλαmicroβάνῃ τὰ δὲ τῆς ἀνοmicroοιότητος ἀνόmicroοια τὰ δὲ ἀmicroφοτέρων ἀmicroφότερα εἰ δὲ καὶ πάντα ἐναντίων ὄντων ἀmicroφοτέρων microεταλαmicroβάνει καὶ ἔστι τῷ microετέχειν ἀmicroφοῖν ὅmicroοιά τε καὶ ἀνόmicroοια αὐτὰ αὑτοῖς τί θαυmicroαστόν (129a3-b1)

Como reconhece Peterson de acordo com a interpretaccedilatildeo por ela proposta

estas perguntas de Soacutecrates apenas ldquonegam a premissa de Zenatildeo de que eacute

impossiacutevel para qualquer coisa ser tanto semelhante quanto dessemelhanterdquo

(Peterson 2008 p 387) No entanto como podemos considerar a mera negaccedilatildeo

injustificada de uma premissa uma argumentaccedilatildeo suficientemente satisfatoacuteria

Zenatildeo argumenta em termos loacutegicos e espera que uma contra-argumentaccedilatildeo lhe

seja apresentada no mesmo niacutevel Caso o comentaacuterio final de Soacutecrates se limitasse

a negar injustificadamente a premissa problemaacutetica do argumento de Zenatildeo

dificilmente poderiacuteamos considerar tal comentaacuterio parte de uma argumentaccedilatildeo

seacuteria 20

Por fim resta observar que a interpretaccedilatildeo proposta por Peterson encontra-

se em clara oposiccedilatildeo ao que um leitor dos diaacutelogos poderia esperar Segundo o

argumento de Zenatildeo eacute impossiacutevel que os seres sejam tanto semelhantes quanto

dessemelhantes ou de maneira geral que uma dada coisa possua qualquer par de

predicados opostos (F e natildeo-F) Ora um leitor acostumado com o tipo de

argumentaccedilatildeo que Soacutecrates desempenha nos diaacutelogos da fase meacutedia espera

naturalmente que as Formas sejam apresentadas como soluccedilatildeo para este

problema

Esta expectativa eacute plenamente satisfeita quando Soacutecrates pede a Zenatildeo que

aceite a existecircncia de ldquouma Forma em si e por si da Semelhanccedila e por outro lado

uma outra Forma aquilo que eacute realmente Dessemelhanterdquo (οὐ νοmicroίζεις εἶναι αὐτὸ

καθαὑτὸ εἶδός τι ὁmicroοιότητος καὶ τῷ τοιούτῳ αὖ ἄλλο τι ἐναντίον ὃ ἔστιν

ἀνόmicroοιον 129a1) Dificilmente uma apresentaccedilatildeo das Formas poderia ser feita de

20 Neste caso Soacutecrates estaria agindo como Dioacutegenes de Ciacutenope que pretendeu refutar os

argumentos de Zenatildeo contra a possibilidade do movimento simplemente andando em praccedila puacuteblica Ora eacute claro que este poderia ser o caso No entanto esta natildeo parece ser a intenccedilatildeo de Soacutecrates e dificilmente Zenatildeo e Parmecircnides demonstrariam respeito por Soacutecrates tal como demonstram no decorrer do diaacutelogo caso este fosse o teor de sua argumentaccedilatildeo

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maneira mais expliacutecita Aleacutem do termo εἶδος Soacutecrates usa as expressotildees αὐτὸ

καθ αὑτὸ e ὃ ἔστιν ambas extremamente recorrentes nos diaacutelogos e

indubitavelmente parte do vocabulaacuterio relativo agraves Formas Fica claro portanto

que Soacutecrates identifica os seres (τὰ ὄντα) aos quais Zenatildeo se refere como objetos

sensiacutevieis e como primeiro passo na soluccedilatildeo do paradoxo introduz suas Formas

na discussatildeo

No entanto a simples apresentaccedilatildeo de entidades imunes agrave copresenccedila de

opostos natildeo se configura como uma soluccedilatildeo ao paradoxo A premissa 4 de Zenatildeo

afirma a impossibilidade das coisas serem simultaneamente semelhantes e

dessemelhantes o que certamente natildeo exclui a possibilidade de algo ser

exclusivamente semelhante ou dessemelhantes Para que a premissa 4 seja

falsificada eacute preciso que Soacutecrates demonstre como os seres podem possuir

propriedades opostas sem que isso implique em uma contradiccedilatildeo Portanto de

modo a servirem de soluccedilatildeo ao paradoxo as Formas precisam natildeo apenas estar

imunes agrave copresenccedila de opostos mas sobretudo explicar esta copresenccedila nos

objetos sensiacutevieis Para que isto seja feito Soacutecrates introduz a noccedilatildeo de

participaccedilatildeo (aqui representada pelos verbos microεταλαmicroβάνειν e microετέχειν) e

pergunta a Zenatildeo se ele estaacute disposto a aceitar que ldquoalgumas coisas tendo

participaccedilatildeo na Semelhanccedila se tornam semelhantes () que outras tendo

participaccedilatildeo na Dessemelhanccedila [se tornam] dessemelhantes e que outras [tendo

participaccedilatildeo] em ambas se tornam semelhantes e dessemelhantesrdquo (129a3-8)

Caso Zenatildeo esteja disposto a aceitar estas duas hipoacuteteses 1) que existem

Formas e 2) que os objetos sensiacuteveis participam destas Formas a aparente

contradiccedilatildeo presente na premissa 4 do seu argumento pode ser dissolvida Pois

uma vez que estes dois pontos lhe sejam concedidos Soacutecrates estaraacute apto a

demonstrar como a copresenccedila de propriedades opostas nos objetos sensiacutevieis

pode ser explicada por meio da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que estes objetos mantecircm

com as Formas21

No Parmecircnides Soacutecrates natildeo desenvolve em pormenores esta explicaccedilatildeo

se limitando a dizer que mesmo que todas as coisas sensiacuteveis tenham participaccedilatildeo

21 Note que Soacutecrates apresenta estas duas hipoacuteteses (a existecircncia das Formas e a relaccedilatildeo de

participaccedilatildeo) por meio de uma pergunta (129a1-3) Isto indica que ele estaacute introduzindo um novo material conceitual e que espera um assentimento por parte de seus interlocutores com relaccedilatildeo agrave viabilidade teoacuterica destas hipoacuteteses Como veremos a resposta de Parmecircnides seraacute admitir temporariamente a validade das hipoacuteteses de Soacutecrates com o objetivo de submetecirc-las

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em ambas estas Formas e em consequecircncia desta participaccedilatildeo sejam semelhantes

e dessemelhantes nada haacute nisso de espantoso (129a8-b1) Esta brevidade da

explicaccedilatildeo de Soacutecrates pode ser solucionada se relacionarmos a soluccedilatildeo aqui

apresentada para o paradoxo de Zenatildeo com a explicaccedilatildeo oferecida no Feacutedon

(101-103) para o fato de Simmias ser grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates e pequeno em

relaccedilatildeo a Feacutedon A assimilaccedilatildeo entre as duas explicaccedilotildees parece justificada uma

vez que em ambos os diaacutelogos vemos Soacutecrates oferecer a Teoria das Ideias como

soluccedilatildeo para o mesmo problema a copresenccedila de propriedades (relacionais)

opostas nos objetos sensiacuteveis22

Adotando o paralelismo entre estas duas explicaccedilotildees podemos entender

que tal como acontece no Feacutedon a semelhanccedila e dessemelhanccedila no Parmecircnides

deixam de ser predicados atribuiacutedos diretamente ao sujeito em questatildeo e passam a

ser predicados das propriedades imanentes que este sujeito possui devido agrave

relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que manteacutem com as Formas Sendo assim as muacuteltiplas

coisas do paradoxo de Zenatildeo satildeo tanto semelhantes quanto dessemelhantes por

participarem simultaneamente das Formas do Semelhante e do Dessemelhante e

devido a esta participaccedilatildeo possuiacuterem as propriedades imanentes do semelhante e

do dessemelhante com partes de si Portanto quando dizemos que o objeto x eacute

semelhante e dessemelhante estamos nos referindo a este fato de maneira

inadequada Pois natildeo eacute propriamente o indiviacuteduo x que eacute semelhante e

dessemelhante mas a semelhanccedila-de-x que eacute semelhante e a dessemelhanccedila-de-x

que eacute dessemelhante Estabelecida a diferenccedila entre Forma propriedades

imanentes e objetos sensiacuteveis natildeo haacute nada de contraditoacuterio no fato de uma mesma

coisa possuir simultaneamente propriedades imanentes opostas Afinal

predicados opostos nunca estatildeo sendo atribuiacutedos propriamente agrave mesma coisa

a uma nova reduccedilatildeo ao absurdo

22 Aleacutem da identidade de temas as passagens do Feacutedon e do Parmecircnides apresentam grande semelhanccedila de vocabulaacuterio εἶδος (Feacuted102B1) αὐτὸ καθ αὑτὸ (Feacuted78D3) ὄντοιν (Feacuted71a13) αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά (Feacuted74c1 αὐτὰ τὰ ἴσα) De fato a assimilaccedilatildeo entre os dois diaacutelogos eacute extremamente comum entre os comentadores Scolnicov por exemplo afirma que ldquoesta passagem eacute uma breve reafirmaccedilatildeo da doutrina das Formas desenvolvida no Feacutedonrdquo (Scolnicov 2003 p48) Gill oferece sua explicaccedilatildeo para resoluccedilatildeo do paradoxo de Zenatildeo por meio da teoria apresentada no Feacutedon (cf Gill 2012 p19-27) e (cf Gill 1996 p12-18) Cornford tambeacutem adota a estrateacutegia de explicar a soluccedilatildeo do paradoxo atraveacutes da analogia com a soluccedilatildeo do problema da copresenccedila de opostos no Feacutedon e afirma haver jaacute em 1951 aceitaccedilatildeo geral (it is generally agreed) de que ldquoa teoria das ideias aqui apresentada eacute idecircntica agrave afirmada anteriormente no Feacutedonrdquo (Cornford 1951 p70) Ainda Brisson (Brisson 2011 p29) Sayre (Sayre 1996 p65) e Turnbull (Turnbull 1998 p 16) assumem a identidade entre a teoria do Feacutedon e a teoria do Parmecircnides

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A hipoacutetese das Formas contradiz o conteuacutedo da premissa 4 do argumento

de Zenatildeo ao explicar aquilo que esta premissa afirmava ser impossiacutevel a

copresenccedila de propriedades opostas nos objetos sensiacuteveis Provada a falsidade da

premissa nuacutemero 4 do argumento de Zenatildeo todo paradoxo eacute desfeito Afinal a

reduccedilatildeo ao absurdo da assunccedilatildeo inicial de que as coisas satildeo muacuteltiplas depende

diretamente da existecircncia de contradiccedilatildeo entre as premissas 3 e 4

De acordo com a explicaccedilatildeo acima esboccedilada o paradoxo de Zenatildeo eacute

solucionado por Soacutecrates por meio da distinccedilatildeo ontoloacutegica entre Formas e objetos

sensiacuteveis que encontramos de maneira expliacutecita nos diaacutelogos da fase meacutedia e

impliacutecita nos argumentos dos primeiros diaacutelogos No decorrer das proacuteximas

seccedilotildees investigaremos se a ontologia defendida por Soacutecrates no Parmecircnides

pode ser identificada com aquela apresentada nestes diaacutelogos Em especial

investigaremos se a compreensatildeo acerca da natureza da participaccedilatildeo e auto-

predicaccedilatildeo das Formas que emerge da leitura do Parmecircnides pode ser identificada

com o tratamento que Soacutecrates oferece para estes temas nos diaacutelogos anteriores

Por ora basta observar que o vocabulaacuterio empregado sugere esta identificaccedilatildeo

Pois aleacutem de εἶδος tanto αὐτὸ καθ αὑτὸ quanto ὃ ἔστιν satildeo expressotildees

recorrentes nos diaacutelogos platocircnicos Estas expressotildees fazem parte do vocabulaacuterio

relativo agraves Formas que como vimos nos capiacutetulos precedentes eacute cuidadosamente

construiacutedo desde os primeiros diaacutelogos Da mesma maneira microετέχειν e

microεταλαmicroβάνειν satildeo expressotildees tipicamente socraacuteticas e fazem parte do vasto rol

de verbos empregados para descrever a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo entre Formas e

objetos sensiacuteveis tanto nos diaacutelogos iniciais quanto nos diaacutelogos da fase meacutedia

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417 O desafio de Soacutecrates

A proximidade entre a Teoria das Ideias apresentada no Parmecircnides e a

ontologia socraacutetica dos diaacutelogos da fase meacutedia e inicial eacute reafirmada ainda no

desafio lanccedilado por Soacutecrates a seus interlocutores Logo apoacutes a apresentaccedilatildeo das

Formas como soluccedilatildeo ao problema da copresenccedila de opostos Soacutecrates compele

seus interlocutores a demonstrarem nas Formas a validade dos mesmos

problemas que Zenatildeo acabara de apontar nos objetos sensiacuteveis

A passagem possui um problema textual que precisamos enfrentar para

podermos oferecer uma interpretaccedilatildeo adequada ao sentido do texto Trata-se do

aparecimento da expressatildeo αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά em 129b1 O neutro plural dos adjetivos

gregos eacute muitas vezes usado para designar de maneira geneacuterica um conjunto de

coisas que compartilham uma mesma caracteriacutestica Assim entendido o sentido de

expressotildees como τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια seria capturado pelas traduccedilotildees ldquoas

coisas semelhantesrdquo e ldquoas coisas dessemelhantesrdquo

No entanto estas traduccedilotildees estatildeo em claro desacordo com o conteuacutedo da

fala de Soacutecrates em 129a-c Na passagem em questatildeo Soacutecrates afirma que ficaria

assombrado caso algueacutem lhe demonstrasse que αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά venha(m) a se

tornar dessemelhante(s) e τὰ ἀνόmicroοια semelhante(s) Ora como vimos Soacutecrates

havia apresentado as Formas justamente como parte de uma demonstraccedilatildeo de

que ldquoas coisas semelhantesrdquo podem perfeitamente se tornar dessemelhantes e

vice-versa Portanto natildeo podemos adotar a interpretaccedilatildeo mais usual para o uso

do neutro plural de adjetivos na leitura de nossa passagem e somos obrigados a

descartar a hipoacutetese de que as expressotildees tenham como referecircncia um conjunto

geneacuterico de objetos sensiacuteveis sob pena de estarmos atribuindo agrave Soacutecrates uma

niacutetida contradiccedilatildeo Por outro lado caso queiramos identificar estas expressotildees

como designaccedilotildees das Formas nos encontramos novamente em dificuldade

Afinal sabemos que as Formas satildeo caracterizadas por serem uacutenicas Soacute haacute uma

uacutenica Forma da Beleza em oposiccedilatildeo agrave multiplicidade de coisas belas As

expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια no entanto estatildeo no plural

Haacute uma forte tendecircncia entre os comentadores a desqualificar este uso do

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plural e considerar ambas expressotildees como maneiras de se referir agraves Formas23

Apesar desta soluccedilatildeo ser amplamente adotada poucos satildeo os casos de defesa

textual desta leitura Agrave parte a afirmaccedilatildeo de que substantivos plurais gregos

podem ser utilizados de maneira gramaticalmente correta para designar entidades

singulares um uacutenico argumento de caraacuteter textual foi oferecido em defesa da

posiccedilatildeo de que as expressotildees representam maneiras idiossincraacuteticas de se referir

agraves Formas Rist em Equals and Intermediates in Plato (1964) argumenta que o

pronome τούτων na sentenccedila imediatamente seguinte (129b3) refere-se agrave

expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια De acordo com Rist como a sentenccedila

afirma que certas coisas participam de τούτων (τὰ τούτων microετέχοντα) ficaria

claro que as expressotildees dizem respeito agrave Formas pois soacute Formas podem ser

objeto de participaccedilatildeo (Rist 1964 p30)

Sendo assim caso o pronome τούτων seja de fato anafoacuterico em relaccedilatildeo agraves

expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια somos obrigados a aceitar o argumento de

Rist e admitir que as expressotildees no neutro plural em 129b1 designam as Formas

do Semelhante e do Dessemelhante No entanto esta natildeo parece ser a uacutenica opccedilatildeo

de leitura Na passagem em questatildeo o pronome τούτων estaacute associado agrave

ἀmicroφοτέρων e como observa Calvert ldquoquando Platatildeo se refere agraves Formas do

Semelhante e do Dessemelhante ele alterna entre o uso do dual (τούτοιν δυοῖν

ὄντοιν 129 a1 ἀmicroφοῖν a8) e o plural ἀmicroφοτέρων (a6 a7)rdquo (Clavert 1982 p53)

Nestes dois uacuteltimos casos (a6 a7) eacute certamente inquestionaacutevel que Platatildeo estaacute

usando ἀmicroφοτέρων para se referir agraves Formas Sendo assim quando lemos τούτων

ἀmicroφοτέρων em 129b3 o mais natural eacute considerar que esta expressatildeo refere-se agraves

Formas do Semelhante e do Dessemelhante apresentadas anteriormente e natildeo a

αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια

Portanto se aceitamos que estamos lidando com entidades que natildeo estatildeo

sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos e no entanto natildeo estamos nos referindo agraves

Formas os candidatos naturais ao posto de referecircncia das expressotildees αὐτὰ τὰ

ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια satildeo as propriedades imanentes da semelhanccedila e

dessemelhanccedila Como vimos no Feacutedon propriedades imanentes satildeo evocadas

23 Scolnicov por exemplo afirma categoriacamente ldquoO plural eacute irrelevanterdquo (Scolnicov 2003

p49) Allen (Allen 1997 p89) Brisson (Brisson 2011 p90) Rickless (Rickless 2007 p48) Sayre (Sayre 1996 p6) e Teloh (Teloh 1981 p152) tambeacutem tratam as expressotildees como maneiras de se referir agraves Formas Segundo Miller o uso de expressotildees plurais para designar as Formas representa uma ldquoconfusatildeo no pensamento de Soacutecratesrdquo reflexo do caraacuteter incipiente

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como parte do argumento que procura provar a diferenccedila ontoloacutegica entre Formas

e objetos sensiacuteveis (74b7-c5) e em seguida fazem parte da explicaccedilatildeo da

copresenccedila de opostos em Simmias (101-103) Em ambas passagens as

propriedades imanentes se diferenciam dos objetos sensiacuteveis que as possuem por

natildeo estarem elas mesmas sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza estes

objetos O paralelismo entre estas passagens do Feacutedon e nossa passagem do

Parmecircnides torna-se evidente quando consideramos que αὐτὰ τὰ ἴσα (Feacuted74c) e

αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά (Parm129b1) representam as uacutenicas ocorrecircncias de expressotildees da

forma αὐτὰ + adjetivo neutro plural no corpus platocircnico

Sendo assim encontramos total uniformidade no emprego deste tipo de

expressatildeo em Platatildeo ambas ocorrecircncias satildeo usadas para designar as propriedades

imanentes dos objetos sensiacuteveis adquiridas por meio da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo

que estes objetos mantecircm com as Formas Tal como as Formas as propriedades

imanentes natildeo estatildeo sujeitas agrave copresenccedila de opostos Poreacutem em oposiccedilatildeo agrave

unidade caracteriacutestica das Formas estas entidades satildeo muacuteltiplas e possuem um

tipo de existecircncia dependente dos objetos sensiacutevieis pois estatildeo localizadas nas

coisas (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος Feacuted102d ἡmicroεῖς ὁmicroοιότητος ἔχοmicroεν Parm130b)

Estando resolvida a questatildeo da referecircncia das expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e

τὰ ἀνόmicroοια podemos analisar o desafio lanccedilado por Soacutecrates e nos questionar se

neste desafio estatildeo mantidas as caracteriacutesticas da ontologia defendida por

Soacutecrates nos diaacutelogos da juventude e da fase meacutedia ou natildeo A passagem pode ser

dividia em quatro partes

1) 129b1 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que as

propriedades imanentes αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια podem receber

predicados opostos

ldquoPois se algueacutem mostrasse que αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά se tornam dessemelhantes ou que

τὰ ἀνόmicroοια se tornam semelhantes seria assombroso creiordquo

2) 129b6-c1 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que

a Forma da Unidade eacute muacuteltiplas coisas e o Muacuteltipo eacute um

da Teoria das Ideias apresentada no Parmecircnides (Miller 1986 p38)

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ldquoMas se aquilo que eacute realmente Um algueacutem demonstrar que isso mesmo eacute

muacuteltiplas coisas e de outra parte que o Muacuteltiplo eacute um jaacute disso me espantareirdquo

3) 129c1-3 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que

as Formas satildeo tanto unas quanto muacuteltiplas

ldquoE do mesmo modo com respeito a todas as outras coisas se algueacutem mostrar que

em si mesmos os gecircneros mesmos e as Formas mesmas satildeo afetados por essas

afecccedilotildees contraacuterias [unidade e multiplicidade] isso seraacute digno de espantordquo

4) 129d6-130a1 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem

como as Formas podem estar misturadas e separadas entre si

ldquoMas dentre as coisas que haacute pouco mencionei se algueacutem em primeiro lugar separasse uma das outras as Formas mesmas em si mesmas ndash por exemplo a Semelhanccedila a Dessemelhanccedila a Quantidade o Um o Repouso o Movimento e todas as coisas deste tipo ndash em seguida mostrasse que estas entre si podem ser misturadas e separadas eu pelo menos disse [Soacutecrates] ficaria encantado cheio de espanto Zenatildeo Quanto agravequelas coisas [sensiacuteveis] acredito terem sido tratadas por ti com muita determinaccedilatildeo Entretanto eu como digo me encantaria muito mais se algueacutem pudesse essa mesma aporia da maneira como expuseste no caso das coisas que se vecircem exibi-la dessa mesma maneira tambeacutem no caso das coisas apreendidas pelo raciociacutenio entrelaccediladas de todos os modos nas Formas mesmasrdquo

1 e 2 representam basicamente o mesmo tipo de desafio Em 1 Soacutecrates

diz que ficaria assombrado caso lhe mostrassem que as propriedades imanentes

αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια estatildeo sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos Em 2 este

desafio eacute expandido para as Formas da Unidade e da Multiplicidade e Soacutecrates

pede que lhe seja demonstrado como o Um eacute muacuteltiplas coisas e o Muacuteltiplo um No

Feacutedon (102d-e) Soacutecrates havia afirmado que o Grande em si (αὐτὸ τὸ microέγεθος)

jamais apareceraacute como grande e pequeno e que tampouco o Gr ande (τὸ ἐν ἡmicroῖν

microέγεθος ) admitiraacute o pequeno ou consentiraacute em receber a pequenez e se tornar

contraacuterio ao que ele eacute (102e2) A imunidade agrave predicaccedilatildeo de opostos eacute portanto

vaacutelida igualmente para Formas e propriedades imanentes Neste ponto αὐτὰ τὰ

ὅmicroοιά e o Semelhante em si (αὐτὸ καθαὑτὸ εἶδός ὁmicroοιότητος) diferenciam-se dos

objetos sensiacuteveis e Soacutecrates desafia seus interlocutores a lhe demonstrarem como

qualquer uma destas entidades pode estar sujeita agrave copresenccedila de opostos que

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caracteriza os objetos empiacutericos

Logo apoacutes intimar Zenatildeo e Parmecircnides a lhe demonstrarem que a Unidade

(ὃ ἔστιν ἕν) eacute muacuteltiplas coisas e que o Muacuteltiplo eacute um Soacutecrates muda o foco de sua

argumentaccedilatildeo e deixando de falar de um par especiacutefico de Formas passa a tratar

de Formas em geral (περὶ τῶν ἄλλων ἁπάντων) Soacutecrates entatildeo compele seus

interlocutores a lhe provarem 3 que as Formas elas mesmas satildeo afetadas

simultaneamente pela unidade e multiplicidade Os comentadores costumam

entender o desafio expresso em 3 como a generalizaccedilatildeo do problema da

copresenccedila de opostos apresentado em 1 e 2 Contudo como dito anteriormente

natildeo podemos considerar uma mera casualidade o fato de Soacutecrates escolher as

propriedades da unidade e da multiplicidade para operar esta generalizaccedilatildeo O

debate entre Soacutecrates e Zenatildeo eacute motivado pelo tema da unidademultiplicidade e a

reintroduccedilatildeo deste par de conceitos neste momento remete o leitor agrave distinccedilatildeo

inicial entre a multiplicidade de objetos sensiacuteveis (as coisas que chamamos

muitas τἆλλα ἃ δὴ πολλὰ καλοῦmicroεν) e a unidade caracteriacutestica das Formas

(τούτοιν δὲ δυοῖν ὄντοιν) Devemos entender portanto que Soacutecrates em 3 natildeo

estaacute apenas generalizando o problema da copresenccedila de opostos para o conjunto

de todas as Formas mas estaacute apresentando um novo desafio Soacutecrates desafia seus

interlocutores a lhe provarem que as Formas entidades caracterizadas por serem

uacutenicas e indivisiacuteveis podem ser caracterizadas pela multiplicidade encontrada nos

objetos sensiacuteveis

Como vimos o paradoxo de Zenatildeo pressupotildee a afirmaccedilatildeo da

multiplicidade das coisas em dois niacuteveis distintos Segundo Zenatildeo os objetos

sensiacuteveis satildeo muacuteltiplos tanto numericamente quanto por serem divisiacuteveis em

muacuteltiplas partes e receberem muacuteltiplos predicados Em paralelo a esta dualidade

inerente ao conceito de multiplicidade adotado por Zenatildeo as Formas platocircnicas

satildeo ditas uacutenicas tanto numericamente por soacute haver uma Forma da Beleza em

contraste com a pluralidade de objetos belos quanto por serem incompostas e

indivisiacuteveis Neste momento do desafio devemos pressupor que os dois sentidos

de unidade e multiplicidade estatildeo em jogo e que Soacutecrates estaacute desafiando seus

interlocutores a demonstrarem a multiplicidade das Formas tout court seja ela

entendida como a existecircncia de uma multiplicidade numeacuterica (diversas Formas da

Beleza por exemplo) ou uma multiplicidade de partes ou atributos de uma mesma

Forma

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Por fim em 4 Soacutecrates afirma que ficaria surpreso caso algueacutem

ldquoseparasse uma das outras as Formas e em seguida mostrasse que estas Formas

entre si podem ser misturadas e separadasrdquo O sentido preciso desta afirmaccedilatildeo

natildeo estaacute claro de iniacutecio e seu significado deve ser acessado pela explicaccedilatildeo que se

segue Nas sentenccedilas seguintes Soacutecrates esclarece que sua surpresa estaacute

relacionada agrave possibilidade de algueacutem expor no caso das Formas a aporia que

Zenatildeo acabara de expor com relaccedilatildeo agraves coisas sensiacuteveis Como vimos a aporia

apresentada por Zenatildeo consiste em afirmar que os objetos sensiacuteveis satildeo muacuteltiplos

e por conta disso estatildeo sujeitos agrave predicaccedilatildeo de propriedades opostas Portanto

devemos entender que o entrelaccedilamento ao qual se refere Soacutecrates implica na

demonstraccedilatildeo de que as Formas satildeo tal como os objetos sensiacuteveis muacuteltiplas e

por conta desta multiplicidade estatildeo sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos

Em sua fala Soacutecrates enumera uma seacuterie de pares de Formas opostas

SemelhanccedilaDessemelhanccedila QuantidadeUm RepousoMovimento Como

observa Allen (Allen 1997 p101) o pronome ταῦτα em 129e2 possui como

antecedente estas Formas tomadas como pares e natildeo cada uma delas

isoladamente Sendo assim a passagem afirma que natildeo podemos considerar cada

um destes pares de Formas como separados e ao mesmo tempo supor que os dois

membros do par estatildeo misturados e caracterizando um ao outro

Ora estaacute claro que o entrelaccedilamento ou participaccedilatildeo de uma Forma em

outra faria com que elas perdessem sua unidade e uniformidade caracteriacutestica e

passassem a possuir uma multiplicidade de partes e atributos24 Aleacutem disso caso

Formas opostas estejam entrelaccediladas entre si cada uma delas teraacute um predicado

contraacuterio agrave sua auto-predicaccedilatildeo (a Semelhanccedila seraacute dessemelhante o Movimento

estaraacute em repouso etc) Portanto em 4 Soacutecrates recapitula os desafios expressos

anteriormente e reafirma a distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis expressa em

sua soluccedilatildeo ao paradoxo de Zenatildeo

O desafio apresentado por Soacutecrates retoma portanto aspectos

fundamentais da apresentaccedilatildeo da Teoria das Ideias a uniformidade das Formas

que se caracterizam por estarem imunes agrave predicaccedilatildeo de opostos e a unidade

24 No argumento desenvolvido em 142c8-143a2 por exemplo conclui-se que se o um eacute entatildeo o

um eacute constituido de partes Pois afirmar que ldquoo um eacuterdquo equivale a afirmar que uma parte do um participa da unidade e outra parte participa do ser (οὐσίας microετέχειν) O argumento pressupotildee portanto que a participaccedilatildeo em mais de uma Forma (entrelaccedilamento) eacute suficiente para concluir a existecircncia de muacuteltiplas partes do objeto participante

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destas entidades que satildeo numericamente singulares Estas caracteriacutesticas estatildeo

mutuamente implicadas pois as Formas satildeo ditas uacutenicas e homogecircneas por serem

de maneira exclusiva auto-predicativas Em contraste como as coisas sensiacuteveis

sujeitas a uma diversidade de predicados inclusive predicados opostos as Formas

satildeo exclusivamente aquilo que elas satildeo A Forma F eacute apenas F e nada mais

estando imune agrave presenccedila da propriedade oposta natildeo-F e de maneira geral a

qualquer outro tipo de predicaccedilatildeo25 Estas caracteriacutesticas das Formas satildeo a base da

distinccedilatildeo ontoloacutegica entre Formas e objetos sensiacuteveis e se encontram articuladas

na soluccedilatildeo de Soacutecrates para o paradoxo de Zenatildeo Zenatildeo acredita que as coisas

satildeo muacuteltiplas e por causa disso estatildeo sempre sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos

Com o objetivo de desfazer o paradoxo Soacutecrates apresenta um novo tipo de

entidade caracterizada pela sua unidade e uniformidade Segundo Soacutecrates estas

entidades podem desfazer o problema da copresenccedila de opostos e serem a causa

das propriedades encontradas nos objetos sensiacuteveis por estarem elas mesmas

imunes agrave multiplicidade e copresenccedila de opostos encontrada nos objetos

empiacutericos

Sendo assim a demonstraccedilatildeo de que as Formas satildeo elas mesmas sujeitas

agrave copresenccedila de opostos retiraria destas entidades a capacidade de se apresentarem

como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis Pois segundo a compreensatildeo

de causalidade apresentada por Soacutecrates no Feacutedon eacute justamente o fato do Grande

nunca se apresentar como pequeno o que faz dele o candidato mais adequado para

o cargo de causa da grandeza das coisas sensiacuteveis A Forma da Beleza deve ser

incondicionalmente bela para assegurar o seu papel de causa da beleza nas coisas

Caso contraacuterio a Beleza ela mesma violaria um dos princiacutepios baacutesicos da

causalidade e poderia ser considerada tatildeo responsaacutevel pela beleza das coisas

quanto os adereccedilos de ouro que adornam Helena e a tornam bela para um

banquete poreacutem feia e repulsiva para um funeral Por outro lado a atribuiccedilatildeo de

multiplicidade agraves Formas abriria a possibilidade do paradoxo de Zenatildeo se repetir

em cada uma destas entidades quer entendamos esta multiplicidade como uma

multiplicidade numeacuterica ou como uma multiplicidade de atributos Pois ou bem

cada Forma seria composta por partes semelhantes entre si (por serem partes de

25 As afirmaccedilotildees de que F eacute uacutenica uniforme indivisiacutevel etc representam meta-predicados

atribuidos a todas as Formas Estes meta-predicados devem ser entendidos como afirmaccedilotildees restritas ao acircmbito da Teoria das Ideias e natildeo entram em conflito com a auto-predicaccedilatildeo das

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uma mesma Forma) e ao mesmo tempo dessemelhantes (por serem partes

distintas) ou bem as muacuteltiplas Formas de F seriam semelhantes (por serem todas

elas Formas de uma mesma propriedade F) e dessemelhantes (por serem

numericamente distintas) Em ambos os casos as Formas estariam sujeitas aos

mesmos problemas encontrados nos objetos sensiacuteveis que supostamente

deveriam solucionar

O desafio lanccedilado por Soacutecrates eacute portanto uma consequecircncia direta da

sua soluccedilatildeo para o paradoxo de Zenatildeo A validade da hipoacutetese das Formas como

soluccedilatildeo ao paradoxo depende destas entidades manterem estes dois aspectos

fundamentais de sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica imunidade agrave copresenccedila de opostos e

unidade (numeacuterica e aspectual) Afinal estas caracteriacutesticas satildeo a base da

diferenciaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis e a distinccedilatildeo entre estes dois tipos

de entidade natildeo restaria estabelecida caso estas caracteriacutesticas proacuteprias dos

objetos sensiacuteveis fossem encontradas tambeacutem nas Formas Portanto caso a

multiplicidade e predicaccedilatildeo de opostos apontadas por Zenatildeo nos objetos sensiacuteveis

sejam vaacutelidas paras Formas a soluccedilatildeo apresentada por Soacutecrates se mostraraacute falsa

e o paradoxo de Zenatildeo permaneceraacute irresoluto

A importacircncia do desafio de Soacutecrates para a compreensatildeo da estrutura do

Parmecircnides dificilmente pode ser superestimada A fala em que Soacutecrates

soluciona o paradoxo de Zenatildeo e em seguida desafia seus interlocutores a

provarem a falsidade de sua resoluccedilatildeo representa o mais longo discurso

ininterrupto do diaacutelogo e possui um forte apelo dramaacutetico No desafio que encerra

esta fala Soacutecrates usa as palavras ldquomaravilhadordquo ldquoencantadordquo e seus cognatos

nada menos do que oito vezes e deixa bem claro ao leitor quatildeo arraigado eacute o seu

comprometimento com as teses da uniformidade e unidade das Formas e quatildeo

chocante e arrasador seria o reconhecimento da falsidade destes princiacutepios

fundamentais de sua teoria Esta insistecircncia no tema do maravilhamento de

Soacutecrates faz parte da estrateacutegia dramaacutetica adotada por Platatildeo que pretende

chamar atenccedilatildeo para importacircncia destas duas caracteriacutesticas fundamentais da

constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e antecipar para o leitor o esquema geral do

ataque agrave Teoria das Ideias que seraacute realizado por Parmecircnides Como veremos

Parmecircnides aceita o desafio lanccedilado por Soacutecrates e localiza suas criacuteticas

Formas

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justamente nos princiacutepios de uniformidade e unidade das Formas Por meio da

sequecircncia de paradoxos que compotildeem o restante da primeira parte do diaacutelogo

Parmecircnides iraacute provar a Soacutecrates como estas caracteriacutesticas das Formas mostram-

se irreconciliaacuteveis com a noccedilatildeo de participaccedilatildeo e de maneira geral com a tese de

que as Formas satildeo causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis

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42 As criacuteticas de Parmecircnides agrave teoria da participaccedilatildeo

Apoacutes Soacutecrates terminar sua longa fala Parmecircnides que ateacute entatildeo ouvia a

discussatildeo calado volta-se para Soacutecrates e passa a formular uma seacuterie de criacuteticas agrave

distinccedilatildeo ontoloacutegica que este havia apresentado Tal como prenunciado na

complexa estrutura narrativa delineada pelo proacutelogo do diaacutelogo a fala de

Parmecircnides emerge em continuidade ao debate anteriormente desenvolvido por

Soacutecrates e Zenatildeo e toma como ponto de partida os resultados obtidos pela

discussatildeo anterior Em especial a argumentaccedilatildeo desenvolvida por Parmecircnides

pretende recuperar em forma e intenccedilatildeo o paradoxo de abertura do diaacutelogo

Formalmente as criacuteticas de Parmecircnides retomam o tipo de argumentaccedilatildeo

em reduccedilatildeo ao absurdo na qual o paradoxo de Zenatildeo havia sido formulado A

estrateacutegia consiste em aceitar de maneira provisoacuteria a teoria apresentada por

Soacutecrates com o intuito de derivar a partir do conjunto de hipoacuteteses que

constituem esta teoria contradiccedilotildees internas ou consequecircncias inaceitaacuteveis Em

intenccedilatildeo as criacuteticas pretendem restabelecer a validade deste paradoxo por meio da

demonstraccedilatildeo da inviabilidade da soluccedilatildeo oferecida por Soacutecrates Assim do

mesmo modo que Zenatildeo havia formulado seu paradoxo pretendendo proteger

Parmecircnides dos ataques de seus detratores Parmecircnides apresenta suas criacuteticas

como uma defesa de Zenatildeo a quem Soacutecrates afirma ser capaz de refutar

Em linhas gerais as criacuteticas de Parmecircnides seguem a seguinte estrutura

Parmecircnides comeccedila questionando Soacutecrates acerca da extensatildeo e populaccedilatildeo do

ldquomundo da Ideiasrdquo isto eacute que tipos de objetos sensiacuteveis possuem uma Forma

correspondente Em seguida Parmecircnides desenvolve uma seacuterie de paradoxos

intimamente relacionados entre si voltados contra a noccedilatildeo de participaccedilatildeo

adotada por Soacutecrates Na tentativa de escapar destas criacuteticas Soacutecrates procura

oferecer explicaccedilotildees distintas para natureza da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo e propotildee

primeiro que as Formas sejam entendidas como pensamentos e em seguida

como paradigmas Contudo ambas propostas levam a mais paradoxos e

Parmecircnides acaba por concluir que a participaccedilatildeo eacute impossiacutevel e que de acordo

com a concepccedilatildeo socraacutetica do que eacute uma Forma estas entidades estariam

completamente isoladas da realidade sensiacutevel o que as tornaria incognosciacuteveis e

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irrelevantes

Caso sejam consideradas vaacutelidas as criacuteticas oferecidas por Parmecircnides

representam um ataque avassalador agrave teoria apresentada por Soacutecrates Este fato

parece ser reconhecido por Soacutecrates que diz ao final dos ataques de Parmecircnides

natildeo vislumbrar uma saiacuteda nos garantindo que ao menos no contexto dramaacutetico

do diaacutelogo o criticismo parmeniacutedico eacute tido como procedente Contudo a despeito

da aporia e do embaraccedilo demonstrados por Soacutecrates alguns comentadores negam

a importacircncia destes argumentos e afirmam que Platatildeo nunca admitiu a

legitimidade das criacuteticas aqui apresentadas

Uma maneira de desqualificar a argumentaccedilatildeo de Parmecircnide que

precisamos desde jaacute analisar consiste em reconhecer a validade dos argumentos

poreacutem negar a sua relevacircncia com relaccedilatildeo agrave Teoria das Ideias De acordo com este

tipo de interpretaccedilatildeo os paradoxos apresentados por Parmecircnides natildeo teriam como

alvo a Teoria das Ideias platocircnicas mas estariam direcionadas contra concepccedilotildees

heterodoxas acerca da natureza das Formas adotadas por membros da Academia

cujas teorias Platatildeo estaria atacando

O alvo mais constantemente apresentado eacute Eudoxo de Cnidos Eudoxo foi

um astrocircnomo e matemaacutetico extremamente respeitado e seu nome estaacute

relacionado a uma seacuterie de descobertas matemaacuteticas de seu tempo Segundo

algumas fontes Eudoxo seria associado a Academia e teria inclusive assumido o

cargo de diretor da escola (sxolarxhj) durante a viagem de Platatildeo para Sciciacutelia

em 366 (cf Philoch fr223) De fato vaacuterios testemunhos nos levam a crer que em

algum momento de sua carreira filosoacutefica Eudoxo desenvolveu uma teoria

proacutepria acerca da natureza das Formas e de acordo com o comentaacuterio de

Alexandre de Afrodiacutesia esta teoria estaria criticada por uma seacuterie de argumentos

do tratado aristoteacutelico PERI IDEWN (In Methaph 97-98)

Em Aristotles Criticism of Plato and The Academy Cherniss reconhece

uma grande similaridade entre as criacuteticas descritas por Alexandre e as criacuteticas que

encontramos no Parmecircnides A partir da identificaccedilatildeo entre estas duas seacuteries de

argumentos Cherniss conclui que o criticismo apresentado em nosso diaacutelogo estaacute

direcionado contra a noccedilatildeo imanentista de Formas defendida por Eudoxo e natildeo

contra a Teoria das Ideias descrita nos diaacutelogos de Platatildeo (Cherniss 1944 p144)

Esta interpretaccedilatildeo eacute posteriormente endossada por Cornford para quem as

criacuteticas do Parmecircnides devem ser entendidas como a rejeiccedilatildeo do proacuteprio Platatildeo agrave

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compreensatildeo rudimentar de participaccedilatildeo defendida por Eudoxo (Cornford 1951

p87)26

Recentemente outro membro da Academia foi oferecido como alvo dos

argumentos do Parmecircnides Em The Fog Dispelled (2010) Graeser propotildee que o

Parmecircnides deve ser entendido como uma refutaccedilatildeo da concepccedilatildeo de Formas

defendida por Espeusipo sobrinho de Platatildeo e sxolarxhj da Academia durante

os oito anos seguintes agrave sua morte Segundo Graeser no Parmecircnides ldquoPlatatildeo guia

seus leitores agrave compreensatildeo de que seu criticismo das Formas inteligiacuteveis reverte-

se contra a teoria dos princiacutepios de Espeusipordquo (Graeser 2010 p17)

Para podermos avaliar a viabilidade do tipo de hipoacutetese interpretativa

defendida por Cherniss Cornford e Graeser segundo a qual as criacuteticas de

Parmecircnides estatildeo endereccediladas a uma outra teoria que natildeo a proacutepria Teoria das

Ideias encontrada nos diaacutelogos platocircnicos precisamos recapitular as

caracteriacutesticas da distinccedilatildeo ontoloacutegica oferecida por Soacutecrates como soluccedilatildeo ao

paradoxo de Zenatildeo No Parmecircnides Soacutecrates apresenta uma teoria segundo a

qual

1) Existem Formas (εἴδη) entidades em si (αὐτὰ καθ αὑτὰ τὰ)

separadas (χωρὶς) dos objetos sensiacuteveis (128e6-130b-5) e

conhecidas pela razatildeo (ἐν τοῖς λογισmicroῷ λαmicroβανοmicroένοις) (129e5-

130a2)

2) Estas Formas satildeo entidades auto-predicativas isto eacute a Forma do

Grande eacute grande a Forma do Pequeno eacute pequena etc (132a)

3) As Formas satildeo entidades singulares e indivisiacuteveis (ἓν ἕκαστον

εἶδος εἶναι) em oposiccedilatildeo agrave multiplicidade numeacuterica e

complexidade mereoloacutegica que caracteriza os objetos sensiacuteveis

4) As Formas satildeo entidades ldquounicas em aspectordquo (microονοειδὲς) isto eacute

imunes agrave copresenccedila de propriedades opostas Em oposiccedilatildeo a isto

os objetos sensiacuteveis estatildeo sempre sujeitos a este tipo de

26 Em Eudoxos in The Parmecircnides (1973) Malcolm Shofield defende que a teoria de Eudoxo eacute

discutida no Parmecircnides poreacutem natildeo na primeira parte do diaacutelogo Shoefield acredita que alguns argumentos da longa seacuterie de deduccedilotildees que compotildee a segunda parte do Parmecircnides precisam ser entendidos sobre o background da teoria de Eudoxo Como o proacuteprio Shofield reconhece (Shoefied 1973 p4-5) a hipoacutetese de que a teoria de Eudoxo eacute discutida em algumas deduccedilotildees da segunda parte do Parmecircnides jaacute havia sido levantada por Brumbaugh (cf Brumbaugh 1961 p25-26)

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copresenccedila (129b6-c1)

5) Os objetos sensiacuteveis por outro lado participam das Formas e eacute

pela participaccedilatildeo (microετάληψις) nas Formas que adquirem as

propiedades que possuem (129a3-129b1) e os nomes pelos quais

satildeo chamadas (ἐπωνυmicroία) (130e5-131a2)

Como qualquer leitor dos diaacutelogos platocircnicos pode facilmente perceber as

sentenccedilas listadas acima definem de maneira inequiacutevoca a Teoria das Ideias que

delineamos nos capiacutetulos precedentes Como vimos a existecircncia de Formas

entidades separadas dos objetos empiacutericos e detentoras de um estatuto ontoloacutegico

proacuteprio estaacute pressuposta desde os diaacutelogos inicias Estas entidades satildeo

caracterizadas por serem inteligiacuteveis isto eacute captadas unicamente pela razatildeo

(Feacutedon 65d4-66a10) sempre idecircnticas a si mesmas e auto-predicativas

(Protaacutegoras 330c7-e1 Hiacuteppias Maior 292e Eutidemos 301b5-c2 e Feacutedon 100c4-

6) estando portanto imunes agrave predicaccedilatildeo de opostos (Hiacuteppias Maior 291d1-3

Feacutedon 102e5-6 Banquete 211a2-5 Repuacuteblica V 479a) Como resultado da soma

destas caracteriacutesticas as Formas satildeo entidades completamente isentas de

pluralidade incapazes de sofrer qualquer tipo de mudanccedila singulares e

indivisiacuteveis (microονοειδὲς ἀσύνθετα Fed78c6)

Por outro lado em oposiccedilatildeo agrave unidade e estabilidade ontoloacutegica

caracteriacutestica das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo descritos por Soacutecrates como

entidades compostas e internamente complexas sujeitas agrave mudanccedila constante e

submetidas a uma infinidade de predicaccedilotildees inclusive opostas (Hiacuteppias Maior

289a3-b7 Feacutedon 74b7-9 102b-c Repuacuteblica 479a-b)

Do mesmo modo o poder causal exercido pelas Formas sobre os objetos

sensiacuteveis e o vocabulaacuterio da participaccedilatildeo a ele relacionado possuem um papel

central nos argumentos dos diaacutelogos e podem ser encontrados desde a busca por

definiccedilotildees do Ecircutifron e do Hippias Maior ateacute os diaacutelogos da fase meacutedia como

Banquete e Feacutedon Assim desde os primeiros diaacutelogos as Formas satildeo

apresentadas como responsaacuteveis pelas caracteriacutesticas dos objetos sensiacuteveis e causa

efetiva das propriedades encontradas nestes objetos

Eacute portanto facilmente constataacutevel que as caracteriacutesticas fundamentais da

Teoria das Ideias estatildeo representadas na listagem acima e mesmo o vocabulaacuterio

empregado por Soacutecrates no Parmecircnides coincide com a terminologia dos diaacutelogos

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anteriores Tendo em vista esta identidade vocabular e conceitual creio que

podemos descartar desde jaacute as interpretaccedilotildees que pretendem identificar qualquer

outra teoria que natildeo a Teoria das Ideias como alvo dos ataques de Parmecircnides

Afinal acreditar que as criacuteticas apresentadas no Parmecircnides estatildeo endereccediladas a

Eudoxo ou a Espeusipo equivale a tornar estas criacuteticas um mero caso de ignoratio

elenchi com relaccedilatildeo a toda argumentaccedilatildeo anteriormente desenvolvida no diaacutelogo

A distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis apresentada por Soacutecrates

como soluccedilatildeo ao paradoxo de Zenatildeo eacute a mesma formulada nos diaacutelogos meacutedios e

da juventude e este fato deve parecer oacutebvio ao leitor do Parmecircnides tanto pelo

vocabulaacuterio empregado por Soacutecrates quanto pelo motivo pelo qual a Teoria das

Ideias eacute trazida agrave discussatildeo Sendo assim seria completamente incompreensiacutevel

que Platatildeo resolvesse representar o personagem Parmecircnides criticando qualquer

outra teoria senatildeo aquela que Soacutecrates apresenta reiteradamente nos diaacutelogos em

que figura como personagem principal e que eacute anunciada no proacuteprio Parmecircnides

como soluccedilatildeo ao paradoxo de Zenatildeo27

27 Haacute ainda outra objeccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo de que as criacuteticas do Parmecircnides estatildeo direcionadas

contra teorias heterodoxas defendidas por membros da Academia em divergecircncia a Platatildeo Como observa Dancy em Two Studies in the Early Academy este tipo de interpretaccedilatildeo depende de uma hipoacutetese cronoloacutegica acerca da data de composiccedilatildeo do Parmecircnides dificilmente verificaacutevel Afinal para admitirmos que o Parmecircnides conteacutem uma criacutetica agrave teoria de Eudoxo ou Espeusipo devemos supor que na ocasiatildeo da composiccedilatildeo do diaacutelogo a teoria criticada jaacute havia sido desenvolvida No entanto nada nos impede de realizar a inferecircncia no sentido oposto e afirmar que Eudoxo ou Espeusipo propuseram suas teorias a partir de uma leitura do Parmecircnides Caso esta uacuteltima hipoacutetese cronoloacutegica esteja correta o Parmecircnides foi escrito antes da formulaccedilatildeo das teorias de Eudoxo e Espeusipo e portanto natildeo poderia conter criacuteticas a estas teorias (cf Dancy 1991 p20-24)

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421 A separaccedilatildeo das Formas

Parmecircnides inicia seu exame enfatizando a distinccedilatildeo fundamental na qual

a hipoacutetese de Soacutecrates estaacute baseada Em sua fala Soacutecrates havia afirmado que o

Semelhante o Dessemelhante o Um o Muacuteltiplo e as demais Formas devem ser

entendidas como entidades em si e por si (αὐτὰ καθ αὑτὰ) detentoras de um

estatuto ontoloacutegico proacuteprio e marcadamente distintas dos objetos sensiacuteveis

Assumindo a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis estabelecida por Soacutecrates

Parmecircnides levanta duas questotildees acerca desta distinccedilatildeo 1) Se foi o proacuteprio

Soacutecrates quem fez a divisatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis e 2) Se a

Semelhanccedila mesma eacute algo separado da semelhanccedila que possuiacutemos e o mesmo

com relaccedilatildeo aos outros termos mencionados por Zenatildeo

ldquoE foi isso entatildeo que expressou Parmecircnides quando ele [Soacutecrates] terminou Soacutecrates disse quatildeo digno eacutes de ser admirado pelo ardor que tens pelos argumentos Mas dize-me 1) tu mesmo assim fizestes a divisatildeo tal como falas de um lado certas coisas mesmas de outro as coisas que delas participam E 2) te parece a semelhanccedila mesma ser algo separada da semelhanccedila que temos e tambeacutem o um e as muacuteltiplas coisas e todas as coisas que haacute pouco ouviste de Zenatildeo Parece-me que sim disse Soacutecratesrdquo ὅπερ οὖν καὶ παυσαmicroένου αὐτοῦ εἰπεῖν τὸν Παρmicroενίδην Ὦ Σώκρατες φάναι ὡς ἄξιος εἶ ἄγασθαι τῆς ὁρmicroῆς τῆς ἐπὶ τοὺς λόγους καί microοι εἰπέ 1) αὐτὸς σὺ οὕτω διῄρησαι ὡς λέγεις χωρὶς microὲν εἴδη αὐτὰ ἄττα χωρὶς δὲ τὰ τούτων αὖ microετέχοντα καί 2) τί σοι δοκεῖ εἶναι αὐτὴ ὁmicroοιότης χωρὶς ἧς ἡmicroεῖς ὁmicroοιότητος ἔχοmicroεν καὶ ἓν δὴ καὶ πολλὰ καὶ πάντα ὅσα νυνδὴ Ζήνωνος ἤκουες Ἔmicroοιγε φάναι τὸν Σωκράτη (130b1-5)

Parmecircnides destaca o tema da separaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis

mencionando a preposiccedilatildeoadveacuterbio χωρίς (separadoseparadamente) nada menos

do que trecircs vezes em apenas quatro linhas Devemos entender a insistecircncia de

Parmecircnides sobre este ponto como um artifiacutecio dramaacutetico cujo objetivo eacute chamar

a atenccedilatildeo do leitor para questatildeo da ldquoseparaccedilatildeordquo entre Formas e objetos sensiacuteveis

na qual a teoria de Soacutecrates estaacute fundamentada Soacutecrates jaacute havia usado o termo

χωρίς com relaccedilatildeo agraves Formas anteriormente (διαιρῆται χωρὶς αὐτὰ καθ αὑτὰ τὰ

εἴδη 129d7) E de fato sua teoria parece envolver algum modo de separaccedilatildeo entre

duas classes distintas de objetos pois Soacutecrates afirma haver aleacutem das muacuteltiplas

coisas apontadas por Zenatildeo um outro conjunto de objetos distintos das coisas

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sensiacuteveis e detentores de um estatuto ontoloacutegico proacuteprio as Formas Mas o que

significa afirmar que as Formas satildeo entidades separadas Com o que exatamente

estaria Soacutecrates se comprometendo ao responder afirmativamente agrave pergunta de

Parmecircnides

Em seu sentido mais baacutesico podemos entender a afirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo

entre duas entidades como equivalente agrave atribuiccedilatildeo de natildeo-identidade numeacuterica

entre elas Assim compreendido o termo ldquoseparaccedilatildeordquo natildeo teria outro papel senatildeo

enfatizar o fato pressuposto pela teoria apresentada por Soacutecrates de que a Forma

natildeo eacute idecircntica aos objetos que dela participam ou seja se o objeto x participa da

Forma F entatildeo x e F satildeo coisas numericamente distintas isto eacute separadas Uma

segunda interpretaccedilatildeo possiacutevel seria entendermos a afirmaccedilatildeo de separaccedilatildeo como

equivalente agrave afirmaccedilatildeo de independecircncia ontoloacutegica De acordo com este sentido

uma coisas eacute separada da outra se ela pode existir independentemente da outra

Portanto nesta segunda acepccedilatildeo do termo x eacute separado de y se x pode continuar

a existir ainda que y deixe de existir ou mesmo que y nunca tenha existido28 Uma

terceira opccedilatildeo seria entendermos a afirmaccedilatildeo de que x eacute separado de y como

equivalente ao isolamento ou dissociaccedilatildeo total entre estes dois itens Assim

entendida a separaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis implicaria na inexistecircncia

de contato entre estas entidades tal como quando dizemos que uma mesa estaacute

separada da parede para afirmar que estas duas coisas natildeo estatildeo em contato uma

com a outra

Soacutecrates natildeo pede esclarecimentos a Parmecircnides acerca do que estaacute sendo

entendido por ldquoseparaccedilatildeordquo e noacutes como leitores devemos buscar nas entrelinhas

do texto o significado desta expressatildeo Esta tarefa nos eacute facilitada por Platatildeo que

oferece uma informaccedilatildeo fundamental acerca do sentido da palavra χωρίς por meio

da construccedilatildeo de um paralelismo entre a afirmaccedilatildeo de que a Forma F eacute separada

(χωρίς) e a afirmaccedilatildeo de que a Forma F eacute em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτό)

Em 129b4 Parmecircnides comeccedila seu exame perguntando a Soacutecrates se ele

acredita ser a Semelhanccedila mesma algo separado (χωρίς) da semelhanccedila que noacutes

temos Logo em seguida (130b7-9) Parmecircnides formula o mesmo tipo de questatildeo

utilizando agora a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτό ldquoSeraacute que tambeacutem coisas tais

28 Note que diferente da relaccedilatildeo de natildeo-identidade a indenpendecircncia ontoloacutegica natildeo eacute uma

relaccedilatildeo simeacutetrica Podemos considerar que x possui um modo de existecircncia independente de y e ao mesmo tempo afirmarmos que y eacute ontologicamente dependente de x

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como uma certa Forma em si e por si do Belo e do Justo [existem]rdquo Por fim em

130c1-2 Parmecircnides volta a usar o termo χωρίς e pergunta ldquoMas e uma Forma

do Homem [existiria esta Forma] separada de noacutes e de todos tais como somos

noacutesrdquo

Conforme observa Vlastos durante toda esta arguiccedilatildeo as expressotildees χωρίς

e αὐτὸ καθ αὑτό ldquosatildeo usadas intercaladamente para enunciar a mesma tese

metafiacutesica (metaphysical claim)rdquo (Vlastos 1991 p259) Como Soacutecrates natildeo se

manifesta contra a assimilaccedilatildeo do significado destas duas expressotildees e aceita sem

ressalvas o paralelismo estabelecido por Parmecircnides natildeo temos razatildeo para

duvidar de que as proposiccedilotildees ldquoA Forma F eacute separadardquo e ldquoA Forma F eacute em si e

por sirdquo possuem o mesmo significado e expressam o mesmo fato ontoloacutegico

A identidade entre o significado das expressotildees χωρίς e αὐτὸ καθ αὑτό

natildeo nos seria uacutetil contudo caso natildeo soubeacutessemos o que Soacutecrates entende pela

afirmaccedilatildeo de que as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὸ καθ αὑτό) No

entanto como vimos anteriormente a afirmaccedilatildeo de que as Formas satildeo ldquoem si e

por sirdquo eacute extremamente recorrente nos diaacutelogos e devemos entendecirc-la como

equivalente agrave tese da independecircncia ontoloacutegica das Formas As Formas satildeo ditas

αὐτὰ καθ αὑτὰ devido ao fato de apresentarem um modo de existecircncia

independente com relaccedilatildeo aos objetos sensiacuteveis que delas participam No

Banquete (211a5-b6) por exemplo a foacutermula ainda mais enfaacutetica αὐτὸ καθ αὑτὸ

microεθ αὑτοῦ eacute usada para expressar o modo de existecircncia autossuficente da Forma

do Belo que natildeo eacute afetada em absoluto pelas vicissitudes que as coisas belas do

mundo empiacuterico estatildeo fadadas a sofrer Pois ldquo() nem o nascimento nem a morte

destas coisas o fazem aumentar ou diminuir ou lhe produzem qualquer efeitordquo

(οἷον γιγνοmicroένων τε τῶν ἄλλων καὶ ἀπολλυmicroένων microηδὲν ἐκεῖνο microήτε τι πλέον

microήτε ἔλαττον γίγνεσθαι microηδὲ πάσχειν microηδέν) Gozando de uma modo de

existecircncia plenamente independente e natildeo dependendo de qualquer tipo de relaccedilatildeo

com outras entidades para ser aquilo que eacute o Belo ele mesmo permaneceraacute ldquosendo

sempre uacutenico em aspectordquo (microονοειδὲς ἀεὶ ὄν)

No Feacutedon Soacutecrates usa o mesmo paralelismo entre χωρίς (representado

pelo verbo χωρίζω) e αὐτὸ καθ αὑτό para explicar como o evento da morte que

nada mais eacute do que a separaccedilatildeo da alma do corpo faz com que estes dois

elementos passem a existir em si e por si ou seja de maneira independente

(Feacuted64C5-8) A morte significa para alma o fim da longa dependecircncia

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estabelecida com o corpo ao qual estava relacionada durante a encarnaccedilatildeo Apoacutes a

morte tanto o corpo quanto a alma passam a gozar de um modo de existecircncia

separado O corpo existiraacute de maneira independente poreacutem apenas pelo breve

espaccedilo de tempo que separa o evento da morte de sua dissoluccedilatildeo total enquanto a

alma continuaraacute a existir separada e independente mesmo apoacutes o

desaparecimento do corpo

Em ambas as passagens a locuccedilatildeo αὐτὸ καθ αὑτό eacute usada para designar o

estatuto ontoloacutegico independente de uma entidade Sendo assim dado o

paralelismo apontado por Vlastos entre a afirmaccedilatildeo de que ldquoA Forma F eacute em si e

por sirdquo e a afirmaccedilatildeo de que ldquoA Forma F eacute separadardquo podemos concluir que

Soacutecrates ao concordar que as Formas satildeo entidades separadas estaacute se

comprometendo com a tese de que as Formas existem de maneira completamente

independente dos objetos sensiacuteveis que delas participam natildeo necessitando deles

para serem aquilo que elas satildeo29

A insistecircncia de Parmecircnides sobre a questatildeo da separaccedilatildeo das Formas

representa seu reconhecimento de que a Teoria das Ideias apresentada por

Soacutecrates estaacute fundamentalmente vinculada agrave independecircncia ontoloacutegica destas

entidades Para que as Formas se apresentem como soluccedilatildeo agraves contradiccedilotildees do

mundo empiacuterico eacute imprescindiacutevel que estas entidades demonstrem-se aptas a

manter suas caracteriacutesticas ontoloacutegicas fundamentais a despeito do que aconteccedila

com os objetos que delas participam e sobretudo a despeito de como seja

entendida a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que as vincula aos objetos sensiacuteveis Assim a

29 Alguns comentadores entendem que a pergunta de Parmecircnides pressupotildee a simetria da relaccedilatildeo

de ldquoseparaccedilatildeordquo isto eacute se x eacute separado de y entatildeo y eacute separado de x Este fato por si soacute seria suficiente para descartarmos a hipoacutetese de que o termo χωρίς e por extensatildeo a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτό possam implicar independecircncia ontoloacutegica Afinal a Teoria das Ideias certamente afirma a independecircncia ontoloacutegica das Formas frente aos objetos sensiacuteveis Poreacutem segundo estes autores a afirmaccedilatildeo da indenpendecircncia ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis frente agraves Formas estaacute em clara contradiccedilatildeo com a Teoria das Ideias Portanto como Soacutecrates aceita sem ressalvas a formulaccedilatildeo de Parmecircnides devemos entender o termo χωρίς em algum dos sentidos que natildeo implicam a independecircncia ontoloacutegica da entidade separada (cf Gill 1996 p17 n23) ou devemos admitir que o jovem Soacutecrates natildeo estaacute completamente ciente da tese com a qual estaacute se comprometendo e aceita a independecircncia ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por engano (cf Allen 1997 p23-23) Vlastos apresenta um contra-argumento a estes autores afirmando que este tipo de interpretaccedilatildeo deriva de uma leitura errocircnea do texto Segundo Vlastos natildeo haacute razatildeo para acreditarmo que a relaccedilatildeo de separaccedilatildeo estaacute sendo tratada como uma relaccedilatildeo simeacutetrica porque as ocorrecircncias de χωρίς em 130b2 e b3 devem ser entendida como adveacuterbios de διῄρησαι Assim em b2-3 natildeo estamos falando de ldquoexistir separadamenterdquo mas de ldquodistinguir separadamenterdquo e a afirmaccedilatildeo do modo de existecircncia separado das Formas soacute aconteceria na sentenccedila seguinte b4 onde natildeo haacute sinal algum de simetria (cf Vlastos 1991 p 256)

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ecircnfase no tema da separaccedilatildeo durante a fala de abertura da argumentaccedilatildeo de

Pamecircnides antecipa ao leitor do diaacutelogo o conteuacutedo das criacuteticas que se seguiratildeo

Como veremos os argumentos de Parmecircnides pretendem demonstrar justamente

a impossibilidade das Formas preservarem sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica distintiva

enquanto estejam vinculadas aos objetos sensiacuteveis por meio da relaccedilatildeo de

participaccedilatildeo

O questionamento parmeniacutedico contudo natildeo termina por ai e suas duas

perguntas iniciais satildeo oferecidas em uma uacutenica sentenccedila como dois problemas

intimamente conectados Assim sua segunda questatildeo (130b3-4) eacute enunciada

como um mero corolaacuterio da primeira (130b2-3) se as Formas satildeo entidades

separadas dos objetos sensiacuteveis e estes objetos por sua vez satildeo separados das

Formas haveria entatildeo uma Forma do Semelhante separada da semelhanccedila que as

coisas sensiacuteveis possuem

Soacutecrates responde afirmativamente agraves duas perguntas reconhecendo a

existecircncia de uma Forma do Semelhante separada tanto dos objetos sensiacuteveis

quanto da semelhanccedila que haacute em noacutes Deste modo Parmecircnides torna expliacutecito

aquilo que jaacute havia sido antecipado pelo aparecimento da expressatildeo αὐτὰ τὰ

ὅmicroοιά isto eacute que a teoria apresentada por Soacutecrates pressupotildee a distinccedilatildeo natildeo

somente entre Formas e objetos sensiacuteveis mas tambeacutem entre Formas e

propriedades imanentes Portanto de acordo com Soacutecrates se estamos falando de

dois homens semelhantes entre si nossa anaacutelise pressupotildee a distinccedilatildeo de trecircs tipos

de entidades 1) a Forma do Semelhante 2) os indiviacuteduos em questatildeo e 3) a

semelhanccedila que estes indiviacuteduos possuem devido ao fato de participarem da

Forma do Semelhante

Como Parmecircnides demonstra perceber a distinccedilatildeo entre Formas e

propriedades imanentes eacute uma consequecircncia direta da hipoacutetese da separaccedilatildeo das

Formas As Formas satildeo entidades em si e por si separadas dos objetos sensiacuteveis

mas ao mesmo tempo se apresentam como causas das caracteriacutesticas destes

objetos Sendo assim eacute preciso supor a existecircncia de um resultado nas coisas da

accedilatildeo causal exercida pelas Formas Neste momento da discussatildeo nenhuma

informaccedilatildeo eacute passada ao leitor acerca do estatuto ontoloacutegico deste terceiro

elemento a natildeo ser o fato de que esta entidade encontra-se nas coisas sendo

portanto presente nos objetos sensiacuteveis Parmecircnides iraacute solucionar esta carecircncia

de informaccedilatildeo durante a enunciaccedilatildeo do seu ldquodilema da participaccedilatildeordquo Segundo

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este dilema soacute haacute duas possibilidades de compreensatildeo para o que satildeo as

propriedade imanentes ou bem estas entidades satildeo as proacuteprias Formas presentes

por inteiro nos objetos que delas participam ou bem satildeo partes de Formas

compartilhadas pelos objetos sensiacuteveis por meio da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo

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422 A extensatildeo do conjunto de Formas

Apoacutes se certificar da separaccedilatildeo entre Formas objetos sensiacuteveis e

propriedades imanentes Parmecircnides realiza trecircs perguntas acerca da extensatildeo do

conjunto de Formas Claramente sua intenccedilatildeo eacute determinar para que tipo de

coisas existe uma Formas correspondente De um ponto de vista dramaacutetico seu

interesse sobre esta questatildeo eacute extremamente natural Parmecircnides acabara de ser

apresentado agrave Teoria das Ideias e a primeira duacutevida que lhe surge eacute quais Formas

existem

Soacutecrates jaacute havia concordado que existem as Formas do Semelhante do

Dessemelhante do Um do Muacuteltiplo do Repouso e do Movimento Estas Formas

correspondem a termos gerais de aplicaccedilatildeo irrestrita pois todo elemento da

realidade precisa possuir senatildeo cada um destes pares de predicados ao menos um

membro de cada par30 Parmecircnides natildeo se deteacutem nestas Formas e se refere a elas

apenas pela designaccedilatildeo geneacuterica de ldquoas coisas que haacute pouco ouviste de Zenatildeordquo

(130b5)31

Por outro lado Parmecircnides se mostra bastante interessado em saber se

Soacutecrates admite aleacutem de Formas correspondentes a termos de aplicaccedilatildeo irrestrita

ldquouma Forma em si e por si do Justo e tambeacutem do Belo e do Bom e ainda de todas

as coisas deste tipordquo Ao que Soacutecrates responde confiantemente que sim (130b7-

10)

Ora termos com ldquoo belordquo ldquoo bomrdquo e ldquoo justordquo exemplificam as virtudes

que encontramos em diaacutelogos relacionados agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees

(δίκαιος Eut12d HiacuteppMa287c Goacuterg483d 492a Prot329c-330c Mecircn73e

30 Ryle denomina estes predicados de ldquoconceitos formaisrdquo e enfatiza o fato de que eles se

diferenciam natildeo apenas pela sua universalidade de aplicaccedilatildeo mas tambem pelo seu tipo loacutegico Pois um conceito deste tipo natildeo eacute ldquoespeciacutefico a um toacutepico mas integral a todos os toacutepicos de discurso (subject-matter) (Ryle 1965 p115) Posteriormente Ryle se refere a estes conceitos como ldquosincategoremaacuteticosrdquo (Ryle 165 p131) Gill e Turnbull por sua vez chamam as Formas correspondentes a estes predicados de ldquoFormas estruturaisrdquo (Gill 2012 p29) e (Turnbull 1998 p19) Estes autores parecem estar corretos em identificar a universalidade de aplicaccedilatildeo destes termos como seu caraacuteter distintivo Curiosamente os comentaacuterios mais antigos identificam este grupo de Formas como correspondente a termos matemaacuteticos mas este natildeo parece ser o ponto em questatildeo uma vez que ldquorepousordquo e ldquomovimentordquo estatildeo incluidos na lista

31 No Feacutedro estes mesmo predicados satildeo relacionados ao tipo de argumentaccedilatildeo desenvolvida por Zenatildeo Neste diaacutelogo Soacutecrates afirma que o Palamendes de Eleacuteia (Zenatildeo) eacute capaz de fazer sua audiecircncia crer que as coisas satildeo simultaneamente semelhantes e dessemelhantes unas e muacuteltiplas em repouso e em movimento (Feacutedr261d)

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καλός Liacutes216d HiacuteppMa 287d-304e ἀγαθός Liacutes216d HiacuteppMa287c

Mecircn87d Goacuterg495a Prot352c) Como vimos estes diaacutelogos conteacutem

argumentos em que expressotildees como ldquoo Belo em sirdquo e ldquoa Forma do Belordquo satildeo

entendidas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder causal

exercido por estas entidades nos levou ainda a reconhecer a independecircncia e

prioridade ontoloacutegica inerente a elas e a concluir que a busca por definiccedilotildees dos

diaacutelogos iniciais deve ser entendida desde sempre como uma busca pela Forma

das virtudes e termos morais ali mencionados Nos diaacutelogos da fase meacutedia

Formas correspondentes a virtudes continuam a receber papel proeminente como

por exemplo no Feacutedon (65d 70d-71e 76d 100c-d) no Banquete (210e-211d) e

na Repuacuteblica (479a-b) Sendo assim ao aceitar a existecircncia de Formas

correspondentes a virtudes valores morais e valores eacuteticos Soacutecrates natildeo estaacute

fazendo nada mais do que manter-se coerente com aquilo que um leitor dos

diaacutelogos platocircnicos esperaria

O segundo grupo de Formas a despertar o interesse de Parmecircnides

corresponde ao que chamariacuteamos de termos sortais ldquohomemrdquo ldquofogordquo e ldquoaacuteguardquo32

As perguntas anteriores mencionam Formas correspondentes a adjetivos

predicados incompletos ou caracteriacutesticas das coisas Parmecircnides agora

questiona Soacutecrates acerca da existecircncia de Formas correspondentes a substantivos

ou expressotildees nominais usadas para designar tipos ou classes de coisas Soacutecrates

natildeo se mostra seguro acerca da existecircncia destas Formas mas tambeacutem natildeo nega

que elas possam existir afirmando apenas ter ficado muitas vezes em aporia

acerca deste assunto (130c1-4)

A inseguranccedila de Soacutecrates acerca da existecircncia de Formas correspondentes

a termos sortais eacute facilmente compreendida se levarmos em conta que nos

diaacutelogos anteriores ao Parmecircnides as Formas satildeo apresentadas sobretudo como

uma tentativa de solucionar problemas relacionados com a copresenccedila de opostos

nas coisas sensiacuteveis No primeiro grupo de diaacutelogos Soacutecrates sai em busca de

uma definiccedilatildeo precisa para termos morais por perceber que casos exemplares de

32 Estritamente falando ldquoaacuteguardquo e ldquofogordquo natildeo satildeo termos sortais pelo fato de natildeo poderem receber

adjetivos numeacutericos Assim ldquocubo de gelordquo eacute um termo sortal porque podemos falar ldquotrecircs cubos de gelordquo poreacutem o mesmo natildeo acontece com ldquoaacuteguardquo e ldquofogordquo A caracteriacutestica fundamental que une este grupo de termos eacute portanto o fato de constituirem elementos com funccedilatildeo nominal aos quais adjetivos e predicados satildeo atribuidos e que satildeo oferecidos como resposta a questotildees do tipo ldquoo que eacute istordquo No Fileacutebo (15a) Soacutecrates menciona uma Forma de Homem e no Timeu (51b) uma Forma do Fogo eacute mencionada

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demonstraccedilatildeo de uma determinada virtude podem aparecer sob certos aspectos ou

determinadas condiccedilotildees como um exemplo do viacutecio exatamente oposto Assim

ldquodevolver a cada um o que lhe eacute proacutepriordquo (RepI 331c) pode ser considerado um

exemplo de justiccedila No entanto no caso de algueacutem tomado pela loucura exigir a

devoluccedilatildeo de suas armas a mesma definiccedilatildeo estaraacute apresentando uma caso

daquilo que eacute o oposto da justiccedila Do mesmo modo levar a julgamento aquele que

comete um crime em mateacuteria religiosa parece fazer parte daquilo que eacute a piedade

poreacutem caso esta pessoa seja seu proacuteprio pai e o julgamento venha a levaacute-lo a

morte o mesmo tipo de ato teraacute como resultado um parriciacutedio o pior e mais iacutempio

dos casos de derramamento de sangue

Durante a fase meacutedia o problema da co-presenccedila de opostos continua a

receber um papel de destaque Em uma passagem da Repuacuteblica VII (523a-524e) a

busca por uma soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila de opostos eacute apresentada

por Soacutecrates como a proacutepria razatildeo para o surgimento da Teoria das Ideias

Segundo Soacutecrates eacute o fato de um mesmo dedo parecer simultaneamente grande e

pequeno que nos leva a formular questotildees do tipo ldquoo que eacute o granderdquo ldquoo que eacute o

pequenordquo e a concluir que o Grande e o Pequeno devem ser afirmados como um

tipo de coisa separada dos objetos sensiacuteveis Contudo o dedo enquanto dedo

nunca se apresenta como o contraacuterio de si mesmo e a mente da maioria dos

homens natildeo eacute levada a formular a pergunta o que eacute o dedo E como

consequecircncia a mente da maioria dos homens tambeacutem natildeo eacute levada a postular

uma Forma correspondente ao termo sortal ldquodedordquo

Esta passagem da Repuacuteblica VII assim como nossa passagem do

Parmecircnides natildeo nega a existecircncia de Formas correspondentes a termos como

ldquodedordquo e ldquohomemrdquo De fato no livro X da Repuacuteblica o proacuteprio Soacutecrates afirma

ter o haacutebito de assumir a existecircncia de uma Forma uacutenica para cada conjunto de

coisas muacuteltiplas agraves quais chamamos por um mesmo nome (εἶδος γάρ πού τι ἓν

ἕκαστον εἰώθαmicroεν τίθεσθαι περὶ ἕκαστα τὰ πολλά οἷς ταὐτὸν ὄνοmicroα ἐπιφέροmicroεν

Rep596a6-7) Igualmente em uma passagem sobre do ldquoprodutor de nomesrdquo

(ὀνοmicroατουργός) do Craacutetilo (389a-390a) o mesmo princiacutepio segundo o qual

haveria uma Forma para cada palavra parece estar em jogo No proacuteprio

Parmecircnides Soacutecrates reconhece a possibilidade de uma aceitaccedilatildeo bastante

abrangente para o contigente de Formas afirmando jaacute ter considerado a

possibilidade do princiacutepio de postulaccedilatildeo das Formas ser ldquoo mesmo com relaccedilatildeo a

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todas as coisasrdquo (περὶ πάντων ταὐτόν 130d5-6) A proacutepria observaccedilatildeo de

Parmenides que conclui a passagem sobre a extensatildeo do conjunto de Formas

parece apontar na mesma direccedilatildeo ao prever que nenhuma destas coisas seraacute

desprezada por Soacutecrates assim que a filosofia dele se apoderar completamente

(130e1-4)

Sendo assim a duacutevida demonstrada pelo jovem Soacutecrates acerca da

existecircncia de Formas correspondentes a termos sortais deve ser entendida em

paralelo com a passagem sobre o dedo na Repuacuteblica como um testemunho de

Platatildeo acerca da origem da Teoria das Ideias Ao que tudo indica as Formas foram

primeiro propostas como uma tentativa de soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos tanto no caso dos predicados incompletos e propriedades relacionais

dos objetos sensiacuteveis quanto no caso das virtudes e valores morais que se

negavam a ser capturados por uma soacute definiccedilatildeo As falas de Soacutecrates e

Parmecircnides em 130d5-e4 nos levam a crer que na eacutepoca de composiccedilatildeo do

Parmecircnides o nuacutemero de Formas admitidas jaacute havia sido expandido o suficiente

para incluir uma Forma correspondente a cada conjunto de muacuteltiplas coisas que

chamamos pelo mesmo nome confirmando assim a impressatildeo que nos chega dos

diaacutelogos da fase meacutedia

Em oposiccedilatildeo a estas admissotildees Soacutecrates se mostra definitivamente contra

a existecircncia de Formas correspondentes a um quarto grupo de termos enunciado

por Parmecircnides constituiacutedo por cabelo lama e sujeira (θρὶξ καὶ πηλὸς καὶ ῥύπος

) e afirma que acreditar na existecircncia destas Formas seria por demais absurdo

(130d4) Mas por que Soacutecrates se negaria admitir a existecircncia destas Formas

A explicaccedilatildeo mais comumente apresentada pelos comentadores baseia-se

no fato de que coisas como cabelo lama e sujeira seriam indignas e ignoacutebeis

demais para serem harmonizadas com a grandiloquecircncia das descriccedilotildees acerca da

natureza divina das Formas encontradas em diaacutelogos como Banquete e

Repuacuteblica33 De fato esta interpretaccedilatildeo parece estar sugerida pela fala de

Parmecircnides que caracteriza estas coisas como ridiacuteculas (γελοῖα) despreziacuteveis

(ἀτιmicroότατόν) e vis (φαυλότατον) No entanto podemos atribuir um significado

33 El Murr por exemplo afirma ldquoSe Soacutecrates natildeo pode admitir que existe uma Forma de Lama eacute

evidentemente porque ele confunde a questatildeo do valor e a questatildeo da essecircncia porque ele pensa que uma Forma da lama coisa de pouco valor seria uma Forma de pouco valorrdquo (El Murr 2010 p145) Para outros autores que defendem esta mesma linha de raciociacutenio (cf Allan 1997 p124) (cf Cornford 1951 p83) (cf Miller 1986 p 45-46) (cf Turnbull 1998

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mais profundo para a recusa de Soacutecrates caso estejamos dispostos a reconhecer

nestes exemplos uma antecipaccedilatildeo dos problemas vinculados agrave relaccedilatildeo partetodo

que encontraremos de maneira recorrente no restante das criacuteticas de Parmecircnides

agrave hipoacutetese das Formas

Soacutecrates havia se mostrado relutante poreacutem natildeo havia negado a existecircncia

de uma Forma de Homem Parmecircnides deseja saber agora se precisamos de uma

Forma de Cabelo uma vez que tenhamos admitido uma Forma de Homem Um

homem eacute um todo composto por diversas partes como ressaltado por Soacutecrates

que usa a si proacuteprio como exemplo (129c4-d1) Seria tambeacutem a Forma do

Homem um todo composto por partes Se sim seriam entatildeo as Formas do

Cabelo e do Dedo partes da Forma do Homem Mas e estas Formas seriam elas

tambeacutem entidades compostas cujas partes corresponderiam aos componentes do

dedo e do cabelo sensiacuteveis Se natildeo entatildeo precisariacuteamos de uma Forma separada

para cada parte do corpo humano E para as partes destas partes teriacuteamos uma

Forma correspondente a cada componente do corpo humano ateacute chegarmos a um

elemento sensiacutevel completamente indivisiacutevel Por outro lado seria necessaacuterio

uma Forma de Lama caso exista uma Forma para os dois elementos a partir dos

quais a lama eacute composta terra e de aacutegua (cfTeet147c) Ou seria a lama sensiacutevel

apenas o resultado da presenccedila destas duas Formas em um uacutenico objeto Por fim

teria a sujeira uma natureza proacutepria um caraacuteter determinado Ou seria a sujeira

apenas um agregado de pequenas partes de outras coisas como terra e cabelo

cada uma delas correspondendo a uma Forma especiacutefica

As questotildees de Parmecircnides acerca da extensatildeo do conjunto de Formas natildeo

chegam a constituir propriamente uma tentativa de refutaccedilatildeo da teoria apresentada

por Soacutecrates Contudo esta primeira bateria de perguntas deixa claro ao leitor que

a hipoacutetese das Formas estaacute sujeita a criacuteticas como de fato estaacute sujeita toda e

qualquer teoria De um ponto de vista dramaacutetico estas perguntas realizam a

transiccedilatildeo entre a apresentaccedilatildeo da Teoria das Ideias e a refutaccedilatildeo desta teoria que

se daraacute no restante do diaacutelogo Atraveacutes desta pequena passagem Platatildeo apresenta

a seus leitores ateacute entatildeo acostumados a ver Soacutecrates como protagonista e

condutor principal da argumentaccedilatildeo uma clara inversatildeo de papeacuteis No restante do

Parmecircnides ao inveacutes de encontramos o Soacutecrates confiante e eloquente da Feacutedon e

p22-23)

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do Banquete ou o Soacutecrates irocircnico e refutador do Ecircutifron e do Laacuteques

encontraremos um Soacutecrates receoso e reticente preza dos ataques de Parmecircnides

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423 O dilema da Participaccedilatildeo

Parmecircnides inicia sua efetiva reduccedilatildeo ao absurdo da Teoria das Ideias por

meio de uma reapresentaccedilatildeo sumaacuteria da posiccedilatildeo socraacutetica

ldquoMas dize-me o seguinte34 parece-te como dizes haver certas Formas em tendo participaccedilatildeo nas quais essas outras coisas aqui recebem suas denominaccedilotildees Por exemplo se tecircm participaccedilatildeo na Semelhanccedila as coisas se tornam semelhantes se na Grandeza grandes se no Belo e na Justiccedila justas e belas Perfeitamente disse Soacutecratesrdquo τόδε δ οὖν microοι εἰπέ δοκεῖ σοι ὡς φῄς εἶναι εἴδη ἄττα ὧν τάδε τὰ ἄλλα microεταλαmicroβάνοντα τὰς ἐπωνυmicroίας αὐτῶν ἴσχειν οἷον ὁmicroοιότητος microὲν microεταλαβόντα ὅmicroοια microεγέθους δὲ microεγάλα κάλλους δὲ καὶ δικαιοσύνης δίκαιά τε καὶ καλὰ γίγνεσθαι Πάνυ γε φάναι τὸν Σωκράτη (130e4-131a1)

Nesta passagem Parmecircnides reduz a posiccedilatildeo socraacutetica a trecircs proposiccedilotildees

fundamentais 1) existem Formas 2) os objetos sensiacuteveis (τάδε τὰ ἄλλα)

participam nestas Formas e 3) devido a esta de participaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis

recebem os nomes pelos quais satildeo chamados A tese segundo a qual as coisas

recebem suas denominaccedilotildees devido ao fato de participarem nas Formas

conhecida como tese da eponiacutemia (ἐπωνυmicroία) natildeo havia sido mencionada por

Soacutecrates No entanto devemos entendecirc-la como um mero corolaacuterio linguiacutestico da

hipoacutetese de que as Formas satildeo causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis As

coisas recebem suas denominaccedilotildees pelo fato de apresentarem as caracteriacutesticas e

propriedades que apresentam Como as Formas satildeo as causas destas propriedades

Parmecircnides deduz corretamente que as coisas recebem suas denominaccedilotildees em

funccedilatildeo da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que mantecircm com as Formas 35

Como sabemos de acordo com a Teoria das Ideias o fato de que Simmias

eacute grande pressupotildee a existecircncia de duas entidades ontologicamente distintas

34 Platatildeo marca de maneira muito clara o iniacutecio de uma nova seacuterie de argumento pela frase ldquoτόδε δ οὖν microοι εἰπέrdquo Do mesmo modo o iniacutecio da passagem acerca da extensatildeo do conjunto de Formas havia sido marcado pelas palavras ldquoκαί microοι εἰπέrdquo (130b1) e posteriormente a introduccedilatildeo do argumento do terceiro homem seraacute marcado pela expressatildeo ldquoπρὸς τόδε πῶς ἔχειςrdquo (131e8) 35 Como observa Cornford (Cornford 1951 p84 n2) esta fala de Parmecircnides traz uma

referecircncia bastante direta agrave passagem do Feacutedon em que Soacutecrates propotildee sua teoria da participaccedilatildeo como uma soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila de opostos em Simmias Compare ldquoὧν τάδε τὰ ἄλλα microεταλαmicroβάνοντα τὰς ἐπωνυmicroίας αὐτῶν ἴσχεινrdquo (Parm130e5-6) com ldquoκαὶ τούτων τἆλλα microεταλαmicroβάνοντα αὐτῶν τούτων τὴν ἐπωνυmicroίαν ἴσχεινrdquo (Feacuted102b1-2)

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Simmias e a Forma da Grandeza Aleacutem disso como Soacutecrates jaacute havia antecipado

pelo uso da expressatildeo αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e como o proacuteprio Parmecircnides jaacute havia

concluiacutedo em 130b3-4 o fato de que Simmias eacute grande pressupotildee ainda a

existecircncia da propriedade imanente grandeza-em-Simmias (Parm130b4 αὐτὴ

ὁmicroοιότης χωρὶς ἧς ἡmicroεῖς ὁmicroοιότητος ἔχοmicroεν Feacuted102d7 τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος

Feacuted103b5 οὔτε τὸ ἐν ἡmicroῖν [ἐναντίον] οὔτε τὸ ἐν τῇ φύσει) Diferente da Forma

que lhe daacute origem uma propriedade imanente eacute ontologicamente dependente do

indiviacuteduo na qual estaacute localizada Afinal sua existecircncia estaacute intimamente

conectada com a existecircncia do indiviacuteduo que a possui e podemos considerar que

caso este indiviacuteduo deixe de ser grande de todos os modos possiacuteveis a

propriedade imanente da grandeza que este indiviacuteduo apresentava cessaraacute de

existir

Podemos nos perguntar agora como estas trecircs entidades estatildeo

relacionadas Soacutecrates havia sugerido que os objetos sensiacuteveis participam das

Formas e como resultado desta participaccedilatildeo adquirem suas diversas

propriedade36 No entanto o poder causal exercido pelas Formas natildeo pode ser

considerado por si soacute suficientemente elucidativo Haacute de haver um modo

especiacutefico de relaccedilatildeo entre estas entidades que explique como as Formas podem

ser responsaacuteveis pelo surgimento das propriedades imanentes nos objetos

sensiacuteveis Parmecircnides deseja saber portanto como devemos entender a relaccedilatildeo de

participaccedilatildeo de modo a tornarmos teoricamente viaacutevel a hipoacutetese de que as coisas

sensiacuteveis adquirem suas propriedades imanentes por causa das Formas

No Feacutedon Soacutecrates havia se recusado a explicitar a natureza desta relaccedilatildeo

oferecendo de maneira inconclusiva os termos ldquopresenccedilardquo e ldquocomunhatildeordquo como

modos possiacuteveis de descrevecirc-la

ldquoNada aleacutem do Belo torna esta coisa bela seja pela sua presenccedila (παρουσία) seja

36 Assim no Parmecircnides (129a4-5) certas coisas ldquotendo participaccedilatildeo na Semelhanccedila se tornam

semelhantesrdquo (τὰ microὲν τῆς ὁmicroοιότητος microεταλαmicroβάνοντα ὅmicroοια γίγνεσθαι) isto eacute passam a possuir a propriedade imanente da semelhanccedila ldquopor causa disso e na medida em que nela tenham participaccedilatildeordquo (ταύτῃ τε καὶ κατὰ τοσοῦτον ὅσον ἂν microεταλαmicroβάνῃ) E no Feacutedon (100c4-6) ldquoSe existe alguma coisa bela aleacutem do Belo em si a uacutenica razatildeo pela qual esta coisa eacute bela eacute porque ela participa da Belo em si E digo o mesmo com relaccedilatildeo a todo o restordquo (εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν οὐδὲ δι ἓν ἄλλο καλὸν εἶναι ἢ διότι microετέχει ἐκείνου τοῦ καλοῦ καὶ πάντα δὴ οὕτως λέγω) Nestas passagens Soacutecrates deixa claro por meio do emprego do dativo instrumental da conjunccedilatildeo διότι e da preposiccedilatildeo κατά + acusativo que eacute unicamente pela participaccedilatildeo nas Formas que as coisas adquirem as diversas propriedades que possuem

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pela comunhatildeo (κοινωνία) ou como quer que ele [o Belo] venha a se adicionar agraves coisas (ὅπῃ δὴ καὶ ὅπως προσγενοmicroένη) pois natildeo irei insistir nisto apenas que eacute pelo Belo que todas as coisas belas se tornam belasrdquo οὐκ ἄλλο τι ποιεῖ αὐτὸ καλὸν ἢ ἡ ἐκείνου τοῦ καλοῦ εἴτε παρουσία εἴτε κοινωνία εἴτε ὅπῃ δὴ καὶ ὅπως προσγενοmicroένη οὐ γὰρ ἔτι τοῦτο διισχυρίζοmicroαι ἀλλ ὅτι τῷ καλῷ πάντα τὰ καλὰ [γίγνεται] καλά (Fed100d4-7)

No Parmecircnides apenas duas alternativas satildeo inicialmente apresentadas

ou bem 1) cada coisa que participa de uma Forma participa na Forma inteira ou

bem 2) cada coisa que participa de uma Forma participa em uma parte da Forma

De acordo com 1) a propriedade imanente que um objeto sensiacutevel adquire como

consequecircncia da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo equivale agrave totalidade da Forma De

acordo com 2) esta propriedade imanente equivale a apenas uma parte da Forma

Soacutecrates aceita o dilema formulado por Parmecircnides e concorda ainda que estas

duas opccedilotildees satildeo exaustivas

ldquoNatildeo eacute verdade que cada uma das coisas que tecircm participaccedilatildeo ou bem tem participaccedilatildeo na Forma inteira ou bem em uma parte dela Ou haveria uma outra participaccedilatildeo aleacutem dessas Como poderia haver disse [Soacutecrates]rdquo Οὐκοῦν ἤτοι ὅλου τοῦ εἴδους ἢ microέρους ἕκαστον τὸ microεταλαmicroβάνον microεταλαmicroβάνει ἢ ἄλλη τις ἂν microετάληψις χωρὶς τούτων γένοιτο Καὶ πῶς ἄν εἶπεν (131a4-7)

Em sua forma o dilema anuncia uma reduccedilatildeo ao absurdo 1) Se as coisas

participam das Formas entatildeo elas participam no todo ou em parte de uma Forma

Contudo 2) natildeo pode haver participaccedilatildeo no todo das Formas nem em partes das

Formas Logo 3) natildeo haacute participaccedilatildeo isto eacute as coisas natildeo participam das Formas

A validade desta reduccedilatildeo depende diretamente do reconhecimento de que as duas

opccedilotildees previstas na premissa maior do argumento esgotam todas as possibilidades

de se pensar a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis Por isso

Parmecircnides pergunta a Soacutecrates se poderia haver algum outro tipo de participaccedilatildeo

aleacutem da participaccedilatildeo no todo ou em parte de uma Forma Neste primeiro

momento Soacutecrates concorda que natildeo poderia haver reconhecendo a completude

da premissa maior do argumento de Parmecircnides e se comprometendo

antecipadamente com a validade da reduccedilatildeo37

37 Posteriormente confrontado pelos paradoxos resultantes do dilema da participaccedilatildeo Soacutecrates

iraacute propor maneiras de entender a relaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que extrapolam as opccedilotildees previstas neste dilema inicial Contudo como veremos estas propostas tampouco se mostraratildeo imunes aos ataques do saacutebio eleata

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424 A estrutura do dilema de participaccedilatildeo

Eacute constantemente apontado pelos comentadores o fato de que o dilema da

participaccedilatildeo possuiria uma estrutura assimeacutetrica Enquanto o primeiro ramo do

dilema de acordo com o qual as coisas participam no todo de uma Forma levaria

a uma impossibilidade loacutegica a argumentaccedilatildeo que contradiz o segundo ramo do

dilema seria meramente ad hominen e resultaria em apenas um par de

contradiccedilotildees especiacuteficas restritas a um determinado conjunto de Formas Esta

interpretaccedilatildeo foi proposta pela primeira vez por Reginald Allen

ldquoSoacutecrates rejeita ambas disjunccedilotildees do Dilema da Participaccedilatildeo mas a modalidade destas disjunccedilotildees eacute bastante diferente A primeira disjunccedilatildeo dada a pluralidade de participantes envolve uma absurdidade loacutegica (hellip) A segunda disjunccedilatildeo seja verdadeira ou como Soacutecrates acredita falsa natildeo envolve uma absurdidade loacutegica (hellip) Portanto se natildeo haacute participaccedilatildeo no todo nem na parte da Ideia entatildeo natildeo haacute participaccedilatildeo mas se haacute participaccedilatildeo ela natildeo pode ser no todo mas deve ser na parte de uma Ideiardquo (Allen 1997 p133)

Apesar da aceitaccedilatildeo geral que a interpretaccedilatildeo de Allen tem recebido38 sua

leitura natildeo deve ser assumida de antematildeo Em primeiro lugar porque levanta o

seguinte problema interpretativo se o segundo ramo do dilema apresenta uma

opccedilatildeo logicamente viaacutevel por que Soacutecrates natildeo se apega a esta opccedilatildeo procurando

apresentar maneiras plausiacuteveis de entender as propriedades imanentes como partes

das Formas Ao contraacuterio do que seria esperado caso a participaccedilatildeo em partes das

Formas fosse a uacutenica opccedilatildeo logicamente possiacutevel Soacutecrates procura manter

durante toda seacuterie de argumentos a unidade das Formas se mostrando

decididamente contra a hipoacutetese de que elas possam ser divididas

Aleacutem disso a leitura assimeacutetrica para o dilema da participaccedilatildeo eacute

responsaacutevel por um problema interpretativo ainda mais fundamental que ameaccedila

a proacutepria relevacircncia das criacuteticas de Parmecircnides e como consequecircncia a unidade

temaacutetica do diaacutelogo Allen considera o segundo ramo do dilema como uma opccedilatildeo

logicamente viaacutevel por entender que apenas as Formas do Grande do Pequeno e

do Igual estatildeo sujeitas a paradoxos caso optemos pela participaccedilatildeo em partes das

38 Brisson (Brisson 2011 p37 n76) Curd (Curd 1986 p128) e Harte (Harte 2002 p66-67) dentre outros assumem a assimetria do dilema adotando a interpretaccedilatildeo proposta por Allen

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Formas Contudo os argumentos sobre estas trecircs Formas natildeo constituem o passo

decisivo na refutaccedilatildeo deste ramo do dilema Na verdade estes paradoxos apenas

ilustram algumas das consequecircncias indesejaacuteveis decorrentes da efetiva divisatildeo

das Formas que jaacute havia sido admitida por Soacutecrates em 131c9-10 Esta mudanccedila

de foco acaba impedindo Allen de reconhecer que eacute a proacutepria divisatildeo das Formas

o que leva agrave rejeiccedilatildeo da hipoacutetese da participaccedilatildeo em partes das Formas

Ao contraacuterio do que Allen acredita ambos os braccedilos do dilema apresentam

argumentos contra uma mesma tese cuja importacircncia eacute fundamental para a

validade da Teoria das Ideias a tese de que as Formas satildeo entidades uacutenicas

(singulares e indivisiacuteveis) e portanto essencialmente distintas dos objetos

sensiacuteveis

Em toda sua argumentaccedilatildeo Parmecircnides utiliza o adjetivo ldquoumrdquo de maneira

ambiacutegua ora para designar a singularidade (unidade numeacuterica) ora para designar

a uniformidade (indivisibilidade) de uma Forma O dilema da participaccedilatildeo

pretende demonstrar como estes dois sentidos de unidade natildeo podem ser

atribuiacutedos simultaneamente agraves Formas caso estas entidades estejam submetidas

agrave relaccedilatildeo de participaccedilatildeo Assim no primeiro ramo do dilema a integridade das

Formas natildeo eacute posta em questatildeo mas a sua singularidade eacute comprometida Pois

estando presentes por inteiro em cada um dos seus participantes as Formas se

multiplicariam e passariam a existir em nuacutemero igual ao das coisas que delas

participam Por outro lado no segundo ramo do dilema natildeo eacute mais a unidade

numeacuterica das Formas que eacute posta em questatildeo mas a sua indivisibilidade Pois

uma vez divididas pelos seus participantes as Formas passariam a ter tantas partes

quantos objetos que delas participam

Esta estrateacutegia estabelecida pelo dilema da participaccedilatildeo organiza todo o

conjunto de criacuteticas apresentadas por Parmecircnides na primeira parte do diaacutelogo E

eacute justamente isso que a leitura assimeacutetrica de Allen nos impede de reconhecer As

diversas criacuteticas apresentadas por Parmecircnides constituem passos distintos de um

mesmo argumento cujo uacutenico objetivo eacute demonstrar a impossibilidade de se

conceber as Formas como unidades perfeitas isto eacute singulares e indivisiacuteveis

O dilema da participaccedilatildeo reproduz em sua forma a estrateacutegia geral das

criacuteticas de Parmecircnides que pretendem demonstrar a incompatibilidade entre duas

teses centrais da Teoria das Ideias 1) a tese de que as Formas satildeo as causas das

propriedades dos objetos sensiacuteveis e 2) a tese de que as Formas satildeo entidades

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uacutenicas singulares e indivisiacuteveis Se observarmos a conclusatildeo de cada um dos

argumentos podemos ver que Parmecircnides insiste a todo instante na

impossibilidade de se manter simultaneamente estas duas afirmaccedilotildees

1) Se a participaccedilatildeo se daacute na totalidade da Forma entatildeo as Formas

satildeo indivisiacuteveis poreacutem natildeo satildeo numericamente uacutenicas (132b1-2

Ἓν ἄρα ὂν καὶ ταὐτὸν ἐν πολλοῖς καὶ χωρὶς οὖσιν ὅλον ἅmicroα

ἐνέσται καὶ οὕτως αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς ἂν εἴη)

2) Se a participaccedilatildeo se daacute em uma parte da Forma entatildeo as Formas

satildeo numericamente uacutenicas poreacutem natildeo satildeo indivisiacuteveis (132c9-

10Ἦ οὖν ἐθελήσεις ὦ Σώκρατες φάναι τὸ ἓν εἶδος ἡmicroῖν τῇ

ἀληθείᾳ microερίζεσθαι καὶ ἔτι ἓν ἔσται

2) Perceber uma Forma uacutenica sobre uma multiplicidade de objetos

sensiacuteveis implica em um regresso ao infinito e o que seria uma

Forma uacutenica mostra-se ldquoilimitada em quantidaderdquo (132b1-2καὶ

οὐκέτι δὴ ἓν ἕκαστόν σοι τῶν εἰδῶν ἔσται ἀλλὰ ἄπειρα τὸ

πλῆθος)

3) Sustentar que cada Forma eacute um ldquopensamentordquo (νόηmicroα) permite que

ela seja tanto uacutenica quanto indivisiacutevel Poreacutem neste caso a proacutepria

noccedilatildeo de participaccedilatildeo se mostra absurda (132c9-11 οὐκ ἀνάγκῃ ᾗ

τἆλλα φῂς τῶν εἰδῶν microετέχειν ἢ δοκεῖ σοι ἐκ νοηmicroάτων ἕκαστον

εἶναι καὶ πάντα νοεῖν ἢ νοήmicroατα ὄντα ἀνόητα εἶναι)

4) Sustentar que a Formas satildeo ldquoparadigmasrdquo (παραδείγmicroατα) garante

sua indivisibilidade poreacutem o regresso ao infinito resurge e as

Formas passam novamente a se multiplicar indefinidamente

(133a1-3 καὶ οὐδέποτε παύσεται ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον ἐὰν

τὸ εἶδος τῷ ἑαυτοῦ microετέχοντι ὅmicroοιον γίγνηται)

Como podemos perceber a duplicidade de sentido que o termo ἓν recebe

nos argumentos de Parmecircnides equivale agrave duplicidade de sentido que o termo

πολλά adquire durante a argumentaccedilatildeo de Zenatildeo De um ponto de vista dramaacutetico

a formulaccedilatildeo do dilema da participaccedilatildeo representa o momento em que

Parmecircnides aceitando o desafio lanccedilado por Soacutecrates inicia sua demonstraccedilatildeo de

que as Formas natildeo estatildeo aptas a manter as caracteriacutesticas ontoloacutegicas que as

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distinguem dos objetos sensiacuteveis e as tornam imunes ao paradoxo de Zenatildeo Caso

Soacutecrates natildeo se mostre capaz de articular uma explicaccedilatildeo para a hipoacutetese da

participaccedilatildeo que salve ao mesmo tempo a singularidade e a indivisibilidade das

Formas Parmecircnides teraacute demonstrado que as Formas natildeo constituem uma soluccedilatildeo

teoricamente viaacutevel para o paradoxo de abertura do diaacutelogo Afinal privadas de

sua singularidade e uniformidade caracteriacutesticas as Formas estaratildeo elas tambeacutem

sujeitas aos paradoxos de Zenatildeo O tema da unidade das Formas eacute portanto o

elemento fundamental de ligaccedilatildeo entre as criacuteticas de Parmecircnides e os argumentos

anteriormente desenvolvidos por Soacutecrates e Zenatildeo

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425 Participaccedilatildeo no todo da Forma

No primeiro ramo do dilema proposto por Parmecircnides os objetos

sensiacuteveis participam no todo de uma Forma (ὅλου τοῦ εἴδους) Como

consequecircncia as coisas recebem como sua propriedade imanente a totalidade de

uma Forma que por sua vez passa a estar presente (ἐν ἐνεῖναι) inteira em cada

um de seus participantes

ldquoEntatildeo parece-te que a Forma inteira sendo uma39 estaacute em cada uma das muacuteltiplas coisas Ou como seria ldquoMas o que impede Parmecircnides [que ela esteja que ela seja uma]40 Entatildeo sendo uma e a mesma estaraacute inteira simultaneamente em coisas que satildeo muacuteltiplas e separadas e assim ela estaria separada de si mesma41rdquo Πότερον οὖν δοκεῖ σοι ὅλον τὸ εἶδος ἐν ἑκάστῳ εἶναι τῶν πολλῶν ἓν ὄν ἢ πῶς Τί γὰρ κωλύει φάναι τὸν Σωκράτη ὦ Παρmicroενίδη [ἓν εἶναι ἐνεῖναι ] Ἓν ἄρα ὂν καὶ ταὐτὸν ἐν πολλοῖς καὶ χωρὶς οὖσιν ὅλον ἅmicroα ἐνέσται καὶ οὕτως αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς ἂν εἴη (131a8-b2)

Com este breve argumento Parmecircnides pretende demonstrar que para que

possam estar presentes por inteiro em uma multiplicidade de coisas distintas as

Formas precisam tambeacutem ser muacuteltiplas Apesar de extremamente conciso o

argumento pode ser entendido da seguinte maneira De acordo com a premissa de

participaccedilatildeo no todo de uma Forma se os objetos x y e z participam da Forma F

a Forma F estaacute presente por inteiro em x y e z Ora as variaacuteveis x y e z

representam objetos sensiacuteveis distintos ldquocoisas muacuteltiplas e separadasrdquo (πολλοῖς

καὶ χωρὶς) Sendo assim para que possa estar presente como um todo (ὅλον τὸ

39 ldquoSendo umardquo (ἓν ὄν) significa aqui ldquosendo numericamente uacutenicardquo Este sentido eacute mais

claramente explicitado em 131b1 pela expressatildeo ἓν ὂν καὶ ταὐτὸν ὅλον em que a qualificaccedilatildeo καὶ ταὐτὸν eacute acrescentada para destacar que segundo a hipoacutetese adotada uma mesma Forma uacutenica deve estar por inteiro em cada um dos muacuteltiplos participantes

40 A maior parte dos tradutores modernos leem a uacuteltima claacuteusula desta sentenccedila como ἐνεῖναι (que ela esteja) corrigindo os manuscritos antigos nos quais consta ἓν εἶναι (que seja uma) A hipoacutetese que jaacute aparece em Proacuteclus e foi ressucitada por Schleiermacher parece fazer sentido Afinal sem esta correccedilatildeo Soacutecrates estaria mudando o foco da discussatildeo e antecipando de maneira surpreendente a conclusatildeo do argumento de Parmecircnides A questatildeo contudo eacute irrelevante para validade de argumentaccedilatildeo aqui proposta uma vez que segundo nossa interpretaccedilatildeo Parmecircnides pretende demonstrar justamente a contradiccedilatildeo entre a hipoacutetese da presenccedila da Forma nas coisas (ἐνεῖναι) e a hipoacutetese de sua unidade (ἓν εἶναι)

41 ldquoSeparada de si mesmardquo (αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς) Uma vez que esta expressatildeo eacute apresentada em contraste com ἓν ὂν καὶ ταὐτὸν devemos enterder que ldquoseparar-se de si mesmordquo significa ldquomultiplicar-serdquo ldquotornar-se (numericamente) muacuteltiplordquo em oposiccedilatildeo a ldquomanter-se (numericamente) singularrdquo ou ldquoser um e o mesmordquo (ἓν ὂν καὶ ταὐτὸν)

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εἶδος) em cada uma destas coisas a Forma F deve ser ela mesma separada de si

mesma isto eacute muacuteltipla Portanto caso optemos pelo primeiro ramo do dilema da

participaccedilatildeo natildeo podemos falar de uma uacutenica Forma F pois o que temos eacute uma

diversidade de Formas Fx Fy e Fz cada uma das quais presente em um dos

objetos sensiacuteveis que participam de F

Eacute preciso notar que este argumento pressupotildee a participaccedilatildeo simultacircnea

de uma multiplicidade de coisas em uma mesma Forma Nenhuma contradiccedilatildeo

surgiria caso Soacutecrates estivesse disposto a reconhecer que a participaccedilatildeo se daacute de

maneira exclusiva com cada Forma tendo apenas um participante por vez Assim

Soacutecrates poderia participar da Forma do Homem apenas no caso de que Platatildeo

natildeo participasse no mesmo momento desta Forma Parmecircnides parece

reconhecer este fato e acrescenta a palavra ἅmicroα (simultaneamente) em sua

conclusatildeo do argumento Soacutecrates no entanto sequer considera a hipoacutetese de um

modo de participaccedilatildeo exclusivo Afinal a adoccedilatildeo de tal hipoacutetese significaria

privar as Formas de seu papel de causa universal o que tornaria a proacutepria relaccedilatildeo

de participaccedilatildeo irrelevante como explicaccedilatildeo para a diversidade de fenocircmenos do

mundo sensiacutevel

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426 Participaccedilatildeo em partes da Forma

Na tentativa de salvar a singularidade das Formas sem ter que abandonar

o caraacuteter muacuteltiplo e simultacircneo da participaccedilatildeo Soacutecrates apresenta uma analogia

uma Forma natildeo estaria separada de si mesma caso ela fosse como o dia que pode

estar em diferentes lugares sem perder sua singularidade isto eacute sem deixar de ser

um e o mesmo dia (ἡmicroέρα microία καὶ ἡ αὐτὴ)

ldquoNatildeo estaria disse ele se pelo menos como o dia que sendo um e o mesmo estaacute em muitos lugares simultaneamente e nem por isso estaacute ele mesmo separado de si mesmo se assim tambeacutem cada uma das Formas fosse uma e a mesma [estando] simultaneamente em todas as coisasrdquo Οὐκ ἄν εἴ γε φάναι οἷον [εἰ] ἡmicroέρα [εἴη] microία καὶ ἡ αὐτὴ οὖσα πολλαχοῦ ἅmicroα ἐστὶ καὶ οὐδέν τι microᾶλλον αὐτὴ αὑτῆς χωρίς ἐστιν εἰ οὕτω καὶ ἕκαστον τῶν εἰδῶν ἓν ἐν πᾶσιν ἅmicroα ταὐτὸν εἴη (131b3-6)

Parmecircnides responde propondo uma nova analogia

ldquoDe bela maneira Soacutecrates disse ele fazes uma e a mesma coisa [estar] simultaneamente em muitos lugares como se cobrindo com uma vela muitos homens dissesses ser ela inteira uma sobre muacuteltiplos Ou natildeo eacute algo deste tipo que acreditas estar dizendo Talvez disse elerdquo Ἡδέως γε φάναι ὦ Σώκρατες ἓν ταὐτὸν ἅmicroα πολλαχοῦ ποιεῖς οἷον εἰ ἱστίῳ καταπετάσας πολλοὺς ἀνθρώπους φαίης ἓν ἐπὶ πολλοῖς εἶναι ὅλον ἢ οὐ τὸ τοιοῦτον ἡγῇ λέγειν Ἴσως φάναι (131b7-c1)

Eacute comum entre os comentadores a opiniatildeo de que a metaacutefora apresentada

por Parmecircnides natildeo possui as mesmas virtudes da metaacutefora socraacutetica e que apenas

a inexperiecircncia do jovem Soacutecrates pode explicar a sua aceitaccedilatildeo da equivalecircncia

entre estas duas maneiras de entender a relaccedilatildeo entre Formas e coisas (cf Sayre

1996 p76) (cf Miller 1986 p49) Mas o que exatamente Soacutecrates poderia estar

entendendo por ldquodiardquo neste argumento Qual eacute o sentido de sua analogia e de que

maneira esta analogia poderia apresentar uma alternativa viaacutevel para compreensatildeo

da participaccedilatildeo no todo de uma Forma

A primeira opccedilatildeo eacute que Soacutecrates esteja entendo por ldquodiardquo a ldquoluz do diardquo

Neste caso a proposta de Parmecircnides eacute certamente equivalente e apenas torna

mais clara a metaacutefora socraacutetica Afinal a luz do dia possui uma natureza material

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e nada mais eacute do que uma espeacutecie de substacircncia homogecircnea que cobre

simultaneamente diferentes lugares A luminosidade do dia banha distintos

lugares exatamente como uma vela estendida sobre diversas pessoas Contudo

assim entendida a metaacutefora socraacutetica natildeo realiza o objetivo em vista do qual eacute

formulada O que Soacutecrates precisa demonstrar natildeo eacute meramente que a luz de um

mesmo dia ilumina diferentes lugares ao mesmo tempo Para que a metaacutefora

cumpra seu papel Soacutecrates precisa demonstrar como estes diferentes lugares

podem estar iluminados simultaneamente pela totalidade da luz de um mesmo

dia isto eacute como a luz do dia ldquosendo uma e a mesmardquo pode estar por inteiro em

cada um dos lugares que ilumina

A segunda opccedilatildeo de interpretaccedilatildeo para metaacutefora socraacutetica parece a

princiacutepio mais promissora Eacute possiacutevel que Soacutecrates esteja entendendo por ldquodiardquo o

periacuteodo de tempo em que esta luminosidade recobre a terra e que sendo um e o

mesmo estaria presente simultaneamente em Atenas e Esparta Neste caso a

analogia socraacutetica ldquoum dia sobre muitos lugaresrdquo possuiria o meacuterito de ressaltar a

imaterialidade das Formas o que eacute completamente perdido na analogia ldquouma vela

sobre muitas pessoasrdquo apresentada por Parmecircnides Pois quando Soacutecrates afirma

que o mesmo dia estaacute ao mesmo tempo em diferentes lugares o que ele estaacute

dizendo eacute que um mesmo intervalo de tempo ocorre simultaneamente em

lugares distintos Assim no mesmo intervalo de tempo em que Soacutecrates eacute julgado

em Atenas Lisandro se diverte em Esparta

Apesar de trivialmente correta esta segunda interpretaccedilatildeo para a analogia

do dia tampouco parece servir para os propoacutesitos de Soacutecrates Para que sua

metaacutefora lhe seja uacutetil na presente argumentaccedilatildeo Soacutecrates precisaria demonstrar

natildeo que diversas coisas acontecem simultaneamente em um mesmo dia mas que

o mesmo dia estaacute presente por inteiro em cada um dos momentos em que estas

coisas acontecem Ningueacutem negaria o fato de que um determinado momento do

dia ocorre simultaneamente em diferentes lugares Poreacutem o ponto em disputa eacute se

podemos ou natildeo entender cada um destes momentos como equivalentes agrave

totalidade de um mesmo dia Ora eacute claro que uma resposta afirmativa para esta

questatildeo seria absurda uma vez que colapsaria a totalidade de um dia em cada um

dos momentos de que eacute composto O dia entendido como um intervalo de tempo

possui duraccedilatildeo da mesma maneira que um objeto fiacutesico possui extensatildeo Sendo

assim os momentos sucessivos de um dia natildeo podem ser considerados idecircnticos agrave

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totalidade deste dia do mesmo modo que as diversas partes de um objeto extenso

natildeo satildeo idecircnticas agrave totalidade da qual fazem parte Aleacutem disso uma interpretaccedilatildeo

temporal para a metaacutefora do dia ainda estaacute sujeita agrave seguinte circularidade se

entendermos ldquosimultaneamenterdquo no seu sentido usual de ldquoao mesmo tempordquo a

analogia de Soacutecrates estaria afirmando que ldquoum mesmo intervalo de tempordquo

ocorre ldquoao mesmo tempordquo em diferentes lugares o que eacute claramente absurdo 42

O que Parmecircnides revela ao transformar a imagem de um dia sobre vaacuterios

lugares na imagem de uma vela sobre diversas pessoas eacute que ambas estas coisas (o

dia e a vela) quando consideradas com a devida atenccedilatildeo natildeo se apresentam como

entidades uacutenicas e indivisiacuteveis tal como Soacutecrates pretende fazer crer O fato de

falarmos de ldquoum diardquo como uma entidade singular natildeo nos garante que estejamos

tratando de fato de uma entidade uacutenica e indivisiacutevel Noacutes tambeacutem nos referimos

agrave ldquoguerra de Troacuteiardquo como um evento singular no entanto eacute muito claro que a

guerra de Troacuteia constitui na verdade uma seacuterie de eventos distintos Da mesma

maneira quando falamos de uma vela sobre diversas pessoas (ou diversas pessoas

sob um mesmo teto) tratamos esta vela (ou este teto) como um entidade singular

Neste caso poreacutem eacute mais faacutecil perceber que natildeo eacute a totalidade da vela que se

encontra sobre cada um dos indiviacuteduos mas apenas uma parte dela

Portanto ao formular a metaacutefora de uma vela sobre uma multiplicidade de

pessoas Parmecircnides natildeo estaacute deturpando a metaacutefora socraacutetica ou destituindo-a de

seu valor como soluccedilatildeo ao problema da participaccedilatildeo Muito pelo contraacuterio ao

reinterpretar a analogia socraacutetica Parmecircnides apenas torna evidente as

consequecircncias da proposta inicial apresentada por Soacutecrates Afirmar que uma

Forma uacutenica estaacute sobre muitas coisas equivale a afirmar que cada coisa possui

sobre si uma parte desta Forma exatamente da mesma maneira que a luz que

banha Soacutecrates pela manhatilde eacute apenas uma parte da totalidade da luz que ilumina a

Aacutetica e do mesmo modo que o momento da manhatilde em que Soacutecrates toma seu

banho de sol eacute apenas uma parte do intervalo de tempo que compotildee um dia

ldquoSeraacute entatildeo que a vela inteira estaria sobre cada um ou uma parte dela sobre um outra sobre outro Uma parte Logo Soacutecrates disse ele satildeo divisiacuteveis as Formas mesmas e as coisas que delas

42 Esta circularidade foi observada primeiramente por Allen que acaba por descartar

completamente a possibilidade da metaacutefora socraacutetica estar se referindo ao dia em seu sentido temporal (cf Allen 1997 p132)

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participam participariam de uma de suas partes e natildeo eacute mais o todo que estaria em cada uma das coisas mas sim uma parte caberia a cada coisa Parece pelo menos que eacute assim Seraacute entatildeo Soacutecrates que estaraacutes disposto a dizer que a Forma uma em verdade se nos divide e ainda seraacute uma43 De maneira alguma disse Soacutecratesrdquo Ἦ οὖν ὅλον ἐφ ἑκάστῳ τὸ ἱστίον εἴη ἄν ἢ microέρος αὐτοῦ ἄλλο ἐπ ἄλλῳ Μέρος Μεριστὰ ἄρα φάναι ὦ Σώκρατες ἔστιν αὐτὰ τὰ εἴδη καὶ τὰ microετέχοντα αὐτῶν microέρους ἂν microετέχοι καὶ οὐκέτι ἐν ἑκάστῳ ὅλον ἀλλὰ microέρος ἑκάστου ἂν εἴη Φαίνεται οὕτω γε Ἦ οὖν ἐθελήσεις ὦ Σώκρατες φάναι τὸ ἓν εἶδος ἡmicroῖν τῇ ἀληθείᾳ microερίζεσθαι καὶ ἔτι ἓν ἔσται Οὐδαmicroῶς εἰπεῖν (131c2-11)

A tentativa de oferecer uma metaacutefora como explicaccedilatildeo para a hipoacutetese da

participaccedilatildeo no todo de uma Forma apenas forccedilou Soacutecrates na direccedilatildeo do segundo

ramo do dilema Tal como uma vela estendida sobre uma multiplicidade de

indiviacuteduos a Forma se mostra agora divida por seus participantes Cada um dos

objetos sensiacuteveis que participam de uma Forma recebe como sua propriedade

imanente uma parte desta Forma Isto eacute se x e y participam da Forma F entatildeo

uma parte de F estaacute em x e uma parte de F estaacute em y Eacute preciso observar que cada

um destes objetos recebe sua propriedade imanente de maneira exclusiva Pois se

considerarmos a propriedade imanente F-em-x como idecircntica agrave propriedade

imanente F-em-y nos encontraremos novamente submetidos ao argumento do

primeiro ramo do dilema Sendo assim como resultado da adoccedilatildeo do segundo

ramo do dilema da participaccedilatildeo as Formas passam a possuir um nuacutemero de partes

igual ao nuacutemero de objetos que delas participam

Novamente o caraacuteter unitaacuterio das Formas se mostra incompatiacutevel com a

hipoacutetese de que os objetos sensiacuteveis participam nas Formas Neste caso poreacutem

natildeo eacute a singularidade numeacuterica das Formas o que eacute perdido na relaccedilatildeo com os

muacuteltiplos objetos do mundo sensiacutevel mas a uniformidade ou integridade das

Formas isto eacute sua indivisibilidade

Soacutecrates reconhece prontamente o absurdo desta conclusatildeo e se recusa a

admitir que uma Forma uacutenica possa estar dividida pelos objetos sensiacuteveis que

dela participam (τὸ ἓν εἶδος ἡmicroῖν τῇ ἀληθείᾳ microερίζεσθαι) Este resultado por si soacute

43 καὶ ἔτι ἓν ἔσται aqui ldquoser umrdquo significa ldquoser indivisiacutevelrdquo como deixa claro o contraste

estabelecido por Parmecircnides entre esta claacuteusula e o verbo microερίζεσθαι (dividir-se) Como jaacute observamos neste segundo ramo do dilema da participaccedilatildeo eacute a noccedilatildeo de integridade ou indivisibilidade das Forma que se mostra incompatiacutevel com a hipoacutetese da participaccedilatildeo

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jaacute eacute suficiente para descartar o segundo ramo do dilema e com ele a hipoacutetese de

que as coisas participam em partes das Formas A partir deste momento a reduccedilatildeo

ao absurdo operada pelo dilema jaacute estaacute realizada Segundo as premissas do

dilema soacute haacute participaccedilatildeo no todo ou em parte de uma Forma Contudo a

participaccedilatildeo no todo acaba por multiplicar as Formas e a participaccedilatildeo em partes

por dividi-las Como as Formas satildeo por definiccedilatildeo entidades singulares e

indivisiacuteveis entatildeo natildeo pode haver participaccedilatildeo nas Formas

Entretanto Parmecircnides natildeo se daacute por satisfeito com este resultado e passa

a apresentar uma seacuterie de argumentos que pretendem ilustrar as consequecircncias

absurdas agraves quais seriacuteamos levados caso aceitaacutessemos a efetiva divisatildeo das

Formas

ldquoPois vecirc disse Parmecircnides Se dividires a Grandeza mesma e se cada uma das muacuteltiplas coisas grandes for grande em virtude de uma parte da Grandeza [parte esta] menor que a Grandeza mesma seraacute que isso natildeo pareceraacute absurdo Perfeitamente disse ele Mas como Cada coisa recebendo uma parte do Igual uma [parte] pequena que eacute menor que o Igual mesmo teraacute algo com que seraacute igual ao que quer que seja Impossiacutevel E mais eacute uma parte do Pequeno que algum de noacutes teraacute e o Pequeno seraacute maior que essa parte mesma sendo esta uma parte dele e assim pois o Pequeno seraacute maior e aquilo a que for adicionada a parte subtraiacuteda seraacute menor e natildeo maior que antes Isso natildeo poderia ocorrer disse ele Ὅρα γάρ φάναι εἰ αὐτὸ τὸ microέγεθος microεριεῖς καὶ ἕκαστον τῶν πολλῶν microεγάλων microεγέθους microέρει σmicroικροτέρῳ αὐτοῦ τοῦ microεγέθους microέγα ἔσται ἆρα οὐκ ἄλογον φανεῖται Πάνυ γ ἔφη Τί δέ τοῦ ἴσου microέρος ἕκαστον σmicroικρὸν ἀπολαβόν τι ἕξει ᾧ ἐλάττονι ὄντι αὐτοῦ τοῦ ἴσου τὸ ἔχον ἴσον τῳ ἔσται Ἀδύνατον Ἀλλὰ τοῦ σmicroικροῦ microέρος τις ἡmicroῶν ἕξει τούτου δὲ αὐτοῦ τὸ σmicroικρὸν microεῖζον ἔσται ἅτε microέρους ἑαυτοῦ ὄντος καὶ οὕτω δὴ αὐτὸ τὸ σmicroικρὸν microεῖζον ἔσται ᾧ δ ἂν προστεθῇ τὸ ἀφαιρεθέν τοῦτο σmicroικρότερον ἔσται ἀλλ οὐ microεῖζον ἢ πρίν Οὐκ ἂν γένοιτο φάναι τοῦτό γε (131c12-e2)

Na tentativa de estabelecer de maneira ainda mais clara a inviabilidade do

segundo ramo do dilema da participaccedilatildeo satildeo apresentadas trecircs consequecircncias

absurdas decorrentes da hipoacutetese de que os objetos sensiacuteveis participam em partes

das Formas Segundo a argumentaccedilatildeo de Parmecircnides caso adotemos o segundo

ramo do dilema

1) Uma coisa grande seraacute grande em virtude de uma parte da

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Grandeza menor do que a Grandeza mesma e portanto seraacute grande

em virtude daquilo que eacute pequeno

2) Uma coisa igual seraacute igual em virtude de uma parte pequena da

Igualdade e portanto seraacute igual em virtude daquilo que eacute desigual

3) Se subtrairmos uma parte do Pequeno o Pequeno em si seraacute maior

do que cada uma de suas partes e portanto o Pequeno seraacute maior

Por outro lado o objeto sensiacutevel que receber uma de suas partes se

tornaraacute menor e natildeo maior em virtude desta adiccedilatildeo

Para que possamos entender o que torna estas conclusotildees inaceitaacuteveis do

ponto de vista de Soacutecrates e sua Teoria das Ideias precisamos ter em mente o

poder causal exercido pelas Formas sobre os objetos sensiacuteveis De acordo com a

teoria da causalidade defendida por Soacutecrates uma causa deve possuir a

caracteriacutestica que ela produz nas coisas Assim no Protaacutegoras (332b1) Soacutecrates

afirma que eacute ldquopela temperanccedila que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (σωφροσύνῃ

σωφρονοῦσιν) no Teeteto (145d11) que eacute ldquopela sabedoria que os saacutebios satildeo

saacutebiordquo (Σοφίᾳ δέ γ οἶmicroαι σοφοὶ οἱ σοφοί) e no Hiacuteppias Maior que eacute ldquopelo belo

que todas as coisas belas satildeo belasrdquo (Ἆρ οὖν οὐ καὶ τὰ καλὰ πάντα τῷ καλῷ ἐστι

καλά) Nestas passagens Soacutecrates faz uso do dativo instrumental para apresentar

em uma sentenccedila cuja forma eacute aparentemente tautoloacutegica aquilo que ele e seus

interlocutores tomam como uma verdade autoevidente Isto eacute que a despeito do

estatuto ontoloacutegico que estejamos dispostos a atribuir para a causa das

propriedades dos objetos sensiacuteveis eacute impossiacutevel pensar que esta causa natildeo

possua ela mesma a propriedade que produz Em paralelo a esta assunccedilatildeo

Soacutecrates e seus interlocutores tomam como autocontraditoacuteria a hipoacutetese de que

uma causa possa ser caracterizada pela propriedade oposta agravequela de que eacute causa

Pois ldquoeacute iloacutegico (ἄλογόν) [admitir] que algueacutem seja corajoso pelo medo e pela

covardiardquo (καίτοι ἄλογόν γε δέει τινὰ καὶ δειλίᾳ ἀνδρεῖον εἶναι Feacuted68d) e ldquoeacute

assombroso (τέρας) que algo grande seja grande em virtude de alguma coisa

pequenardquo (καὶ τοῦτο δὴ τέρας εἶναι τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι Feacuted101b1-

2)44

44 Para outras passagens em que Soacutecrates afirma a impossibilidade de que uma causa possa ser

caracterizada pela propriedade oposta agravequela de que eacute causa Feacuted 68d 68e 100a-b Rep335c-d Prot355d Teet 199d

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Como vimos este princiacutepio baacutesico relativo agrave noccedilatildeo de causalidade eacute

ostensivamente apresentado no Feacutedon como a razatildeo para o fato de podermos de

maneira segura oferecer as Formas como causas das propriedades dos objetos

sensiacuteveis Em Feacuted102d6-8 Soacutecrates expande estes criteacuterios para as propriedades

imanentes afirmando que ldquonatildeo apenas a Grandeza em si jamais admitiraacute ser

simultaneamente grande e pequena como tambeacutem a grandeza-em-noacutes jamais

admitiraacute a pequenezrdquo (οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ

σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν)45

No Parmecircnides (129b1-2) encontramos esta mesma alegaccedilatildeo repetida quanto

Soacutecrates desafia seus interlocutores a lhe demonstrarem que a propriedade

imanente da semelhanccedila (αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά) pode se tornar dessemelhante e a

propriedade imanente da dessemelhanccedila semelhante

Portanto de acordo com a Teoria das Ideias para que possamos dizer que

um determinado objeto sensiacutevel x eacute F eacute preciso que tanto a Forma F quanto a

propriedade imanente F-em-x sejam unicamente caracterizadas pelo predicado F

isto eacute sejam auto-predicativas e natildeo apareccedilam nunca como o contraacuterio de F

Nos argumentos 1 e 2 Parmecircnides demonstra que a adoccedilatildeo do segundo

ramo do dilema natildeo pode ser harmonizada com a hipoacutetese de que as propriedades

imanentes satildeo entidades uniformes unicamente caracterizadas pela auto-

predicaccedilatildeo e completamente isentas da predicaccedilatildeo de opostos De acordo com o

segundo ramo do dilema um objeto x eacute grande por apresentar como sua

propriedade imanente uma parte da Grandeza Contudo por ser apenas uma parte

a grandeza-em-x eacute menor do que a Grandeza em si que representa o todo do qual

a grandeza-em-x eacute uma parte Consequentemente x eacute grande em virtude de uma

propriedade imanente que eacute ela mesma pequena Da mesma maneira se um

objeto y eacute igual em virtude de uma parte do Igual menor do que o Igual em si

entatildeo y eacute igual em virtude daquilo que eacute desigual

Em 3 Parmecircnides muda o foco de sua criacutetica A propriedade imanente

pequeno-em-x considerada como uma parte do Pequeno em si eacute de fato

pequena e natildeo estaria sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos Contudo neste caso a

45 O mesmo ponto eacute reafirmado em 102e5-103a1 Eacute preciso notar que tal afirmaccedilatildeo estaacute em pleno

acordo com o papel das propriedades imanentes na soluccedilatildeo de Soacutecrates para o problema da copresenccedila de opostos Afinal admtir que uma propriedade imanente eacute caracterizada por seu oposto seria equivalente a afirmar que um mesmo elemento constituinte de Soacutecrates eacute simultaneamente grande e pequeno o que natildeo solucionaria o problema da copresenccedila de

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contradiccedilatildeo eacute encontrada na proacutepria Forma do Pequeno Pois se a Forma do

Pequeno eacute maior do que cada uma de suas partes o Pequeno em si eacute grande

Novamente nos vemos frente a uma impossibilidade loacutegica pois a causa das

coisas serem pequenas seria ela mesma grande Com relaccedilatildeo ao poder causal

exercido pela Forma do Pequeno Parmecircnides ainda acrescenta uma uacuteltima

perplexidade caso entendamos que um objeto z torna-se pequeno por adquirir a

propriedade imanente pequeno-em-z seremos obrigados a admitir que o objeto z

torna-se pequeno em virtude de uma adiccedilatildeo o que estaacute em claro desacordo com os

princiacutepios baacutesicos da matemaacutetica

As conclusotildees obtidas por Parmecircnides demonstram que a hipoacutetese da

participaccedilatildeo em partes das Formas teria como consequecircncia a predicaccedilatildeo de

opostos da Forma do Pequeno e das propriedades imanentes do grande e do igual

Consequentemente o poder causal exercido por estas trecircs Formas especiacuteficas

tornar-se-ia inexplicaacutevel uma vez que um dos princiacutepios baacutesicos da causalidade

seria violado e estas entidades estariam sujeitas ao problema da predicaccedilatildeo de

opostos para o qual deveriam servir de soluccedilatildeo

Como podemos perceber estes trecircs argumentos apresentam paradoxos

especiacuteficos relativos apenas agraves Formas do Grande do Igual e do Pequeno

fugindo portanto da generalidade encontrada na argumentaccedilatildeo de Parmecircnides ateacute

aqui Aleacutem disso estes argumentos satildeo estruturalmente desnecessaacuterios uma vez

que Soacutecrates jaacute havia admitido a inviabilidade do segundo ramo do dilema ao

concluir que seria impossiacutevel aceitar que uma Forma uacutenica possa estar dividida

por seus participantes (τὸ ἓν εἶδος microερίζεσθαι)46

Podemos nos perguntar por que Platatildeo incluiria esta descontinuidade

umas vez que os argumentos seguintes voltaratildeo a ser dirigidos contra o conjunto

de Formas em sua generalidade Minha opiniatildeo eacute que Platatildeo apresenta estes trecircs

argumentos como encerramento dos problemas relativos ao dilema da participaccedilatildeo

com o intuito de chamar a atenccedilatildeo do leitor para o tema da auto-predicaccedilatildeo das

Formas O fato de que as Formas satildeo entidades auto-predicativas estaacute diretamente

opostos

46 De fato no momento mesmo em que Soacutecrates aceita a analogia da vela oferecida por Parmecircnides o segundo ramo do dilema da participaccedilatildeo torna-se inviaacutevel Afinal o fato de Soacutecrates possuir diversas partes havia sido suficiente para concluir que ele Soacutecrates eacute muacuteltiplo Sendo assim por paridade de raciociacutenio o fato de mais de um objeto sensiacutevel participar de uma mesma Forma que estende suas diversas partes sobre estes objetos eacute suficiente para concluir a multiplicidade desta Forma

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relacionado com os paradoxos relativos agraves Formas do Grande do Igual e do

Pequeno e seraacute fundamental na compreensatildeo dos dois regressos ao infinito que

seratildeo apresentados nos proacuteximos argumentos Contudo em todos estes

argumentos a caracteriacutestica de auto-prediccedilatildeo das Formas aparece como uma

premissa pressuposta nunca textualmente expressa Portanto ao apresentar esta

seacuterie de trecircs paradoxos nos quais a auto-predicaccedilatildeo das Formas estaacute claramente

em jogo Platatildeo oferece aos leitores do Parmecircnides uma chave de leitura para a

compreensatildeo dos regressos que seratildeo apresentados em seguida

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427 A validade do dilema da participaccedilatildeo como criacutetica agrave Teoria das Ideias

O dilema da participaccedilatildeo constitui uma reduccedilatildeo ao absurdo formalmente

vaacutelida Soacutecrates havia sustentado que 1) existem Formas e 2) os objetos sensiacuteveis

participam nestas Formas O dilema apresenta duas alternativas exaustivas de

compreensatildeo para o que seria a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo e ambas se mostram

inaceitaacuteveis para Teoria das Ideias Logo o dilema da participaccedilatildeo implica na

falsidade da tese 2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis participam nas Formas Eacute

claro contudo que a validade destas duas teses eacute plenamente independente

Parmecircnides provou que a tese 2) eacute falsa a despeito do fato de que a tese 1) possa

ser verdadeira e as Formas possam ser consideradas entidades reais

No entanto desde jaacute cabe a pergunta qual seria a vantagem teoacuterica de se

admitir a existecircncia das Formas sem que fique esclarecida a natureza da relaccedilatildeo

que estas entidades mantecircm com os objetos do mundo empiacuterico Uma satisfatoacuteria

compreensatildeo para natureza da relaccedilatildeo entre Formas e coisas mostra-se essencial

para validade da hipoacutetese das Formas pois a incapacidade de elucidar o modo

especiacutefico de relacionamento entre estes dois niacuteveis distintos da realidade teria

como resultado a total irrelevacircncia da postulaccedilatildeo das Formas Isto porque

isoladas das coisas do mundo sensiacutevel as Formas passariam a representar

entidades teoricamente irrelevantes e a postulaccedilatildeo destas entidades natildeo passaria

de uma supeacuterflua duplicaccedilatildeo da realidade empiacuterica

Contudo nada disso estaraacute em jogo caso as criacuteticas de Parmecircnides

comprovem-se irrelevantes para a Teoria das Ideias ou simplesmente falaciosas

Assim na tradiccedilatildeo de comentaacuterios ao Parmecircnides diversos autores procuraram

desqualificar natildeo apenas o sentido geral da argumentaccedilatildeo parmeniacutedica sob a

alegaccedilatildeo de que suas criacuteticas natildeo passam de uma grande piada ou de um mero

exerciacutecio eriacutestico como tambeacutem cada um dos argumentos separadamente Na

tentativa de invalidar o dilema da participaccedilatildeo e salvar a Teoria das Ideias deste

primeiro conjunto de criacuteticas trecircs estrateacutegias foram adotadas pelos comentadores

A primeira estrateacutegia jaacute foi por noacutes mencionada e consiste em afirmar que o

dilema da participaccedilatildeo natildeo diz respeito agrave Teoria das Ideias socraacutetica mas a uma

outra teoria qualquer Contudo como vimos a proacutepria estrutura do Parmecircnides

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proiacutebe este tipo de interpretaccedilatildeo No Parmecircnides eacute o proacuteprio Soacutecrates quem

apresenta a Teoria das Ideias e como demonstramos esta apresentaccedilatildeo guarda

todas as caracteriacutesticas essenciais da Teoria das Ideias encontrada nos diaacutelogos da

Juventude e Fase Meacutedia Sendo assim natildeo podemos descartar a validade do

dilema da participaccedilatildeo pela simples alegaccedilatildeo de que estamos lidando com um

caso de ignoratio elenchi

Uma segunda opccedilatildeo consiste em considerar o dilema da participaccedilatildeo como

formalmente correto poreacutem materialmente falso isto eacute fundado em falsas

premissas De acordo com este tipo de interpretaccedilatildeo que remonta ao comentaacuterio

de Proacuteclus (In Parm 859-862) o sentido de ldquoparticipaccedilatildeordquo inerente agraves criacuteticas de

Parmecircnides natildeo condiz com o sentido que esta expressatildeo recebe nos outros

diaacutelogos platocircnicos em que a Teoria das Ideias eacute apresentada Assim Cornford

comentando o dilema afirma que ldquoo argumento pressupotildee que o exemplar da

Grandeza que cabe agrave participaccedilatildeo de uma coisa grande eacute uma parte da Forma

entendida como um pedaccedilo (bit) no qual a Forma eacute cortada (cut up)rdquo De acordo

com Cornford este raciociacutenio entende os conceitos de ldquoparterdquo e ldquotodordquo em seu

ldquosentido mais grosseiro e materialrdquo (Cornford 1951 p85)

Adotando a mesma linha interpretativa Sprague alega que Parmecircnides soacute

pode chegar a suas conclusotildees porque interpreta ldquoparticipaccedilatildeordquo em um sentido

fiacutesico (physical sense) Segundo Sprague ldquouma reductio ad absurdum foi

construiacuteda mas apenas por meio de uma distorccedilatildeo da dualidade essencial da

teoria [das Ideias] e da relaccedilatildeo entre estes dois tipos de entidades [relaccedilatildeo esta]

que Platatildeo procura exprimir por meio de expressotildees como ldquoestar presenterdquo e

ldquoparticiparrdquo (Sprague 1967 p96)

Portanto de acordo estes autores o dilema da participaccedilatildeo apesar de

formalmente vaacutelido natildeo se apresenta como uma criacutetica honesta agrave Teoria das

Ideias Segundo este argumento Parmecircnides estaria interpretando de maneira

errocircnea o sentido do termo ldquoparticipaccedilatildeordquo O uso dos conceitos de todoparte

maiormenor e a compreensatildeo de ldquoparticipaccedilatildeordquo como a presenccedila da Forma nos

objetos sensiacuteveis seriam evidecircncias de uma reificaccedilatildeo da realidade inteligiacutevel que

segundo estes comentadores representaria uma brutal e inaceitaacutevel distorccedilatildeo da

verdadeira posiccedilatildeo socraacutetica

Ora a primeira objeccedilatildeo que podemos oferecer a este tipo de interpretaccedilatildeo

consiste em apresentar o fato dramaacutetico de que em nenhum momento da

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discussatildeo Soacutecrates protesta contra esta suposta deformaccedilatildeo de sua teoria Quando

Parmecircnides comeccedila a formular suas criacuteticas Soacutecrates jaacute havia apresentado sua

distinccedilatildeo fundamental entre ldquoas coisas que se vecircemrdquo (τοῖς ὁρωmicroένοις ) e ldquoas

coisas apreendidas pelo raciociacuteniordquo (τοῖς λογισmicroῷ λαmicroβανοmicroένοις ) estabelecendo

claros paracircmetros de diferenciaccedilatildeo entre estes dois tipos de entidades objetos

sensiacuteveis e Formas Caso o dilema da participaccedilatildeo se apresentasse como o

resultado da mera negligecircncia desta distinccedilatildeo fundamental o mais natural seria

que Soacutecrates reafirmasse esta distinccedilatildeo e bloqueasse a argumentaccedilatildeo parmeniacutedica

desde o iniacutecio Simplesmente natildeo haacute razatildeo para acreditarmos que Platatildeo tenha

decidido representar Soacutecrates em aporia por conta de um argumento decorrente da

negligecircncia da distinccedilatildeo proposta pelo proacuteprio Soacutecrates entre entidades sensiacuteveis

e inteligiacuteveis

O dilema da participaccedilatildeo funda-se no vocabulaacuterio empregado por Soacutecrates

para descrever a relaccedilatildeo entre Formas e coisas natildeo soacute no Parmecircnides como

tambeacutem por toda fase meacutedia e inicial Segundo Soacutecrates as coisas sensiacuteveis

ldquoparticipamrdquo (metexousin metalambanousin) das Formas ou ldquocomunicam-serdquo

(koinwnou=sin koinwnian e)xousin) com elas Como resultado desta relaccedilatildeo as

coisas sensiacuteveis passam a ldquopossuirrdquo (e)xousin) ou ldquoreceberrdquo (dexontai) as Formas

As Formas por sua vez passam a ldquoestar presentesrdquo (πάρεστιν) ou a ldquoestar nasrdquo

(e)neστι) coisas Portanto ao propor que a noccedilatildeo de participaccedilatildeo soacute pode ser

entendida por meio da disjunccedilatildeo partetodo Parmecircnides estaacute oferecendo

paracircmetros baacutesicos de compreensatildeo e anaacutelise para um conceito apresentado pelo

proacuteprio Soacutecrates

Os argumentos de Parmecircnides podem inclusive ser construiacutedos

formalmente sem que uma interpretaccedilatildeo material das Formas seja de qualquer

modo pressuposta Afinal a disjunccedilatildeo partetodo se mostra como uacutenica opccedilatildeo

vaacutelida para compreensatildeo de uma relaccedilatildeo descrita como ldquoa participaccedilatildeo da

entidade x na entidade yrdquo independente do estatuto ontoloacutegico atribuiacutedo e estas

entidades Uma evidecircncia disto encontra-se no fato de que nos Elementos (I

axioma 5) Euclides lista o axioma de que ldquoo todo eacute maior do que as partesrdquo (Καὶ

τὸ ὅλον τοῦ microέρους microεῖζον [ἐστιν]) como uma ldquonoccedilatildeo comumrdquo Tais ldquonoccedilotildees

comunsrdquo (koinai e)nnoiai) satildeo definidas como princiacutepios indemonstraacuteveis

comuns a todas as ciecircncias e que portanto ultrapassam o campo da geometria e

natildeo tecircm sua validade restrita aos raciociacutenios envolvendo coisas estendidas no

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espaccedilo (cf Heath 1956 p221-222)

Sendo assim natildeo haacute porque desqualificar o dilema da participaccedilatildeo sob a

alegaccedilatildeo de que este argumento funda-se em uma ldquocoisificaccedilatildeordquo falaciosa da

hipoacutetese das Formas Os argumentos de Parmecircnides ilustram contradiccedilotildees

decorrentes de uma determinada interpretaccedilatildeo para relaccedilatildeo entre objetos

empiacutericos e Formas proposta pelo proacuteprio Soacutecrates e que natildeo estaacute diretamente

fundada na atribuiccedilatildeo de uma natureza material para as Formas mas deriva do

reconhecimento de que qualquer tipo de participaccedilatildeo deve ser entendida por meio

dos conceitos baacutesicos de parte e todo Soacutecrates havia proposto que as coisas

sensiacuteveis participam das Formas e como consequecircncia desta participaccedilatildeo

adquirem suas diversas propriedades imanentes Natildeo haacute falaacutecia alguma em se

apresentar a disjunccedilatildeo todoparte como modos exaustivos de se compreender esta

relaccedilatildeo Pois de fato estas satildeo as uacutenicas maneiras logicamente possiacuteveis de

entendermos uma relaccedilatildeo descrita deste modo

Uma terceira maneira de desqualificar a validade do dilema consiste em

alegar tal como faz David Ross (Ross 1951 p88-89) que os argumentos de

Parmecircnides baseiam-se em uma interpretaccedilatildeo literal para termos que Soacutecrates

apresenta como meras metaacuteforas Segundo este tipo de interpretaccedilatildeo Soacutecrates

estaria imune agraves criacuteticas de Parmecircnides pelo fato de natildeo se propor a definir de

maneira precisa a relaccedilatildeo entre Formas e coisas Para Ross os conceitos de

ldquoparticipaccedilatildeordquo e ldquocomunhatildeordquo satildeo apresentados por Soacutecrates como ilustraccedilotildees

aproximadas para uma relaccedilatildeo reconhecida como na verdade indescritiacutevel

Ora eacute claro que tal objeccedilatildeo sequer constitui um argumento contra a

validade do dilema parmeniacutedico A noccedilatildeo de que a relaccedilatildeo entre Formas e coisas eacute

uma relaccedilatildeo uacutenica para qual nenhuma definiccedilatildeo satisfatoacuteria pode ser apresentada eacute

conveniente apenas como uma soluccedilatildeo ad hoc para os problemas levantados por

Parmecircnides De fato esta explicaccedilatildeo pressupotildee a validade das criacuteticas de

Parmecircnides para concluir que o termo ldquoparticipaccedilatildeordquo eacute meramente metafoacuterico e

natildeo se pretende como uma definiccedilatildeo seacuteria Aleacutem disso nos vemos novamente

frente ao fato dramaacutetico de que Soacutecrates em momento algum atribui uma

natureza sui generis e indescritiacutevel para relaccedilatildeo entre Formas e coisas Em total

oposiccedilatildeo ao que esperariacuteamos caso Platatildeo desejasse indicar o caraacuteter indefiniacutevel

desta relaccedilatildeo Soacutecrates iraacute propor no decorrer do diaacutelogo maneiras alternativas de

entender o relacionamento entre Formas e coisas o que evidencia a crenccedila deste

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personagem na possibilidade de uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria para esta relaccedilatildeo De

qualquer maneira o fato de Soacutecrates propor o termo ldquoparticipaccedilatildeordquo como uma

descriccedilatildeo metafoacuterica para o relacionamento entre Formas e coisas natildeo invalida ou

deslegitima as criacuteticas de Parmecircnides Afinal mesmo uma metaacutefora deve ser

investigada quando aparece no interior de uma hipoacutetese filosoacutefica Portanto

ainda que se trate de um uso meramente ilustrativo da palavra ldquoparticipaccedilatildeordquo este

uso deve ser analisado na intenccedilatildeo de concluirmos se este termo configura-se

como uma ilustraccedilatildeo adequada para a relaccedilatildeo entre Formas e coisas ou natildeo

A confirmaccedilatildeo dramaacutetica da relevacircncia da argumentaccedilatildeo de Parmecircnides e

ainda da validade do seu dilema como uma apresentaccedilatildeo exaustiva das

possibilidades de compreensatildeo da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo encontra-se nas linhas

que encerram este estaacutegio da discussatildeo

ldquoEntatildeo de que maneira Soacutecrates disse ele as outras coisas para ti teratildeo participaccedilatildeo nas Formas natildeo podendo ter participaccedilatildeo nem quanto agrave parte nem quanto ao todo Por Zeus disse ele natildeo me parece de modo algum ser faacutecil determinar tal coisardquo Τίνα οὖν τρόπον εἰπεῖν ὦ Σώκρατες τῶν εἰδῶν σοι τὰ ἄλλα microεταλήψεται microήτε κατὰ microέρη microήτε κατὰ ὅλα microεταλαmicroβάνειν δυνάmicroενα Οὐ microὰ τὸν ∆ία φάναι οὔ microοι δοκεῖ εὔκολον εἶναι τὸ τοιοῦτον οὐδαmicroῶς διορίσασθαι (131e3-7)

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43 O Argumento do Terceiro Homem e a multiplicaccedilatildeo inf inita das Formas

Tendo terminado suas objeccedilotildees agrave noccedilatildeo de participaccedilatildeo defendida por

Soacutecrates Parmecircnides inicia uma segunda seacuterie de criacuteticas na qual seratildeo

apresentados dois casos daquilo que ficou conhecido na literatura secundaacuteria

como ldquoArgumento do Terceiro Homemrdquo A expressatildeo ldquoo terceiro homemrdquo (ὁ

τρίτος ἄνθρωπος) pode ser encontrada mais de uma vez na obra de Aristoacuteteles

(RefSof178b36 179a3 Meta990b17 1039a2-3 1059b8 1079a13) onde eacute

usada para designar um conjunto heterogecircneo de criacuteticas agrave Teoria das Ideias Em

seus comentaacuterios agrave Metafiacutesica Alexandre de Afrodiacutesia nos fornece diversos

exemplos de argumentos que receberam esta denominaccedilatildeo geneacuterica Enquanto

alguns dos exemplos descritos por Alexandre natildeo possuem qualquer relaccedilatildeo com

as criacuteticas do Parmecircnides uma de suas descriccedilotildees apresenta profunda semelhanccedila

com os dois argumentos que encontramos em nosso diaacutelogo47

ldquoSe um termo predicado verdadeiramente de uma multiplicidade de coisas existe separadamente (κεχωρισmicroένον) das coisas de que eacute predicado (hellip) entatildeo haveraacute um terceiro Homem Pois se o Homem que eacute predicado eacute diferente das coisas de que eacute predicado e possui uma existecircncia independente e se eacute predicado tanto dos indiviacuteduos quantos das Formas haveraacute um terceiro Homem ao lado dos indiviacuteduos e da Forma E do mesmo modo um quarto predicado deste terceiro da Forma e dos indiviacuteduos e um quinto e assim indefinidamente ( ἐπ ἄπειρον)rdquo εἰ τὸ κατηγορούmicroενόν τινων πλειόνων ἀληθῶς καὶ ἔστιν ἄλλο παρὰ τὰ ὧν κατηγορεῖται κεχωρισmicroένον αὐτῶν () ἀλλ εἰ τοῦτο ἔσται τις τρίτος ἄνθρωπος εἰ γὰρ ἄλλος ὁ κατηγορούmicroενος ὧν κατηγορεῖται καὶ κατ ἰδίαν ὑφεστώς κατηγορεῖται δὲ κατά τε τῶν καθ ἕκαστα καὶ κατὰ τῆς ἰδέας ὁ ἄνθρωπος ἔσται τρίτος τις ἄνθρωπος παρά τε τοὺς καθ ἕκαστα καὶ τὴν ἰδέαν οὕτως δὲ καὶ τέταρτος ὁ κατά τε τούτου καὶ τῆς ἰδέας καὶ τῶν καθ ἕκαστα κατηγορούmicroενος ὁmicroοίως δὲ καὶ πέmicroπτος καὶ τοῦτο ἐπ ἄπειρον (InMetaph 8422-8523)

Como podemos perceber o argumento descrito por Alexandre pretende a

partir do reconhecimento da existecircncia de uma uacutenica Forma de Homem gerar

uma multiplicidade indefinida (ἄπειρον) destas Formas No Parmecircnides esta

conclusatildeo seraacute usada para demonstrar mais uma vez a impossibilidade de

47 O primeiro argumento denominado de Terceiro Homem por Alexandre eacute atribuiacutedo a Eudemos

(In Metaph842-7 859-11) O segundo (847-16) eacute atribuiacutedo de maneira imprecisa a ldquosofistasrdquo O terceiro (8416-21) eacute atribuiacutedo a Polixeno um contemporacircneo de Platatildeo e o quarto agrave Aristoacuteteles (8422-8523) Destes quatro apenas o uacuteltimo deles guarda semelhanccedilas

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mantermos simultaneamente a tese da unidade das Formas e a tese de que as

Formas satildeo responsaacuteveis pelas propriedades dos objetos sensiacuteveis Por meio de

seu dilema Parmecircnides havia provado que a noccedilatildeo de participaccedilatildeo implica em

qualquer das acepccedilotildees possiacuteveis para este termo na anulaccedilatildeo da tese da unidade

das Formas Afinal entendida como uma relaccedilatildeo no todo de uma Forma a

participaccedilatildeo acarretaria na multiplicaccedilatildeo destas entidades de modo que seriacuteamos

obrigados a admitir tantas Formas de F quantas entidades sensiacuteveis possuidoras

desta propriedade Por outro lado entendida como uma relaccedilatildeo entre os muacuteltiplos

Fs sensiacuteveis e partes da Forma F a participaccedilatildeo acabaria por destruir a integridade

das Formas e cada Forma teria tantas partes quantos participantes se tornando

uma entidade internamente complexa e sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos Como

proacuteximo passo de sua demonstraccedilatildeo Parmecircnides pretende demonstrar que de

acordo com a teoria apresentada por Soacutecrates as Formas estatildeo fadadas a uma

multiplicaccedilatildeo infinita

Assim como havia feito ao introduzir o dilema da participaccedilatildeo

Parmecircnides marca muito claramente o iniacutecio de uma nova seacuterie de argumentos

ldquoPois bem E em relaccedilatildeo ao seguinte como pensas Em relaccedilatildeo a quecirc Creio que tu crecircs que cada Forma eacute uma48 pelo seguinte quando algumas coisas muacuteltiplas te parecem ser grandes talvez te pareccedila a ti que as olhas todas haver uma certa ideia49 uma e a mesma em todas donde acreditas o grande ser um Dizes a verdade [Soacutecrates] disse Mas e quanto ao Grande ele mesmo e agraves outras coisas grandes Se olhares da mesma maneira com a alma para todos esses natildeo apareceraacute de novo um Grande um em virtude do qual eacute necessaacuterio todas aquelas coisas aparecerem como grandes Parece que sim Logo uma outra Forma da Grandeza apareceraacute surgindo ao lado da Grandeza ela mesma e das coisas que destas participam E sobre todas essas [apareceraacute] de novo uma outra de modo a em virtude dela todas essas parecerem grandes E natildeo mais seraacute uma cada uma das tuas Formas mas ilimitadas em quantidaderdquo Τί δὲ δή πρὸς τόδε πῶς ἔχεις Τὸ ποῖον Οἶmicroαί σε ἐκ τοῦ τοιοῦδε ἓν ἕκαστον εἶδος οἴεσθαι εἶναι ὅταν πόλλ ἄττα microεγάλα σοι δόξῃ εἶναι microία τις ἴσως δοκεῖ ἰδέα ἡ αὐτὴ εἶναι ἐπὶ πάντα ἰδόντι ὅθεν ἓν τὸ

com o par de argumentos encontrados no Parmecircnides

48 Aqui novamente ἓν designa a unidade numeacuterica de cada Forma Compare as expressotildees ἓν ἕκαστον εἶδος com πόλλ ἄττα microεγάλα e πάντα microεγάλα usadas para descrever a multiplicidade de objetos grandes sensiacuteveis

49 Natildeo me parece claro que Soacutecrates esteja usando ἰδέα em sua acepccedilatildeo teacutecnica de Forma platocircnica nesta sentenccedila apesar desta leitura ser certamente uma opccedilatildeo viaacutevel Em funccedilatildeo desta indefiniccedilatildeo optei por deixar a palavra ldquoideiardquo sem a maiuacutescula que venho usando para designar as Formas

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microέγα ἡγῇ εἶναι Ἀληθῆ λέγεις φάναι Τί δ αὐτὸ τὸ microέγα καὶ τἆλλα τὰ microεγάλα ἐὰν ὡσαύτως τῇ ψυχῇ ἐπὶ πάντα ἴδῃς οὐχὶ ἕν τι αὖ microέγα φανεῖται ᾧ ταῦτα πάντα microεγάλα φαίνεσθαι Ἔοικεν Ἄλλο ἄρα εἶδος microεγέθους ἀναφανήσεται παρ αὐτό τε τὸ microέγεθος γεγονὸς καὶ τὰ microετέχοντα αὐτοῦ καὶ ἐπὶ τούτοις αὖ πᾶσιν ἕτερον ᾧ ταῦτα πάντα microεγάλα ἔσται καὶ οὐκέτι δὴ ἓν ἕκαστόν σοι τῶν εἰδῶν ἔσται ἀλλὰ ἄπειρα τὸ πλῆθος (131e8-132b2)

Esta primeira versatildeo do Argumento do Terceiro Homem desenvolve-se de

maneira muito claramente anaacuteloga ao argumento descrito por Alexandre Se as

coisas satildeo grandes por causa (ᾧ) da Grandeza e se paralelamente podemos

considerar a Grandeza ela mesma uma coisa grande entatildeo devemos supor a

existecircncia de uma segunda Forma da Grandeza causa da propriedade da grandeza

tanto das coisas grandes quanto da primeira Grandeza Aleacutem disso considerando

esta segunda Forma da Grandeza novamente uma coisa grande uma terceira

Forma surgiria e assim ad infinitum Portanto segundo este raciociacutenio nenhuma

Forma seria numericamente uacutenica uma vez que o proacuteprio poder causal exercido

pelas Formas seria razatildeo de sua infinita multiplicaccedilatildeo Frente a esta multiplicaccedilatildeo

indesejada das Formas Soacutecrates procura uma saiacuteda inteiramente diversa

formulando uma hipoacutetese completamente inesperada50

ldquoMas Parmecircnides disse Soacutecrates vai ver cada uma dessas Formas eacute um pensamento e natildeo lhe cabe surgir em nenhum outro lugar a natildeo ser nas almas Pois sendo assim cada uma seria uma e natildeo mais seria afetada pelo que haacute pouco foi ditordquo Ἀλλά φάναι ὦ Παρmicroενίδη τὸν Σωκράτη microὴ τῶν εἰδῶν ἕκαστον ᾖ τούτων νόηmicroα καὶ οὐδαmicroοῦ αὐτῷ προσήκῃ ἐγγίγνεσθαι ἄλλοθι ἢ ἐν ψυχαῖς οὕτω γὰρ ἂν ἕν γε ἕκαστον εἴη καὶ οὐκ ἂν ἔτι πάσχοι ἃ νυνδὴ ἐλέγετο (132b3-6)

Tendo defendido anteriormente que as Formas satildeo entidades inteligiacuteveis

isto eacute apreendidas pela razatildeo Soacutecrates procura escapar dos paradoxos de

Parmecircnides afirmando que as Formas satildeo elas mesmas pensamentos (νοήmicroατα)

Entendidas como pensamentos cada uma das Formas manteria sua unidade

caracteriacutestica e natildeo estaria em qualquer outro lugar senatildeo na alma daquele que a

percebe Eacute importante notar contudo que natildeo devemos interpretar a sugestatildeo de

50 A idiossincrasia da proposta de Soacutecrates estaacute refletida no fato de que excluindo a presente

passagem e uma citaccedilatildeo ao poema de Parmecircnides no Sofista a palavra νόηmicroα soacute aparece trecircs vezes em toda obra platocircnica e em contextos sem grande importacircncia (cf Men95e5 Banq197e5 Pol260d8)

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Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de um subjetivismo radical de acordo com o qual as

Formas deixariam de possuir um estatuto ontoloacutegico separado e passariam a ser

completamente dependentes da mente daqueles que as concebe Caso o presente

passo da argumentaccedilatildeo socraacutetica pudesse ser entendido como a transformaccedilatildeo das

Formas em meros conteuacutedos de pensamento ou produtos da atividade da mente

humana estariacuteamos frente a uma nova concepccedilatildeo de Formas certamente

problemaacutetica poreacutem completamente distinta da noccedilatildeo de Formas defendida por

Soacutecrates desde o iniacutecio da discussatildeo Neste caso a proposta de Soacutecrates

representaria muito mais o abandono total da hipoacutetese das Formas do que uma

tentativa de reformulaccedilatildeo desta hipoacutetese

Como nada no texto indica que Soacutecrates esteja rompendo por completo

com a Teoria das Ideias devemos acreditar que a proposta de compreensatildeo das

Formas como pensamentos representa apenas mais uma tentativa de manter a

unidade e integridade caracteriacutesticas destas entidades sem que permaneccedila

inviabilizada a relaccedilatildeo causal que elas mantecircm com os objetos do mundo sensiacutevel

O que Soacutecrates pretende afirmar portanto eacute que as Formas devem ser entendidas

como conceitos universais acessiacuteveis pela alma humana Assim as coisas se

relacionariam com as Formas apenas por meio do pensamento humano e

poderiacuteamos salvar a hipoacutetese da causalidade das Formas ao menos no que diz

respeito agrave nossa apreensatildeo do mundo sensiacutevel Ao mesmo tempo permaneceriam

mantidas as caracteriacutesticas ontoloacutegicas de unidade e integridade das Formas

Parmecircnides no entanto demonstra rapidamente a impossibilidade desta

proposta se todo pensamento eacute pensamento de alguma coisa (νόηmicroα hellip τινός) e

ainda eacute pensamento de alguma coisa que eacute (τινός hellip ὄντος) entatildeo a hipoacutetese de

que a relaccedilatildeo entre Formas e coisas se daacute apenas no acircmbito da mente humana eacute

insustentaacutevel e o pensamento deve novamente ser entendido como uma Forma

uacutenica sobre uma multiplicidade de coisas sensiacuteveis (εἶδος hellip ἓν εἶναι ἀεὶ ὂν τὸ

αὐτὸ ἐπὶ πᾶσιν)

Ficando restabelecido o relacionamento direto entre Formas e coisas pois

todo pensamento eacute pensamento de alguma coisa a proposta de Soacutecrates se mostra

evidentemente contraditoacuteria Afinal se as Formas satildeo pensamentos e as coisas

participam nas Formas entatildeo todas as coisas participam do pensamento e

consequentemente o pensamento estaacute em todas as coisas Ora eacute evidente que nos

dois casos contradiccedilotildees surgiriam Por um lado se todas as coisas participam do

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pensamento entatildeo todas as coisas pensam (πάντα νοεῖν) o que eacute absurdo Por

outro lado por estar presente em todas as coisas o pensamento estaria presente

em coisas que pensam como homens poreacutem tambeacutem em coisas que natildeo pensam

Neste segundo caso teriacuteamos coisas que satildeo pensamento na medida em que

possuem pensamentos em si (ἐκ νοηmicroάτων ἕκαστον εἶναι) poreacutem natildeo pensam

(νοήmicroατα ὄντα ἀνόητα εἶναι) Para usarmos um exemplo concreto se uma pedra

possui a Forma da Grandeza e esta Forma por sua vez eacute um pensamento entatildeo

ou bem temos que admitir que a pedra eacute capaz de pensar ou bem temos que

admitir que a pedra possui em si um pensamento poreacutem natildeo pensa Por fim

atraveacutes destes simples argumentos Soacutecrates eacute levado mais uma vez a reconhecer

o evidente fracasso de sua tentativa

Apesar de sua sugestatildeo anterior ter sido enunciada com certa hesitaccedilatildeo51

Soacutecrates agora se mostra bastante confiante para apresentar uma nova proposta

Ele entatildeo afirma que as Formas devem ser entendidas como paradigmas

(παραδείγmicroατα) enquanto que as coisas sensiacuteveis que delas participam devem ser

entendidas como imagens produzidas a partir das Formas (εἰκασθῆναι αὐτοῖς)

ldquoMas Parmecircnides a mim estaacute sendo evidente que o que se passa eacute antes o seguinte que estas Formas estatildeo na natureza como paradigmas e que as outras coisas se parecem com elas e satildeo semelhanccedilas delas E que essa participaccedilatildeo nas Formas para estas outras coisas natildeo vem a ser senatildeo o serem estas feitas como imagens daquelasrdquo ἀλλ ὦ Παρmicroενίδη microάλιστα ἔmicroοιγε καταφαίνεται ὧδε ἔχειν τὰ microὲν εἴδη ταῦτα ὥσπερ παραδείγmicroατα ἑστάναι ἐν τῇ φύσει τὰ δὲ ἄλλα τούτοις ἐοικέναι καὶ εἶναι ὁmicroοιώmicroατα καὶ ἡ microέθεξις αὕτη τοῖς ἄλλοις γίγνεσθαι τῶν εἰδῶν οὐκ ἄλλη τις ἢ εἰκασθῆναι αὐτοῖς (132c12-d4)

Esta uacuteltima proposta possui a aparente virtude de anunciar uma explicaccedilatildeo

completamente nova para relaccedilatildeo de participaccedilatildeo ao inveacutes de simplesmente

oferecer mais um modo de entendermos a presenccedila das Formas nas coisas Frente

a todas as criacuteticas anteriormente formuladas por Parmecircnides Soacutecrates introduz agrave

discussatildeo a possibilidade das Formas serem entendidas como modelos ou

paradigmas aos quais os objetos sensiacuteveis se assemelham Entendida desta

maneira a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo natildeo implicaria na presenccedila das Formas nas

coisas e portanto representaria uma real alternativa ao dilema formulado por

51 Compare as palavras que iniciam sua proposta anterior (Ἀλλά hellip microὴ) com as palavras usadas

para introduzir sua presente proposta (microάλιστα ἔmicroοιγε καταφαίνεται)

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Parmecircnides no iniacutecio da discussatildeo e que vem dominando o debate desde entatildeo

De acordo com a presente sugestatildeo uma Forma deve ser entendida com

um modelo enquanto os objetos sensiacuteveis seriam como as diversas coacutepias que um

artista produz a partir da contemplaccedilatildeo deste modelo Portanto segundo a

descriccedilatildeo socraacutetica participar de uma determinada Forma seria equivalente a ser

semelhante ou ser uma coacutepia desta Forma Note que a princiacutepio a relaccedilatildeo ldquoser-

semelhante-ardquo pode ser entendida como uma relaccedilatildeo assimeacutetrica Ou seja

podemos pensar casos em que x eacute semelhante a y poreacutem y natildeo eacute semelhante a x

Pense por exemplo na relaccedilatildeo estabelecida entre Soacutecrates e as diversas

representaccedilotildees graacuteficas de Soacutecrates que foram produzidas no decorrer da histoacuteria

Podemos perfeitamente conceber que todas estas representaccedilotildees se assemelham a

Soacutecrates enquanto por outro lado Soacutecrates natildeo se assemelha a nenhuma delas

Entendida desta maneira a compreensatildeo de participaccedilatildeo como semelhanccedila natildeo

daria lugar a um regresso ao infinito No entanto Parmecircnides iraacute focar sua criacutetica

na demonstraccedilatildeo de que a relaccedilatildeo de semelhanccedila pressupotildee um caraacuteter simeacutetrico

ainda que Soacutecrates natildeo esteja plenamente consciente disto

ldquoSe entatildeo algo se parece com uma Forma disse Parmecircnides eacute possiacutevel essa Forma natildeo ser semelhante agravequilo que eacute feito como sua imagem na medida em que esta foi feita semelhante a ela Ou seraacute que haacute um meio de o semelhante natildeo ser semelhante ao semelhante Natildeo haacute Mas seraacute que natildeo eacute fortemente necessaacuterio o semelhante participar da mesma coisa uma que [seu] semelhante Eacute necessaacuterio sim Aquilo de que participando as coisas semelhantes seratildeo semelhantes natildeo seraacute a Forma mesma Absolutamente sim Logo natildeo eacute possiacutevel algo ser semelhante agrave Forma nem a Forma ser semelhante a outra coisa Senatildeo ao lado da Forma sempre apareceraacute outra Forma e se esta for semelhante a algo apareceraacute de novo outra e nunca cessaraacute de surgir sempre uma nova Forma se a Forma for semelhante ao que dela participardquo Εἰ οὖν τι ἔφη ἔοικεν τῷ εἴδει οἷόν τε ἐκεῖνο τὸ εἶδος microὴ ὅmicroοιον εἶναι τῷ εἰκασθέντι καθ ὅσον αὐτῷ ἀφωmicroοιώθη ἢ ἔστι τις microηχανὴ τὸ ὅmicroοιον microὴ ὁmicroοίῳ ὅmicroοιον εἶναι Οὐκ ἔστι Τὸ δὲ ὅmicroοιον τῷ ὁmicroοίῳ ἆρ οὐ microεγάλη ἀνάγκη ἑνὸς τοῦ αὐτοῦ microετέχειν Ἀνάγκη Οὗ δ ἂν τὰ ὅmicroοια microετέχοντα ὅmicroοια ᾖ οὐκ ἐκεῖνο ἔσται αὐτὸ τὸ εἶδος Παντάπασι microὲν οὖν Οὐκ ἄρα οἷόν τέ τι τῷ εἴδει ὅmicroοιον εἶναι οὐδὲ τὸ εἶδος ἄλλῳ εἰ δὲ microή παρὰ τὸ εἶδος ἀεὶ ἄλλο ἀναφανήσεται εἶδος καὶ ἂν ἐκεῖνό τῳ ὅmicroοιον ᾖ ἕτερον αὖ καὶ οὐδέποτε παύσεται ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον ἐὰν τὸ εἶδος τῷ ἑαυτοῦ microετέχοντι ὅmicroοιον γίγνηται (132d5-133a1)

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A demonstraccedilatildeo de Parmecircnides guarda novamente profundas

similaridades com o tipo de regresso ao infinito descrito por Alexandre de

Afrodiacutesia De acordo com a proposta socraacutetica diversas coisas belas possuem a

propriedade da beleza porque satildeo semelhantes agrave Beleza ela mesma (ἔοικεν τῷ

εἴδει) Parmecircnides entatildeo argumenta que caso as muacuteltiplas coisas belas sensiacuteveis

sejam semelhantes agrave Forma da Beleza entatildeo a Forma da Beleza seraacute tambeacutem

semelhante a elas Afinal devemos pressupor que coisas semelhantes se

assemelham por compartilhar alguma propriedade em comum (τὸ ὅmicroοιον τῷ

ὁmicroοίῳ ἀνάγκη ἑνὸς τοῦ αὐτοῦ microετέχειν) em nosso exemplo a propriedade da

beleza Neste caso contudo uma nova Forma da Beleza surgiria Esta nova

Forma teria a funccedilatildeo de explicar a beleza compartilhada pelas coisas belas e pela

Beleza ela mesma (παρὰ τὸ εἶδος ἀεὶ ἄλλο ἀναφανήσεται εἶδος) Tal como

ocorrido anteriormente este processo se repetiria indefinidamente (οὐδέποτε

παύσεται ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον) e acabariacuteamos por ter que admitir a

existecircncia de uma infinidade de Formas da Beleza numericamente distintas

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431 A formalizaccedilatildeo do Argumento do Terceiro Homem

O lugar de destaque que criacuteticas agrave Teoria das Ideias envolvendo regressotildees

ao infinito receberam ainda no tempo de Platatildeo fica comprovado pelas menccedilotildees

de Aristoacuteteles a estes argumentos O comentaacuterio de Alexandre nos garante ainda

que tal posiccedilatildeo de destaque se manteacutem por todo periacuteodo heleniacutestico Apesar disso

a tradiccedilatildeo de comentaacuterios moderna iniciada na Alemanha do seacuteculo XIX parece

ter relegado este tipo de argumento agrave condiccedilatildeo de uma simples falaacutecia ou

colocando-o em peacute de igualdade aos argumentos decorrentes do dilema da

participaccedilatildeo (cf Waddell 1894 p94-95 99-100) Esta situaccedilatildeo modifica-se

completamente a partir da segunda metade do seacuteculo XX quando a publicaccedilatildeo de

um artigo de Gregory Vlastos (1955) restitui ao Argumento do Terceiro Homem

entendido agora estritamente como a demonstraccedilatildeo de uma multiplicaccedilatildeo infinita

do nuacutemero de Formas seu lugar de importacircncia em meio agraves criacuteticas agrave Teoria das

Ideias

O artigo de Vlastos possui como tema central a reconstruccedilatildeo da estrutura

loacutegica dos argumentos encontrados no Parmecircnides Como vimos anteriormente

uma leitura das passagens em que as duas versotildees do regresso estatildeo anunciadas

permite um entendimento relativamente claro do raciociacutenio envolvido Poreacutem

como o amplo debate que se seguiu agrave publicaccedilatildeo do artigo de Vlastos demonstra

a reconstruccedilatildeo precisa das premissas implicadas no argumento natildeo eacute uma tarefa

simples Afinal eacute evidente que da maneira como estatildeo formulados no

Parmecircnides os argumentos necessitam de premissas natildeo expressas para que

sejam considerados vaacutelidos De fato a uacutenica premissa explicitamente apresentada

no texto de nosso diaacutelogo tanto no argumento de 131e-132b quanto no argumento

de 132d-133a eacute aquela que afirma a partir de uma multiplicidade de coisas que

recebem um determinado predicado F a existecircncia de uma Forma F em virtude da

qual todas as coisas recebem o predicado F Esta premissa eacute chamada por Vlastos

de premissa ldquoUm sobre Muitosrdquo (UM) e eacute apresentada em seu artigo de 1955

por meio da seguinte formulaccedilatildeo

(UMv) Se vaacuterias coisas a b c satildeo todas F entatildeo deve haver uma Forma uacutenica F-

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idade em virtude da qual apreendemos a b c como F

A argumentaccedilatildeo prosseguiria da seguinte maneira A partir de uma

multiplicidade de coisas F aplicariacuteamos a premissa (UM) para gerarmos uma

Forma de F-idade Esta Forma eacute entatildeo adicionada agrave coleccedilatildeo inicial e por meio de

mais uma aplicaccedilatildeo de (UM) gerariacuteamos outra Forma Esta nova Forma eacute

adicionada agrave coleccedilatildeo anterior e a premissa (UM) eacute aplicada novamente para gerar

uma nova Forma O mesmo processo poderia ser repetido ad infinitum

Eacute muito claro contudo que a premissa (UM) por si soacute natildeo eacute capaz de

gerar o regresso previamente descrito Afinal nenhuma claacuteusula foi oferecida para

a aplicaccedilatildeo reiterada da premissa (UM) aleacutem de nada nos obrigar a considerar

que cada nova aplicaccedilatildeo de (UM) seja responsaacutevel pelo surgimento de uma nova

Forma numericamente distinta daquela que foi gerada na aplicaccedilatildeo anterior deste

mesmo princiacutepio

Em vista disto Vlastos conclui que ldquoPlatatildeo devia ter algo mais em menterdquo

(Vlastos 1955 p236) e propotildee que na condiccedilatildeo de inteacuterpretes completemos as

lacunas do texto platocircnico Assim como justificativa para reitera aplicaccedilatildeo da

premissa (UM) Vlastos propotildee a seguinte premissa adicional

(APv) F-idade eacute F

Por meio desta premissa de ldquoAuto-Predicaccedilatildeordquo (AP)52 podemos explicar a

adiccedilatildeo da Forma F-idade ao grupo de coisas a b c Afinal (AP) garante que a

Forma F-idade eacute F tal como a b c Desta maneira apoacutes cada aplicaccedilatildeo de (UM)

estariacuteamos frente a um novo conjunto de entidades (Formas e coisas) todas elas

possuidoras de um mesmo predicado F o que nos permitiria uma nova aplicaccedilatildeo

de (UM)

Por outro lado para justificar a inferecircncia de que cada aplicaccedilatildeo de (OM)

produz uma Forma inteiramente nova Vlastos propotildee a seguinte premissa

(NIv) Se x eacute F entatildeo x natildeo pode ser idecircntico a F-idade

52 Entenderei durante toda discussatildeo subsequente que (AP) implica na univocidade de aplicaccedilatildeo

do predicado F isto eacute F-idade eacute F do mesmo modo que um objeto sensiacutevel x eacute F

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Por meio da adiccedilatildeo desta segunda premissa podemos garantir a natildeo

identidade entre cada uma das Formas geradas pelas diferentes aplicaccedilotildees de

(UM) Isto porque segundo (NI) qualquer coisa que seja F em virtude da

participaccedilatildeo em uma determinada Forma natildeo pode ser idecircntica agrave Forma da qual

participa Portanto a Forma produzida pela segunda aplicaccedilatildeo de (UM) natildeo pode

ser idecircntica agrave Forma produzida pela primeira aplicaccedilatildeo de (UM) caso contraacuterio

violaria (NI) e seria idecircntica agrave Forma em virtude da qual ela mesma eacute F

A accedilatildeo conjunta destas trecircs premissas eacute capaz de gerar o regresso ao

infinito que o personagem Parmecircnides apresenta explicitamente como a conclusatildeo

de seu argumento tanto em 132b quanto em 133a Contudo conforme notado pelo

proacuteprio Vlastos as duas premissas por ele adicionadas ao texto do diaacutelogo

possuem a caracteriacutestica de serem mutuamente inconsistentes Afinal a partir de

(NI) podemos facilmente inferir que F-idade natildeo eacute F contudo isto eacute justamente o

contraditoacuterio do que afirma (AP) Vlastos no entanto permanece convencido de

que estas satildeo exatamente as premissas que devemos atribuir a Soacutecrates E em

vista disto conclui que Platatildeo natildeo estava plenamente ciente das implicaccedilotildees de

seu argumento e nos apresenta estes dois regressos como um ldquoregistro de sua

honesta perplexidaderdquo (Vlastos 1955 p254)

Diversas publicaccedilotildees se seguiram ao artigo de Vlastos muitas delas com o

claro objetivo de formular um conjunto de premissas que natildeo estivesse sujeito agrave

inconsistecircncia encontrada na proposta inicial Sellars (1955) por exemplo

observa que Vlastos havia usado a expressatildeo ldquoF-idaderdquo como um designador

direto para as Formas e como alternativa propotildee que entendamos esta expressatildeo

como uma variaacutevel sujeita agrave quantificaccedilatildeo Assim concebidas as premissas do

Argumento do Terceiro Homem receberiam a seguinte formulaccedilatildeo

(UMs) Se vaacuterias coisas satildeo F entatildeo deve haver alguma F-idade em virtude da

qual estas coisas satildeo F

(APs)Todas F-idades satildeo F

(NIs) Se x eacute F entatildeo x natildeo eacute idecircntico agrave F-idade em virtude da qual x eacute F

(Sellars 1955 p418-419)

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Estas trecircs premissas satildeo de fato mutuamente consistentes aleacutem de serem

capazes de gerar o regresso ao infinito necessaacuterio para conclusatildeo dos argumentos

No entanto segundo Vlastos (1969) a formulaccedilatildeo proposta por Sellars para a

premissa (UMs) natildeo corresponde ao que encontramos no texto do Parmecircnides

Afinal em nosso diaacutelogo estaacute explicitamente afirmado que uma uacutenica Forma eacute

gerada a partir de uma determinada multiplicidade de coisas F (microία τις ἰδέα ἡ αὐτὴ

εἶναι ἐπὶ πάντα) enquanto a formulaccedilatildeo de Sellars faz uso de um quantificador

existencial ordinaacuterio cujo sentido deve ser entendido como ldquopelo menos uma

Formardquo

Concluindo que nenhuma formulaccedilatildeo de (UM) poderia estar correta sem

respeitar a singularidade implicada no raciociacutenio platocircnico Vlastos oferece uma

revisatildeo de seu conjunto de premissas

(UMv) Se qualquer conjunto de coisas compartilha uma mesma caracteriacutestica

entatildeo existe uma uacutenica Forma correspondente a esta caracteriacutestica e cada uma

destas coisas possui esta caracteriacutestica por participar nesta Forma

(APv) A Forma correspondente a uma determinada caracteriacutestica possui ela

mesma esta caracteriacutestica

(NIv) Se qualquer coisa possui uma determinada caracteriacutestica por participar em

uma Forma entatildeo esta coisa natildeo eacute idecircntica a esta Forma

(Vlastos 1969 p348-351)

Nesta nova formulaccedilatildeo do Argumento do Terceiro Homem natildeo haacute conflito

entre (AP) e (NI) Contudo se tomarmos as trecircs premissas em conjunto vemos

surgir uma nova inconsistecircncia Pois suponha que haacute uma seacuterie de coisas

possuidoras de uma mesma caracteriacutestica F entatildeo de acordo com (UMv) haveraacute

uma uacutenica Forma F correspondente agrave caracteriacutestica F Esta Forma por sua vez

possuiraacute ela mesma a caracteriacutestica F (APv) e compartilharaacute esta caracteriacutestica

com seus participantes No entanto por compartilhar de uma mesma caracteriacutestica

F a Forma F necessariamente participaria da Forma correspondente a esta

caracteriacutestica (UMv) Ora esta Forma eacute a proacutepria Forma F e portanto a Forma F

participaria de si mesma o que contradiz a premissa (Niv) A nova proposta de

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Vlastos resolveu a inconsistecircncia entre (NI) e (AP) apenas para criar outra

inconsistecircncia agora envolvendo as trecircs premissas do argumento

O problema de termos um conjunto inconsistente de premissas eacute que neste

caso o regresso ao infinito eacute gerado trivialmente isto eacute qualquer conjunto

inconsistente de premissas seria suficiente para gerar o regresso assim como o

mesmo conjunto de premissas poderia ser usado para gerar qualquer conclusatildeo na

medida em que ex falso sequitur quodlibet Assim entendido portanto o

argumento natildeo constituiria uma criacutetica vaacutelida agrave Teoria das Ideias e representaria

apenas uma evidecircncia indireta da contradiccedilatildeo inerente agraves premissas desta teoria

Surpreendentemente Vlastos acolhe esta particularidade de sua

interpretaccedilatildeo E mesmo em seus artigos posteriores continua mantendo a opiniatildeo

de que ambos os regressos apresentados no Parmecircnides satildeo muito mais

expressotildees imprecisas da perplexidade de Platatildeo do que argumentos vaacutelidos e

criacuteticas relevantes agrave sua concepccedilatildeo de Formas Assim Vlastos conclui que o

resultado da multiplicaccedilatildeo infinita do nuacutemero de Formas natildeo passa de ldquoum mero

bocircnus (hellip) adicionado somente pelo seu efeito retoacutericordquo (Vlastos 1969 p352)

Este tipo de interpretaccedilatildeo no entanto natildeo parece estar de acordo com o

texto de nosso diaacutelogo Em primeiro lugar teriacuteamos que menosprezar o fato de

que o texto claramente afirma a produccedilatildeo de um regresso ao infinito como o

resultado de ambos os argumentos apresentados por Parmecircnides (οὐκέτι δὴ ἓν

ἕκαστόν σοι τῶν εἰδῶν ἔσται ἀλλὰ ἄπειρα τὸ πλῆθος 132b2 οὐδέποτε παύσεται

ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον 133a1) e segundo Vlastos este resultado seria

apenas um acreacutescimo retoacuterico A multiplicaccedilatildeo infinita do nuacutemero de Formas estaacute

de pleno acordo com a estrutura geral das criacuteticas de Parmecircnides que como jaacute

sabemos concentram-se em demonstrar a impossibilidade das Formas manterem

sua unidade (numeacuterica e aspectual) ao mesmo tempo em que satildeo causas das

propriedades dos objetos sensiacuteveis

Em segundo lugar aceitar a sugestatildeo de que o conjunto de premissas

envolvido em nossos argumentos eacute inevitavelmente inconsistente equivale a

afirmar que Platatildeo representa o personagem Parmecircnides propondo criacuteticas

confusas nas quais a conclusatildeo natildeo se segue das premissas Esta admissatildeo

entretanto tornaria este par de argumentos completamente desviante agrave estrutura de

argumentaccedilatildeo que identificamos em nosso diaacutelogo Pois ateacute aqui toda seacuterie de

argumentos demonstrou possuir rigor loacutegico Devemos portanto buscar um

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conjunto consistente de premissas para nossos argumentos de modo a tornaacute-los

vaacutelidos e condizentes com a estrutura dramaacutetica que identificamos ateacute o presente

momento da discussatildeo

De fato diversos autores se dedicaram agrave tarefa de construir um conjunto

consistente de premissas para estes argumentos Como ficou comprovado a

formulaccedilatildeo deste conjunto depende da possibilidade de usarmos quantificaccedilotildees de

segunda ordem sobretudo se pretendemos manter a claacuteusula de singularidade em

(UM) defendida por Vlastos (cf Cohen 1971 p448-475) (cf Mignucci 1990)

Isto eacute precisariacuteamos usar variaacuteveis natildeo apenas sobre Formas e coisas mas

tambeacutem sobre funccedilotildees e conjuntos de Formas e coisas para mantermos a correccedilatildeo

do argumento sem abrir matildeo da formulaccedilatildeo singular de (UM) proposta por

Vlastos53

Formulaccedilotildees envolvendo um aparato loacutegico muito complexo no entanto

possuem a desvantagem de se distanciarem demais de um argumento apresentado

em linguagem relativamente simples E ainda estatildeo sujeitas agrave criacutetica de que

Platatildeo natildeo poderia ter pensado nestes termos na medida em que tais categorias

ainda natildeo faziam parte das anaacutelises loacutegicas disponiacuteveis em seu tempo

Devemos lembrar contudo que o conjunto de premissas apresentado por

Sellars (1955) jaacute possuiacutea o caraacuteter de ser consistente e gerar de maneira vaacutelida a

conclusatildeo expressamente apresentada por Parmecircnides Este conjunto havia sido

descartado por Vlastos com base em uma argumentaccedilatildeo puramente textual De

acordo Vlastos (1969) a formulaccedilatildeo do princiacutepio (UMs) natildeo faria jus agrave fala de

Parmecircnides em 132a2 Pois nesta sentenccedila estaria expressamente afirmado que

uma uacutenica Forma F pode ser gerada a partir de um conjunto qualquer de coisas F

(microία τις ἰδέα ἡ αὐτὴ εἶναι ἐπὶ πάντα) enquanto a formulaccedilatildeo de Sellars faz

menccedilatildeo a ldquoalguma Formardquo

A criacutetica de Vlastos se desenvolve da seguinte maneira em 132a1 a

expressatildeo ldquocada uma Formardquo (ἓν ἕκαστον εἶδος) estaacute apresentada em oposiccedilatildeo agrave

ldquoilimitadas em quantidadesrdquo (ἄπειρα τὸ πλῆθος 132b2) De maneira a manter esta

oposiccedilatildeo devemos entender ldquouma Formardquo como equivalente a ldquoapenas uma

53 Cohen em ldquoThe Logic of the Third Manrdquo (1971) constroacutei usando quantificaccedilotildees de segunda

ordem um conjunto consistente de premissas com base em uma analogia com os postulados de Peano e a derivaccedilatildeo da sequecircncia de nuacutemeros racionais Mignucci (1990) tambeacutem propotildee um conjunto consistente de premissas capazes de gerar o regresso desejado poreacutem novamente com base em um instrumental da loacutegica de segunda ordem

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273

Formardquo Portanto alega Vlastos o mesmo sentido deve ser atribuiacutedo agrave expressatildeo

ldquouma certa ideiardquo (microία τις ἰδέα) em 132a2 Assim o que Parmecircnides estaria

dizendo eacute que deve haver uma uacutenica Forma capaz de explicar porque toda e

qualquer coisa F recebe este predicado Como consequecircncia Vlastos afirma que

devemos incluir uma claacuteusula de singularidade na formulaccedilatildeo de (UM) a despeito

da correccedilatildeo loacutegica do argumento (Vlastos 1969 p354-355)

A pergunta que devemos fazer eacute se a interpretaccedilatildeo de Vlastos para a

expressatildeo microία τις ἰδέα eacute a uacutenica possiacutevel Na realidade como o proacuteprio Vlastos

afirma a oposiccedilatildeo necessaacuteria entre ldquouma Formardquo e ldquomuacuteltiplas Formasrdquo estaacute

estabelecida pelo contraste entre as expressotildees ἓν ἕκαστον εἶδος e ἄπειρα τὸ

πλῆθος Portanto o sentido geral de nosso argumento que pretende gerar uma

infinidade de Formas como maneira de contradizer a tese socraacutetica da

singularidade destas entidades jaacute estaacute garantido de antematildeo a despeito de como

entendamos a expressatildeo microία τις ἰδέα A razatildeo principal oferecida por Vlastos para

a leitura estritamente singular de microία τις ἰδέα estaacute no fato de que esta expressatildeo

encontra-se localizada entre ἓν ἕκαστον εἶδος (132a1) e ἓν τὸ microέγα (132a3) e

sendo assim devemos entender que as trecircs foacutermulas expressam por proximidade

e analogia exatamente a mesma tese

Ora podemos concordar que tanto em (132a1) quanto (132a3) o termo ἓν

significa ldquoapenas umardquo Contudo disto natildeo se segue que o termo microία em microία τις

ἰδέα ἡ αὐτὴ εἶναι possui o mesmo significado Em (132a1) e (132a3) o termo ἓν

aparece como um predicado enquanto o termo microία eacute um adjetivo do sujeito ἰδέα

na expressatildeo controversa Haacute uma grande diferenccedila entre se dizer que ldquox eacute umrdquo e

se dizer que ldquoum x eacute Frdquo Mesmo se no primeiro caso podemos afirmar que ldquoumrdquo

equivale a ldquoapenas umrdquo natildeo temos razotildees suficiente para afirmar que no segundo

caso ldquoumrdquo natildeo possa estar significando ldquopelo menos umrdquo Por possuiacuterem funccedilotildees

sintaacuteticas distintas os termos ἓν e microία podem ter significados distintos sem que o

texto seja considerado contraditoacuterio ou obscuro

Frente agrave validade da leitura de 132a2 como (UMs) podemos considerar o

conjunto de premissas apresentado por Sellars (Sellars 1955 p418-419) como

uma formalizaccedilatildeo adequada para os pressupostos envolvidos no Argumento do

Terceiro Homem Esta formalizaccedilatildeo possui a virtude de tornar os argumentos

apresentados pelo personagem Parmecircnides vaacutelidos ao mesmo tempo em que

apresenta premissas plausiacuteveis e facilmente identificaacuteveis na argumentaccedilatildeo

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274

desenvolvida por Soacutecrates Adotando o conjunto de premissas apresentado por

Sellars o raciociacutenio por traacutes dos argumentos de Parmecircnides poderia ser

esquematizado da seguinte maneira

Para o argumento de 131e-132b

1) A partir de uma multiplicidade a b c de coisas grandes

afirmamos a existecircncia da Forma do Grande (UMs)

2) A Forma do Grande eacute incluiacuteda no conjunto de coisas grandes

(APs)

3) A Forma do Grande natildeo pode ser grande em virtude de si mesma

(NIs)

4) Logo o conjunto de coisas grandes a b c Forma do Grande natildeo

pode ser considerado grande em virtude da Forma do Grande e

precisamos afirmar a existecircncia de uma nova Forma Grande2

(UMs)

5) A Forma do Grande2 eacute incluiacuteda no conjunto de coisas grandes

(APs)

6) A Forma do Grande2 natildeo pode ser grande em virtude de si mesma

(NIs)

7) Logo o conjunto de coisas grandes a b c Forma do Grande

Forma do Grande2 natildeo pode ser considerado grande em virtude

da Forma do Grande2 e precisamos afirmar a existecircncia de uma

nova Forma Grande3 (UMs)

etc

Para o argumento de 132d-133a

1) Diversas coisas a b c satildeo F em virtude de serem semelhantes agrave

Forma F (UMs)

2) a b c satildeo semelhantes agrave Forma F por compartilharem com esta

Forma a propriedade de serem F (APs)

3) A Forma F natildeo pode ser F em virtude de ser semelhante a si

mesma (NIs)

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275

4) Logo o conjunto a b c Forma F natildeo pode ser considerado F em

virtude de cada um de seus membros ser semelhante agrave Forma F e

precisamos afirmar a existecircncia de uma nova Forma F2 (UMs)

5) a b c Forma F satildeo semelhantes agrave Forma F2 por compartilharem

com esta Forma a propriedade de serem F (APs)

6) A Forma F2 natildeo pode ser F em virtude de ser semelhante a si

mesma (NIs)

7) Logo o conjunto a b c Forma F Forma F2 natildeo pode ser

considerado F em virtude de cada um de seus membros ser

semelhante agrave Forma F2 e precisamos afirmar a existecircncia de uma

nova Forma F3 (UMs)

etc

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276

432 A auto-predicaccedilatildeo das Formas

Fazendo uso dos dois regressos acima descritos Parmecircnides eacute capaz de

mais uma vez demonstrar a impossibilidade de serem mantidas simultaneamente

a tese do poder causal das Formas e a tese de que as Formas satildeo entidades uacutenicas

Eacute evidente contudo que os regressos apresentados por Parmecircnides soacute podem ser

considerados legiacutetimas criacuteticas agrave teoria socraacutetica caso as trecircs premissas em que

estes argumentos estatildeo baseados sejam de fato adotadas por Soacutecrates

Se olharmos para as trecircs assunccedilotildees necessaacuterias para a validade do

Argumento do Terceiro Homem podemos reconhecer que duas delas satildeo muito

evidentemente defendidas por Soacutecrates A premissa (UM) por exemplo formaliza

o poder causal atribuiacutedo agraves Formas pela Teoria das Ideias Como vimos uma das

hipoacuteteses centrais da teoria defendida por Soacutecrates desde os primeiros diaacutelogos

afirma que os objetos sensiacuteveis adquirem suas propriedades por meio da

participaccedilatildeo nas Formas De fato em Repuacuteblica 596a6-7 Soacutecrates trata como

parte de seu ldquomeacutetodo habitualrdquo (εἰωθυίας microεθόδου) afirmar a existecircncia (τίθεσθαι)

de uma uacutenica Forma para ldquocada conjunto de muacuteltiplas coisas agraves quais atribuiacutemos

um mesmo nomerdquo (ἕκαστα τὰ πολλά οἷς ταὐτὸν ὄνοmicroα ἐπιφέροmicroεν)54 Da mesma

maneira a premissa (NI) natildeo passa de uma implicaccedilatildeo direta da tese socraacutetica

segundo a qual as Formas satildeo entidades separadas Como sabemos a separaccedilatildeo

das Formas equivale agrave afirmaccedilatildeo da independecircncia ontoloacutegica destas entidades

que natildeo necessitam dos objetos sensiacuteveis para existirem Ora da afirmaccedilatildeo de que

as Formas satildeo entidades ontologicamente independentes dos objetos que delas

participam segue-se (NI) ldquoSe qualquer coisa possui uma determinada

caracteriacutestica por participar em uma Forma entatildeo esta coisa natildeo eacute idecircntica a esta

Formardquo

A premissa (AP) contudo foi alvo de grande controversa e diversos

comentadores contestam sua legitimidade como parte da Teoria das Ideias Estes

comentadores tecircm que lidar com o fato de que Soacutecrates em diversos diaacutelogos faz

54 Note que na formulaccedilatildeo socraacutetica de (UM) em Repuacuteblica 596a6-7 εἶδος τι ἓν ἕκαστον estaacute em

oposiccedilatildeo a ἕκαστα τὰ πολλά o que natildeo inviabiliza a leitura de Sellars Na reconstruccedilatildeo acima proposta por exemplo cada conjunto de muacuteltiplas coisas ( ἕκαστα τὰ πολλά) corresponde a uma uacutenica Forma (εἶδος τι ἓν ἕκαστον) apesar dos elementos envolvidos participarem de mais de um conjunto e portanto terem mais de uma Forma como causa de suas propriedades

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afirmaccedilotildees na forma ldquoa F-idade eacute Frdquo No Hippiacuteas Maior (292e) por exemplo

Soacutecrates afirma que ldquoo Belo eacute sempre belordquo (ἀεὶ γάρ που τό γε καλὸν καλόν) No

Protaacutegoras (330c-e) explica que se existe alguma coisa chamada ldquoJusticcedilardquo ou

ldquoPiedaderdquo entatildeo a Justiccedila eacute necessariamente justa (ἡ δικαιοσύνη οἷον δίκαιον

εἶναι) e a Piedade pia (αὐτή γε ἡ ὁσιότης ὅσιον) Aleacutem disso no Banquete (210e-

211b) a Forma do Belo eacute claramente apresentada como algo belo Na realidade

como vimos o Belo ele mesmo eacute sempre belo (microονοειδὲς ἀεὶ ὄν) em contraste

com os objetos belos sensiacuteveis que satildeo belos em determinadas relaccedilotildees poreacutem

natildeo em outras (τῇ microὲν καλόν τῇ δ αἰσχρόν τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ etc) Aleacutem

disso atraveacutes do Feacutedon sabemos que Soacutecrates adota uma compreensatildeo da relaccedilatildeo

de causalidade segundo a qual uma Forma deve possuir a propriedade de que eacute

causa nos objetos sensiacuteveis

Frente a todas estas evidecircncias os comentadores adotam basicamente duas

estrateacutegias para negar que estas afirmaccedilotildees possam representar o

comprometimento de Soacutecrates com (AP) De acordo com um primeiro grupo de

inteacuterpretes as asserccedilotildees socraacuteticas na forma ldquoA F-idade eacute Frdquo ou ldquoo F ele mesmo eacute

Frdquo natildeo devem ser entendidas como oferecendo uma descriccedilatildeo ou caracterizaccedilatildeo

da Forma de F Isto eacute tais sentenccedilas seriam apenas aparentes exemplos de

predicaccedilatildeo Na realidade contudo natildeo teriam a funccedilatildeo de atribuir o predicado F agrave

Forma que ocupa o lugar de sujeito da sentenccedila Deste modo natildeo poderiam

representar ldquoauto-predicaccedilotildeesrdquo na medida em que sequer seriam casos de

predicaccedilatildeo A segunda estrateacutegia adotada pelos comentadores para negar que

Soacutecrates esteja comprometido com (AP) consiste em afirmar que apesar de

verdadeiras predicaccedilotildees sentenccedilas na forma ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo podem ser

equiparadas a sentenccedilas na forma ldquox eacute Frdquo em que x corresponde a uma entidade

sensiacutevel Teriacuteamos assim dois tipos distintos de predicaccedilatildeo a Forma F eacute F

poreacutem de um modo completamente diferente da coisa x ser F Natildeo havendo

uniformidade na maneira em que estes dois tipos de entidades recebem seus

predicados natildeo estaria justificada a inclusatildeo de F-idade no conjunto de coisas (a

b c) e o regresso estaria bloqueado em seu primeiro passo

Cada uma destas duas estrateacutegias baacutesicas de negar a validade de (AP) foi

defendida por mais de um argumento Portanto trataremos delas separadamente a

comeccedilar pelos comentadores que afirmam o primeiro tipo de abordagem segundo

o qual as sentenccedilas na forma ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo representam tentativas de

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descriccedilotildees das Formas e portanto natildeo satildeo legiacutetimas predicaccedilotildees

Reginald Allen (1960) baseia-se nas noccedilotildees de eponiacutemia e homoniacutemia

para afirmar que quando Soacutecrates chama uma determinada Forma F de F ele natildeo

estaacute propriamente atribuindo a esta Forma a caracteriacutestica de ser-F Segundo

Allen nas sentenccedilas do tipo ldquox eacute Frdquo em que particulares ocupam o lugar do

sujeito o predicado F estaacute normalmente descrevendo ou classificando o sujeito x

Contudo nas sentenccedilas auto-predicativas em que uma Forma estaacute ocupando o

lugar do sujeito o termo F possui uma funccedilatildeo completamente distinta e deve ser

entendido como um nome proacuteprio Allen faz uso de duas passagens no Feacutedon para

defender sua teoria Na primeira delas (78e1) Soacutecrates afirma que os objetos

sensiacuteveis satildeo homocircnimos (ὁmicroωνύmicroων) das Formas Enquanto na segunda

passagem (102b) oferece a explicaccedilatildeo de que as coisas sensiacuteveis ldquorecebem os

nomes das Formas em que participamrdquo (τἆλλα microεταλαmicroβάνοντα αὐτῶν τούτων

τὴν ἐπωνυmicroίαν ἴσχειν)

De acordo com Allen (1960 p45) estas duas passagens seriam suficientes

para afirmarmos que segundo a teoria defendida por Soacutecrates toda sentenccedila na

estrutura sujeito-predicado natildeo passa de uma reproduccedilatildeo por homoniacutemia das

relaccedilotildees entre Formas e coisas Isto eacute estas poucas linhas seriam evidecircncia

suficiente para atribuirmos a Soacutecrates uma teoria da significaccedilatildeo em que toda

predicaccedilatildeo ficaria reduzida a uma anaacutelise das relaccedilotildees de designaccedilatildeo atraveacutes de

nomes Assim em virtude da participaccedilatildeo na Forma F os objetos sensiacuteveis

recebem o nome desta Forma com uma de suas designaccedilotildees ganhando o direito

de serem verdadeiramente chamados de F

Apesar do iacutenfimo apoio textual oferecido como suporte para a atribuiccedilatildeo

de uma teoria da linguagem tatildeo extravagante a Soacutecrates Allen distingue em

seguida dois modos de designaccedilatildeo Um nome possuiria uma designaccedilatildeo

primaacuteria quando aplicado a uma Forma e uma designaccedilatildeo secundaacuteria quando

aplicado aos objetos sensiacuteveis Em sua designaccedilatildeo primaacuteria o termo F seria usado

como um nome proacuteprio que identifica a Forma F poreacutem natildeo a descreve A

relaccedilatildeo de designaccedilatildeo secundaacuteria por outro lado seria essencialmente derivativa

e atribuiria a uma entidade sensiacutevel um nome que lhe pertence apenas

indiretamente devido agrave relaccedilatildeo de homoniacutemia que esta entidade manteacutem com

uma Forma

Aceitando a explicaccedilatildeo de Allen somos obrigados a reconhecer que

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sentenccedilas do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo servem para descrever a F-idade uma vez

que o termo F natildeo passa de um mais um nome desta Forma Assim todo caso de

aparente auto-predicaccedilatildeo das Formas natildeo passaria de uma tautologia entre

sinocircnimos e natildeo afirmaria nada aleacutem da identidade da Forma F com ela mesma Eacute

evidente que neste caso a foacutermula ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo constituiria uma legiacutetima

predicaccedilatildeo e portanto natildeo poderia ser usada como evidecircncia do

comprometimento de Soacutecrates com (AP)

O maior problema da interpretaccedilatildeo de Allen eacute que os poucos textos por ele

apresentados natildeo parecem oferecer o suporte necessaacuterio para sua caracterizaccedilatildeo

da concepccedilatildeo socraacutetica de predicaccedilatildeo como designaccedilatildeo Segundo Allen as coisas

sensiacuteveis recebem os nomes das Formas No entanto se analisarmos as passagens

do Feacutedon citadas por Allen assim como a passagem do proacuteprio Parmecircnides em

que a noccedilatildeo de eponiacutemia eacute evocada veremos que em nenhuma delas eacute possiacutevel

encontrar o termo F como um nome para as Formas Em Feacutedon 102b-c Soacutecrates

menciona a Grandeza (microέγεθος) e a Pequenez (σmicroικρότητα) como nomes de

Formas No Parmecircnides aparecem ainda os termos Igualdade (ὁmicroοιότητος) e

Justiccedila (δικαιοσύνης) Ora todas estas passagens mencionam apenas substantivos

abstratos (F-idade) como designadores diretos das Formas Uma anaacutelise

tautoloacutegica para sentenccedilas auto-predicativas no entanto depende que as Formas

sejam designadas natildeo soacute como F-idade mas tambeacutem como F Sem uma afirmaccedilatildeo

expliacutecita de que o termo F pode servir como um nome para as Formas natildeo temos

como derivar uma identidade a partir da sentenccedila ldquoF-idade eacute Frdquo

A outra passagem apresentada por Allen (Feacuted78e) na qual se afirma a

homoniacutemia entre Formas e coisas tampouco apresenta F como uma designaccedilatildeo

primaacuteria das Formas Nesta passagem as designaccedilotildees citadas para as Formas satildeo

o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) e o Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

Novamente natildeo temos o termo desejado apenas a expressatildeo ldquoo F ele mesmordquo

(αὐτὸ τὸ F) Tal como no caso da eponiacutemia para que sentenccedilas auto-predicativas

envolvendo Formas ficassem seguramente estabelecidas como tautologias

precisariacuteamos que aleacutem de ldquoF-idaderdquo e ldquoo F ele mesmordquo o proacuteprio termo F

servisse como nome para as Formas Contudo natildeo eacute isso que encontramos em

qualquer dos textos apresentados por Allen55

55 Como reconhece Malcolm quem primeiro formulou este tipo de objeccedilatildeo a Allen outros textos

apresentam o termo F como nome da Forma F-idade por exemplo Eut10d Fed76d

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De fato mesmo se nas passagens elencadas por Allen o termo F fosse

apresentado como um designador direto da Forma F-idade natildeo teriacuteamos razotildees

suficientes para descartar por completo a possibilidade de (AP) representar um

real princiacutepio da Teoria das Ideias Afinal natildeo eacute apenas nos contextos de

homoniacutemia e eponiacutemia mencionados por Allen que Soacutecrates descreve uma Forma

como possuidora da propriedade de que eacute causa nos objetos sensiacuteveis Considere

por exemplo a Forma do Belo no Banquete Como vimos neste diaacutelogo a Forma

do Belo eacute caracterizada como ldquoalgo maravilhosamente belo por naturezardquo (τι

θαυmicroαστὸν τὴν φύσιν καλόν) sem que seja feita qualquer menccedilatildeo a questotildees de

homoniacutemia ou relaccedilotildees de significado Mesmo que a anaacutelise de Allen nos

fornecesse uma interpretaccedilatildeo vaacutelida para a teoria socraacutetica da predicaccedilatildeo

passagens como esta do Banquete (210e-211b) ainda poderiam ser usadas para

comprometer Soacutecrates com (AP) Afinal como poderiacuteamos explicar a doutrina de

que o Belo eacute o objeto maior de desejo eroacutetico por ser sempre belo (microονοειδὲς ἀεὶ

ὄν) Segundo Allen isto seria equivalente a afirmarmos que o Belo eacute o objeto

maior de desejo eroacutetico por ser sempre igual a ele mesmo Tal afirmaccedilatildeo

contudo eacute claramente insustentaacutevel uma vez que cada coisa eacute sempre igual a ela

mesma e portanto todas elas seriam o objeto maior de desejo eroacutetico

Este uacuteltimo tipo de objeccedilatildeo se estende a todos aqueles que pretendem

interpretar sentenccedilas do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo como casos de identidade a despeito

de aceitarem a anaacutelise de predicaccedilotildees como relaccedilotildees de homoniacutemia proposta por

Allen Cherniss (1957) o primeiro a propor que devemos entender sentenccedilas auto-

predicativas envolvendo Formas como casos de identidade distingue entre ter F e

ser F Segundo Cherniss enquanto os objetos sensiacuteveis tecircm uma propriedade F

em virtude de sua participaccedilatildeo na Forma F a F-idade eacute a propriedade F Assim

somente em sentenccedilas contendo particulares sensiacuteveis como sujeitos o predicado

estaria fornecendo uma descriccedilatildeo do sujeito em questatildeo Em sentenccedilas na forma

ldquoa F-idade eacute Frdquo por outro lado teriacuteamos uma afirmaccedilatildeo de identidade e natildeo uma

predicaccedilatildeo ordinaacuteria

Ora a primeira coisa que devemos notar eacute que nada na anaacutelise de Cherniss

proiacutebe que a F-idade possa ser F e simultaneamente ter F como um legiacutetimo

Sof255a No entanto na medida em que toda teoria de Allen jaacute possui escasso apoio textual podemos considerar o fato de que o termo F natildeo aparece como um designador das Formas nas passagens por ele apresentadas como uma evidecircncia contra sua interpretaccedilatildeo (cf Malcolm

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281

predicado E caso Cherniss argumente que soacute eacute possiacutevel ter uma propriedade em

virtude da participaccedilatildeo em uma Forma podemos coerentemente responder que ou

bem F-idade tem F por participar de si mesma ou bem precisariacuteamos de uma

segunda Forma F-idade para explicar a propriedade F que F-idade tem

Estariacuteamos assim novamente no caso de decidir sobre a validade de (AP)

mesmo aceitando a anaacutelise de Cherniss que a princiacutepio deveria servir de soluccedilatildeo

para este dilema Aleacutem disso considerando que Cherniss venha a negar

completamente a possibilidade de uma Forma F ter a propriedade F e mantenha

que toda sentenccedila do tipo ldquoA F-idade eacute Frdquo deve ser entendia como uma predicaccedilatildeo

de identidade algumas afirmaccedilotildees de Soacutecrates resultariam em inaceitaacuteveis contra-

sensos Considere por exemplo o que fala Soacutecrates em Feacutedon 100c4-6

ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute bela (εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν56) aleacutem do Belo ele mesmo (πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o restordquo φαίνεται γάρ microοι εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν οὐδὲ δι ἓν ἄλλο καλὸν εἶναι ἢ διότι microετέχει ἐκείνου τοῦ καλοῦ (100c4-6)

Esta sentenccedila afirma claramente que 1) o Belo ele mesmo eacute belo e 2) que

se alguma outra coisa tambeacutem eacute bela entatildeo ela eacute bela por participar no Belo ele

mesmo Ora de acordo com Allen e Cherniss 1) dever ser entendido como ldquoo

Belo ele mesmo eacute idecircntico ao Belordquo Sendo assim 2) estaria afirmando a seguinte

absurdidade ldquoSe alguma outra coisa eacute idecircntica ao Belo ele mesmo entatildeo esta

coisa eacute idecircntica ao Belo ele mesmo porque participa no Belo ele mesmordquo Isto no

entanto contradiz de maneira oacutebvia a Teoria das Ideias Afinal toda coisa bela

incluindo objetos sensiacuteveis seria idecircntica agrave Forma da Beleza Aleacutem disso a

proacutepria participaccedilatildeo teria como resultado a identidade entre a coisa participante e

a Forma participada

Uma uacuteltima interpretaccedilatildeo que pretende negar que a sentenccedila ldquoa F-idade eacute

Frdquo forneccedila uma descriccedilatildeo da Forma F-idade foi apresentada pelo proacuteprio Vlastos

quem primeiro identificou (AP) Anos depois de sua primeira publicaccedilatildeo sobre o

assunto Vlastos decide mudar sua interpretaccedilatildeo para o sentido de sentenccedilas auto-

predicativas envolvendo Formas Segundo ele a compreensatildeo de sentenccedilas da

1991 p 67-68)

56 Note que a mesma ocorrecircncia de καλὸν serve de predicado tanto para τί ἄλλο quanto para αὐτὸ τὸ καλόν Portanto a mesma anaacutelise deve ser oferecida para ldquo τί ἄλλο ἐστιν καλὸνrdquo e ldquo αὐτὸ

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282

forma ldquoa F-idade eacute Frdquo como casos de (AP) levaria a contradiccedilotildees tatildeo evidentes

que Platatildeo natildeo poderia ter deixado de notaacute-las No Protaacutegoras (330c7-8) por

exemplo Soacutecrates afirma que a ldquoJusticcedila eacute justardquo e logo apoacutes que a ldquoPiedade eacute

piardquo De acordo com Vlastos estas sentenccedilas natildeo podem representar descriccedilotildees

pois na condiccedilatildeo de Formas a Justiccedila e a Piedade natildeo poderiam ser justas ou

pias Estes atributos morais aplicam-se a pessoas ou atitudes e natildeo faria qualquer

sentido afirmar que uma entidade inteligiacutevel universal possui uma qualidade

moral Assim Vlastos admite que o Belo do Banquete seja belo ou que a Unidade

seja uacutenica pois a proacutepria condiccedilatildeo de Formas platocircnicas exige que natildeo soacute o Belo

e a Unidade mas de fato todas as Formas sejam belas e uacutenicas Poreacutem nenhuma

Forma incluindo a Justiccedila poderia ser justa na medida em que nenhuma entidade

inteligiacutevel universal eacute capaz de realizar atitudes passiacuteveis de julgamento moral

Como anaacutelise para sentenccedilas do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo nas quais o termo F

natildeo representa uma caracteriacutestica proacutepria das Formas enquanto Formas Vlastos

propotildee a seguinte anaacutelise ldquoNecessariamente se x participa de F-idade entatildeo x eacute

Frdquo (Vlastos 1972 p252-265) Deste modo afirmaccedilotildees do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo

natildeo teriam uma Forma como sujeito mas ofereceriam uma descriccedilatildeo da classe de

coisas que participam em F-idade Inspirado em uma passagem de Satildeo Paulo

(Carta aos Coriacutentios I 13 4-8) Vlastos denomina o tipo de predicaccedilatildeo por ele

descrito como ldquopredicaccedilatildeo paulinardquo

Em sua epiacutestola Satildeo Paulo faz afirmaccedilotildees como ldquoa caridade eacute piardquo e ldquoa

caridade eacute magnacircnimardquo De acordo com Vlastos o que S Paulo pretende dizer

por meio destas sentenccedilas eacute que ldquotodo aquele que eacute caridoso eacute tambeacutem piedoso e

magnacircnimordquo Assim transposto para o contexto platocircnico as afirmaccedilotildees do

Protaacutegoras natildeo estariam afirmando rigorosamente nada sobre as Formas da

Justiccedila e Piedade mas apenas sustentando a tese de que ldquotodo aquele que participa

da Justiccedila eacute justordquo Deste modo casos problemaacuteticos de auto-predicaccedilatildeo de

Formas ficariam reduzidos a casos de predicaccedilotildees gerais sobre coisas sensiacuteveis

O problema gerado pela anaacutelise proposta por Vlastos possui natureza

essencialmente conceitual Para comeccedilar a teoria da predicaccedilatildeo paulina pressupotildee

que sentenccedilas envolvendo Formas como sujeito possam ser diretamente

traduzidas em sentenccedilas envolvendo somente particulares sensiacuteveis isto eacute no

τὸ καλόν ἐστιν καλὸνrdquo

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caso de termos uma sentenccedila do tipo ldquoa F-idade eacute xrdquo estariacuteamos falando natildeo da F-

idade mas do conjunto de coisas sensiacuteveis que satildeo F Como observa Fronterotta

(2001 p250-251) isto vai de encontro agrave proacutepria concepccedilatildeo de Forma como uma

entidade separada dos objetos sensiacuteveis que dela participam De acordo com a

ontologia socraacutetica a Forma F-idade natildeo corresponde agrave soma dos objetos que satildeo

F mas caracteriza-se por ser ontologicamente distinta destas coisas Portanto

qualquer anaacutelise que resulte em confusatildeo ou sobreposiccedilatildeo entre o que eacute a F-idade

e o que satildeo os muacuteltiplos objetos sensiacuteveis que possuem a propriedade de serem F

estaacute sujeita agrave criacutetica de estar ignorando a distinccedilatildeo mais fundamental da Teoria das

Ideias

Suponha por exemplo uma relaccedilatildeo entre Formas expressa na sentenccedila ldquoa

F-idade eacute a G-idaderdquo Segundo Vlastos estas sentenccedilas deveriam ter sua

veracidade comprovada por meio da verificaccedilatildeo da relaccedilatildeo de inclusatildeo entre o

conjunto de coisas que satildeo F e o conjunto de coisas que satildeo G Uma relaccedilatildeo entre

Formas ficaria reduzida no espiacuterito da teoria da predicaccedilatildeo paulina a uma relaccedilatildeo

entre extensotildees de conjuntos de coisas Entretanto isto violaria a prioridade

ontoloacutegica e epistemoloacutegica das Formas em relaccedilatildeo aos objetos sensiacuteveis e uma

relaccedilatildeo entre coisas seria responsaacutevel pelo estabelecimento de uma relaccedilatildeo entre

Formas quando uma anaacutelise fiel aos princiacutepios da Teoria das Ideias deveria

apresentar exatamente o oposto

Podemos concluir portanto que nenhum dos autores acima mencionados

conseguiram oferecer uma anaacutelise para sentenccedilas do tipo ldquoA F-idade eacute Frdquo que

livrasse Soacutecrates de (AP) e consequentemente do Argumento do Terceiro

Homem Tentar afirmar que sentenccedilas auto-predicativas envolvendo Formas natildeo

oferecem descriccedilotildees e portanto natildeo satildeo legiacutetimas predicaccedilotildees resulta em

distorccedilotildees tatildeo gritantes do conteuacutedo dos diaacutelogos que natildeo podemos aceitar este

tipo de anaacutelise

Tendo descartado as interpretaccedilotildees que pretendem livrar Soacutecrates de (AP)

por meio da afirmaccedilatildeo de que a sentenccedila ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo constituiria uma

descriccedilatildeo da Forma F-idade podemos nos voltar para a segunda estrateacutegia adota

pelos comentadores com o objetivo de invalidar o Argumento do Terceiro

Homem Como dito anteriormente este segundo grupo de inteacuterpretes assume que

sentenccedilas auto-predicativas oferecem uma descriccedilatildeo da Forma que ocupa o lugar

de sujeito poreacutem alegam que esta descriccedilatildeo natildeo eacute suficiente para agruparmos a

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Forma F-idade com os diversos objetos sensiacuteveis que satildeo F Isto porque a Forma

F-idade natildeo receberia o predicado F da mesma maneira que objetos sensiacuteveis (a

b c) o recebem Teriacuteamos portanto dois tipos distintos de predicaccedilatildeo a F-idade eacute

F poreacutem de um modo completamente diferente das coisas (a b c) serem F Uma

vez que o predicado F natildeo estaria sendo aplicado de maneira uniacutevoca a Formas e

coisas a inclusatildeo de F-idade no conjunto de coisas (a b c) necessaacuteria para

gerarmos o regresso ao infinito natildeo estaria justificada e todo o argumento seria

invalidado

De acordo com os proponentes desta tese a fonte textual para atribuirmos

este tipo de interpretaccedilatildeo a Platatildeo estaria nos textos em que Soacutecrates descreve a

relaccedilatildeo entre Formas e coisas como uma relaccedilatildeo anaacuteloga agravequela entre um Modelo

ou Original (παραδείγmicroατα) e suas coacutepias (εἰκόνες) imagens (ei)dwla) ou

imitaccedilotildees (mimhmata) Uma vez que tenhamos em mente afirmam estes

comentadores que Soacutecrates entende a relaccedilatildeo entre Formas e coisas da mesma

maneira que entendemos a relaccedilatildeo entre um Modelo e suas coacutepias (um Original e

suas imagens) seremos levados a concluir que a sentenccedila ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo

atribui o predicado F a seu sujeito do mesmo modo que a sentenccedila ldquox eacute Frdquo atribui

o predicado F ao objeto sensiacutevel x

Ora para que este argumento seja realmente efetivo eacute preciso que fique

especificado exatamente qual eacute esta relaccedilatildeo entre um ModeloOriginal e suas

coacutepiasimagens que quando transposta para relaccedilatildeo entre Formas e coisas

sensiacuteveis eacute capaz de falsificar (AP) Uma explicaccedilatildeo repetidamente apresentada

pelos comentadores baseia-se na relaccedilatildeo entre um padratildeo (standard) de medida e

as muacuteltiplas coisas que podem ser alvo de mediccedilatildeo em comparaccedilatildeo a este

padratildeo57 De acordo com este tipo de argumentaccedilatildeo uma Forma deveria ser

comparada a um Modelo de medida como por exemplo o padratildeo do Metro

contido na Academia de Medidas Francesa Aceitando esta analogia seriacuteamos

levados a ver que assim como o Metro padratildeo natildeo possui a medida de um metro

uma vez que ele eacute o proacuteprio modelo para a aplicaccedilatildeo deste predicado tambeacutem F-

idade natildeo pode ser dita F ou classificada como uma coisa F

Um testemunho de grande peso eacute neste contexto evocado pelos

defensores deste tipo de interpretaccedilatildeo que citam Wittgenstein ldquoHaacute uma uacutenica

57 Este tipo de argmentaccedilatildeo eacute explicitamente adotado por Bluck em ldquoForms as Standardsrdquo (1957)

e Allen (1960 p 45-47) sendo por vezes defendido por Patterson (1985)

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coisa sobre a qual natildeo podemos dizer que tem um metro de comprimento nem que

natildeo tem um metro de comprimento esta coisa eacute o padratildeo do metro situado em

Parisrdquo (Investigaccedilotildees Filosoacuteficas 50) Esta afirmaccedilatildeo seria suficiente para colocar

Wittgenstein ao lado daqueles que acham que assim como natildeo podemos dizer do

padratildeo do Metro que ele possui um metro de comprimento tampouco poderiacuteamos

dizer de F-idade que ela eacute F

Conforme demonstrado por Malcolm (1991 p 70-72) a explicaccedilatildeo para a

enigmaacutetica sentenccedila de Wittgenstein deve ser buscada na sua teoria de que nomear

e descrever satildeo essencialmente atos de fala distintos De fato na seccedilatildeo

imediatamente anterior a esta afirmaccedilatildeo Wittgenstein nos diz ldquoNomear e

descrever natildeo estatildeo no mesmo niacutevel a nomeaccedilatildeo eacute uma preparaccedilatildeo para

descriccedilatildeordquo (Investigaccedilotildees Filosoacuteficas 49) Devemos entender portanto que ao

nomearmos uma determinada barra de ferro em Paris como o Modelo do Metro

natildeo estamos descrevendo esta barra mas estabelecendo um padratildeo que serviraacute

para posterior descriccedilatildeo desta medida Assim o criteacuterio de verdade da sentenccedila ldquoo

Metro tem um metrordquo eacute estabelecido por nomeaccedilatildeo enquanto o criteacuterio de

verdade para descriccedilatildeo ldquoesta mesa tem um metrordquo eacute estabelecido por comparaccedilatildeo

ao Modelo de metro ldquoesta mesa tem um metrordquo soacute eacute uma sentenccedila verdadeira

quando a mesa possuir o mesmo comprimento do Metro Modelo

A pergunta que devemos fazer eacute se este ato de nomeaccedilatildeo anula por

completo a possibilidade de subsequentes descriccedilotildees deste Modelo Considerando

por exemplo que o ato de nomeaccedilatildeo se daacute uma uacutenica vez entatildeo nunca mais

poderiacuteamos fazer afirmaccedilotildees sobre o comprimento da barra de ferro situada na

Academia de Medidas Francesa Eacute muito mais razoaacutevel acreditarmos que seu

estabelecimento como Modelo eacute aquilo que nos permite descrevecirc-la como tendo

um metro de comprimento Nada parece obrigar que o estabelecimento de um

padratildeo sirva de preparaccedilatildeo para que apenas outras coisas sejam descritas

Podemos considerar inclusive que o estabelecimento de um padratildeo depende da

realizaccedilatildeo de dois atos simultacircneos a descriccedilatildeo de uma propriedade deste padratildeo

e a nomeaccedilatildeo desta entidade como Modelo para subsequente aplicaccedilotildees desta

descriccedilatildeo Sendo assim creio que a afirmaccedilatildeo de Wittgenstein estaacute restrita ao

acircmbito do momento de estabelecimento do Modelo do Metro De fato para

estabelecermos um comprimento como padratildeo de metro precisamos nomeaacute-lo e

natildeo descrevecirc-lo Poreacutem apoacutes estabelecido este padratildeo natildeo haacute motivo aparente

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para negar que possamos descrever o Metro Modelo como tendo um metro de

comprimento

Assim se utilizarmos a relaccedilatildeo entre o padratildeo do Metro e as coisas

descritas como tendo um metro de comprimento para entender a relaccedilatildeo entre

Formas e coisas veremos que esta analogia natildeo eacute suficiente para combater a

validade de (AP) Mesmo natildeo havendo um momento de nomeaccedilatildeo da Forma de F-

idade como padratildeo o que os comentadores que fazem uso da discussatildeo iniciada

por Wittgenstein pretendem afirmar eacute que assim como o criteacuterio de

estabelecimento da verdade de ldquoa mesa tem um metrordquo natildeo pode ser o mesmo

criteacuterio de estabelecimento da verdade de ldquoo Metro tem um metrordquo tambeacutem o

criteacuterio de verdade de ldquoF-idade eacute Frdquo deve ser distinto do criteacuterio de verdade de ldquoa

eacute Frdquo

Contudo se as coisas de um metro possuem a mesma medida do padratildeo de

Metro entatildeo logicamente o padratildeo de Metro possui a mesma medida das coisas

de um metro Sendo assim se o comprimento destas coisas pode ser descrito pelo

predicado ldquoter um metrordquo entatildeo o Metro padratildeo tambeacutem deve poder ser descrito

pelo mesmo predicado No caso das Formas se a b c satildeo F em virtude da F-

idade entatildeo de acordo com a analogia proposta a b c possuem a mesma

propriedade que F-idade e somos obrigados a admitir que ldquoa F-idade eacute Frdquo do

mesmo modo que ldquoa b c satildeo Frdquo a despeito do criteacuterio para o estabelecimento da

verdade das sentenccedilas ldquoa eacute Frdquo ldquob eacute Frdquo e ldquoc eacute Frdquo ser diferente daquele usado para

estabelecer a verdade de ldquoa F-idade eacute Frdquo Entender a relaccedilatildeo entre Formas e coisas

como anaacuteloga agrave relaccedilatildeo entre um padratildeo e as coisas descritas a partir deste padratildeo

natildeo fornece uma saiacuteda ao Argumento do Terceiro Homem

Outra proposta de compreensatildeo para a natureza da remissatildeo

Modelocoacutepias parece oferecer uma explicaccedilatildeo muito mais promissora para

relaccedilatildeo entre Formas e coisas Alguns autores como Allen (1960 p48-52) Geach

(1956) e Patterson (1985) sugerem que entendamos a relaccedilatildeo entre Formas e

coisas em analogia agrave relaccedilatildeo entre um determinado objeto e suas muacuteltiplas

imagens Neste tipo de relaccedilatildeo alegam estes comentadores eacute muito claro que as

imagens natildeo satildeo um caso de F da mesma maneira que o original eacute F Pense por

exemplo na relaccedilatildeo entre um gato e as diversas fotos deste gato Parece muito

oacutebvio que o gato original recebe o predicado ldquoser-um-gatordquo de um modo muito

diferente de suas imagens pois estas falando estritamente natildeo satildeo gatos

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Seguindo esta analogia a Forma da F-idade seria a uacutenica coisa realmente F

enquanto as muacuteltiplas coisas sensiacuteveis receberiam este predicado de uma maneira

derivativa por serem uma imagem de F-idade De acordo com esta interpretaccedilatildeo

Formas seriam Modelos ou Originais (παραδείγmicroατα) dos quais os objetos

sensiacuteveis representariam imagens (ei)dwla εἰκόνες) ou imitaccedilotildees (mimhmata)

Uma primeira criacutetica possiacutevel a esta interpretaccedilatildeo consiste em afirmar que

a relaccedilatildeo Originalimagens eacute de natureza muito estrita para servir como uma

explicaccedilatildeo adequada para relaccedilatildeo entre Formas e coisas Uma imagem deve

representar com maior ou menor sucesso as caracteriacutesticas aspectuais de seu

original e inversamente um original deve conter as caracteriacutesticas aspectuais de

suas imagens Poreacutem qual original de aacutervore poderia conter em si as

caracteriacutesticas aspectuais de todas as aacutervores sensiacuteveis Se um triacircngulo precisa

ser ou isoacutesceles ou equilaacutetero ou escaleno e natildeo pode ter estas trecircs caracteriacutesticas

simultaneamente como a Triangularidade poderia servir como um uacutenico Modelo

para imagens com caracteriacutesticas mutuamente excludentes

Esta criacutetica contudo pode ser facilmente contornada por meio da alegaccedilatildeo

de que a relaccedilatildeo Originalimagens natildeo precisa ser entendida de maneira tatildeo

restrita Eacute possiacutevel pensar por exemplo que o Original soacute possuiria as

caracteriacutesticas aspectuais essenciais enquanto as diferenccedilas especiacuteficas estariam

manifestas apenas em suas imagens A Triangularidade teria a caracteriacutestica de

possuir trecircs lados iguais e apenas suas imagens sensiacuteveis seriam triacircngulos

equilaacuteteros isoacutesceles ou escalenos Outra saiacuteda seria aumentar o nuacutemero de

Originais afirmando a existecircncia de uma Forma da Triangularidade Isoacutesceles

outra Escalena e outra Equilaacutetero Estas modificaccedilotildees no entanto teriam como

resultado por um lado uma extensatildeo indesejada do conjunto de Formas que

passaria a incluir Formas de espeacutecies e por outro lado o enfraquecimento da

proacutepria analogia entre Originalimagens proposta inicialmente

Patterson (1985 p42) adota a primeira destas duas linhas de

argumentaccedilatildeo e procura evitar resultados problemaacuteticos traccedilando uma diferenccedila

entre coacutepias e imagens Para Patterson enquanto ser-uma-coacutepia implicaria em

assemelhar-se ao Original mantendo suas caracteriacutesticas aspectuais ser-uma-

imagem natildeo traria esta implicaccedilatildeo Para defender esta distinccedilatildeo Patterson eacute

obrigado a forccedilar o vocabulaacuterio platocircnico entendendo por imagens natildeo soacute o termo

ei)dwla como tambeacutem o(moiw=mata εἰκόνες e mimhmata que agrave primeira vista

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implicariam na estrita semelhanccedila entre Original e coacutepias

Apoacutes destituir a relaccedilatildeo Originalimagens da necessidade de semelhanccedila

entre seus dois elementos Patterson reinterpreta sua analogia inicial como uma

relaccedilatildeo entre ldquouma natureza abstrata e um exemplo concreto ou entre a natureza

inteligiacutevel de F ele mesmo e aquilo que concretamente possui ou tem a natureza

de F ele mesmordquo (Patterson 1985 p 95) Ora eacute muito evidente que atraveacutes deste

movimento Patterson estaacute abandonando por completo a relaccedilatildeo Originalimagem

inicialmente proposta e passando a entender os objetos sensiacuteveis ldquoexemplos

concretosrdquo das Formas que por sua vez satildeo entendidas como ldquonaturezas

inteligiacuteveis ou abstratasrdquo

Como o caso de Patterson deixa evidente compreender a relaccedilatildeo

Originalimagens sem pressupor qualquer niacutevel de semelhanccedila entre estes dois

elementos representa uma grande subversatildeo agrave natureza desta relaccedilatildeo Poreacutem

mesmo que seja possiacutevel compreender que uma imagem natildeo se assemelha ao

original de que eacute imagem seria preciso demonstrar ainda que o personagem

Soacutecrates estaacute entendendo a relaccedilatildeo entre Formas e coisas sensiacuteveis em analogia a

esta compreensatildeo sui generis de imagens que natildeo guardam qualquer semelhanccedila

com seu original Se olharmos para as passagens em que Soacutecrates trata os objetos

sensiacuteveis como imagens ou imitaccedilotildees das Formas no entanto veremos que a

relaccedilatildeo de semelhanccedila entre Formas e coisas estaacute sempre pressuposta

Um exemplo oferecido por Patterson (1985 p61) sugere que imagens

sonhadas natildeo se assemelham de modo algum aos seus originais pois natildeo podem

realmente possuir as propriedades que seus originais possuem Contudo para que

seja estabelecida uma relaccedilatildeo de semelhanccedila natildeo eacute preciso que as imagens sejam

como seus originas basta que as imagens pareccedilam com seus originais Uma prova

disto eacute que reconhecemos quando algueacutem familiar aparece em nossos sonhos Se

somos capazes de reconhecer algueacutem em sonhos eacute porque a imagem que

experienciamos se assemelha de algum modo agrave pessoal real Soacutecrates parece

corroborar esta anaacutelise trivial para relaccedilatildeo entre imagens sonhadas e originais e

na Repuacuteblica (476c5-7) nos explica que o sonhar (τὸ ὀνειρώττειν) quer

dormindo quer acordado nada mais eacute do que ldquocrer que o semelhante a algo (τὸ

ὅmicroοιόν τῳ) natildeo eacute semelhante a algo mas aquilo mesmo com o que se parece (microὴ

ὅmicroοιον ἀλλ αὐτὸ ἡγῆται εἶναι ᾧ ἔοικεν)rdquo

As passagens em que o termo εἰκών eacute usado para designar objetos

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sensiacuteveis tampouco parecem oferecer o material necessaacuterio para a anaacutelise de

ldquoimagens natildeo semelhantes a seu originalrdquo desejada por Patterson Em Repuacuteblica

(506b) Soacutecrates eacute instigado a discursar sobre o Bem poreacutem se recusa

consentindo em falar sobre ldquoo rebento do Bem e o que haacute de mais semelhante

possiacutevel a elerdquo (ὃς δὲ ἔκγονός τε τοῦ ἀγαθοῦ φαίνεται καὶ ὁmicroοιότατος ἐκείνῳ

506e3) Este rebento mais tarde nos eacute revelado trata-se do sol e em 509a9

Soacutecrates se refere a ele como ldquoa imagem do Bemrdquo (τὴν εἰκόνα αὐτοῦ)

Novamente a relaccedilatildeo entre imagem e original se daacute por semelhanccedila O sol eacute uma

imagem do Bem porque eacute ldquoo que haacute de mais semelhante a elerdquo (ὁmicroοιότατος

ἐκείνῳ)

Do mesmo modo na passagem da linha dividida a primeira seccedilatildeo da linha

estaacute reservada agraves imagens Soacutecrates oferece a seguinte explicaccedilatildeo para o que estas

imagens satildeo

ldquoChamo imagens (τὰς εἰκόνας) em primeiro lugar as sombras (τὰς σκιάς) em seguida os reflexos nas aacuteguas (τὰ ἐν τοῖς ὕδασι φαντάσmicroατα) e em todas aquelas superfiacutecies que satildeo compactas lisas e brilhantes e tudo mais deste tipordquo λέγω δὲ τὰς εἰκόνας πρῶτον microὲν τὰς σκιάς ἔπειτα τὰ ἐν τοῖς ὕδασι φαντάσmicroατα καὶ ἐν τοῖς ὅσα πυκνά τε καὶ λεῖα καὶ φανὰ συνέστηκεν καὶ πᾶν τὸ τοιοῦτον (510a1-3)

A descriccedilatildeo de εἰκόνες como ldquosombrasrdquo e ldquofantasmasrdquo parece favorecer a

equaccedilatildeo entre os termos εἰκών e ei)dwlon e a noccedilatildeo de imagem-dessemelhante

desejada por Patterson No entanto na continuaccedilatildeo do argumento Soacutecrates pede

para que na segunda seccedilatildeo da linha sejam colocadas as coisas que datildeo origens agraves

imagens da primeira seccedilatildeo isto eacute os objetos empiacutericos sensiacuteveis Em seguida

Soacutecrates passa para a parte do inteligiacutevel e descreve a primeira seccedilatildeo desta parte

como aquela em que a alma utiliza como se fossem imagens (ὡς εἰκόσιν χρωmicroένη

ψυχὴ) as coisas que antes eram imitadas (τοῖς τότε microιmicroηθεῖσιν) O exemplo

utilizado por Soacutecrates vem da Geometria

ldquoSabes tambeacutem que eles (os geocircmetras) utilizam figuras visiacuteveis e constroem raciociacutenios sobre elas embora natildeo seja nelas que pensem mas em outras coisas agraves quais essas se parecem (οἷς ταῦτα ἔοικε) construindo raciociacutenios em vista do quadrado ele mesmo (τοῦ τετραγώνου αὐτοῦ) da diagonal ela mesma (διαmicroέτρου αὐτῆς) e natildeo da diagonal que traccedilam e assim tambeacutem para as outras figuras Todas aquelas que eles modelam ou traccedilam das quais haacute sombras e imagens nas aacuteguas (ὧν καὶ σκιαὶ καὶ ἐν ὕδασιν εἰκόνες εἰσίν) eles as utilizam como se fossem imagens (ὡς εἰκόσιν αὖ χρώmicroενοι) ao procurar ver aquelas coisas mesmas que

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natildeo se vecircem senatildeo pelo pensamentordquo Οὐκοῦν καὶ ὅτι τοῖς ὁρωmicroένοις εἴδεσι προσχρῶνται καὶ τοὺς λόγους περὶ αὐτῶν ποιοῦνται οὐ περὶ τούτων διανοούmicroενοι ἀλλ ἐκείνων πέρι οἷς ταῦτα ἔοικε τοῦ τετραγώνου αὐτοῦ ἕνεκα τοὺς λόγους ποιούmicroενοι καὶ διαmicroέτρου αὐτῆς ἀλλ οὐ ταύτης ἣν γράφουσιν καὶ τἆλλα οὕτως αὐτὰ microὲν ταῦτα ἃ πλάττουσίν τε καὶ γράφουσιν ὧν καὶ σκιαὶ καὶ ἐν ὕδασιν εἰκόνες εἰσίν τούτοις microὲν ὡς εἰκόσιν αὖ χρώmicroενοι ζητοῦντες δὲ αὐτὰ ἐκεῖνα ἰδεῖν ἃ οὐκ ἂν ἄλλως ἴδοι τις ἢ τῇ διανοίᾳ (510d5-511a1)

O resultado final das relaccedilotildees de proporccedilatildeo entre os diversos segmentos da

linha eacute que os objetos sensiacuteveis satildeo imagens (εἰκόνες) das Formas tal como as

sombras e reflexos na aacutegua (σκιάς τὰ ἐν τοῖς ὕδασι φαντάσmicroατα) satildeo imagens

destes mesmos objetos Contudo o que a menccedilatildeo aos procedimentos geomeacutetricos

deixa claro eacute que a relaccedilatildeo entre imagens e original deve ser entendida durante

toda passagem por meio da noccedilatildeo de semelhanccedila Do mesmo modo que minhas

imagens (sombras e reflexos em uma superfiacutecie daacutegua) se parecem comigo

tambeacutem os graacuteficos e desenhos satildeo utilizados pelos geocircmetras como se fossem

imagens (ὡς εἰκόσιν αὖ χρώmicroενοι) das Formas inteligiacuteveis porque com elas se

parecem (οἷς ταῦτα ἔοικε) Em suma imagens (εἰκόνες) satildeo imagens de coisas

com as quais guardam similaridades e compartilham propriedades de outro modo

natildeo haveria porque um geocircmetra desenhar quadrados com a intenccedilatildeo de estudar o

Quadrado ideal

Portanto considero as passagens acima citadas suficientes para comprovar

que Soacutecrates entendia por εἰκόνες o que normalmente entendemos por imagens

isto eacute algo fundamentalmente distinto daquilo de que eacute imagem poreacutem que

guarda algum tipo de semelhanccedila com o original ao qual remete Sendo assim

podemos descartar a interpretaccedilatildeo de Patterson que pretende fazer uso da relaccedilatildeo

Originalimagens como forma de compreensatildeo da relaccedilatildeo Formascoisas poreacutem

negando que haja qualquer tipo de semelhanccedila entre os dois elementos de cada

uma destes pares

A relaccedilatildeo Originalimagens contudo natildeo pode ser completamente

abandonada como um possiacutevel modelo de compreensatildeo para relaccedilatildeo entre Formas

e coisas pois a partir desta analogia ainda eacute possiacutevel extrairmos uma interpretaccedilatildeo

que falsifique (AP) Considere a relaccedilatildeo entre Simmias e os diversos retratos de

Simmias Quando pegamos um dos retratos de Simmias e perguntamos quem eacute a

pessoa neste retrato A resposta que recebemos eacute esta pessoa eacute Simmias

Evidentemente esta resposta nos eacute dada em funccedilatildeo da semelhanccedila entre o

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Simmias original e a imagem de Simmias no retrato pois eacute esta semelhanccedila o que

nos permite dizer que tanto Simmias quanto suas imagens possuem a propriedade

de ser-Simmias Apesar disto estas coisas possuem a propriedade de ser-Simmias

de maneiras distintas a imagem de Simmias no retrato eacute Simmias poreacutem em um

sentido diferente daquele em que Simmias eacute Simmias Como vimos a

transposiccedilatildeo desta relaccedilatildeo para o caso envolvendo Formas e coisas poderia

fornecer uma saiacuteda ao Argumento do Terceiro Homem Afinal de acordo com este

modelo a Forma F-idade eacute F de uma maneira distinta das coisas (a b c) o que

falsificaria (AP)

No entanto uma nova criacutetica pode ser dirigida agravequeles que defendem este

tipo de interpretaccedilatildeo segundo a qual a F-idade e os muacuteltiplos objetos sensiacuteveis

que dela satildeo imagens natildeo recebem o predicado F univocamente Afinal se uma

coisa sensiacutevel natildeo possui o predicado F do mesmo modo que a F-idade como esta

Forma poderia servir de Modelo (Original ou Paradigma) para a aplicaccedilatildeo do

predicado que esta coisa sensiacutevel possui

Suponha por exemplo que F1 e F2 representam os diferentes modos em

que o predicado F pode ser aplicado Assim diriacuteamos que a F-idade eacute F1

enquanto um objeto sensiacutevel x eacute F2 Neste caso como F-idade que eacute

exclusivamente F1 poderia servir de Modelo ou Paradigma para aplicaccedilatildeo do

predicado F2 nos objetos sensiacuteveis Para ser um ModeloOriginalParadigma dos

objetos sensiacuteveis que recebem o predicado F a Forma precisa ser um

ModeloOriginalParadigma de aplicaccedilatildeo do mesmo predicado F possuiacutedo pelos

objetos sensiacuteveis Pois se a relaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis estaacute fundada

no fato de que os objetos sensiacuteveis recebem o predicado F em virtude da F-idade

por que neste caso exatamente F-idade e natildeo outra Forma seria a causa da

propriedade F nas coisas sensiacuteveis Caso natildeo aceitemos que Formas e coisas

compartilhem um mesmo predicado de maneira uniacutevoca natildeo temos razotildees

suficientes para identificar a F-idade (ao inveacutes de G-idade) como causa da

caracteriacutestica F encontrada nos objetos sensiacuteveis

Em Feacutedon (74b-c) por exemplo a visatildeo de um par de pedaccedilos de

madeiras iguais em comprimento eacute capaz de nos fazer lembrar a Forma da

Igualdade com a qual tivemos contato antes de nascermos Ora se o par de

madeiras em questatildeo natildeo possui a mesma propriedade que a Forma da Igualdade

por que entatildeo nos lembrariacuteamos desta Forma e natildeo de qualquer outra Da mesma

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maneira o Banquete (210-211) nos apresenta um percurso de ascensatildeo que inicia-

se nos corpos discursos e ciecircncias sensiacuteveis para chegar ao Belo ele mesmo

Aceitando que o Belo natildeo compartilha uma mesma propriedade com estes corpos

discursos e ciecircncias por que seriam exatamente estas coisas sensiacuteveis que

formariam o caminho para o Belo

Em resposta a este tipo de criacuteticas algumas interpretaccedilotildees pretendem

abordar a diferenccedila entre o modo de uma Forma e uma coisa sensiacutevel receberem o

mesmo predicado F por meio da qualificaccedilatildeo da relaccedilatildeo de predicaccedilatildeo Assim

estariacuteamos falando de um mesmo predicado F poreacutem de duas relaccedilotildees de

predicaccedilatildeo natildeo uniacutevocas Podemos pensar por exemplo que enquanto a Forma F-

idade recebe o predicado F de maneira necessaacuteria os objetos sensiacuteveis satildeo F

apenas de maneira contingente Supostamente esta explicaccedilatildeo seria suficiente

para evidenciar dois modos natildeo-uniacutevocos de predicaccedilatildeo portanto falsificando

(AP) sem trazer as indesejadas consequecircncias acima descritas

Na realidade contudo esta distinccedilatildeo natildeo eacute capaz de desqualificar

univocidade Caso contraacuterio teriacuteamos que admitir que as sentenccedilas ldquoTodo

torcedor do Vasco eacute necessariamente vascaiacutenordquo e ldquoEu sou contingentemente

vascaiacutenordquo apresentam o predicado ldquoser-vascaiacutenordquo de maneira distinta Aleacutem disso

teriacuteamos que negar que a sentenccedila ldquoEu sou contingentemente torcedor do Vascordquo

pode ser corretamente inferida das duas sentenccedilas anteriores Acrescentar um

operador modal como qualificaccedilatildeo do predicado F natildeo eacute suficiente para produzir

um novo predicado natildeo-uniacuteco a F Portanto sob a luz desta distinccedilatildeo Formas e

coisas continuam possuindo o mesmo predicado e tanto (AP) quanto o Argumento

do Terceiro Homem continuam vaacutelidos

Outra tentativa de negar a aparente univocidade entre a aplicaccedilatildeo de um

predicado a uma Forma e a aplicaccedilatildeo deste mesmo predicado aos objetos

sensiacuteveis consiste em apelar para distinccedilatildeo entre predicaccedilatildeo per se e predicaccedilatildeo

per aliud Em paralelo agrave distinccedilatildeo aristoteacutelica entre predicaccedilatildeo essencial e

predicaccedilatildeo acidental alguns comentadores reconhecem em Platatildeo a diferenciaccedilatildeo

entre um tipo de predicaccedilatildeo ldquoem virtude de sua proacutepria naturezardquo (per se) e um

segundo tipo de predicaccedilatildeo ldquoem virtude de outra coisardquo (per aliud) Assim

enquanto as Formas receberiam seus predicados per se de maneira proacutepria os

objetos sensiacuteveis receberiam seus predicados per aliud de maneira derivativa

Entendida deste modo a auto-predicaccedilatildeo de uma Forma seria uma espeacutecie de

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definiccedilatildeo miacutenima desta entidade Alegadamente isto faria com que natildeo

pudeacutessemos reduzir sentenccedilas auto-predicativas envolvendo Formas a meras

identidades ao mesmo tempo em que diferenciariacuteamos dois modos natildeo uniacutevocos

de predicaccedilatildeo

De fato esta distinccedilatildeo parece se encaixar nos paracircmetros traccedilados pela

Teoria das Ideias Tal como as substacircncias aristoteacutelicas as Formas recebem seus

predicados de maneira natildeo derivativa (per se) enquanto as coisas que participam

das Formas recebem seus predicados em virtude desta participaccedilatildeo (per aliud) No

entanto a questatildeo relevante para nossa discussatildeo eacute se este tipo de distinccedilatildeo eacute

capaz de falsificar (AP) e bloquear a reduccedilatildeo ao infinito proposta por Parmecircnides

Como observa Teloh (1981 p124) a distinccedilatildeo proposta explica a aplicaccedilatildeo

de predicados por meio de relaccedilotildees entre entidades mas certamente este tipo de

explicaccedilatildeo eacute compatiacutevel com predicados uniacutevocos A aplicaccedilatildeo de um predicado a

entidades de tipos distintos por si soacute natildeo eacute suficiente para concluirmos uma

diferenccedila de sentido deste predicado Mesmo entendendo as Formas como sujeitos

proacuteprios de F e os objetos sensiacuteveis como sujeitos derivados deste mesmo

predicado natildeo somos obrigados a abandonar a tese da unidade de sentido do

predicado em questatildeo Por outro lado caso usemos esta distinccedilatildeo como base para

uma diferenciaccedilatildeo de sentido entre predicados per se e per aliud voltaremos ao

problema anteriormente descrito de considerar as Formas como causas de

propriedades que natildeo possuem e inversamente os objetos sensiacuteveis como

recebendo por derivaccedilatildeo predicados distintos daqueles possuiacutedos pelas Formas

O maior problema da distinccedilatildeo entre aplicaccedilatildeo per se e per aliud como

soluccedilatildeo ao Argumento do Terceiro Homem contudo estaacute no fato desta distinccedilatildeo

natildeo poder ser encontrada na Teoria das Ideias apresentada pelo personagem

Soacutecrates no Parmecircnides ou em qualquer outro diaacutelogo O primeiro autor a

reconhecer a possibilidade de uma aplicaccedilatildeo da diferenciaccedilatildeo entre estes dois

modos natildeo uniacutevocos de aplicaccedilatildeo de um mesmo predicado foi Frede (1967) De

acordo com Frede a diferenccedila entre uma predicaccedilatildeo que definiria o que uma coisa

eacute em virtude de si mesmo e uma predicaccedilatildeo ordinaacuteria que apenas descreveria os

atributos desta coisa estaacute pressuposta na investigaccedilatildeo sobre as relaccedilotildees entre os

gecircneros do Sofista sobretudo em 255c12-13 Posteriormente Meinwald (1991)

aplicou a distinccedilatildeo proposta por Frede em sua anaacutelise dos argumentos da segunda

parte do Parmecircnides afirmando explicitamente que a diferenciaccedilatildeo entre

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predicaccedilotildees per se e per aliud seria capaz de bloquear o Argumento do Terceiro

Homem

Ora em nenhum destes dois casos eacute o personagem Soacutecrates quem propotildee

as anaacutelises que dariam ensejo agrave distinccedilatildeo entre os dois modos natildeo uniacutevocos de

predicaccedilatildeo No Sofista quem apresenta as relaccedilotildees entre os gecircneros supremos eacute

um Estrangeiro de Eleacuteia enquanto no Parmecircnides eacute o proacuteprio Parmecircnides quem

conduz as deduccedilotildees da segunda parte do diaacutelogo Em ambos os casos Soacutecrates

natildeo estaacute envolvido nas discussotildees e muito menos apresenta explicitamente sua

Teoria das Ideias como fonte da distinccedilatildeo em questatildeo Portanto mesmo que

admitamos que uma diferenciaccedilatildeo entre predicaccedilotildees per se e per aliud pode

bloquear os regressos apresentados por Parmecircnides o que natildeo necessariamente eacute

o caso como explica Teloh (1981 p124) natildeo temos motivos algum para afirmar

que Soacutecrates estaacute de posse desta distinccedilatildeo Sendo assim como criacutetica agrave

formulaccedilatildeo claacutessica da Teoria das Ideias o Argumento do Terceiro Homem segue

sendo vaacutelido

Deste modo podemos concluir que a segunda estrateacutegia adotada para

falsificar (AP) e livrar a Teoria das Ideias do regresso ao infinito demonstrado por

Parmecircnides tampouco representa uma alternativa viaacutevel Entender a F-idade em

analogia a um padratildeo (standard) como o Metro Modelo natildeo impede que usemos

o predicado F para descrevecirc-la Por outro lado ao tentarmos apelar para relaccedilatildeo

Originalimagens como forma de entender modos natildeo uniacutevocos de se possuir um

mesmo predicado ou bem acabamos por ter que aceitar a semelhanccedila entre

imagens e Original abrindo caminho para o Argumento do Terceiro Homem ou

bem somos obrigados a reconhecer a existecircncia de imagens natildeo semelhantes a

seus originais o que eacute certamente absurdo aleacutem de ir contra o texto dos diaacutelogos

Por fim a tentativa de distinguir entre dois sentidos de aplicaccedilatildeo de um mesmo

predicado implica em tornar os objetos sensiacuteveis tatildeo distintos das Formas das

quais derivam seus predicados que o proacuteprio papel causal das Formas acaba por

tornar-se arbitraacuterio

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44 Conclusatildeo do quarto capiacutetulo

Como resultado de suas criacuteticas Parmecircnides passa a pressupor que natildeo

pode haver qualquer tipo de relaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis Sua

conclusatildeo estaacute fundada no fato de Soacutecrates se mostrar incapaz de fornecer uma

explicaccedilatildeo para natureza da relaccedilatildeo entre estes dois acircmbitos da realidade que natildeo

resulte na destruiccedilatildeo da unidade caracteriacutestica das Formas

ldquoEstaacute vendo entatildeo Soacutecrates quatildeo grande eacute a aporia se algueacutem determinar as Formas sendo em si e por si Sim certamente Pois fica sabendo que por assim dizer ainda natildeo a tocas tamanha eacute a aporia que surge se sempre ao definir algo puseres cada um dos seres como uma Forma uacutenicardquo Ὁρᾷς οὖν φάναι ὦ Σώκρατες ὅση ἡ ἀπορία ἐάν τις ὡς εἴδη ὄντα αὐτὰ καθ αὑτὰ διορίζηται Καὶ microάλα Εὖ τοίνυν ἴσθι φάναι ὅτι ὡς ἔπος εἰπεῖν οὐδέπω ἅπτῃ αὐτῆς ὅση ἐστὶν ἡ ἀπορία εἰ ἓν εἶδος ἕκαστον τῶν ὄντων ἀεί τι ἀφοριζόmicroενος θήσεις (133a8-b2)

A menccedilatildeo de Parmecircnides agrave independecircncia ontoloacutegica (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e agrave

unidade caracteriacutestica das Formas (ἓν εἶδος ἕκαστον τῶν ὄντων) retoma os temas

enunciados na abertura de suas criacutetica Por serem ldquoem si e por sirdquo e

necessariamente unitaacuterias as Formas natildeo podem estar em noacutes (microηδεmicroίαν αὐτῶν

εἶναι ἐν ἡmicroῖν 133c6-7) Afinal cada uma das explicaccedilotildees socraacuteticas para relaccedilatildeo

entre Formas e coisas resultou na multiplicaccedilatildeo (numeacuterica ou aspectual) das

Formas Como por princiacutepio natildeo podemos aceitar que as Formas deixem de ser

entidades uacutenicas Parmecircnides passa a apresentar as consequecircncias paradoxais

decorrentes da postulaccedilatildeo de entidades uniformes e ontologicamente

independentes poreacutem completamente separadas das coisas sensiacuteveis

ldquoHaacute muitas outras dificuldade disse ele mas a maior eacute a seguinte se algueacutem dissesse que nem mesmo cabe serem elas as Formas conhecidas se forem tal como dizemos que devem ser a este algueacutem que assim falasse natildeo poderia provar que se engana (hellip) Como assim Parmecircnides disse Soacutecrates Porque Soacutecrates creio que tu e qualquer outro que potildee haver alguma essecircncia mesma em si e por si de cada coisas (αὐτήν τινα καθ αὑτὴν ἑκάστου οὐσίαν) concordariacuteeis antes de mais nada que nenhuma delas estaacute entre noacutes (microηδεmicroίαν αὐτῶν εἶναι ἐν ἡmicroῖν)

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Pois neste caso como seria ela ainda em si e por si disse Soacutecrates Eacute correto o que dizes disse Parmecircnides Entatildeo tambeacutem dentre as Formas todas aquelas que satildeo o que satildeo na relaccedilatildeo umas com as outras eacute na relaccedilatildeo delas mesmas umas com as outras que elas tecircm a sua essecircncia e natildeo na relaccedilatildeo com as coisas entre noacutes (hellip) Quanto as coisas que satildeo entre noacutes estas por sua vez sendo homocircnimas daquelas satildeo elas mesmas na relaccedilatildeo umas com as outras e natildeo na relaccedilatildeo com as Formas () Que queres dizer disse Soacutecrates Por exemplo disse Parmecircnides se algum de noacutes eacute senhor ou escravo de algueacutem natildeo eacute certamente daquele Senhor mesmo (αὐτοῦ δεσπότου) daquilo que eacute realmente Senhor (ὃ ἔστι δεσπότης) que ele eacute escravo nem eacute do Escravo mesmo (αὐτοῦ δούλου) daquilo que realmente eacute Escravo (ὃ ἔστι δοῦλος) que o senhor eacute senhor mas sendo homem eacute de um homem que ele eacute ambas essas coisas Por outro lado a Senhoria mesma eacute o que eacute da Escravidatildeo mesma e do mesmo modo a Escravidatildeo mesma eacute Escravidatildeo da Senhoria mesma As coisas entre noacutes natildeo tecircm seu poder em relaccedilatildeo agravequelas nem aquelas em relaccedilatildeo a noacutes Πολλὰ microὲν καὶ ἄλλα φάναι microέγιστον δὲ τόδε εἴ τις φαίη microηδὲ προσήκειν αὐτὰ γιγνώσκεσθαι ὄντα τοιαῦτα οἷά φαmicroεν δεῖν εἶναι τὰ εἴδη τῷ ταῦτα λέγοντι οὐκ ἂν ἔχοι τις ἐνδείξασθαι ὅτι ψεύδεται () Πῇ δή ὦ Παρmicroενίδη φάναι τὸν Σωκράτη Ὅτι ὦ Σώκρατες οἶmicroαι ἂν καὶ σὲ καὶ ἄλλον ὅστις αὐτήν τινα καθ αὑτὴν ἑκάστου οὐσίαν τίθεται εἶναι ὁmicroολογῆσαι ἂν πρῶτον microὲν microηδεmicroίαν αὐτῶν εἶναι ἐν ἡmicroῖν Πῶς γὰρ ἂν αὐτὴ καθ αὑτὴν ἔτι εἴη φάναι τὸν Σωκράτη Οὐκοῦν καὶ ὅσαι τῶν ἰδεῶν πρὸς ἀλλήλας εἰσὶν αἵ εἰσιν αὐταὶ πρὸς αὑτὰς τὴν οὐσίαν ἔχουσιν ἀλλ οὐ πρὸς τὰ παρ ἡmicroῖν () τὰ δὲ παρ ἡmicroῖν ταῦτα ὁmicroώνυmicroα ὄντα ἐκείνοις αὐτὰ αὖ πρὸς αὑτά ἐστιν ἀλλ οὐ πρὸς τὰ εἴδη (hellip) Πῶς λέγεις φάναι τὸν Σωκράτη Οἷον φάναι τὸν Παρmicroενίδην εἴ τις ἡmicroῶν του δεσπότης ἢ δοῦλός ἐστιν οὐκ αὐτοῦ δεσπότου δήπου ὃ ἔστι δεσπότης ἐκείνου δοῦλός ἐστιν οὐδὲ αὐτοῦ δούλου ὃ ἔστι δοῦλος δεσπότης ὁ δεσπότης ἀλλ ἄνθρωπος ὢν ἀνθρώπου ἀmicroφότερα ταῦτ ἐστίν αὐτὴ δὲ δεσποτεία αὐτῆς δουλείας ἐστὶν ὅ ἐστι καὶ δουλεία ὡσαύτως αὐτὴ δουλεία αὐτῆς δεσποτείας ἀλλ οὐ τὰ ἐν ἡmicroῖν πρὸς ἐκεῖνα τὴν δύναmicroιν ἔχει οὐδὲ ἐκεῖνα πρὸς ἡmicroᾶς (133b4-e5)

Desprovidos do poder causal exercido pelas Formas os objetos sensiacuteveis

manifestam suas propriedades unicamente em funccedilatildeo das relaccedilotildees mantidas entre

si Parmecircnides continua falando em participaccedilatildeo (microετέχοντες 133d2) No entanto

tendo sido eliminada a possibilidade de relaccedilatildeo causal entre Formas e coisas a

participaccedilatildeo restringe-se a cada uma destas duas esferas da realidade objetos

sensiacuteveis participam de relaccedilotildees com outros objetos sensiacuteveis enquanto Formas

participam de relaccedilotildees com outras Formas Como consequecircncia a Forma do

Senhor possui a propriedade de ser-senhor apenas em relaccedilatildeo agrave Forma do Escravo

e por outro lado o senhor sensiacutevel adquire esta propriedade unicamente em

funccedilatildeo da sua relaccedilatildeo com um escravo sensiacutevel

Neste caso contudo seraacute preciso reconhecer que caso exista uma ciecircncia

das Formas esta ciecircncia estaacute restrita ao acircmbito das entidades inteligiacuteveis e nada

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diz sobre as coisas do mundo sensiacutevel E por outro lado a ciecircncia relativa aos

objetos sensiacuteveis estaria limitada a seu proacuteprio acircmbito da realidade e em nada

dependeria das Formas

ldquoEntatildeo disse ele tambeacutem a Ciecircncia mesma (ἐπιστήmicroη αὐτὴ) aquilo que realmente eacute Ciecircncia (ὃ ἔστι ἐπιστήmicroη) eacute daquela Verdade mesma daquilo que realmente eacute Verdade (τῆς ὃ ἔστιν ἀλήθεια αὐτῆς) que ela seria ciecircncia natildeo eacute Perfeitamente () Mas a ciecircncia entre noacutes (παρ ἡmicroῖν ἐπιστήmicroη) natildeo seria ciecircncia da verdade entre noacutes (παρ ἡmicroῖν ἀληθείας) e por sua vez cada ciecircncia entre noacutes natildeo resultaria ser ciecircncia de cada um dos seres entre noacutes (τῶν παρ ἡmicroῖν ὄντων ἑκάστου) Necessariamente (hellip) Logo por noacutes pelo menos nenhuma das Formas eacute conhecida jaacute que natildeo participamos da Ciecircncia mesma Parece que natildeo Logo eacute-nos incognosciacutevel tanto o Belo mesmo o que realmente eacute (αὐτὸ τὸ καλὸν ὃ ἔστι) como o Bem e todas as coisas que concebemos como sendo Ideias mesmas (πάντα ἃ δὴ ὡς ἰδέας αὐτὰς οὔσας)rdquo Οὐκοῦν καὶ ἐπιστήmicroη φάναι αὐτὴ microὲν ὃ ἔστι ἐπιστήmicroη τῆς ὃ ἔστιν ἀλήθεια αὐτῆς ἂν ἐκείνης εἴη ἐπιστήmicroη Πάνυ γε Ἡ δὲ παρ ἡmicroῖν ἐπιστήmicroη οὐ τῆς παρ ἡmicroῖν ἂν ἀληθείας εἴη καὶ αὖ ἑκάστη ἡ παρ ἡmicroῖν ἐπιστήmicroη τῶν παρ ἡmicroῖν ὄντων ἑκάστου ἂν ἐπιστήmicroη συmicroβαίνοι εἶναι Ἀνάγκη Οὐκ ἄρα ὑπό γε ἡmicroῶν γιγνώσκεται τῶν εἰδῶν οὐδέν ἐπειδὴ αὐτῆς ἐπιστήmicroης οὐ microετέχοmicroεν Οὐκ ἔοικεν Ἄγνωστον ἄρα ἡmicroῖν καὶ αὐτὸ τὸ καλὸν ὃ ἔστι καὶ τὸ ἀγαθὸν καὶ πάντα ἃ δὴ ὡς ἰδέας αὐτὰς οὔσας ὑπολαmicroβάνοmicroεν

Como resultado teriacuteamos que nos contentar com o conhecimento

imperfeito que a instabilidade ontoloacutegica das coisas sensiacuteveis eacute capaz de nos

proporcionar e reconhecer que somente os deuses poderiam obter o conhecimento

seguro fornecido pelas Formas O argumento como um todo nos convida a

questionar o valor da postulaccedilatildeo de entidades inteligiacuteveis Afinal se as coisas

sensiacuteveis recebem suas propriedades por meio das relaccedilotildees que mantecircm entre si

natildeo teriacuteamos motivos para nos preocupar com as Formas entidades

completamente irrelevantes para o andamento e conhecimento do mundo em que

vivemos

Restringindo o resultado da argumentaccedilatildeo de Parmecircnides ao nosso

diaacutelogo podemos concluir que a Teoria das Ideias natildeo representa uma saiacuteda

legiacutetima ao problema da predicaccedilatildeo de opostos exemplificado no paradoxo de

Zenatildeo Afinal para figurarem em uma relaccedilatildeo de participaccedilatildeo com os objetos

sensiacuteveis as Formas precisariam abrir matildeo de sua unidade caracteriacutestica o que as

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submeteria ao mesmo tipo de problema relacionado agrave predicaccedilatildeo de opostos

apontado por Zenatildeo nos objetos sensiacuteveis

No entanto as criacuteticas de Parmecircnides extrapolam o acircmbito do debate

contido no Parmecircnides e configuram-se como uma refutaccedilatildeo da proacutepria ontologia

socraacutetica Pois se Soacutecrates propotildee que entendamos as Formas como causas das

propriedades dos objetos sensiacuteveis entatildeo haacute de haver algum tipo de relaccedilatildeo entre

estas entidades A argumentaccedilatildeo acima exposta contudo demonstra que uma

explicaccedilatildeo para este relacionamento que natildeo resulte na destruiccedilatildeo do proacuteprio

modo de ser das Formas ainda natildeo estaacute disponiacutevel Afinal cada uma das hipoacuteteses

socraacuteticas para natureza da relaccedilatildeo entre coisas e Formas levou inexoravelmente agrave

dissoluccedilatildeo da unidade caracteriacutestica destas entidades Por outro lado caso

quiseacutessemos sustentar a unidade das Formas a qualquer custo afirmando sua

completa separaccedilatildeo das coisas sensiacuteveis as Formas passariam a ser

incognosciacuteveis e completamente irrelevantes

Haacute portanto um niacutetido paradoxo no interior da ontologia socraacutetica

Somente porque possui um modo de ser natildeo relacional e separado uma Forma eacute

ontologicamente prioritaacuteria uacutenica indivisiacutevel e auto-predicativa podendo ser

apresentada como causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e soluccedilatildeo para o

problema da copresenccedila de opostos No entanto para cumprirem seu papel de

causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis as Formas precisam estar em relaccedilatildeo

com as entidades do mundo empiacuterico E como demonstra Parmecircnides esta

relaccedilatildeo eacute suficiente para modificar a natureza das Formas tornando-as entidades

muacuteltiplas sujeitas a predicaccedilatildeo de opostos e tatildeo auto-contraditoacuterias quanto os

objetos sensiacuteveis

Portanto se a interpretaccedilatildeo aqui proposta estaacute correta a primeira parte do

diaacutelogo Parmecircnides revela um problema real e indiscutiacutevel na Teoria das Ideias

defendida pelo personagem Soacutecrates nos diaacutelogos meacutedios e iniciais Natildeo por

acaso Platatildeo como resultado final de sua anaacutelise criacutetica da ontologia socraacutetica

coloca na boca de Parmecircnides as seguintes palavras carregadas de dramaticidade

ldquoQue faraacutes da Filosofia Para onde te voltaraacutes sendo estas coisas desconhecidasrdquo

Τί οὖν ποιήσεις φιλοσοφίας πέρι πῇ τρέψῃ ἀγνοουmicroένων τούτων (135c5-6)

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Page 4: 4 O Diálogo Parmênides e a Ontologia Socrática

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considerada um argumento a seu favor Um imitador dificilmente estaria disposto a fazer de sua obra um relato de um relato de um relatordquo (Waddell 1894 pxvii)

Temos ainda como um argumento a favor da autenticidade de nosso

diaacutelogo o fato de que encontramos em diversas obras do corpus platocircnico

referecircncias bastante claras tanto ao conteuacutedo filosoacutefico discutido no Parmecircnides

quanto agrave cena dramaacutetica nele descrita A apresentaccedilatildeo destas passagens ao lado de

passagens do proacuteprio Parmecircnides deve ser suficiente para deixar claro ao leitor o

grau de intertextualidade existente Assim com relaccedilatildeo primeiro destes dois tipos

de referecircncias encontramos as seguintes passagens no corpus em que haacute clara

alusatildeo a assuntos tratados no Parmecircnides Fileb14c-15 cf Parm129 c-d 131a e

ainda Fed102b cf Parm130e Com relaccedilatildeo ao segundo tipo de referecircncia

encontramos passagens de outros diaacutelogos em que a conversa narrada no

Parmecircnides eacute explicitamente evocada por Soacutecrates Teet183 cf Parm127b e

Sofist217c(237a) cf Parm 1373

Por fim eacute preciso observar que o Parmecircnides foi objeto de intensa anaacutelise

estilomeacutetrica pois a especificidade de seu vocabulaacuterio sempre se mostrou um

desafio para o estabelecimento de sua posiccedilatildeo no interior da seacuterie de diaacutelogos Os

resultados destas anaacutelises estiliacutesticas na grande maioria da vezes indicaram a

autenticidade de nosso diaacutelogo como podemos constatar pelas compilaccedilotildees

desenvolvidas por Lutoslawski (1897) e Brandwood (1990)

No entanto nossa apresentaccedilatildeo ficaria incompleta caso natildeo citaacutessemos os

argumentos desenvolvidos por Ritter com o objetivo de questionar a autenticidade

do Parmecircnides Em sua obra Untersuchungen uumlber Platon (1888) Ritter se

propotildee a verificar a autenticidade de certos diaacutelogos ldquoduvidososrdquo por meio de

uma anaacutelise estiliacutestica destas obras A metodologia adotada por Ritter eacute certamente

questionaacutevel Pois segundo ele ldquoqualquer obra suspeita que apresente uma

3 Deixo ao leitor o julgamento acerca do grau de paralelismo existente entre esta passagens

Anteriormente argumentei contra o uso deste tipo de referecircncia textual entre os diaacutelogos como forma de estabelecer relaccedilotildees cronoloacutegicas de composiccedilatildeo pois conforme dito na ocasiatildeo o fato do Teeteto fazer menccedilatildeo ao Parmecircnides natildeo implica necessariamente que Platatildeo tenha escrito o Teeteto antes Platatildeo pode muito bem ter mencionado uma cena dramaacutetica sobre a qual ainda intencionava escrever A existecircncia deste tipo de menccedilatildeo me parece poder seu usado contudo para sustentar a autenticidade de uma obra em relaccedilatildeo a outra Claro que natildeo estamos falando de uma prova definitiva de autenticidade pois um falsaacuterio poderia estar citando obras conhecidas de Platatildeo No entanto como vimos a intertextualidade e a referecircncia entre diaacutelogos eacute uma propriedade essencial da obra platocircnica e portanto um diaacutelogo tatildeo inserido em relaccedilotildees intertextuais como o Parmecircnides compartilha segundo meu ponto de vista de uma das caracteriacutesticas principais da obra platocircnica

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surpreendente mistura de expressotildees caracteriacutesticas de diferentes periacuteodos

[estiliacutesticos] deve ser imediatamente declarada espuacuteriardquo (cf Brandwood 1990

p83) Ora tal afirmaccedilatildeo reflete uma confianccedila claramente exacerbada acerca das

capacidades do meacutetodo estilomeacutetrico Afinal para podermos declarar tatildeo

prontamente a inautenticidade de uma obra segundo este criteacuterio devemos

acreditar que Platatildeo natildeo sofreu mudanccedilas gradativas de estilo mas tornou-se

praticamente um novo autor a cada mudanccedila de fase No entanto apesar de

nenhum dos pontos apresentados por Ritter poder ser usado como prova absoluta

para inautenticidade a soma destes elementos poderia a princiacutepio fortalecer

argumentos de outra natureza aumentando assim o grau de suspeita com relaccedilatildeo

agrave autoria de algum diaacutelogo Com relaccedilatildeo ao Parmecircnides Ritter apresenta a

seguinte lista de elementos desviantes

1) No Parmecircnides a distribuiccedilatildeo de palavras usadas para introduzir

discursos diretos eacute diferente daquela que encontramos nos outros

diaacutelogos Para a terceira pessoa do verbo φηmicroί por exemplo

temos no Parmecircnides a seguinte relaccedilatildeo 19 ἔφη 2 εἶπε 0 ἦ δ

ὅς Nos outros diaacutelogos temos apenas um caso de εἶπε (RepVII) e

encontramos em meacutedia 1 ἦ δ ὅς para cada 5 ἔφη

2) O Parmecircnides emprega apenas nomes no caso vocativo como

forma de dirigir a palavra a algueacutem enquanto os outros diaacutelogos

usam foacutermulas como ὦ ἄριστε ὦ ἑταῖρε e ὦ φίλε com frequecircncia

(Men 47 Teet 50 Feacutedr 37 Craacutet33 poreacutem Fileacuteb 7)

3) A mudanccedila de orador eacute mais frequente no Parmecircnides do que em

qualquer outra obra a meacutedia do Parmecircnides eacute de 9 a 10 mudanccedilas

de orador por paacutegina enquanto que a maior frequecircncia em outras

obras estaacute no Sofista com apenas 4 por paacutegina

4) Duas foacutermulas de resposta satildeo usadas mais no Parmecircnides do que

em qualquer outra obra ἀδύνατον e ἀνάγκη

5) οὐδὲ microὴν como jaacute havia sido notado por Dittenberger ocorre mais

no Parmecircnides do que em qualquer outra obra

6) Finalmente πῶς δ οὔ aparece de forma preponderante em relaccedilatildeo

a πῶς γὰρ οὐ (216) enquanto nas outras obras esta relaccedilatildeo nunca

eacute tatildeo diacutespare sendo o Poliacutetico (148) o diaacutelogo com a proporccedilatildeo

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mais proacutexima agravequela do Parmecircnides

(Brandwood 1990 p86)

Estas idiossincrasias de estilo contudo podem ser compreendidas caso

tenhamos em mente que o Parmecircnides possui longas falas de personagens que natildeo

aparecem em nenhum outro diaacutelogo platocircnico Eacute portanto natural que a

linguagem deste diaacutelogo desvie do restante da obra platocircnica Sendo assim o natildeo

uso de expressotildees vocativas como ὦ ἄριστε por exemplo pode muito bem ser

uma decisatildeo plenamente consciente de Platatildeo Assim considerada a ausecircncia

destas expressotildees no Parmecircnides denota apenas o caraacuteter direto da argumentaccedilatildeo

desenvolvida pelos personagens Parmecircnides e Zenatildeo4 Da mesma maneira a

mudanccedila constante de orador deve-se claramente ao estilo e extensatildeo da

argumentaccedilatildeo desenvolvida na segunda parte do diaacutelogo na qual cada pequeno

passo no desenvolvimento loacutegico dos argumentos eacute confirmado pelo interlocutor

O mesmo vale com relaccedilatildeo ao uso constante das expressotildees ἀδύνατον e ἀνάγκη

que demonstram apenas o reconhecimento por parte dos interlocutores da

necessidade loacutegica inerente aos argumentos desenvolvidos no diaacutelogo Por fim

como observa Brandwood eacute preciso notar que o caraacuteter geral do Parmecircnides eacute tatildeo

proacuteprio e diverge tanto daquilo que encontramos em outros diaacutelogos que a

admissatildeo de sua autenticidade prejudicaria o argumento de Ritter com relaccedilatildeo agrave

inautenticidade de outras obras uma vez que tal argumentaccedilatildeo funda-se

exclusivamente em uma anaacutelise estiliacutestica (cf Brandwood 1990 p86)

Portanto sobre a questatildeo da autenticidade de nossa obra podemos

apresentar os seguintes resultados

1) O Parmecircnides eacute tido como autecircntico por Thrasillus (36 DC) e

muito provavelmente tambeacutem por Aristoacutefanes de Bizacircncio (180

AC) aleacutem de nenhum comentador antigo jamais ter levantado

duacutevidas sobre sua autenticidade

2) Temos fortes razotildees para acreditar que Platatildeo refere-se ao

Parmecircnides em diversas outras obras e por assim dizer nosso

diaacutelogo possui um papel de destaque na intertextualidade platocircnica

4 Aleacutem disso a ausecircncia de expressotildees como ὦ ἄριστε e ὦ ἑταῖρε eacute apenas um dos resultados da

teacutecnica de evitar hiatos adotada por Platatildeo durante a uacuteltima fase de sua carreira literaacuteria Afinal ambas expressotildees possuem hiatos e podem ser facilmente substituiacutedas

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3) A imensa maioria das anaacutelises estilomeacutetricas apresenta o

Parmecircnides como um diaacutelogo legiacutetimo Aleacutem disso a

argumentaccedilatildeo de Ritter uacutenico autor a desenvolver argumentos

estiliacutesticos contra a autenticidade de nosso diaacutelogo estaacute claramente

sujeita a criacuteticas de ordem metodoloacutegica e pelo menos a metade

de sua lista de caracteriacutesticas estiliacutesticas desviantes do Parmecircnides

(pontos 2 3 e 4) pode ser facilmente compreendida como o

resultado direto do tipo de argumentaccedilatildeo apresentada no diaacutelogo

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411 A Posiccedilatildeo do Parmecircnides no interior da obra de Platatildeo

Tendo apresentado nossas consideraccedilotildees acerca da autenticidade do

Parmecircnides passamos agora ao natildeo menos conturbado assunto do

posicionamento desta obra no interior da seacuterie de diaacutelogos platocircnicos Como

vimos os comentadores do inicio do seacuteculo XIX natildeo estavam de posse de um

criteacuterio objetivo para a ordenaccedilatildeo dos diaacutelogos contavam apenas com os criteacuterios

bastante duvidosos de referecircncia intertextual e menccedilatildeo a fatos histoacutericos

conhecidos Sendo assim as ordenaccedilotildees de diaacutelogos oferecidas por estes

comentadores fundavam-se basicamente naquilo que cada um considerava ser o

conteuacutedo da filosofia platocircnica o que os levava a resultados bastante inusitados

Deste modo a despeito disto parecer impensaacutevel para um leitor moderno

o Parmecircnides foi considerado pela maior parte dos helenistas alematildees do seacuteculo

XIX um dos primeiros diaacutelogos de Platatildeo Schleiermacher por exemplo

considera o Parmecircnides uma das primeiras obras e encontra em nosso diaacutelogo tal

como encontra no Feacutedro e no Protaacutegoras uma ldquomaneira jovial de expressatildeordquo

(Schleiermacher 1836 p115) Esta afirmaccedilatildeo de Schleiermacher eacute

posteriormente reafirmada por Hermann (1839) que ainda aponta na bibliografia

de Platatildeo uma justificativa para a identificaccedilatildeo do Parmecircnides como uma obra da

juventude Com base no testemunho de um certo Hermoacutegenes (cf Dioacutegenes

Laeacutercio II 106 III 6) segundo o qual Platatildeo teria fugido para Meacutegara logo apoacutes

a morte de Soacutecrates Hermann atribui a composiccedilatildeo do Parmecircnides ao momento

em que Platatildeo tendo por volta de vinte anos estaria entrando em contato com

pensadores de fora do circuito ateniense e socraacutetico De acordo com Hermann a

presenccedila de Parmecircnides e Zenatildeo no diaacutelogo evidencia a influecircncia megaacuterica sob a

qual o diaacutelogo teria sido escrito

A identificaccedilatildeo do Parmecircnides como uma das primeiras obras de Platatildeo

permanece prevalecente entre os classicistas alematildees ateacute Ueberweg (1861)

Ueberweg eacute o primeiro autor a questionar a veracidade do depoimento acerca da

fuga de Platatildeo para Meacutegara desfazendo assim a crenccedila no periacuteodo megaacuterico de

Platatildeo Contudo Ueberweg atribui uma data tatildeo tardia para a composiccedilatildeo do

Parmecircnides que eacute levado a crer que nosso diaacutelogo eacute uma obra espuacuteria escrita por

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algum membro da academia apoacutes a morte de Platatildeo Com o fim do mito do

periacuteodo megaacuterico de Platatildeo passamos a encontrar as propostas mais discrepantes

acerca do posicionamento do Parmecircnides e no extremo oposto da posiccedilatildeo de

Schleiermacher Zeller (1883) identifica o Parmecircnides como o diaacutelogo (natildeo-

escrito) Filosoacutefo colocando-o no fim da trilogia iniciada por Sofista e Poliacutetico no

fim da carreira literaacuteria de Platatildeo5

Com o aparecimento do meacutetodo estilomeacutetrico o Parmecircnides deixa de

figurar nos extremos das cronologias de composiccedilatildeo dos diaacutelogos e passa a ocupar

uma posiccedilatildeo intermediaacuteria que vai em pouco tempo se tornar bastante

consolidada Para sermos precisos o primeiro dos estudos estilomeacutetricos aquele

de Campbell (1867) coloca o Parmecircnides estranhamente como um dos primeiros

diaacutelogos proacuteximo a obras como Ecircutifron Apologia e Ion No entanto esta

posiccedilatildeo eacute tatildeo discrepante das expectativas gerais acerca do Parmecircnides que o

proacuteprio Campbell recusa-se a aceitaacute-la e atribui este resultado a ldquocircunstacircncias

excepcionaisrdquo sem especificar quais satildeo estas circunstacircncias (Campbell 1867

pxxxiii)

A partir do refinamento dos criteacuterios de anaacutelise estiliacutestica operado por

Dittenberger (1896) o Parmecircnides passa a ser colocado entre os uacuteltimos diaacutelogos

ocupando especialmente a posiccedilatildeo de primeiro diaacutelogo da uacuteltima fase estiliacutestica de

Platatildeo Tal posicionamento para o Parmecircnides eacute subsequentemente consolidado

pelos criteacuterios de Ritter von Arnim e Baron (cf Brandwood 1990 p251) De

fato Campbell trinta anos depois de sua primeira publicaccedilatildeo sobre o assunto

lanccedila um artigo especificamente sobre o estilo do Parmecircnides no qual apresenta

novos resultados e conclui que nosso diaacutelogo eacute certamente posterior a obras

como Repuacuteblica e Feacutedro De modo geral o trabalho de Campbell sobre o

vocabulaacuterio do Parmecircnides tambeacutem corrobora a posiccedilatildeo de Dittenberger

identificando nosso diaacutelogo ao lado do Teeteto como obras diretamente

anteriores ao Sofista e ao Poliacutetico (Campbell 1896 p129-136) Todos estes

resultados satildeo ainda reforccedilados pelas circunstacircncias jaacute notadas por Ueberweg de

que o Parmecircnides possui muito pouca accedilatildeo dramaacutetica quando comparado a

diaacutelogos como Repuacuteblica e Banquete possui trechos de discurso direto inseridos

5 Para um resumo das posiccedilotildees dos comentadores alematildees do seacuteculo XIX acerca da cronologia

de composiccedilatildeo das obras de Platatildeo (cf Lutoslawski 1897 p35-63)

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em meio a um longo discurso indireto6 e sobretudo natildeo apresenta Soacutecrates como

orador principal trecircs caracteriacutesticas proacuteprias dos diaacutelogos da uacuteltima fase

Finalmente resta observar que mesmo natildeo sendo possiacutevel determinar a

posiccedilatildeo exata de um diaacutelogo no interior de cada fase estiliacutestica podemos dizer que

o Parmecircnides possui um estilo claramente transicional possuindo um vocabulaacuterio

relativo agrave apresentaccedilatildeo claacutessica da Teoria das Ideias tal como exposta nos

diaacutelogos da fase meacutedia e ao mesmo tempo inovaccedilotildees de estilo caracteriacutesticas dos

diaacutelogos da uacuteltima fase Some-se a isso o fato de que o conteuacutedo do Parmecircnides

parece ilustrar exatamente esta dualidade apresentando uma primeira parte

voltada para questotildees relativas agrave formulaccedilatildeo claacutessica da Teoria das Ideias poreacutem

com um caraacuteter criacutetico e uma segunda parte na qual o personagem Soacutecrates

praticamente desaparece e um estilo completamente novo de argumentaccedilatildeo eacute

apresentado

Em funccedilatildeo desta soma de fatores a partir da virada do seacuteculo XX nosso

diaacutelogo passa a figurar em uma posiccedilatildeo intermediaacuteria entre a segunda e terceira

fase da obra de Platatildeo de maneira virtualmente inquestionaacutevel Esta hipoacutetese

permanece tatildeo consolidada entre os comentadores contemporacircneos que mesmo

com a imensa diversidade de interpretaccedilotildees apresentadas para nosso diaacutelogo

simplesmente desconheccedilo qualquer publicaccedilatildeo lanccedilada nos uacuteltimos cem anos em

que este posicionamento para o Parmecircnides no interior da obra de Platatildeo seja

questionado

6 Este aspecto formal eacute particularmente visiacutevel na segunda parte do Parmecircnides onde um uacutenico

φάναι inicial (137c4) antecede vaacuterias paacuteginas de discurso em forma direta

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412 O Proacutelogo do Parmecircnides

O Parmecircnides descreve um diaacutelogo travado entre Soacutecrates ainda bastante

jovem Zenatildeo Parmecircnides e Aristoacuteteles natildeo o filoacutesofo mas um jovem que viria a

se tornar um dos trinta tiranos A conversa que nos chega natildeo eacute narrada por um

dos presentes no encontro mas por Ceacutefalo que o tinha ouvido de Antifonte meio

irmatildeo de Platatildeo que havia ouvido e memorizado a conversa a partir do relato de

Pitodoro Pitodoro por sua vez havia ouvido a conversa por ser companheiro de

Zenatildeo e ter abrigado os visitantes durante sua estada em Atenas (AlcibI 119a)

Apesar de natildeo ser o uacutenico diaacutelogo a apresentar este tipo de encadeamento

narrativo7 o Parmecircnides eacute o diaacutelogo no qual o relato que nos eacute oferecido estaacute

mais distante da conversa original tanto no tempo quanto no nuacutemero de ldquoelosrdquo da

cadeia narrativa Afinal aquele que lecirc o Parmecircnides (e portanto ldquoouverdquo a

narrativa de Ceacutefalo) encontra-se no quarto estaacutegio de uma cadeia de transmissatildeo

do conteuacutedo de uma conversa que teria acontecido haacute pelo menos cinquenta anos

antes do momento dramaacutetico em que Ceacutefalo oferece seu relato8 A estrutura

narrativa descrita no proacutelogo do Parmecircnides pode ser representada pela seguinte

figura

[ZENAtildeO PARMEcircNIDES SOacuteCRATES ARISTOacuteTELES]

[PITODORO ANTIFONTE]

[ANTIFONTE CEacuteFALO]

[CEacuteFALO LEITOR]

7 O Feacutedon o Banquete e o Teeteto tambeacutem satildeo narrados por pessoas que natildeo presenciaram os

acontecimentos descritos 8 A data dramaacutetica para a realizaccedilatildeo do suposto encontro entre Parmecircnides Soacutecrates e Zenatildeo eacute

estabelecida pela menccedilatildeo agraves Grande Panateneacuteias festivais realizados de quatro em quatro anos em honra a Atenaacute Segundo o diaacutelogo Parmecircnides e Zenatildeo estariam em visita a Atenas com o objetivo de participar deste festival De acordo com as informaccedilotildees que nos satildeo fornecidas acerca da idade dos personagens do diaacutelogo (127b-c Parmecircnides teria por volta de sessenta e cinco anos Zenatildeo estaria proacuteximo dos quarenta e Soacutecrates era ainda bastante jovem) podemos estabelecer o festival do ano de 449450 AC como a data base para o encontro narrado Como Ceacutefalo natildeo busca o proacuteprio Soacutecrates para ouvir o relato deste encontro podemos deduzir ainda que no momento da chegada de Ceacutefalo e sua comitiva em Atenas Soacutecrates jaacute havia sido executado fato ocorrido em 399 AC Sendo assim ao menos cinquenta anos separam o relato de Antifonte do momento do encontro inicial Natildeo temos razatildeo para acreditar que o relato de Ceacutefalo esteja ocorrendo muito depois desta data mas as indicaccedilotildees satildeo precisas o suficiente para deixar claro ao leitor a consideraacutevel distacircncia entre a narrativa que nos chega e a conversa original

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Deste modo o Parmecircnides relata uma conversa travada entre Zenatildeo

Parmecircnides Soacutecrates e Aristoacuteteles que foi narrada por Pitodoro a Antifonte que

narrou a Ceacutefalo que por sua vez narra ao leitor Este fato nos eacute lembrado em

pelo menos duas passagens do texto nas quais a cadeia de transmissatildeo eacute

explicitada (130a e 136e) Aleacutem disso esta estrutura nunca desaparece plenamente

de vista para o leitor do texto grego pois todo o diaacutelogo eacute em forma de discurso

indireto com discursos diretos inseridos Eacute claro portanto que tamanha

complexidade de estrutura narrativa natildeo pode ser acidental Platatildeo certamente

intencionava passar alguma mensagem por meio da apresentaccedilatildeo de um proacutelogo

tatildeo cuidadosamente construiacutedo e eacute tarefa do inteacuterprete levantar hipoacuteteses acerca

destas intenccedilotildees

Como a maior parte dos comentadores observa a primeira liccedilatildeo que

podemos tirar da estrutura narrativa do Parmecircnides diz respeito agrave ausecircncia total de

veracidade histoacuterica do relato Ao estabelecer uma longa distacircncia temporal entre

a narrativa que nos eacute oferecida e o fato dramaacutetico que nos eacute narrado Platatildeo indica

ao leitor que o conteuacutedo do Parmecircnides eacute plenamente ficcional e que ningueacutem

deve tentar confirmar nenhum dos seus detalhes mesmo que um encontro entre

Parmecircnides e Soacutecrates tenha de fato acontecido coisa que a maior parte dos

comentadores considera improvaacutevel ou mesmo impossiacutevel9

A segunda conclusatildeo que podemos extrair da complexa estrutura narrativa

apresentada no Parmecircnides diz respeito ao efeito dramaacutetico que este tipo de

proacutelogo pretende criar no leitor Nosso diaacutelogo se inicia com a histoacuteria de que

cinquenta anos apoacutes um encontro entre Parmecircnides Zenatildeo e Soacutecrates um grupo

de pessoas ldquobastante interessadas em questotildees de sabedoriardquo (microάλα φιλόσοφοι) eacute

levado a deixar Clazocircmenas para cruzar o mar Egeu em busca de um ateniense

que acreditam ter informaccedilotildees sobre o que teria se passado nesta reuniatildeo Este

ateniense apesar de natildeo haver estado presente no encontro ocorrido antes mesmo

de seu nascimento considerava o conteuacutedo da conversa ali desenrolada tatildeo

importante que decidiu dedicar-se a decoraacute-la durante sua juventude A pessoa de

9 A ausecircncia de pretensatildeo histoacuterica eacute notada por praticamente todos os comentadores recentes

Mansfeld adotando 462461 como data dramaacutetica para o suposto encontro entre Parmecircnides e Soacutecrates acredita ainda que este evento nunca poderia ter acontecido como descrito por Platatildeo pois nesta data Soacutecrates teria apenas oito anos de idade ldquoNem ao menos se espera que os leitores do Parmecircnides acreditem que o encontro tenha realmente ocorridordquo (Mansfeld

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quem este ateniense ouviu a histoacuteria Pitodoro tampouco participou ativamente da

conversa poreacutem igualmente decorou o conteuacutedo do diaacutelogo e passou adiante10

O proacutelogo do Parmecircnides nos gera assim uma sensaccedilatildeo de curiosidade

acerca do texto que estamos prestes a ter acesso Aleacutem disso a longa lista de

pessoas dedicadas agrave preservaccedilatildeo do conteuacutedo desta conversa assim como a longa

jornada de Ceacutefalo e seus companheiros em busca desta narrativa nos garante a

seriedade e a importacircncia daquilo que nos seraacute revelado Como observa Allen ldquoa

proacutepria introduccedilatildeo do Parmecircnides por si soacute nos proiacutebe tratar o diaacutelogo como um

tipo estranho de piada ou trivializar o diaacutelogo como uma mera ginaacutestica ou um

exerciacutecio de detecccedilatildeo de simples falaacuteciasrdquo (Allen 1997 p71) O proacutelogo do

Parmecircnides adverte o leitor a se preparar desde o iniacutecio para a profundidade e

relevacircncia do conteuacutedo que seraacute apresentado

A caracteriacutestica mais importante da abertura de nosso diaacutelogo no entanto

parece ter passado despercebida para maior parte dos comentadores Trata-se do

fato de que a complexa estrutura narrativa montada no proacutelogo do Parmecircnides

encontra-se refletida na estrutura argumentativa do diaacutelogo Diferente da maior

parte dos diaacutelogos nos quais um mesmo interlocutor expotildee suas teses ou conduz a

refutaccedilatildeo de outro(s) personagem(s) o Parmecircnides eacute constituiacutedo por uma seacuterie de

momentos argumentativos distintos Nosso diaacutelogo comeccedila com a leitura dos

argumentos de Zenatildeo e uma menccedilatildeo aos detratores de Parmecircnides contra quem

estes argumentos satildeo endereccedilados Logo em seguida Soacutecrates aparece em cena e

passa a argumentar contra Zenatildeo Por fim Parmecircnides entra na discussatildeo e passa

a apresentar argumentos contra Soacutecrates Desta maneira temos Parmecircnides

oferecendo criacuteticas agrave Teoria das Ideias de Soacutecrates que havia sido apresentada

como uma refutaccedilatildeo agrave argumentaccedilatildeo de Zenatildeo que por sua vez havia sido

apresentada como uma criacutetica agrave tese pluralista defendida pelos detratores de

Parmecircnides Esta estrutura argumentativa pode ser representada pelo seguinte

1986 p44)

10 Eacute importante notar que no momento em que Ceacutefalo chega agrave Atenas em busca de informaccedilotildees sobre o encontro de Soacutecrates Zenatildeo e Parmecircnides todas as pessoas que estavam presentes neste encontro jaacute estatildeo mortas incluindo o proacuteprio Soacutecrates Portanto para Antifonte e Ceacutefalo assim como para o leitor do diaacutelogo o Parmecircnides narra momentos da vida de figuras de uma geraccedilatildeo passada uma geraccedilatildeo de grande importacircncia para a comunidade filosoacutefica grega cujas conversas e debates merecem ser lembrados e revividos meio seacuteculo apoacutes seu acontecimento O proacutelogo do Parmecircnides presta assim uma homenagem a esta geraccedilatildeo de pensadores jaacute perdida e o fato de Platatildeo fazer com que vaacuterios personagens tenham se dedicado ao ato de memorizar o conteuacutedo de um encontro entre estas pessoas indica ainda o apreccedilo de Platatildeo por estes indiviacuteduos

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esquema

[ PARMEcircNIDES PLURALISTAS]

[ PLURALISTAS ZENAtildeO]

[ ZENAtildeO SOacuteCRATES]

[SOacuteCRATES PARMEcircNIDES]

Da mesma forma que nossa histoacuteria eacute narrada por uma pessoa que conta o

que lhe foi narrado por outra pessoa que contou o que lhe foi narrado por outra

os argumentos do diaacutelogo satildeo ordenados de tal modo que cada um deles remete

aos resultados alcanccedilados pelos argumentos precedentes ao mesmo tempo em que

fornece a base para o argumento que se seguiraacute A estrutura argumentativa do

Parmecircnides encontra-se assim refletida e prenunciada na estrutura narrativa

descrita no proacutelogo do diaacutelogo

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413 O paradoxo de Zenatildeo

O primeiro argumento apresentado ao leitor do Parmecircnides eacute atribuiacutedo a

Zenatildeo Como sabemos Zenatildeo foi um defensor do monismo eleata e seus

argumentos receberam muito prestiacutegio ainda na antiguidade O interesse acerca

do pensamento de Zenatildeo faz com que muitos comentadores do Parmecircnides

analisem o paradoxo zenoniano presente no diaacutelogo em comparaccedilatildeo aos

argumentos do Zenatildeo histoacuterico Esta atitude pode ser vista por exemplo em

Proacuteclus que interpreta o paradoxo presente no Parmecircnides em funccedilatildeo do

conteuacutedo de uma obra atribuiacuteda a Zenatildeo na qual este paradoxo estaria descrito (In

Parm 694)11

Nos comentadores modernos esta abordagem tambeacutem parece prevalecer

Assim Cornford (Cornford 1951 p 53-62) dedica toda primeira seccedilatildeo de seu

comentaacuterio ao Parmecircnides agrave questatildeo da relaccedilatildeo entre Zenatildeo e seus oponentes da

escola pitagoacuterica Brisson (Brisson 1990 p15-28) igualmente passa boa parte

de sua introduccedilatildeo ao Parmecircnides discutindo a relaccedilatildeo entre as teses de Zenatildeo e

Parmecircnides natildeo como personagens do drama platocircnico mas como figuras

histoacutericas Ambos os autores mesmo reconhecendo a escassez de fontes sobre o

tema acabam por projetar a sua compreensatildeo do pensamento do Zenatildeo histoacuterico

na interpretaccedilatildeo do papel desta figura no interior de nosso diaacutelogo

Em contrapartida a esta atitude a importacircncia do paradoxo de Zenatildeo na

interpretaccedilatildeo do Parmecircnides tem sido na maior parte das vezes negligenciada

pelos comentadores Como observa Harte ldquomuito constantemente o interesse em

examinar a relaccedilatildeo entre as deduccedilotildees [da segunda parte do diaacutelogo] e a criacutetica de

Parmecircnides agraves Formas deu-se agraves custas de uma consideraccedilatildeo da conversa inicial

entre Soacutecrates e Zenatildeordquo (Harte 2002 p52) Uma das razotildees para esta negligecircncia

estaacute sem duacutevida no fato de que os comentadores consideram relativamente clara

a relaccedilatildeo desta conversa inicial com o restante da obra Segundo a opiniatildeo geral o

paradoxo de Zenatildeo serve como um pretexto para que Soacutecrates apresente a Teoria

11 Dillon em sua introduccedilatildeo ao Comentaacuterio ao Parmecircnides de Proacuteclus defende a tese de que

Proacuteclus daacute claros sinais de possuir um manuscrito da obra de Zenatildeo e que portanto devemos considerar vaacutelidas suas observaccedilotildees sobre o conteuacutedo desta obra A mais famosa destas observaccedilotildees afirma que o paradoxo apresentado no Parmecircnides fazia parte de um livro que conteria quarenta argumentos (cf MorrowampDillon 1987 p xxviii-xliii)

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das Ideias Sendo assim os comentadores tecem raacutepidas consideraccedilotildees sobre o

paradoxo de Zenatildeo e na maior parte das vezes jaacute em funccedilatildeo da soluccedilatildeo

apresentada por Soacutecrates para este paradoxo12

No entanto caso adotemos este tipo de interpretaccedilatildeo para o papel do

paradoxo de Zenatildeo no diaacutelogo estaremos de iniacutecio comprometendo a unidade da

argumentaccedilatildeo do Parmecircnides Pois segundo este ponto de vista o paradoxo de

Zenatildeo natildeo estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do restante do diaacutelogo e

natildeo passa de uma deixa dramaacutetica para entrada em cena de Soacutecrates e sua teoria

Sendo assim evitarei abrir a caixa de pandora do conteuacutedo do pensamento

eleaacutetico e me limitarei a oferecer uma interpretaccedilatildeo para o paradoxo de Zenatildeo agrave

altura do papel de destaque que este argumento recebe no nosso diaacutelogo No

Parmecircnides o paradoxo de Zenatildeo daacute ensejo a toda discussatildeo subsequente

Portanto segundo o princiacutepio de relaccedilatildeo entre os argumentos do diaacutelogo esboccedilado

na seccedilatildeo precedente os conceitos envolvidos neste paradoxo devem ressoar por

todo o restante da argumentaccedilatildeo

12 Allen (1997) eacute uma exceccedilatildeo

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414 Dois sentidos de multiplicidade e unidade implicado s na argumentaccedilatildeo zenoniana

A narrativa de Ceacutefalo inicia-se com a descriccedilatildeo de uma leitura puacuteblica dos

ldquoescritos de Zenatildeordquo (τῶν τοῦ Ζήνωνος γραmicromicroάτων) realizada na casa de Pitodoro

Eacute o proacuteprio Zenatildeo quem realiza a leitura e Soacutecrates acompanhado de muitos

outros faz parte da audiecircncia que se reuniu ansiosa para escutar o que seria dito

uma vez que esta era a primeira vez que tais escritos eram trazidos para Atenas

Ao final da apresentaccedilatildeo Soacutecrates pede para que seja lida novamente a primeira

hipoacutetese do primeiro argumento e ao fim diz

ldquoQue queres dizer com isso Zenatildeo Que se os seres satildeo muacuteltiplos entatildeo eacute preciso que eles sejam tanto semelhantes quanto dessemelhantes mas que isso eacute impossiacutevel pois nem as coisas dessemelhantes podem ser semelhantes nem as semelhantes dessemelhantes Natildeo eacute isso que queres dizerrdquo Πῶς φάναι ὦ Ζήνων τοῦτο λέγεις εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα ὡς ἄρα δεῖ αὐτὰ ὅmicroοιά τε εἶναι καὶ ἀνόmicroοια τοῦτο δὲ δὴ ἀδύνατον οὔτε γὰρ τὰ ἀνόmicroοια ὅmicroοια οὔτε τὰ ὅmicroοια ἀνόmicroοια οἷόν τε εἶναι οὐχ οὕτω λέγεις (127e1-5)

Zenatildeo responde afirmativamente e somos apresentados assim ao primeiro

argumento do diaacutelogo Platatildeo constroacutei este argumento de maneira bastante

resumida nos fornecendo apenas as premissas e a conclusatildeo da argumentaccedilatildeo

zenoniana Fica claro a partir do resumo de Soacutecrates que estamos lidando com

uma reduccedilatildeo ao absurdo da tese pluralista segundo a qual os seres satildeo muacuteltipos

(πολλά ἐστι τὰ ὄντα) O sentido preciso desta tese contudo natildeo estaacute claro de

imediato Sobretudo porque logo depois Soacutecrates iraacute reformulaacute-la por meio do

condicional ldquose os muacuteltipos satildeordquo ou ldquose haacute muacuteltiplas [coisas]rdquo (εἰ πολλά ἐστιν)

(128d5) No primeiro caso εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα o adjetivo πολλά (muacuteltiplos) eacute

apresentado como um predicado do sujeito ὄντα (seres) significando que os seres

satildeo muacuteltiplos no sentido de que possuem vaacuterios atributos Jaacute no segundo caso o

adjetivo substantivado [τὰ] πολλά torna-se o sujeito de uma sentenccedila absoluta

podendo ser traduzida por ldquose muacuteltiplas [coisas] satildeordquo ou ldquose haacute muacuteltiplas

[coisas]rdquo13

13 A diferenccedila entre estas duas formulaccedilotildees natildeo eacute tatildeo bem definida em grego quanto sugerem as

traduccedilotildees por mim apresentadas Afinal τὰ ὄντα pode estar subentendido como sujeito da

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Temos portanto dois sentidos distintos para o argumento de Zenatildeo O

argumento pode estar visando demonstrar a impossibilidade de uma pluralidade

numeacuterica isto eacute da tese de que haacute mais de uma coisa no mundo ou pode estar

visando demonstrar a impossibilidade de uma mesma coisa possuir mais de um

atributo Neste uacuteltimo caso seu objetivo eacute demonstrar que cada coisa eacute

perfeitamente simples homogecircnea e indivisiacutevel Naturalmente estas duas teses

satildeo independentes uma da outra Afinal podemos sustentar que soacute haacute uma coisa

no mundo poreacutem considerando esta coisa como muacuteltipla dotada de vaacuterias partes

ou atributos Ao passo que por outro lado podemos sustentar que haacute vaacuterias

coisas no entanto considerarmos cada uma delas como simples e indivisiacutevel

Soacutecrates contudo oferece tanto εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα quanto εἰ πολλά ἐστιν

como formulaccedilotildees vaacutelidas para uma mesma hipoacutetese Sendo assim devemos

entender que ao menos em nosso diaacutelogo estas duas teses estatildeo sendo

apresentadas em conjunto representando dois lados de uma mesma moeda ou

duas perspectivas complementares de uma mesma posiccedilatildeo filosoacutefica

Os personagens do Parmecircnides parecem reconhecer esta dualidade

inerente agrave argumentaccedilatildeo zenoniana Soacutecrates por exemplo daacute sinais de sua

compreensatildeo deste fato ao ressaltar ora um ora outro aspecto da argumentaccedilatildeo

zenoniana Em 127e8-128a1 por exemplo Soacutecrates pergunta a Zenatildeo

ldquoSeraacute que eacute isso que querem dizer teus argumentos natildeo outra coisa senatildeo sustentar decididamente contra tudo o que se afirma que natildeo haacute muacuteltiplas coisas (οὐ πολλά ἐστι) E disso mesmo crecircs ser prova para ti cada um dos argumentos de sorte que tambeacutem acreditas apresentar tantas provas de que natildeo haacute muacuteltiplas coisas quantos argumentos escrevestesrdquo ἆρα τοῦτό ἐστιν ὃ βούλονταί σου οἱ λόγοι οὐκ ἄλλο τι ἢ διαmicroάχεσθαι παρὰ πάντα τὰ λεγόmicroενα ὡς οὐ πολλά ἐστι καὶ τούτου αὐτοῦ οἴει σοι τεκmicroήριον εἶναι ἕκαστον τῶν λόγων ὥστε καὶ ἡγῇ τοσαῦτα τεκmicroήρια παρέχεσθαι ὅσουσπερ λόγους γέγραφας ὡς οὐκ ἔστι πολλά (127e8-128a1)

Nesta passagem por meio do uso repetitivo de expressotildees no plural

Soacutecrates indica a incongruecircncia da atitude de Zenatildeo que afirma que natildeo haver

muacuteltiplas coisas (οὐ πολλά ἐστι) natildeo obstante fazendo uso de muacuteltiplos

argumentos para provar esta afirmaccedilatildeo Como observa Soacutecrates ao tentar provar a

segunda sentenccedila o que tornaria as duas formulaccedilatildeo idecircnticas Trata-se de um caso de ambiguidade sintaacutetica em que as duas leituras satildeo possiacuteveis para cada uma das formulaccedilotildees De acordo com minha interpretaccedilatildeo este tipo de ambiguidade recorrente na primeira parte do diaacutelogo eacute proposital

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inexistecircncia de uma pluralidade de coisas por meio de muacuteltiplos argumentos

Zenatildeo comete um claacutessico caso de paradoxo performativo dando prova

justamente daquilo que ele nega ser possiacutevel

Ora fica claro que neste momento Soacutecrates estaacute tratando o argumento de

Zenatildeo como uma prova da impossibilidade da existecircncia de muacuteltiplos indiviacuteduos

ou como uma defesa da tese de que soacute haacute uma uacutenica coisa (monismo numeacuterico)

Esta identificaccedilatildeo eacute ainda reafirmada por Soacutecrates quando ele estabelece logo em

seguida a equivalecircncia entre o argumento de Zenatildeo e a tese parmeniacutedica de que

ldquoo todo eacute umrdquo (ἓν εἶναι τὸ πᾶν)

Este comentaacuterio eacute geralmente considerado como a palavra final de

Soacutecrates acerca do sentido da argumentaccedilatildeo zenoniana sendo seguido por uma

longa fala em que a Teoria das Ideias eacute apresentada e o paradoxo de Zenatildeo eacute

superado e natildeo mais invocado na discussatildeo Esta leitura do texto leva a maior

parte dos comentadores a considerar o paradoxo de Zenatildeo como uma defesa

apenas da tese do monismo numeacuterico sem que esteja implicada no paradoxo uma

prova da impossibilidade das coisas possuiacuterem muacuteltiplos atributos14 O defensor

mais radical deste tipo de interpretaccedilatildeo eacute sem duacutevida Luc Brisson (1990) que

com base nesta passagem pretende natildeo apenas limitar a argumentaccedilatildeo de Zenatildeo a

uma afirmaccedilatildeo do monismo numeacuterico como tambeacutem identificar a expressatildeo τὸ

πᾶν traduzida por ele como ldquoo universordquo ou ldquoo conjunto de todos os conjuntos de

todas as coisas sensiacuteveisrdquo como o sujeito impliacutecito de todas as formulaccedilotildees da

tese unitarista (cf Brisson 1990 p18-27)15

Entretanto a identificaccedilatildeo da argumentaccedilatildeo de Zenatildeo com o monismo

numeacuterico de Parmecircnides soacute eacute estabelecida explicitamente nesta passagem Por

todo o restante do diaacutelogo Platatildeo faz uso de expressotildees deliberadamente

ambiacuteguas para se referir tanto agrave tese pluralista alvo do paradoxo de Zenatildeo quanto

14 Vide por exemplo o comentaacuterio de Rossvaer ldquoZenatildeo toma como ponto de partida a hipoacutetese

de que as coisas satildeo muacuteltiplas Mas natildeo eacute exatamente isso o que ele quer dizer O que ele quer dizer eacute que o Ser (o todo) eacute Um tal como seu mestre (Rossvaer1983 p15) No mesmo sentido (cf Coxon 1999 p97) O uacutenico autor que reconhece a dualidade implicada na argumentaccedilatildeo de Zenatildeo eacute El Murr (2010) embora a interpretaccedilatildeo oferecida por MacCabe (1996) tambeacutem pressuponha este reconhecimento

15 Bisson vai aleacutem e identifica τὸ πᾶν como o sujeito subentendido de todas as hipoacuteteses da segunda parte do Parmecircnides (cf Brisson 1990 p18-27) No entanto ao afirmar a expressatildeo τὸ πᾶν como o sujeito oculto de todas as expressotildees em que o um aparece ligado ao verbo ldquoserrdquo tanto na primeira quanto na segunda parte do diaacutelogo Brisson estaacute oferecendo uma interpretaccedilatildeo claramente violenta ao texto do Parmecircnides Afinal Platatildeo dificilmente esconderia a chave para compreensatildeo de todo o diaacutelogo em uma uacutenica ocorrecircncia da expressatildeo

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agrave tese monista defendida por Zenatildeo e Parmecircnides Isto fica claro a partir do

inventaacuterio realizado por Giovanni Casertano que nos lista todas as formulaccedilotildees

das teses monista e pluralista presentes no Parmecircnides divididas entre afirmaccedilotildees

diretas e formulaccedilotildees hipoteacuteticas (cf Cassertano 1990 p386-388) Como

afirmaccedilotildees hipoteacuteticas em sentenccedilas condicionais temos

1) εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα (127e1)

2) εἰ γὰρ πολλὰ εἴη (127e7)

3) εἰ ἕν ἐστι (128d1)

4) εἰ πολλά ἐστιν (128d5)

5) ἡ τοῦ ἓν εἶναι (128d5)

6) εἰ πολλά ἐστι (136a6)

7) εἰ microή ἐστι πολλά (136a6)

Como assertivas diretas temos

8) ἀδύνατον δὴ καὶ πολλὰ εἶναι (127e6-7)

9) ὡς οὐ πολλά ἐστι (127e9)

10) ὡς οὐκ ἔστι πολλά (127e9-128a1)

11) ἓν φῂς εἶναι τὸ πᾶν (128a7-b1)

12) οὐ πολλά φησιν εἶναι (128b2)

13) τὸν microὲν ἓν φάναι τὸν δὲ microὴ πολλά (128b3)

14) τὰ πολλὰ λέγοντας

15) τῆς ἐmicroαυτοῦ ὑποθέσεως () εἴτε ἕν ἐστιν εἴτε microὴ ἕν (137b3-4)

Com base neste inventaacuterio eacute possiacutevel constatar que somente na passagem

nuacutemero 11 τὸ πᾶν eacute apresentado como o sujeito expliacutecito da hipoacutetese de

Parmecircnides Por todo o restante do diaacutelogo Platatildeo faz uso de expressotildees

ambiacuteguas sem sujeito definido para se referir tanto agraves teses de Parmecircnides e

Zenatildeo quanto agraves teses dos defensores do pluralismo16 Portanto dado o grande

nuacutemero de passagens em que a tese monista de Zenatildeo e Parmecircnides natildeo aparece

τὸ πᾶν em meio a esta fala aparentemente despretenciosa de Soacutecrates

16 Com a exceccedilatildeo eacute claro da sentenccedila nuacutemero 1 que como jaacute observamos apresenta πολλά como predicativo do sujeito τὰ ὄντα

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diretamente vinculada ao monismo numeacuterico natildeo temos razatildeo para projetar

aquilo que encontramos em uma uacutenica passagem como a interpretaccedilatildeo definitiva

para todas as outras

Caso tenhamos em mente a ambiguidade inerente agrave formulaccedilatildeo do

paradoxo de Zenatildeo poderemos notar que o segundo sentido de multiplicidade

implicado na sua argumentaccedilatildeo emerge como a interpretaccedilatildeo natural para outras

passagens do diaacutelogo Em uma destas passagens a possibilidade de um mesmo

indiviacuteduo possuir uma multiplicidade de partes eacute apresentada por Soacutecrates como

um dos resultados da sua soluccedilatildeo para o paradoxo Em 129c Soacutecrates diz

ldquoMas se algueacutem demonstrar que eu sou um17 e muacuteltiplas coisas que haacute nisso de espantoso Quando quiser mostrar que eu sou muacuteltiplas coisas diraacute que uma coisa eacute meu lado direito outra o esquerdo e que uma coisa eacute a frente outra a parte de traacutes e do mesmo modo com relaccedilatildeo agrave parte inferior e posterior pois participo creio da quantidade e por outro lado quando [quiser mostra] que sou um diraacute que dos sete que aqui estatildeo eu sou um homem participante que sou tambeacutem do umrdquo εἰ δ ἐmicroὲ ἕν τις ἀποδείξει ὄντα καὶ πολλά τί θαυmicroαστόν λέγων ὅταν microὲν βούληται πολλὰ ἀποφῆναι ὡς ἕτερα microὲν τὰ ἐπὶ δεξιά microού ἐστιν ἕτερα δὲ τὰ ἐπ ἀριστερά καὶ ἕτερα microὲν τὰ πρόσθεν ἕτερα δὲ τὰ ὄπισθεν καὶ ἄνω καὶ κάτω ὡσαύτως ndash πλήθους γὰρ οἶmicroαι microετέχω ndash ὅταν δὲ ἕν ἐρεῖ ὡς ἑπτὰ ἡmicroῶν ὄντων εἷς ἐγώ εἰmicroι ἄνθρωπος microετέχων καὶ τοῦ ἑνός (129c4-d1)

A importacircncia desta fala de Soacutecrates na compreensatildeo do conteuacutedo da

argumentaccedilatildeo de Zenatildeo natildeo parece ter sido notada pelos comentadores Isto deve-

se ao fato desta colocaccedilatildeo fazer parte de um discurso mais amplo no qual

Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que suas Formas estatildeo

sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos tal como estatildeo sujeitos os objetos sensiacuteveis

Contudo se limitarmos nossa interpretaccedilatildeo destas palavras de Soacutecrates agrave questatildeo

da copresenccedila de opostos a introduccedilatildeo do tema da unidade e multiplicidade torna-

se completamente incidental Afinal Soacutecrates poderia ter apresentado seu desafio

por meio de qualquer outro par de propriedades opostas Na verdade de acordo

com esta linha de raciociacutenio o aparecimento dos conceitos de unidade e

multiplicidade nesta passagem eacute inclusive desnecessaacuterio uma vez que Soacutecrates

jaacute havia formulado seu desafio por meio das propriedades ldquosemelhanterdquo e

ldquodessemelhanterdquo No entanto natildeo podemos considerar meramente ocasional esta

especiacutefica formulaccedilatildeo sobretudo em meio a uma discussatildeo centrada na questatildeo da

17 Coloco ldquoumrdquo em itaacutelico nesta e nas seguintes passagens para diferenciar o atributo ldquoser-umrdquo

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viabilidade teoacuterica da noccedilatildeo de multiplicidade Eacute claro que na dinacircmica

conversacional do diaacutelogo qualquer afirmaccedilatildeo sobre o tema da

unidademultiplicidade remete o leitor diretamente ao paradoxo de Zenatildeo e agrave

compreensatildeo de seu significado

A observaccedilatildeo de Soacutecrates deixa de ser irrelevante e passa a fazer sentido

se entendermos o paradoxo de Zenatildeo como uma prova tambeacutem da

impossibilidade de uma coisa uacutenica qualquer possuir muacuteltiplos atributos Soacutecrates

estaacute tornando expliacutecito nesta passagem o segundo sentido de multiplicidade

negado pela argumentaccedilatildeo de Zenatildeo a multiplicidade de partes ou atributos de

um mesmo indiviacuteduo Segundo Soacutecrates natildeo haacute nada de espantoso ao contraacuterio

do que pretende afirmar Zenatildeo no fato de uma dada coisa uacutenica ser tambeacutem

muacuteltipla dotada de vaacuterias partes

Portando para defender o monismo de seu mestre Parmecircnides Zenatildeo

pretende demonstrar a contradiccedilatildeo envolvida na admissatildeo da multiplicidade tout

court quer esta seja entendia como uma multiplicidade de indiviacuteduos quer como

uma multiplicidade de atributos de um mesmo indiviacuteduo Como veremos o

reconhecimento desta dualidade da argumentaccedilatildeo zenoniana se mostraraacute essencial

para a compreensatildeo dos argumentos seguintes Pois estes dois sentidos de

multiplicidade estaratildeo implicados na soluccedilatildeo de Soacutecrates para o paradoxos de

Zenatildeo assim como faratildeo parte da estrateacutegia utilizada por Parmecircnides na sua

contra-argumentaccedilatildeo agrave soluccedilatildeo socraacutetica

do artigo indefinido

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415 A reduccedilatildeo ao absurdo da tese pluralista

Tendo estabelecido os dois sentidos de multiplicidade afirmados pela tese

pluralista e negados pelo monismo de Zenatildeo e Parmecircnides podemos passar para a

anaacutelise do argumento zenoniano De acordo com o resumo apresentado por

Soacutecrates em 127e1-5 a reduccedilatildeo ao absurdo da tese pluralista eacute operada por Zenatildeo

por meio do seguinte raciociacutenio

1) Suponha que os seres satildeo muacuteltiplos (tese provisoriamente

assumida)

2) Se eles satildeo muacuteltiplos entatildeo eles satildeo tanto semelhantes quanto

dessemelhantes

3) Logo os seres satildeo tanto semelhantes quanto dessemelhantes (a

partir de 1 amp 2)

4) Ora eacute impossiacutevel que uma mesma coisa seja semelhante e

dessemelhante

5) Portanto os seres natildeo satildeo muacuteltiplos (afirma-se a negaccedilatildeo de 1

com base na contradiccedilatildeo entre 3 amp 4) 18

A invenccedilatildeo do meacutetodo de reduccedilatildeo ao absurdo que consiste em assumir

temporariamente uma tese para a partir dela derivar uma contradiccedilatildeo e assim

concluir a negaccedilatildeo da tese inicial natildeo deve ser atribuiacuteda a Zenatildeo embora

saibamos que ele tenha usado extensivamente este meacutetodo argumentativo

Segundo Thomas Heath o meacutetodo de reduccedilatildeo ao absurdo pode ter sua origem

traccedilada ateacute a escola pitagoacuterica e no tempo de Platatildeo este argumento jaacute era usado

largamente em provas matemaacuteticas envolvendo teoria dos nuacutemeros (cf Heath

1960 p294-295) Sendo assim podemos considerar que os leitores de Platatildeo natildeo

viam com estranheza este tipo de argumentaccedilatildeo

18 Trata-se de um argumento em Modus Tollendo Tollens isto eacute um argumento que neganto

(tollendo) o consequente da implicaccedilatildeo expressa na premissa nega (tollens) por consequecircncia loacutegica tambeacutem o antecedente Em notaccedilatildeo formal P rarr Q

~Q ~P

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Da mesma maneira a premissa nuacutemero 2 do argumento de Zenatildeo parece

bastante plausiacutevel e dificilmente teria sua validade objetada Zenatildeo pode estar

argumentando por exemplo que os muacuteltiplos seres como seres satildeo semelhantes

entre si enquanto que como muacuteltiplos e portanto numericamente distintos uns

dos outros satildeo dessemelhantes ou ainda que as diversas partes de um indiviacuteduo

satildeo semelhantes entre si enquanto partes de um mesmo indiviacuteduo poreacutem

dessemelhantes enquanto partes distintas

No entanto chama muita atenccedilatildeo o conteuacutedo da premissa nuacutemero 4 do

argumento Segundo esta premissa uma mesma coisa natildeo pode ser ao mesmo

tempo semelhante e dessemelhante Mas por quecirc Podemos pensar em miriacuteades

de casos em que uma mesma coisa eacute tanto semelhante quanto dessemelhante

Soacutecrates e Platatildeo por exemplo satildeo semelhantes pelo fato de ambos serem

atenienses no entanto satildeo dessemelhantes em vaacuterios outros aspectos como em

idade condiccedilatildeo social etc Enquanto inteacuterpretes devemos tentar entender porque

os interlocutores do Parmecircnides consideram intrigante e paradoxal o fato de uma

dada coisa possuir simultaneamente propriedades opostas mesmo quando estas

propriedades representam termos relativos (semelhante-dessemelhante maior-

menor etc)

A explicaccedilatildeo mais constantemente apresentada pelos comentadores segue

a mesma linha de raciociacutenio da criacutetica desenvolvida por Vlastos que citamos

anteriormente Zenatildeo estaria tratando predicados relacionais como predicados

monaacutedicos (ou adjetivos) Assim ele estaria ignorando o complemento existente

nos predicados relacionais e tratando a propriedade ldquoser semelhante a xrdquo como

equivalente agrave propriedade ldquoser semelhante simpliciterrdquo isto eacute estaria tratando um

predicado incompleto (que necessita de um complemento para ser significativo)

como um predicado completo (significativo por si soacute) Negligenciada a diferenccedila

entre estes dois tipos de predicados uma sentenccedila do tipo ldquoA eacute maior que B e

menor que Crdquo passa a ser equivalente a ldquoA eacute maior e menor simpliciterrdquo

tornando-se tatildeo contraditoacuteria quanto a sentenccedila ldquoA eacute quadrado e redondordquo

Este tipo de interpretaccedilatildeo foi primeiramente apresentada por Cornford

segundo o qual ldquonenhuma distinccedilatildeo eacute traccedilada entre qualidades e relaccedilotildees

Grandeza eacute tratada como se fosse uma qualidade como Brancura inerente agrave

pessoa granderdquo (Cornford 1951 p78) Cornford observa ainda que este tipo de

raciociacutenio parece ser particularmente favorecido pela sintaxe grega que permite

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sentenccedilas do tipo ldquoSimmias eacute grande em relaccedilatildeo (πρὸς) a Soacutecratesrdquo ou ainda

ldquoSimmias tem grandeza com relaccedilatildeo (πρὸς) a Soacutecratesrdquo nas quais o segundo

termo da relaccedilatildeo binaacuteria ldquoser-maior-querdquo natildeo eacute necessariamente introduzido por

um pronome relativo mas pode ser introduzido pela preposiccedilatildeo πρὸς Este fato

sintaacutetico teria supostamente induzido os pensadores gregos a negligenciar o

caraacuteter relacional de propriedades como ldquoser-semelhante-ardquo ou ldquoser-maior-querdquo

os levando a classificaacute-las como propriedades monaacutedicas do tipo ldquoser-brancordquo ou

ldquoser-belordquo

No entanto esta anaacutelise linguiacutestica por si soacute natildeo pode ser considerada

uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria Caso assim fosse Soacutecrates poderia simplesmente

argumentar em termos estritamente gramaticais e afirmar que usamos sentenccedilas

significativas com predicados relativos cotidianamente e que portanto o

paradoxo de Zenatildeo deveria ser simplesmente desconsiderado Pois soacute haacute

contradiccedilatildeo quando propriedades opostas satildeo atribuiacutedas a uma mesma coisa ao

mesmo tempo da mesma maneira e em relaccedilatildeo a uma mesma coisa 19

A ausecircncia de distinccedilatildeo entre predicados relacionais e predicados

completos no argumento de Zenatildeo no entanto nos remete diretamente a um tema

extremamente recorrente nos diaacutelogos a copresenccedila de propriedades opostas

Como vimos em diversos diaacutelogos Soacutecrates e seus interlocutores consideram a

copresenccedila de propriedades opostas nos objetos sensiacuteveis algo intrigante e

merecedor de uma explicaccedilatildeo teoacuterica complexa Na realidade o fato das entidades

sensiacuteveis estarem submetidas a este tipo de predicaccedilatildeo constitui aquilo que mais

propriamente as caracteriza o que fica claro pelo uso de predicados relacionais

nas demonstraccedilotildees socraacuteticas da diferenccedila entre o modo de ser das Formas e o

modo de ser das coisas do mundo sensiacutevel Assim submetidas a uma

multiplicidade de relaccedilotildees as entidades sensiacuteveis estatildeo sempre sujeitas agrave

predicaccedilatildeo de opostos o que eacute tido por Soacutecrates como uma evidecircncia de

contradiccedilatildeo interna e deficiecircncia ontoloacutegica nestes objetos

Portanto devemos entender que os predicados ldquosemelhanterdquo e

ldquodessemelhanterdquo do argumento de Zenatildeo estatildeo sendo empregados para ilustrar o

fato de que os objetos sensiacuteveis tecircm suas propriedades definidas pelas relaccedilotildees

em que estatildeo inseridos o que resulta na copresenccedila de opostos em um mesmo

19 De fato em uma passagem da Repuacuteblica IV (436b-c) Soacutecrates formula uma versatildeo da Lei da

Natildeo-Contradiccedilatildeo na qual todas estas qualificaccedilotildees satildeo mencionadas

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objeto e lhes confere um caraacuteter contraditoacuterio Ora eacute evidente que a extinccedilatildeo das

muacutetuas relaccedilotildees existentes entre os objetos sensiacuteveis seria suficiente para eliminar

o problema da copresenccedila de opostos pois um uacutenico objeto privado de qualquer

relaccedilatildeo eacute somente idecircntico a si mesmo

Eacute justamente esta a estrateacutegia da argumentaccedilatildeo zenoniana Reduzindo a

multiplicidade dos objetos sensiacuteveis a uma uacutenica entidade Zenatildeo elimina por

completo as muacuteltiplas relaccedilotildees entre eles consequentemente resolvendo o

problema da copresenccedila de opostos Assim enquanto Soacutecrates usa a copresenccedila

de opostos para caracterizar a deficiecircncia do mundo sensiacutevel e ainda postular a

existecircncia de entidades natildeo submetidas agraves relaccedilotildees que geram esta copresenccedila

Zenatildeo usa esta caracteriacutestica para negar toda possibilidade de multiplicidade

extinguindo por completo qualquer tipo de relaccedilatildeo e postulando a existecircncia de

uma uacutenica coisa privada de qualquer atributo salvo sua auto-identidade

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416 A soluccedilatildeo de Soacutecrates para o paradoxo de Zenatildeo

A despeito de todas as polecircmicas acerca da interpretaccedilatildeo do Parmecircnides a

compreensatildeo da soluccedilatildeo oferecida por Soacutecrates ao paradoxo de Zenatildeo destaca-se

como um ponto de notaacutevel consenso Os comentadores parecem concordar que a

estrateacutegia adotada por Soacutecrates consiste em desafiar o conteuacutedo da premissa

nuacutemero 4 do argumento de Zenatildeo por meio da distinccedilatildeo entre dois tipo de

entidades Formas e objetos sensiacuteveis Soacutecrates entende que os seres (τὰ ὄντα)

sobre os quais fala Zenatildeo satildeo objetos sensiacuteveis e como soluccedilatildeo ao paradoxo

apresenta as Formas como um tipo de entidade imune agrave copresenccedila de opostos

apontada por Zenatildeo

Recentemente contudo ateacute mesmo este aparente consenso foi ameaccedilado

Sandra Peterson em seu capiacutetulo sobre o Parmecircnides para The Oxford Handbook

of Plato (2008) distingue sua proacutepria interpretaccedilatildeo das interpretaccedilotildees que

atribuem a Soacutecrates uma apresentaccedilatildeo teacutecnica da Teoria das Ideias Ela acredita

que ldquose consideramos que Soacutecrates ostenta uma nova teoria de caraacuteter teacutecnico

com entidades desconhecidas [isto eacute as Formas] (hellip) natildeo percebemos o genuiacuteno

poder de sua simples refutaccedilatildeordquo (Peterson 2008 p383-411)

No entanto como se daria a soluccedilatildeo do paradoxo caso Soacutecrates natildeo

apelasse para Formas inteligiacuteveis Segundo a interpretaccedilatildeo proposta por Peterson

ldquoSoacutecrates simplesmente aponta pressuposiccedilotildees inegaacuteveis da fala cotidiana

(undeniable presuppositions of customary speech)rdquo para refutar Zenatildeo (Peterson

2008 p387) De acordo com Peterson a estrateacutegia geral da argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates consiste em demonstrar que predicados opostos satildeo ordinariamente

atribuiacutedos agraves coisas Sendo assim seu objetivo natildeo seria provar a invalidade do

argumento de Zenatildeo mas sim a sua irrelevacircncia ao fim de sua argumentaccedilatildeo

Soacutecrates teria demonstrado que o argumento de Zenatildeo natildeo apresenta um

paradoxo mas apenas uma verdade amplamente reconhecida

Peterson reconstroacutei a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates em trecircs movimentos

distintos que analisaremos separadamente O primeiro movimento eacute descrito por

ela da seguinte maneira

ldquoPrimeiro de 127e a 128b apoacutes ter esclarecido que o argumento de Zenatildeo eacute uma reduccedilatildeo

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ao absurdo da afirmaccedilatildeo de que os seres satildeo muacuteltiplos Soacutecrates leva Zenatildeo a expor sua

proacutepria crenccedila de que muacuteltiplas coisas satildeo semelhantes e dessemelhantes como por

exemplo quando Zenatildeo daacute a entender que ele e Parmecircnides satildeo semelhantes por dizerem

as mesmas coisas (128b5) e dessemelhantes por Zenatildeo dizer ldquonatildeo muacuteltiplosrdquo (not many) e

Parmecircnides dizer ldquoumrdquo (128b3ndash5) Por sugerir que haacute vaacuterios seres semelhantes em algum

aspecto e dessemelhantes em outros mesmo enquanto ele defende que natildeo pode haver

seres tanto semelhantes quanto dessemelhantes Zenatildeo eacute claramente inconsistenterdquo

(Peterson 2008 p 387)

Peterson estaacute se referindo agrave passagem por noacutes jaacute citada em que Soacutecrates

assimila o objetivo da argumentaccedilatildeo de Zenatildeo com a tese de Parmecircnides de que

tudo eacute um Segundo ela esta passagem inicia a refutaccedilatildeo do argumento ao

demonstrar que Zenatildeo eacute semelhante a Parmecircnides por ambos defenderem a tese

monista e ao mesmo tempo dessemelhante pois enquanto Zenatildeo afirma natildeo

haver muacuteltiplas coisas Parmecircnides afirma o todo ser um Contudo Peterson

parece negligenciar o fato de que em toda passagem natildeo haacute uma uacutenica ocorrecircncia

das palavras ldquosemelhanterdquo (ὅmicroοιος) ou ldquodessemelhanterdquo (ἀνόmicroοιος) Natildeo me

parece nada provaacutevel que Soacutecrates desejando demonstrar a contradiccedilatildeo apontada

por Peterson deixasse de mencionar o ponto especiacutefico de sua acusaccedilatildeo e se

limitasse a atacar aquilo que Zenatildeo ldquosugererdquo (implies) Em argumentaccedilotildees ad

hominen como esta nas quais se pretende demonstrar a existecircncia de uma

contradiccedilatildeo entre as teses que determinada pessoa defende e as atitudes desta

pessoa o valor da acusaccedilatildeo estaacute em tornar evidente a inconsistecircncia em questatildeo

Sendo assim a interpretaccedilatildeo oferecida por Peterson que pretende ler esta

passagem como a demonstraccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo acerca de temas que sequer

satildeo mencionados natildeo pode ser considerada uma interpretaccedilatildeo com suficiente

apoio textual

Nesta passagem Soacutecrates estaacute de fato realizando uma argumentaccedilatildeo ad

hominen do mesmo tipo identificado por Peterson No entanto a contradiccedilatildeo

atribuiacuteda a Zenatildeo eacute outra Como vimos ao empregar repetidamente formas

plurais para se referir aos argumentos de Zenatildeo Soacutecrates torna expliacutecita a

contradiccedilatildeo envolvida em se negar a existecircncia de muacuteltiplas coisas por meio de

muacuteltiplos argumentos Esta acusaccedilatildeo eacute cuidadosamente montada pela recorrecircncia

de expressotildees plurais para se referir aos argumentos de Zenatildeo e termina com a

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afirmaccedilatildeo claramente irocircnica de que Zenatildeo apresenta ldquomuito numerosas provasrdquo

(τεκmicroήρια πάmicroπολλα) para demonstrar sua tese de que natildeo haacute muacuteltiplas coisas

(128b2) Podemos considerar portanto que a interpretaccedilatildeo que atribui a Soacutecrates

o reconhecimento deste segundo tipo de contradiccedilatildeo possui mais apoio textual do

que a interpretaccedilatildeo oferecida por Peterson e deve ser eleita como a interpretaccedilatildeo

correta para passagem em detrimento da interpretaccedilatildeo de Peterson que lecirc a

passagem como a identificaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo natildeo mencionada

Contudo a segunda fase da argumentaccedilatildeo de Soacutecrates representaria

segundo Peterson o passo fundamental da refutaccedilatildeo ao argumento de Zenatildeo Ela

explica esta fase da seguinte maneira

ldquoSegundo Soacutecrates explicitamente apresenta a mais profunda e devastadora objeccedilatildeo (128e5ndash129a3) de que Zenatildeo ao conduzir sua reduccedilatildeo ao absurdo presume que haacute dois opostos ndash semelhanccedila e dessemelhanccedila ndash cada um deles sendo um ser (τούτοιν δὲ δυοῖν ὄντοιν) Zenatildeo presume que a semelhanccedila ela mesma eacute um item e que a dessemelhanccedila eacute um segundo e oposto item As premissas de Zenatildeo implicam a negaccedilatildeo de sua conclusatildeo E isso eacute desastrosordquo (Peterson 2008 p 387)

Portanto a ldquodevastadora objeccedilatildeordquo apresentada por Soacutecrates consiste em

demonstrar que Zenatildeo reconhece a existecircncia de pelo menos duas coisas a

semelhanccedila e a dessemelhanccedila o que estaria em clara contradiccedilatildeo com sua tese de

que natildeo haacute muacuteltiplas coisas Segundo Peterson isto acontece na seguinte

passagem

ldquoPois bem aceito disse Soacutecrates e acredito ser como dizes Mas diz-me o seguinte natildeo julgas haver uma certa forma em si e por si da semelhanccedila e por outro lado contraacuteria a tal forma uma outra aquilo que realmente eacute dessemelhante E que nestas duas coisas que satildeo tanto eu quanto vocecirc temos participaccedilatildeordquo Ἀλλ ἀποδέχοmicroαι φάναι τὸν Σωκράτη καὶ ἡγοῦmicroαι ὡς λέγεις ἔχειν τόδε δέ microοι εἰπέ οὐ νοmicroίζεις εἶναι αὐτὸ καθαὑτὸ εἶδός τι ὁmicroοιότητος καὶ τῷ τοιούτῳ αὖ ἄλλο τι ἐναντίον ὃ ἔστιν ἀνόmicroοιον τούτοιν δὲ δυοῖν ὄντοιν καὶ ἐmicroὲ καὶ σὲ καὶ τἆλλα ἃ δὴ πολλὰ καλοῦmicroεν microεταλαmicroβάνειν (128e5ndash129a3)

Eacute realmente difiacutecil entender como Peterson com base na passagem citada

pode atribuir a Zenatildeo o reconhecimento da existecircncia destas duas coisas (a

semelhanccedila e a dessemelhanccedila) Afinal quem se refere agrave semelhanccedila e agrave

dessemelhanccedila como dois seres distintos (τούτοιν δυοῖν ὄντοιν) eacute Soacutecrates e natildeo

Zenatildeo Para atribuir o reconhecimento destas entidades a Zenatildeo Peterson afirma

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que o verbo utilizado por Soacutecrates (νοmicroίζειν) indicaria que ele estaacute tratando de

uma noccedilatildeo comum aceita tambeacutem por Zenatildeo

De fato em seu paradoxo Zenatildeo fala da semelhanccedila e da dessemelhanccedila

como propriedades que os objetos teriam caso fossem muacuteltiplos Entretanto em

contraste com o uso de νοmicroίζειν que pode ou natildeo possuir a nuance de

significado indicada por Peterson Soacutecrates menciona uma seacuterie de termos

relativos agraves Formas que dificilmente poderiam fazer parte de um vocabulaacuterio

ldquocomumrdquo compartilhado por Zenatildeo Sendo assim o simples uso de νοmicroίζειν natildeo

eacute razatildeo suficiente para atribuirmos a Zenatildeo aquilo que Soacutecrates estaacute dizendo

Aleacutem disso caso o desejo de Soacutecrates fosse apresentar uma contradiccedilatildeo inerente agrave

argumentaccedilatildeo de Zenatildeo natildeo haveria porque fazecirc-lo por meio de uma pergunta

bastaria constatar que Zenatildeo reconhece a existecircncia do semelhante e do

semelhante e portanto admite uma multiplicidade de seres

Contudo o maior erro da argumentaccedilatildeo de Peterson natildeo estaacute em atribuir a

Zenatildeo aquilo que Soacutecrates estaacute afirmando Pois mesmo admitindo que a

argumentaccedilatildeo de Zenatildeo pressuponha a existecircncia destas duas entidades a

constataccedilatildeo deste fato sequer representaria uma refutaccedilatildeo ao paradoxo Como o

argumento de Zenatildeo eacute uma reduccedilatildeo ao absurdo o uso de noccedilotildees que se provaratildeo

contraditoacuterias eacute plenamente justificaacutevel Em seu paradoxo Zenatildeo conclui que as

coisas seriam simultaneamente semelhantes e dessemelhantes apenas caso as

coisas fossem muacuteltiplas No entanto Zenatildeo natildeo acredita que as coisas satildeo

muacuteltiplas Portanto em nenhum momento afirma seriamente a existecircncia da

semelhanccedila e da dessemelhanccedila O apelo de Zenatildeo a estas entidades eacute meramente

contra-factual e natildeo representa sua posiccedilatildeo A ldquodevastadora refutaccedilatildeordquo

apresentada por Peterson sequer se configura como uma legiacutetima refutaccedilatildeo

O uacuteltimo movimento da argumentaccedilatildeo de Soacutecrates consistiria em

ldquoenfatizar que os predicados ldquosemelhanterdquo e ldquodessemelhanterdquo satildeo incompletos e

que uma conversa ordinaacuteria (ordinary talk) eacute capaz de reconhecer diversas coisas

que satildeo tanto semelhantes quanto dessemelhantes ou possuem semelhanccedila e

dessemelhanccedila em vaacuterios aspectosrdquo (Peterson 2008 p 387) Isto aconteceria na

seguinte passagem

ldquoE [natildeo julgas] que algumas coisas tendo participaccedilatildeo na semelhanccedila se tornam semelhantes por causa disso e na medida em que nelas tenham participaccedilatildeo e que outras tendo participaccedilatildeo na dessemelhanccedila [se tornam] dessemelhantes e

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que outras [tendo participaccedilatildeo] em ambas se tornam semelhantes e dessemelhantes E mesmo que todas as coisas tenham participaccedilatildeo em ambas essas coisas que satildeo contraacuterias e que sejam pelo participar nas duas elas mesmas em relaccedilatildeo a si mesmas tanto semelhantes quanto dessemelhantes o que haacute de espantoso Καὶ τὰ microὲν τῆς ὁmicroοιότητος microεταλαmicroβάνοντα ὅmicroοια γίγνεσθαι ταύτῃ τε καὶ κατὰ τοσοῦτον ὅσον ἂν microεταλαmicroβάνῃ τὰ δὲ τῆς ἀνοmicroοιότητος ἀνόmicroοια τὰ δὲ ἀmicroφοτέρων ἀmicroφότερα εἰ δὲ καὶ πάντα ἐναντίων ὄντων ἀmicroφοτέρων microεταλαmicroβάνει καὶ ἔστι τῷ microετέχειν ἀmicroφοῖν ὅmicroοιά τε καὶ ἀνόmicroοια αὐτὰ αὑτοῖς τί θαυmicroαστόν (129a3-b1)

Como reconhece Peterson de acordo com a interpretaccedilatildeo por ela proposta

estas perguntas de Soacutecrates apenas ldquonegam a premissa de Zenatildeo de que eacute

impossiacutevel para qualquer coisa ser tanto semelhante quanto dessemelhanterdquo

(Peterson 2008 p 387) No entanto como podemos considerar a mera negaccedilatildeo

injustificada de uma premissa uma argumentaccedilatildeo suficientemente satisfatoacuteria

Zenatildeo argumenta em termos loacutegicos e espera que uma contra-argumentaccedilatildeo lhe

seja apresentada no mesmo niacutevel Caso o comentaacuterio final de Soacutecrates se limitasse

a negar injustificadamente a premissa problemaacutetica do argumento de Zenatildeo

dificilmente poderiacuteamos considerar tal comentaacuterio parte de uma argumentaccedilatildeo

seacuteria 20

Por fim resta observar que a interpretaccedilatildeo proposta por Peterson encontra-

se em clara oposiccedilatildeo ao que um leitor dos diaacutelogos poderia esperar Segundo o

argumento de Zenatildeo eacute impossiacutevel que os seres sejam tanto semelhantes quanto

dessemelhantes ou de maneira geral que uma dada coisa possua qualquer par de

predicados opostos (F e natildeo-F) Ora um leitor acostumado com o tipo de

argumentaccedilatildeo que Soacutecrates desempenha nos diaacutelogos da fase meacutedia espera

naturalmente que as Formas sejam apresentadas como soluccedilatildeo para este

problema

Esta expectativa eacute plenamente satisfeita quando Soacutecrates pede a Zenatildeo que

aceite a existecircncia de ldquouma Forma em si e por si da Semelhanccedila e por outro lado

uma outra Forma aquilo que eacute realmente Dessemelhanterdquo (οὐ νοmicroίζεις εἶναι αὐτὸ

καθαὑτὸ εἶδός τι ὁmicroοιότητος καὶ τῷ τοιούτῳ αὖ ἄλλο τι ἐναντίον ὃ ἔστιν

ἀνόmicroοιον 129a1) Dificilmente uma apresentaccedilatildeo das Formas poderia ser feita de

20 Neste caso Soacutecrates estaria agindo como Dioacutegenes de Ciacutenope que pretendeu refutar os

argumentos de Zenatildeo contra a possibilidade do movimento simplemente andando em praccedila puacuteblica Ora eacute claro que este poderia ser o caso No entanto esta natildeo parece ser a intenccedilatildeo de Soacutecrates e dificilmente Zenatildeo e Parmecircnides demonstrariam respeito por Soacutecrates tal como demonstram no decorrer do diaacutelogo caso este fosse o teor de sua argumentaccedilatildeo

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maneira mais expliacutecita Aleacutem do termo εἶδος Soacutecrates usa as expressotildees αὐτὸ

καθ αὑτὸ e ὃ ἔστιν ambas extremamente recorrentes nos diaacutelogos e

indubitavelmente parte do vocabulaacuterio relativo agraves Formas Fica claro portanto

que Soacutecrates identifica os seres (τὰ ὄντα) aos quais Zenatildeo se refere como objetos

sensiacutevieis e como primeiro passo na soluccedilatildeo do paradoxo introduz suas Formas

na discussatildeo

No entanto a simples apresentaccedilatildeo de entidades imunes agrave copresenccedila de

opostos natildeo se configura como uma soluccedilatildeo ao paradoxo A premissa 4 de Zenatildeo

afirma a impossibilidade das coisas serem simultaneamente semelhantes e

dessemelhantes o que certamente natildeo exclui a possibilidade de algo ser

exclusivamente semelhante ou dessemelhantes Para que a premissa 4 seja

falsificada eacute preciso que Soacutecrates demonstre como os seres podem possuir

propriedades opostas sem que isso implique em uma contradiccedilatildeo Portanto de

modo a servirem de soluccedilatildeo ao paradoxo as Formas precisam natildeo apenas estar

imunes agrave copresenccedila de opostos mas sobretudo explicar esta copresenccedila nos

objetos sensiacutevieis Para que isto seja feito Soacutecrates introduz a noccedilatildeo de

participaccedilatildeo (aqui representada pelos verbos microεταλαmicroβάνειν e microετέχειν) e

pergunta a Zenatildeo se ele estaacute disposto a aceitar que ldquoalgumas coisas tendo

participaccedilatildeo na Semelhanccedila se tornam semelhantes () que outras tendo

participaccedilatildeo na Dessemelhanccedila [se tornam] dessemelhantes e que outras [tendo

participaccedilatildeo] em ambas se tornam semelhantes e dessemelhantesrdquo (129a3-8)

Caso Zenatildeo esteja disposto a aceitar estas duas hipoacuteteses 1) que existem

Formas e 2) que os objetos sensiacuteveis participam destas Formas a aparente

contradiccedilatildeo presente na premissa 4 do seu argumento pode ser dissolvida Pois

uma vez que estes dois pontos lhe sejam concedidos Soacutecrates estaraacute apto a

demonstrar como a copresenccedila de propriedades opostas nos objetos sensiacutevieis

pode ser explicada por meio da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que estes objetos mantecircm

com as Formas21

No Parmecircnides Soacutecrates natildeo desenvolve em pormenores esta explicaccedilatildeo

se limitando a dizer que mesmo que todas as coisas sensiacuteveis tenham participaccedilatildeo

21 Note que Soacutecrates apresenta estas duas hipoacuteteses (a existecircncia das Formas e a relaccedilatildeo de

participaccedilatildeo) por meio de uma pergunta (129a1-3) Isto indica que ele estaacute introduzindo um novo material conceitual e que espera um assentimento por parte de seus interlocutores com relaccedilatildeo agrave viabilidade teoacuterica destas hipoacuteteses Como veremos a resposta de Parmecircnides seraacute admitir temporariamente a validade das hipoacuteteses de Soacutecrates com o objetivo de submetecirc-las

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em ambas estas Formas e em consequecircncia desta participaccedilatildeo sejam semelhantes

e dessemelhantes nada haacute nisso de espantoso (129a8-b1) Esta brevidade da

explicaccedilatildeo de Soacutecrates pode ser solucionada se relacionarmos a soluccedilatildeo aqui

apresentada para o paradoxo de Zenatildeo com a explicaccedilatildeo oferecida no Feacutedon

(101-103) para o fato de Simmias ser grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates e pequeno em

relaccedilatildeo a Feacutedon A assimilaccedilatildeo entre as duas explicaccedilotildees parece justificada uma

vez que em ambos os diaacutelogos vemos Soacutecrates oferecer a Teoria das Ideias como

soluccedilatildeo para o mesmo problema a copresenccedila de propriedades (relacionais)

opostas nos objetos sensiacuteveis22

Adotando o paralelismo entre estas duas explicaccedilotildees podemos entender

que tal como acontece no Feacutedon a semelhanccedila e dessemelhanccedila no Parmecircnides

deixam de ser predicados atribuiacutedos diretamente ao sujeito em questatildeo e passam a

ser predicados das propriedades imanentes que este sujeito possui devido agrave

relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que manteacutem com as Formas Sendo assim as muacuteltiplas

coisas do paradoxo de Zenatildeo satildeo tanto semelhantes quanto dessemelhantes por

participarem simultaneamente das Formas do Semelhante e do Dessemelhante e

devido a esta participaccedilatildeo possuiacuterem as propriedades imanentes do semelhante e

do dessemelhante com partes de si Portanto quando dizemos que o objeto x eacute

semelhante e dessemelhante estamos nos referindo a este fato de maneira

inadequada Pois natildeo eacute propriamente o indiviacuteduo x que eacute semelhante e

dessemelhante mas a semelhanccedila-de-x que eacute semelhante e a dessemelhanccedila-de-x

que eacute dessemelhante Estabelecida a diferenccedila entre Forma propriedades

imanentes e objetos sensiacuteveis natildeo haacute nada de contraditoacuterio no fato de uma mesma

coisa possuir simultaneamente propriedades imanentes opostas Afinal

predicados opostos nunca estatildeo sendo atribuiacutedos propriamente agrave mesma coisa

a uma nova reduccedilatildeo ao absurdo

22 Aleacutem da identidade de temas as passagens do Feacutedon e do Parmecircnides apresentam grande semelhanccedila de vocabulaacuterio εἶδος (Feacuted102B1) αὐτὸ καθ αὑτὸ (Feacuted78D3) ὄντοιν (Feacuted71a13) αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά (Feacuted74c1 αὐτὰ τὰ ἴσα) De fato a assimilaccedilatildeo entre os dois diaacutelogos eacute extremamente comum entre os comentadores Scolnicov por exemplo afirma que ldquoesta passagem eacute uma breve reafirmaccedilatildeo da doutrina das Formas desenvolvida no Feacutedonrdquo (Scolnicov 2003 p48) Gill oferece sua explicaccedilatildeo para resoluccedilatildeo do paradoxo de Zenatildeo por meio da teoria apresentada no Feacutedon (cf Gill 2012 p19-27) e (cf Gill 1996 p12-18) Cornford tambeacutem adota a estrateacutegia de explicar a soluccedilatildeo do paradoxo atraveacutes da analogia com a soluccedilatildeo do problema da copresenccedila de opostos no Feacutedon e afirma haver jaacute em 1951 aceitaccedilatildeo geral (it is generally agreed) de que ldquoa teoria das ideias aqui apresentada eacute idecircntica agrave afirmada anteriormente no Feacutedonrdquo (Cornford 1951 p70) Ainda Brisson (Brisson 2011 p29) Sayre (Sayre 1996 p65) e Turnbull (Turnbull 1998 p 16) assumem a identidade entre a teoria do Feacutedon e a teoria do Parmecircnides

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A hipoacutetese das Formas contradiz o conteuacutedo da premissa 4 do argumento

de Zenatildeo ao explicar aquilo que esta premissa afirmava ser impossiacutevel a

copresenccedila de propriedades opostas nos objetos sensiacuteveis Provada a falsidade da

premissa nuacutemero 4 do argumento de Zenatildeo todo paradoxo eacute desfeito Afinal a

reduccedilatildeo ao absurdo da assunccedilatildeo inicial de que as coisas satildeo muacuteltiplas depende

diretamente da existecircncia de contradiccedilatildeo entre as premissas 3 e 4

De acordo com a explicaccedilatildeo acima esboccedilada o paradoxo de Zenatildeo eacute

solucionado por Soacutecrates por meio da distinccedilatildeo ontoloacutegica entre Formas e objetos

sensiacuteveis que encontramos de maneira expliacutecita nos diaacutelogos da fase meacutedia e

impliacutecita nos argumentos dos primeiros diaacutelogos No decorrer das proacuteximas

seccedilotildees investigaremos se a ontologia defendida por Soacutecrates no Parmecircnides

pode ser identificada com aquela apresentada nestes diaacutelogos Em especial

investigaremos se a compreensatildeo acerca da natureza da participaccedilatildeo e auto-

predicaccedilatildeo das Formas que emerge da leitura do Parmecircnides pode ser identificada

com o tratamento que Soacutecrates oferece para estes temas nos diaacutelogos anteriores

Por ora basta observar que o vocabulaacuterio empregado sugere esta identificaccedilatildeo

Pois aleacutem de εἶδος tanto αὐτὸ καθ αὑτὸ quanto ὃ ἔστιν satildeo expressotildees

recorrentes nos diaacutelogos platocircnicos Estas expressotildees fazem parte do vocabulaacuterio

relativo agraves Formas que como vimos nos capiacutetulos precedentes eacute cuidadosamente

construiacutedo desde os primeiros diaacutelogos Da mesma maneira microετέχειν e

microεταλαmicroβάνειν satildeo expressotildees tipicamente socraacuteticas e fazem parte do vasto rol

de verbos empregados para descrever a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo entre Formas e

objetos sensiacuteveis tanto nos diaacutelogos iniciais quanto nos diaacutelogos da fase meacutedia

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417 O desafio de Soacutecrates

A proximidade entre a Teoria das Ideias apresentada no Parmecircnides e a

ontologia socraacutetica dos diaacutelogos da fase meacutedia e inicial eacute reafirmada ainda no

desafio lanccedilado por Soacutecrates a seus interlocutores Logo apoacutes a apresentaccedilatildeo das

Formas como soluccedilatildeo ao problema da copresenccedila de opostos Soacutecrates compele

seus interlocutores a demonstrarem nas Formas a validade dos mesmos

problemas que Zenatildeo acabara de apontar nos objetos sensiacuteveis

A passagem possui um problema textual que precisamos enfrentar para

podermos oferecer uma interpretaccedilatildeo adequada ao sentido do texto Trata-se do

aparecimento da expressatildeo αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά em 129b1 O neutro plural dos adjetivos

gregos eacute muitas vezes usado para designar de maneira geneacuterica um conjunto de

coisas que compartilham uma mesma caracteriacutestica Assim entendido o sentido de

expressotildees como τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια seria capturado pelas traduccedilotildees ldquoas

coisas semelhantesrdquo e ldquoas coisas dessemelhantesrdquo

No entanto estas traduccedilotildees estatildeo em claro desacordo com o conteuacutedo da

fala de Soacutecrates em 129a-c Na passagem em questatildeo Soacutecrates afirma que ficaria

assombrado caso algueacutem lhe demonstrasse que αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά venha(m) a se

tornar dessemelhante(s) e τὰ ἀνόmicroοια semelhante(s) Ora como vimos Soacutecrates

havia apresentado as Formas justamente como parte de uma demonstraccedilatildeo de

que ldquoas coisas semelhantesrdquo podem perfeitamente se tornar dessemelhantes e

vice-versa Portanto natildeo podemos adotar a interpretaccedilatildeo mais usual para o uso

do neutro plural de adjetivos na leitura de nossa passagem e somos obrigados a

descartar a hipoacutetese de que as expressotildees tenham como referecircncia um conjunto

geneacuterico de objetos sensiacuteveis sob pena de estarmos atribuindo agrave Soacutecrates uma

niacutetida contradiccedilatildeo Por outro lado caso queiramos identificar estas expressotildees

como designaccedilotildees das Formas nos encontramos novamente em dificuldade

Afinal sabemos que as Formas satildeo caracterizadas por serem uacutenicas Soacute haacute uma

uacutenica Forma da Beleza em oposiccedilatildeo agrave multiplicidade de coisas belas As

expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια no entanto estatildeo no plural

Haacute uma forte tendecircncia entre os comentadores a desqualificar este uso do

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plural e considerar ambas expressotildees como maneiras de se referir agraves Formas23

Apesar desta soluccedilatildeo ser amplamente adotada poucos satildeo os casos de defesa

textual desta leitura Agrave parte a afirmaccedilatildeo de que substantivos plurais gregos

podem ser utilizados de maneira gramaticalmente correta para designar entidades

singulares um uacutenico argumento de caraacuteter textual foi oferecido em defesa da

posiccedilatildeo de que as expressotildees representam maneiras idiossincraacuteticas de se referir

agraves Formas Rist em Equals and Intermediates in Plato (1964) argumenta que o

pronome τούτων na sentenccedila imediatamente seguinte (129b3) refere-se agrave

expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια De acordo com Rist como a sentenccedila

afirma que certas coisas participam de τούτων (τὰ τούτων microετέχοντα) ficaria

claro que as expressotildees dizem respeito agrave Formas pois soacute Formas podem ser

objeto de participaccedilatildeo (Rist 1964 p30)

Sendo assim caso o pronome τούτων seja de fato anafoacuterico em relaccedilatildeo agraves

expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια somos obrigados a aceitar o argumento de

Rist e admitir que as expressotildees no neutro plural em 129b1 designam as Formas

do Semelhante e do Dessemelhante No entanto esta natildeo parece ser a uacutenica opccedilatildeo

de leitura Na passagem em questatildeo o pronome τούτων estaacute associado agrave

ἀmicroφοτέρων e como observa Calvert ldquoquando Platatildeo se refere agraves Formas do

Semelhante e do Dessemelhante ele alterna entre o uso do dual (τούτοιν δυοῖν

ὄντοιν 129 a1 ἀmicroφοῖν a8) e o plural ἀmicroφοτέρων (a6 a7)rdquo (Clavert 1982 p53)

Nestes dois uacuteltimos casos (a6 a7) eacute certamente inquestionaacutevel que Platatildeo estaacute

usando ἀmicroφοτέρων para se referir agraves Formas Sendo assim quando lemos τούτων

ἀmicroφοτέρων em 129b3 o mais natural eacute considerar que esta expressatildeo refere-se agraves

Formas do Semelhante e do Dessemelhante apresentadas anteriormente e natildeo a

αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια

Portanto se aceitamos que estamos lidando com entidades que natildeo estatildeo

sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos e no entanto natildeo estamos nos referindo agraves

Formas os candidatos naturais ao posto de referecircncia das expressotildees αὐτὰ τὰ

ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια satildeo as propriedades imanentes da semelhanccedila e

dessemelhanccedila Como vimos no Feacutedon propriedades imanentes satildeo evocadas

23 Scolnicov por exemplo afirma categoriacamente ldquoO plural eacute irrelevanterdquo (Scolnicov 2003

p49) Allen (Allen 1997 p89) Brisson (Brisson 2011 p90) Rickless (Rickless 2007 p48) Sayre (Sayre 1996 p6) e Teloh (Teloh 1981 p152) tambeacutem tratam as expressotildees como maneiras de se referir agraves Formas Segundo Miller o uso de expressotildees plurais para designar as Formas representa uma ldquoconfusatildeo no pensamento de Soacutecratesrdquo reflexo do caraacuteter incipiente

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como parte do argumento que procura provar a diferenccedila ontoloacutegica entre Formas

e objetos sensiacuteveis (74b7-c5) e em seguida fazem parte da explicaccedilatildeo da

copresenccedila de opostos em Simmias (101-103) Em ambas passagens as

propriedades imanentes se diferenciam dos objetos sensiacuteveis que as possuem por

natildeo estarem elas mesmas sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza estes

objetos O paralelismo entre estas passagens do Feacutedon e nossa passagem do

Parmecircnides torna-se evidente quando consideramos que αὐτὰ τὰ ἴσα (Feacuted74c) e

αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά (Parm129b1) representam as uacutenicas ocorrecircncias de expressotildees da

forma αὐτὰ + adjetivo neutro plural no corpus platocircnico

Sendo assim encontramos total uniformidade no emprego deste tipo de

expressatildeo em Platatildeo ambas ocorrecircncias satildeo usadas para designar as propriedades

imanentes dos objetos sensiacuteveis adquiridas por meio da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo

que estes objetos mantecircm com as Formas Tal como as Formas as propriedades

imanentes natildeo estatildeo sujeitas agrave copresenccedila de opostos Poreacutem em oposiccedilatildeo agrave

unidade caracteriacutestica das Formas estas entidades satildeo muacuteltiplas e possuem um

tipo de existecircncia dependente dos objetos sensiacutevieis pois estatildeo localizadas nas

coisas (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος Feacuted102d ἡmicroεῖς ὁmicroοιότητος ἔχοmicroεν Parm130b)

Estando resolvida a questatildeo da referecircncia das expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e

τὰ ἀνόmicroοια podemos analisar o desafio lanccedilado por Soacutecrates e nos questionar se

neste desafio estatildeo mantidas as caracteriacutesticas da ontologia defendida por

Soacutecrates nos diaacutelogos da juventude e da fase meacutedia ou natildeo A passagem pode ser

dividia em quatro partes

1) 129b1 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que as

propriedades imanentes αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια podem receber

predicados opostos

ldquoPois se algueacutem mostrasse que αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά se tornam dessemelhantes ou que

τὰ ἀνόmicroοια se tornam semelhantes seria assombroso creiordquo

2) 129b6-c1 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que

a Forma da Unidade eacute muacuteltiplas coisas e o Muacuteltipo eacute um

da Teoria das Ideias apresentada no Parmecircnides (Miller 1986 p38)

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ldquoMas se aquilo que eacute realmente Um algueacutem demonstrar que isso mesmo eacute

muacuteltiplas coisas e de outra parte que o Muacuteltiplo eacute um jaacute disso me espantareirdquo

3) 129c1-3 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que

as Formas satildeo tanto unas quanto muacuteltiplas

ldquoE do mesmo modo com respeito a todas as outras coisas se algueacutem mostrar que

em si mesmos os gecircneros mesmos e as Formas mesmas satildeo afetados por essas

afecccedilotildees contraacuterias [unidade e multiplicidade] isso seraacute digno de espantordquo

4) 129d6-130a1 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem

como as Formas podem estar misturadas e separadas entre si

ldquoMas dentre as coisas que haacute pouco mencionei se algueacutem em primeiro lugar separasse uma das outras as Formas mesmas em si mesmas ndash por exemplo a Semelhanccedila a Dessemelhanccedila a Quantidade o Um o Repouso o Movimento e todas as coisas deste tipo ndash em seguida mostrasse que estas entre si podem ser misturadas e separadas eu pelo menos disse [Soacutecrates] ficaria encantado cheio de espanto Zenatildeo Quanto agravequelas coisas [sensiacuteveis] acredito terem sido tratadas por ti com muita determinaccedilatildeo Entretanto eu como digo me encantaria muito mais se algueacutem pudesse essa mesma aporia da maneira como expuseste no caso das coisas que se vecircem exibi-la dessa mesma maneira tambeacutem no caso das coisas apreendidas pelo raciociacutenio entrelaccediladas de todos os modos nas Formas mesmasrdquo

1 e 2 representam basicamente o mesmo tipo de desafio Em 1 Soacutecrates

diz que ficaria assombrado caso lhe mostrassem que as propriedades imanentes

αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια estatildeo sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos Em 2 este

desafio eacute expandido para as Formas da Unidade e da Multiplicidade e Soacutecrates

pede que lhe seja demonstrado como o Um eacute muacuteltiplas coisas e o Muacuteltiplo um No

Feacutedon (102d-e) Soacutecrates havia afirmado que o Grande em si (αὐτὸ τὸ microέγεθος)

jamais apareceraacute como grande e pequeno e que tampouco o Gr ande (τὸ ἐν ἡmicroῖν

microέγεθος ) admitiraacute o pequeno ou consentiraacute em receber a pequenez e se tornar

contraacuterio ao que ele eacute (102e2) A imunidade agrave predicaccedilatildeo de opostos eacute portanto

vaacutelida igualmente para Formas e propriedades imanentes Neste ponto αὐτὰ τὰ

ὅmicroοιά e o Semelhante em si (αὐτὸ καθαὑτὸ εἶδός ὁmicroοιότητος) diferenciam-se dos

objetos sensiacuteveis e Soacutecrates desafia seus interlocutores a lhe demonstrarem como

qualquer uma destas entidades pode estar sujeita agrave copresenccedila de opostos que

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caracteriza os objetos empiacutericos

Logo apoacutes intimar Zenatildeo e Parmecircnides a lhe demonstrarem que a Unidade

(ὃ ἔστιν ἕν) eacute muacuteltiplas coisas e que o Muacuteltiplo eacute um Soacutecrates muda o foco de sua

argumentaccedilatildeo e deixando de falar de um par especiacutefico de Formas passa a tratar

de Formas em geral (περὶ τῶν ἄλλων ἁπάντων) Soacutecrates entatildeo compele seus

interlocutores a lhe provarem 3 que as Formas elas mesmas satildeo afetadas

simultaneamente pela unidade e multiplicidade Os comentadores costumam

entender o desafio expresso em 3 como a generalizaccedilatildeo do problema da

copresenccedila de opostos apresentado em 1 e 2 Contudo como dito anteriormente

natildeo podemos considerar uma mera casualidade o fato de Soacutecrates escolher as

propriedades da unidade e da multiplicidade para operar esta generalizaccedilatildeo O

debate entre Soacutecrates e Zenatildeo eacute motivado pelo tema da unidademultiplicidade e a

reintroduccedilatildeo deste par de conceitos neste momento remete o leitor agrave distinccedilatildeo

inicial entre a multiplicidade de objetos sensiacuteveis (as coisas que chamamos

muitas τἆλλα ἃ δὴ πολλὰ καλοῦmicroεν) e a unidade caracteriacutestica das Formas

(τούτοιν δὲ δυοῖν ὄντοιν) Devemos entender portanto que Soacutecrates em 3 natildeo

estaacute apenas generalizando o problema da copresenccedila de opostos para o conjunto

de todas as Formas mas estaacute apresentando um novo desafio Soacutecrates desafia seus

interlocutores a lhe provarem que as Formas entidades caracterizadas por serem

uacutenicas e indivisiacuteveis podem ser caracterizadas pela multiplicidade encontrada nos

objetos sensiacuteveis

Como vimos o paradoxo de Zenatildeo pressupotildee a afirmaccedilatildeo da

multiplicidade das coisas em dois niacuteveis distintos Segundo Zenatildeo os objetos

sensiacuteveis satildeo muacuteltiplos tanto numericamente quanto por serem divisiacuteveis em

muacuteltiplas partes e receberem muacuteltiplos predicados Em paralelo a esta dualidade

inerente ao conceito de multiplicidade adotado por Zenatildeo as Formas platocircnicas

satildeo ditas uacutenicas tanto numericamente por soacute haver uma Forma da Beleza em

contraste com a pluralidade de objetos belos quanto por serem incompostas e

indivisiacuteveis Neste momento do desafio devemos pressupor que os dois sentidos

de unidade e multiplicidade estatildeo em jogo e que Soacutecrates estaacute desafiando seus

interlocutores a demonstrarem a multiplicidade das Formas tout court seja ela

entendida como a existecircncia de uma multiplicidade numeacuterica (diversas Formas da

Beleza por exemplo) ou uma multiplicidade de partes ou atributos de uma mesma

Forma

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Por fim em 4 Soacutecrates afirma que ficaria surpreso caso algueacutem

ldquoseparasse uma das outras as Formas e em seguida mostrasse que estas Formas

entre si podem ser misturadas e separadasrdquo O sentido preciso desta afirmaccedilatildeo

natildeo estaacute claro de iniacutecio e seu significado deve ser acessado pela explicaccedilatildeo que se

segue Nas sentenccedilas seguintes Soacutecrates esclarece que sua surpresa estaacute

relacionada agrave possibilidade de algueacutem expor no caso das Formas a aporia que

Zenatildeo acabara de expor com relaccedilatildeo agraves coisas sensiacuteveis Como vimos a aporia

apresentada por Zenatildeo consiste em afirmar que os objetos sensiacuteveis satildeo muacuteltiplos

e por conta disso estatildeo sujeitos agrave predicaccedilatildeo de propriedades opostas Portanto

devemos entender que o entrelaccedilamento ao qual se refere Soacutecrates implica na

demonstraccedilatildeo de que as Formas satildeo tal como os objetos sensiacuteveis muacuteltiplas e

por conta desta multiplicidade estatildeo sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos

Em sua fala Soacutecrates enumera uma seacuterie de pares de Formas opostas

SemelhanccedilaDessemelhanccedila QuantidadeUm RepousoMovimento Como

observa Allen (Allen 1997 p101) o pronome ταῦτα em 129e2 possui como

antecedente estas Formas tomadas como pares e natildeo cada uma delas

isoladamente Sendo assim a passagem afirma que natildeo podemos considerar cada

um destes pares de Formas como separados e ao mesmo tempo supor que os dois

membros do par estatildeo misturados e caracterizando um ao outro

Ora estaacute claro que o entrelaccedilamento ou participaccedilatildeo de uma Forma em

outra faria com que elas perdessem sua unidade e uniformidade caracteriacutestica e

passassem a possuir uma multiplicidade de partes e atributos24 Aleacutem disso caso

Formas opostas estejam entrelaccediladas entre si cada uma delas teraacute um predicado

contraacuterio agrave sua auto-predicaccedilatildeo (a Semelhanccedila seraacute dessemelhante o Movimento

estaraacute em repouso etc) Portanto em 4 Soacutecrates recapitula os desafios expressos

anteriormente e reafirma a distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis expressa em

sua soluccedilatildeo ao paradoxo de Zenatildeo

O desafio apresentado por Soacutecrates retoma portanto aspectos

fundamentais da apresentaccedilatildeo da Teoria das Ideias a uniformidade das Formas

que se caracterizam por estarem imunes agrave predicaccedilatildeo de opostos e a unidade

24 No argumento desenvolvido em 142c8-143a2 por exemplo conclui-se que se o um eacute entatildeo o

um eacute constituido de partes Pois afirmar que ldquoo um eacuterdquo equivale a afirmar que uma parte do um participa da unidade e outra parte participa do ser (οὐσίας microετέχειν) O argumento pressupotildee portanto que a participaccedilatildeo em mais de uma Forma (entrelaccedilamento) eacute suficiente para concluir a existecircncia de muacuteltiplas partes do objeto participante

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destas entidades que satildeo numericamente singulares Estas caracteriacutesticas estatildeo

mutuamente implicadas pois as Formas satildeo ditas uacutenicas e homogecircneas por serem

de maneira exclusiva auto-predicativas Em contraste como as coisas sensiacuteveis

sujeitas a uma diversidade de predicados inclusive predicados opostos as Formas

satildeo exclusivamente aquilo que elas satildeo A Forma F eacute apenas F e nada mais

estando imune agrave presenccedila da propriedade oposta natildeo-F e de maneira geral a

qualquer outro tipo de predicaccedilatildeo25 Estas caracteriacutesticas das Formas satildeo a base da

distinccedilatildeo ontoloacutegica entre Formas e objetos sensiacuteveis e se encontram articuladas

na soluccedilatildeo de Soacutecrates para o paradoxo de Zenatildeo Zenatildeo acredita que as coisas

satildeo muacuteltiplas e por causa disso estatildeo sempre sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos

Com o objetivo de desfazer o paradoxo Soacutecrates apresenta um novo tipo de

entidade caracterizada pela sua unidade e uniformidade Segundo Soacutecrates estas

entidades podem desfazer o problema da copresenccedila de opostos e serem a causa

das propriedades encontradas nos objetos sensiacuteveis por estarem elas mesmas

imunes agrave multiplicidade e copresenccedila de opostos encontrada nos objetos

empiacutericos

Sendo assim a demonstraccedilatildeo de que as Formas satildeo elas mesmas sujeitas

agrave copresenccedila de opostos retiraria destas entidades a capacidade de se apresentarem

como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis Pois segundo a compreensatildeo

de causalidade apresentada por Soacutecrates no Feacutedon eacute justamente o fato do Grande

nunca se apresentar como pequeno o que faz dele o candidato mais adequado para

o cargo de causa da grandeza das coisas sensiacuteveis A Forma da Beleza deve ser

incondicionalmente bela para assegurar o seu papel de causa da beleza nas coisas

Caso contraacuterio a Beleza ela mesma violaria um dos princiacutepios baacutesicos da

causalidade e poderia ser considerada tatildeo responsaacutevel pela beleza das coisas

quanto os adereccedilos de ouro que adornam Helena e a tornam bela para um

banquete poreacutem feia e repulsiva para um funeral Por outro lado a atribuiccedilatildeo de

multiplicidade agraves Formas abriria a possibilidade do paradoxo de Zenatildeo se repetir

em cada uma destas entidades quer entendamos esta multiplicidade como uma

multiplicidade numeacuterica ou como uma multiplicidade de atributos Pois ou bem

cada Forma seria composta por partes semelhantes entre si (por serem partes de

25 As afirmaccedilotildees de que F eacute uacutenica uniforme indivisiacutevel etc representam meta-predicados

atribuidos a todas as Formas Estes meta-predicados devem ser entendidos como afirmaccedilotildees restritas ao acircmbito da Teoria das Ideias e natildeo entram em conflito com a auto-predicaccedilatildeo das

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uma mesma Forma) e ao mesmo tempo dessemelhantes (por serem partes

distintas) ou bem as muacuteltiplas Formas de F seriam semelhantes (por serem todas

elas Formas de uma mesma propriedade F) e dessemelhantes (por serem

numericamente distintas) Em ambos os casos as Formas estariam sujeitas aos

mesmos problemas encontrados nos objetos sensiacuteveis que supostamente

deveriam solucionar

O desafio lanccedilado por Soacutecrates eacute portanto uma consequecircncia direta da

sua soluccedilatildeo para o paradoxo de Zenatildeo A validade da hipoacutetese das Formas como

soluccedilatildeo ao paradoxo depende destas entidades manterem estes dois aspectos

fundamentais de sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica imunidade agrave copresenccedila de opostos e

unidade (numeacuterica e aspectual) Afinal estas caracteriacutesticas satildeo a base da

diferenciaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis e a distinccedilatildeo entre estes dois tipos

de entidade natildeo restaria estabelecida caso estas caracteriacutesticas proacuteprias dos

objetos sensiacuteveis fossem encontradas tambeacutem nas Formas Portanto caso a

multiplicidade e predicaccedilatildeo de opostos apontadas por Zenatildeo nos objetos sensiacuteveis

sejam vaacutelidas paras Formas a soluccedilatildeo apresentada por Soacutecrates se mostraraacute falsa

e o paradoxo de Zenatildeo permaneceraacute irresoluto

A importacircncia do desafio de Soacutecrates para a compreensatildeo da estrutura do

Parmecircnides dificilmente pode ser superestimada A fala em que Soacutecrates

soluciona o paradoxo de Zenatildeo e em seguida desafia seus interlocutores a

provarem a falsidade de sua resoluccedilatildeo representa o mais longo discurso

ininterrupto do diaacutelogo e possui um forte apelo dramaacutetico No desafio que encerra

esta fala Soacutecrates usa as palavras ldquomaravilhadordquo ldquoencantadordquo e seus cognatos

nada menos do que oito vezes e deixa bem claro ao leitor quatildeo arraigado eacute o seu

comprometimento com as teses da uniformidade e unidade das Formas e quatildeo

chocante e arrasador seria o reconhecimento da falsidade destes princiacutepios

fundamentais de sua teoria Esta insistecircncia no tema do maravilhamento de

Soacutecrates faz parte da estrateacutegia dramaacutetica adotada por Platatildeo que pretende

chamar atenccedilatildeo para importacircncia destas duas caracteriacutesticas fundamentais da

constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e antecipar para o leitor o esquema geral do

ataque agrave Teoria das Ideias que seraacute realizado por Parmecircnides Como veremos

Parmecircnides aceita o desafio lanccedilado por Soacutecrates e localiza suas criacuteticas

Formas

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justamente nos princiacutepios de uniformidade e unidade das Formas Por meio da

sequecircncia de paradoxos que compotildeem o restante da primeira parte do diaacutelogo

Parmecircnides iraacute provar a Soacutecrates como estas caracteriacutesticas das Formas mostram-

se irreconciliaacuteveis com a noccedilatildeo de participaccedilatildeo e de maneira geral com a tese de

que as Formas satildeo causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis

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42 As criacuteticas de Parmecircnides agrave teoria da participaccedilatildeo

Apoacutes Soacutecrates terminar sua longa fala Parmecircnides que ateacute entatildeo ouvia a

discussatildeo calado volta-se para Soacutecrates e passa a formular uma seacuterie de criacuteticas agrave

distinccedilatildeo ontoloacutegica que este havia apresentado Tal como prenunciado na

complexa estrutura narrativa delineada pelo proacutelogo do diaacutelogo a fala de

Parmecircnides emerge em continuidade ao debate anteriormente desenvolvido por

Soacutecrates e Zenatildeo e toma como ponto de partida os resultados obtidos pela

discussatildeo anterior Em especial a argumentaccedilatildeo desenvolvida por Parmecircnides

pretende recuperar em forma e intenccedilatildeo o paradoxo de abertura do diaacutelogo

Formalmente as criacuteticas de Parmecircnides retomam o tipo de argumentaccedilatildeo

em reduccedilatildeo ao absurdo na qual o paradoxo de Zenatildeo havia sido formulado A

estrateacutegia consiste em aceitar de maneira provisoacuteria a teoria apresentada por

Soacutecrates com o intuito de derivar a partir do conjunto de hipoacuteteses que

constituem esta teoria contradiccedilotildees internas ou consequecircncias inaceitaacuteveis Em

intenccedilatildeo as criacuteticas pretendem restabelecer a validade deste paradoxo por meio da

demonstraccedilatildeo da inviabilidade da soluccedilatildeo oferecida por Soacutecrates Assim do

mesmo modo que Zenatildeo havia formulado seu paradoxo pretendendo proteger

Parmecircnides dos ataques de seus detratores Parmecircnides apresenta suas criacuteticas

como uma defesa de Zenatildeo a quem Soacutecrates afirma ser capaz de refutar

Em linhas gerais as criacuteticas de Parmecircnides seguem a seguinte estrutura

Parmecircnides comeccedila questionando Soacutecrates acerca da extensatildeo e populaccedilatildeo do

ldquomundo da Ideiasrdquo isto eacute que tipos de objetos sensiacuteveis possuem uma Forma

correspondente Em seguida Parmecircnides desenvolve uma seacuterie de paradoxos

intimamente relacionados entre si voltados contra a noccedilatildeo de participaccedilatildeo

adotada por Soacutecrates Na tentativa de escapar destas criacuteticas Soacutecrates procura

oferecer explicaccedilotildees distintas para natureza da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo e propotildee

primeiro que as Formas sejam entendidas como pensamentos e em seguida

como paradigmas Contudo ambas propostas levam a mais paradoxos e

Parmecircnides acaba por concluir que a participaccedilatildeo eacute impossiacutevel e que de acordo

com a concepccedilatildeo socraacutetica do que eacute uma Forma estas entidades estariam

completamente isoladas da realidade sensiacutevel o que as tornaria incognosciacuteveis e

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irrelevantes

Caso sejam consideradas vaacutelidas as criacuteticas oferecidas por Parmecircnides

representam um ataque avassalador agrave teoria apresentada por Soacutecrates Este fato

parece ser reconhecido por Soacutecrates que diz ao final dos ataques de Parmecircnides

natildeo vislumbrar uma saiacuteda nos garantindo que ao menos no contexto dramaacutetico

do diaacutelogo o criticismo parmeniacutedico eacute tido como procedente Contudo a despeito

da aporia e do embaraccedilo demonstrados por Soacutecrates alguns comentadores negam

a importacircncia destes argumentos e afirmam que Platatildeo nunca admitiu a

legitimidade das criacuteticas aqui apresentadas

Uma maneira de desqualificar a argumentaccedilatildeo de Parmecircnide que

precisamos desde jaacute analisar consiste em reconhecer a validade dos argumentos

poreacutem negar a sua relevacircncia com relaccedilatildeo agrave Teoria das Ideias De acordo com este

tipo de interpretaccedilatildeo os paradoxos apresentados por Parmecircnides natildeo teriam como

alvo a Teoria das Ideias platocircnicas mas estariam direcionadas contra concepccedilotildees

heterodoxas acerca da natureza das Formas adotadas por membros da Academia

cujas teorias Platatildeo estaria atacando

O alvo mais constantemente apresentado eacute Eudoxo de Cnidos Eudoxo foi

um astrocircnomo e matemaacutetico extremamente respeitado e seu nome estaacute

relacionado a uma seacuterie de descobertas matemaacuteticas de seu tempo Segundo

algumas fontes Eudoxo seria associado a Academia e teria inclusive assumido o

cargo de diretor da escola (sxolarxhj) durante a viagem de Platatildeo para Sciciacutelia

em 366 (cf Philoch fr223) De fato vaacuterios testemunhos nos levam a crer que em

algum momento de sua carreira filosoacutefica Eudoxo desenvolveu uma teoria

proacutepria acerca da natureza das Formas e de acordo com o comentaacuterio de

Alexandre de Afrodiacutesia esta teoria estaria criticada por uma seacuterie de argumentos

do tratado aristoteacutelico PERI IDEWN (In Methaph 97-98)

Em Aristotles Criticism of Plato and The Academy Cherniss reconhece

uma grande similaridade entre as criacuteticas descritas por Alexandre e as criacuteticas que

encontramos no Parmecircnides A partir da identificaccedilatildeo entre estas duas seacuteries de

argumentos Cherniss conclui que o criticismo apresentado em nosso diaacutelogo estaacute

direcionado contra a noccedilatildeo imanentista de Formas defendida por Eudoxo e natildeo

contra a Teoria das Ideias descrita nos diaacutelogos de Platatildeo (Cherniss 1944 p144)

Esta interpretaccedilatildeo eacute posteriormente endossada por Cornford para quem as

criacuteticas do Parmecircnides devem ser entendidas como a rejeiccedilatildeo do proacuteprio Platatildeo agrave

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compreensatildeo rudimentar de participaccedilatildeo defendida por Eudoxo (Cornford 1951

p87)26

Recentemente outro membro da Academia foi oferecido como alvo dos

argumentos do Parmecircnides Em The Fog Dispelled (2010) Graeser propotildee que o

Parmecircnides deve ser entendido como uma refutaccedilatildeo da concepccedilatildeo de Formas

defendida por Espeusipo sobrinho de Platatildeo e sxolarxhj da Academia durante

os oito anos seguintes agrave sua morte Segundo Graeser no Parmecircnides ldquoPlatatildeo guia

seus leitores agrave compreensatildeo de que seu criticismo das Formas inteligiacuteveis reverte-

se contra a teoria dos princiacutepios de Espeusipordquo (Graeser 2010 p17)

Para podermos avaliar a viabilidade do tipo de hipoacutetese interpretativa

defendida por Cherniss Cornford e Graeser segundo a qual as criacuteticas de

Parmecircnides estatildeo endereccediladas a uma outra teoria que natildeo a proacutepria Teoria das

Ideias encontrada nos diaacutelogos platocircnicos precisamos recapitular as

caracteriacutesticas da distinccedilatildeo ontoloacutegica oferecida por Soacutecrates como soluccedilatildeo ao

paradoxo de Zenatildeo No Parmecircnides Soacutecrates apresenta uma teoria segundo a

qual

1) Existem Formas (εἴδη) entidades em si (αὐτὰ καθ αὑτὰ τὰ)

separadas (χωρὶς) dos objetos sensiacuteveis (128e6-130b-5) e

conhecidas pela razatildeo (ἐν τοῖς λογισmicroῷ λαmicroβανοmicroένοις) (129e5-

130a2)

2) Estas Formas satildeo entidades auto-predicativas isto eacute a Forma do

Grande eacute grande a Forma do Pequeno eacute pequena etc (132a)

3) As Formas satildeo entidades singulares e indivisiacuteveis (ἓν ἕκαστον

εἶδος εἶναι) em oposiccedilatildeo agrave multiplicidade numeacuterica e

complexidade mereoloacutegica que caracteriza os objetos sensiacuteveis

4) As Formas satildeo entidades ldquounicas em aspectordquo (microονοειδὲς) isto eacute

imunes agrave copresenccedila de propriedades opostas Em oposiccedilatildeo a isto

os objetos sensiacuteveis estatildeo sempre sujeitos a este tipo de

26 Em Eudoxos in The Parmecircnides (1973) Malcolm Shofield defende que a teoria de Eudoxo eacute

discutida no Parmecircnides poreacutem natildeo na primeira parte do diaacutelogo Shoefield acredita que alguns argumentos da longa seacuterie de deduccedilotildees que compotildee a segunda parte do Parmecircnides precisam ser entendidos sobre o background da teoria de Eudoxo Como o proacuteprio Shofield reconhece (Shoefied 1973 p4-5) a hipoacutetese de que a teoria de Eudoxo eacute discutida em algumas deduccedilotildees da segunda parte do Parmecircnides jaacute havia sido levantada por Brumbaugh (cf Brumbaugh 1961 p25-26)

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copresenccedila (129b6-c1)

5) Os objetos sensiacuteveis por outro lado participam das Formas e eacute

pela participaccedilatildeo (microετάληψις) nas Formas que adquirem as

propiedades que possuem (129a3-129b1) e os nomes pelos quais

satildeo chamadas (ἐπωνυmicroία) (130e5-131a2)

Como qualquer leitor dos diaacutelogos platocircnicos pode facilmente perceber as

sentenccedilas listadas acima definem de maneira inequiacutevoca a Teoria das Ideias que

delineamos nos capiacutetulos precedentes Como vimos a existecircncia de Formas

entidades separadas dos objetos empiacutericos e detentoras de um estatuto ontoloacutegico

proacuteprio estaacute pressuposta desde os diaacutelogos inicias Estas entidades satildeo

caracterizadas por serem inteligiacuteveis isto eacute captadas unicamente pela razatildeo

(Feacutedon 65d4-66a10) sempre idecircnticas a si mesmas e auto-predicativas

(Protaacutegoras 330c7-e1 Hiacuteppias Maior 292e Eutidemos 301b5-c2 e Feacutedon 100c4-

6) estando portanto imunes agrave predicaccedilatildeo de opostos (Hiacuteppias Maior 291d1-3

Feacutedon 102e5-6 Banquete 211a2-5 Repuacuteblica V 479a) Como resultado da soma

destas caracteriacutesticas as Formas satildeo entidades completamente isentas de

pluralidade incapazes de sofrer qualquer tipo de mudanccedila singulares e

indivisiacuteveis (microονοειδὲς ἀσύνθετα Fed78c6)

Por outro lado em oposiccedilatildeo agrave unidade e estabilidade ontoloacutegica

caracteriacutestica das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo descritos por Soacutecrates como

entidades compostas e internamente complexas sujeitas agrave mudanccedila constante e

submetidas a uma infinidade de predicaccedilotildees inclusive opostas (Hiacuteppias Maior

289a3-b7 Feacutedon 74b7-9 102b-c Repuacuteblica 479a-b)

Do mesmo modo o poder causal exercido pelas Formas sobre os objetos

sensiacuteveis e o vocabulaacuterio da participaccedilatildeo a ele relacionado possuem um papel

central nos argumentos dos diaacutelogos e podem ser encontrados desde a busca por

definiccedilotildees do Ecircutifron e do Hippias Maior ateacute os diaacutelogos da fase meacutedia como

Banquete e Feacutedon Assim desde os primeiros diaacutelogos as Formas satildeo

apresentadas como responsaacuteveis pelas caracteriacutesticas dos objetos sensiacuteveis e causa

efetiva das propriedades encontradas nestes objetos

Eacute portanto facilmente constataacutevel que as caracteriacutesticas fundamentais da

Teoria das Ideias estatildeo representadas na listagem acima e mesmo o vocabulaacuterio

empregado por Soacutecrates no Parmecircnides coincide com a terminologia dos diaacutelogos

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anteriores Tendo em vista esta identidade vocabular e conceitual creio que

podemos descartar desde jaacute as interpretaccedilotildees que pretendem identificar qualquer

outra teoria que natildeo a Teoria das Ideias como alvo dos ataques de Parmecircnides

Afinal acreditar que as criacuteticas apresentadas no Parmecircnides estatildeo endereccediladas a

Eudoxo ou a Espeusipo equivale a tornar estas criacuteticas um mero caso de ignoratio

elenchi com relaccedilatildeo a toda argumentaccedilatildeo anteriormente desenvolvida no diaacutelogo

A distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis apresentada por Soacutecrates

como soluccedilatildeo ao paradoxo de Zenatildeo eacute a mesma formulada nos diaacutelogos meacutedios e

da juventude e este fato deve parecer oacutebvio ao leitor do Parmecircnides tanto pelo

vocabulaacuterio empregado por Soacutecrates quanto pelo motivo pelo qual a Teoria das

Ideias eacute trazida agrave discussatildeo Sendo assim seria completamente incompreensiacutevel

que Platatildeo resolvesse representar o personagem Parmecircnides criticando qualquer

outra teoria senatildeo aquela que Soacutecrates apresenta reiteradamente nos diaacutelogos em

que figura como personagem principal e que eacute anunciada no proacuteprio Parmecircnides

como soluccedilatildeo ao paradoxo de Zenatildeo27

27 Haacute ainda outra objeccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo de que as criacuteticas do Parmecircnides estatildeo direcionadas

contra teorias heterodoxas defendidas por membros da Academia em divergecircncia a Platatildeo Como observa Dancy em Two Studies in the Early Academy este tipo de interpretaccedilatildeo depende de uma hipoacutetese cronoloacutegica acerca da data de composiccedilatildeo do Parmecircnides dificilmente verificaacutevel Afinal para admitirmos que o Parmecircnides conteacutem uma criacutetica agrave teoria de Eudoxo ou Espeusipo devemos supor que na ocasiatildeo da composiccedilatildeo do diaacutelogo a teoria criticada jaacute havia sido desenvolvida No entanto nada nos impede de realizar a inferecircncia no sentido oposto e afirmar que Eudoxo ou Espeusipo propuseram suas teorias a partir de uma leitura do Parmecircnides Caso esta uacuteltima hipoacutetese cronoloacutegica esteja correta o Parmecircnides foi escrito antes da formulaccedilatildeo das teorias de Eudoxo e Espeusipo e portanto natildeo poderia conter criacuteticas a estas teorias (cf Dancy 1991 p20-24)

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421 A separaccedilatildeo das Formas

Parmecircnides inicia seu exame enfatizando a distinccedilatildeo fundamental na qual

a hipoacutetese de Soacutecrates estaacute baseada Em sua fala Soacutecrates havia afirmado que o

Semelhante o Dessemelhante o Um o Muacuteltiplo e as demais Formas devem ser

entendidas como entidades em si e por si (αὐτὰ καθ αὑτὰ) detentoras de um

estatuto ontoloacutegico proacuteprio e marcadamente distintas dos objetos sensiacuteveis

Assumindo a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis estabelecida por Soacutecrates

Parmecircnides levanta duas questotildees acerca desta distinccedilatildeo 1) Se foi o proacuteprio

Soacutecrates quem fez a divisatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis e 2) Se a

Semelhanccedila mesma eacute algo separado da semelhanccedila que possuiacutemos e o mesmo

com relaccedilatildeo aos outros termos mencionados por Zenatildeo

ldquoE foi isso entatildeo que expressou Parmecircnides quando ele [Soacutecrates] terminou Soacutecrates disse quatildeo digno eacutes de ser admirado pelo ardor que tens pelos argumentos Mas dize-me 1) tu mesmo assim fizestes a divisatildeo tal como falas de um lado certas coisas mesmas de outro as coisas que delas participam E 2) te parece a semelhanccedila mesma ser algo separada da semelhanccedila que temos e tambeacutem o um e as muacuteltiplas coisas e todas as coisas que haacute pouco ouviste de Zenatildeo Parece-me que sim disse Soacutecratesrdquo ὅπερ οὖν καὶ παυσαmicroένου αὐτοῦ εἰπεῖν τὸν Παρmicroενίδην Ὦ Σώκρατες φάναι ὡς ἄξιος εἶ ἄγασθαι τῆς ὁρmicroῆς τῆς ἐπὶ τοὺς λόγους καί microοι εἰπέ 1) αὐτὸς σὺ οὕτω διῄρησαι ὡς λέγεις χωρὶς microὲν εἴδη αὐτὰ ἄττα χωρὶς δὲ τὰ τούτων αὖ microετέχοντα καί 2) τί σοι δοκεῖ εἶναι αὐτὴ ὁmicroοιότης χωρὶς ἧς ἡmicroεῖς ὁmicroοιότητος ἔχοmicroεν καὶ ἓν δὴ καὶ πολλὰ καὶ πάντα ὅσα νυνδὴ Ζήνωνος ἤκουες Ἔmicroοιγε φάναι τὸν Σωκράτη (130b1-5)

Parmecircnides destaca o tema da separaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis

mencionando a preposiccedilatildeoadveacuterbio χωρίς (separadoseparadamente) nada menos

do que trecircs vezes em apenas quatro linhas Devemos entender a insistecircncia de

Parmecircnides sobre este ponto como um artifiacutecio dramaacutetico cujo objetivo eacute chamar

a atenccedilatildeo do leitor para questatildeo da ldquoseparaccedilatildeordquo entre Formas e objetos sensiacuteveis

na qual a teoria de Soacutecrates estaacute fundamentada Soacutecrates jaacute havia usado o termo

χωρίς com relaccedilatildeo agraves Formas anteriormente (διαιρῆται χωρὶς αὐτὰ καθ αὑτὰ τὰ

εἴδη 129d7) E de fato sua teoria parece envolver algum modo de separaccedilatildeo entre

duas classes distintas de objetos pois Soacutecrates afirma haver aleacutem das muacuteltiplas

coisas apontadas por Zenatildeo um outro conjunto de objetos distintos das coisas

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sensiacuteveis e detentores de um estatuto ontoloacutegico proacuteprio as Formas Mas o que

significa afirmar que as Formas satildeo entidades separadas Com o que exatamente

estaria Soacutecrates se comprometendo ao responder afirmativamente agrave pergunta de

Parmecircnides

Em seu sentido mais baacutesico podemos entender a afirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo

entre duas entidades como equivalente agrave atribuiccedilatildeo de natildeo-identidade numeacuterica

entre elas Assim compreendido o termo ldquoseparaccedilatildeordquo natildeo teria outro papel senatildeo

enfatizar o fato pressuposto pela teoria apresentada por Soacutecrates de que a Forma

natildeo eacute idecircntica aos objetos que dela participam ou seja se o objeto x participa da

Forma F entatildeo x e F satildeo coisas numericamente distintas isto eacute separadas Uma

segunda interpretaccedilatildeo possiacutevel seria entendermos a afirmaccedilatildeo de separaccedilatildeo como

equivalente agrave afirmaccedilatildeo de independecircncia ontoloacutegica De acordo com este sentido

uma coisas eacute separada da outra se ela pode existir independentemente da outra

Portanto nesta segunda acepccedilatildeo do termo x eacute separado de y se x pode continuar

a existir ainda que y deixe de existir ou mesmo que y nunca tenha existido28 Uma

terceira opccedilatildeo seria entendermos a afirmaccedilatildeo de que x eacute separado de y como

equivalente ao isolamento ou dissociaccedilatildeo total entre estes dois itens Assim

entendida a separaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis implicaria na inexistecircncia

de contato entre estas entidades tal como quando dizemos que uma mesa estaacute

separada da parede para afirmar que estas duas coisas natildeo estatildeo em contato uma

com a outra

Soacutecrates natildeo pede esclarecimentos a Parmecircnides acerca do que estaacute sendo

entendido por ldquoseparaccedilatildeordquo e noacutes como leitores devemos buscar nas entrelinhas

do texto o significado desta expressatildeo Esta tarefa nos eacute facilitada por Platatildeo que

oferece uma informaccedilatildeo fundamental acerca do sentido da palavra χωρίς por meio

da construccedilatildeo de um paralelismo entre a afirmaccedilatildeo de que a Forma F eacute separada

(χωρίς) e a afirmaccedilatildeo de que a Forma F eacute em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτό)

Em 129b4 Parmecircnides comeccedila seu exame perguntando a Soacutecrates se ele

acredita ser a Semelhanccedila mesma algo separado (χωρίς) da semelhanccedila que noacutes

temos Logo em seguida (130b7-9) Parmecircnides formula o mesmo tipo de questatildeo

utilizando agora a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτό ldquoSeraacute que tambeacutem coisas tais

28 Note que diferente da relaccedilatildeo de natildeo-identidade a indenpendecircncia ontoloacutegica natildeo eacute uma

relaccedilatildeo simeacutetrica Podemos considerar que x possui um modo de existecircncia independente de y e ao mesmo tempo afirmarmos que y eacute ontologicamente dependente de x

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como uma certa Forma em si e por si do Belo e do Justo [existem]rdquo Por fim em

130c1-2 Parmecircnides volta a usar o termo χωρίς e pergunta ldquoMas e uma Forma

do Homem [existiria esta Forma] separada de noacutes e de todos tais como somos

noacutesrdquo

Conforme observa Vlastos durante toda esta arguiccedilatildeo as expressotildees χωρίς

e αὐτὸ καθ αὑτό ldquosatildeo usadas intercaladamente para enunciar a mesma tese

metafiacutesica (metaphysical claim)rdquo (Vlastos 1991 p259) Como Soacutecrates natildeo se

manifesta contra a assimilaccedilatildeo do significado destas duas expressotildees e aceita sem

ressalvas o paralelismo estabelecido por Parmecircnides natildeo temos razatildeo para

duvidar de que as proposiccedilotildees ldquoA Forma F eacute separadardquo e ldquoA Forma F eacute em si e

por sirdquo possuem o mesmo significado e expressam o mesmo fato ontoloacutegico

A identidade entre o significado das expressotildees χωρίς e αὐτὸ καθ αὑτό

natildeo nos seria uacutetil contudo caso natildeo soubeacutessemos o que Soacutecrates entende pela

afirmaccedilatildeo de que as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὸ καθ αὑτό) No

entanto como vimos anteriormente a afirmaccedilatildeo de que as Formas satildeo ldquoem si e

por sirdquo eacute extremamente recorrente nos diaacutelogos e devemos entendecirc-la como

equivalente agrave tese da independecircncia ontoloacutegica das Formas As Formas satildeo ditas

αὐτὰ καθ αὑτὰ devido ao fato de apresentarem um modo de existecircncia

independente com relaccedilatildeo aos objetos sensiacuteveis que delas participam No

Banquete (211a5-b6) por exemplo a foacutermula ainda mais enfaacutetica αὐτὸ καθ αὑτὸ

microεθ αὑτοῦ eacute usada para expressar o modo de existecircncia autossuficente da Forma

do Belo que natildeo eacute afetada em absoluto pelas vicissitudes que as coisas belas do

mundo empiacuterico estatildeo fadadas a sofrer Pois ldquo() nem o nascimento nem a morte

destas coisas o fazem aumentar ou diminuir ou lhe produzem qualquer efeitordquo

(οἷον γιγνοmicroένων τε τῶν ἄλλων καὶ ἀπολλυmicroένων microηδὲν ἐκεῖνο microήτε τι πλέον

microήτε ἔλαττον γίγνεσθαι microηδὲ πάσχειν microηδέν) Gozando de uma modo de

existecircncia plenamente independente e natildeo dependendo de qualquer tipo de relaccedilatildeo

com outras entidades para ser aquilo que eacute o Belo ele mesmo permaneceraacute ldquosendo

sempre uacutenico em aspectordquo (microονοειδὲς ἀεὶ ὄν)

No Feacutedon Soacutecrates usa o mesmo paralelismo entre χωρίς (representado

pelo verbo χωρίζω) e αὐτὸ καθ αὑτό para explicar como o evento da morte que

nada mais eacute do que a separaccedilatildeo da alma do corpo faz com que estes dois

elementos passem a existir em si e por si ou seja de maneira independente

(Feacuted64C5-8) A morte significa para alma o fim da longa dependecircncia

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estabelecida com o corpo ao qual estava relacionada durante a encarnaccedilatildeo Apoacutes a

morte tanto o corpo quanto a alma passam a gozar de um modo de existecircncia

separado O corpo existiraacute de maneira independente poreacutem apenas pelo breve

espaccedilo de tempo que separa o evento da morte de sua dissoluccedilatildeo total enquanto a

alma continuaraacute a existir separada e independente mesmo apoacutes o

desaparecimento do corpo

Em ambas as passagens a locuccedilatildeo αὐτὸ καθ αὑτό eacute usada para designar o

estatuto ontoloacutegico independente de uma entidade Sendo assim dado o

paralelismo apontado por Vlastos entre a afirmaccedilatildeo de que ldquoA Forma F eacute em si e

por sirdquo e a afirmaccedilatildeo de que ldquoA Forma F eacute separadardquo podemos concluir que

Soacutecrates ao concordar que as Formas satildeo entidades separadas estaacute se

comprometendo com a tese de que as Formas existem de maneira completamente

independente dos objetos sensiacuteveis que delas participam natildeo necessitando deles

para serem aquilo que elas satildeo29

A insistecircncia de Parmecircnides sobre a questatildeo da separaccedilatildeo das Formas

representa seu reconhecimento de que a Teoria das Ideias apresentada por

Soacutecrates estaacute fundamentalmente vinculada agrave independecircncia ontoloacutegica destas

entidades Para que as Formas se apresentem como soluccedilatildeo agraves contradiccedilotildees do

mundo empiacuterico eacute imprescindiacutevel que estas entidades demonstrem-se aptas a

manter suas caracteriacutesticas ontoloacutegicas fundamentais a despeito do que aconteccedila

com os objetos que delas participam e sobretudo a despeito de como seja

entendida a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que as vincula aos objetos sensiacuteveis Assim a

29 Alguns comentadores entendem que a pergunta de Parmecircnides pressupotildee a simetria da relaccedilatildeo

de ldquoseparaccedilatildeordquo isto eacute se x eacute separado de y entatildeo y eacute separado de x Este fato por si soacute seria suficiente para descartarmos a hipoacutetese de que o termo χωρίς e por extensatildeo a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτό possam implicar independecircncia ontoloacutegica Afinal a Teoria das Ideias certamente afirma a independecircncia ontoloacutegica das Formas frente aos objetos sensiacuteveis Poreacutem segundo estes autores a afirmaccedilatildeo da indenpendecircncia ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis frente agraves Formas estaacute em clara contradiccedilatildeo com a Teoria das Ideias Portanto como Soacutecrates aceita sem ressalvas a formulaccedilatildeo de Parmecircnides devemos entender o termo χωρίς em algum dos sentidos que natildeo implicam a independecircncia ontoloacutegica da entidade separada (cf Gill 1996 p17 n23) ou devemos admitir que o jovem Soacutecrates natildeo estaacute completamente ciente da tese com a qual estaacute se comprometendo e aceita a independecircncia ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por engano (cf Allen 1997 p23-23) Vlastos apresenta um contra-argumento a estes autores afirmando que este tipo de interpretaccedilatildeo deriva de uma leitura errocircnea do texto Segundo Vlastos natildeo haacute razatildeo para acreditarmo que a relaccedilatildeo de separaccedilatildeo estaacute sendo tratada como uma relaccedilatildeo simeacutetrica porque as ocorrecircncias de χωρίς em 130b2 e b3 devem ser entendida como adveacuterbios de διῄρησαι Assim em b2-3 natildeo estamos falando de ldquoexistir separadamenterdquo mas de ldquodistinguir separadamenterdquo e a afirmaccedilatildeo do modo de existecircncia separado das Formas soacute aconteceria na sentenccedila seguinte b4 onde natildeo haacute sinal algum de simetria (cf Vlastos 1991 p 256)

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ecircnfase no tema da separaccedilatildeo durante a fala de abertura da argumentaccedilatildeo de

Pamecircnides antecipa ao leitor do diaacutelogo o conteuacutedo das criacuteticas que se seguiratildeo

Como veremos os argumentos de Parmecircnides pretendem demonstrar justamente

a impossibilidade das Formas preservarem sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica distintiva

enquanto estejam vinculadas aos objetos sensiacuteveis por meio da relaccedilatildeo de

participaccedilatildeo

O questionamento parmeniacutedico contudo natildeo termina por ai e suas duas

perguntas iniciais satildeo oferecidas em uma uacutenica sentenccedila como dois problemas

intimamente conectados Assim sua segunda questatildeo (130b3-4) eacute enunciada

como um mero corolaacuterio da primeira (130b2-3) se as Formas satildeo entidades

separadas dos objetos sensiacuteveis e estes objetos por sua vez satildeo separados das

Formas haveria entatildeo uma Forma do Semelhante separada da semelhanccedila que as

coisas sensiacuteveis possuem

Soacutecrates responde afirmativamente agraves duas perguntas reconhecendo a

existecircncia de uma Forma do Semelhante separada tanto dos objetos sensiacuteveis

quanto da semelhanccedila que haacute em noacutes Deste modo Parmecircnides torna expliacutecito

aquilo que jaacute havia sido antecipado pelo aparecimento da expressatildeo αὐτὰ τὰ

ὅmicroοιά isto eacute que a teoria apresentada por Soacutecrates pressupotildee a distinccedilatildeo natildeo

somente entre Formas e objetos sensiacuteveis mas tambeacutem entre Formas e

propriedades imanentes Portanto de acordo com Soacutecrates se estamos falando de

dois homens semelhantes entre si nossa anaacutelise pressupotildee a distinccedilatildeo de trecircs tipos

de entidades 1) a Forma do Semelhante 2) os indiviacuteduos em questatildeo e 3) a

semelhanccedila que estes indiviacuteduos possuem devido ao fato de participarem da

Forma do Semelhante

Como Parmecircnides demonstra perceber a distinccedilatildeo entre Formas e

propriedades imanentes eacute uma consequecircncia direta da hipoacutetese da separaccedilatildeo das

Formas As Formas satildeo entidades em si e por si separadas dos objetos sensiacuteveis

mas ao mesmo tempo se apresentam como causas das caracteriacutesticas destes

objetos Sendo assim eacute preciso supor a existecircncia de um resultado nas coisas da

accedilatildeo causal exercida pelas Formas Neste momento da discussatildeo nenhuma

informaccedilatildeo eacute passada ao leitor acerca do estatuto ontoloacutegico deste terceiro

elemento a natildeo ser o fato de que esta entidade encontra-se nas coisas sendo

portanto presente nos objetos sensiacuteveis Parmecircnides iraacute solucionar esta carecircncia

de informaccedilatildeo durante a enunciaccedilatildeo do seu ldquodilema da participaccedilatildeordquo Segundo

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este dilema soacute haacute duas possibilidades de compreensatildeo para o que satildeo as

propriedade imanentes ou bem estas entidades satildeo as proacuteprias Formas presentes

por inteiro nos objetos que delas participam ou bem satildeo partes de Formas

compartilhadas pelos objetos sensiacuteveis por meio da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo

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422 A extensatildeo do conjunto de Formas

Apoacutes se certificar da separaccedilatildeo entre Formas objetos sensiacuteveis e

propriedades imanentes Parmecircnides realiza trecircs perguntas acerca da extensatildeo do

conjunto de Formas Claramente sua intenccedilatildeo eacute determinar para que tipo de

coisas existe uma Formas correspondente De um ponto de vista dramaacutetico seu

interesse sobre esta questatildeo eacute extremamente natural Parmecircnides acabara de ser

apresentado agrave Teoria das Ideias e a primeira duacutevida que lhe surge eacute quais Formas

existem

Soacutecrates jaacute havia concordado que existem as Formas do Semelhante do

Dessemelhante do Um do Muacuteltiplo do Repouso e do Movimento Estas Formas

correspondem a termos gerais de aplicaccedilatildeo irrestrita pois todo elemento da

realidade precisa possuir senatildeo cada um destes pares de predicados ao menos um

membro de cada par30 Parmecircnides natildeo se deteacutem nestas Formas e se refere a elas

apenas pela designaccedilatildeo geneacuterica de ldquoas coisas que haacute pouco ouviste de Zenatildeordquo

(130b5)31

Por outro lado Parmecircnides se mostra bastante interessado em saber se

Soacutecrates admite aleacutem de Formas correspondentes a termos de aplicaccedilatildeo irrestrita

ldquouma Forma em si e por si do Justo e tambeacutem do Belo e do Bom e ainda de todas

as coisas deste tipordquo Ao que Soacutecrates responde confiantemente que sim (130b7-

10)

Ora termos com ldquoo belordquo ldquoo bomrdquo e ldquoo justordquo exemplificam as virtudes

que encontramos em diaacutelogos relacionados agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees

(δίκαιος Eut12d HiacuteppMa287c Goacuterg483d 492a Prot329c-330c Mecircn73e

30 Ryle denomina estes predicados de ldquoconceitos formaisrdquo e enfatiza o fato de que eles se

diferenciam natildeo apenas pela sua universalidade de aplicaccedilatildeo mas tambem pelo seu tipo loacutegico Pois um conceito deste tipo natildeo eacute ldquoespeciacutefico a um toacutepico mas integral a todos os toacutepicos de discurso (subject-matter) (Ryle 1965 p115) Posteriormente Ryle se refere a estes conceitos como ldquosincategoremaacuteticosrdquo (Ryle 165 p131) Gill e Turnbull por sua vez chamam as Formas correspondentes a estes predicados de ldquoFormas estruturaisrdquo (Gill 2012 p29) e (Turnbull 1998 p19) Estes autores parecem estar corretos em identificar a universalidade de aplicaccedilatildeo destes termos como seu caraacuteter distintivo Curiosamente os comentaacuterios mais antigos identificam este grupo de Formas como correspondente a termos matemaacuteticos mas este natildeo parece ser o ponto em questatildeo uma vez que ldquorepousordquo e ldquomovimentordquo estatildeo incluidos na lista

31 No Feacutedro estes mesmo predicados satildeo relacionados ao tipo de argumentaccedilatildeo desenvolvida por Zenatildeo Neste diaacutelogo Soacutecrates afirma que o Palamendes de Eleacuteia (Zenatildeo) eacute capaz de fazer sua audiecircncia crer que as coisas satildeo simultaneamente semelhantes e dessemelhantes unas e muacuteltiplas em repouso e em movimento (Feacutedr261d)

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καλός Liacutes216d HiacuteppMa 287d-304e ἀγαθός Liacutes216d HiacuteppMa287c

Mecircn87d Goacuterg495a Prot352c) Como vimos estes diaacutelogos conteacutem

argumentos em que expressotildees como ldquoo Belo em sirdquo e ldquoa Forma do Belordquo satildeo

entendidas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder causal

exercido por estas entidades nos levou ainda a reconhecer a independecircncia e

prioridade ontoloacutegica inerente a elas e a concluir que a busca por definiccedilotildees dos

diaacutelogos iniciais deve ser entendida desde sempre como uma busca pela Forma

das virtudes e termos morais ali mencionados Nos diaacutelogos da fase meacutedia

Formas correspondentes a virtudes continuam a receber papel proeminente como

por exemplo no Feacutedon (65d 70d-71e 76d 100c-d) no Banquete (210e-211d) e

na Repuacuteblica (479a-b) Sendo assim ao aceitar a existecircncia de Formas

correspondentes a virtudes valores morais e valores eacuteticos Soacutecrates natildeo estaacute

fazendo nada mais do que manter-se coerente com aquilo que um leitor dos

diaacutelogos platocircnicos esperaria

O segundo grupo de Formas a despertar o interesse de Parmecircnides

corresponde ao que chamariacuteamos de termos sortais ldquohomemrdquo ldquofogordquo e ldquoaacuteguardquo32

As perguntas anteriores mencionam Formas correspondentes a adjetivos

predicados incompletos ou caracteriacutesticas das coisas Parmecircnides agora

questiona Soacutecrates acerca da existecircncia de Formas correspondentes a substantivos

ou expressotildees nominais usadas para designar tipos ou classes de coisas Soacutecrates

natildeo se mostra seguro acerca da existecircncia destas Formas mas tambeacutem natildeo nega

que elas possam existir afirmando apenas ter ficado muitas vezes em aporia

acerca deste assunto (130c1-4)

A inseguranccedila de Soacutecrates acerca da existecircncia de Formas correspondentes

a termos sortais eacute facilmente compreendida se levarmos em conta que nos

diaacutelogos anteriores ao Parmecircnides as Formas satildeo apresentadas sobretudo como

uma tentativa de solucionar problemas relacionados com a copresenccedila de opostos

nas coisas sensiacuteveis No primeiro grupo de diaacutelogos Soacutecrates sai em busca de

uma definiccedilatildeo precisa para termos morais por perceber que casos exemplares de

32 Estritamente falando ldquoaacuteguardquo e ldquofogordquo natildeo satildeo termos sortais pelo fato de natildeo poderem receber

adjetivos numeacutericos Assim ldquocubo de gelordquo eacute um termo sortal porque podemos falar ldquotrecircs cubos de gelordquo poreacutem o mesmo natildeo acontece com ldquoaacuteguardquo e ldquofogordquo A caracteriacutestica fundamental que une este grupo de termos eacute portanto o fato de constituirem elementos com funccedilatildeo nominal aos quais adjetivos e predicados satildeo atribuidos e que satildeo oferecidos como resposta a questotildees do tipo ldquoo que eacute istordquo No Fileacutebo (15a) Soacutecrates menciona uma Forma de Homem e no Timeu (51b) uma Forma do Fogo eacute mencionada

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demonstraccedilatildeo de uma determinada virtude podem aparecer sob certos aspectos ou

determinadas condiccedilotildees como um exemplo do viacutecio exatamente oposto Assim

ldquodevolver a cada um o que lhe eacute proacutepriordquo (RepI 331c) pode ser considerado um

exemplo de justiccedila No entanto no caso de algueacutem tomado pela loucura exigir a

devoluccedilatildeo de suas armas a mesma definiccedilatildeo estaraacute apresentando uma caso

daquilo que eacute o oposto da justiccedila Do mesmo modo levar a julgamento aquele que

comete um crime em mateacuteria religiosa parece fazer parte daquilo que eacute a piedade

poreacutem caso esta pessoa seja seu proacuteprio pai e o julgamento venha a levaacute-lo a

morte o mesmo tipo de ato teraacute como resultado um parriciacutedio o pior e mais iacutempio

dos casos de derramamento de sangue

Durante a fase meacutedia o problema da co-presenccedila de opostos continua a

receber um papel de destaque Em uma passagem da Repuacuteblica VII (523a-524e) a

busca por uma soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila de opostos eacute apresentada

por Soacutecrates como a proacutepria razatildeo para o surgimento da Teoria das Ideias

Segundo Soacutecrates eacute o fato de um mesmo dedo parecer simultaneamente grande e

pequeno que nos leva a formular questotildees do tipo ldquoo que eacute o granderdquo ldquoo que eacute o

pequenordquo e a concluir que o Grande e o Pequeno devem ser afirmados como um

tipo de coisa separada dos objetos sensiacuteveis Contudo o dedo enquanto dedo

nunca se apresenta como o contraacuterio de si mesmo e a mente da maioria dos

homens natildeo eacute levada a formular a pergunta o que eacute o dedo E como

consequecircncia a mente da maioria dos homens tambeacutem natildeo eacute levada a postular

uma Forma correspondente ao termo sortal ldquodedordquo

Esta passagem da Repuacuteblica VII assim como nossa passagem do

Parmecircnides natildeo nega a existecircncia de Formas correspondentes a termos como

ldquodedordquo e ldquohomemrdquo De fato no livro X da Repuacuteblica o proacuteprio Soacutecrates afirma

ter o haacutebito de assumir a existecircncia de uma Forma uacutenica para cada conjunto de

coisas muacuteltiplas agraves quais chamamos por um mesmo nome (εἶδος γάρ πού τι ἓν

ἕκαστον εἰώθαmicroεν τίθεσθαι περὶ ἕκαστα τὰ πολλά οἷς ταὐτὸν ὄνοmicroα ἐπιφέροmicroεν

Rep596a6-7) Igualmente em uma passagem sobre do ldquoprodutor de nomesrdquo

(ὀνοmicroατουργός) do Craacutetilo (389a-390a) o mesmo princiacutepio segundo o qual

haveria uma Forma para cada palavra parece estar em jogo No proacuteprio

Parmecircnides Soacutecrates reconhece a possibilidade de uma aceitaccedilatildeo bastante

abrangente para o contigente de Formas afirmando jaacute ter considerado a

possibilidade do princiacutepio de postulaccedilatildeo das Formas ser ldquoo mesmo com relaccedilatildeo a

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todas as coisasrdquo (περὶ πάντων ταὐτόν 130d5-6) A proacutepria observaccedilatildeo de

Parmenides que conclui a passagem sobre a extensatildeo do conjunto de Formas

parece apontar na mesma direccedilatildeo ao prever que nenhuma destas coisas seraacute

desprezada por Soacutecrates assim que a filosofia dele se apoderar completamente

(130e1-4)

Sendo assim a duacutevida demonstrada pelo jovem Soacutecrates acerca da

existecircncia de Formas correspondentes a termos sortais deve ser entendida em

paralelo com a passagem sobre o dedo na Repuacuteblica como um testemunho de

Platatildeo acerca da origem da Teoria das Ideias Ao que tudo indica as Formas foram

primeiro propostas como uma tentativa de soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos tanto no caso dos predicados incompletos e propriedades relacionais

dos objetos sensiacuteveis quanto no caso das virtudes e valores morais que se

negavam a ser capturados por uma soacute definiccedilatildeo As falas de Soacutecrates e

Parmecircnides em 130d5-e4 nos levam a crer que na eacutepoca de composiccedilatildeo do

Parmecircnides o nuacutemero de Formas admitidas jaacute havia sido expandido o suficiente

para incluir uma Forma correspondente a cada conjunto de muacuteltiplas coisas que

chamamos pelo mesmo nome confirmando assim a impressatildeo que nos chega dos

diaacutelogos da fase meacutedia

Em oposiccedilatildeo a estas admissotildees Soacutecrates se mostra definitivamente contra

a existecircncia de Formas correspondentes a um quarto grupo de termos enunciado

por Parmecircnides constituiacutedo por cabelo lama e sujeira (θρὶξ καὶ πηλὸς καὶ ῥύπος

) e afirma que acreditar na existecircncia destas Formas seria por demais absurdo

(130d4) Mas por que Soacutecrates se negaria admitir a existecircncia destas Formas

A explicaccedilatildeo mais comumente apresentada pelos comentadores baseia-se

no fato de que coisas como cabelo lama e sujeira seriam indignas e ignoacutebeis

demais para serem harmonizadas com a grandiloquecircncia das descriccedilotildees acerca da

natureza divina das Formas encontradas em diaacutelogos como Banquete e

Repuacuteblica33 De fato esta interpretaccedilatildeo parece estar sugerida pela fala de

Parmecircnides que caracteriza estas coisas como ridiacuteculas (γελοῖα) despreziacuteveis

(ἀτιmicroότατόν) e vis (φαυλότατον) No entanto podemos atribuir um significado

33 El Murr por exemplo afirma ldquoSe Soacutecrates natildeo pode admitir que existe uma Forma de Lama eacute

evidentemente porque ele confunde a questatildeo do valor e a questatildeo da essecircncia porque ele pensa que uma Forma da lama coisa de pouco valor seria uma Forma de pouco valorrdquo (El Murr 2010 p145) Para outros autores que defendem esta mesma linha de raciociacutenio (cf Allan 1997 p124) (cf Cornford 1951 p83) (cf Miller 1986 p 45-46) (cf Turnbull 1998

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mais profundo para a recusa de Soacutecrates caso estejamos dispostos a reconhecer

nestes exemplos uma antecipaccedilatildeo dos problemas vinculados agrave relaccedilatildeo partetodo

que encontraremos de maneira recorrente no restante das criacuteticas de Parmecircnides

agrave hipoacutetese das Formas

Soacutecrates havia se mostrado relutante poreacutem natildeo havia negado a existecircncia

de uma Forma de Homem Parmecircnides deseja saber agora se precisamos de uma

Forma de Cabelo uma vez que tenhamos admitido uma Forma de Homem Um

homem eacute um todo composto por diversas partes como ressaltado por Soacutecrates

que usa a si proacuteprio como exemplo (129c4-d1) Seria tambeacutem a Forma do

Homem um todo composto por partes Se sim seriam entatildeo as Formas do

Cabelo e do Dedo partes da Forma do Homem Mas e estas Formas seriam elas

tambeacutem entidades compostas cujas partes corresponderiam aos componentes do

dedo e do cabelo sensiacuteveis Se natildeo entatildeo precisariacuteamos de uma Forma separada

para cada parte do corpo humano E para as partes destas partes teriacuteamos uma

Forma correspondente a cada componente do corpo humano ateacute chegarmos a um

elemento sensiacutevel completamente indivisiacutevel Por outro lado seria necessaacuterio

uma Forma de Lama caso exista uma Forma para os dois elementos a partir dos

quais a lama eacute composta terra e de aacutegua (cfTeet147c) Ou seria a lama sensiacutevel

apenas o resultado da presenccedila destas duas Formas em um uacutenico objeto Por fim

teria a sujeira uma natureza proacutepria um caraacuteter determinado Ou seria a sujeira

apenas um agregado de pequenas partes de outras coisas como terra e cabelo

cada uma delas correspondendo a uma Forma especiacutefica

As questotildees de Parmecircnides acerca da extensatildeo do conjunto de Formas natildeo

chegam a constituir propriamente uma tentativa de refutaccedilatildeo da teoria apresentada

por Soacutecrates Contudo esta primeira bateria de perguntas deixa claro ao leitor que

a hipoacutetese das Formas estaacute sujeita a criacuteticas como de fato estaacute sujeita toda e

qualquer teoria De um ponto de vista dramaacutetico estas perguntas realizam a

transiccedilatildeo entre a apresentaccedilatildeo da Teoria das Ideias e a refutaccedilatildeo desta teoria que

se daraacute no restante do diaacutelogo Atraveacutes desta pequena passagem Platatildeo apresenta

a seus leitores ateacute entatildeo acostumados a ver Soacutecrates como protagonista e

condutor principal da argumentaccedilatildeo uma clara inversatildeo de papeacuteis No restante do

Parmecircnides ao inveacutes de encontramos o Soacutecrates confiante e eloquente da Feacutedon e

p22-23)

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do Banquete ou o Soacutecrates irocircnico e refutador do Ecircutifron e do Laacuteques

encontraremos um Soacutecrates receoso e reticente preza dos ataques de Parmecircnides

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423 O dilema da Participaccedilatildeo

Parmecircnides inicia sua efetiva reduccedilatildeo ao absurdo da Teoria das Ideias por

meio de uma reapresentaccedilatildeo sumaacuteria da posiccedilatildeo socraacutetica

ldquoMas dize-me o seguinte34 parece-te como dizes haver certas Formas em tendo participaccedilatildeo nas quais essas outras coisas aqui recebem suas denominaccedilotildees Por exemplo se tecircm participaccedilatildeo na Semelhanccedila as coisas se tornam semelhantes se na Grandeza grandes se no Belo e na Justiccedila justas e belas Perfeitamente disse Soacutecratesrdquo τόδε δ οὖν microοι εἰπέ δοκεῖ σοι ὡς φῄς εἶναι εἴδη ἄττα ὧν τάδε τὰ ἄλλα microεταλαmicroβάνοντα τὰς ἐπωνυmicroίας αὐτῶν ἴσχειν οἷον ὁmicroοιότητος microὲν microεταλαβόντα ὅmicroοια microεγέθους δὲ microεγάλα κάλλους δὲ καὶ δικαιοσύνης δίκαιά τε καὶ καλὰ γίγνεσθαι Πάνυ γε φάναι τὸν Σωκράτη (130e4-131a1)

Nesta passagem Parmecircnides reduz a posiccedilatildeo socraacutetica a trecircs proposiccedilotildees

fundamentais 1) existem Formas 2) os objetos sensiacuteveis (τάδε τὰ ἄλλα)

participam nestas Formas e 3) devido a esta de participaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis

recebem os nomes pelos quais satildeo chamados A tese segundo a qual as coisas

recebem suas denominaccedilotildees devido ao fato de participarem nas Formas

conhecida como tese da eponiacutemia (ἐπωνυmicroία) natildeo havia sido mencionada por

Soacutecrates No entanto devemos entendecirc-la como um mero corolaacuterio linguiacutestico da

hipoacutetese de que as Formas satildeo causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis As

coisas recebem suas denominaccedilotildees pelo fato de apresentarem as caracteriacutesticas e

propriedades que apresentam Como as Formas satildeo as causas destas propriedades

Parmecircnides deduz corretamente que as coisas recebem suas denominaccedilotildees em

funccedilatildeo da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que mantecircm com as Formas 35

Como sabemos de acordo com a Teoria das Ideias o fato de que Simmias

eacute grande pressupotildee a existecircncia de duas entidades ontologicamente distintas

34 Platatildeo marca de maneira muito clara o iniacutecio de uma nova seacuterie de argumento pela frase ldquoτόδε δ οὖν microοι εἰπέrdquo Do mesmo modo o iniacutecio da passagem acerca da extensatildeo do conjunto de Formas havia sido marcado pelas palavras ldquoκαί microοι εἰπέrdquo (130b1) e posteriormente a introduccedilatildeo do argumento do terceiro homem seraacute marcado pela expressatildeo ldquoπρὸς τόδε πῶς ἔχειςrdquo (131e8) 35 Como observa Cornford (Cornford 1951 p84 n2) esta fala de Parmecircnides traz uma

referecircncia bastante direta agrave passagem do Feacutedon em que Soacutecrates propotildee sua teoria da participaccedilatildeo como uma soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila de opostos em Simmias Compare ldquoὧν τάδε τὰ ἄλλα microεταλαmicroβάνοντα τὰς ἐπωνυmicroίας αὐτῶν ἴσχεινrdquo (Parm130e5-6) com ldquoκαὶ τούτων τἆλλα microεταλαmicroβάνοντα αὐτῶν τούτων τὴν ἐπωνυmicroίαν ἴσχεινrdquo (Feacuted102b1-2)

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Simmias e a Forma da Grandeza Aleacutem disso como Soacutecrates jaacute havia antecipado

pelo uso da expressatildeo αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e como o proacuteprio Parmecircnides jaacute havia

concluiacutedo em 130b3-4 o fato de que Simmias eacute grande pressupotildee ainda a

existecircncia da propriedade imanente grandeza-em-Simmias (Parm130b4 αὐτὴ

ὁmicroοιότης χωρὶς ἧς ἡmicroεῖς ὁmicroοιότητος ἔχοmicroεν Feacuted102d7 τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος

Feacuted103b5 οὔτε τὸ ἐν ἡmicroῖν [ἐναντίον] οὔτε τὸ ἐν τῇ φύσει) Diferente da Forma

que lhe daacute origem uma propriedade imanente eacute ontologicamente dependente do

indiviacuteduo na qual estaacute localizada Afinal sua existecircncia estaacute intimamente

conectada com a existecircncia do indiviacuteduo que a possui e podemos considerar que

caso este indiviacuteduo deixe de ser grande de todos os modos possiacuteveis a

propriedade imanente da grandeza que este indiviacuteduo apresentava cessaraacute de

existir

Podemos nos perguntar agora como estas trecircs entidades estatildeo

relacionadas Soacutecrates havia sugerido que os objetos sensiacuteveis participam das

Formas e como resultado desta participaccedilatildeo adquirem suas diversas

propriedade36 No entanto o poder causal exercido pelas Formas natildeo pode ser

considerado por si soacute suficientemente elucidativo Haacute de haver um modo

especiacutefico de relaccedilatildeo entre estas entidades que explique como as Formas podem

ser responsaacuteveis pelo surgimento das propriedades imanentes nos objetos

sensiacuteveis Parmecircnides deseja saber portanto como devemos entender a relaccedilatildeo de

participaccedilatildeo de modo a tornarmos teoricamente viaacutevel a hipoacutetese de que as coisas

sensiacuteveis adquirem suas propriedades imanentes por causa das Formas

No Feacutedon Soacutecrates havia se recusado a explicitar a natureza desta relaccedilatildeo

oferecendo de maneira inconclusiva os termos ldquopresenccedilardquo e ldquocomunhatildeordquo como

modos possiacuteveis de descrevecirc-la

ldquoNada aleacutem do Belo torna esta coisa bela seja pela sua presenccedila (παρουσία) seja

36 Assim no Parmecircnides (129a4-5) certas coisas ldquotendo participaccedilatildeo na Semelhanccedila se tornam

semelhantesrdquo (τὰ microὲν τῆς ὁmicroοιότητος microεταλαmicroβάνοντα ὅmicroοια γίγνεσθαι) isto eacute passam a possuir a propriedade imanente da semelhanccedila ldquopor causa disso e na medida em que nela tenham participaccedilatildeordquo (ταύτῃ τε καὶ κατὰ τοσοῦτον ὅσον ἂν microεταλαmicroβάνῃ) E no Feacutedon (100c4-6) ldquoSe existe alguma coisa bela aleacutem do Belo em si a uacutenica razatildeo pela qual esta coisa eacute bela eacute porque ela participa da Belo em si E digo o mesmo com relaccedilatildeo a todo o restordquo (εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν οὐδὲ δι ἓν ἄλλο καλὸν εἶναι ἢ διότι microετέχει ἐκείνου τοῦ καλοῦ καὶ πάντα δὴ οὕτως λέγω) Nestas passagens Soacutecrates deixa claro por meio do emprego do dativo instrumental da conjunccedilatildeo διότι e da preposiccedilatildeo κατά + acusativo que eacute unicamente pela participaccedilatildeo nas Formas que as coisas adquirem as diversas propriedades que possuem

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pela comunhatildeo (κοινωνία) ou como quer que ele [o Belo] venha a se adicionar agraves coisas (ὅπῃ δὴ καὶ ὅπως προσγενοmicroένη) pois natildeo irei insistir nisto apenas que eacute pelo Belo que todas as coisas belas se tornam belasrdquo οὐκ ἄλλο τι ποιεῖ αὐτὸ καλὸν ἢ ἡ ἐκείνου τοῦ καλοῦ εἴτε παρουσία εἴτε κοινωνία εἴτε ὅπῃ δὴ καὶ ὅπως προσγενοmicroένη οὐ γὰρ ἔτι τοῦτο διισχυρίζοmicroαι ἀλλ ὅτι τῷ καλῷ πάντα τὰ καλὰ [γίγνεται] καλά (Fed100d4-7)

No Parmecircnides apenas duas alternativas satildeo inicialmente apresentadas

ou bem 1) cada coisa que participa de uma Forma participa na Forma inteira ou

bem 2) cada coisa que participa de uma Forma participa em uma parte da Forma

De acordo com 1) a propriedade imanente que um objeto sensiacutevel adquire como

consequecircncia da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo equivale agrave totalidade da Forma De

acordo com 2) esta propriedade imanente equivale a apenas uma parte da Forma

Soacutecrates aceita o dilema formulado por Parmecircnides e concorda ainda que estas

duas opccedilotildees satildeo exaustivas

ldquoNatildeo eacute verdade que cada uma das coisas que tecircm participaccedilatildeo ou bem tem participaccedilatildeo na Forma inteira ou bem em uma parte dela Ou haveria uma outra participaccedilatildeo aleacutem dessas Como poderia haver disse [Soacutecrates]rdquo Οὐκοῦν ἤτοι ὅλου τοῦ εἴδους ἢ microέρους ἕκαστον τὸ microεταλαmicroβάνον microεταλαmicroβάνει ἢ ἄλλη τις ἂν microετάληψις χωρὶς τούτων γένοιτο Καὶ πῶς ἄν εἶπεν (131a4-7)

Em sua forma o dilema anuncia uma reduccedilatildeo ao absurdo 1) Se as coisas

participam das Formas entatildeo elas participam no todo ou em parte de uma Forma

Contudo 2) natildeo pode haver participaccedilatildeo no todo das Formas nem em partes das

Formas Logo 3) natildeo haacute participaccedilatildeo isto eacute as coisas natildeo participam das Formas

A validade desta reduccedilatildeo depende diretamente do reconhecimento de que as duas

opccedilotildees previstas na premissa maior do argumento esgotam todas as possibilidades

de se pensar a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis Por isso

Parmecircnides pergunta a Soacutecrates se poderia haver algum outro tipo de participaccedilatildeo

aleacutem da participaccedilatildeo no todo ou em parte de uma Forma Neste primeiro

momento Soacutecrates concorda que natildeo poderia haver reconhecendo a completude

da premissa maior do argumento de Parmecircnides e se comprometendo

antecipadamente com a validade da reduccedilatildeo37

37 Posteriormente confrontado pelos paradoxos resultantes do dilema da participaccedilatildeo Soacutecrates

iraacute propor maneiras de entender a relaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que extrapolam as opccedilotildees previstas neste dilema inicial Contudo como veremos estas propostas tampouco se mostraratildeo imunes aos ataques do saacutebio eleata

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424 A estrutura do dilema de participaccedilatildeo

Eacute constantemente apontado pelos comentadores o fato de que o dilema da

participaccedilatildeo possuiria uma estrutura assimeacutetrica Enquanto o primeiro ramo do

dilema de acordo com o qual as coisas participam no todo de uma Forma levaria

a uma impossibilidade loacutegica a argumentaccedilatildeo que contradiz o segundo ramo do

dilema seria meramente ad hominen e resultaria em apenas um par de

contradiccedilotildees especiacuteficas restritas a um determinado conjunto de Formas Esta

interpretaccedilatildeo foi proposta pela primeira vez por Reginald Allen

ldquoSoacutecrates rejeita ambas disjunccedilotildees do Dilema da Participaccedilatildeo mas a modalidade destas disjunccedilotildees eacute bastante diferente A primeira disjunccedilatildeo dada a pluralidade de participantes envolve uma absurdidade loacutegica (hellip) A segunda disjunccedilatildeo seja verdadeira ou como Soacutecrates acredita falsa natildeo envolve uma absurdidade loacutegica (hellip) Portanto se natildeo haacute participaccedilatildeo no todo nem na parte da Ideia entatildeo natildeo haacute participaccedilatildeo mas se haacute participaccedilatildeo ela natildeo pode ser no todo mas deve ser na parte de uma Ideiardquo (Allen 1997 p133)

Apesar da aceitaccedilatildeo geral que a interpretaccedilatildeo de Allen tem recebido38 sua

leitura natildeo deve ser assumida de antematildeo Em primeiro lugar porque levanta o

seguinte problema interpretativo se o segundo ramo do dilema apresenta uma

opccedilatildeo logicamente viaacutevel por que Soacutecrates natildeo se apega a esta opccedilatildeo procurando

apresentar maneiras plausiacuteveis de entender as propriedades imanentes como partes

das Formas Ao contraacuterio do que seria esperado caso a participaccedilatildeo em partes das

Formas fosse a uacutenica opccedilatildeo logicamente possiacutevel Soacutecrates procura manter

durante toda seacuterie de argumentos a unidade das Formas se mostrando

decididamente contra a hipoacutetese de que elas possam ser divididas

Aleacutem disso a leitura assimeacutetrica para o dilema da participaccedilatildeo eacute

responsaacutevel por um problema interpretativo ainda mais fundamental que ameaccedila

a proacutepria relevacircncia das criacuteticas de Parmecircnides e como consequecircncia a unidade

temaacutetica do diaacutelogo Allen considera o segundo ramo do dilema como uma opccedilatildeo

logicamente viaacutevel por entender que apenas as Formas do Grande do Pequeno e

do Igual estatildeo sujeitas a paradoxos caso optemos pela participaccedilatildeo em partes das

38 Brisson (Brisson 2011 p37 n76) Curd (Curd 1986 p128) e Harte (Harte 2002 p66-67) dentre outros assumem a assimetria do dilema adotando a interpretaccedilatildeo proposta por Allen

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Formas Contudo os argumentos sobre estas trecircs Formas natildeo constituem o passo

decisivo na refutaccedilatildeo deste ramo do dilema Na verdade estes paradoxos apenas

ilustram algumas das consequecircncias indesejaacuteveis decorrentes da efetiva divisatildeo

das Formas que jaacute havia sido admitida por Soacutecrates em 131c9-10 Esta mudanccedila

de foco acaba impedindo Allen de reconhecer que eacute a proacutepria divisatildeo das Formas

o que leva agrave rejeiccedilatildeo da hipoacutetese da participaccedilatildeo em partes das Formas

Ao contraacuterio do que Allen acredita ambos os braccedilos do dilema apresentam

argumentos contra uma mesma tese cuja importacircncia eacute fundamental para a

validade da Teoria das Ideias a tese de que as Formas satildeo entidades uacutenicas

(singulares e indivisiacuteveis) e portanto essencialmente distintas dos objetos

sensiacuteveis

Em toda sua argumentaccedilatildeo Parmecircnides utiliza o adjetivo ldquoumrdquo de maneira

ambiacutegua ora para designar a singularidade (unidade numeacuterica) ora para designar

a uniformidade (indivisibilidade) de uma Forma O dilema da participaccedilatildeo

pretende demonstrar como estes dois sentidos de unidade natildeo podem ser

atribuiacutedos simultaneamente agraves Formas caso estas entidades estejam submetidas

agrave relaccedilatildeo de participaccedilatildeo Assim no primeiro ramo do dilema a integridade das

Formas natildeo eacute posta em questatildeo mas a sua singularidade eacute comprometida Pois

estando presentes por inteiro em cada um dos seus participantes as Formas se

multiplicariam e passariam a existir em nuacutemero igual ao das coisas que delas

participam Por outro lado no segundo ramo do dilema natildeo eacute mais a unidade

numeacuterica das Formas que eacute posta em questatildeo mas a sua indivisibilidade Pois

uma vez divididas pelos seus participantes as Formas passariam a ter tantas partes

quantos objetos que delas participam

Esta estrateacutegia estabelecida pelo dilema da participaccedilatildeo organiza todo o

conjunto de criacuteticas apresentadas por Parmecircnides na primeira parte do diaacutelogo E

eacute justamente isso que a leitura assimeacutetrica de Allen nos impede de reconhecer As

diversas criacuteticas apresentadas por Parmecircnides constituem passos distintos de um

mesmo argumento cujo uacutenico objetivo eacute demonstrar a impossibilidade de se

conceber as Formas como unidades perfeitas isto eacute singulares e indivisiacuteveis

O dilema da participaccedilatildeo reproduz em sua forma a estrateacutegia geral das

criacuteticas de Parmecircnides que pretendem demonstrar a incompatibilidade entre duas

teses centrais da Teoria das Ideias 1) a tese de que as Formas satildeo as causas das

propriedades dos objetos sensiacuteveis e 2) a tese de que as Formas satildeo entidades

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uacutenicas singulares e indivisiacuteveis Se observarmos a conclusatildeo de cada um dos

argumentos podemos ver que Parmecircnides insiste a todo instante na

impossibilidade de se manter simultaneamente estas duas afirmaccedilotildees

1) Se a participaccedilatildeo se daacute na totalidade da Forma entatildeo as Formas

satildeo indivisiacuteveis poreacutem natildeo satildeo numericamente uacutenicas (132b1-2

Ἓν ἄρα ὂν καὶ ταὐτὸν ἐν πολλοῖς καὶ χωρὶς οὖσιν ὅλον ἅmicroα

ἐνέσται καὶ οὕτως αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς ἂν εἴη)

2) Se a participaccedilatildeo se daacute em uma parte da Forma entatildeo as Formas

satildeo numericamente uacutenicas poreacutem natildeo satildeo indivisiacuteveis (132c9-

10Ἦ οὖν ἐθελήσεις ὦ Σώκρατες φάναι τὸ ἓν εἶδος ἡmicroῖν τῇ

ἀληθείᾳ microερίζεσθαι καὶ ἔτι ἓν ἔσται

2) Perceber uma Forma uacutenica sobre uma multiplicidade de objetos

sensiacuteveis implica em um regresso ao infinito e o que seria uma

Forma uacutenica mostra-se ldquoilimitada em quantidaderdquo (132b1-2καὶ

οὐκέτι δὴ ἓν ἕκαστόν σοι τῶν εἰδῶν ἔσται ἀλλὰ ἄπειρα τὸ

πλῆθος)

3) Sustentar que cada Forma eacute um ldquopensamentordquo (νόηmicroα) permite que

ela seja tanto uacutenica quanto indivisiacutevel Poreacutem neste caso a proacutepria

noccedilatildeo de participaccedilatildeo se mostra absurda (132c9-11 οὐκ ἀνάγκῃ ᾗ

τἆλλα φῂς τῶν εἰδῶν microετέχειν ἢ δοκεῖ σοι ἐκ νοηmicroάτων ἕκαστον

εἶναι καὶ πάντα νοεῖν ἢ νοήmicroατα ὄντα ἀνόητα εἶναι)

4) Sustentar que a Formas satildeo ldquoparadigmasrdquo (παραδείγmicroατα) garante

sua indivisibilidade poreacutem o regresso ao infinito resurge e as

Formas passam novamente a se multiplicar indefinidamente

(133a1-3 καὶ οὐδέποτε παύσεται ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον ἐὰν

τὸ εἶδος τῷ ἑαυτοῦ microετέχοντι ὅmicroοιον γίγνηται)

Como podemos perceber a duplicidade de sentido que o termo ἓν recebe

nos argumentos de Parmecircnides equivale agrave duplicidade de sentido que o termo

πολλά adquire durante a argumentaccedilatildeo de Zenatildeo De um ponto de vista dramaacutetico

a formulaccedilatildeo do dilema da participaccedilatildeo representa o momento em que

Parmecircnides aceitando o desafio lanccedilado por Soacutecrates inicia sua demonstraccedilatildeo de

que as Formas natildeo estatildeo aptas a manter as caracteriacutesticas ontoloacutegicas que as

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distinguem dos objetos sensiacuteveis e as tornam imunes ao paradoxo de Zenatildeo Caso

Soacutecrates natildeo se mostre capaz de articular uma explicaccedilatildeo para a hipoacutetese da

participaccedilatildeo que salve ao mesmo tempo a singularidade e a indivisibilidade das

Formas Parmecircnides teraacute demonstrado que as Formas natildeo constituem uma soluccedilatildeo

teoricamente viaacutevel para o paradoxo de abertura do diaacutelogo Afinal privadas de

sua singularidade e uniformidade caracteriacutesticas as Formas estaratildeo elas tambeacutem

sujeitas aos paradoxos de Zenatildeo O tema da unidade das Formas eacute portanto o

elemento fundamental de ligaccedilatildeo entre as criacuteticas de Parmecircnides e os argumentos

anteriormente desenvolvidos por Soacutecrates e Zenatildeo

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425 Participaccedilatildeo no todo da Forma

No primeiro ramo do dilema proposto por Parmecircnides os objetos

sensiacuteveis participam no todo de uma Forma (ὅλου τοῦ εἴδους) Como

consequecircncia as coisas recebem como sua propriedade imanente a totalidade de

uma Forma que por sua vez passa a estar presente (ἐν ἐνεῖναι) inteira em cada

um de seus participantes

ldquoEntatildeo parece-te que a Forma inteira sendo uma39 estaacute em cada uma das muacuteltiplas coisas Ou como seria ldquoMas o que impede Parmecircnides [que ela esteja que ela seja uma]40 Entatildeo sendo uma e a mesma estaraacute inteira simultaneamente em coisas que satildeo muacuteltiplas e separadas e assim ela estaria separada de si mesma41rdquo Πότερον οὖν δοκεῖ σοι ὅλον τὸ εἶδος ἐν ἑκάστῳ εἶναι τῶν πολλῶν ἓν ὄν ἢ πῶς Τί γὰρ κωλύει φάναι τὸν Σωκράτη ὦ Παρmicroενίδη [ἓν εἶναι ἐνεῖναι ] Ἓν ἄρα ὂν καὶ ταὐτὸν ἐν πολλοῖς καὶ χωρὶς οὖσιν ὅλον ἅmicroα ἐνέσται καὶ οὕτως αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς ἂν εἴη (131a8-b2)

Com este breve argumento Parmecircnides pretende demonstrar que para que

possam estar presentes por inteiro em uma multiplicidade de coisas distintas as

Formas precisam tambeacutem ser muacuteltiplas Apesar de extremamente conciso o

argumento pode ser entendido da seguinte maneira De acordo com a premissa de

participaccedilatildeo no todo de uma Forma se os objetos x y e z participam da Forma F

a Forma F estaacute presente por inteiro em x y e z Ora as variaacuteveis x y e z

representam objetos sensiacuteveis distintos ldquocoisas muacuteltiplas e separadasrdquo (πολλοῖς

καὶ χωρὶς) Sendo assim para que possa estar presente como um todo (ὅλον τὸ

39 ldquoSendo umardquo (ἓν ὄν) significa aqui ldquosendo numericamente uacutenicardquo Este sentido eacute mais

claramente explicitado em 131b1 pela expressatildeo ἓν ὂν καὶ ταὐτὸν ὅλον em que a qualificaccedilatildeo καὶ ταὐτὸν eacute acrescentada para destacar que segundo a hipoacutetese adotada uma mesma Forma uacutenica deve estar por inteiro em cada um dos muacuteltiplos participantes

40 A maior parte dos tradutores modernos leem a uacuteltima claacuteusula desta sentenccedila como ἐνεῖναι (que ela esteja) corrigindo os manuscritos antigos nos quais consta ἓν εἶναι (que seja uma) A hipoacutetese que jaacute aparece em Proacuteclus e foi ressucitada por Schleiermacher parece fazer sentido Afinal sem esta correccedilatildeo Soacutecrates estaria mudando o foco da discussatildeo e antecipando de maneira surpreendente a conclusatildeo do argumento de Parmecircnides A questatildeo contudo eacute irrelevante para validade de argumentaccedilatildeo aqui proposta uma vez que segundo nossa interpretaccedilatildeo Parmecircnides pretende demonstrar justamente a contradiccedilatildeo entre a hipoacutetese da presenccedila da Forma nas coisas (ἐνεῖναι) e a hipoacutetese de sua unidade (ἓν εἶναι)

41 ldquoSeparada de si mesmardquo (αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς) Uma vez que esta expressatildeo eacute apresentada em contraste com ἓν ὂν καὶ ταὐτὸν devemos enterder que ldquoseparar-se de si mesmordquo significa ldquomultiplicar-serdquo ldquotornar-se (numericamente) muacuteltiplordquo em oposiccedilatildeo a ldquomanter-se (numericamente) singularrdquo ou ldquoser um e o mesmordquo (ἓν ὂν καὶ ταὐτὸν)

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εἶδος) em cada uma destas coisas a Forma F deve ser ela mesma separada de si

mesma isto eacute muacuteltipla Portanto caso optemos pelo primeiro ramo do dilema da

participaccedilatildeo natildeo podemos falar de uma uacutenica Forma F pois o que temos eacute uma

diversidade de Formas Fx Fy e Fz cada uma das quais presente em um dos

objetos sensiacuteveis que participam de F

Eacute preciso notar que este argumento pressupotildee a participaccedilatildeo simultacircnea

de uma multiplicidade de coisas em uma mesma Forma Nenhuma contradiccedilatildeo

surgiria caso Soacutecrates estivesse disposto a reconhecer que a participaccedilatildeo se daacute de

maneira exclusiva com cada Forma tendo apenas um participante por vez Assim

Soacutecrates poderia participar da Forma do Homem apenas no caso de que Platatildeo

natildeo participasse no mesmo momento desta Forma Parmecircnides parece

reconhecer este fato e acrescenta a palavra ἅmicroα (simultaneamente) em sua

conclusatildeo do argumento Soacutecrates no entanto sequer considera a hipoacutetese de um

modo de participaccedilatildeo exclusivo Afinal a adoccedilatildeo de tal hipoacutetese significaria

privar as Formas de seu papel de causa universal o que tornaria a proacutepria relaccedilatildeo

de participaccedilatildeo irrelevante como explicaccedilatildeo para a diversidade de fenocircmenos do

mundo sensiacutevel

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426 Participaccedilatildeo em partes da Forma

Na tentativa de salvar a singularidade das Formas sem ter que abandonar

o caraacuteter muacuteltiplo e simultacircneo da participaccedilatildeo Soacutecrates apresenta uma analogia

uma Forma natildeo estaria separada de si mesma caso ela fosse como o dia que pode

estar em diferentes lugares sem perder sua singularidade isto eacute sem deixar de ser

um e o mesmo dia (ἡmicroέρα microία καὶ ἡ αὐτὴ)

ldquoNatildeo estaria disse ele se pelo menos como o dia que sendo um e o mesmo estaacute em muitos lugares simultaneamente e nem por isso estaacute ele mesmo separado de si mesmo se assim tambeacutem cada uma das Formas fosse uma e a mesma [estando] simultaneamente em todas as coisasrdquo Οὐκ ἄν εἴ γε φάναι οἷον [εἰ] ἡmicroέρα [εἴη] microία καὶ ἡ αὐτὴ οὖσα πολλαχοῦ ἅmicroα ἐστὶ καὶ οὐδέν τι microᾶλλον αὐτὴ αὑτῆς χωρίς ἐστιν εἰ οὕτω καὶ ἕκαστον τῶν εἰδῶν ἓν ἐν πᾶσιν ἅmicroα ταὐτὸν εἴη (131b3-6)

Parmecircnides responde propondo uma nova analogia

ldquoDe bela maneira Soacutecrates disse ele fazes uma e a mesma coisa [estar] simultaneamente em muitos lugares como se cobrindo com uma vela muitos homens dissesses ser ela inteira uma sobre muacuteltiplos Ou natildeo eacute algo deste tipo que acreditas estar dizendo Talvez disse elerdquo Ἡδέως γε φάναι ὦ Σώκρατες ἓν ταὐτὸν ἅmicroα πολλαχοῦ ποιεῖς οἷον εἰ ἱστίῳ καταπετάσας πολλοὺς ἀνθρώπους φαίης ἓν ἐπὶ πολλοῖς εἶναι ὅλον ἢ οὐ τὸ τοιοῦτον ἡγῇ λέγειν Ἴσως φάναι (131b7-c1)

Eacute comum entre os comentadores a opiniatildeo de que a metaacutefora apresentada

por Parmecircnides natildeo possui as mesmas virtudes da metaacutefora socraacutetica e que apenas

a inexperiecircncia do jovem Soacutecrates pode explicar a sua aceitaccedilatildeo da equivalecircncia

entre estas duas maneiras de entender a relaccedilatildeo entre Formas e coisas (cf Sayre

1996 p76) (cf Miller 1986 p49) Mas o que exatamente Soacutecrates poderia estar

entendendo por ldquodiardquo neste argumento Qual eacute o sentido de sua analogia e de que

maneira esta analogia poderia apresentar uma alternativa viaacutevel para compreensatildeo

da participaccedilatildeo no todo de uma Forma

A primeira opccedilatildeo eacute que Soacutecrates esteja entendo por ldquodiardquo a ldquoluz do diardquo

Neste caso a proposta de Parmecircnides eacute certamente equivalente e apenas torna

mais clara a metaacutefora socraacutetica Afinal a luz do dia possui uma natureza material

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e nada mais eacute do que uma espeacutecie de substacircncia homogecircnea que cobre

simultaneamente diferentes lugares A luminosidade do dia banha distintos

lugares exatamente como uma vela estendida sobre diversas pessoas Contudo

assim entendida a metaacutefora socraacutetica natildeo realiza o objetivo em vista do qual eacute

formulada O que Soacutecrates precisa demonstrar natildeo eacute meramente que a luz de um

mesmo dia ilumina diferentes lugares ao mesmo tempo Para que a metaacutefora

cumpra seu papel Soacutecrates precisa demonstrar como estes diferentes lugares

podem estar iluminados simultaneamente pela totalidade da luz de um mesmo

dia isto eacute como a luz do dia ldquosendo uma e a mesmardquo pode estar por inteiro em

cada um dos lugares que ilumina

A segunda opccedilatildeo de interpretaccedilatildeo para metaacutefora socraacutetica parece a

princiacutepio mais promissora Eacute possiacutevel que Soacutecrates esteja entendendo por ldquodiardquo o

periacuteodo de tempo em que esta luminosidade recobre a terra e que sendo um e o

mesmo estaria presente simultaneamente em Atenas e Esparta Neste caso a

analogia socraacutetica ldquoum dia sobre muitos lugaresrdquo possuiria o meacuterito de ressaltar a

imaterialidade das Formas o que eacute completamente perdido na analogia ldquouma vela

sobre muitas pessoasrdquo apresentada por Parmecircnides Pois quando Soacutecrates afirma

que o mesmo dia estaacute ao mesmo tempo em diferentes lugares o que ele estaacute

dizendo eacute que um mesmo intervalo de tempo ocorre simultaneamente em

lugares distintos Assim no mesmo intervalo de tempo em que Soacutecrates eacute julgado

em Atenas Lisandro se diverte em Esparta

Apesar de trivialmente correta esta segunda interpretaccedilatildeo para a analogia

do dia tampouco parece servir para os propoacutesitos de Soacutecrates Para que sua

metaacutefora lhe seja uacutetil na presente argumentaccedilatildeo Soacutecrates precisaria demonstrar

natildeo que diversas coisas acontecem simultaneamente em um mesmo dia mas que

o mesmo dia estaacute presente por inteiro em cada um dos momentos em que estas

coisas acontecem Ningueacutem negaria o fato de que um determinado momento do

dia ocorre simultaneamente em diferentes lugares Poreacutem o ponto em disputa eacute se

podemos ou natildeo entender cada um destes momentos como equivalentes agrave

totalidade de um mesmo dia Ora eacute claro que uma resposta afirmativa para esta

questatildeo seria absurda uma vez que colapsaria a totalidade de um dia em cada um

dos momentos de que eacute composto O dia entendido como um intervalo de tempo

possui duraccedilatildeo da mesma maneira que um objeto fiacutesico possui extensatildeo Sendo

assim os momentos sucessivos de um dia natildeo podem ser considerados idecircnticos agrave

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totalidade deste dia do mesmo modo que as diversas partes de um objeto extenso

natildeo satildeo idecircnticas agrave totalidade da qual fazem parte Aleacutem disso uma interpretaccedilatildeo

temporal para a metaacutefora do dia ainda estaacute sujeita agrave seguinte circularidade se

entendermos ldquosimultaneamenterdquo no seu sentido usual de ldquoao mesmo tempordquo a

analogia de Soacutecrates estaria afirmando que ldquoum mesmo intervalo de tempordquo

ocorre ldquoao mesmo tempordquo em diferentes lugares o que eacute claramente absurdo 42

O que Parmecircnides revela ao transformar a imagem de um dia sobre vaacuterios

lugares na imagem de uma vela sobre diversas pessoas eacute que ambas estas coisas (o

dia e a vela) quando consideradas com a devida atenccedilatildeo natildeo se apresentam como

entidades uacutenicas e indivisiacuteveis tal como Soacutecrates pretende fazer crer O fato de

falarmos de ldquoum diardquo como uma entidade singular natildeo nos garante que estejamos

tratando de fato de uma entidade uacutenica e indivisiacutevel Noacutes tambeacutem nos referimos

agrave ldquoguerra de Troacuteiardquo como um evento singular no entanto eacute muito claro que a

guerra de Troacuteia constitui na verdade uma seacuterie de eventos distintos Da mesma

maneira quando falamos de uma vela sobre diversas pessoas (ou diversas pessoas

sob um mesmo teto) tratamos esta vela (ou este teto) como um entidade singular

Neste caso poreacutem eacute mais faacutecil perceber que natildeo eacute a totalidade da vela que se

encontra sobre cada um dos indiviacuteduos mas apenas uma parte dela

Portanto ao formular a metaacutefora de uma vela sobre uma multiplicidade de

pessoas Parmecircnides natildeo estaacute deturpando a metaacutefora socraacutetica ou destituindo-a de

seu valor como soluccedilatildeo ao problema da participaccedilatildeo Muito pelo contraacuterio ao

reinterpretar a analogia socraacutetica Parmecircnides apenas torna evidente as

consequecircncias da proposta inicial apresentada por Soacutecrates Afirmar que uma

Forma uacutenica estaacute sobre muitas coisas equivale a afirmar que cada coisa possui

sobre si uma parte desta Forma exatamente da mesma maneira que a luz que

banha Soacutecrates pela manhatilde eacute apenas uma parte da totalidade da luz que ilumina a

Aacutetica e do mesmo modo que o momento da manhatilde em que Soacutecrates toma seu

banho de sol eacute apenas uma parte do intervalo de tempo que compotildee um dia

ldquoSeraacute entatildeo que a vela inteira estaria sobre cada um ou uma parte dela sobre um outra sobre outro Uma parte Logo Soacutecrates disse ele satildeo divisiacuteveis as Formas mesmas e as coisas que delas

42 Esta circularidade foi observada primeiramente por Allen que acaba por descartar

completamente a possibilidade da metaacutefora socraacutetica estar se referindo ao dia em seu sentido temporal (cf Allen 1997 p132)

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participam participariam de uma de suas partes e natildeo eacute mais o todo que estaria em cada uma das coisas mas sim uma parte caberia a cada coisa Parece pelo menos que eacute assim Seraacute entatildeo Soacutecrates que estaraacutes disposto a dizer que a Forma uma em verdade se nos divide e ainda seraacute uma43 De maneira alguma disse Soacutecratesrdquo Ἦ οὖν ὅλον ἐφ ἑκάστῳ τὸ ἱστίον εἴη ἄν ἢ microέρος αὐτοῦ ἄλλο ἐπ ἄλλῳ Μέρος Μεριστὰ ἄρα φάναι ὦ Σώκρατες ἔστιν αὐτὰ τὰ εἴδη καὶ τὰ microετέχοντα αὐτῶν microέρους ἂν microετέχοι καὶ οὐκέτι ἐν ἑκάστῳ ὅλον ἀλλὰ microέρος ἑκάστου ἂν εἴη Φαίνεται οὕτω γε Ἦ οὖν ἐθελήσεις ὦ Σώκρατες φάναι τὸ ἓν εἶδος ἡmicroῖν τῇ ἀληθείᾳ microερίζεσθαι καὶ ἔτι ἓν ἔσται Οὐδαmicroῶς εἰπεῖν (131c2-11)

A tentativa de oferecer uma metaacutefora como explicaccedilatildeo para a hipoacutetese da

participaccedilatildeo no todo de uma Forma apenas forccedilou Soacutecrates na direccedilatildeo do segundo

ramo do dilema Tal como uma vela estendida sobre uma multiplicidade de

indiviacuteduos a Forma se mostra agora divida por seus participantes Cada um dos

objetos sensiacuteveis que participam de uma Forma recebe como sua propriedade

imanente uma parte desta Forma Isto eacute se x e y participam da Forma F entatildeo

uma parte de F estaacute em x e uma parte de F estaacute em y Eacute preciso observar que cada

um destes objetos recebe sua propriedade imanente de maneira exclusiva Pois se

considerarmos a propriedade imanente F-em-x como idecircntica agrave propriedade

imanente F-em-y nos encontraremos novamente submetidos ao argumento do

primeiro ramo do dilema Sendo assim como resultado da adoccedilatildeo do segundo

ramo do dilema da participaccedilatildeo as Formas passam a possuir um nuacutemero de partes

igual ao nuacutemero de objetos que delas participam

Novamente o caraacuteter unitaacuterio das Formas se mostra incompatiacutevel com a

hipoacutetese de que os objetos sensiacuteveis participam nas Formas Neste caso poreacutem

natildeo eacute a singularidade numeacuterica das Formas o que eacute perdido na relaccedilatildeo com os

muacuteltiplos objetos do mundo sensiacutevel mas a uniformidade ou integridade das

Formas isto eacute sua indivisibilidade

Soacutecrates reconhece prontamente o absurdo desta conclusatildeo e se recusa a

admitir que uma Forma uacutenica possa estar dividida pelos objetos sensiacuteveis que

dela participam (τὸ ἓν εἶδος ἡmicroῖν τῇ ἀληθείᾳ microερίζεσθαι) Este resultado por si soacute

43 καὶ ἔτι ἓν ἔσται aqui ldquoser umrdquo significa ldquoser indivisiacutevelrdquo como deixa claro o contraste

estabelecido por Parmecircnides entre esta claacuteusula e o verbo microερίζεσθαι (dividir-se) Como jaacute observamos neste segundo ramo do dilema da participaccedilatildeo eacute a noccedilatildeo de integridade ou indivisibilidade das Forma que se mostra incompatiacutevel com a hipoacutetese da participaccedilatildeo

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jaacute eacute suficiente para descartar o segundo ramo do dilema e com ele a hipoacutetese de

que as coisas participam em partes das Formas A partir deste momento a reduccedilatildeo

ao absurdo operada pelo dilema jaacute estaacute realizada Segundo as premissas do

dilema soacute haacute participaccedilatildeo no todo ou em parte de uma Forma Contudo a

participaccedilatildeo no todo acaba por multiplicar as Formas e a participaccedilatildeo em partes

por dividi-las Como as Formas satildeo por definiccedilatildeo entidades singulares e

indivisiacuteveis entatildeo natildeo pode haver participaccedilatildeo nas Formas

Entretanto Parmecircnides natildeo se daacute por satisfeito com este resultado e passa

a apresentar uma seacuterie de argumentos que pretendem ilustrar as consequecircncias

absurdas agraves quais seriacuteamos levados caso aceitaacutessemos a efetiva divisatildeo das

Formas

ldquoPois vecirc disse Parmecircnides Se dividires a Grandeza mesma e se cada uma das muacuteltiplas coisas grandes for grande em virtude de uma parte da Grandeza [parte esta] menor que a Grandeza mesma seraacute que isso natildeo pareceraacute absurdo Perfeitamente disse ele Mas como Cada coisa recebendo uma parte do Igual uma [parte] pequena que eacute menor que o Igual mesmo teraacute algo com que seraacute igual ao que quer que seja Impossiacutevel E mais eacute uma parte do Pequeno que algum de noacutes teraacute e o Pequeno seraacute maior que essa parte mesma sendo esta uma parte dele e assim pois o Pequeno seraacute maior e aquilo a que for adicionada a parte subtraiacuteda seraacute menor e natildeo maior que antes Isso natildeo poderia ocorrer disse ele Ὅρα γάρ φάναι εἰ αὐτὸ τὸ microέγεθος microεριεῖς καὶ ἕκαστον τῶν πολλῶν microεγάλων microεγέθους microέρει σmicroικροτέρῳ αὐτοῦ τοῦ microεγέθους microέγα ἔσται ἆρα οὐκ ἄλογον φανεῖται Πάνυ γ ἔφη Τί δέ τοῦ ἴσου microέρος ἕκαστον σmicroικρὸν ἀπολαβόν τι ἕξει ᾧ ἐλάττονι ὄντι αὐτοῦ τοῦ ἴσου τὸ ἔχον ἴσον τῳ ἔσται Ἀδύνατον Ἀλλὰ τοῦ σmicroικροῦ microέρος τις ἡmicroῶν ἕξει τούτου δὲ αὐτοῦ τὸ σmicroικρὸν microεῖζον ἔσται ἅτε microέρους ἑαυτοῦ ὄντος καὶ οὕτω δὴ αὐτὸ τὸ σmicroικρὸν microεῖζον ἔσται ᾧ δ ἂν προστεθῇ τὸ ἀφαιρεθέν τοῦτο σmicroικρότερον ἔσται ἀλλ οὐ microεῖζον ἢ πρίν Οὐκ ἂν γένοιτο φάναι τοῦτό γε (131c12-e2)

Na tentativa de estabelecer de maneira ainda mais clara a inviabilidade do

segundo ramo do dilema da participaccedilatildeo satildeo apresentadas trecircs consequecircncias

absurdas decorrentes da hipoacutetese de que os objetos sensiacuteveis participam em partes

das Formas Segundo a argumentaccedilatildeo de Parmecircnides caso adotemos o segundo

ramo do dilema

1) Uma coisa grande seraacute grande em virtude de uma parte da

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Grandeza menor do que a Grandeza mesma e portanto seraacute grande

em virtude daquilo que eacute pequeno

2) Uma coisa igual seraacute igual em virtude de uma parte pequena da

Igualdade e portanto seraacute igual em virtude daquilo que eacute desigual

3) Se subtrairmos uma parte do Pequeno o Pequeno em si seraacute maior

do que cada uma de suas partes e portanto o Pequeno seraacute maior

Por outro lado o objeto sensiacutevel que receber uma de suas partes se

tornaraacute menor e natildeo maior em virtude desta adiccedilatildeo

Para que possamos entender o que torna estas conclusotildees inaceitaacuteveis do

ponto de vista de Soacutecrates e sua Teoria das Ideias precisamos ter em mente o

poder causal exercido pelas Formas sobre os objetos sensiacuteveis De acordo com a

teoria da causalidade defendida por Soacutecrates uma causa deve possuir a

caracteriacutestica que ela produz nas coisas Assim no Protaacutegoras (332b1) Soacutecrates

afirma que eacute ldquopela temperanccedila que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (σωφροσύνῃ

σωφρονοῦσιν) no Teeteto (145d11) que eacute ldquopela sabedoria que os saacutebios satildeo

saacutebiordquo (Σοφίᾳ δέ γ οἶmicroαι σοφοὶ οἱ σοφοί) e no Hiacuteppias Maior que eacute ldquopelo belo

que todas as coisas belas satildeo belasrdquo (Ἆρ οὖν οὐ καὶ τὰ καλὰ πάντα τῷ καλῷ ἐστι

καλά) Nestas passagens Soacutecrates faz uso do dativo instrumental para apresentar

em uma sentenccedila cuja forma eacute aparentemente tautoloacutegica aquilo que ele e seus

interlocutores tomam como uma verdade autoevidente Isto eacute que a despeito do

estatuto ontoloacutegico que estejamos dispostos a atribuir para a causa das

propriedades dos objetos sensiacuteveis eacute impossiacutevel pensar que esta causa natildeo

possua ela mesma a propriedade que produz Em paralelo a esta assunccedilatildeo

Soacutecrates e seus interlocutores tomam como autocontraditoacuteria a hipoacutetese de que

uma causa possa ser caracterizada pela propriedade oposta agravequela de que eacute causa

Pois ldquoeacute iloacutegico (ἄλογόν) [admitir] que algueacutem seja corajoso pelo medo e pela

covardiardquo (καίτοι ἄλογόν γε δέει τινὰ καὶ δειλίᾳ ἀνδρεῖον εἶναι Feacuted68d) e ldquoeacute

assombroso (τέρας) que algo grande seja grande em virtude de alguma coisa

pequenardquo (καὶ τοῦτο δὴ τέρας εἶναι τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι Feacuted101b1-

2)44

44 Para outras passagens em que Soacutecrates afirma a impossibilidade de que uma causa possa ser

caracterizada pela propriedade oposta agravequela de que eacute causa Feacuted 68d 68e 100a-b Rep335c-d Prot355d Teet 199d

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Como vimos este princiacutepio baacutesico relativo agrave noccedilatildeo de causalidade eacute

ostensivamente apresentado no Feacutedon como a razatildeo para o fato de podermos de

maneira segura oferecer as Formas como causas das propriedades dos objetos

sensiacuteveis Em Feacuted102d6-8 Soacutecrates expande estes criteacuterios para as propriedades

imanentes afirmando que ldquonatildeo apenas a Grandeza em si jamais admitiraacute ser

simultaneamente grande e pequena como tambeacutem a grandeza-em-noacutes jamais

admitiraacute a pequenezrdquo (οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ

σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν)45

No Parmecircnides (129b1-2) encontramos esta mesma alegaccedilatildeo repetida quanto

Soacutecrates desafia seus interlocutores a lhe demonstrarem que a propriedade

imanente da semelhanccedila (αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά) pode se tornar dessemelhante e a

propriedade imanente da dessemelhanccedila semelhante

Portanto de acordo com a Teoria das Ideias para que possamos dizer que

um determinado objeto sensiacutevel x eacute F eacute preciso que tanto a Forma F quanto a

propriedade imanente F-em-x sejam unicamente caracterizadas pelo predicado F

isto eacute sejam auto-predicativas e natildeo apareccedilam nunca como o contraacuterio de F

Nos argumentos 1 e 2 Parmecircnides demonstra que a adoccedilatildeo do segundo

ramo do dilema natildeo pode ser harmonizada com a hipoacutetese de que as propriedades

imanentes satildeo entidades uniformes unicamente caracterizadas pela auto-

predicaccedilatildeo e completamente isentas da predicaccedilatildeo de opostos De acordo com o

segundo ramo do dilema um objeto x eacute grande por apresentar como sua

propriedade imanente uma parte da Grandeza Contudo por ser apenas uma parte

a grandeza-em-x eacute menor do que a Grandeza em si que representa o todo do qual

a grandeza-em-x eacute uma parte Consequentemente x eacute grande em virtude de uma

propriedade imanente que eacute ela mesma pequena Da mesma maneira se um

objeto y eacute igual em virtude de uma parte do Igual menor do que o Igual em si

entatildeo y eacute igual em virtude daquilo que eacute desigual

Em 3 Parmecircnides muda o foco de sua criacutetica A propriedade imanente

pequeno-em-x considerada como uma parte do Pequeno em si eacute de fato

pequena e natildeo estaria sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos Contudo neste caso a

45 O mesmo ponto eacute reafirmado em 102e5-103a1 Eacute preciso notar que tal afirmaccedilatildeo estaacute em pleno

acordo com o papel das propriedades imanentes na soluccedilatildeo de Soacutecrates para o problema da copresenccedila de opostos Afinal admtir que uma propriedade imanente eacute caracterizada por seu oposto seria equivalente a afirmar que um mesmo elemento constituinte de Soacutecrates eacute simultaneamente grande e pequeno o que natildeo solucionaria o problema da copresenccedila de

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contradiccedilatildeo eacute encontrada na proacutepria Forma do Pequeno Pois se a Forma do

Pequeno eacute maior do que cada uma de suas partes o Pequeno em si eacute grande

Novamente nos vemos frente a uma impossibilidade loacutegica pois a causa das

coisas serem pequenas seria ela mesma grande Com relaccedilatildeo ao poder causal

exercido pela Forma do Pequeno Parmecircnides ainda acrescenta uma uacuteltima

perplexidade caso entendamos que um objeto z torna-se pequeno por adquirir a

propriedade imanente pequeno-em-z seremos obrigados a admitir que o objeto z

torna-se pequeno em virtude de uma adiccedilatildeo o que estaacute em claro desacordo com os

princiacutepios baacutesicos da matemaacutetica

As conclusotildees obtidas por Parmecircnides demonstram que a hipoacutetese da

participaccedilatildeo em partes das Formas teria como consequecircncia a predicaccedilatildeo de

opostos da Forma do Pequeno e das propriedades imanentes do grande e do igual

Consequentemente o poder causal exercido por estas trecircs Formas especiacuteficas

tornar-se-ia inexplicaacutevel uma vez que um dos princiacutepios baacutesicos da causalidade

seria violado e estas entidades estariam sujeitas ao problema da predicaccedilatildeo de

opostos para o qual deveriam servir de soluccedilatildeo

Como podemos perceber estes trecircs argumentos apresentam paradoxos

especiacuteficos relativos apenas agraves Formas do Grande do Igual e do Pequeno

fugindo portanto da generalidade encontrada na argumentaccedilatildeo de Parmecircnides ateacute

aqui Aleacutem disso estes argumentos satildeo estruturalmente desnecessaacuterios uma vez

que Soacutecrates jaacute havia admitido a inviabilidade do segundo ramo do dilema ao

concluir que seria impossiacutevel aceitar que uma Forma uacutenica possa estar dividida

por seus participantes (τὸ ἓν εἶδος microερίζεσθαι)46

Podemos nos perguntar por que Platatildeo incluiria esta descontinuidade

umas vez que os argumentos seguintes voltaratildeo a ser dirigidos contra o conjunto

de Formas em sua generalidade Minha opiniatildeo eacute que Platatildeo apresenta estes trecircs

argumentos como encerramento dos problemas relativos ao dilema da participaccedilatildeo

com o intuito de chamar a atenccedilatildeo do leitor para o tema da auto-predicaccedilatildeo das

Formas O fato de que as Formas satildeo entidades auto-predicativas estaacute diretamente

opostos

46 De fato no momento mesmo em que Soacutecrates aceita a analogia da vela oferecida por Parmecircnides o segundo ramo do dilema da participaccedilatildeo torna-se inviaacutevel Afinal o fato de Soacutecrates possuir diversas partes havia sido suficiente para concluir que ele Soacutecrates eacute muacuteltiplo Sendo assim por paridade de raciociacutenio o fato de mais de um objeto sensiacutevel participar de uma mesma Forma que estende suas diversas partes sobre estes objetos eacute suficiente para concluir a multiplicidade desta Forma

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relacionado com os paradoxos relativos agraves Formas do Grande do Igual e do

Pequeno e seraacute fundamental na compreensatildeo dos dois regressos ao infinito que

seratildeo apresentados nos proacuteximos argumentos Contudo em todos estes

argumentos a caracteriacutestica de auto-prediccedilatildeo das Formas aparece como uma

premissa pressuposta nunca textualmente expressa Portanto ao apresentar esta

seacuterie de trecircs paradoxos nos quais a auto-predicaccedilatildeo das Formas estaacute claramente

em jogo Platatildeo oferece aos leitores do Parmecircnides uma chave de leitura para a

compreensatildeo dos regressos que seratildeo apresentados em seguida

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427 A validade do dilema da participaccedilatildeo como criacutetica agrave Teoria das Ideias

O dilema da participaccedilatildeo constitui uma reduccedilatildeo ao absurdo formalmente

vaacutelida Soacutecrates havia sustentado que 1) existem Formas e 2) os objetos sensiacuteveis

participam nestas Formas O dilema apresenta duas alternativas exaustivas de

compreensatildeo para o que seria a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo e ambas se mostram

inaceitaacuteveis para Teoria das Ideias Logo o dilema da participaccedilatildeo implica na

falsidade da tese 2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis participam nas Formas Eacute

claro contudo que a validade destas duas teses eacute plenamente independente

Parmecircnides provou que a tese 2) eacute falsa a despeito do fato de que a tese 1) possa

ser verdadeira e as Formas possam ser consideradas entidades reais

No entanto desde jaacute cabe a pergunta qual seria a vantagem teoacuterica de se

admitir a existecircncia das Formas sem que fique esclarecida a natureza da relaccedilatildeo

que estas entidades mantecircm com os objetos do mundo empiacuterico Uma satisfatoacuteria

compreensatildeo para natureza da relaccedilatildeo entre Formas e coisas mostra-se essencial

para validade da hipoacutetese das Formas pois a incapacidade de elucidar o modo

especiacutefico de relacionamento entre estes dois niacuteveis distintos da realidade teria

como resultado a total irrelevacircncia da postulaccedilatildeo das Formas Isto porque

isoladas das coisas do mundo sensiacutevel as Formas passariam a representar

entidades teoricamente irrelevantes e a postulaccedilatildeo destas entidades natildeo passaria

de uma supeacuterflua duplicaccedilatildeo da realidade empiacuterica

Contudo nada disso estaraacute em jogo caso as criacuteticas de Parmecircnides

comprovem-se irrelevantes para a Teoria das Ideias ou simplesmente falaciosas

Assim na tradiccedilatildeo de comentaacuterios ao Parmecircnides diversos autores procuraram

desqualificar natildeo apenas o sentido geral da argumentaccedilatildeo parmeniacutedica sob a

alegaccedilatildeo de que suas criacuteticas natildeo passam de uma grande piada ou de um mero

exerciacutecio eriacutestico como tambeacutem cada um dos argumentos separadamente Na

tentativa de invalidar o dilema da participaccedilatildeo e salvar a Teoria das Ideias deste

primeiro conjunto de criacuteticas trecircs estrateacutegias foram adotadas pelos comentadores

A primeira estrateacutegia jaacute foi por noacutes mencionada e consiste em afirmar que o

dilema da participaccedilatildeo natildeo diz respeito agrave Teoria das Ideias socraacutetica mas a uma

outra teoria qualquer Contudo como vimos a proacutepria estrutura do Parmecircnides

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proiacutebe este tipo de interpretaccedilatildeo No Parmecircnides eacute o proacuteprio Soacutecrates quem

apresenta a Teoria das Ideias e como demonstramos esta apresentaccedilatildeo guarda

todas as caracteriacutesticas essenciais da Teoria das Ideias encontrada nos diaacutelogos da

Juventude e Fase Meacutedia Sendo assim natildeo podemos descartar a validade do

dilema da participaccedilatildeo pela simples alegaccedilatildeo de que estamos lidando com um

caso de ignoratio elenchi

Uma segunda opccedilatildeo consiste em considerar o dilema da participaccedilatildeo como

formalmente correto poreacutem materialmente falso isto eacute fundado em falsas

premissas De acordo com este tipo de interpretaccedilatildeo que remonta ao comentaacuterio

de Proacuteclus (In Parm 859-862) o sentido de ldquoparticipaccedilatildeordquo inerente agraves criacuteticas de

Parmecircnides natildeo condiz com o sentido que esta expressatildeo recebe nos outros

diaacutelogos platocircnicos em que a Teoria das Ideias eacute apresentada Assim Cornford

comentando o dilema afirma que ldquoo argumento pressupotildee que o exemplar da

Grandeza que cabe agrave participaccedilatildeo de uma coisa grande eacute uma parte da Forma

entendida como um pedaccedilo (bit) no qual a Forma eacute cortada (cut up)rdquo De acordo

com Cornford este raciociacutenio entende os conceitos de ldquoparterdquo e ldquotodordquo em seu

ldquosentido mais grosseiro e materialrdquo (Cornford 1951 p85)

Adotando a mesma linha interpretativa Sprague alega que Parmecircnides soacute

pode chegar a suas conclusotildees porque interpreta ldquoparticipaccedilatildeordquo em um sentido

fiacutesico (physical sense) Segundo Sprague ldquouma reductio ad absurdum foi

construiacuteda mas apenas por meio de uma distorccedilatildeo da dualidade essencial da

teoria [das Ideias] e da relaccedilatildeo entre estes dois tipos de entidades [relaccedilatildeo esta]

que Platatildeo procura exprimir por meio de expressotildees como ldquoestar presenterdquo e

ldquoparticiparrdquo (Sprague 1967 p96)

Portanto de acordo estes autores o dilema da participaccedilatildeo apesar de

formalmente vaacutelido natildeo se apresenta como uma criacutetica honesta agrave Teoria das

Ideias Segundo este argumento Parmecircnides estaria interpretando de maneira

errocircnea o sentido do termo ldquoparticipaccedilatildeordquo O uso dos conceitos de todoparte

maiormenor e a compreensatildeo de ldquoparticipaccedilatildeordquo como a presenccedila da Forma nos

objetos sensiacuteveis seriam evidecircncias de uma reificaccedilatildeo da realidade inteligiacutevel que

segundo estes comentadores representaria uma brutal e inaceitaacutevel distorccedilatildeo da

verdadeira posiccedilatildeo socraacutetica

Ora a primeira objeccedilatildeo que podemos oferecer a este tipo de interpretaccedilatildeo

consiste em apresentar o fato dramaacutetico de que em nenhum momento da

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discussatildeo Soacutecrates protesta contra esta suposta deformaccedilatildeo de sua teoria Quando

Parmecircnides comeccedila a formular suas criacuteticas Soacutecrates jaacute havia apresentado sua

distinccedilatildeo fundamental entre ldquoas coisas que se vecircemrdquo (τοῖς ὁρωmicroένοις ) e ldquoas

coisas apreendidas pelo raciociacuteniordquo (τοῖς λογισmicroῷ λαmicroβανοmicroένοις ) estabelecendo

claros paracircmetros de diferenciaccedilatildeo entre estes dois tipos de entidades objetos

sensiacuteveis e Formas Caso o dilema da participaccedilatildeo se apresentasse como o

resultado da mera negligecircncia desta distinccedilatildeo fundamental o mais natural seria

que Soacutecrates reafirmasse esta distinccedilatildeo e bloqueasse a argumentaccedilatildeo parmeniacutedica

desde o iniacutecio Simplesmente natildeo haacute razatildeo para acreditarmos que Platatildeo tenha

decidido representar Soacutecrates em aporia por conta de um argumento decorrente da

negligecircncia da distinccedilatildeo proposta pelo proacuteprio Soacutecrates entre entidades sensiacuteveis

e inteligiacuteveis

O dilema da participaccedilatildeo funda-se no vocabulaacuterio empregado por Soacutecrates

para descrever a relaccedilatildeo entre Formas e coisas natildeo soacute no Parmecircnides como

tambeacutem por toda fase meacutedia e inicial Segundo Soacutecrates as coisas sensiacuteveis

ldquoparticipamrdquo (metexousin metalambanousin) das Formas ou ldquocomunicam-serdquo

(koinwnou=sin koinwnian e)xousin) com elas Como resultado desta relaccedilatildeo as

coisas sensiacuteveis passam a ldquopossuirrdquo (e)xousin) ou ldquoreceberrdquo (dexontai) as Formas

As Formas por sua vez passam a ldquoestar presentesrdquo (πάρεστιν) ou a ldquoestar nasrdquo

(e)neστι) coisas Portanto ao propor que a noccedilatildeo de participaccedilatildeo soacute pode ser

entendida por meio da disjunccedilatildeo partetodo Parmecircnides estaacute oferecendo

paracircmetros baacutesicos de compreensatildeo e anaacutelise para um conceito apresentado pelo

proacuteprio Soacutecrates

Os argumentos de Parmecircnides podem inclusive ser construiacutedos

formalmente sem que uma interpretaccedilatildeo material das Formas seja de qualquer

modo pressuposta Afinal a disjunccedilatildeo partetodo se mostra como uacutenica opccedilatildeo

vaacutelida para compreensatildeo de uma relaccedilatildeo descrita como ldquoa participaccedilatildeo da

entidade x na entidade yrdquo independente do estatuto ontoloacutegico atribuiacutedo e estas

entidades Uma evidecircncia disto encontra-se no fato de que nos Elementos (I

axioma 5) Euclides lista o axioma de que ldquoo todo eacute maior do que as partesrdquo (Καὶ

τὸ ὅλον τοῦ microέρους microεῖζον [ἐστιν]) como uma ldquonoccedilatildeo comumrdquo Tais ldquonoccedilotildees

comunsrdquo (koinai e)nnoiai) satildeo definidas como princiacutepios indemonstraacuteveis

comuns a todas as ciecircncias e que portanto ultrapassam o campo da geometria e

natildeo tecircm sua validade restrita aos raciociacutenios envolvendo coisas estendidas no

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espaccedilo (cf Heath 1956 p221-222)

Sendo assim natildeo haacute porque desqualificar o dilema da participaccedilatildeo sob a

alegaccedilatildeo de que este argumento funda-se em uma ldquocoisificaccedilatildeordquo falaciosa da

hipoacutetese das Formas Os argumentos de Parmecircnides ilustram contradiccedilotildees

decorrentes de uma determinada interpretaccedilatildeo para relaccedilatildeo entre objetos

empiacutericos e Formas proposta pelo proacuteprio Soacutecrates e que natildeo estaacute diretamente

fundada na atribuiccedilatildeo de uma natureza material para as Formas mas deriva do

reconhecimento de que qualquer tipo de participaccedilatildeo deve ser entendida por meio

dos conceitos baacutesicos de parte e todo Soacutecrates havia proposto que as coisas

sensiacuteveis participam das Formas e como consequecircncia desta participaccedilatildeo

adquirem suas diversas propriedades imanentes Natildeo haacute falaacutecia alguma em se

apresentar a disjunccedilatildeo todoparte como modos exaustivos de se compreender esta

relaccedilatildeo Pois de fato estas satildeo as uacutenicas maneiras logicamente possiacuteveis de

entendermos uma relaccedilatildeo descrita deste modo

Uma terceira maneira de desqualificar a validade do dilema consiste em

alegar tal como faz David Ross (Ross 1951 p88-89) que os argumentos de

Parmecircnides baseiam-se em uma interpretaccedilatildeo literal para termos que Soacutecrates

apresenta como meras metaacuteforas Segundo este tipo de interpretaccedilatildeo Soacutecrates

estaria imune agraves criacuteticas de Parmecircnides pelo fato de natildeo se propor a definir de

maneira precisa a relaccedilatildeo entre Formas e coisas Para Ross os conceitos de

ldquoparticipaccedilatildeordquo e ldquocomunhatildeordquo satildeo apresentados por Soacutecrates como ilustraccedilotildees

aproximadas para uma relaccedilatildeo reconhecida como na verdade indescritiacutevel

Ora eacute claro que tal objeccedilatildeo sequer constitui um argumento contra a

validade do dilema parmeniacutedico A noccedilatildeo de que a relaccedilatildeo entre Formas e coisas eacute

uma relaccedilatildeo uacutenica para qual nenhuma definiccedilatildeo satisfatoacuteria pode ser apresentada eacute

conveniente apenas como uma soluccedilatildeo ad hoc para os problemas levantados por

Parmecircnides De fato esta explicaccedilatildeo pressupotildee a validade das criacuteticas de

Parmecircnides para concluir que o termo ldquoparticipaccedilatildeordquo eacute meramente metafoacuterico e

natildeo se pretende como uma definiccedilatildeo seacuteria Aleacutem disso nos vemos novamente

frente ao fato dramaacutetico de que Soacutecrates em momento algum atribui uma

natureza sui generis e indescritiacutevel para relaccedilatildeo entre Formas e coisas Em total

oposiccedilatildeo ao que esperariacuteamos caso Platatildeo desejasse indicar o caraacuteter indefiniacutevel

desta relaccedilatildeo Soacutecrates iraacute propor no decorrer do diaacutelogo maneiras alternativas de

entender o relacionamento entre Formas e coisas o que evidencia a crenccedila deste

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personagem na possibilidade de uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria para esta relaccedilatildeo De

qualquer maneira o fato de Soacutecrates propor o termo ldquoparticipaccedilatildeordquo como uma

descriccedilatildeo metafoacuterica para o relacionamento entre Formas e coisas natildeo invalida ou

deslegitima as criacuteticas de Parmecircnides Afinal mesmo uma metaacutefora deve ser

investigada quando aparece no interior de uma hipoacutetese filosoacutefica Portanto

ainda que se trate de um uso meramente ilustrativo da palavra ldquoparticipaccedilatildeordquo este

uso deve ser analisado na intenccedilatildeo de concluirmos se este termo configura-se

como uma ilustraccedilatildeo adequada para a relaccedilatildeo entre Formas e coisas ou natildeo

A confirmaccedilatildeo dramaacutetica da relevacircncia da argumentaccedilatildeo de Parmecircnides e

ainda da validade do seu dilema como uma apresentaccedilatildeo exaustiva das

possibilidades de compreensatildeo da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo encontra-se nas linhas

que encerram este estaacutegio da discussatildeo

ldquoEntatildeo de que maneira Soacutecrates disse ele as outras coisas para ti teratildeo participaccedilatildeo nas Formas natildeo podendo ter participaccedilatildeo nem quanto agrave parte nem quanto ao todo Por Zeus disse ele natildeo me parece de modo algum ser faacutecil determinar tal coisardquo Τίνα οὖν τρόπον εἰπεῖν ὦ Σώκρατες τῶν εἰδῶν σοι τὰ ἄλλα microεταλήψεται microήτε κατὰ microέρη microήτε κατὰ ὅλα microεταλαmicroβάνειν δυνάmicroενα Οὐ microὰ τὸν ∆ία φάναι οὔ microοι δοκεῖ εὔκολον εἶναι τὸ τοιοῦτον οὐδαmicroῶς διορίσασθαι (131e3-7)

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43 O Argumento do Terceiro Homem e a multiplicaccedilatildeo inf inita das Formas

Tendo terminado suas objeccedilotildees agrave noccedilatildeo de participaccedilatildeo defendida por

Soacutecrates Parmecircnides inicia uma segunda seacuterie de criacuteticas na qual seratildeo

apresentados dois casos daquilo que ficou conhecido na literatura secundaacuteria

como ldquoArgumento do Terceiro Homemrdquo A expressatildeo ldquoo terceiro homemrdquo (ὁ

τρίτος ἄνθρωπος) pode ser encontrada mais de uma vez na obra de Aristoacuteteles

(RefSof178b36 179a3 Meta990b17 1039a2-3 1059b8 1079a13) onde eacute

usada para designar um conjunto heterogecircneo de criacuteticas agrave Teoria das Ideias Em

seus comentaacuterios agrave Metafiacutesica Alexandre de Afrodiacutesia nos fornece diversos

exemplos de argumentos que receberam esta denominaccedilatildeo geneacuterica Enquanto

alguns dos exemplos descritos por Alexandre natildeo possuem qualquer relaccedilatildeo com

as criacuteticas do Parmecircnides uma de suas descriccedilotildees apresenta profunda semelhanccedila

com os dois argumentos que encontramos em nosso diaacutelogo47

ldquoSe um termo predicado verdadeiramente de uma multiplicidade de coisas existe separadamente (κεχωρισmicroένον) das coisas de que eacute predicado (hellip) entatildeo haveraacute um terceiro Homem Pois se o Homem que eacute predicado eacute diferente das coisas de que eacute predicado e possui uma existecircncia independente e se eacute predicado tanto dos indiviacuteduos quantos das Formas haveraacute um terceiro Homem ao lado dos indiviacuteduos e da Forma E do mesmo modo um quarto predicado deste terceiro da Forma e dos indiviacuteduos e um quinto e assim indefinidamente ( ἐπ ἄπειρον)rdquo εἰ τὸ κατηγορούmicroενόν τινων πλειόνων ἀληθῶς καὶ ἔστιν ἄλλο παρὰ τὰ ὧν κατηγορεῖται κεχωρισmicroένον αὐτῶν () ἀλλ εἰ τοῦτο ἔσται τις τρίτος ἄνθρωπος εἰ γὰρ ἄλλος ὁ κατηγορούmicroενος ὧν κατηγορεῖται καὶ κατ ἰδίαν ὑφεστώς κατηγορεῖται δὲ κατά τε τῶν καθ ἕκαστα καὶ κατὰ τῆς ἰδέας ὁ ἄνθρωπος ἔσται τρίτος τις ἄνθρωπος παρά τε τοὺς καθ ἕκαστα καὶ τὴν ἰδέαν οὕτως δὲ καὶ τέταρτος ὁ κατά τε τούτου καὶ τῆς ἰδέας καὶ τῶν καθ ἕκαστα κατηγορούmicroενος ὁmicroοίως δὲ καὶ πέmicroπτος καὶ τοῦτο ἐπ ἄπειρον (InMetaph 8422-8523)

Como podemos perceber o argumento descrito por Alexandre pretende a

partir do reconhecimento da existecircncia de uma uacutenica Forma de Homem gerar

uma multiplicidade indefinida (ἄπειρον) destas Formas No Parmecircnides esta

conclusatildeo seraacute usada para demonstrar mais uma vez a impossibilidade de

47 O primeiro argumento denominado de Terceiro Homem por Alexandre eacute atribuiacutedo a Eudemos

(In Metaph842-7 859-11) O segundo (847-16) eacute atribuiacutedo de maneira imprecisa a ldquosofistasrdquo O terceiro (8416-21) eacute atribuiacutedo a Polixeno um contemporacircneo de Platatildeo e o quarto agrave Aristoacuteteles (8422-8523) Destes quatro apenas o uacuteltimo deles guarda semelhanccedilas

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mantermos simultaneamente a tese da unidade das Formas e a tese de que as

Formas satildeo responsaacuteveis pelas propriedades dos objetos sensiacuteveis Por meio de

seu dilema Parmecircnides havia provado que a noccedilatildeo de participaccedilatildeo implica em

qualquer das acepccedilotildees possiacuteveis para este termo na anulaccedilatildeo da tese da unidade

das Formas Afinal entendida como uma relaccedilatildeo no todo de uma Forma a

participaccedilatildeo acarretaria na multiplicaccedilatildeo destas entidades de modo que seriacuteamos

obrigados a admitir tantas Formas de F quantas entidades sensiacuteveis possuidoras

desta propriedade Por outro lado entendida como uma relaccedilatildeo entre os muacuteltiplos

Fs sensiacuteveis e partes da Forma F a participaccedilatildeo acabaria por destruir a integridade

das Formas e cada Forma teria tantas partes quantos participantes se tornando

uma entidade internamente complexa e sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos Como

proacuteximo passo de sua demonstraccedilatildeo Parmecircnides pretende demonstrar que de

acordo com a teoria apresentada por Soacutecrates as Formas estatildeo fadadas a uma

multiplicaccedilatildeo infinita

Assim como havia feito ao introduzir o dilema da participaccedilatildeo

Parmecircnides marca muito claramente o iniacutecio de uma nova seacuterie de argumentos

ldquoPois bem E em relaccedilatildeo ao seguinte como pensas Em relaccedilatildeo a quecirc Creio que tu crecircs que cada Forma eacute uma48 pelo seguinte quando algumas coisas muacuteltiplas te parecem ser grandes talvez te pareccedila a ti que as olhas todas haver uma certa ideia49 uma e a mesma em todas donde acreditas o grande ser um Dizes a verdade [Soacutecrates] disse Mas e quanto ao Grande ele mesmo e agraves outras coisas grandes Se olhares da mesma maneira com a alma para todos esses natildeo apareceraacute de novo um Grande um em virtude do qual eacute necessaacuterio todas aquelas coisas aparecerem como grandes Parece que sim Logo uma outra Forma da Grandeza apareceraacute surgindo ao lado da Grandeza ela mesma e das coisas que destas participam E sobre todas essas [apareceraacute] de novo uma outra de modo a em virtude dela todas essas parecerem grandes E natildeo mais seraacute uma cada uma das tuas Formas mas ilimitadas em quantidaderdquo Τί δὲ δή πρὸς τόδε πῶς ἔχεις Τὸ ποῖον Οἶmicroαί σε ἐκ τοῦ τοιοῦδε ἓν ἕκαστον εἶδος οἴεσθαι εἶναι ὅταν πόλλ ἄττα microεγάλα σοι δόξῃ εἶναι microία τις ἴσως δοκεῖ ἰδέα ἡ αὐτὴ εἶναι ἐπὶ πάντα ἰδόντι ὅθεν ἓν τὸ

com o par de argumentos encontrados no Parmecircnides

48 Aqui novamente ἓν designa a unidade numeacuterica de cada Forma Compare as expressotildees ἓν ἕκαστον εἶδος com πόλλ ἄττα microεγάλα e πάντα microεγάλα usadas para descrever a multiplicidade de objetos grandes sensiacuteveis

49 Natildeo me parece claro que Soacutecrates esteja usando ἰδέα em sua acepccedilatildeo teacutecnica de Forma platocircnica nesta sentenccedila apesar desta leitura ser certamente uma opccedilatildeo viaacutevel Em funccedilatildeo desta indefiniccedilatildeo optei por deixar a palavra ldquoideiardquo sem a maiuacutescula que venho usando para designar as Formas

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microέγα ἡγῇ εἶναι Ἀληθῆ λέγεις φάναι Τί δ αὐτὸ τὸ microέγα καὶ τἆλλα τὰ microεγάλα ἐὰν ὡσαύτως τῇ ψυχῇ ἐπὶ πάντα ἴδῃς οὐχὶ ἕν τι αὖ microέγα φανεῖται ᾧ ταῦτα πάντα microεγάλα φαίνεσθαι Ἔοικεν Ἄλλο ἄρα εἶδος microεγέθους ἀναφανήσεται παρ αὐτό τε τὸ microέγεθος γεγονὸς καὶ τὰ microετέχοντα αὐτοῦ καὶ ἐπὶ τούτοις αὖ πᾶσιν ἕτερον ᾧ ταῦτα πάντα microεγάλα ἔσται καὶ οὐκέτι δὴ ἓν ἕκαστόν σοι τῶν εἰδῶν ἔσται ἀλλὰ ἄπειρα τὸ πλῆθος (131e8-132b2)

Esta primeira versatildeo do Argumento do Terceiro Homem desenvolve-se de

maneira muito claramente anaacuteloga ao argumento descrito por Alexandre Se as

coisas satildeo grandes por causa (ᾧ) da Grandeza e se paralelamente podemos

considerar a Grandeza ela mesma uma coisa grande entatildeo devemos supor a

existecircncia de uma segunda Forma da Grandeza causa da propriedade da grandeza

tanto das coisas grandes quanto da primeira Grandeza Aleacutem disso considerando

esta segunda Forma da Grandeza novamente uma coisa grande uma terceira

Forma surgiria e assim ad infinitum Portanto segundo este raciociacutenio nenhuma

Forma seria numericamente uacutenica uma vez que o proacuteprio poder causal exercido

pelas Formas seria razatildeo de sua infinita multiplicaccedilatildeo Frente a esta multiplicaccedilatildeo

indesejada das Formas Soacutecrates procura uma saiacuteda inteiramente diversa

formulando uma hipoacutetese completamente inesperada50

ldquoMas Parmecircnides disse Soacutecrates vai ver cada uma dessas Formas eacute um pensamento e natildeo lhe cabe surgir em nenhum outro lugar a natildeo ser nas almas Pois sendo assim cada uma seria uma e natildeo mais seria afetada pelo que haacute pouco foi ditordquo Ἀλλά φάναι ὦ Παρmicroενίδη τὸν Σωκράτη microὴ τῶν εἰδῶν ἕκαστον ᾖ τούτων νόηmicroα καὶ οὐδαmicroοῦ αὐτῷ προσήκῃ ἐγγίγνεσθαι ἄλλοθι ἢ ἐν ψυχαῖς οὕτω γὰρ ἂν ἕν γε ἕκαστον εἴη καὶ οὐκ ἂν ἔτι πάσχοι ἃ νυνδὴ ἐλέγετο (132b3-6)

Tendo defendido anteriormente que as Formas satildeo entidades inteligiacuteveis

isto eacute apreendidas pela razatildeo Soacutecrates procura escapar dos paradoxos de

Parmecircnides afirmando que as Formas satildeo elas mesmas pensamentos (νοήmicroατα)

Entendidas como pensamentos cada uma das Formas manteria sua unidade

caracteriacutestica e natildeo estaria em qualquer outro lugar senatildeo na alma daquele que a

percebe Eacute importante notar contudo que natildeo devemos interpretar a sugestatildeo de

50 A idiossincrasia da proposta de Soacutecrates estaacute refletida no fato de que excluindo a presente

passagem e uma citaccedilatildeo ao poema de Parmecircnides no Sofista a palavra νόηmicroα soacute aparece trecircs vezes em toda obra platocircnica e em contextos sem grande importacircncia (cf Men95e5 Banq197e5 Pol260d8)

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Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de um subjetivismo radical de acordo com o qual as

Formas deixariam de possuir um estatuto ontoloacutegico separado e passariam a ser

completamente dependentes da mente daqueles que as concebe Caso o presente

passo da argumentaccedilatildeo socraacutetica pudesse ser entendido como a transformaccedilatildeo das

Formas em meros conteuacutedos de pensamento ou produtos da atividade da mente

humana estariacuteamos frente a uma nova concepccedilatildeo de Formas certamente

problemaacutetica poreacutem completamente distinta da noccedilatildeo de Formas defendida por

Soacutecrates desde o iniacutecio da discussatildeo Neste caso a proposta de Soacutecrates

representaria muito mais o abandono total da hipoacutetese das Formas do que uma

tentativa de reformulaccedilatildeo desta hipoacutetese

Como nada no texto indica que Soacutecrates esteja rompendo por completo

com a Teoria das Ideias devemos acreditar que a proposta de compreensatildeo das

Formas como pensamentos representa apenas mais uma tentativa de manter a

unidade e integridade caracteriacutesticas destas entidades sem que permaneccedila

inviabilizada a relaccedilatildeo causal que elas mantecircm com os objetos do mundo sensiacutevel

O que Soacutecrates pretende afirmar portanto eacute que as Formas devem ser entendidas

como conceitos universais acessiacuteveis pela alma humana Assim as coisas se

relacionariam com as Formas apenas por meio do pensamento humano e

poderiacuteamos salvar a hipoacutetese da causalidade das Formas ao menos no que diz

respeito agrave nossa apreensatildeo do mundo sensiacutevel Ao mesmo tempo permaneceriam

mantidas as caracteriacutesticas ontoloacutegicas de unidade e integridade das Formas

Parmecircnides no entanto demonstra rapidamente a impossibilidade desta

proposta se todo pensamento eacute pensamento de alguma coisa (νόηmicroα hellip τινός) e

ainda eacute pensamento de alguma coisa que eacute (τινός hellip ὄντος) entatildeo a hipoacutetese de

que a relaccedilatildeo entre Formas e coisas se daacute apenas no acircmbito da mente humana eacute

insustentaacutevel e o pensamento deve novamente ser entendido como uma Forma

uacutenica sobre uma multiplicidade de coisas sensiacuteveis (εἶδος hellip ἓν εἶναι ἀεὶ ὂν τὸ

αὐτὸ ἐπὶ πᾶσιν)

Ficando restabelecido o relacionamento direto entre Formas e coisas pois

todo pensamento eacute pensamento de alguma coisa a proposta de Soacutecrates se mostra

evidentemente contraditoacuteria Afinal se as Formas satildeo pensamentos e as coisas

participam nas Formas entatildeo todas as coisas participam do pensamento e

consequentemente o pensamento estaacute em todas as coisas Ora eacute evidente que nos

dois casos contradiccedilotildees surgiriam Por um lado se todas as coisas participam do

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pensamento entatildeo todas as coisas pensam (πάντα νοεῖν) o que eacute absurdo Por

outro lado por estar presente em todas as coisas o pensamento estaria presente

em coisas que pensam como homens poreacutem tambeacutem em coisas que natildeo pensam

Neste segundo caso teriacuteamos coisas que satildeo pensamento na medida em que

possuem pensamentos em si (ἐκ νοηmicroάτων ἕκαστον εἶναι) poreacutem natildeo pensam

(νοήmicroατα ὄντα ἀνόητα εἶναι) Para usarmos um exemplo concreto se uma pedra

possui a Forma da Grandeza e esta Forma por sua vez eacute um pensamento entatildeo

ou bem temos que admitir que a pedra eacute capaz de pensar ou bem temos que

admitir que a pedra possui em si um pensamento poreacutem natildeo pensa Por fim

atraveacutes destes simples argumentos Soacutecrates eacute levado mais uma vez a reconhecer

o evidente fracasso de sua tentativa

Apesar de sua sugestatildeo anterior ter sido enunciada com certa hesitaccedilatildeo51

Soacutecrates agora se mostra bastante confiante para apresentar uma nova proposta

Ele entatildeo afirma que as Formas devem ser entendidas como paradigmas

(παραδείγmicroατα) enquanto que as coisas sensiacuteveis que delas participam devem ser

entendidas como imagens produzidas a partir das Formas (εἰκασθῆναι αὐτοῖς)

ldquoMas Parmecircnides a mim estaacute sendo evidente que o que se passa eacute antes o seguinte que estas Formas estatildeo na natureza como paradigmas e que as outras coisas se parecem com elas e satildeo semelhanccedilas delas E que essa participaccedilatildeo nas Formas para estas outras coisas natildeo vem a ser senatildeo o serem estas feitas como imagens daquelasrdquo ἀλλ ὦ Παρmicroενίδη microάλιστα ἔmicroοιγε καταφαίνεται ὧδε ἔχειν τὰ microὲν εἴδη ταῦτα ὥσπερ παραδείγmicroατα ἑστάναι ἐν τῇ φύσει τὰ δὲ ἄλλα τούτοις ἐοικέναι καὶ εἶναι ὁmicroοιώmicroατα καὶ ἡ microέθεξις αὕτη τοῖς ἄλλοις γίγνεσθαι τῶν εἰδῶν οὐκ ἄλλη τις ἢ εἰκασθῆναι αὐτοῖς (132c12-d4)

Esta uacuteltima proposta possui a aparente virtude de anunciar uma explicaccedilatildeo

completamente nova para relaccedilatildeo de participaccedilatildeo ao inveacutes de simplesmente

oferecer mais um modo de entendermos a presenccedila das Formas nas coisas Frente

a todas as criacuteticas anteriormente formuladas por Parmecircnides Soacutecrates introduz agrave

discussatildeo a possibilidade das Formas serem entendidas como modelos ou

paradigmas aos quais os objetos sensiacuteveis se assemelham Entendida desta

maneira a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo natildeo implicaria na presenccedila das Formas nas

coisas e portanto representaria uma real alternativa ao dilema formulado por

51 Compare as palavras que iniciam sua proposta anterior (Ἀλλά hellip microὴ) com as palavras usadas

para introduzir sua presente proposta (microάλιστα ἔmicroοιγε καταφαίνεται)

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Parmecircnides no iniacutecio da discussatildeo e que vem dominando o debate desde entatildeo

De acordo com a presente sugestatildeo uma Forma deve ser entendida com

um modelo enquanto os objetos sensiacuteveis seriam como as diversas coacutepias que um

artista produz a partir da contemplaccedilatildeo deste modelo Portanto segundo a

descriccedilatildeo socraacutetica participar de uma determinada Forma seria equivalente a ser

semelhante ou ser uma coacutepia desta Forma Note que a princiacutepio a relaccedilatildeo ldquoser-

semelhante-ardquo pode ser entendida como uma relaccedilatildeo assimeacutetrica Ou seja

podemos pensar casos em que x eacute semelhante a y poreacutem y natildeo eacute semelhante a x

Pense por exemplo na relaccedilatildeo estabelecida entre Soacutecrates e as diversas

representaccedilotildees graacuteficas de Soacutecrates que foram produzidas no decorrer da histoacuteria

Podemos perfeitamente conceber que todas estas representaccedilotildees se assemelham a

Soacutecrates enquanto por outro lado Soacutecrates natildeo se assemelha a nenhuma delas

Entendida desta maneira a compreensatildeo de participaccedilatildeo como semelhanccedila natildeo

daria lugar a um regresso ao infinito No entanto Parmecircnides iraacute focar sua criacutetica

na demonstraccedilatildeo de que a relaccedilatildeo de semelhanccedila pressupotildee um caraacuteter simeacutetrico

ainda que Soacutecrates natildeo esteja plenamente consciente disto

ldquoSe entatildeo algo se parece com uma Forma disse Parmecircnides eacute possiacutevel essa Forma natildeo ser semelhante agravequilo que eacute feito como sua imagem na medida em que esta foi feita semelhante a ela Ou seraacute que haacute um meio de o semelhante natildeo ser semelhante ao semelhante Natildeo haacute Mas seraacute que natildeo eacute fortemente necessaacuterio o semelhante participar da mesma coisa uma que [seu] semelhante Eacute necessaacuterio sim Aquilo de que participando as coisas semelhantes seratildeo semelhantes natildeo seraacute a Forma mesma Absolutamente sim Logo natildeo eacute possiacutevel algo ser semelhante agrave Forma nem a Forma ser semelhante a outra coisa Senatildeo ao lado da Forma sempre apareceraacute outra Forma e se esta for semelhante a algo apareceraacute de novo outra e nunca cessaraacute de surgir sempre uma nova Forma se a Forma for semelhante ao que dela participardquo Εἰ οὖν τι ἔφη ἔοικεν τῷ εἴδει οἷόν τε ἐκεῖνο τὸ εἶδος microὴ ὅmicroοιον εἶναι τῷ εἰκασθέντι καθ ὅσον αὐτῷ ἀφωmicroοιώθη ἢ ἔστι τις microηχανὴ τὸ ὅmicroοιον microὴ ὁmicroοίῳ ὅmicroοιον εἶναι Οὐκ ἔστι Τὸ δὲ ὅmicroοιον τῷ ὁmicroοίῳ ἆρ οὐ microεγάλη ἀνάγκη ἑνὸς τοῦ αὐτοῦ microετέχειν Ἀνάγκη Οὗ δ ἂν τὰ ὅmicroοια microετέχοντα ὅmicroοια ᾖ οὐκ ἐκεῖνο ἔσται αὐτὸ τὸ εἶδος Παντάπασι microὲν οὖν Οὐκ ἄρα οἷόν τέ τι τῷ εἴδει ὅmicroοιον εἶναι οὐδὲ τὸ εἶδος ἄλλῳ εἰ δὲ microή παρὰ τὸ εἶδος ἀεὶ ἄλλο ἀναφανήσεται εἶδος καὶ ἂν ἐκεῖνό τῳ ὅmicroοιον ᾖ ἕτερον αὖ καὶ οὐδέποτε παύσεται ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον ἐὰν τὸ εἶδος τῷ ἑαυτοῦ microετέχοντι ὅmicroοιον γίγνηται (132d5-133a1)

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A demonstraccedilatildeo de Parmecircnides guarda novamente profundas

similaridades com o tipo de regresso ao infinito descrito por Alexandre de

Afrodiacutesia De acordo com a proposta socraacutetica diversas coisas belas possuem a

propriedade da beleza porque satildeo semelhantes agrave Beleza ela mesma (ἔοικεν τῷ

εἴδει) Parmecircnides entatildeo argumenta que caso as muacuteltiplas coisas belas sensiacuteveis

sejam semelhantes agrave Forma da Beleza entatildeo a Forma da Beleza seraacute tambeacutem

semelhante a elas Afinal devemos pressupor que coisas semelhantes se

assemelham por compartilhar alguma propriedade em comum (τὸ ὅmicroοιον τῷ

ὁmicroοίῳ ἀνάγκη ἑνὸς τοῦ αὐτοῦ microετέχειν) em nosso exemplo a propriedade da

beleza Neste caso contudo uma nova Forma da Beleza surgiria Esta nova

Forma teria a funccedilatildeo de explicar a beleza compartilhada pelas coisas belas e pela

Beleza ela mesma (παρὰ τὸ εἶδος ἀεὶ ἄλλο ἀναφανήσεται εἶδος) Tal como

ocorrido anteriormente este processo se repetiria indefinidamente (οὐδέποτε

παύσεται ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον) e acabariacuteamos por ter que admitir a

existecircncia de uma infinidade de Formas da Beleza numericamente distintas

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431 A formalizaccedilatildeo do Argumento do Terceiro Homem

O lugar de destaque que criacuteticas agrave Teoria das Ideias envolvendo regressotildees

ao infinito receberam ainda no tempo de Platatildeo fica comprovado pelas menccedilotildees

de Aristoacuteteles a estes argumentos O comentaacuterio de Alexandre nos garante ainda

que tal posiccedilatildeo de destaque se manteacutem por todo periacuteodo heleniacutestico Apesar disso

a tradiccedilatildeo de comentaacuterios moderna iniciada na Alemanha do seacuteculo XIX parece

ter relegado este tipo de argumento agrave condiccedilatildeo de uma simples falaacutecia ou

colocando-o em peacute de igualdade aos argumentos decorrentes do dilema da

participaccedilatildeo (cf Waddell 1894 p94-95 99-100) Esta situaccedilatildeo modifica-se

completamente a partir da segunda metade do seacuteculo XX quando a publicaccedilatildeo de

um artigo de Gregory Vlastos (1955) restitui ao Argumento do Terceiro Homem

entendido agora estritamente como a demonstraccedilatildeo de uma multiplicaccedilatildeo infinita

do nuacutemero de Formas seu lugar de importacircncia em meio agraves criacuteticas agrave Teoria das

Ideias

O artigo de Vlastos possui como tema central a reconstruccedilatildeo da estrutura

loacutegica dos argumentos encontrados no Parmecircnides Como vimos anteriormente

uma leitura das passagens em que as duas versotildees do regresso estatildeo anunciadas

permite um entendimento relativamente claro do raciociacutenio envolvido Poreacutem

como o amplo debate que se seguiu agrave publicaccedilatildeo do artigo de Vlastos demonstra

a reconstruccedilatildeo precisa das premissas implicadas no argumento natildeo eacute uma tarefa

simples Afinal eacute evidente que da maneira como estatildeo formulados no

Parmecircnides os argumentos necessitam de premissas natildeo expressas para que

sejam considerados vaacutelidos De fato a uacutenica premissa explicitamente apresentada

no texto de nosso diaacutelogo tanto no argumento de 131e-132b quanto no argumento

de 132d-133a eacute aquela que afirma a partir de uma multiplicidade de coisas que

recebem um determinado predicado F a existecircncia de uma Forma F em virtude da

qual todas as coisas recebem o predicado F Esta premissa eacute chamada por Vlastos

de premissa ldquoUm sobre Muitosrdquo (UM) e eacute apresentada em seu artigo de 1955

por meio da seguinte formulaccedilatildeo

(UMv) Se vaacuterias coisas a b c satildeo todas F entatildeo deve haver uma Forma uacutenica F-

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idade em virtude da qual apreendemos a b c como F

A argumentaccedilatildeo prosseguiria da seguinte maneira A partir de uma

multiplicidade de coisas F aplicariacuteamos a premissa (UM) para gerarmos uma

Forma de F-idade Esta Forma eacute entatildeo adicionada agrave coleccedilatildeo inicial e por meio de

mais uma aplicaccedilatildeo de (UM) gerariacuteamos outra Forma Esta nova Forma eacute

adicionada agrave coleccedilatildeo anterior e a premissa (UM) eacute aplicada novamente para gerar

uma nova Forma O mesmo processo poderia ser repetido ad infinitum

Eacute muito claro contudo que a premissa (UM) por si soacute natildeo eacute capaz de

gerar o regresso previamente descrito Afinal nenhuma claacuteusula foi oferecida para

a aplicaccedilatildeo reiterada da premissa (UM) aleacutem de nada nos obrigar a considerar

que cada nova aplicaccedilatildeo de (UM) seja responsaacutevel pelo surgimento de uma nova

Forma numericamente distinta daquela que foi gerada na aplicaccedilatildeo anterior deste

mesmo princiacutepio

Em vista disto Vlastos conclui que ldquoPlatatildeo devia ter algo mais em menterdquo

(Vlastos 1955 p236) e propotildee que na condiccedilatildeo de inteacuterpretes completemos as

lacunas do texto platocircnico Assim como justificativa para reitera aplicaccedilatildeo da

premissa (UM) Vlastos propotildee a seguinte premissa adicional

(APv) F-idade eacute F

Por meio desta premissa de ldquoAuto-Predicaccedilatildeordquo (AP)52 podemos explicar a

adiccedilatildeo da Forma F-idade ao grupo de coisas a b c Afinal (AP) garante que a

Forma F-idade eacute F tal como a b c Desta maneira apoacutes cada aplicaccedilatildeo de (UM)

estariacuteamos frente a um novo conjunto de entidades (Formas e coisas) todas elas

possuidoras de um mesmo predicado F o que nos permitiria uma nova aplicaccedilatildeo

de (UM)

Por outro lado para justificar a inferecircncia de que cada aplicaccedilatildeo de (OM)

produz uma Forma inteiramente nova Vlastos propotildee a seguinte premissa

(NIv) Se x eacute F entatildeo x natildeo pode ser idecircntico a F-idade

52 Entenderei durante toda discussatildeo subsequente que (AP) implica na univocidade de aplicaccedilatildeo

do predicado F isto eacute F-idade eacute F do mesmo modo que um objeto sensiacutevel x eacute F

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Por meio da adiccedilatildeo desta segunda premissa podemos garantir a natildeo

identidade entre cada uma das Formas geradas pelas diferentes aplicaccedilotildees de

(UM) Isto porque segundo (NI) qualquer coisa que seja F em virtude da

participaccedilatildeo em uma determinada Forma natildeo pode ser idecircntica agrave Forma da qual

participa Portanto a Forma produzida pela segunda aplicaccedilatildeo de (UM) natildeo pode

ser idecircntica agrave Forma produzida pela primeira aplicaccedilatildeo de (UM) caso contraacuterio

violaria (NI) e seria idecircntica agrave Forma em virtude da qual ela mesma eacute F

A accedilatildeo conjunta destas trecircs premissas eacute capaz de gerar o regresso ao

infinito que o personagem Parmecircnides apresenta explicitamente como a conclusatildeo

de seu argumento tanto em 132b quanto em 133a Contudo conforme notado pelo

proacuteprio Vlastos as duas premissas por ele adicionadas ao texto do diaacutelogo

possuem a caracteriacutestica de serem mutuamente inconsistentes Afinal a partir de

(NI) podemos facilmente inferir que F-idade natildeo eacute F contudo isto eacute justamente o

contraditoacuterio do que afirma (AP) Vlastos no entanto permanece convencido de

que estas satildeo exatamente as premissas que devemos atribuir a Soacutecrates E em

vista disto conclui que Platatildeo natildeo estava plenamente ciente das implicaccedilotildees de

seu argumento e nos apresenta estes dois regressos como um ldquoregistro de sua

honesta perplexidaderdquo (Vlastos 1955 p254)

Diversas publicaccedilotildees se seguiram ao artigo de Vlastos muitas delas com o

claro objetivo de formular um conjunto de premissas que natildeo estivesse sujeito agrave

inconsistecircncia encontrada na proposta inicial Sellars (1955) por exemplo

observa que Vlastos havia usado a expressatildeo ldquoF-idaderdquo como um designador

direto para as Formas e como alternativa propotildee que entendamos esta expressatildeo

como uma variaacutevel sujeita agrave quantificaccedilatildeo Assim concebidas as premissas do

Argumento do Terceiro Homem receberiam a seguinte formulaccedilatildeo

(UMs) Se vaacuterias coisas satildeo F entatildeo deve haver alguma F-idade em virtude da

qual estas coisas satildeo F

(APs)Todas F-idades satildeo F

(NIs) Se x eacute F entatildeo x natildeo eacute idecircntico agrave F-idade em virtude da qual x eacute F

(Sellars 1955 p418-419)

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Estas trecircs premissas satildeo de fato mutuamente consistentes aleacutem de serem

capazes de gerar o regresso ao infinito necessaacuterio para conclusatildeo dos argumentos

No entanto segundo Vlastos (1969) a formulaccedilatildeo proposta por Sellars para a

premissa (UMs) natildeo corresponde ao que encontramos no texto do Parmecircnides

Afinal em nosso diaacutelogo estaacute explicitamente afirmado que uma uacutenica Forma eacute

gerada a partir de uma determinada multiplicidade de coisas F (microία τις ἰδέα ἡ αὐτὴ

εἶναι ἐπὶ πάντα) enquanto a formulaccedilatildeo de Sellars faz uso de um quantificador

existencial ordinaacuterio cujo sentido deve ser entendido como ldquopelo menos uma

Formardquo

Concluindo que nenhuma formulaccedilatildeo de (UM) poderia estar correta sem

respeitar a singularidade implicada no raciociacutenio platocircnico Vlastos oferece uma

revisatildeo de seu conjunto de premissas

(UMv) Se qualquer conjunto de coisas compartilha uma mesma caracteriacutestica

entatildeo existe uma uacutenica Forma correspondente a esta caracteriacutestica e cada uma

destas coisas possui esta caracteriacutestica por participar nesta Forma

(APv) A Forma correspondente a uma determinada caracteriacutestica possui ela

mesma esta caracteriacutestica

(NIv) Se qualquer coisa possui uma determinada caracteriacutestica por participar em

uma Forma entatildeo esta coisa natildeo eacute idecircntica a esta Forma

(Vlastos 1969 p348-351)

Nesta nova formulaccedilatildeo do Argumento do Terceiro Homem natildeo haacute conflito

entre (AP) e (NI) Contudo se tomarmos as trecircs premissas em conjunto vemos

surgir uma nova inconsistecircncia Pois suponha que haacute uma seacuterie de coisas

possuidoras de uma mesma caracteriacutestica F entatildeo de acordo com (UMv) haveraacute

uma uacutenica Forma F correspondente agrave caracteriacutestica F Esta Forma por sua vez

possuiraacute ela mesma a caracteriacutestica F (APv) e compartilharaacute esta caracteriacutestica

com seus participantes No entanto por compartilhar de uma mesma caracteriacutestica

F a Forma F necessariamente participaria da Forma correspondente a esta

caracteriacutestica (UMv) Ora esta Forma eacute a proacutepria Forma F e portanto a Forma F

participaria de si mesma o que contradiz a premissa (Niv) A nova proposta de

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Vlastos resolveu a inconsistecircncia entre (NI) e (AP) apenas para criar outra

inconsistecircncia agora envolvendo as trecircs premissas do argumento

O problema de termos um conjunto inconsistente de premissas eacute que neste

caso o regresso ao infinito eacute gerado trivialmente isto eacute qualquer conjunto

inconsistente de premissas seria suficiente para gerar o regresso assim como o

mesmo conjunto de premissas poderia ser usado para gerar qualquer conclusatildeo na

medida em que ex falso sequitur quodlibet Assim entendido portanto o

argumento natildeo constituiria uma criacutetica vaacutelida agrave Teoria das Ideias e representaria

apenas uma evidecircncia indireta da contradiccedilatildeo inerente agraves premissas desta teoria

Surpreendentemente Vlastos acolhe esta particularidade de sua

interpretaccedilatildeo E mesmo em seus artigos posteriores continua mantendo a opiniatildeo

de que ambos os regressos apresentados no Parmecircnides satildeo muito mais

expressotildees imprecisas da perplexidade de Platatildeo do que argumentos vaacutelidos e

criacuteticas relevantes agrave sua concepccedilatildeo de Formas Assim Vlastos conclui que o

resultado da multiplicaccedilatildeo infinita do nuacutemero de Formas natildeo passa de ldquoum mero

bocircnus (hellip) adicionado somente pelo seu efeito retoacutericordquo (Vlastos 1969 p352)

Este tipo de interpretaccedilatildeo no entanto natildeo parece estar de acordo com o

texto de nosso diaacutelogo Em primeiro lugar teriacuteamos que menosprezar o fato de

que o texto claramente afirma a produccedilatildeo de um regresso ao infinito como o

resultado de ambos os argumentos apresentados por Parmecircnides (οὐκέτι δὴ ἓν

ἕκαστόν σοι τῶν εἰδῶν ἔσται ἀλλὰ ἄπειρα τὸ πλῆθος 132b2 οὐδέποτε παύσεται

ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον 133a1) e segundo Vlastos este resultado seria

apenas um acreacutescimo retoacuterico A multiplicaccedilatildeo infinita do nuacutemero de Formas estaacute

de pleno acordo com a estrutura geral das criacuteticas de Parmecircnides que como jaacute

sabemos concentram-se em demonstrar a impossibilidade das Formas manterem

sua unidade (numeacuterica e aspectual) ao mesmo tempo em que satildeo causas das

propriedades dos objetos sensiacuteveis

Em segundo lugar aceitar a sugestatildeo de que o conjunto de premissas

envolvido em nossos argumentos eacute inevitavelmente inconsistente equivale a

afirmar que Platatildeo representa o personagem Parmecircnides propondo criacuteticas

confusas nas quais a conclusatildeo natildeo se segue das premissas Esta admissatildeo

entretanto tornaria este par de argumentos completamente desviante agrave estrutura de

argumentaccedilatildeo que identificamos em nosso diaacutelogo Pois ateacute aqui toda seacuterie de

argumentos demonstrou possuir rigor loacutegico Devemos portanto buscar um

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conjunto consistente de premissas para nossos argumentos de modo a tornaacute-los

vaacutelidos e condizentes com a estrutura dramaacutetica que identificamos ateacute o presente

momento da discussatildeo

De fato diversos autores se dedicaram agrave tarefa de construir um conjunto

consistente de premissas para estes argumentos Como ficou comprovado a

formulaccedilatildeo deste conjunto depende da possibilidade de usarmos quantificaccedilotildees de

segunda ordem sobretudo se pretendemos manter a claacuteusula de singularidade em

(UM) defendida por Vlastos (cf Cohen 1971 p448-475) (cf Mignucci 1990)

Isto eacute precisariacuteamos usar variaacuteveis natildeo apenas sobre Formas e coisas mas

tambeacutem sobre funccedilotildees e conjuntos de Formas e coisas para mantermos a correccedilatildeo

do argumento sem abrir matildeo da formulaccedilatildeo singular de (UM) proposta por

Vlastos53

Formulaccedilotildees envolvendo um aparato loacutegico muito complexo no entanto

possuem a desvantagem de se distanciarem demais de um argumento apresentado

em linguagem relativamente simples E ainda estatildeo sujeitas agrave criacutetica de que

Platatildeo natildeo poderia ter pensado nestes termos na medida em que tais categorias

ainda natildeo faziam parte das anaacutelises loacutegicas disponiacuteveis em seu tempo

Devemos lembrar contudo que o conjunto de premissas apresentado por

Sellars (1955) jaacute possuiacutea o caraacuteter de ser consistente e gerar de maneira vaacutelida a

conclusatildeo expressamente apresentada por Parmecircnides Este conjunto havia sido

descartado por Vlastos com base em uma argumentaccedilatildeo puramente textual De

acordo Vlastos (1969) a formulaccedilatildeo do princiacutepio (UMs) natildeo faria jus agrave fala de

Parmecircnides em 132a2 Pois nesta sentenccedila estaria expressamente afirmado que

uma uacutenica Forma F pode ser gerada a partir de um conjunto qualquer de coisas F

(microία τις ἰδέα ἡ αὐτὴ εἶναι ἐπὶ πάντα) enquanto a formulaccedilatildeo de Sellars faz

menccedilatildeo a ldquoalguma Formardquo

A criacutetica de Vlastos se desenvolve da seguinte maneira em 132a1 a

expressatildeo ldquocada uma Formardquo (ἓν ἕκαστον εἶδος) estaacute apresentada em oposiccedilatildeo agrave

ldquoilimitadas em quantidadesrdquo (ἄπειρα τὸ πλῆθος 132b2) De maneira a manter esta

oposiccedilatildeo devemos entender ldquouma Formardquo como equivalente a ldquoapenas uma

53 Cohen em ldquoThe Logic of the Third Manrdquo (1971) constroacutei usando quantificaccedilotildees de segunda

ordem um conjunto consistente de premissas com base em uma analogia com os postulados de Peano e a derivaccedilatildeo da sequecircncia de nuacutemeros racionais Mignucci (1990) tambeacutem propotildee um conjunto consistente de premissas capazes de gerar o regresso desejado poreacutem novamente com base em um instrumental da loacutegica de segunda ordem

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273

Formardquo Portanto alega Vlastos o mesmo sentido deve ser atribuiacutedo agrave expressatildeo

ldquouma certa ideiardquo (microία τις ἰδέα) em 132a2 Assim o que Parmecircnides estaria

dizendo eacute que deve haver uma uacutenica Forma capaz de explicar porque toda e

qualquer coisa F recebe este predicado Como consequecircncia Vlastos afirma que

devemos incluir uma claacuteusula de singularidade na formulaccedilatildeo de (UM) a despeito

da correccedilatildeo loacutegica do argumento (Vlastos 1969 p354-355)

A pergunta que devemos fazer eacute se a interpretaccedilatildeo de Vlastos para a

expressatildeo microία τις ἰδέα eacute a uacutenica possiacutevel Na realidade como o proacuteprio Vlastos

afirma a oposiccedilatildeo necessaacuteria entre ldquouma Formardquo e ldquomuacuteltiplas Formasrdquo estaacute

estabelecida pelo contraste entre as expressotildees ἓν ἕκαστον εἶδος e ἄπειρα τὸ

πλῆθος Portanto o sentido geral de nosso argumento que pretende gerar uma

infinidade de Formas como maneira de contradizer a tese socraacutetica da

singularidade destas entidades jaacute estaacute garantido de antematildeo a despeito de como

entendamos a expressatildeo microία τις ἰδέα A razatildeo principal oferecida por Vlastos para

a leitura estritamente singular de microία τις ἰδέα estaacute no fato de que esta expressatildeo

encontra-se localizada entre ἓν ἕκαστον εἶδος (132a1) e ἓν τὸ microέγα (132a3) e

sendo assim devemos entender que as trecircs foacutermulas expressam por proximidade

e analogia exatamente a mesma tese

Ora podemos concordar que tanto em (132a1) quanto (132a3) o termo ἓν

significa ldquoapenas umardquo Contudo disto natildeo se segue que o termo microία em microία τις

ἰδέα ἡ αὐτὴ εἶναι possui o mesmo significado Em (132a1) e (132a3) o termo ἓν

aparece como um predicado enquanto o termo microία eacute um adjetivo do sujeito ἰδέα

na expressatildeo controversa Haacute uma grande diferenccedila entre se dizer que ldquox eacute umrdquo e

se dizer que ldquoum x eacute Frdquo Mesmo se no primeiro caso podemos afirmar que ldquoumrdquo

equivale a ldquoapenas umrdquo natildeo temos razotildees suficiente para afirmar que no segundo

caso ldquoumrdquo natildeo possa estar significando ldquopelo menos umrdquo Por possuiacuterem funccedilotildees

sintaacuteticas distintas os termos ἓν e microία podem ter significados distintos sem que o

texto seja considerado contraditoacuterio ou obscuro

Frente agrave validade da leitura de 132a2 como (UMs) podemos considerar o

conjunto de premissas apresentado por Sellars (Sellars 1955 p418-419) como

uma formalizaccedilatildeo adequada para os pressupostos envolvidos no Argumento do

Terceiro Homem Esta formalizaccedilatildeo possui a virtude de tornar os argumentos

apresentados pelo personagem Parmecircnides vaacutelidos ao mesmo tempo em que

apresenta premissas plausiacuteveis e facilmente identificaacuteveis na argumentaccedilatildeo

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274

desenvolvida por Soacutecrates Adotando o conjunto de premissas apresentado por

Sellars o raciociacutenio por traacutes dos argumentos de Parmecircnides poderia ser

esquematizado da seguinte maneira

Para o argumento de 131e-132b

1) A partir de uma multiplicidade a b c de coisas grandes

afirmamos a existecircncia da Forma do Grande (UMs)

2) A Forma do Grande eacute incluiacuteda no conjunto de coisas grandes

(APs)

3) A Forma do Grande natildeo pode ser grande em virtude de si mesma

(NIs)

4) Logo o conjunto de coisas grandes a b c Forma do Grande natildeo

pode ser considerado grande em virtude da Forma do Grande e

precisamos afirmar a existecircncia de uma nova Forma Grande2

(UMs)

5) A Forma do Grande2 eacute incluiacuteda no conjunto de coisas grandes

(APs)

6) A Forma do Grande2 natildeo pode ser grande em virtude de si mesma

(NIs)

7) Logo o conjunto de coisas grandes a b c Forma do Grande

Forma do Grande2 natildeo pode ser considerado grande em virtude

da Forma do Grande2 e precisamos afirmar a existecircncia de uma

nova Forma Grande3 (UMs)

etc

Para o argumento de 132d-133a

1) Diversas coisas a b c satildeo F em virtude de serem semelhantes agrave

Forma F (UMs)

2) a b c satildeo semelhantes agrave Forma F por compartilharem com esta

Forma a propriedade de serem F (APs)

3) A Forma F natildeo pode ser F em virtude de ser semelhante a si

mesma (NIs)

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275

4) Logo o conjunto a b c Forma F natildeo pode ser considerado F em

virtude de cada um de seus membros ser semelhante agrave Forma F e

precisamos afirmar a existecircncia de uma nova Forma F2 (UMs)

5) a b c Forma F satildeo semelhantes agrave Forma F2 por compartilharem

com esta Forma a propriedade de serem F (APs)

6) A Forma F2 natildeo pode ser F em virtude de ser semelhante a si

mesma (NIs)

7) Logo o conjunto a b c Forma F Forma F2 natildeo pode ser

considerado F em virtude de cada um de seus membros ser

semelhante agrave Forma F2 e precisamos afirmar a existecircncia de uma

nova Forma F3 (UMs)

etc

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276

432 A auto-predicaccedilatildeo das Formas

Fazendo uso dos dois regressos acima descritos Parmecircnides eacute capaz de

mais uma vez demonstrar a impossibilidade de serem mantidas simultaneamente

a tese do poder causal das Formas e a tese de que as Formas satildeo entidades uacutenicas

Eacute evidente contudo que os regressos apresentados por Parmecircnides soacute podem ser

considerados legiacutetimas criacuteticas agrave teoria socraacutetica caso as trecircs premissas em que

estes argumentos estatildeo baseados sejam de fato adotadas por Soacutecrates

Se olharmos para as trecircs assunccedilotildees necessaacuterias para a validade do

Argumento do Terceiro Homem podemos reconhecer que duas delas satildeo muito

evidentemente defendidas por Soacutecrates A premissa (UM) por exemplo formaliza

o poder causal atribuiacutedo agraves Formas pela Teoria das Ideias Como vimos uma das

hipoacuteteses centrais da teoria defendida por Soacutecrates desde os primeiros diaacutelogos

afirma que os objetos sensiacuteveis adquirem suas propriedades por meio da

participaccedilatildeo nas Formas De fato em Repuacuteblica 596a6-7 Soacutecrates trata como

parte de seu ldquomeacutetodo habitualrdquo (εἰωθυίας microεθόδου) afirmar a existecircncia (τίθεσθαι)

de uma uacutenica Forma para ldquocada conjunto de muacuteltiplas coisas agraves quais atribuiacutemos

um mesmo nomerdquo (ἕκαστα τὰ πολλά οἷς ταὐτὸν ὄνοmicroα ἐπιφέροmicroεν)54 Da mesma

maneira a premissa (NI) natildeo passa de uma implicaccedilatildeo direta da tese socraacutetica

segundo a qual as Formas satildeo entidades separadas Como sabemos a separaccedilatildeo

das Formas equivale agrave afirmaccedilatildeo da independecircncia ontoloacutegica destas entidades

que natildeo necessitam dos objetos sensiacuteveis para existirem Ora da afirmaccedilatildeo de que

as Formas satildeo entidades ontologicamente independentes dos objetos que delas

participam segue-se (NI) ldquoSe qualquer coisa possui uma determinada

caracteriacutestica por participar em uma Forma entatildeo esta coisa natildeo eacute idecircntica a esta

Formardquo

A premissa (AP) contudo foi alvo de grande controversa e diversos

comentadores contestam sua legitimidade como parte da Teoria das Ideias Estes

comentadores tecircm que lidar com o fato de que Soacutecrates em diversos diaacutelogos faz

54 Note que na formulaccedilatildeo socraacutetica de (UM) em Repuacuteblica 596a6-7 εἶδος τι ἓν ἕκαστον estaacute em

oposiccedilatildeo a ἕκαστα τὰ πολλά o que natildeo inviabiliza a leitura de Sellars Na reconstruccedilatildeo acima proposta por exemplo cada conjunto de muacuteltiplas coisas ( ἕκαστα τὰ πολλά) corresponde a uma uacutenica Forma (εἶδος τι ἓν ἕκαστον) apesar dos elementos envolvidos participarem de mais de um conjunto e portanto terem mais de uma Forma como causa de suas propriedades

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afirmaccedilotildees na forma ldquoa F-idade eacute Frdquo No Hippiacuteas Maior (292e) por exemplo

Soacutecrates afirma que ldquoo Belo eacute sempre belordquo (ἀεὶ γάρ που τό γε καλὸν καλόν) No

Protaacutegoras (330c-e) explica que se existe alguma coisa chamada ldquoJusticcedilardquo ou

ldquoPiedaderdquo entatildeo a Justiccedila eacute necessariamente justa (ἡ δικαιοσύνη οἷον δίκαιον

εἶναι) e a Piedade pia (αὐτή γε ἡ ὁσιότης ὅσιον) Aleacutem disso no Banquete (210e-

211b) a Forma do Belo eacute claramente apresentada como algo belo Na realidade

como vimos o Belo ele mesmo eacute sempre belo (microονοειδὲς ἀεὶ ὄν) em contraste

com os objetos belos sensiacuteveis que satildeo belos em determinadas relaccedilotildees poreacutem

natildeo em outras (τῇ microὲν καλόν τῇ δ αἰσχρόν τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ etc) Aleacutem

disso atraveacutes do Feacutedon sabemos que Soacutecrates adota uma compreensatildeo da relaccedilatildeo

de causalidade segundo a qual uma Forma deve possuir a propriedade de que eacute

causa nos objetos sensiacuteveis

Frente a todas estas evidecircncias os comentadores adotam basicamente duas

estrateacutegias para negar que estas afirmaccedilotildees possam representar o

comprometimento de Soacutecrates com (AP) De acordo com um primeiro grupo de

inteacuterpretes as asserccedilotildees socraacuteticas na forma ldquoA F-idade eacute Frdquo ou ldquoo F ele mesmo eacute

Frdquo natildeo devem ser entendidas como oferecendo uma descriccedilatildeo ou caracterizaccedilatildeo

da Forma de F Isto eacute tais sentenccedilas seriam apenas aparentes exemplos de

predicaccedilatildeo Na realidade contudo natildeo teriam a funccedilatildeo de atribuir o predicado F agrave

Forma que ocupa o lugar de sujeito da sentenccedila Deste modo natildeo poderiam

representar ldquoauto-predicaccedilotildeesrdquo na medida em que sequer seriam casos de

predicaccedilatildeo A segunda estrateacutegia adotada pelos comentadores para negar que

Soacutecrates esteja comprometido com (AP) consiste em afirmar que apesar de

verdadeiras predicaccedilotildees sentenccedilas na forma ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo podem ser

equiparadas a sentenccedilas na forma ldquox eacute Frdquo em que x corresponde a uma entidade

sensiacutevel Teriacuteamos assim dois tipos distintos de predicaccedilatildeo a Forma F eacute F

poreacutem de um modo completamente diferente da coisa x ser F Natildeo havendo

uniformidade na maneira em que estes dois tipos de entidades recebem seus

predicados natildeo estaria justificada a inclusatildeo de F-idade no conjunto de coisas (a

b c) e o regresso estaria bloqueado em seu primeiro passo

Cada uma destas duas estrateacutegias baacutesicas de negar a validade de (AP) foi

defendida por mais de um argumento Portanto trataremos delas separadamente a

comeccedilar pelos comentadores que afirmam o primeiro tipo de abordagem segundo

o qual as sentenccedilas na forma ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo representam tentativas de

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descriccedilotildees das Formas e portanto natildeo satildeo legiacutetimas predicaccedilotildees

Reginald Allen (1960) baseia-se nas noccedilotildees de eponiacutemia e homoniacutemia

para afirmar que quando Soacutecrates chama uma determinada Forma F de F ele natildeo

estaacute propriamente atribuindo a esta Forma a caracteriacutestica de ser-F Segundo

Allen nas sentenccedilas do tipo ldquox eacute Frdquo em que particulares ocupam o lugar do

sujeito o predicado F estaacute normalmente descrevendo ou classificando o sujeito x

Contudo nas sentenccedilas auto-predicativas em que uma Forma estaacute ocupando o

lugar do sujeito o termo F possui uma funccedilatildeo completamente distinta e deve ser

entendido como um nome proacuteprio Allen faz uso de duas passagens no Feacutedon para

defender sua teoria Na primeira delas (78e1) Soacutecrates afirma que os objetos

sensiacuteveis satildeo homocircnimos (ὁmicroωνύmicroων) das Formas Enquanto na segunda

passagem (102b) oferece a explicaccedilatildeo de que as coisas sensiacuteveis ldquorecebem os

nomes das Formas em que participamrdquo (τἆλλα microεταλαmicroβάνοντα αὐτῶν τούτων

τὴν ἐπωνυmicroίαν ἴσχειν)

De acordo com Allen (1960 p45) estas duas passagens seriam suficientes

para afirmarmos que segundo a teoria defendida por Soacutecrates toda sentenccedila na

estrutura sujeito-predicado natildeo passa de uma reproduccedilatildeo por homoniacutemia das

relaccedilotildees entre Formas e coisas Isto eacute estas poucas linhas seriam evidecircncia

suficiente para atribuirmos a Soacutecrates uma teoria da significaccedilatildeo em que toda

predicaccedilatildeo ficaria reduzida a uma anaacutelise das relaccedilotildees de designaccedilatildeo atraveacutes de

nomes Assim em virtude da participaccedilatildeo na Forma F os objetos sensiacuteveis

recebem o nome desta Forma com uma de suas designaccedilotildees ganhando o direito

de serem verdadeiramente chamados de F

Apesar do iacutenfimo apoio textual oferecido como suporte para a atribuiccedilatildeo

de uma teoria da linguagem tatildeo extravagante a Soacutecrates Allen distingue em

seguida dois modos de designaccedilatildeo Um nome possuiria uma designaccedilatildeo

primaacuteria quando aplicado a uma Forma e uma designaccedilatildeo secundaacuteria quando

aplicado aos objetos sensiacuteveis Em sua designaccedilatildeo primaacuteria o termo F seria usado

como um nome proacuteprio que identifica a Forma F poreacutem natildeo a descreve A

relaccedilatildeo de designaccedilatildeo secundaacuteria por outro lado seria essencialmente derivativa

e atribuiria a uma entidade sensiacutevel um nome que lhe pertence apenas

indiretamente devido agrave relaccedilatildeo de homoniacutemia que esta entidade manteacutem com

uma Forma

Aceitando a explicaccedilatildeo de Allen somos obrigados a reconhecer que

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sentenccedilas do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo servem para descrever a F-idade uma vez

que o termo F natildeo passa de um mais um nome desta Forma Assim todo caso de

aparente auto-predicaccedilatildeo das Formas natildeo passaria de uma tautologia entre

sinocircnimos e natildeo afirmaria nada aleacutem da identidade da Forma F com ela mesma Eacute

evidente que neste caso a foacutermula ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo constituiria uma legiacutetima

predicaccedilatildeo e portanto natildeo poderia ser usada como evidecircncia do

comprometimento de Soacutecrates com (AP)

O maior problema da interpretaccedilatildeo de Allen eacute que os poucos textos por ele

apresentados natildeo parecem oferecer o suporte necessaacuterio para sua caracterizaccedilatildeo

da concepccedilatildeo socraacutetica de predicaccedilatildeo como designaccedilatildeo Segundo Allen as coisas

sensiacuteveis recebem os nomes das Formas No entanto se analisarmos as passagens

do Feacutedon citadas por Allen assim como a passagem do proacuteprio Parmecircnides em

que a noccedilatildeo de eponiacutemia eacute evocada veremos que em nenhuma delas eacute possiacutevel

encontrar o termo F como um nome para as Formas Em Feacutedon 102b-c Soacutecrates

menciona a Grandeza (microέγεθος) e a Pequenez (σmicroικρότητα) como nomes de

Formas No Parmecircnides aparecem ainda os termos Igualdade (ὁmicroοιότητος) e

Justiccedila (δικαιοσύνης) Ora todas estas passagens mencionam apenas substantivos

abstratos (F-idade) como designadores diretos das Formas Uma anaacutelise

tautoloacutegica para sentenccedilas auto-predicativas no entanto depende que as Formas

sejam designadas natildeo soacute como F-idade mas tambeacutem como F Sem uma afirmaccedilatildeo

expliacutecita de que o termo F pode servir como um nome para as Formas natildeo temos

como derivar uma identidade a partir da sentenccedila ldquoF-idade eacute Frdquo

A outra passagem apresentada por Allen (Feacuted78e) na qual se afirma a

homoniacutemia entre Formas e coisas tampouco apresenta F como uma designaccedilatildeo

primaacuteria das Formas Nesta passagem as designaccedilotildees citadas para as Formas satildeo

o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) e o Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

Novamente natildeo temos o termo desejado apenas a expressatildeo ldquoo F ele mesmordquo

(αὐτὸ τὸ F) Tal como no caso da eponiacutemia para que sentenccedilas auto-predicativas

envolvendo Formas ficassem seguramente estabelecidas como tautologias

precisariacuteamos que aleacutem de ldquoF-idaderdquo e ldquoo F ele mesmordquo o proacuteprio termo F

servisse como nome para as Formas Contudo natildeo eacute isso que encontramos em

qualquer dos textos apresentados por Allen55

55 Como reconhece Malcolm quem primeiro formulou este tipo de objeccedilatildeo a Allen outros textos

apresentam o termo F como nome da Forma F-idade por exemplo Eut10d Fed76d

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De fato mesmo se nas passagens elencadas por Allen o termo F fosse

apresentado como um designador direto da Forma F-idade natildeo teriacuteamos razotildees

suficientes para descartar por completo a possibilidade de (AP) representar um

real princiacutepio da Teoria das Ideias Afinal natildeo eacute apenas nos contextos de

homoniacutemia e eponiacutemia mencionados por Allen que Soacutecrates descreve uma Forma

como possuidora da propriedade de que eacute causa nos objetos sensiacuteveis Considere

por exemplo a Forma do Belo no Banquete Como vimos neste diaacutelogo a Forma

do Belo eacute caracterizada como ldquoalgo maravilhosamente belo por naturezardquo (τι

θαυmicroαστὸν τὴν φύσιν καλόν) sem que seja feita qualquer menccedilatildeo a questotildees de

homoniacutemia ou relaccedilotildees de significado Mesmo que a anaacutelise de Allen nos

fornecesse uma interpretaccedilatildeo vaacutelida para a teoria socraacutetica da predicaccedilatildeo

passagens como esta do Banquete (210e-211b) ainda poderiam ser usadas para

comprometer Soacutecrates com (AP) Afinal como poderiacuteamos explicar a doutrina de

que o Belo eacute o objeto maior de desejo eroacutetico por ser sempre belo (microονοειδὲς ἀεὶ

ὄν) Segundo Allen isto seria equivalente a afirmarmos que o Belo eacute o objeto

maior de desejo eroacutetico por ser sempre igual a ele mesmo Tal afirmaccedilatildeo

contudo eacute claramente insustentaacutevel uma vez que cada coisa eacute sempre igual a ela

mesma e portanto todas elas seriam o objeto maior de desejo eroacutetico

Este uacuteltimo tipo de objeccedilatildeo se estende a todos aqueles que pretendem

interpretar sentenccedilas do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo como casos de identidade a despeito

de aceitarem a anaacutelise de predicaccedilotildees como relaccedilotildees de homoniacutemia proposta por

Allen Cherniss (1957) o primeiro a propor que devemos entender sentenccedilas auto-

predicativas envolvendo Formas como casos de identidade distingue entre ter F e

ser F Segundo Cherniss enquanto os objetos sensiacuteveis tecircm uma propriedade F

em virtude de sua participaccedilatildeo na Forma F a F-idade eacute a propriedade F Assim

somente em sentenccedilas contendo particulares sensiacuteveis como sujeitos o predicado

estaria fornecendo uma descriccedilatildeo do sujeito em questatildeo Em sentenccedilas na forma

ldquoa F-idade eacute Frdquo por outro lado teriacuteamos uma afirmaccedilatildeo de identidade e natildeo uma

predicaccedilatildeo ordinaacuteria

Ora a primeira coisa que devemos notar eacute que nada na anaacutelise de Cherniss

proiacutebe que a F-idade possa ser F e simultaneamente ter F como um legiacutetimo

Sof255a No entanto na medida em que toda teoria de Allen jaacute possui escasso apoio textual podemos considerar o fato de que o termo F natildeo aparece como um designador das Formas nas passagens por ele apresentadas como uma evidecircncia contra sua interpretaccedilatildeo (cf Malcolm

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281

predicado E caso Cherniss argumente que soacute eacute possiacutevel ter uma propriedade em

virtude da participaccedilatildeo em uma Forma podemos coerentemente responder que ou

bem F-idade tem F por participar de si mesma ou bem precisariacuteamos de uma

segunda Forma F-idade para explicar a propriedade F que F-idade tem

Estariacuteamos assim novamente no caso de decidir sobre a validade de (AP)

mesmo aceitando a anaacutelise de Cherniss que a princiacutepio deveria servir de soluccedilatildeo

para este dilema Aleacutem disso considerando que Cherniss venha a negar

completamente a possibilidade de uma Forma F ter a propriedade F e mantenha

que toda sentenccedila do tipo ldquoA F-idade eacute Frdquo deve ser entendia como uma predicaccedilatildeo

de identidade algumas afirmaccedilotildees de Soacutecrates resultariam em inaceitaacuteveis contra-

sensos Considere por exemplo o que fala Soacutecrates em Feacutedon 100c4-6

ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute bela (εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν56) aleacutem do Belo ele mesmo (πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o restordquo φαίνεται γάρ microοι εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν οὐδὲ δι ἓν ἄλλο καλὸν εἶναι ἢ διότι microετέχει ἐκείνου τοῦ καλοῦ (100c4-6)

Esta sentenccedila afirma claramente que 1) o Belo ele mesmo eacute belo e 2) que

se alguma outra coisa tambeacutem eacute bela entatildeo ela eacute bela por participar no Belo ele

mesmo Ora de acordo com Allen e Cherniss 1) dever ser entendido como ldquoo

Belo ele mesmo eacute idecircntico ao Belordquo Sendo assim 2) estaria afirmando a seguinte

absurdidade ldquoSe alguma outra coisa eacute idecircntica ao Belo ele mesmo entatildeo esta

coisa eacute idecircntica ao Belo ele mesmo porque participa no Belo ele mesmordquo Isto no

entanto contradiz de maneira oacutebvia a Teoria das Ideias Afinal toda coisa bela

incluindo objetos sensiacuteveis seria idecircntica agrave Forma da Beleza Aleacutem disso a

proacutepria participaccedilatildeo teria como resultado a identidade entre a coisa participante e

a Forma participada

Uma uacuteltima interpretaccedilatildeo que pretende negar que a sentenccedila ldquoa F-idade eacute

Frdquo forneccedila uma descriccedilatildeo da Forma F-idade foi apresentada pelo proacuteprio Vlastos

quem primeiro identificou (AP) Anos depois de sua primeira publicaccedilatildeo sobre o

assunto Vlastos decide mudar sua interpretaccedilatildeo para o sentido de sentenccedilas auto-

predicativas envolvendo Formas Segundo ele a compreensatildeo de sentenccedilas da

1991 p 67-68)

56 Note que a mesma ocorrecircncia de καλὸν serve de predicado tanto para τί ἄλλο quanto para αὐτὸ τὸ καλόν Portanto a mesma anaacutelise deve ser oferecida para ldquo τί ἄλλο ἐστιν καλὸνrdquo e ldquo αὐτὸ

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282

forma ldquoa F-idade eacute Frdquo como casos de (AP) levaria a contradiccedilotildees tatildeo evidentes

que Platatildeo natildeo poderia ter deixado de notaacute-las No Protaacutegoras (330c7-8) por

exemplo Soacutecrates afirma que a ldquoJusticcedila eacute justardquo e logo apoacutes que a ldquoPiedade eacute

piardquo De acordo com Vlastos estas sentenccedilas natildeo podem representar descriccedilotildees

pois na condiccedilatildeo de Formas a Justiccedila e a Piedade natildeo poderiam ser justas ou

pias Estes atributos morais aplicam-se a pessoas ou atitudes e natildeo faria qualquer

sentido afirmar que uma entidade inteligiacutevel universal possui uma qualidade

moral Assim Vlastos admite que o Belo do Banquete seja belo ou que a Unidade

seja uacutenica pois a proacutepria condiccedilatildeo de Formas platocircnicas exige que natildeo soacute o Belo

e a Unidade mas de fato todas as Formas sejam belas e uacutenicas Poreacutem nenhuma

Forma incluindo a Justiccedila poderia ser justa na medida em que nenhuma entidade

inteligiacutevel universal eacute capaz de realizar atitudes passiacuteveis de julgamento moral

Como anaacutelise para sentenccedilas do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo nas quais o termo F

natildeo representa uma caracteriacutestica proacutepria das Formas enquanto Formas Vlastos

propotildee a seguinte anaacutelise ldquoNecessariamente se x participa de F-idade entatildeo x eacute

Frdquo (Vlastos 1972 p252-265) Deste modo afirmaccedilotildees do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo

natildeo teriam uma Forma como sujeito mas ofereceriam uma descriccedilatildeo da classe de

coisas que participam em F-idade Inspirado em uma passagem de Satildeo Paulo

(Carta aos Coriacutentios I 13 4-8) Vlastos denomina o tipo de predicaccedilatildeo por ele

descrito como ldquopredicaccedilatildeo paulinardquo

Em sua epiacutestola Satildeo Paulo faz afirmaccedilotildees como ldquoa caridade eacute piardquo e ldquoa

caridade eacute magnacircnimardquo De acordo com Vlastos o que S Paulo pretende dizer

por meio destas sentenccedilas eacute que ldquotodo aquele que eacute caridoso eacute tambeacutem piedoso e

magnacircnimordquo Assim transposto para o contexto platocircnico as afirmaccedilotildees do

Protaacutegoras natildeo estariam afirmando rigorosamente nada sobre as Formas da

Justiccedila e Piedade mas apenas sustentando a tese de que ldquotodo aquele que participa

da Justiccedila eacute justordquo Deste modo casos problemaacuteticos de auto-predicaccedilatildeo de

Formas ficariam reduzidos a casos de predicaccedilotildees gerais sobre coisas sensiacuteveis

O problema gerado pela anaacutelise proposta por Vlastos possui natureza

essencialmente conceitual Para comeccedilar a teoria da predicaccedilatildeo paulina pressupotildee

que sentenccedilas envolvendo Formas como sujeito possam ser diretamente

traduzidas em sentenccedilas envolvendo somente particulares sensiacuteveis isto eacute no

τὸ καλόν ἐστιν καλὸνrdquo

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caso de termos uma sentenccedila do tipo ldquoa F-idade eacute xrdquo estariacuteamos falando natildeo da F-

idade mas do conjunto de coisas sensiacuteveis que satildeo F Como observa Fronterotta

(2001 p250-251) isto vai de encontro agrave proacutepria concepccedilatildeo de Forma como uma

entidade separada dos objetos sensiacuteveis que dela participam De acordo com a

ontologia socraacutetica a Forma F-idade natildeo corresponde agrave soma dos objetos que satildeo

F mas caracteriza-se por ser ontologicamente distinta destas coisas Portanto

qualquer anaacutelise que resulte em confusatildeo ou sobreposiccedilatildeo entre o que eacute a F-idade

e o que satildeo os muacuteltiplos objetos sensiacuteveis que possuem a propriedade de serem F

estaacute sujeita agrave criacutetica de estar ignorando a distinccedilatildeo mais fundamental da Teoria das

Ideias

Suponha por exemplo uma relaccedilatildeo entre Formas expressa na sentenccedila ldquoa

F-idade eacute a G-idaderdquo Segundo Vlastos estas sentenccedilas deveriam ter sua

veracidade comprovada por meio da verificaccedilatildeo da relaccedilatildeo de inclusatildeo entre o

conjunto de coisas que satildeo F e o conjunto de coisas que satildeo G Uma relaccedilatildeo entre

Formas ficaria reduzida no espiacuterito da teoria da predicaccedilatildeo paulina a uma relaccedilatildeo

entre extensotildees de conjuntos de coisas Entretanto isto violaria a prioridade

ontoloacutegica e epistemoloacutegica das Formas em relaccedilatildeo aos objetos sensiacuteveis e uma

relaccedilatildeo entre coisas seria responsaacutevel pelo estabelecimento de uma relaccedilatildeo entre

Formas quando uma anaacutelise fiel aos princiacutepios da Teoria das Ideias deveria

apresentar exatamente o oposto

Podemos concluir portanto que nenhum dos autores acima mencionados

conseguiram oferecer uma anaacutelise para sentenccedilas do tipo ldquoA F-idade eacute Frdquo que

livrasse Soacutecrates de (AP) e consequentemente do Argumento do Terceiro

Homem Tentar afirmar que sentenccedilas auto-predicativas envolvendo Formas natildeo

oferecem descriccedilotildees e portanto natildeo satildeo legiacutetimas predicaccedilotildees resulta em

distorccedilotildees tatildeo gritantes do conteuacutedo dos diaacutelogos que natildeo podemos aceitar este

tipo de anaacutelise

Tendo descartado as interpretaccedilotildees que pretendem livrar Soacutecrates de (AP)

por meio da afirmaccedilatildeo de que a sentenccedila ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo constituiria uma

descriccedilatildeo da Forma F-idade podemos nos voltar para a segunda estrateacutegia adota

pelos comentadores com o objetivo de invalidar o Argumento do Terceiro

Homem Como dito anteriormente este segundo grupo de inteacuterpretes assume que

sentenccedilas auto-predicativas oferecem uma descriccedilatildeo da Forma que ocupa o lugar

de sujeito poreacutem alegam que esta descriccedilatildeo natildeo eacute suficiente para agruparmos a

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Forma F-idade com os diversos objetos sensiacuteveis que satildeo F Isto porque a Forma

F-idade natildeo receberia o predicado F da mesma maneira que objetos sensiacuteveis (a

b c) o recebem Teriacuteamos portanto dois tipos distintos de predicaccedilatildeo a F-idade eacute

F poreacutem de um modo completamente diferente das coisas (a b c) serem F Uma

vez que o predicado F natildeo estaria sendo aplicado de maneira uniacutevoca a Formas e

coisas a inclusatildeo de F-idade no conjunto de coisas (a b c) necessaacuteria para

gerarmos o regresso ao infinito natildeo estaria justificada e todo o argumento seria

invalidado

De acordo com os proponentes desta tese a fonte textual para atribuirmos

este tipo de interpretaccedilatildeo a Platatildeo estaria nos textos em que Soacutecrates descreve a

relaccedilatildeo entre Formas e coisas como uma relaccedilatildeo anaacuteloga agravequela entre um Modelo

ou Original (παραδείγmicroατα) e suas coacutepias (εἰκόνες) imagens (ei)dwla) ou

imitaccedilotildees (mimhmata) Uma vez que tenhamos em mente afirmam estes

comentadores que Soacutecrates entende a relaccedilatildeo entre Formas e coisas da mesma

maneira que entendemos a relaccedilatildeo entre um Modelo e suas coacutepias (um Original e

suas imagens) seremos levados a concluir que a sentenccedila ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo

atribui o predicado F a seu sujeito do mesmo modo que a sentenccedila ldquox eacute Frdquo atribui

o predicado F ao objeto sensiacutevel x

Ora para que este argumento seja realmente efetivo eacute preciso que fique

especificado exatamente qual eacute esta relaccedilatildeo entre um ModeloOriginal e suas

coacutepiasimagens que quando transposta para relaccedilatildeo entre Formas e coisas

sensiacuteveis eacute capaz de falsificar (AP) Uma explicaccedilatildeo repetidamente apresentada

pelos comentadores baseia-se na relaccedilatildeo entre um padratildeo (standard) de medida e

as muacuteltiplas coisas que podem ser alvo de mediccedilatildeo em comparaccedilatildeo a este

padratildeo57 De acordo com este tipo de argumentaccedilatildeo uma Forma deveria ser

comparada a um Modelo de medida como por exemplo o padratildeo do Metro

contido na Academia de Medidas Francesa Aceitando esta analogia seriacuteamos

levados a ver que assim como o Metro padratildeo natildeo possui a medida de um metro

uma vez que ele eacute o proacuteprio modelo para a aplicaccedilatildeo deste predicado tambeacutem F-

idade natildeo pode ser dita F ou classificada como uma coisa F

Um testemunho de grande peso eacute neste contexto evocado pelos

defensores deste tipo de interpretaccedilatildeo que citam Wittgenstein ldquoHaacute uma uacutenica

57 Este tipo de argmentaccedilatildeo eacute explicitamente adotado por Bluck em ldquoForms as Standardsrdquo (1957)

e Allen (1960 p 45-47) sendo por vezes defendido por Patterson (1985)

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coisa sobre a qual natildeo podemos dizer que tem um metro de comprimento nem que

natildeo tem um metro de comprimento esta coisa eacute o padratildeo do metro situado em

Parisrdquo (Investigaccedilotildees Filosoacuteficas 50) Esta afirmaccedilatildeo seria suficiente para colocar

Wittgenstein ao lado daqueles que acham que assim como natildeo podemos dizer do

padratildeo do Metro que ele possui um metro de comprimento tampouco poderiacuteamos

dizer de F-idade que ela eacute F

Conforme demonstrado por Malcolm (1991 p 70-72) a explicaccedilatildeo para a

enigmaacutetica sentenccedila de Wittgenstein deve ser buscada na sua teoria de que nomear

e descrever satildeo essencialmente atos de fala distintos De fato na seccedilatildeo

imediatamente anterior a esta afirmaccedilatildeo Wittgenstein nos diz ldquoNomear e

descrever natildeo estatildeo no mesmo niacutevel a nomeaccedilatildeo eacute uma preparaccedilatildeo para

descriccedilatildeordquo (Investigaccedilotildees Filosoacuteficas 49) Devemos entender portanto que ao

nomearmos uma determinada barra de ferro em Paris como o Modelo do Metro

natildeo estamos descrevendo esta barra mas estabelecendo um padratildeo que serviraacute

para posterior descriccedilatildeo desta medida Assim o criteacuterio de verdade da sentenccedila ldquoo

Metro tem um metrordquo eacute estabelecido por nomeaccedilatildeo enquanto o criteacuterio de

verdade para descriccedilatildeo ldquoesta mesa tem um metrordquo eacute estabelecido por comparaccedilatildeo

ao Modelo de metro ldquoesta mesa tem um metrordquo soacute eacute uma sentenccedila verdadeira

quando a mesa possuir o mesmo comprimento do Metro Modelo

A pergunta que devemos fazer eacute se este ato de nomeaccedilatildeo anula por

completo a possibilidade de subsequentes descriccedilotildees deste Modelo Considerando

por exemplo que o ato de nomeaccedilatildeo se daacute uma uacutenica vez entatildeo nunca mais

poderiacuteamos fazer afirmaccedilotildees sobre o comprimento da barra de ferro situada na

Academia de Medidas Francesa Eacute muito mais razoaacutevel acreditarmos que seu

estabelecimento como Modelo eacute aquilo que nos permite descrevecirc-la como tendo

um metro de comprimento Nada parece obrigar que o estabelecimento de um

padratildeo sirva de preparaccedilatildeo para que apenas outras coisas sejam descritas

Podemos considerar inclusive que o estabelecimento de um padratildeo depende da

realizaccedilatildeo de dois atos simultacircneos a descriccedilatildeo de uma propriedade deste padratildeo

e a nomeaccedilatildeo desta entidade como Modelo para subsequente aplicaccedilotildees desta

descriccedilatildeo Sendo assim creio que a afirmaccedilatildeo de Wittgenstein estaacute restrita ao

acircmbito do momento de estabelecimento do Modelo do Metro De fato para

estabelecermos um comprimento como padratildeo de metro precisamos nomeaacute-lo e

natildeo descrevecirc-lo Poreacutem apoacutes estabelecido este padratildeo natildeo haacute motivo aparente

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para negar que possamos descrever o Metro Modelo como tendo um metro de

comprimento

Assim se utilizarmos a relaccedilatildeo entre o padratildeo do Metro e as coisas

descritas como tendo um metro de comprimento para entender a relaccedilatildeo entre

Formas e coisas veremos que esta analogia natildeo eacute suficiente para combater a

validade de (AP) Mesmo natildeo havendo um momento de nomeaccedilatildeo da Forma de F-

idade como padratildeo o que os comentadores que fazem uso da discussatildeo iniciada

por Wittgenstein pretendem afirmar eacute que assim como o criteacuterio de

estabelecimento da verdade de ldquoa mesa tem um metrordquo natildeo pode ser o mesmo

criteacuterio de estabelecimento da verdade de ldquoo Metro tem um metrordquo tambeacutem o

criteacuterio de verdade de ldquoF-idade eacute Frdquo deve ser distinto do criteacuterio de verdade de ldquoa

eacute Frdquo

Contudo se as coisas de um metro possuem a mesma medida do padratildeo de

Metro entatildeo logicamente o padratildeo de Metro possui a mesma medida das coisas

de um metro Sendo assim se o comprimento destas coisas pode ser descrito pelo

predicado ldquoter um metrordquo entatildeo o Metro padratildeo tambeacutem deve poder ser descrito

pelo mesmo predicado No caso das Formas se a b c satildeo F em virtude da F-

idade entatildeo de acordo com a analogia proposta a b c possuem a mesma

propriedade que F-idade e somos obrigados a admitir que ldquoa F-idade eacute Frdquo do

mesmo modo que ldquoa b c satildeo Frdquo a despeito do criteacuterio para o estabelecimento da

verdade das sentenccedilas ldquoa eacute Frdquo ldquob eacute Frdquo e ldquoc eacute Frdquo ser diferente daquele usado para

estabelecer a verdade de ldquoa F-idade eacute Frdquo Entender a relaccedilatildeo entre Formas e coisas

como anaacuteloga agrave relaccedilatildeo entre um padratildeo e as coisas descritas a partir deste padratildeo

natildeo fornece uma saiacuteda ao Argumento do Terceiro Homem

Outra proposta de compreensatildeo para a natureza da remissatildeo

Modelocoacutepias parece oferecer uma explicaccedilatildeo muito mais promissora para

relaccedilatildeo entre Formas e coisas Alguns autores como Allen (1960 p48-52) Geach

(1956) e Patterson (1985) sugerem que entendamos a relaccedilatildeo entre Formas e

coisas em analogia agrave relaccedilatildeo entre um determinado objeto e suas muacuteltiplas

imagens Neste tipo de relaccedilatildeo alegam estes comentadores eacute muito claro que as

imagens natildeo satildeo um caso de F da mesma maneira que o original eacute F Pense por

exemplo na relaccedilatildeo entre um gato e as diversas fotos deste gato Parece muito

oacutebvio que o gato original recebe o predicado ldquoser-um-gatordquo de um modo muito

diferente de suas imagens pois estas falando estritamente natildeo satildeo gatos

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Seguindo esta analogia a Forma da F-idade seria a uacutenica coisa realmente F

enquanto as muacuteltiplas coisas sensiacuteveis receberiam este predicado de uma maneira

derivativa por serem uma imagem de F-idade De acordo com esta interpretaccedilatildeo

Formas seriam Modelos ou Originais (παραδείγmicroατα) dos quais os objetos

sensiacuteveis representariam imagens (ei)dwla εἰκόνες) ou imitaccedilotildees (mimhmata)

Uma primeira criacutetica possiacutevel a esta interpretaccedilatildeo consiste em afirmar que

a relaccedilatildeo Originalimagens eacute de natureza muito estrita para servir como uma

explicaccedilatildeo adequada para relaccedilatildeo entre Formas e coisas Uma imagem deve

representar com maior ou menor sucesso as caracteriacutesticas aspectuais de seu

original e inversamente um original deve conter as caracteriacutesticas aspectuais de

suas imagens Poreacutem qual original de aacutervore poderia conter em si as

caracteriacutesticas aspectuais de todas as aacutervores sensiacuteveis Se um triacircngulo precisa

ser ou isoacutesceles ou equilaacutetero ou escaleno e natildeo pode ter estas trecircs caracteriacutesticas

simultaneamente como a Triangularidade poderia servir como um uacutenico Modelo

para imagens com caracteriacutesticas mutuamente excludentes

Esta criacutetica contudo pode ser facilmente contornada por meio da alegaccedilatildeo

de que a relaccedilatildeo Originalimagens natildeo precisa ser entendida de maneira tatildeo

restrita Eacute possiacutevel pensar por exemplo que o Original soacute possuiria as

caracteriacutesticas aspectuais essenciais enquanto as diferenccedilas especiacuteficas estariam

manifestas apenas em suas imagens A Triangularidade teria a caracteriacutestica de

possuir trecircs lados iguais e apenas suas imagens sensiacuteveis seriam triacircngulos

equilaacuteteros isoacutesceles ou escalenos Outra saiacuteda seria aumentar o nuacutemero de

Originais afirmando a existecircncia de uma Forma da Triangularidade Isoacutesceles

outra Escalena e outra Equilaacutetero Estas modificaccedilotildees no entanto teriam como

resultado por um lado uma extensatildeo indesejada do conjunto de Formas que

passaria a incluir Formas de espeacutecies e por outro lado o enfraquecimento da

proacutepria analogia entre Originalimagens proposta inicialmente

Patterson (1985 p42) adota a primeira destas duas linhas de

argumentaccedilatildeo e procura evitar resultados problemaacuteticos traccedilando uma diferenccedila

entre coacutepias e imagens Para Patterson enquanto ser-uma-coacutepia implicaria em

assemelhar-se ao Original mantendo suas caracteriacutesticas aspectuais ser-uma-

imagem natildeo traria esta implicaccedilatildeo Para defender esta distinccedilatildeo Patterson eacute

obrigado a forccedilar o vocabulaacuterio platocircnico entendendo por imagens natildeo soacute o termo

ei)dwla como tambeacutem o(moiw=mata εἰκόνες e mimhmata que agrave primeira vista

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implicariam na estrita semelhanccedila entre Original e coacutepias

Apoacutes destituir a relaccedilatildeo Originalimagens da necessidade de semelhanccedila

entre seus dois elementos Patterson reinterpreta sua analogia inicial como uma

relaccedilatildeo entre ldquouma natureza abstrata e um exemplo concreto ou entre a natureza

inteligiacutevel de F ele mesmo e aquilo que concretamente possui ou tem a natureza

de F ele mesmordquo (Patterson 1985 p 95) Ora eacute muito evidente que atraveacutes deste

movimento Patterson estaacute abandonando por completo a relaccedilatildeo Originalimagem

inicialmente proposta e passando a entender os objetos sensiacuteveis ldquoexemplos

concretosrdquo das Formas que por sua vez satildeo entendidas como ldquonaturezas

inteligiacuteveis ou abstratasrdquo

Como o caso de Patterson deixa evidente compreender a relaccedilatildeo

Originalimagens sem pressupor qualquer niacutevel de semelhanccedila entre estes dois

elementos representa uma grande subversatildeo agrave natureza desta relaccedilatildeo Poreacutem

mesmo que seja possiacutevel compreender que uma imagem natildeo se assemelha ao

original de que eacute imagem seria preciso demonstrar ainda que o personagem

Soacutecrates estaacute entendendo a relaccedilatildeo entre Formas e coisas sensiacuteveis em analogia a

esta compreensatildeo sui generis de imagens que natildeo guardam qualquer semelhanccedila

com seu original Se olharmos para as passagens em que Soacutecrates trata os objetos

sensiacuteveis como imagens ou imitaccedilotildees das Formas no entanto veremos que a

relaccedilatildeo de semelhanccedila entre Formas e coisas estaacute sempre pressuposta

Um exemplo oferecido por Patterson (1985 p61) sugere que imagens

sonhadas natildeo se assemelham de modo algum aos seus originais pois natildeo podem

realmente possuir as propriedades que seus originais possuem Contudo para que

seja estabelecida uma relaccedilatildeo de semelhanccedila natildeo eacute preciso que as imagens sejam

como seus originas basta que as imagens pareccedilam com seus originais Uma prova

disto eacute que reconhecemos quando algueacutem familiar aparece em nossos sonhos Se

somos capazes de reconhecer algueacutem em sonhos eacute porque a imagem que

experienciamos se assemelha de algum modo agrave pessoal real Soacutecrates parece

corroborar esta anaacutelise trivial para relaccedilatildeo entre imagens sonhadas e originais e

na Repuacuteblica (476c5-7) nos explica que o sonhar (τὸ ὀνειρώττειν) quer

dormindo quer acordado nada mais eacute do que ldquocrer que o semelhante a algo (τὸ

ὅmicroοιόν τῳ) natildeo eacute semelhante a algo mas aquilo mesmo com o que se parece (microὴ

ὅmicroοιον ἀλλ αὐτὸ ἡγῆται εἶναι ᾧ ἔοικεν)rdquo

As passagens em que o termo εἰκών eacute usado para designar objetos

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sensiacuteveis tampouco parecem oferecer o material necessaacuterio para a anaacutelise de

ldquoimagens natildeo semelhantes a seu originalrdquo desejada por Patterson Em Repuacuteblica

(506b) Soacutecrates eacute instigado a discursar sobre o Bem poreacutem se recusa

consentindo em falar sobre ldquoo rebento do Bem e o que haacute de mais semelhante

possiacutevel a elerdquo (ὃς δὲ ἔκγονός τε τοῦ ἀγαθοῦ φαίνεται καὶ ὁmicroοιότατος ἐκείνῳ

506e3) Este rebento mais tarde nos eacute revelado trata-se do sol e em 509a9

Soacutecrates se refere a ele como ldquoa imagem do Bemrdquo (τὴν εἰκόνα αὐτοῦ)

Novamente a relaccedilatildeo entre imagem e original se daacute por semelhanccedila O sol eacute uma

imagem do Bem porque eacute ldquoo que haacute de mais semelhante a elerdquo (ὁmicroοιότατος

ἐκείνῳ)

Do mesmo modo na passagem da linha dividida a primeira seccedilatildeo da linha

estaacute reservada agraves imagens Soacutecrates oferece a seguinte explicaccedilatildeo para o que estas

imagens satildeo

ldquoChamo imagens (τὰς εἰκόνας) em primeiro lugar as sombras (τὰς σκιάς) em seguida os reflexos nas aacuteguas (τὰ ἐν τοῖς ὕδασι φαντάσmicroατα) e em todas aquelas superfiacutecies que satildeo compactas lisas e brilhantes e tudo mais deste tipordquo λέγω δὲ τὰς εἰκόνας πρῶτον microὲν τὰς σκιάς ἔπειτα τὰ ἐν τοῖς ὕδασι φαντάσmicroατα καὶ ἐν τοῖς ὅσα πυκνά τε καὶ λεῖα καὶ φανὰ συνέστηκεν καὶ πᾶν τὸ τοιοῦτον (510a1-3)

A descriccedilatildeo de εἰκόνες como ldquosombrasrdquo e ldquofantasmasrdquo parece favorecer a

equaccedilatildeo entre os termos εἰκών e ei)dwlon e a noccedilatildeo de imagem-dessemelhante

desejada por Patterson No entanto na continuaccedilatildeo do argumento Soacutecrates pede

para que na segunda seccedilatildeo da linha sejam colocadas as coisas que datildeo origens agraves

imagens da primeira seccedilatildeo isto eacute os objetos empiacutericos sensiacuteveis Em seguida

Soacutecrates passa para a parte do inteligiacutevel e descreve a primeira seccedilatildeo desta parte

como aquela em que a alma utiliza como se fossem imagens (ὡς εἰκόσιν χρωmicroένη

ψυχὴ) as coisas que antes eram imitadas (τοῖς τότε microιmicroηθεῖσιν) O exemplo

utilizado por Soacutecrates vem da Geometria

ldquoSabes tambeacutem que eles (os geocircmetras) utilizam figuras visiacuteveis e constroem raciociacutenios sobre elas embora natildeo seja nelas que pensem mas em outras coisas agraves quais essas se parecem (οἷς ταῦτα ἔοικε) construindo raciociacutenios em vista do quadrado ele mesmo (τοῦ τετραγώνου αὐτοῦ) da diagonal ela mesma (διαmicroέτρου αὐτῆς) e natildeo da diagonal que traccedilam e assim tambeacutem para as outras figuras Todas aquelas que eles modelam ou traccedilam das quais haacute sombras e imagens nas aacuteguas (ὧν καὶ σκιαὶ καὶ ἐν ὕδασιν εἰκόνες εἰσίν) eles as utilizam como se fossem imagens (ὡς εἰκόσιν αὖ χρώmicroενοι) ao procurar ver aquelas coisas mesmas que

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natildeo se vecircem senatildeo pelo pensamentordquo Οὐκοῦν καὶ ὅτι τοῖς ὁρωmicroένοις εἴδεσι προσχρῶνται καὶ τοὺς λόγους περὶ αὐτῶν ποιοῦνται οὐ περὶ τούτων διανοούmicroενοι ἀλλ ἐκείνων πέρι οἷς ταῦτα ἔοικε τοῦ τετραγώνου αὐτοῦ ἕνεκα τοὺς λόγους ποιούmicroενοι καὶ διαmicroέτρου αὐτῆς ἀλλ οὐ ταύτης ἣν γράφουσιν καὶ τἆλλα οὕτως αὐτὰ microὲν ταῦτα ἃ πλάττουσίν τε καὶ γράφουσιν ὧν καὶ σκιαὶ καὶ ἐν ὕδασιν εἰκόνες εἰσίν τούτοις microὲν ὡς εἰκόσιν αὖ χρώmicroενοι ζητοῦντες δὲ αὐτὰ ἐκεῖνα ἰδεῖν ἃ οὐκ ἂν ἄλλως ἴδοι τις ἢ τῇ διανοίᾳ (510d5-511a1)

O resultado final das relaccedilotildees de proporccedilatildeo entre os diversos segmentos da

linha eacute que os objetos sensiacuteveis satildeo imagens (εἰκόνες) das Formas tal como as

sombras e reflexos na aacutegua (σκιάς τὰ ἐν τοῖς ὕδασι φαντάσmicroατα) satildeo imagens

destes mesmos objetos Contudo o que a menccedilatildeo aos procedimentos geomeacutetricos

deixa claro eacute que a relaccedilatildeo entre imagens e original deve ser entendida durante

toda passagem por meio da noccedilatildeo de semelhanccedila Do mesmo modo que minhas

imagens (sombras e reflexos em uma superfiacutecie daacutegua) se parecem comigo

tambeacutem os graacuteficos e desenhos satildeo utilizados pelos geocircmetras como se fossem

imagens (ὡς εἰκόσιν αὖ χρώmicroενοι) das Formas inteligiacuteveis porque com elas se

parecem (οἷς ταῦτα ἔοικε) Em suma imagens (εἰκόνες) satildeo imagens de coisas

com as quais guardam similaridades e compartilham propriedades de outro modo

natildeo haveria porque um geocircmetra desenhar quadrados com a intenccedilatildeo de estudar o

Quadrado ideal

Portanto considero as passagens acima citadas suficientes para comprovar

que Soacutecrates entendia por εἰκόνες o que normalmente entendemos por imagens

isto eacute algo fundamentalmente distinto daquilo de que eacute imagem poreacutem que

guarda algum tipo de semelhanccedila com o original ao qual remete Sendo assim

podemos descartar a interpretaccedilatildeo de Patterson que pretende fazer uso da relaccedilatildeo

Originalimagens como forma de compreensatildeo da relaccedilatildeo Formascoisas poreacutem

negando que haja qualquer tipo de semelhanccedila entre os dois elementos de cada

uma destes pares

A relaccedilatildeo Originalimagens contudo natildeo pode ser completamente

abandonada como um possiacutevel modelo de compreensatildeo para relaccedilatildeo entre Formas

e coisas pois a partir desta analogia ainda eacute possiacutevel extrairmos uma interpretaccedilatildeo

que falsifique (AP) Considere a relaccedilatildeo entre Simmias e os diversos retratos de

Simmias Quando pegamos um dos retratos de Simmias e perguntamos quem eacute a

pessoa neste retrato A resposta que recebemos eacute esta pessoa eacute Simmias

Evidentemente esta resposta nos eacute dada em funccedilatildeo da semelhanccedila entre o

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Simmias original e a imagem de Simmias no retrato pois eacute esta semelhanccedila o que

nos permite dizer que tanto Simmias quanto suas imagens possuem a propriedade

de ser-Simmias Apesar disto estas coisas possuem a propriedade de ser-Simmias

de maneiras distintas a imagem de Simmias no retrato eacute Simmias poreacutem em um

sentido diferente daquele em que Simmias eacute Simmias Como vimos a

transposiccedilatildeo desta relaccedilatildeo para o caso envolvendo Formas e coisas poderia

fornecer uma saiacuteda ao Argumento do Terceiro Homem Afinal de acordo com este

modelo a Forma F-idade eacute F de uma maneira distinta das coisas (a b c) o que

falsificaria (AP)

No entanto uma nova criacutetica pode ser dirigida agravequeles que defendem este

tipo de interpretaccedilatildeo segundo a qual a F-idade e os muacuteltiplos objetos sensiacuteveis

que dela satildeo imagens natildeo recebem o predicado F univocamente Afinal se uma

coisa sensiacutevel natildeo possui o predicado F do mesmo modo que a F-idade como esta

Forma poderia servir de Modelo (Original ou Paradigma) para a aplicaccedilatildeo do

predicado que esta coisa sensiacutevel possui

Suponha por exemplo que F1 e F2 representam os diferentes modos em

que o predicado F pode ser aplicado Assim diriacuteamos que a F-idade eacute F1

enquanto um objeto sensiacutevel x eacute F2 Neste caso como F-idade que eacute

exclusivamente F1 poderia servir de Modelo ou Paradigma para aplicaccedilatildeo do

predicado F2 nos objetos sensiacuteveis Para ser um ModeloOriginalParadigma dos

objetos sensiacuteveis que recebem o predicado F a Forma precisa ser um

ModeloOriginalParadigma de aplicaccedilatildeo do mesmo predicado F possuiacutedo pelos

objetos sensiacuteveis Pois se a relaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis estaacute fundada

no fato de que os objetos sensiacuteveis recebem o predicado F em virtude da F-idade

por que neste caso exatamente F-idade e natildeo outra Forma seria a causa da

propriedade F nas coisas sensiacuteveis Caso natildeo aceitemos que Formas e coisas

compartilhem um mesmo predicado de maneira uniacutevoca natildeo temos razotildees

suficientes para identificar a F-idade (ao inveacutes de G-idade) como causa da

caracteriacutestica F encontrada nos objetos sensiacuteveis

Em Feacutedon (74b-c) por exemplo a visatildeo de um par de pedaccedilos de

madeiras iguais em comprimento eacute capaz de nos fazer lembrar a Forma da

Igualdade com a qual tivemos contato antes de nascermos Ora se o par de

madeiras em questatildeo natildeo possui a mesma propriedade que a Forma da Igualdade

por que entatildeo nos lembrariacuteamos desta Forma e natildeo de qualquer outra Da mesma

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maneira o Banquete (210-211) nos apresenta um percurso de ascensatildeo que inicia-

se nos corpos discursos e ciecircncias sensiacuteveis para chegar ao Belo ele mesmo

Aceitando que o Belo natildeo compartilha uma mesma propriedade com estes corpos

discursos e ciecircncias por que seriam exatamente estas coisas sensiacuteveis que

formariam o caminho para o Belo

Em resposta a este tipo de criacuteticas algumas interpretaccedilotildees pretendem

abordar a diferenccedila entre o modo de uma Forma e uma coisa sensiacutevel receberem o

mesmo predicado F por meio da qualificaccedilatildeo da relaccedilatildeo de predicaccedilatildeo Assim

estariacuteamos falando de um mesmo predicado F poreacutem de duas relaccedilotildees de

predicaccedilatildeo natildeo uniacutevocas Podemos pensar por exemplo que enquanto a Forma F-

idade recebe o predicado F de maneira necessaacuteria os objetos sensiacuteveis satildeo F

apenas de maneira contingente Supostamente esta explicaccedilatildeo seria suficiente

para evidenciar dois modos natildeo-uniacutevocos de predicaccedilatildeo portanto falsificando

(AP) sem trazer as indesejadas consequecircncias acima descritas

Na realidade contudo esta distinccedilatildeo natildeo eacute capaz de desqualificar

univocidade Caso contraacuterio teriacuteamos que admitir que as sentenccedilas ldquoTodo

torcedor do Vasco eacute necessariamente vascaiacutenordquo e ldquoEu sou contingentemente

vascaiacutenordquo apresentam o predicado ldquoser-vascaiacutenordquo de maneira distinta Aleacutem disso

teriacuteamos que negar que a sentenccedila ldquoEu sou contingentemente torcedor do Vascordquo

pode ser corretamente inferida das duas sentenccedilas anteriores Acrescentar um

operador modal como qualificaccedilatildeo do predicado F natildeo eacute suficiente para produzir

um novo predicado natildeo-uniacuteco a F Portanto sob a luz desta distinccedilatildeo Formas e

coisas continuam possuindo o mesmo predicado e tanto (AP) quanto o Argumento

do Terceiro Homem continuam vaacutelidos

Outra tentativa de negar a aparente univocidade entre a aplicaccedilatildeo de um

predicado a uma Forma e a aplicaccedilatildeo deste mesmo predicado aos objetos

sensiacuteveis consiste em apelar para distinccedilatildeo entre predicaccedilatildeo per se e predicaccedilatildeo

per aliud Em paralelo agrave distinccedilatildeo aristoteacutelica entre predicaccedilatildeo essencial e

predicaccedilatildeo acidental alguns comentadores reconhecem em Platatildeo a diferenciaccedilatildeo

entre um tipo de predicaccedilatildeo ldquoem virtude de sua proacutepria naturezardquo (per se) e um

segundo tipo de predicaccedilatildeo ldquoem virtude de outra coisardquo (per aliud) Assim

enquanto as Formas receberiam seus predicados per se de maneira proacutepria os

objetos sensiacuteveis receberiam seus predicados per aliud de maneira derivativa

Entendida deste modo a auto-predicaccedilatildeo de uma Forma seria uma espeacutecie de

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definiccedilatildeo miacutenima desta entidade Alegadamente isto faria com que natildeo

pudeacutessemos reduzir sentenccedilas auto-predicativas envolvendo Formas a meras

identidades ao mesmo tempo em que diferenciariacuteamos dois modos natildeo uniacutevocos

de predicaccedilatildeo

De fato esta distinccedilatildeo parece se encaixar nos paracircmetros traccedilados pela

Teoria das Ideias Tal como as substacircncias aristoteacutelicas as Formas recebem seus

predicados de maneira natildeo derivativa (per se) enquanto as coisas que participam

das Formas recebem seus predicados em virtude desta participaccedilatildeo (per aliud) No

entanto a questatildeo relevante para nossa discussatildeo eacute se este tipo de distinccedilatildeo eacute

capaz de falsificar (AP) e bloquear a reduccedilatildeo ao infinito proposta por Parmecircnides

Como observa Teloh (1981 p124) a distinccedilatildeo proposta explica a aplicaccedilatildeo

de predicados por meio de relaccedilotildees entre entidades mas certamente este tipo de

explicaccedilatildeo eacute compatiacutevel com predicados uniacutevocos A aplicaccedilatildeo de um predicado a

entidades de tipos distintos por si soacute natildeo eacute suficiente para concluirmos uma

diferenccedila de sentido deste predicado Mesmo entendendo as Formas como sujeitos

proacuteprios de F e os objetos sensiacuteveis como sujeitos derivados deste mesmo

predicado natildeo somos obrigados a abandonar a tese da unidade de sentido do

predicado em questatildeo Por outro lado caso usemos esta distinccedilatildeo como base para

uma diferenciaccedilatildeo de sentido entre predicados per se e per aliud voltaremos ao

problema anteriormente descrito de considerar as Formas como causas de

propriedades que natildeo possuem e inversamente os objetos sensiacuteveis como

recebendo por derivaccedilatildeo predicados distintos daqueles possuiacutedos pelas Formas

O maior problema da distinccedilatildeo entre aplicaccedilatildeo per se e per aliud como

soluccedilatildeo ao Argumento do Terceiro Homem contudo estaacute no fato desta distinccedilatildeo

natildeo poder ser encontrada na Teoria das Ideias apresentada pelo personagem

Soacutecrates no Parmecircnides ou em qualquer outro diaacutelogo O primeiro autor a

reconhecer a possibilidade de uma aplicaccedilatildeo da diferenciaccedilatildeo entre estes dois

modos natildeo uniacutevocos de aplicaccedilatildeo de um mesmo predicado foi Frede (1967) De

acordo com Frede a diferenccedila entre uma predicaccedilatildeo que definiria o que uma coisa

eacute em virtude de si mesmo e uma predicaccedilatildeo ordinaacuteria que apenas descreveria os

atributos desta coisa estaacute pressuposta na investigaccedilatildeo sobre as relaccedilotildees entre os

gecircneros do Sofista sobretudo em 255c12-13 Posteriormente Meinwald (1991)

aplicou a distinccedilatildeo proposta por Frede em sua anaacutelise dos argumentos da segunda

parte do Parmecircnides afirmando explicitamente que a diferenciaccedilatildeo entre

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predicaccedilotildees per se e per aliud seria capaz de bloquear o Argumento do Terceiro

Homem

Ora em nenhum destes dois casos eacute o personagem Soacutecrates quem propotildee

as anaacutelises que dariam ensejo agrave distinccedilatildeo entre os dois modos natildeo uniacutevocos de

predicaccedilatildeo No Sofista quem apresenta as relaccedilotildees entre os gecircneros supremos eacute

um Estrangeiro de Eleacuteia enquanto no Parmecircnides eacute o proacuteprio Parmecircnides quem

conduz as deduccedilotildees da segunda parte do diaacutelogo Em ambos os casos Soacutecrates

natildeo estaacute envolvido nas discussotildees e muito menos apresenta explicitamente sua

Teoria das Ideias como fonte da distinccedilatildeo em questatildeo Portanto mesmo que

admitamos que uma diferenciaccedilatildeo entre predicaccedilotildees per se e per aliud pode

bloquear os regressos apresentados por Parmecircnides o que natildeo necessariamente eacute

o caso como explica Teloh (1981 p124) natildeo temos motivos algum para afirmar

que Soacutecrates estaacute de posse desta distinccedilatildeo Sendo assim como criacutetica agrave

formulaccedilatildeo claacutessica da Teoria das Ideias o Argumento do Terceiro Homem segue

sendo vaacutelido

Deste modo podemos concluir que a segunda estrateacutegia adotada para

falsificar (AP) e livrar a Teoria das Ideias do regresso ao infinito demonstrado por

Parmecircnides tampouco representa uma alternativa viaacutevel Entender a F-idade em

analogia a um padratildeo (standard) como o Metro Modelo natildeo impede que usemos

o predicado F para descrevecirc-la Por outro lado ao tentarmos apelar para relaccedilatildeo

Originalimagens como forma de entender modos natildeo uniacutevocos de se possuir um

mesmo predicado ou bem acabamos por ter que aceitar a semelhanccedila entre

imagens e Original abrindo caminho para o Argumento do Terceiro Homem ou

bem somos obrigados a reconhecer a existecircncia de imagens natildeo semelhantes a

seus originais o que eacute certamente absurdo aleacutem de ir contra o texto dos diaacutelogos

Por fim a tentativa de distinguir entre dois sentidos de aplicaccedilatildeo de um mesmo

predicado implica em tornar os objetos sensiacuteveis tatildeo distintos das Formas das

quais derivam seus predicados que o proacuteprio papel causal das Formas acaba por

tornar-se arbitraacuterio

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44 Conclusatildeo do quarto capiacutetulo

Como resultado de suas criacuteticas Parmecircnides passa a pressupor que natildeo

pode haver qualquer tipo de relaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis Sua

conclusatildeo estaacute fundada no fato de Soacutecrates se mostrar incapaz de fornecer uma

explicaccedilatildeo para natureza da relaccedilatildeo entre estes dois acircmbitos da realidade que natildeo

resulte na destruiccedilatildeo da unidade caracteriacutestica das Formas

ldquoEstaacute vendo entatildeo Soacutecrates quatildeo grande eacute a aporia se algueacutem determinar as Formas sendo em si e por si Sim certamente Pois fica sabendo que por assim dizer ainda natildeo a tocas tamanha eacute a aporia que surge se sempre ao definir algo puseres cada um dos seres como uma Forma uacutenicardquo Ὁρᾷς οὖν φάναι ὦ Σώκρατες ὅση ἡ ἀπορία ἐάν τις ὡς εἴδη ὄντα αὐτὰ καθ αὑτὰ διορίζηται Καὶ microάλα Εὖ τοίνυν ἴσθι φάναι ὅτι ὡς ἔπος εἰπεῖν οὐδέπω ἅπτῃ αὐτῆς ὅση ἐστὶν ἡ ἀπορία εἰ ἓν εἶδος ἕκαστον τῶν ὄντων ἀεί τι ἀφοριζόmicroενος θήσεις (133a8-b2)

A menccedilatildeo de Parmecircnides agrave independecircncia ontoloacutegica (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e agrave

unidade caracteriacutestica das Formas (ἓν εἶδος ἕκαστον τῶν ὄντων) retoma os temas

enunciados na abertura de suas criacutetica Por serem ldquoem si e por sirdquo e

necessariamente unitaacuterias as Formas natildeo podem estar em noacutes (microηδεmicroίαν αὐτῶν

εἶναι ἐν ἡmicroῖν 133c6-7) Afinal cada uma das explicaccedilotildees socraacuteticas para relaccedilatildeo

entre Formas e coisas resultou na multiplicaccedilatildeo (numeacuterica ou aspectual) das

Formas Como por princiacutepio natildeo podemos aceitar que as Formas deixem de ser

entidades uacutenicas Parmecircnides passa a apresentar as consequecircncias paradoxais

decorrentes da postulaccedilatildeo de entidades uniformes e ontologicamente

independentes poreacutem completamente separadas das coisas sensiacuteveis

ldquoHaacute muitas outras dificuldade disse ele mas a maior eacute a seguinte se algueacutem dissesse que nem mesmo cabe serem elas as Formas conhecidas se forem tal como dizemos que devem ser a este algueacutem que assim falasse natildeo poderia provar que se engana (hellip) Como assim Parmecircnides disse Soacutecrates Porque Soacutecrates creio que tu e qualquer outro que potildee haver alguma essecircncia mesma em si e por si de cada coisas (αὐτήν τινα καθ αὑτὴν ἑκάστου οὐσίαν) concordariacuteeis antes de mais nada que nenhuma delas estaacute entre noacutes (microηδεmicroίαν αὐτῶν εἶναι ἐν ἡmicroῖν)

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Pois neste caso como seria ela ainda em si e por si disse Soacutecrates Eacute correto o que dizes disse Parmecircnides Entatildeo tambeacutem dentre as Formas todas aquelas que satildeo o que satildeo na relaccedilatildeo umas com as outras eacute na relaccedilatildeo delas mesmas umas com as outras que elas tecircm a sua essecircncia e natildeo na relaccedilatildeo com as coisas entre noacutes (hellip) Quanto as coisas que satildeo entre noacutes estas por sua vez sendo homocircnimas daquelas satildeo elas mesmas na relaccedilatildeo umas com as outras e natildeo na relaccedilatildeo com as Formas () Que queres dizer disse Soacutecrates Por exemplo disse Parmecircnides se algum de noacutes eacute senhor ou escravo de algueacutem natildeo eacute certamente daquele Senhor mesmo (αὐτοῦ δεσπότου) daquilo que eacute realmente Senhor (ὃ ἔστι δεσπότης) que ele eacute escravo nem eacute do Escravo mesmo (αὐτοῦ δούλου) daquilo que realmente eacute Escravo (ὃ ἔστι δοῦλος) que o senhor eacute senhor mas sendo homem eacute de um homem que ele eacute ambas essas coisas Por outro lado a Senhoria mesma eacute o que eacute da Escravidatildeo mesma e do mesmo modo a Escravidatildeo mesma eacute Escravidatildeo da Senhoria mesma As coisas entre noacutes natildeo tecircm seu poder em relaccedilatildeo agravequelas nem aquelas em relaccedilatildeo a noacutes Πολλὰ microὲν καὶ ἄλλα φάναι microέγιστον δὲ τόδε εἴ τις φαίη microηδὲ προσήκειν αὐτὰ γιγνώσκεσθαι ὄντα τοιαῦτα οἷά φαmicroεν δεῖν εἶναι τὰ εἴδη τῷ ταῦτα λέγοντι οὐκ ἂν ἔχοι τις ἐνδείξασθαι ὅτι ψεύδεται () Πῇ δή ὦ Παρmicroενίδη φάναι τὸν Σωκράτη Ὅτι ὦ Σώκρατες οἶmicroαι ἂν καὶ σὲ καὶ ἄλλον ὅστις αὐτήν τινα καθ αὑτὴν ἑκάστου οὐσίαν τίθεται εἶναι ὁmicroολογῆσαι ἂν πρῶτον microὲν microηδεmicroίαν αὐτῶν εἶναι ἐν ἡmicroῖν Πῶς γὰρ ἂν αὐτὴ καθ αὑτὴν ἔτι εἴη φάναι τὸν Σωκράτη Οὐκοῦν καὶ ὅσαι τῶν ἰδεῶν πρὸς ἀλλήλας εἰσὶν αἵ εἰσιν αὐταὶ πρὸς αὑτὰς τὴν οὐσίαν ἔχουσιν ἀλλ οὐ πρὸς τὰ παρ ἡmicroῖν () τὰ δὲ παρ ἡmicroῖν ταῦτα ὁmicroώνυmicroα ὄντα ἐκείνοις αὐτὰ αὖ πρὸς αὑτά ἐστιν ἀλλ οὐ πρὸς τὰ εἴδη (hellip) Πῶς λέγεις φάναι τὸν Σωκράτη Οἷον φάναι τὸν Παρmicroενίδην εἴ τις ἡmicroῶν του δεσπότης ἢ δοῦλός ἐστιν οὐκ αὐτοῦ δεσπότου δήπου ὃ ἔστι δεσπότης ἐκείνου δοῦλός ἐστιν οὐδὲ αὐτοῦ δούλου ὃ ἔστι δοῦλος δεσπότης ὁ δεσπότης ἀλλ ἄνθρωπος ὢν ἀνθρώπου ἀmicroφότερα ταῦτ ἐστίν αὐτὴ δὲ δεσποτεία αὐτῆς δουλείας ἐστὶν ὅ ἐστι καὶ δουλεία ὡσαύτως αὐτὴ δουλεία αὐτῆς δεσποτείας ἀλλ οὐ τὰ ἐν ἡmicroῖν πρὸς ἐκεῖνα τὴν δύναmicroιν ἔχει οὐδὲ ἐκεῖνα πρὸς ἡmicroᾶς (133b4-e5)

Desprovidos do poder causal exercido pelas Formas os objetos sensiacuteveis

manifestam suas propriedades unicamente em funccedilatildeo das relaccedilotildees mantidas entre

si Parmecircnides continua falando em participaccedilatildeo (microετέχοντες 133d2) No entanto

tendo sido eliminada a possibilidade de relaccedilatildeo causal entre Formas e coisas a

participaccedilatildeo restringe-se a cada uma destas duas esferas da realidade objetos

sensiacuteveis participam de relaccedilotildees com outros objetos sensiacuteveis enquanto Formas

participam de relaccedilotildees com outras Formas Como consequecircncia a Forma do

Senhor possui a propriedade de ser-senhor apenas em relaccedilatildeo agrave Forma do Escravo

e por outro lado o senhor sensiacutevel adquire esta propriedade unicamente em

funccedilatildeo da sua relaccedilatildeo com um escravo sensiacutevel

Neste caso contudo seraacute preciso reconhecer que caso exista uma ciecircncia

das Formas esta ciecircncia estaacute restrita ao acircmbito das entidades inteligiacuteveis e nada

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diz sobre as coisas do mundo sensiacutevel E por outro lado a ciecircncia relativa aos

objetos sensiacuteveis estaria limitada a seu proacuteprio acircmbito da realidade e em nada

dependeria das Formas

ldquoEntatildeo disse ele tambeacutem a Ciecircncia mesma (ἐπιστήmicroη αὐτὴ) aquilo que realmente eacute Ciecircncia (ὃ ἔστι ἐπιστήmicroη) eacute daquela Verdade mesma daquilo que realmente eacute Verdade (τῆς ὃ ἔστιν ἀλήθεια αὐτῆς) que ela seria ciecircncia natildeo eacute Perfeitamente () Mas a ciecircncia entre noacutes (παρ ἡmicroῖν ἐπιστήmicroη) natildeo seria ciecircncia da verdade entre noacutes (παρ ἡmicroῖν ἀληθείας) e por sua vez cada ciecircncia entre noacutes natildeo resultaria ser ciecircncia de cada um dos seres entre noacutes (τῶν παρ ἡmicroῖν ὄντων ἑκάστου) Necessariamente (hellip) Logo por noacutes pelo menos nenhuma das Formas eacute conhecida jaacute que natildeo participamos da Ciecircncia mesma Parece que natildeo Logo eacute-nos incognosciacutevel tanto o Belo mesmo o que realmente eacute (αὐτὸ τὸ καλὸν ὃ ἔστι) como o Bem e todas as coisas que concebemos como sendo Ideias mesmas (πάντα ἃ δὴ ὡς ἰδέας αὐτὰς οὔσας)rdquo Οὐκοῦν καὶ ἐπιστήmicroη φάναι αὐτὴ microὲν ὃ ἔστι ἐπιστήmicroη τῆς ὃ ἔστιν ἀλήθεια αὐτῆς ἂν ἐκείνης εἴη ἐπιστήmicroη Πάνυ γε Ἡ δὲ παρ ἡmicroῖν ἐπιστήmicroη οὐ τῆς παρ ἡmicroῖν ἂν ἀληθείας εἴη καὶ αὖ ἑκάστη ἡ παρ ἡmicroῖν ἐπιστήmicroη τῶν παρ ἡmicroῖν ὄντων ἑκάστου ἂν ἐπιστήmicroη συmicroβαίνοι εἶναι Ἀνάγκη Οὐκ ἄρα ὑπό γε ἡmicroῶν γιγνώσκεται τῶν εἰδῶν οὐδέν ἐπειδὴ αὐτῆς ἐπιστήmicroης οὐ microετέχοmicroεν Οὐκ ἔοικεν Ἄγνωστον ἄρα ἡmicroῖν καὶ αὐτὸ τὸ καλὸν ὃ ἔστι καὶ τὸ ἀγαθὸν καὶ πάντα ἃ δὴ ὡς ἰδέας αὐτὰς οὔσας ὑπολαmicroβάνοmicroεν

Como resultado teriacuteamos que nos contentar com o conhecimento

imperfeito que a instabilidade ontoloacutegica das coisas sensiacuteveis eacute capaz de nos

proporcionar e reconhecer que somente os deuses poderiam obter o conhecimento

seguro fornecido pelas Formas O argumento como um todo nos convida a

questionar o valor da postulaccedilatildeo de entidades inteligiacuteveis Afinal se as coisas

sensiacuteveis recebem suas propriedades por meio das relaccedilotildees que mantecircm entre si

natildeo teriacuteamos motivos para nos preocupar com as Formas entidades

completamente irrelevantes para o andamento e conhecimento do mundo em que

vivemos

Restringindo o resultado da argumentaccedilatildeo de Parmecircnides ao nosso

diaacutelogo podemos concluir que a Teoria das Ideias natildeo representa uma saiacuteda

legiacutetima ao problema da predicaccedilatildeo de opostos exemplificado no paradoxo de

Zenatildeo Afinal para figurarem em uma relaccedilatildeo de participaccedilatildeo com os objetos

sensiacuteveis as Formas precisariam abrir matildeo de sua unidade caracteriacutestica o que as

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submeteria ao mesmo tipo de problema relacionado agrave predicaccedilatildeo de opostos

apontado por Zenatildeo nos objetos sensiacuteveis

No entanto as criacuteticas de Parmecircnides extrapolam o acircmbito do debate

contido no Parmecircnides e configuram-se como uma refutaccedilatildeo da proacutepria ontologia

socraacutetica Pois se Soacutecrates propotildee que entendamos as Formas como causas das

propriedades dos objetos sensiacuteveis entatildeo haacute de haver algum tipo de relaccedilatildeo entre

estas entidades A argumentaccedilatildeo acima exposta contudo demonstra que uma

explicaccedilatildeo para este relacionamento que natildeo resulte na destruiccedilatildeo do proacuteprio

modo de ser das Formas ainda natildeo estaacute disponiacutevel Afinal cada uma das hipoacuteteses

socraacuteticas para natureza da relaccedilatildeo entre coisas e Formas levou inexoravelmente agrave

dissoluccedilatildeo da unidade caracteriacutestica destas entidades Por outro lado caso

quiseacutessemos sustentar a unidade das Formas a qualquer custo afirmando sua

completa separaccedilatildeo das coisas sensiacuteveis as Formas passariam a ser

incognosciacuteveis e completamente irrelevantes

Haacute portanto um niacutetido paradoxo no interior da ontologia socraacutetica

Somente porque possui um modo de ser natildeo relacional e separado uma Forma eacute

ontologicamente prioritaacuteria uacutenica indivisiacutevel e auto-predicativa podendo ser

apresentada como causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e soluccedilatildeo para o

problema da copresenccedila de opostos No entanto para cumprirem seu papel de

causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis as Formas precisam estar em relaccedilatildeo

com as entidades do mundo empiacuterico E como demonstra Parmecircnides esta

relaccedilatildeo eacute suficiente para modificar a natureza das Formas tornando-as entidades

muacuteltiplas sujeitas a predicaccedilatildeo de opostos e tatildeo auto-contraditoacuterias quanto os

objetos sensiacuteveis

Portanto se a interpretaccedilatildeo aqui proposta estaacute correta a primeira parte do

diaacutelogo Parmecircnides revela um problema real e indiscutiacutevel na Teoria das Ideias

defendida pelo personagem Soacutecrates nos diaacutelogos meacutedios e iniciais Natildeo por

acaso Platatildeo como resultado final de sua anaacutelise criacutetica da ontologia socraacutetica

coloca na boca de Parmecircnides as seguintes palavras carregadas de dramaticidade

ldquoQue faraacutes da Filosofia Para onde te voltaraacutes sendo estas coisas desconhecidasrdquo

Τί οὖν ποιήσεις φιλοσοφίας πέρι πῇ τρέψῃ ἀγνοουmicroένων τούτων (135c5-6)

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Page 5: 4 O Diálogo Parmênides e a Ontologia Socrática

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surpreendente mistura de expressotildees caracteriacutesticas de diferentes periacuteodos

[estiliacutesticos] deve ser imediatamente declarada espuacuteriardquo (cf Brandwood 1990

p83) Ora tal afirmaccedilatildeo reflete uma confianccedila claramente exacerbada acerca das

capacidades do meacutetodo estilomeacutetrico Afinal para podermos declarar tatildeo

prontamente a inautenticidade de uma obra segundo este criteacuterio devemos

acreditar que Platatildeo natildeo sofreu mudanccedilas gradativas de estilo mas tornou-se

praticamente um novo autor a cada mudanccedila de fase No entanto apesar de

nenhum dos pontos apresentados por Ritter poder ser usado como prova absoluta

para inautenticidade a soma destes elementos poderia a princiacutepio fortalecer

argumentos de outra natureza aumentando assim o grau de suspeita com relaccedilatildeo

agrave autoria de algum diaacutelogo Com relaccedilatildeo ao Parmecircnides Ritter apresenta a

seguinte lista de elementos desviantes

1) No Parmecircnides a distribuiccedilatildeo de palavras usadas para introduzir

discursos diretos eacute diferente daquela que encontramos nos outros

diaacutelogos Para a terceira pessoa do verbo φηmicroί por exemplo

temos no Parmecircnides a seguinte relaccedilatildeo 19 ἔφη 2 εἶπε 0 ἦ δ

ὅς Nos outros diaacutelogos temos apenas um caso de εἶπε (RepVII) e

encontramos em meacutedia 1 ἦ δ ὅς para cada 5 ἔφη

2) O Parmecircnides emprega apenas nomes no caso vocativo como

forma de dirigir a palavra a algueacutem enquanto os outros diaacutelogos

usam foacutermulas como ὦ ἄριστε ὦ ἑταῖρε e ὦ φίλε com frequecircncia

(Men 47 Teet 50 Feacutedr 37 Craacutet33 poreacutem Fileacuteb 7)

3) A mudanccedila de orador eacute mais frequente no Parmecircnides do que em

qualquer outra obra a meacutedia do Parmecircnides eacute de 9 a 10 mudanccedilas

de orador por paacutegina enquanto que a maior frequecircncia em outras

obras estaacute no Sofista com apenas 4 por paacutegina

4) Duas foacutermulas de resposta satildeo usadas mais no Parmecircnides do que

em qualquer outra obra ἀδύνατον e ἀνάγκη

5) οὐδὲ microὴν como jaacute havia sido notado por Dittenberger ocorre mais

no Parmecircnides do que em qualquer outra obra

6) Finalmente πῶς δ οὔ aparece de forma preponderante em relaccedilatildeo

a πῶς γὰρ οὐ (216) enquanto nas outras obras esta relaccedilatildeo nunca

eacute tatildeo diacutespare sendo o Poliacutetico (148) o diaacutelogo com a proporccedilatildeo

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mais proacutexima agravequela do Parmecircnides

(Brandwood 1990 p86)

Estas idiossincrasias de estilo contudo podem ser compreendidas caso

tenhamos em mente que o Parmecircnides possui longas falas de personagens que natildeo

aparecem em nenhum outro diaacutelogo platocircnico Eacute portanto natural que a

linguagem deste diaacutelogo desvie do restante da obra platocircnica Sendo assim o natildeo

uso de expressotildees vocativas como ὦ ἄριστε por exemplo pode muito bem ser

uma decisatildeo plenamente consciente de Platatildeo Assim considerada a ausecircncia

destas expressotildees no Parmecircnides denota apenas o caraacuteter direto da argumentaccedilatildeo

desenvolvida pelos personagens Parmecircnides e Zenatildeo4 Da mesma maneira a

mudanccedila constante de orador deve-se claramente ao estilo e extensatildeo da

argumentaccedilatildeo desenvolvida na segunda parte do diaacutelogo na qual cada pequeno

passo no desenvolvimento loacutegico dos argumentos eacute confirmado pelo interlocutor

O mesmo vale com relaccedilatildeo ao uso constante das expressotildees ἀδύνατον e ἀνάγκη

que demonstram apenas o reconhecimento por parte dos interlocutores da

necessidade loacutegica inerente aos argumentos desenvolvidos no diaacutelogo Por fim

como observa Brandwood eacute preciso notar que o caraacuteter geral do Parmecircnides eacute tatildeo

proacuteprio e diverge tanto daquilo que encontramos em outros diaacutelogos que a

admissatildeo de sua autenticidade prejudicaria o argumento de Ritter com relaccedilatildeo agrave

inautenticidade de outras obras uma vez que tal argumentaccedilatildeo funda-se

exclusivamente em uma anaacutelise estiliacutestica (cf Brandwood 1990 p86)

Portanto sobre a questatildeo da autenticidade de nossa obra podemos

apresentar os seguintes resultados

1) O Parmecircnides eacute tido como autecircntico por Thrasillus (36 DC) e

muito provavelmente tambeacutem por Aristoacutefanes de Bizacircncio (180

AC) aleacutem de nenhum comentador antigo jamais ter levantado

duacutevidas sobre sua autenticidade

2) Temos fortes razotildees para acreditar que Platatildeo refere-se ao

Parmecircnides em diversas outras obras e por assim dizer nosso

diaacutelogo possui um papel de destaque na intertextualidade platocircnica

4 Aleacutem disso a ausecircncia de expressotildees como ὦ ἄριστε e ὦ ἑταῖρε eacute apenas um dos resultados da

teacutecnica de evitar hiatos adotada por Platatildeo durante a uacuteltima fase de sua carreira literaacuteria Afinal ambas expressotildees possuem hiatos e podem ser facilmente substituiacutedas

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3) A imensa maioria das anaacutelises estilomeacutetricas apresenta o

Parmecircnides como um diaacutelogo legiacutetimo Aleacutem disso a

argumentaccedilatildeo de Ritter uacutenico autor a desenvolver argumentos

estiliacutesticos contra a autenticidade de nosso diaacutelogo estaacute claramente

sujeita a criacuteticas de ordem metodoloacutegica e pelo menos a metade

de sua lista de caracteriacutesticas estiliacutesticas desviantes do Parmecircnides

(pontos 2 3 e 4) pode ser facilmente compreendida como o

resultado direto do tipo de argumentaccedilatildeo apresentada no diaacutelogo

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411 A Posiccedilatildeo do Parmecircnides no interior da obra de Platatildeo

Tendo apresentado nossas consideraccedilotildees acerca da autenticidade do

Parmecircnides passamos agora ao natildeo menos conturbado assunto do

posicionamento desta obra no interior da seacuterie de diaacutelogos platocircnicos Como

vimos os comentadores do inicio do seacuteculo XIX natildeo estavam de posse de um

criteacuterio objetivo para a ordenaccedilatildeo dos diaacutelogos contavam apenas com os criteacuterios

bastante duvidosos de referecircncia intertextual e menccedilatildeo a fatos histoacutericos

conhecidos Sendo assim as ordenaccedilotildees de diaacutelogos oferecidas por estes

comentadores fundavam-se basicamente naquilo que cada um considerava ser o

conteuacutedo da filosofia platocircnica o que os levava a resultados bastante inusitados

Deste modo a despeito disto parecer impensaacutevel para um leitor moderno

o Parmecircnides foi considerado pela maior parte dos helenistas alematildees do seacuteculo

XIX um dos primeiros diaacutelogos de Platatildeo Schleiermacher por exemplo

considera o Parmecircnides uma das primeiras obras e encontra em nosso diaacutelogo tal

como encontra no Feacutedro e no Protaacutegoras uma ldquomaneira jovial de expressatildeordquo

(Schleiermacher 1836 p115) Esta afirmaccedilatildeo de Schleiermacher eacute

posteriormente reafirmada por Hermann (1839) que ainda aponta na bibliografia

de Platatildeo uma justificativa para a identificaccedilatildeo do Parmecircnides como uma obra da

juventude Com base no testemunho de um certo Hermoacutegenes (cf Dioacutegenes

Laeacutercio II 106 III 6) segundo o qual Platatildeo teria fugido para Meacutegara logo apoacutes

a morte de Soacutecrates Hermann atribui a composiccedilatildeo do Parmecircnides ao momento

em que Platatildeo tendo por volta de vinte anos estaria entrando em contato com

pensadores de fora do circuito ateniense e socraacutetico De acordo com Hermann a

presenccedila de Parmecircnides e Zenatildeo no diaacutelogo evidencia a influecircncia megaacuterica sob a

qual o diaacutelogo teria sido escrito

A identificaccedilatildeo do Parmecircnides como uma das primeiras obras de Platatildeo

permanece prevalecente entre os classicistas alematildees ateacute Ueberweg (1861)

Ueberweg eacute o primeiro autor a questionar a veracidade do depoimento acerca da

fuga de Platatildeo para Meacutegara desfazendo assim a crenccedila no periacuteodo megaacuterico de

Platatildeo Contudo Ueberweg atribui uma data tatildeo tardia para a composiccedilatildeo do

Parmecircnides que eacute levado a crer que nosso diaacutelogo eacute uma obra espuacuteria escrita por

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algum membro da academia apoacutes a morte de Platatildeo Com o fim do mito do

periacuteodo megaacuterico de Platatildeo passamos a encontrar as propostas mais discrepantes

acerca do posicionamento do Parmecircnides e no extremo oposto da posiccedilatildeo de

Schleiermacher Zeller (1883) identifica o Parmecircnides como o diaacutelogo (natildeo-

escrito) Filosoacutefo colocando-o no fim da trilogia iniciada por Sofista e Poliacutetico no

fim da carreira literaacuteria de Platatildeo5

Com o aparecimento do meacutetodo estilomeacutetrico o Parmecircnides deixa de

figurar nos extremos das cronologias de composiccedilatildeo dos diaacutelogos e passa a ocupar

uma posiccedilatildeo intermediaacuteria que vai em pouco tempo se tornar bastante

consolidada Para sermos precisos o primeiro dos estudos estilomeacutetricos aquele

de Campbell (1867) coloca o Parmecircnides estranhamente como um dos primeiros

diaacutelogos proacuteximo a obras como Ecircutifron Apologia e Ion No entanto esta

posiccedilatildeo eacute tatildeo discrepante das expectativas gerais acerca do Parmecircnides que o

proacuteprio Campbell recusa-se a aceitaacute-la e atribui este resultado a ldquocircunstacircncias

excepcionaisrdquo sem especificar quais satildeo estas circunstacircncias (Campbell 1867

pxxxiii)

A partir do refinamento dos criteacuterios de anaacutelise estiliacutestica operado por

Dittenberger (1896) o Parmecircnides passa a ser colocado entre os uacuteltimos diaacutelogos

ocupando especialmente a posiccedilatildeo de primeiro diaacutelogo da uacuteltima fase estiliacutestica de

Platatildeo Tal posicionamento para o Parmecircnides eacute subsequentemente consolidado

pelos criteacuterios de Ritter von Arnim e Baron (cf Brandwood 1990 p251) De

fato Campbell trinta anos depois de sua primeira publicaccedilatildeo sobre o assunto

lanccedila um artigo especificamente sobre o estilo do Parmecircnides no qual apresenta

novos resultados e conclui que nosso diaacutelogo eacute certamente posterior a obras

como Repuacuteblica e Feacutedro De modo geral o trabalho de Campbell sobre o

vocabulaacuterio do Parmecircnides tambeacutem corrobora a posiccedilatildeo de Dittenberger

identificando nosso diaacutelogo ao lado do Teeteto como obras diretamente

anteriores ao Sofista e ao Poliacutetico (Campbell 1896 p129-136) Todos estes

resultados satildeo ainda reforccedilados pelas circunstacircncias jaacute notadas por Ueberweg de

que o Parmecircnides possui muito pouca accedilatildeo dramaacutetica quando comparado a

diaacutelogos como Repuacuteblica e Banquete possui trechos de discurso direto inseridos

5 Para um resumo das posiccedilotildees dos comentadores alematildees do seacuteculo XIX acerca da cronologia

de composiccedilatildeo das obras de Platatildeo (cf Lutoslawski 1897 p35-63)

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em meio a um longo discurso indireto6 e sobretudo natildeo apresenta Soacutecrates como

orador principal trecircs caracteriacutesticas proacuteprias dos diaacutelogos da uacuteltima fase

Finalmente resta observar que mesmo natildeo sendo possiacutevel determinar a

posiccedilatildeo exata de um diaacutelogo no interior de cada fase estiliacutestica podemos dizer que

o Parmecircnides possui um estilo claramente transicional possuindo um vocabulaacuterio

relativo agrave apresentaccedilatildeo claacutessica da Teoria das Ideias tal como exposta nos

diaacutelogos da fase meacutedia e ao mesmo tempo inovaccedilotildees de estilo caracteriacutesticas dos

diaacutelogos da uacuteltima fase Some-se a isso o fato de que o conteuacutedo do Parmecircnides

parece ilustrar exatamente esta dualidade apresentando uma primeira parte

voltada para questotildees relativas agrave formulaccedilatildeo claacutessica da Teoria das Ideias poreacutem

com um caraacuteter criacutetico e uma segunda parte na qual o personagem Soacutecrates

praticamente desaparece e um estilo completamente novo de argumentaccedilatildeo eacute

apresentado

Em funccedilatildeo desta soma de fatores a partir da virada do seacuteculo XX nosso

diaacutelogo passa a figurar em uma posiccedilatildeo intermediaacuteria entre a segunda e terceira

fase da obra de Platatildeo de maneira virtualmente inquestionaacutevel Esta hipoacutetese

permanece tatildeo consolidada entre os comentadores contemporacircneos que mesmo

com a imensa diversidade de interpretaccedilotildees apresentadas para nosso diaacutelogo

simplesmente desconheccedilo qualquer publicaccedilatildeo lanccedilada nos uacuteltimos cem anos em

que este posicionamento para o Parmecircnides no interior da obra de Platatildeo seja

questionado

6 Este aspecto formal eacute particularmente visiacutevel na segunda parte do Parmecircnides onde um uacutenico

φάναι inicial (137c4) antecede vaacuterias paacuteginas de discurso em forma direta

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412 O Proacutelogo do Parmecircnides

O Parmecircnides descreve um diaacutelogo travado entre Soacutecrates ainda bastante

jovem Zenatildeo Parmecircnides e Aristoacuteteles natildeo o filoacutesofo mas um jovem que viria a

se tornar um dos trinta tiranos A conversa que nos chega natildeo eacute narrada por um

dos presentes no encontro mas por Ceacutefalo que o tinha ouvido de Antifonte meio

irmatildeo de Platatildeo que havia ouvido e memorizado a conversa a partir do relato de

Pitodoro Pitodoro por sua vez havia ouvido a conversa por ser companheiro de

Zenatildeo e ter abrigado os visitantes durante sua estada em Atenas (AlcibI 119a)

Apesar de natildeo ser o uacutenico diaacutelogo a apresentar este tipo de encadeamento

narrativo7 o Parmecircnides eacute o diaacutelogo no qual o relato que nos eacute oferecido estaacute

mais distante da conversa original tanto no tempo quanto no nuacutemero de ldquoelosrdquo da

cadeia narrativa Afinal aquele que lecirc o Parmecircnides (e portanto ldquoouverdquo a

narrativa de Ceacutefalo) encontra-se no quarto estaacutegio de uma cadeia de transmissatildeo

do conteuacutedo de uma conversa que teria acontecido haacute pelo menos cinquenta anos

antes do momento dramaacutetico em que Ceacutefalo oferece seu relato8 A estrutura

narrativa descrita no proacutelogo do Parmecircnides pode ser representada pela seguinte

figura

[ZENAtildeO PARMEcircNIDES SOacuteCRATES ARISTOacuteTELES]

[PITODORO ANTIFONTE]

[ANTIFONTE CEacuteFALO]

[CEacuteFALO LEITOR]

7 O Feacutedon o Banquete e o Teeteto tambeacutem satildeo narrados por pessoas que natildeo presenciaram os

acontecimentos descritos 8 A data dramaacutetica para a realizaccedilatildeo do suposto encontro entre Parmecircnides Soacutecrates e Zenatildeo eacute

estabelecida pela menccedilatildeo agraves Grande Panateneacuteias festivais realizados de quatro em quatro anos em honra a Atenaacute Segundo o diaacutelogo Parmecircnides e Zenatildeo estariam em visita a Atenas com o objetivo de participar deste festival De acordo com as informaccedilotildees que nos satildeo fornecidas acerca da idade dos personagens do diaacutelogo (127b-c Parmecircnides teria por volta de sessenta e cinco anos Zenatildeo estaria proacuteximo dos quarenta e Soacutecrates era ainda bastante jovem) podemos estabelecer o festival do ano de 449450 AC como a data base para o encontro narrado Como Ceacutefalo natildeo busca o proacuteprio Soacutecrates para ouvir o relato deste encontro podemos deduzir ainda que no momento da chegada de Ceacutefalo e sua comitiva em Atenas Soacutecrates jaacute havia sido executado fato ocorrido em 399 AC Sendo assim ao menos cinquenta anos separam o relato de Antifonte do momento do encontro inicial Natildeo temos razatildeo para acreditar que o relato de Ceacutefalo esteja ocorrendo muito depois desta data mas as indicaccedilotildees satildeo precisas o suficiente para deixar claro ao leitor a consideraacutevel distacircncia entre a narrativa que nos chega e a conversa original

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Deste modo o Parmecircnides relata uma conversa travada entre Zenatildeo

Parmecircnides Soacutecrates e Aristoacuteteles que foi narrada por Pitodoro a Antifonte que

narrou a Ceacutefalo que por sua vez narra ao leitor Este fato nos eacute lembrado em

pelo menos duas passagens do texto nas quais a cadeia de transmissatildeo eacute

explicitada (130a e 136e) Aleacutem disso esta estrutura nunca desaparece plenamente

de vista para o leitor do texto grego pois todo o diaacutelogo eacute em forma de discurso

indireto com discursos diretos inseridos Eacute claro portanto que tamanha

complexidade de estrutura narrativa natildeo pode ser acidental Platatildeo certamente

intencionava passar alguma mensagem por meio da apresentaccedilatildeo de um proacutelogo

tatildeo cuidadosamente construiacutedo e eacute tarefa do inteacuterprete levantar hipoacuteteses acerca

destas intenccedilotildees

Como a maior parte dos comentadores observa a primeira liccedilatildeo que

podemos tirar da estrutura narrativa do Parmecircnides diz respeito agrave ausecircncia total de

veracidade histoacuterica do relato Ao estabelecer uma longa distacircncia temporal entre

a narrativa que nos eacute oferecida e o fato dramaacutetico que nos eacute narrado Platatildeo indica

ao leitor que o conteuacutedo do Parmecircnides eacute plenamente ficcional e que ningueacutem

deve tentar confirmar nenhum dos seus detalhes mesmo que um encontro entre

Parmecircnides e Soacutecrates tenha de fato acontecido coisa que a maior parte dos

comentadores considera improvaacutevel ou mesmo impossiacutevel9

A segunda conclusatildeo que podemos extrair da complexa estrutura narrativa

apresentada no Parmecircnides diz respeito ao efeito dramaacutetico que este tipo de

proacutelogo pretende criar no leitor Nosso diaacutelogo se inicia com a histoacuteria de que

cinquenta anos apoacutes um encontro entre Parmecircnides Zenatildeo e Soacutecrates um grupo

de pessoas ldquobastante interessadas em questotildees de sabedoriardquo (microάλα φιλόσοφοι) eacute

levado a deixar Clazocircmenas para cruzar o mar Egeu em busca de um ateniense

que acreditam ter informaccedilotildees sobre o que teria se passado nesta reuniatildeo Este

ateniense apesar de natildeo haver estado presente no encontro ocorrido antes mesmo

de seu nascimento considerava o conteuacutedo da conversa ali desenrolada tatildeo

importante que decidiu dedicar-se a decoraacute-la durante sua juventude A pessoa de

9 A ausecircncia de pretensatildeo histoacuterica eacute notada por praticamente todos os comentadores recentes

Mansfeld adotando 462461 como data dramaacutetica para o suposto encontro entre Parmecircnides e Soacutecrates acredita ainda que este evento nunca poderia ter acontecido como descrito por Platatildeo pois nesta data Soacutecrates teria apenas oito anos de idade ldquoNem ao menos se espera que os leitores do Parmecircnides acreditem que o encontro tenha realmente ocorridordquo (Mansfeld

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quem este ateniense ouviu a histoacuteria Pitodoro tampouco participou ativamente da

conversa poreacutem igualmente decorou o conteuacutedo do diaacutelogo e passou adiante10

O proacutelogo do Parmecircnides nos gera assim uma sensaccedilatildeo de curiosidade

acerca do texto que estamos prestes a ter acesso Aleacutem disso a longa lista de

pessoas dedicadas agrave preservaccedilatildeo do conteuacutedo desta conversa assim como a longa

jornada de Ceacutefalo e seus companheiros em busca desta narrativa nos garante a

seriedade e a importacircncia daquilo que nos seraacute revelado Como observa Allen ldquoa

proacutepria introduccedilatildeo do Parmecircnides por si soacute nos proiacutebe tratar o diaacutelogo como um

tipo estranho de piada ou trivializar o diaacutelogo como uma mera ginaacutestica ou um

exerciacutecio de detecccedilatildeo de simples falaacuteciasrdquo (Allen 1997 p71) O proacutelogo do

Parmecircnides adverte o leitor a se preparar desde o iniacutecio para a profundidade e

relevacircncia do conteuacutedo que seraacute apresentado

A caracteriacutestica mais importante da abertura de nosso diaacutelogo no entanto

parece ter passado despercebida para maior parte dos comentadores Trata-se do

fato de que a complexa estrutura narrativa montada no proacutelogo do Parmecircnides

encontra-se refletida na estrutura argumentativa do diaacutelogo Diferente da maior

parte dos diaacutelogos nos quais um mesmo interlocutor expotildee suas teses ou conduz a

refutaccedilatildeo de outro(s) personagem(s) o Parmecircnides eacute constituiacutedo por uma seacuterie de

momentos argumentativos distintos Nosso diaacutelogo comeccedila com a leitura dos

argumentos de Zenatildeo e uma menccedilatildeo aos detratores de Parmecircnides contra quem

estes argumentos satildeo endereccedilados Logo em seguida Soacutecrates aparece em cena e

passa a argumentar contra Zenatildeo Por fim Parmecircnides entra na discussatildeo e passa

a apresentar argumentos contra Soacutecrates Desta maneira temos Parmecircnides

oferecendo criacuteticas agrave Teoria das Ideias de Soacutecrates que havia sido apresentada

como uma refutaccedilatildeo agrave argumentaccedilatildeo de Zenatildeo que por sua vez havia sido

apresentada como uma criacutetica agrave tese pluralista defendida pelos detratores de

Parmecircnides Esta estrutura argumentativa pode ser representada pelo seguinte

1986 p44)

10 Eacute importante notar que no momento em que Ceacutefalo chega agrave Atenas em busca de informaccedilotildees sobre o encontro de Soacutecrates Zenatildeo e Parmecircnides todas as pessoas que estavam presentes neste encontro jaacute estatildeo mortas incluindo o proacuteprio Soacutecrates Portanto para Antifonte e Ceacutefalo assim como para o leitor do diaacutelogo o Parmecircnides narra momentos da vida de figuras de uma geraccedilatildeo passada uma geraccedilatildeo de grande importacircncia para a comunidade filosoacutefica grega cujas conversas e debates merecem ser lembrados e revividos meio seacuteculo apoacutes seu acontecimento O proacutelogo do Parmecircnides presta assim uma homenagem a esta geraccedilatildeo de pensadores jaacute perdida e o fato de Platatildeo fazer com que vaacuterios personagens tenham se dedicado ao ato de memorizar o conteuacutedo de um encontro entre estas pessoas indica ainda o apreccedilo de Platatildeo por estes indiviacuteduos

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esquema

[ PARMEcircNIDES PLURALISTAS]

[ PLURALISTAS ZENAtildeO]

[ ZENAtildeO SOacuteCRATES]

[SOacuteCRATES PARMEcircNIDES]

Da mesma forma que nossa histoacuteria eacute narrada por uma pessoa que conta o

que lhe foi narrado por outra pessoa que contou o que lhe foi narrado por outra

os argumentos do diaacutelogo satildeo ordenados de tal modo que cada um deles remete

aos resultados alcanccedilados pelos argumentos precedentes ao mesmo tempo em que

fornece a base para o argumento que se seguiraacute A estrutura argumentativa do

Parmecircnides encontra-se assim refletida e prenunciada na estrutura narrativa

descrita no proacutelogo do diaacutelogo

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413 O paradoxo de Zenatildeo

O primeiro argumento apresentado ao leitor do Parmecircnides eacute atribuiacutedo a

Zenatildeo Como sabemos Zenatildeo foi um defensor do monismo eleata e seus

argumentos receberam muito prestiacutegio ainda na antiguidade O interesse acerca

do pensamento de Zenatildeo faz com que muitos comentadores do Parmecircnides

analisem o paradoxo zenoniano presente no diaacutelogo em comparaccedilatildeo aos

argumentos do Zenatildeo histoacuterico Esta atitude pode ser vista por exemplo em

Proacuteclus que interpreta o paradoxo presente no Parmecircnides em funccedilatildeo do

conteuacutedo de uma obra atribuiacuteda a Zenatildeo na qual este paradoxo estaria descrito (In

Parm 694)11

Nos comentadores modernos esta abordagem tambeacutem parece prevalecer

Assim Cornford (Cornford 1951 p 53-62) dedica toda primeira seccedilatildeo de seu

comentaacuterio ao Parmecircnides agrave questatildeo da relaccedilatildeo entre Zenatildeo e seus oponentes da

escola pitagoacuterica Brisson (Brisson 1990 p15-28) igualmente passa boa parte

de sua introduccedilatildeo ao Parmecircnides discutindo a relaccedilatildeo entre as teses de Zenatildeo e

Parmecircnides natildeo como personagens do drama platocircnico mas como figuras

histoacutericas Ambos os autores mesmo reconhecendo a escassez de fontes sobre o

tema acabam por projetar a sua compreensatildeo do pensamento do Zenatildeo histoacuterico

na interpretaccedilatildeo do papel desta figura no interior de nosso diaacutelogo

Em contrapartida a esta atitude a importacircncia do paradoxo de Zenatildeo na

interpretaccedilatildeo do Parmecircnides tem sido na maior parte das vezes negligenciada

pelos comentadores Como observa Harte ldquomuito constantemente o interesse em

examinar a relaccedilatildeo entre as deduccedilotildees [da segunda parte do diaacutelogo] e a criacutetica de

Parmecircnides agraves Formas deu-se agraves custas de uma consideraccedilatildeo da conversa inicial

entre Soacutecrates e Zenatildeordquo (Harte 2002 p52) Uma das razotildees para esta negligecircncia

estaacute sem duacutevida no fato de que os comentadores consideram relativamente clara

a relaccedilatildeo desta conversa inicial com o restante da obra Segundo a opiniatildeo geral o

paradoxo de Zenatildeo serve como um pretexto para que Soacutecrates apresente a Teoria

11 Dillon em sua introduccedilatildeo ao Comentaacuterio ao Parmecircnides de Proacuteclus defende a tese de que

Proacuteclus daacute claros sinais de possuir um manuscrito da obra de Zenatildeo e que portanto devemos considerar vaacutelidas suas observaccedilotildees sobre o conteuacutedo desta obra A mais famosa destas observaccedilotildees afirma que o paradoxo apresentado no Parmecircnides fazia parte de um livro que conteria quarenta argumentos (cf MorrowampDillon 1987 p xxviii-xliii)

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das Ideias Sendo assim os comentadores tecem raacutepidas consideraccedilotildees sobre o

paradoxo de Zenatildeo e na maior parte das vezes jaacute em funccedilatildeo da soluccedilatildeo

apresentada por Soacutecrates para este paradoxo12

No entanto caso adotemos este tipo de interpretaccedilatildeo para o papel do

paradoxo de Zenatildeo no diaacutelogo estaremos de iniacutecio comprometendo a unidade da

argumentaccedilatildeo do Parmecircnides Pois segundo este ponto de vista o paradoxo de

Zenatildeo natildeo estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do restante do diaacutelogo e

natildeo passa de uma deixa dramaacutetica para entrada em cena de Soacutecrates e sua teoria

Sendo assim evitarei abrir a caixa de pandora do conteuacutedo do pensamento

eleaacutetico e me limitarei a oferecer uma interpretaccedilatildeo para o paradoxo de Zenatildeo agrave

altura do papel de destaque que este argumento recebe no nosso diaacutelogo No

Parmecircnides o paradoxo de Zenatildeo daacute ensejo a toda discussatildeo subsequente

Portanto segundo o princiacutepio de relaccedilatildeo entre os argumentos do diaacutelogo esboccedilado

na seccedilatildeo precedente os conceitos envolvidos neste paradoxo devem ressoar por

todo o restante da argumentaccedilatildeo

12 Allen (1997) eacute uma exceccedilatildeo

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414 Dois sentidos de multiplicidade e unidade implicado s na argumentaccedilatildeo zenoniana

A narrativa de Ceacutefalo inicia-se com a descriccedilatildeo de uma leitura puacuteblica dos

ldquoescritos de Zenatildeordquo (τῶν τοῦ Ζήνωνος γραmicromicroάτων) realizada na casa de Pitodoro

Eacute o proacuteprio Zenatildeo quem realiza a leitura e Soacutecrates acompanhado de muitos

outros faz parte da audiecircncia que se reuniu ansiosa para escutar o que seria dito

uma vez que esta era a primeira vez que tais escritos eram trazidos para Atenas

Ao final da apresentaccedilatildeo Soacutecrates pede para que seja lida novamente a primeira

hipoacutetese do primeiro argumento e ao fim diz

ldquoQue queres dizer com isso Zenatildeo Que se os seres satildeo muacuteltiplos entatildeo eacute preciso que eles sejam tanto semelhantes quanto dessemelhantes mas que isso eacute impossiacutevel pois nem as coisas dessemelhantes podem ser semelhantes nem as semelhantes dessemelhantes Natildeo eacute isso que queres dizerrdquo Πῶς φάναι ὦ Ζήνων τοῦτο λέγεις εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα ὡς ἄρα δεῖ αὐτὰ ὅmicroοιά τε εἶναι καὶ ἀνόmicroοια τοῦτο δὲ δὴ ἀδύνατον οὔτε γὰρ τὰ ἀνόmicroοια ὅmicroοια οὔτε τὰ ὅmicroοια ἀνόmicroοια οἷόν τε εἶναι οὐχ οὕτω λέγεις (127e1-5)

Zenatildeo responde afirmativamente e somos apresentados assim ao primeiro

argumento do diaacutelogo Platatildeo constroacutei este argumento de maneira bastante

resumida nos fornecendo apenas as premissas e a conclusatildeo da argumentaccedilatildeo

zenoniana Fica claro a partir do resumo de Soacutecrates que estamos lidando com

uma reduccedilatildeo ao absurdo da tese pluralista segundo a qual os seres satildeo muacuteltipos

(πολλά ἐστι τὰ ὄντα) O sentido preciso desta tese contudo natildeo estaacute claro de

imediato Sobretudo porque logo depois Soacutecrates iraacute reformulaacute-la por meio do

condicional ldquose os muacuteltipos satildeordquo ou ldquose haacute muacuteltiplas [coisas]rdquo (εἰ πολλά ἐστιν)

(128d5) No primeiro caso εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα o adjetivo πολλά (muacuteltiplos) eacute

apresentado como um predicado do sujeito ὄντα (seres) significando que os seres

satildeo muacuteltiplos no sentido de que possuem vaacuterios atributos Jaacute no segundo caso o

adjetivo substantivado [τὰ] πολλά torna-se o sujeito de uma sentenccedila absoluta

podendo ser traduzida por ldquose muacuteltiplas [coisas] satildeordquo ou ldquose haacute muacuteltiplas

[coisas]rdquo13

13 A diferenccedila entre estas duas formulaccedilotildees natildeo eacute tatildeo bem definida em grego quanto sugerem as

traduccedilotildees por mim apresentadas Afinal τὰ ὄντα pode estar subentendido como sujeito da

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Temos portanto dois sentidos distintos para o argumento de Zenatildeo O

argumento pode estar visando demonstrar a impossibilidade de uma pluralidade

numeacuterica isto eacute da tese de que haacute mais de uma coisa no mundo ou pode estar

visando demonstrar a impossibilidade de uma mesma coisa possuir mais de um

atributo Neste uacuteltimo caso seu objetivo eacute demonstrar que cada coisa eacute

perfeitamente simples homogecircnea e indivisiacutevel Naturalmente estas duas teses

satildeo independentes uma da outra Afinal podemos sustentar que soacute haacute uma coisa

no mundo poreacutem considerando esta coisa como muacuteltipla dotada de vaacuterias partes

ou atributos Ao passo que por outro lado podemos sustentar que haacute vaacuterias

coisas no entanto considerarmos cada uma delas como simples e indivisiacutevel

Soacutecrates contudo oferece tanto εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα quanto εἰ πολλά ἐστιν

como formulaccedilotildees vaacutelidas para uma mesma hipoacutetese Sendo assim devemos

entender que ao menos em nosso diaacutelogo estas duas teses estatildeo sendo

apresentadas em conjunto representando dois lados de uma mesma moeda ou

duas perspectivas complementares de uma mesma posiccedilatildeo filosoacutefica

Os personagens do Parmecircnides parecem reconhecer esta dualidade

inerente agrave argumentaccedilatildeo zenoniana Soacutecrates por exemplo daacute sinais de sua

compreensatildeo deste fato ao ressaltar ora um ora outro aspecto da argumentaccedilatildeo

zenoniana Em 127e8-128a1 por exemplo Soacutecrates pergunta a Zenatildeo

ldquoSeraacute que eacute isso que querem dizer teus argumentos natildeo outra coisa senatildeo sustentar decididamente contra tudo o que se afirma que natildeo haacute muacuteltiplas coisas (οὐ πολλά ἐστι) E disso mesmo crecircs ser prova para ti cada um dos argumentos de sorte que tambeacutem acreditas apresentar tantas provas de que natildeo haacute muacuteltiplas coisas quantos argumentos escrevestesrdquo ἆρα τοῦτό ἐστιν ὃ βούλονταί σου οἱ λόγοι οὐκ ἄλλο τι ἢ διαmicroάχεσθαι παρὰ πάντα τὰ λεγόmicroενα ὡς οὐ πολλά ἐστι καὶ τούτου αὐτοῦ οἴει σοι τεκmicroήριον εἶναι ἕκαστον τῶν λόγων ὥστε καὶ ἡγῇ τοσαῦτα τεκmicroήρια παρέχεσθαι ὅσουσπερ λόγους γέγραφας ὡς οὐκ ἔστι πολλά (127e8-128a1)

Nesta passagem por meio do uso repetitivo de expressotildees no plural

Soacutecrates indica a incongruecircncia da atitude de Zenatildeo que afirma que natildeo haver

muacuteltiplas coisas (οὐ πολλά ἐστι) natildeo obstante fazendo uso de muacuteltiplos

argumentos para provar esta afirmaccedilatildeo Como observa Soacutecrates ao tentar provar a

segunda sentenccedila o que tornaria as duas formulaccedilatildeo idecircnticas Trata-se de um caso de ambiguidade sintaacutetica em que as duas leituras satildeo possiacuteveis para cada uma das formulaccedilotildees De acordo com minha interpretaccedilatildeo este tipo de ambiguidade recorrente na primeira parte do diaacutelogo eacute proposital

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inexistecircncia de uma pluralidade de coisas por meio de muacuteltiplos argumentos

Zenatildeo comete um claacutessico caso de paradoxo performativo dando prova

justamente daquilo que ele nega ser possiacutevel

Ora fica claro que neste momento Soacutecrates estaacute tratando o argumento de

Zenatildeo como uma prova da impossibilidade da existecircncia de muacuteltiplos indiviacuteduos

ou como uma defesa da tese de que soacute haacute uma uacutenica coisa (monismo numeacuterico)

Esta identificaccedilatildeo eacute ainda reafirmada por Soacutecrates quando ele estabelece logo em

seguida a equivalecircncia entre o argumento de Zenatildeo e a tese parmeniacutedica de que

ldquoo todo eacute umrdquo (ἓν εἶναι τὸ πᾶν)

Este comentaacuterio eacute geralmente considerado como a palavra final de

Soacutecrates acerca do sentido da argumentaccedilatildeo zenoniana sendo seguido por uma

longa fala em que a Teoria das Ideias eacute apresentada e o paradoxo de Zenatildeo eacute

superado e natildeo mais invocado na discussatildeo Esta leitura do texto leva a maior

parte dos comentadores a considerar o paradoxo de Zenatildeo como uma defesa

apenas da tese do monismo numeacuterico sem que esteja implicada no paradoxo uma

prova da impossibilidade das coisas possuiacuterem muacuteltiplos atributos14 O defensor

mais radical deste tipo de interpretaccedilatildeo eacute sem duacutevida Luc Brisson (1990) que

com base nesta passagem pretende natildeo apenas limitar a argumentaccedilatildeo de Zenatildeo a

uma afirmaccedilatildeo do monismo numeacuterico como tambeacutem identificar a expressatildeo τὸ

πᾶν traduzida por ele como ldquoo universordquo ou ldquoo conjunto de todos os conjuntos de

todas as coisas sensiacuteveisrdquo como o sujeito impliacutecito de todas as formulaccedilotildees da

tese unitarista (cf Brisson 1990 p18-27)15

Entretanto a identificaccedilatildeo da argumentaccedilatildeo de Zenatildeo com o monismo

numeacuterico de Parmecircnides soacute eacute estabelecida explicitamente nesta passagem Por

todo o restante do diaacutelogo Platatildeo faz uso de expressotildees deliberadamente

ambiacuteguas para se referir tanto agrave tese pluralista alvo do paradoxo de Zenatildeo quanto

14 Vide por exemplo o comentaacuterio de Rossvaer ldquoZenatildeo toma como ponto de partida a hipoacutetese

de que as coisas satildeo muacuteltiplas Mas natildeo eacute exatamente isso o que ele quer dizer O que ele quer dizer eacute que o Ser (o todo) eacute Um tal como seu mestre (Rossvaer1983 p15) No mesmo sentido (cf Coxon 1999 p97) O uacutenico autor que reconhece a dualidade implicada na argumentaccedilatildeo de Zenatildeo eacute El Murr (2010) embora a interpretaccedilatildeo oferecida por MacCabe (1996) tambeacutem pressuponha este reconhecimento

15 Bisson vai aleacutem e identifica τὸ πᾶν como o sujeito subentendido de todas as hipoacuteteses da segunda parte do Parmecircnides (cf Brisson 1990 p18-27) No entanto ao afirmar a expressatildeo τὸ πᾶν como o sujeito oculto de todas as expressotildees em que o um aparece ligado ao verbo ldquoserrdquo tanto na primeira quanto na segunda parte do diaacutelogo Brisson estaacute oferecendo uma interpretaccedilatildeo claramente violenta ao texto do Parmecircnides Afinal Platatildeo dificilmente esconderia a chave para compreensatildeo de todo o diaacutelogo em uma uacutenica ocorrecircncia da expressatildeo

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agrave tese monista defendida por Zenatildeo e Parmecircnides Isto fica claro a partir do

inventaacuterio realizado por Giovanni Casertano que nos lista todas as formulaccedilotildees

das teses monista e pluralista presentes no Parmecircnides divididas entre afirmaccedilotildees

diretas e formulaccedilotildees hipoteacuteticas (cf Cassertano 1990 p386-388) Como

afirmaccedilotildees hipoteacuteticas em sentenccedilas condicionais temos

1) εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα (127e1)

2) εἰ γὰρ πολλὰ εἴη (127e7)

3) εἰ ἕν ἐστι (128d1)

4) εἰ πολλά ἐστιν (128d5)

5) ἡ τοῦ ἓν εἶναι (128d5)

6) εἰ πολλά ἐστι (136a6)

7) εἰ microή ἐστι πολλά (136a6)

Como assertivas diretas temos

8) ἀδύνατον δὴ καὶ πολλὰ εἶναι (127e6-7)

9) ὡς οὐ πολλά ἐστι (127e9)

10) ὡς οὐκ ἔστι πολλά (127e9-128a1)

11) ἓν φῂς εἶναι τὸ πᾶν (128a7-b1)

12) οὐ πολλά φησιν εἶναι (128b2)

13) τὸν microὲν ἓν φάναι τὸν δὲ microὴ πολλά (128b3)

14) τὰ πολλὰ λέγοντας

15) τῆς ἐmicroαυτοῦ ὑποθέσεως () εἴτε ἕν ἐστιν εἴτε microὴ ἕν (137b3-4)

Com base neste inventaacuterio eacute possiacutevel constatar que somente na passagem

nuacutemero 11 τὸ πᾶν eacute apresentado como o sujeito expliacutecito da hipoacutetese de

Parmecircnides Por todo o restante do diaacutelogo Platatildeo faz uso de expressotildees

ambiacuteguas sem sujeito definido para se referir tanto agraves teses de Parmecircnides e

Zenatildeo quanto agraves teses dos defensores do pluralismo16 Portanto dado o grande

nuacutemero de passagens em que a tese monista de Zenatildeo e Parmecircnides natildeo aparece

τὸ πᾶν em meio a esta fala aparentemente despretenciosa de Soacutecrates

16 Com a exceccedilatildeo eacute claro da sentenccedila nuacutemero 1 que como jaacute observamos apresenta πολλά como predicativo do sujeito τὰ ὄντα

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diretamente vinculada ao monismo numeacuterico natildeo temos razatildeo para projetar

aquilo que encontramos em uma uacutenica passagem como a interpretaccedilatildeo definitiva

para todas as outras

Caso tenhamos em mente a ambiguidade inerente agrave formulaccedilatildeo do

paradoxo de Zenatildeo poderemos notar que o segundo sentido de multiplicidade

implicado na sua argumentaccedilatildeo emerge como a interpretaccedilatildeo natural para outras

passagens do diaacutelogo Em uma destas passagens a possibilidade de um mesmo

indiviacuteduo possuir uma multiplicidade de partes eacute apresentada por Soacutecrates como

um dos resultados da sua soluccedilatildeo para o paradoxo Em 129c Soacutecrates diz

ldquoMas se algueacutem demonstrar que eu sou um17 e muacuteltiplas coisas que haacute nisso de espantoso Quando quiser mostrar que eu sou muacuteltiplas coisas diraacute que uma coisa eacute meu lado direito outra o esquerdo e que uma coisa eacute a frente outra a parte de traacutes e do mesmo modo com relaccedilatildeo agrave parte inferior e posterior pois participo creio da quantidade e por outro lado quando [quiser mostra] que sou um diraacute que dos sete que aqui estatildeo eu sou um homem participante que sou tambeacutem do umrdquo εἰ δ ἐmicroὲ ἕν τις ἀποδείξει ὄντα καὶ πολλά τί θαυmicroαστόν λέγων ὅταν microὲν βούληται πολλὰ ἀποφῆναι ὡς ἕτερα microὲν τὰ ἐπὶ δεξιά microού ἐστιν ἕτερα δὲ τὰ ἐπ ἀριστερά καὶ ἕτερα microὲν τὰ πρόσθεν ἕτερα δὲ τὰ ὄπισθεν καὶ ἄνω καὶ κάτω ὡσαύτως ndash πλήθους γὰρ οἶmicroαι microετέχω ndash ὅταν δὲ ἕν ἐρεῖ ὡς ἑπτὰ ἡmicroῶν ὄντων εἷς ἐγώ εἰmicroι ἄνθρωπος microετέχων καὶ τοῦ ἑνός (129c4-d1)

A importacircncia desta fala de Soacutecrates na compreensatildeo do conteuacutedo da

argumentaccedilatildeo de Zenatildeo natildeo parece ter sido notada pelos comentadores Isto deve-

se ao fato desta colocaccedilatildeo fazer parte de um discurso mais amplo no qual

Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que suas Formas estatildeo

sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos tal como estatildeo sujeitos os objetos sensiacuteveis

Contudo se limitarmos nossa interpretaccedilatildeo destas palavras de Soacutecrates agrave questatildeo

da copresenccedila de opostos a introduccedilatildeo do tema da unidade e multiplicidade torna-

se completamente incidental Afinal Soacutecrates poderia ter apresentado seu desafio

por meio de qualquer outro par de propriedades opostas Na verdade de acordo

com esta linha de raciociacutenio o aparecimento dos conceitos de unidade e

multiplicidade nesta passagem eacute inclusive desnecessaacuterio uma vez que Soacutecrates

jaacute havia formulado seu desafio por meio das propriedades ldquosemelhanterdquo e

ldquodessemelhanterdquo No entanto natildeo podemos considerar meramente ocasional esta

especiacutefica formulaccedilatildeo sobretudo em meio a uma discussatildeo centrada na questatildeo da

17 Coloco ldquoumrdquo em itaacutelico nesta e nas seguintes passagens para diferenciar o atributo ldquoser-umrdquo

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viabilidade teoacuterica da noccedilatildeo de multiplicidade Eacute claro que na dinacircmica

conversacional do diaacutelogo qualquer afirmaccedilatildeo sobre o tema da

unidademultiplicidade remete o leitor diretamente ao paradoxo de Zenatildeo e agrave

compreensatildeo de seu significado

A observaccedilatildeo de Soacutecrates deixa de ser irrelevante e passa a fazer sentido

se entendermos o paradoxo de Zenatildeo como uma prova tambeacutem da

impossibilidade de uma coisa uacutenica qualquer possuir muacuteltiplos atributos Soacutecrates

estaacute tornando expliacutecito nesta passagem o segundo sentido de multiplicidade

negado pela argumentaccedilatildeo de Zenatildeo a multiplicidade de partes ou atributos de

um mesmo indiviacuteduo Segundo Soacutecrates natildeo haacute nada de espantoso ao contraacuterio

do que pretende afirmar Zenatildeo no fato de uma dada coisa uacutenica ser tambeacutem

muacuteltipla dotada de vaacuterias partes

Portando para defender o monismo de seu mestre Parmecircnides Zenatildeo

pretende demonstrar a contradiccedilatildeo envolvida na admissatildeo da multiplicidade tout

court quer esta seja entendia como uma multiplicidade de indiviacuteduos quer como

uma multiplicidade de atributos de um mesmo indiviacuteduo Como veremos o

reconhecimento desta dualidade da argumentaccedilatildeo zenoniana se mostraraacute essencial

para a compreensatildeo dos argumentos seguintes Pois estes dois sentidos de

multiplicidade estaratildeo implicados na soluccedilatildeo de Soacutecrates para o paradoxos de

Zenatildeo assim como faratildeo parte da estrateacutegia utilizada por Parmecircnides na sua

contra-argumentaccedilatildeo agrave soluccedilatildeo socraacutetica

do artigo indefinido

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415 A reduccedilatildeo ao absurdo da tese pluralista

Tendo estabelecido os dois sentidos de multiplicidade afirmados pela tese

pluralista e negados pelo monismo de Zenatildeo e Parmecircnides podemos passar para a

anaacutelise do argumento zenoniano De acordo com o resumo apresentado por

Soacutecrates em 127e1-5 a reduccedilatildeo ao absurdo da tese pluralista eacute operada por Zenatildeo

por meio do seguinte raciociacutenio

1) Suponha que os seres satildeo muacuteltiplos (tese provisoriamente

assumida)

2) Se eles satildeo muacuteltiplos entatildeo eles satildeo tanto semelhantes quanto

dessemelhantes

3) Logo os seres satildeo tanto semelhantes quanto dessemelhantes (a

partir de 1 amp 2)

4) Ora eacute impossiacutevel que uma mesma coisa seja semelhante e

dessemelhante

5) Portanto os seres natildeo satildeo muacuteltiplos (afirma-se a negaccedilatildeo de 1

com base na contradiccedilatildeo entre 3 amp 4) 18

A invenccedilatildeo do meacutetodo de reduccedilatildeo ao absurdo que consiste em assumir

temporariamente uma tese para a partir dela derivar uma contradiccedilatildeo e assim

concluir a negaccedilatildeo da tese inicial natildeo deve ser atribuiacuteda a Zenatildeo embora

saibamos que ele tenha usado extensivamente este meacutetodo argumentativo

Segundo Thomas Heath o meacutetodo de reduccedilatildeo ao absurdo pode ter sua origem

traccedilada ateacute a escola pitagoacuterica e no tempo de Platatildeo este argumento jaacute era usado

largamente em provas matemaacuteticas envolvendo teoria dos nuacutemeros (cf Heath

1960 p294-295) Sendo assim podemos considerar que os leitores de Platatildeo natildeo

viam com estranheza este tipo de argumentaccedilatildeo

18 Trata-se de um argumento em Modus Tollendo Tollens isto eacute um argumento que neganto

(tollendo) o consequente da implicaccedilatildeo expressa na premissa nega (tollens) por consequecircncia loacutegica tambeacutem o antecedente Em notaccedilatildeo formal P rarr Q

~Q ~P

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Da mesma maneira a premissa nuacutemero 2 do argumento de Zenatildeo parece

bastante plausiacutevel e dificilmente teria sua validade objetada Zenatildeo pode estar

argumentando por exemplo que os muacuteltiplos seres como seres satildeo semelhantes

entre si enquanto que como muacuteltiplos e portanto numericamente distintos uns

dos outros satildeo dessemelhantes ou ainda que as diversas partes de um indiviacuteduo

satildeo semelhantes entre si enquanto partes de um mesmo indiviacuteduo poreacutem

dessemelhantes enquanto partes distintas

No entanto chama muita atenccedilatildeo o conteuacutedo da premissa nuacutemero 4 do

argumento Segundo esta premissa uma mesma coisa natildeo pode ser ao mesmo

tempo semelhante e dessemelhante Mas por quecirc Podemos pensar em miriacuteades

de casos em que uma mesma coisa eacute tanto semelhante quanto dessemelhante

Soacutecrates e Platatildeo por exemplo satildeo semelhantes pelo fato de ambos serem

atenienses no entanto satildeo dessemelhantes em vaacuterios outros aspectos como em

idade condiccedilatildeo social etc Enquanto inteacuterpretes devemos tentar entender porque

os interlocutores do Parmecircnides consideram intrigante e paradoxal o fato de uma

dada coisa possuir simultaneamente propriedades opostas mesmo quando estas

propriedades representam termos relativos (semelhante-dessemelhante maior-

menor etc)

A explicaccedilatildeo mais constantemente apresentada pelos comentadores segue

a mesma linha de raciociacutenio da criacutetica desenvolvida por Vlastos que citamos

anteriormente Zenatildeo estaria tratando predicados relacionais como predicados

monaacutedicos (ou adjetivos) Assim ele estaria ignorando o complemento existente

nos predicados relacionais e tratando a propriedade ldquoser semelhante a xrdquo como

equivalente agrave propriedade ldquoser semelhante simpliciterrdquo isto eacute estaria tratando um

predicado incompleto (que necessita de um complemento para ser significativo)

como um predicado completo (significativo por si soacute) Negligenciada a diferenccedila

entre estes dois tipos de predicados uma sentenccedila do tipo ldquoA eacute maior que B e

menor que Crdquo passa a ser equivalente a ldquoA eacute maior e menor simpliciterrdquo

tornando-se tatildeo contraditoacuteria quanto a sentenccedila ldquoA eacute quadrado e redondordquo

Este tipo de interpretaccedilatildeo foi primeiramente apresentada por Cornford

segundo o qual ldquonenhuma distinccedilatildeo eacute traccedilada entre qualidades e relaccedilotildees

Grandeza eacute tratada como se fosse uma qualidade como Brancura inerente agrave

pessoa granderdquo (Cornford 1951 p78) Cornford observa ainda que este tipo de

raciociacutenio parece ser particularmente favorecido pela sintaxe grega que permite

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sentenccedilas do tipo ldquoSimmias eacute grande em relaccedilatildeo (πρὸς) a Soacutecratesrdquo ou ainda

ldquoSimmias tem grandeza com relaccedilatildeo (πρὸς) a Soacutecratesrdquo nas quais o segundo

termo da relaccedilatildeo binaacuteria ldquoser-maior-querdquo natildeo eacute necessariamente introduzido por

um pronome relativo mas pode ser introduzido pela preposiccedilatildeo πρὸς Este fato

sintaacutetico teria supostamente induzido os pensadores gregos a negligenciar o

caraacuteter relacional de propriedades como ldquoser-semelhante-ardquo ou ldquoser-maior-querdquo

os levando a classificaacute-las como propriedades monaacutedicas do tipo ldquoser-brancordquo ou

ldquoser-belordquo

No entanto esta anaacutelise linguiacutestica por si soacute natildeo pode ser considerada

uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria Caso assim fosse Soacutecrates poderia simplesmente

argumentar em termos estritamente gramaticais e afirmar que usamos sentenccedilas

significativas com predicados relativos cotidianamente e que portanto o

paradoxo de Zenatildeo deveria ser simplesmente desconsiderado Pois soacute haacute

contradiccedilatildeo quando propriedades opostas satildeo atribuiacutedas a uma mesma coisa ao

mesmo tempo da mesma maneira e em relaccedilatildeo a uma mesma coisa 19

A ausecircncia de distinccedilatildeo entre predicados relacionais e predicados

completos no argumento de Zenatildeo no entanto nos remete diretamente a um tema

extremamente recorrente nos diaacutelogos a copresenccedila de propriedades opostas

Como vimos em diversos diaacutelogos Soacutecrates e seus interlocutores consideram a

copresenccedila de propriedades opostas nos objetos sensiacuteveis algo intrigante e

merecedor de uma explicaccedilatildeo teoacuterica complexa Na realidade o fato das entidades

sensiacuteveis estarem submetidas a este tipo de predicaccedilatildeo constitui aquilo que mais

propriamente as caracteriza o que fica claro pelo uso de predicados relacionais

nas demonstraccedilotildees socraacuteticas da diferenccedila entre o modo de ser das Formas e o

modo de ser das coisas do mundo sensiacutevel Assim submetidas a uma

multiplicidade de relaccedilotildees as entidades sensiacuteveis estatildeo sempre sujeitas agrave

predicaccedilatildeo de opostos o que eacute tido por Soacutecrates como uma evidecircncia de

contradiccedilatildeo interna e deficiecircncia ontoloacutegica nestes objetos

Portanto devemos entender que os predicados ldquosemelhanterdquo e

ldquodessemelhanterdquo do argumento de Zenatildeo estatildeo sendo empregados para ilustrar o

fato de que os objetos sensiacuteveis tecircm suas propriedades definidas pelas relaccedilotildees

em que estatildeo inseridos o que resulta na copresenccedila de opostos em um mesmo

19 De fato em uma passagem da Repuacuteblica IV (436b-c) Soacutecrates formula uma versatildeo da Lei da

Natildeo-Contradiccedilatildeo na qual todas estas qualificaccedilotildees satildeo mencionadas

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objeto e lhes confere um caraacuteter contraditoacuterio Ora eacute evidente que a extinccedilatildeo das

muacutetuas relaccedilotildees existentes entre os objetos sensiacuteveis seria suficiente para eliminar

o problema da copresenccedila de opostos pois um uacutenico objeto privado de qualquer

relaccedilatildeo eacute somente idecircntico a si mesmo

Eacute justamente esta a estrateacutegia da argumentaccedilatildeo zenoniana Reduzindo a

multiplicidade dos objetos sensiacuteveis a uma uacutenica entidade Zenatildeo elimina por

completo as muacuteltiplas relaccedilotildees entre eles consequentemente resolvendo o

problema da copresenccedila de opostos Assim enquanto Soacutecrates usa a copresenccedila

de opostos para caracterizar a deficiecircncia do mundo sensiacutevel e ainda postular a

existecircncia de entidades natildeo submetidas agraves relaccedilotildees que geram esta copresenccedila

Zenatildeo usa esta caracteriacutestica para negar toda possibilidade de multiplicidade

extinguindo por completo qualquer tipo de relaccedilatildeo e postulando a existecircncia de

uma uacutenica coisa privada de qualquer atributo salvo sua auto-identidade

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416 A soluccedilatildeo de Soacutecrates para o paradoxo de Zenatildeo

A despeito de todas as polecircmicas acerca da interpretaccedilatildeo do Parmecircnides a

compreensatildeo da soluccedilatildeo oferecida por Soacutecrates ao paradoxo de Zenatildeo destaca-se

como um ponto de notaacutevel consenso Os comentadores parecem concordar que a

estrateacutegia adotada por Soacutecrates consiste em desafiar o conteuacutedo da premissa

nuacutemero 4 do argumento de Zenatildeo por meio da distinccedilatildeo entre dois tipo de

entidades Formas e objetos sensiacuteveis Soacutecrates entende que os seres (τὰ ὄντα)

sobre os quais fala Zenatildeo satildeo objetos sensiacuteveis e como soluccedilatildeo ao paradoxo

apresenta as Formas como um tipo de entidade imune agrave copresenccedila de opostos

apontada por Zenatildeo

Recentemente contudo ateacute mesmo este aparente consenso foi ameaccedilado

Sandra Peterson em seu capiacutetulo sobre o Parmecircnides para The Oxford Handbook

of Plato (2008) distingue sua proacutepria interpretaccedilatildeo das interpretaccedilotildees que

atribuem a Soacutecrates uma apresentaccedilatildeo teacutecnica da Teoria das Ideias Ela acredita

que ldquose consideramos que Soacutecrates ostenta uma nova teoria de caraacuteter teacutecnico

com entidades desconhecidas [isto eacute as Formas] (hellip) natildeo percebemos o genuiacuteno

poder de sua simples refutaccedilatildeordquo (Peterson 2008 p383-411)

No entanto como se daria a soluccedilatildeo do paradoxo caso Soacutecrates natildeo

apelasse para Formas inteligiacuteveis Segundo a interpretaccedilatildeo proposta por Peterson

ldquoSoacutecrates simplesmente aponta pressuposiccedilotildees inegaacuteveis da fala cotidiana

(undeniable presuppositions of customary speech)rdquo para refutar Zenatildeo (Peterson

2008 p387) De acordo com Peterson a estrateacutegia geral da argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates consiste em demonstrar que predicados opostos satildeo ordinariamente

atribuiacutedos agraves coisas Sendo assim seu objetivo natildeo seria provar a invalidade do

argumento de Zenatildeo mas sim a sua irrelevacircncia ao fim de sua argumentaccedilatildeo

Soacutecrates teria demonstrado que o argumento de Zenatildeo natildeo apresenta um

paradoxo mas apenas uma verdade amplamente reconhecida

Peterson reconstroacutei a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates em trecircs movimentos

distintos que analisaremos separadamente O primeiro movimento eacute descrito por

ela da seguinte maneira

ldquoPrimeiro de 127e a 128b apoacutes ter esclarecido que o argumento de Zenatildeo eacute uma reduccedilatildeo

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ao absurdo da afirmaccedilatildeo de que os seres satildeo muacuteltiplos Soacutecrates leva Zenatildeo a expor sua

proacutepria crenccedila de que muacuteltiplas coisas satildeo semelhantes e dessemelhantes como por

exemplo quando Zenatildeo daacute a entender que ele e Parmecircnides satildeo semelhantes por dizerem

as mesmas coisas (128b5) e dessemelhantes por Zenatildeo dizer ldquonatildeo muacuteltiplosrdquo (not many) e

Parmecircnides dizer ldquoumrdquo (128b3ndash5) Por sugerir que haacute vaacuterios seres semelhantes em algum

aspecto e dessemelhantes em outros mesmo enquanto ele defende que natildeo pode haver

seres tanto semelhantes quanto dessemelhantes Zenatildeo eacute claramente inconsistenterdquo

(Peterson 2008 p 387)

Peterson estaacute se referindo agrave passagem por noacutes jaacute citada em que Soacutecrates

assimila o objetivo da argumentaccedilatildeo de Zenatildeo com a tese de Parmecircnides de que

tudo eacute um Segundo ela esta passagem inicia a refutaccedilatildeo do argumento ao

demonstrar que Zenatildeo eacute semelhante a Parmecircnides por ambos defenderem a tese

monista e ao mesmo tempo dessemelhante pois enquanto Zenatildeo afirma natildeo

haver muacuteltiplas coisas Parmecircnides afirma o todo ser um Contudo Peterson

parece negligenciar o fato de que em toda passagem natildeo haacute uma uacutenica ocorrecircncia

das palavras ldquosemelhanterdquo (ὅmicroοιος) ou ldquodessemelhanterdquo (ἀνόmicroοιος) Natildeo me

parece nada provaacutevel que Soacutecrates desejando demonstrar a contradiccedilatildeo apontada

por Peterson deixasse de mencionar o ponto especiacutefico de sua acusaccedilatildeo e se

limitasse a atacar aquilo que Zenatildeo ldquosugererdquo (implies) Em argumentaccedilotildees ad

hominen como esta nas quais se pretende demonstrar a existecircncia de uma

contradiccedilatildeo entre as teses que determinada pessoa defende e as atitudes desta

pessoa o valor da acusaccedilatildeo estaacute em tornar evidente a inconsistecircncia em questatildeo

Sendo assim a interpretaccedilatildeo oferecida por Peterson que pretende ler esta

passagem como a demonstraccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo acerca de temas que sequer

satildeo mencionados natildeo pode ser considerada uma interpretaccedilatildeo com suficiente

apoio textual

Nesta passagem Soacutecrates estaacute de fato realizando uma argumentaccedilatildeo ad

hominen do mesmo tipo identificado por Peterson No entanto a contradiccedilatildeo

atribuiacuteda a Zenatildeo eacute outra Como vimos ao empregar repetidamente formas

plurais para se referir aos argumentos de Zenatildeo Soacutecrates torna expliacutecita a

contradiccedilatildeo envolvida em se negar a existecircncia de muacuteltiplas coisas por meio de

muacuteltiplos argumentos Esta acusaccedilatildeo eacute cuidadosamente montada pela recorrecircncia

de expressotildees plurais para se referir aos argumentos de Zenatildeo e termina com a

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afirmaccedilatildeo claramente irocircnica de que Zenatildeo apresenta ldquomuito numerosas provasrdquo

(τεκmicroήρια πάmicroπολλα) para demonstrar sua tese de que natildeo haacute muacuteltiplas coisas

(128b2) Podemos considerar portanto que a interpretaccedilatildeo que atribui a Soacutecrates

o reconhecimento deste segundo tipo de contradiccedilatildeo possui mais apoio textual do

que a interpretaccedilatildeo oferecida por Peterson e deve ser eleita como a interpretaccedilatildeo

correta para passagem em detrimento da interpretaccedilatildeo de Peterson que lecirc a

passagem como a identificaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo natildeo mencionada

Contudo a segunda fase da argumentaccedilatildeo de Soacutecrates representaria

segundo Peterson o passo fundamental da refutaccedilatildeo ao argumento de Zenatildeo Ela

explica esta fase da seguinte maneira

ldquoSegundo Soacutecrates explicitamente apresenta a mais profunda e devastadora objeccedilatildeo (128e5ndash129a3) de que Zenatildeo ao conduzir sua reduccedilatildeo ao absurdo presume que haacute dois opostos ndash semelhanccedila e dessemelhanccedila ndash cada um deles sendo um ser (τούτοιν δὲ δυοῖν ὄντοιν) Zenatildeo presume que a semelhanccedila ela mesma eacute um item e que a dessemelhanccedila eacute um segundo e oposto item As premissas de Zenatildeo implicam a negaccedilatildeo de sua conclusatildeo E isso eacute desastrosordquo (Peterson 2008 p 387)

Portanto a ldquodevastadora objeccedilatildeordquo apresentada por Soacutecrates consiste em

demonstrar que Zenatildeo reconhece a existecircncia de pelo menos duas coisas a

semelhanccedila e a dessemelhanccedila o que estaria em clara contradiccedilatildeo com sua tese de

que natildeo haacute muacuteltiplas coisas Segundo Peterson isto acontece na seguinte

passagem

ldquoPois bem aceito disse Soacutecrates e acredito ser como dizes Mas diz-me o seguinte natildeo julgas haver uma certa forma em si e por si da semelhanccedila e por outro lado contraacuteria a tal forma uma outra aquilo que realmente eacute dessemelhante E que nestas duas coisas que satildeo tanto eu quanto vocecirc temos participaccedilatildeordquo Ἀλλ ἀποδέχοmicroαι φάναι τὸν Σωκράτη καὶ ἡγοῦmicroαι ὡς λέγεις ἔχειν τόδε δέ microοι εἰπέ οὐ νοmicroίζεις εἶναι αὐτὸ καθαὑτὸ εἶδός τι ὁmicroοιότητος καὶ τῷ τοιούτῳ αὖ ἄλλο τι ἐναντίον ὃ ἔστιν ἀνόmicroοιον τούτοιν δὲ δυοῖν ὄντοιν καὶ ἐmicroὲ καὶ σὲ καὶ τἆλλα ἃ δὴ πολλὰ καλοῦmicroεν microεταλαmicroβάνειν (128e5ndash129a3)

Eacute realmente difiacutecil entender como Peterson com base na passagem citada

pode atribuir a Zenatildeo o reconhecimento da existecircncia destas duas coisas (a

semelhanccedila e a dessemelhanccedila) Afinal quem se refere agrave semelhanccedila e agrave

dessemelhanccedila como dois seres distintos (τούτοιν δυοῖν ὄντοιν) eacute Soacutecrates e natildeo

Zenatildeo Para atribuir o reconhecimento destas entidades a Zenatildeo Peterson afirma

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que o verbo utilizado por Soacutecrates (νοmicroίζειν) indicaria que ele estaacute tratando de

uma noccedilatildeo comum aceita tambeacutem por Zenatildeo

De fato em seu paradoxo Zenatildeo fala da semelhanccedila e da dessemelhanccedila

como propriedades que os objetos teriam caso fossem muacuteltiplos Entretanto em

contraste com o uso de νοmicroίζειν que pode ou natildeo possuir a nuance de

significado indicada por Peterson Soacutecrates menciona uma seacuterie de termos

relativos agraves Formas que dificilmente poderiam fazer parte de um vocabulaacuterio

ldquocomumrdquo compartilhado por Zenatildeo Sendo assim o simples uso de νοmicroίζειν natildeo

eacute razatildeo suficiente para atribuirmos a Zenatildeo aquilo que Soacutecrates estaacute dizendo

Aleacutem disso caso o desejo de Soacutecrates fosse apresentar uma contradiccedilatildeo inerente agrave

argumentaccedilatildeo de Zenatildeo natildeo haveria porque fazecirc-lo por meio de uma pergunta

bastaria constatar que Zenatildeo reconhece a existecircncia do semelhante e do

semelhante e portanto admite uma multiplicidade de seres

Contudo o maior erro da argumentaccedilatildeo de Peterson natildeo estaacute em atribuir a

Zenatildeo aquilo que Soacutecrates estaacute afirmando Pois mesmo admitindo que a

argumentaccedilatildeo de Zenatildeo pressuponha a existecircncia destas duas entidades a

constataccedilatildeo deste fato sequer representaria uma refutaccedilatildeo ao paradoxo Como o

argumento de Zenatildeo eacute uma reduccedilatildeo ao absurdo o uso de noccedilotildees que se provaratildeo

contraditoacuterias eacute plenamente justificaacutevel Em seu paradoxo Zenatildeo conclui que as

coisas seriam simultaneamente semelhantes e dessemelhantes apenas caso as

coisas fossem muacuteltiplas No entanto Zenatildeo natildeo acredita que as coisas satildeo

muacuteltiplas Portanto em nenhum momento afirma seriamente a existecircncia da

semelhanccedila e da dessemelhanccedila O apelo de Zenatildeo a estas entidades eacute meramente

contra-factual e natildeo representa sua posiccedilatildeo A ldquodevastadora refutaccedilatildeordquo

apresentada por Peterson sequer se configura como uma legiacutetima refutaccedilatildeo

O uacuteltimo movimento da argumentaccedilatildeo de Soacutecrates consistiria em

ldquoenfatizar que os predicados ldquosemelhanterdquo e ldquodessemelhanterdquo satildeo incompletos e

que uma conversa ordinaacuteria (ordinary talk) eacute capaz de reconhecer diversas coisas

que satildeo tanto semelhantes quanto dessemelhantes ou possuem semelhanccedila e

dessemelhanccedila em vaacuterios aspectosrdquo (Peterson 2008 p 387) Isto aconteceria na

seguinte passagem

ldquoE [natildeo julgas] que algumas coisas tendo participaccedilatildeo na semelhanccedila se tornam semelhantes por causa disso e na medida em que nelas tenham participaccedilatildeo e que outras tendo participaccedilatildeo na dessemelhanccedila [se tornam] dessemelhantes e

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que outras [tendo participaccedilatildeo] em ambas se tornam semelhantes e dessemelhantes E mesmo que todas as coisas tenham participaccedilatildeo em ambas essas coisas que satildeo contraacuterias e que sejam pelo participar nas duas elas mesmas em relaccedilatildeo a si mesmas tanto semelhantes quanto dessemelhantes o que haacute de espantoso Καὶ τὰ microὲν τῆς ὁmicroοιότητος microεταλαmicroβάνοντα ὅmicroοια γίγνεσθαι ταύτῃ τε καὶ κατὰ τοσοῦτον ὅσον ἂν microεταλαmicroβάνῃ τὰ δὲ τῆς ἀνοmicroοιότητος ἀνόmicroοια τὰ δὲ ἀmicroφοτέρων ἀmicroφότερα εἰ δὲ καὶ πάντα ἐναντίων ὄντων ἀmicroφοτέρων microεταλαmicroβάνει καὶ ἔστι τῷ microετέχειν ἀmicroφοῖν ὅmicroοιά τε καὶ ἀνόmicroοια αὐτὰ αὑτοῖς τί θαυmicroαστόν (129a3-b1)

Como reconhece Peterson de acordo com a interpretaccedilatildeo por ela proposta

estas perguntas de Soacutecrates apenas ldquonegam a premissa de Zenatildeo de que eacute

impossiacutevel para qualquer coisa ser tanto semelhante quanto dessemelhanterdquo

(Peterson 2008 p 387) No entanto como podemos considerar a mera negaccedilatildeo

injustificada de uma premissa uma argumentaccedilatildeo suficientemente satisfatoacuteria

Zenatildeo argumenta em termos loacutegicos e espera que uma contra-argumentaccedilatildeo lhe

seja apresentada no mesmo niacutevel Caso o comentaacuterio final de Soacutecrates se limitasse

a negar injustificadamente a premissa problemaacutetica do argumento de Zenatildeo

dificilmente poderiacuteamos considerar tal comentaacuterio parte de uma argumentaccedilatildeo

seacuteria 20

Por fim resta observar que a interpretaccedilatildeo proposta por Peterson encontra-

se em clara oposiccedilatildeo ao que um leitor dos diaacutelogos poderia esperar Segundo o

argumento de Zenatildeo eacute impossiacutevel que os seres sejam tanto semelhantes quanto

dessemelhantes ou de maneira geral que uma dada coisa possua qualquer par de

predicados opostos (F e natildeo-F) Ora um leitor acostumado com o tipo de

argumentaccedilatildeo que Soacutecrates desempenha nos diaacutelogos da fase meacutedia espera

naturalmente que as Formas sejam apresentadas como soluccedilatildeo para este

problema

Esta expectativa eacute plenamente satisfeita quando Soacutecrates pede a Zenatildeo que

aceite a existecircncia de ldquouma Forma em si e por si da Semelhanccedila e por outro lado

uma outra Forma aquilo que eacute realmente Dessemelhanterdquo (οὐ νοmicroίζεις εἶναι αὐτὸ

καθαὑτὸ εἶδός τι ὁmicroοιότητος καὶ τῷ τοιούτῳ αὖ ἄλλο τι ἐναντίον ὃ ἔστιν

ἀνόmicroοιον 129a1) Dificilmente uma apresentaccedilatildeo das Formas poderia ser feita de

20 Neste caso Soacutecrates estaria agindo como Dioacutegenes de Ciacutenope que pretendeu refutar os

argumentos de Zenatildeo contra a possibilidade do movimento simplemente andando em praccedila puacuteblica Ora eacute claro que este poderia ser o caso No entanto esta natildeo parece ser a intenccedilatildeo de Soacutecrates e dificilmente Zenatildeo e Parmecircnides demonstrariam respeito por Soacutecrates tal como demonstram no decorrer do diaacutelogo caso este fosse o teor de sua argumentaccedilatildeo

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maneira mais expliacutecita Aleacutem do termo εἶδος Soacutecrates usa as expressotildees αὐτὸ

καθ αὑτὸ e ὃ ἔστιν ambas extremamente recorrentes nos diaacutelogos e

indubitavelmente parte do vocabulaacuterio relativo agraves Formas Fica claro portanto

que Soacutecrates identifica os seres (τὰ ὄντα) aos quais Zenatildeo se refere como objetos

sensiacutevieis e como primeiro passo na soluccedilatildeo do paradoxo introduz suas Formas

na discussatildeo

No entanto a simples apresentaccedilatildeo de entidades imunes agrave copresenccedila de

opostos natildeo se configura como uma soluccedilatildeo ao paradoxo A premissa 4 de Zenatildeo

afirma a impossibilidade das coisas serem simultaneamente semelhantes e

dessemelhantes o que certamente natildeo exclui a possibilidade de algo ser

exclusivamente semelhante ou dessemelhantes Para que a premissa 4 seja

falsificada eacute preciso que Soacutecrates demonstre como os seres podem possuir

propriedades opostas sem que isso implique em uma contradiccedilatildeo Portanto de

modo a servirem de soluccedilatildeo ao paradoxo as Formas precisam natildeo apenas estar

imunes agrave copresenccedila de opostos mas sobretudo explicar esta copresenccedila nos

objetos sensiacutevieis Para que isto seja feito Soacutecrates introduz a noccedilatildeo de

participaccedilatildeo (aqui representada pelos verbos microεταλαmicroβάνειν e microετέχειν) e

pergunta a Zenatildeo se ele estaacute disposto a aceitar que ldquoalgumas coisas tendo

participaccedilatildeo na Semelhanccedila se tornam semelhantes () que outras tendo

participaccedilatildeo na Dessemelhanccedila [se tornam] dessemelhantes e que outras [tendo

participaccedilatildeo] em ambas se tornam semelhantes e dessemelhantesrdquo (129a3-8)

Caso Zenatildeo esteja disposto a aceitar estas duas hipoacuteteses 1) que existem

Formas e 2) que os objetos sensiacuteveis participam destas Formas a aparente

contradiccedilatildeo presente na premissa 4 do seu argumento pode ser dissolvida Pois

uma vez que estes dois pontos lhe sejam concedidos Soacutecrates estaraacute apto a

demonstrar como a copresenccedila de propriedades opostas nos objetos sensiacutevieis

pode ser explicada por meio da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que estes objetos mantecircm

com as Formas21

No Parmecircnides Soacutecrates natildeo desenvolve em pormenores esta explicaccedilatildeo

se limitando a dizer que mesmo que todas as coisas sensiacuteveis tenham participaccedilatildeo

21 Note que Soacutecrates apresenta estas duas hipoacuteteses (a existecircncia das Formas e a relaccedilatildeo de

participaccedilatildeo) por meio de uma pergunta (129a1-3) Isto indica que ele estaacute introduzindo um novo material conceitual e que espera um assentimento por parte de seus interlocutores com relaccedilatildeo agrave viabilidade teoacuterica destas hipoacuteteses Como veremos a resposta de Parmecircnides seraacute admitir temporariamente a validade das hipoacuteteses de Soacutecrates com o objetivo de submetecirc-las

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em ambas estas Formas e em consequecircncia desta participaccedilatildeo sejam semelhantes

e dessemelhantes nada haacute nisso de espantoso (129a8-b1) Esta brevidade da

explicaccedilatildeo de Soacutecrates pode ser solucionada se relacionarmos a soluccedilatildeo aqui

apresentada para o paradoxo de Zenatildeo com a explicaccedilatildeo oferecida no Feacutedon

(101-103) para o fato de Simmias ser grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates e pequeno em

relaccedilatildeo a Feacutedon A assimilaccedilatildeo entre as duas explicaccedilotildees parece justificada uma

vez que em ambos os diaacutelogos vemos Soacutecrates oferecer a Teoria das Ideias como

soluccedilatildeo para o mesmo problema a copresenccedila de propriedades (relacionais)

opostas nos objetos sensiacuteveis22

Adotando o paralelismo entre estas duas explicaccedilotildees podemos entender

que tal como acontece no Feacutedon a semelhanccedila e dessemelhanccedila no Parmecircnides

deixam de ser predicados atribuiacutedos diretamente ao sujeito em questatildeo e passam a

ser predicados das propriedades imanentes que este sujeito possui devido agrave

relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que manteacutem com as Formas Sendo assim as muacuteltiplas

coisas do paradoxo de Zenatildeo satildeo tanto semelhantes quanto dessemelhantes por

participarem simultaneamente das Formas do Semelhante e do Dessemelhante e

devido a esta participaccedilatildeo possuiacuterem as propriedades imanentes do semelhante e

do dessemelhante com partes de si Portanto quando dizemos que o objeto x eacute

semelhante e dessemelhante estamos nos referindo a este fato de maneira

inadequada Pois natildeo eacute propriamente o indiviacuteduo x que eacute semelhante e

dessemelhante mas a semelhanccedila-de-x que eacute semelhante e a dessemelhanccedila-de-x

que eacute dessemelhante Estabelecida a diferenccedila entre Forma propriedades

imanentes e objetos sensiacuteveis natildeo haacute nada de contraditoacuterio no fato de uma mesma

coisa possuir simultaneamente propriedades imanentes opostas Afinal

predicados opostos nunca estatildeo sendo atribuiacutedos propriamente agrave mesma coisa

a uma nova reduccedilatildeo ao absurdo

22 Aleacutem da identidade de temas as passagens do Feacutedon e do Parmecircnides apresentam grande semelhanccedila de vocabulaacuterio εἶδος (Feacuted102B1) αὐτὸ καθ αὑτὸ (Feacuted78D3) ὄντοιν (Feacuted71a13) αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά (Feacuted74c1 αὐτὰ τὰ ἴσα) De fato a assimilaccedilatildeo entre os dois diaacutelogos eacute extremamente comum entre os comentadores Scolnicov por exemplo afirma que ldquoesta passagem eacute uma breve reafirmaccedilatildeo da doutrina das Formas desenvolvida no Feacutedonrdquo (Scolnicov 2003 p48) Gill oferece sua explicaccedilatildeo para resoluccedilatildeo do paradoxo de Zenatildeo por meio da teoria apresentada no Feacutedon (cf Gill 2012 p19-27) e (cf Gill 1996 p12-18) Cornford tambeacutem adota a estrateacutegia de explicar a soluccedilatildeo do paradoxo atraveacutes da analogia com a soluccedilatildeo do problema da copresenccedila de opostos no Feacutedon e afirma haver jaacute em 1951 aceitaccedilatildeo geral (it is generally agreed) de que ldquoa teoria das ideias aqui apresentada eacute idecircntica agrave afirmada anteriormente no Feacutedonrdquo (Cornford 1951 p70) Ainda Brisson (Brisson 2011 p29) Sayre (Sayre 1996 p65) e Turnbull (Turnbull 1998 p 16) assumem a identidade entre a teoria do Feacutedon e a teoria do Parmecircnides

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A hipoacutetese das Formas contradiz o conteuacutedo da premissa 4 do argumento

de Zenatildeo ao explicar aquilo que esta premissa afirmava ser impossiacutevel a

copresenccedila de propriedades opostas nos objetos sensiacuteveis Provada a falsidade da

premissa nuacutemero 4 do argumento de Zenatildeo todo paradoxo eacute desfeito Afinal a

reduccedilatildeo ao absurdo da assunccedilatildeo inicial de que as coisas satildeo muacuteltiplas depende

diretamente da existecircncia de contradiccedilatildeo entre as premissas 3 e 4

De acordo com a explicaccedilatildeo acima esboccedilada o paradoxo de Zenatildeo eacute

solucionado por Soacutecrates por meio da distinccedilatildeo ontoloacutegica entre Formas e objetos

sensiacuteveis que encontramos de maneira expliacutecita nos diaacutelogos da fase meacutedia e

impliacutecita nos argumentos dos primeiros diaacutelogos No decorrer das proacuteximas

seccedilotildees investigaremos se a ontologia defendida por Soacutecrates no Parmecircnides

pode ser identificada com aquela apresentada nestes diaacutelogos Em especial

investigaremos se a compreensatildeo acerca da natureza da participaccedilatildeo e auto-

predicaccedilatildeo das Formas que emerge da leitura do Parmecircnides pode ser identificada

com o tratamento que Soacutecrates oferece para estes temas nos diaacutelogos anteriores

Por ora basta observar que o vocabulaacuterio empregado sugere esta identificaccedilatildeo

Pois aleacutem de εἶδος tanto αὐτὸ καθ αὑτὸ quanto ὃ ἔστιν satildeo expressotildees

recorrentes nos diaacutelogos platocircnicos Estas expressotildees fazem parte do vocabulaacuterio

relativo agraves Formas que como vimos nos capiacutetulos precedentes eacute cuidadosamente

construiacutedo desde os primeiros diaacutelogos Da mesma maneira microετέχειν e

microεταλαmicroβάνειν satildeo expressotildees tipicamente socraacuteticas e fazem parte do vasto rol

de verbos empregados para descrever a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo entre Formas e

objetos sensiacuteveis tanto nos diaacutelogos iniciais quanto nos diaacutelogos da fase meacutedia

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417 O desafio de Soacutecrates

A proximidade entre a Teoria das Ideias apresentada no Parmecircnides e a

ontologia socraacutetica dos diaacutelogos da fase meacutedia e inicial eacute reafirmada ainda no

desafio lanccedilado por Soacutecrates a seus interlocutores Logo apoacutes a apresentaccedilatildeo das

Formas como soluccedilatildeo ao problema da copresenccedila de opostos Soacutecrates compele

seus interlocutores a demonstrarem nas Formas a validade dos mesmos

problemas que Zenatildeo acabara de apontar nos objetos sensiacuteveis

A passagem possui um problema textual que precisamos enfrentar para

podermos oferecer uma interpretaccedilatildeo adequada ao sentido do texto Trata-se do

aparecimento da expressatildeo αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά em 129b1 O neutro plural dos adjetivos

gregos eacute muitas vezes usado para designar de maneira geneacuterica um conjunto de

coisas que compartilham uma mesma caracteriacutestica Assim entendido o sentido de

expressotildees como τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια seria capturado pelas traduccedilotildees ldquoas

coisas semelhantesrdquo e ldquoas coisas dessemelhantesrdquo

No entanto estas traduccedilotildees estatildeo em claro desacordo com o conteuacutedo da

fala de Soacutecrates em 129a-c Na passagem em questatildeo Soacutecrates afirma que ficaria

assombrado caso algueacutem lhe demonstrasse que αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά venha(m) a se

tornar dessemelhante(s) e τὰ ἀνόmicroοια semelhante(s) Ora como vimos Soacutecrates

havia apresentado as Formas justamente como parte de uma demonstraccedilatildeo de

que ldquoas coisas semelhantesrdquo podem perfeitamente se tornar dessemelhantes e

vice-versa Portanto natildeo podemos adotar a interpretaccedilatildeo mais usual para o uso

do neutro plural de adjetivos na leitura de nossa passagem e somos obrigados a

descartar a hipoacutetese de que as expressotildees tenham como referecircncia um conjunto

geneacuterico de objetos sensiacuteveis sob pena de estarmos atribuindo agrave Soacutecrates uma

niacutetida contradiccedilatildeo Por outro lado caso queiramos identificar estas expressotildees

como designaccedilotildees das Formas nos encontramos novamente em dificuldade

Afinal sabemos que as Formas satildeo caracterizadas por serem uacutenicas Soacute haacute uma

uacutenica Forma da Beleza em oposiccedilatildeo agrave multiplicidade de coisas belas As

expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια no entanto estatildeo no plural

Haacute uma forte tendecircncia entre os comentadores a desqualificar este uso do

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plural e considerar ambas expressotildees como maneiras de se referir agraves Formas23

Apesar desta soluccedilatildeo ser amplamente adotada poucos satildeo os casos de defesa

textual desta leitura Agrave parte a afirmaccedilatildeo de que substantivos plurais gregos

podem ser utilizados de maneira gramaticalmente correta para designar entidades

singulares um uacutenico argumento de caraacuteter textual foi oferecido em defesa da

posiccedilatildeo de que as expressotildees representam maneiras idiossincraacuteticas de se referir

agraves Formas Rist em Equals and Intermediates in Plato (1964) argumenta que o

pronome τούτων na sentenccedila imediatamente seguinte (129b3) refere-se agrave

expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια De acordo com Rist como a sentenccedila

afirma que certas coisas participam de τούτων (τὰ τούτων microετέχοντα) ficaria

claro que as expressotildees dizem respeito agrave Formas pois soacute Formas podem ser

objeto de participaccedilatildeo (Rist 1964 p30)

Sendo assim caso o pronome τούτων seja de fato anafoacuterico em relaccedilatildeo agraves

expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια somos obrigados a aceitar o argumento de

Rist e admitir que as expressotildees no neutro plural em 129b1 designam as Formas

do Semelhante e do Dessemelhante No entanto esta natildeo parece ser a uacutenica opccedilatildeo

de leitura Na passagem em questatildeo o pronome τούτων estaacute associado agrave

ἀmicroφοτέρων e como observa Calvert ldquoquando Platatildeo se refere agraves Formas do

Semelhante e do Dessemelhante ele alterna entre o uso do dual (τούτοιν δυοῖν

ὄντοιν 129 a1 ἀmicroφοῖν a8) e o plural ἀmicroφοτέρων (a6 a7)rdquo (Clavert 1982 p53)

Nestes dois uacuteltimos casos (a6 a7) eacute certamente inquestionaacutevel que Platatildeo estaacute

usando ἀmicroφοτέρων para se referir agraves Formas Sendo assim quando lemos τούτων

ἀmicroφοτέρων em 129b3 o mais natural eacute considerar que esta expressatildeo refere-se agraves

Formas do Semelhante e do Dessemelhante apresentadas anteriormente e natildeo a

αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια

Portanto se aceitamos que estamos lidando com entidades que natildeo estatildeo

sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos e no entanto natildeo estamos nos referindo agraves

Formas os candidatos naturais ao posto de referecircncia das expressotildees αὐτὰ τὰ

ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια satildeo as propriedades imanentes da semelhanccedila e

dessemelhanccedila Como vimos no Feacutedon propriedades imanentes satildeo evocadas

23 Scolnicov por exemplo afirma categoriacamente ldquoO plural eacute irrelevanterdquo (Scolnicov 2003

p49) Allen (Allen 1997 p89) Brisson (Brisson 2011 p90) Rickless (Rickless 2007 p48) Sayre (Sayre 1996 p6) e Teloh (Teloh 1981 p152) tambeacutem tratam as expressotildees como maneiras de se referir agraves Formas Segundo Miller o uso de expressotildees plurais para designar as Formas representa uma ldquoconfusatildeo no pensamento de Soacutecratesrdquo reflexo do caraacuteter incipiente

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como parte do argumento que procura provar a diferenccedila ontoloacutegica entre Formas

e objetos sensiacuteveis (74b7-c5) e em seguida fazem parte da explicaccedilatildeo da

copresenccedila de opostos em Simmias (101-103) Em ambas passagens as

propriedades imanentes se diferenciam dos objetos sensiacuteveis que as possuem por

natildeo estarem elas mesmas sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza estes

objetos O paralelismo entre estas passagens do Feacutedon e nossa passagem do

Parmecircnides torna-se evidente quando consideramos que αὐτὰ τὰ ἴσα (Feacuted74c) e

αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά (Parm129b1) representam as uacutenicas ocorrecircncias de expressotildees da

forma αὐτὰ + adjetivo neutro plural no corpus platocircnico

Sendo assim encontramos total uniformidade no emprego deste tipo de

expressatildeo em Platatildeo ambas ocorrecircncias satildeo usadas para designar as propriedades

imanentes dos objetos sensiacuteveis adquiridas por meio da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo

que estes objetos mantecircm com as Formas Tal como as Formas as propriedades

imanentes natildeo estatildeo sujeitas agrave copresenccedila de opostos Poreacutem em oposiccedilatildeo agrave

unidade caracteriacutestica das Formas estas entidades satildeo muacuteltiplas e possuem um

tipo de existecircncia dependente dos objetos sensiacutevieis pois estatildeo localizadas nas

coisas (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος Feacuted102d ἡmicroεῖς ὁmicroοιότητος ἔχοmicroεν Parm130b)

Estando resolvida a questatildeo da referecircncia das expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e

τὰ ἀνόmicroοια podemos analisar o desafio lanccedilado por Soacutecrates e nos questionar se

neste desafio estatildeo mantidas as caracteriacutesticas da ontologia defendida por

Soacutecrates nos diaacutelogos da juventude e da fase meacutedia ou natildeo A passagem pode ser

dividia em quatro partes

1) 129b1 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que as

propriedades imanentes αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια podem receber

predicados opostos

ldquoPois se algueacutem mostrasse que αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά se tornam dessemelhantes ou que

τὰ ἀνόmicroοια se tornam semelhantes seria assombroso creiordquo

2) 129b6-c1 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que

a Forma da Unidade eacute muacuteltiplas coisas e o Muacuteltipo eacute um

da Teoria das Ideias apresentada no Parmecircnides (Miller 1986 p38)

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ldquoMas se aquilo que eacute realmente Um algueacutem demonstrar que isso mesmo eacute

muacuteltiplas coisas e de outra parte que o Muacuteltiplo eacute um jaacute disso me espantareirdquo

3) 129c1-3 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que

as Formas satildeo tanto unas quanto muacuteltiplas

ldquoE do mesmo modo com respeito a todas as outras coisas se algueacutem mostrar que

em si mesmos os gecircneros mesmos e as Formas mesmas satildeo afetados por essas

afecccedilotildees contraacuterias [unidade e multiplicidade] isso seraacute digno de espantordquo

4) 129d6-130a1 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem

como as Formas podem estar misturadas e separadas entre si

ldquoMas dentre as coisas que haacute pouco mencionei se algueacutem em primeiro lugar separasse uma das outras as Formas mesmas em si mesmas ndash por exemplo a Semelhanccedila a Dessemelhanccedila a Quantidade o Um o Repouso o Movimento e todas as coisas deste tipo ndash em seguida mostrasse que estas entre si podem ser misturadas e separadas eu pelo menos disse [Soacutecrates] ficaria encantado cheio de espanto Zenatildeo Quanto agravequelas coisas [sensiacuteveis] acredito terem sido tratadas por ti com muita determinaccedilatildeo Entretanto eu como digo me encantaria muito mais se algueacutem pudesse essa mesma aporia da maneira como expuseste no caso das coisas que se vecircem exibi-la dessa mesma maneira tambeacutem no caso das coisas apreendidas pelo raciociacutenio entrelaccediladas de todos os modos nas Formas mesmasrdquo

1 e 2 representam basicamente o mesmo tipo de desafio Em 1 Soacutecrates

diz que ficaria assombrado caso lhe mostrassem que as propriedades imanentes

αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια estatildeo sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos Em 2 este

desafio eacute expandido para as Formas da Unidade e da Multiplicidade e Soacutecrates

pede que lhe seja demonstrado como o Um eacute muacuteltiplas coisas e o Muacuteltiplo um No

Feacutedon (102d-e) Soacutecrates havia afirmado que o Grande em si (αὐτὸ τὸ microέγεθος)

jamais apareceraacute como grande e pequeno e que tampouco o Gr ande (τὸ ἐν ἡmicroῖν

microέγεθος ) admitiraacute o pequeno ou consentiraacute em receber a pequenez e se tornar

contraacuterio ao que ele eacute (102e2) A imunidade agrave predicaccedilatildeo de opostos eacute portanto

vaacutelida igualmente para Formas e propriedades imanentes Neste ponto αὐτὰ τὰ

ὅmicroοιά e o Semelhante em si (αὐτὸ καθαὑτὸ εἶδός ὁmicroοιότητος) diferenciam-se dos

objetos sensiacuteveis e Soacutecrates desafia seus interlocutores a lhe demonstrarem como

qualquer uma destas entidades pode estar sujeita agrave copresenccedila de opostos que

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caracteriza os objetos empiacutericos

Logo apoacutes intimar Zenatildeo e Parmecircnides a lhe demonstrarem que a Unidade

(ὃ ἔστιν ἕν) eacute muacuteltiplas coisas e que o Muacuteltiplo eacute um Soacutecrates muda o foco de sua

argumentaccedilatildeo e deixando de falar de um par especiacutefico de Formas passa a tratar

de Formas em geral (περὶ τῶν ἄλλων ἁπάντων) Soacutecrates entatildeo compele seus

interlocutores a lhe provarem 3 que as Formas elas mesmas satildeo afetadas

simultaneamente pela unidade e multiplicidade Os comentadores costumam

entender o desafio expresso em 3 como a generalizaccedilatildeo do problema da

copresenccedila de opostos apresentado em 1 e 2 Contudo como dito anteriormente

natildeo podemos considerar uma mera casualidade o fato de Soacutecrates escolher as

propriedades da unidade e da multiplicidade para operar esta generalizaccedilatildeo O

debate entre Soacutecrates e Zenatildeo eacute motivado pelo tema da unidademultiplicidade e a

reintroduccedilatildeo deste par de conceitos neste momento remete o leitor agrave distinccedilatildeo

inicial entre a multiplicidade de objetos sensiacuteveis (as coisas que chamamos

muitas τἆλλα ἃ δὴ πολλὰ καλοῦmicroεν) e a unidade caracteriacutestica das Formas

(τούτοιν δὲ δυοῖν ὄντοιν) Devemos entender portanto que Soacutecrates em 3 natildeo

estaacute apenas generalizando o problema da copresenccedila de opostos para o conjunto

de todas as Formas mas estaacute apresentando um novo desafio Soacutecrates desafia seus

interlocutores a lhe provarem que as Formas entidades caracterizadas por serem

uacutenicas e indivisiacuteveis podem ser caracterizadas pela multiplicidade encontrada nos

objetos sensiacuteveis

Como vimos o paradoxo de Zenatildeo pressupotildee a afirmaccedilatildeo da

multiplicidade das coisas em dois niacuteveis distintos Segundo Zenatildeo os objetos

sensiacuteveis satildeo muacuteltiplos tanto numericamente quanto por serem divisiacuteveis em

muacuteltiplas partes e receberem muacuteltiplos predicados Em paralelo a esta dualidade

inerente ao conceito de multiplicidade adotado por Zenatildeo as Formas platocircnicas

satildeo ditas uacutenicas tanto numericamente por soacute haver uma Forma da Beleza em

contraste com a pluralidade de objetos belos quanto por serem incompostas e

indivisiacuteveis Neste momento do desafio devemos pressupor que os dois sentidos

de unidade e multiplicidade estatildeo em jogo e que Soacutecrates estaacute desafiando seus

interlocutores a demonstrarem a multiplicidade das Formas tout court seja ela

entendida como a existecircncia de uma multiplicidade numeacuterica (diversas Formas da

Beleza por exemplo) ou uma multiplicidade de partes ou atributos de uma mesma

Forma

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Por fim em 4 Soacutecrates afirma que ficaria surpreso caso algueacutem

ldquoseparasse uma das outras as Formas e em seguida mostrasse que estas Formas

entre si podem ser misturadas e separadasrdquo O sentido preciso desta afirmaccedilatildeo

natildeo estaacute claro de iniacutecio e seu significado deve ser acessado pela explicaccedilatildeo que se

segue Nas sentenccedilas seguintes Soacutecrates esclarece que sua surpresa estaacute

relacionada agrave possibilidade de algueacutem expor no caso das Formas a aporia que

Zenatildeo acabara de expor com relaccedilatildeo agraves coisas sensiacuteveis Como vimos a aporia

apresentada por Zenatildeo consiste em afirmar que os objetos sensiacuteveis satildeo muacuteltiplos

e por conta disso estatildeo sujeitos agrave predicaccedilatildeo de propriedades opostas Portanto

devemos entender que o entrelaccedilamento ao qual se refere Soacutecrates implica na

demonstraccedilatildeo de que as Formas satildeo tal como os objetos sensiacuteveis muacuteltiplas e

por conta desta multiplicidade estatildeo sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos

Em sua fala Soacutecrates enumera uma seacuterie de pares de Formas opostas

SemelhanccedilaDessemelhanccedila QuantidadeUm RepousoMovimento Como

observa Allen (Allen 1997 p101) o pronome ταῦτα em 129e2 possui como

antecedente estas Formas tomadas como pares e natildeo cada uma delas

isoladamente Sendo assim a passagem afirma que natildeo podemos considerar cada

um destes pares de Formas como separados e ao mesmo tempo supor que os dois

membros do par estatildeo misturados e caracterizando um ao outro

Ora estaacute claro que o entrelaccedilamento ou participaccedilatildeo de uma Forma em

outra faria com que elas perdessem sua unidade e uniformidade caracteriacutestica e

passassem a possuir uma multiplicidade de partes e atributos24 Aleacutem disso caso

Formas opostas estejam entrelaccediladas entre si cada uma delas teraacute um predicado

contraacuterio agrave sua auto-predicaccedilatildeo (a Semelhanccedila seraacute dessemelhante o Movimento

estaraacute em repouso etc) Portanto em 4 Soacutecrates recapitula os desafios expressos

anteriormente e reafirma a distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis expressa em

sua soluccedilatildeo ao paradoxo de Zenatildeo

O desafio apresentado por Soacutecrates retoma portanto aspectos

fundamentais da apresentaccedilatildeo da Teoria das Ideias a uniformidade das Formas

que se caracterizam por estarem imunes agrave predicaccedilatildeo de opostos e a unidade

24 No argumento desenvolvido em 142c8-143a2 por exemplo conclui-se que se o um eacute entatildeo o

um eacute constituido de partes Pois afirmar que ldquoo um eacuterdquo equivale a afirmar que uma parte do um participa da unidade e outra parte participa do ser (οὐσίας microετέχειν) O argumento pressupotildee portanto que a participaccedilatildeo em mais de uma Forma (entrelaccedilamento) eacute suficiente para concluir a existecircncia de muacuteltiplas partes do objeto participante

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destas entidades que satildeo numericamente singulares Estas caracteriacutesticas estatildeo

mutuamente implicadas pois as Formas satildeo ditas uacutenicas e homogecircneas por serem

de maneira exclusiva auto-predicativas Em contraste como as coisas sensiacuteveis

sujeitas a uma diversidade de predicados inclusive predicados opostos as Formas

satildeo exclusivamente aquilo que elas satildeo A Forma F eacute apenas F e nada mais

estando imune agrave presenccedila da propriedade oposta natildeo-F e de maneira geral a

qualquer outro tipo de predicaccedilatildeo25 Estas caracteriacutesticas das Formas satildeo a base da

distinccedilatildeo ontoloacutegica entre Formas e objetos sensiacuteveis e se encontram articuladas

na soluccedilatildeo de Soacutecrates para o paradoxo de Zenatildeo Zenatildeo acredita que as coisas

satildeo muacuteltiplas e por causa disso estatildeo sempre sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos

Com o objetivo de desfazer o paradoxo Soacutecrates apresenta um novo tipo de

entidade caracterizada pela sua unidade e uniformidade Segundo Soacutecrates estas

entidades podem desfazer o problema da copresenccedila de opostos e serem a causa

das propriedades encontradas nos objetos sensiacuteveis por estarem elas mesmas

imunes agrave multiplicidade e copresenccedila de opostos encontrada nos objetos

empiacutericos

Sendo assim a demonstraccedilatildeo de que as Formas satildeo elas mesmas sujeitas

agrave copresenccedila de opostos retiraria destas entidades a capacidade de se apresentarem

como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis Pois segundo a compreensatildeo

de causalidade apresentada por Soacutecrates no Feacutedon eacute justamente o fato do Grande

nunca se apresentar como pequeno o que faz dele o candidato mais adequado para

o cargo de causa da grandeza das coisas sensiacuteveis A Forma da Beleza deve ser

incondicionalmente bela para assegurar o seu papel de causa da beleza nas coisas

Caso contraacuterio a Beleza ela mesma violaria um dos princiacutepios baacutesicos da

causalidade e poderia ser considerada tatildeo responsaacutevel pela beleza das coisas

quanto os adereccedilos de ouro que adornam Helena e a tornam bela para um

banquete poreacutem feia e repulsiva para um funeral Por outro lado a atribuiccedilatildeo de

multiplicidade agraves Formas abriria a possibilidade do paradoxo de Zenatildeo se repetir

em cada uma destas entidades quer entendamos esta multiplicidade como uma

multiplicidade numeacuterica ou como uma multiplicidade de atributos Pois ou bem

cada Forma seria composta por partes semelhantes entre si (por serem partes de

25 As afirmaccedilotildees de que F eacute uacutenica uniforme indivisiacutevel etc representam meta-predicados

atribuidos a todas as Formas Estes meta-predicados devem ser entendidos como afirmaccedilotildees restritas ao acircmbito da Teoria das Ideias e natildeo entram em conflito com a auto-predicaccedilatildeo das

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uma mesma Forma) e ao mesmo tempo dessemelhantes (por serem partes

distintas) ou bem as muacuteltiplas Formas de F seriam semelhantes (por serem todas

elas Formas de uma mesma propriedade F) e dessemelhantes (por serem

numericamente distintas) Em ambos os casos as Formas estariam sujeitas aos

mesmos problemas encontrados nos objetos sensiacuteveis que supostamente

deveriam solucionar

O desafio lanccedilado por Soacutecrates eacute portanto uma consequecircncia direta da

sua soluccedilatildeo para o paradoxo de Zenatildeo A validade da hipoacutetese das Formas como

soluccedilatildeo ao paradoxo depende destas entidades manterem estes dois aspectos

fundamentais de sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica imunidade agrave copresenccedila de opostos e

unidade (numeacuterica e aspectual) Afinal estas caracteriacutesticas satildeo a base da

diferenciaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis e a distinccedilatildeo entre estes dois tipos

de entidade natildeo restaria estabelecida caso estas caracteriacutesticas proacuteprias dos

objetos sensiacuteveis fossem encontradas tambeacutem nas Formas Portanto caso a

multiplicidade e predicaccedilatildeo de opostos apontadas por Zenatildeo nos objetos sensiacuteveis

sejam vaacutelidas paras Formas a soluccedilatildeo apresentada por Soacutecrates se mostraraacute falsa

e o paradoxo de Zenatildeo permaneceraacute irresoluto

A importacircncia do desafio de Soacutecrates para a compreensatildeo da estrutura do

Parmecircnides dificilmente pode ser superestimada A fala em que Soacutecrates

soluciona o paradoxo de Zenatildeo e em seguida desafia seus interlocutores a

provarem a falsidade de sua resoluccedilatildeo representa o mais longo discurso

ininterrupto do diaacutelogo e possui um forte apelo dramaacutetico No desafio que encerra

esta fala Soacutecrates usa as palavras ldquomaravilhadordquo ldquoencantadordquo e seus cognatos

nada menos do que oito vezes e deixa bem claro ao leitor quatildeo arraigado eacute o seu

comprometimento com as teses da uniformidade e unidade das Formas e quatildeo

chocante e arrasador seria o reconhecimento da falsidade destes princiacutepios

fundamentais de sua teoria Esta insistecircncia no tema do maravilhamento de

Soacutecrates faz parte da estrateacutegia dramaacutetica adotada por Platatildeo que pretende

chamar atenccedilatildeo para importacircncia destas duas caracteriacutesticas fundamentais da

constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e antecipar para o leitor o esquema geral do

ataque agrave Teoria das Ideias que seraacute realizado por Parmecircnides Como veremos

Parmecircnides aceita o desafio lanccedilado por Soacutecrates e localiza suas criacuteticas

Formas

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justamente nos princiacutepios de uniformidade e unidade das Formas Por meio da

sequecircncia de paradoxos que compotildeem o restante da primeira parte do diaacutelogo

Parmecircnides iraacute provar a Soacutecrates como estas caracteriacutesticas das Formas mostram-

se irreconciliaacuteveis com a noccedilatildeo de participaccedilatildeo e de maneira geral com a tese de

que as Formas satildeo causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis

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42 As criacuteticas de Parmecircnides agrave teoria da participaccedilatildeo

Apoacutes Soacutecrates terminar sua longa fala Parmecircnides que ateacute entatildeo ouvia a

discussatildeo calado volta-se para Soacutecrates e passa a formular uma seacuterie de criacuteticas agrave

distinccedilatildeo ontoloacutegica que este havia apresentado Tal como prenunciado na

complexa estrutura narrativa delineada pelo proacutelogo do diaacutelogo a fala de

Parmecircnides emerge em continuidade ao debate anteriormente desenvolvido por

Soacutecrates e Zenatildeo e toma como ponto de partida os resultados obtidos pela

discussatildeo anterior Em especial a argumentaccedilatildeo desenvolvida por Parmecircnides

pretende recuperar em forma e intenccedilatildeo o paradoxo de abertura do diaacutelogo

Formalmente as criacuteticas de Parmecircnides retomam o tipo de argumentaccedilatildeo

em reduccedilatildeo ao absurdo na qual o paradoxo de Zenatildeo havia sido formulado A

estrateacutegia consiste em aceitar de maneira provisoacuteria a teoria apresentada por

Soacutecrates com o intuito de derivar a partir do conjunto de hipoacuteteses que

constituem esta teoria contradiccedilotildees internas ou consequecircncias inaceitaacuteveis Em

intenccedilatildeo as criacuteticas pretendem restabelecer a validade deste paradoxo por meio da

demonstraccedilatildeo da inviabilidade da soluccedilatildeo oferecida por Soacutecrates Assim do

mesmo modo que Zenatildeo havia formulado seu paradoxo pretendendo proteger

Parmecircnides dos ataques de seus detratores Parmecircnides apresenta suas criacuteticas

como uma defesa de Zenatildeo a quem Soacutecrates afirma ser capaz de refutar

Em linhas gerais as criacuteticas de Parmecircnides seguem a seguinte estrutura

Parmecircnides comeccedila questionando Soacutecrates acerca da extensatildeo e populaccedilatildeo do

ldquomundo da Ideiasrdquo isto eacute que tipos de objetos sensiacuteveis possuem uma Forma

correspondente Em seguida Parmecircnides desenvolve uma seacuterie de paradoxos

intimamente relacionados entre si voltados contra a noccedilatildeo de participaccedilatildeo

adotada por Soacutecrates Na tentativa de escapar destas criacuteticas Soacutecrates procura

oferecer explicaccedilotildees distintas para natureza da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo e propotildee

primeiro que as Formas sejam entendidas como pensamentos e em seguida

como paradigmas Contudo ambas propostas levam a mais paradoxos e

Parmecircnides acaba por concluir que a participaccedilatildeo eacute impossiacutevel e que de acordo

com a concepccedilatildeo socraacutetica do que eacute uma Forma estas entidades estariam

completamente isoladas da realidade sensiacutevel o que as tornaria incognosciacuteveis e

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irrelevantes

Caso sejam consideradas vaacutelidas as criacuteticas oferecidas por Parmecircnides

representam um ataque avassalador agrave teoria apresentada por Soacutecrates Este fato

parece ser reconhecido por Soacutecrates que diz ao final dos ataques de Parmecircnides

natildeo vislumbrar uma saiacuteda nos garantindo que ao menos no contexto dramaacutetico

do diaacutelogo o criticismo parmeniacutedico eacute tido como procedente Contudo a despeito

da aporia e do embaraccedilo demonstrados por Soacutecrates alguns comentadores negam

a importacircncia destes argumentos e afirmam que Platatildeo nunca admitiu a

legitimidade das criacuteticas aqui apresentadas

Uma maneira de desqualificar a argumentaccedilatildeo de Parmecircnide que

precisamos desde jaacute analisar consiste em reconhecer a validade dos argumentos

poreacutem negar a sua relevacircncia com relaccedilatildeo agrave Teoria das Ideias De acordo com este

tipo de interpretaccedilatildeo os paradoxos apresentados por Parmecircnides natildeo teriam como

alvo a Teoria das Ideias platocircnicas mas estariam direcionadas contra concepccedilotildees

heterodoxas acerca da natureza das Formas adotadas por membros da Academia

cujas teorias Platatildeo estaria atacando

O alvo mais constantemente apresentado eacute Eudoxo de Cnidos Eudoxo foi

um astrocircnomo e matemaacutetico extremamente respeitado e seu nome estaacute

relacionado a uma seacuterie de descobertas matemaacuteticas de seu tempo Segundo

algumas fontes Eudoxo seria associado a Academia e teria inclusive assumido o

cargo de diretor da escola (sxolarxhj) durante a viagem de Platatildeo para Sciciacutelia

em 366 (cf Philoch fr223) De fato vaacuterios testemunhos nos levam a crer que em

algum momento de sua carreira filosoacutefica Eudoxo desenvolveu uma teoria

proacutepria acerca da natureza das Formas e de acordo com o comentaacuterio de

Alexandre de Afrodiacutesia esta teoria estaria criticada por uma seacuterie de argumentos

do tratado aristoteacutelico PERI IDEWN (In Methaph 97-98)

Em Aristotles Criticism of Plato and The Academy Cherniss reconhece

uma grande similaridade entre as criacuteticas descritas por Alexandre e as criacuteticas que

encontramos no Parmecircnides A partir da identificaccedilatildeo entre estas duas seacuteries de

argumentos Cherniss conclui que o criticismo apresentado em nosso diaacutelogo estaacute

direcionado contra a noccedilatildeo imanentista de Formas defendida por Eudoxo e natildeo

contra a Teoria das Ideias descrita nos diaacutelogos de Platatildeo (Cherniss 1944 p144)

Esta interpretaccedilatildeo eacute posteriormente endossada por Cornford para quem as

criacuteticas do Parmecircnides devem ser entendidas como a rejeiccedilatildeo do proacuteprio Platatildeo agrave

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compreensatildeo rudimentar de participaccedilatildeo defendida por Eudoxo (Cornford 1951

p87)26

Recentemente outro membro da Academia foi oferecido como alvo dos

argumentos do Parmecircnides Em The Fog Dispelled (2010) Graeser propotildee que o

Parmecircnides deve ser entendido como uma refutaccedilatildeo da concepccedilatildeo de Formas

defendida por Espeusipo sobrinho de Platatildeo e sxolarxhj da Academia durante

os oito anos seguintes agrave sua morte Segundo Graeser no Parmecircnides ldquoPlatatildeo guia

seus leitores agrave compreensatildeo de que seu criticismo das Formas inteligiacuteveis reverte-

se contra a teoria dos princiacutepios de Espeusipordquo (Graeser 2010 p17)

Para podermos avaliar a viabilidade do tipo de hipoacutetese interpretativa

defendida por Cherniss Cornford e Graeser segundo a qual as criacuteticas de

Parmecircnides estatildeo endereccediladas a uma outra teoria que natildeo a proacutepria Teoria das

Ideias encontrada nos diaacutelogos platocircnicos precisamos recapitular as

caracteriacutesticas da distinccedilatildeo ontoloacutegica oferecida por Soacutecrates como soluccedilatildeo ao

paradoxo de Zenatildeo No Parmecircnides Soacutecrates apresenta uma teoria segundo a

qual

1) Existem Formas (εἴδη) entidades em si (αὐτὰ καθ αὑτὰ τὰ)

separadas (χωρὶς) dos objetos sensiacuteveis (128e6-130b-5) e

conhecidas pela razatildeo (ἐν τοῖς λογισmicroῷ λαmicroβανοmicroένοις) (129e5-

130a2)

2) Estas Formas satildeo entidades auto-predicativas isto eacute a Forma do

Grande eacute grande a Forma do Pequeno eacute pequena etc (132a)

3) As Formas satildeo entidades singulares e indivisiacuteveis (ἓν ἕκαστον

εἶδος εἶναι) em oposiccedilatildeo agrave multiplicidade numeacuterica e

complexidade mereoloacutegica que caracteriza os objetos sensiacuteveis

4) As Formas satildeo entidades ldquounicas em aspectordquo (microονοειδὲς) isto eacute

imunes agrave copresenccedila de propriedades opostas Em oposiccedilatildeo a isto

os objetos sensiacuteveis estatildeo sempre sujeitos a este tipo de

26 Em Eudoxos in The Parmecircnides (1973) Malcolm Shofield defende que a teoria de Eudoxo eacute

discutida no Parmecircnides poreacutem natildeo na primeira parte do diaacutelogo Shoefield acredita que alguns argumentos da longa seacuterie de deduccedilotildees que compotildee a segunda parte do Parmecircnides precisam ser entendidos sobre o background da teoria de Eudoxo Como o proacuteprio Shofield reconhece (Shoefied 1973 p4-5) a hipoacutetese de que a teoria de Eudoxo eacute discutida em algumas deduccedilotildees da segunda parte do Parmecircnides jaacute havia sido levantada por Brumbaugh (cf Brumbaugh 1961 p25-26)

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copresenccedila (129b6-c1)

5) Os objetos sensiacuteveis por outro lado participam das Formas e eacute

pela participaccedilatildeo (microετάληψις) nas Formas que adquirem as

propiedades que possuem (129a3-129b1) e os nomes pelos quais

satildeo chamadas (ἐπωνυmicroία) (130e5-131a2)

Como qualquer leitor dos diaacutelogos platocircnicos pode facilmente perceber as

sentenccedilas listadas acima definem de maneira inequiacutevoca a Teoria das Ideias que

delineamos nos capiacutetulos precedentes Como vimos a existecircncia de Formas

entidades separadas dos objetos empiacutericos e detentoras de um estatuto ontoloacutegico

proacuteprio estaacute pressuposta desde os diaacutelogos inicias Estas entidades satildeo

caracterizadas por serem inteligiacuteveis isto eacute captadas unicamente pela razatildeo

(Feacutedon 65d4-66a10) sempre idecircnticas a si mesmas e auto-predicativas

(Protaacutegoras 330c7-e1 Hiacuteppias Maior 292e Eutidemos 301b5-c2 e Feacutedon 100c4-

6) estando portanto imunes agrave predicaccedilatildeo de opostos (Hiacuteppias Maior 291d1-3

Feacutedon 102e5-6 Banquete 211a2-5 Repuacuteblica V 479a) Como resultado da soma

destas caracteriacutesticas as Formas satildeo entidades completamente isentas de

pluralidade incapazes de sofrer qualquer tipo de mudanccedila singulares e

indivisiacuteveis (microονοειδὲς ἀσύνθετα Fed78c6)

Por outro lado em oposiccedilatildeo agrave unidade e estabilidade ontoloacutegica

caracteriacutestica das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo descritos por Soacutecrates como

entidades compostas e internamente complexas sujeitas agrave mudanccedila constante e

submetidas a uma infinidade de predicaccedilotildees inclusive opostas (Hiacuteppias Maior

289a3-b7 Feacutedon 74b7-9 102b-c Repuacuteblica 479a-b)

Do mesmo modo o poder causal exercido pelas Formas sobre os objetos

sensiacuteveis e o vocabulaacuterio da participaccedilatildeo a ele relacionado possuem um papel

central nos argumentos dos diaacutelogos e podem ser encontrados desde a busca por

definiccedilotildees do Ecircutifron e do Hippias Maior ateacute os diaacutelogos da fase meacutedia como

Banquete e Feacutedon Assim desde os primeiros diaacutelogos as Formas satildeo

apresentadas como responsaacuteveis pelas caracteriacutesticas dos objetos sensiacuteveis e causa

efetiva das propriedades encontradas nestes objetos

Eacute portanto facilmente constataacutevel que as caracteriacutesticas fundamentais da

Teoria das Ideias estatildeo representadas na listagem acima e mesmo o vocabulaacuterio

empregado por Soacutecrates no Parmecircnides coincide com a terminologia dos diaacutelogos

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anteriores Tendo em vista esta identidade vocabular e conceitual creio que

podemos descartar desde jaacute as interpretaccedilotildees que pretendem identificar qualquer

outra teoria que natildeo a Teoria das Ideias como alvo dos ataques de Parmecircnides

Afinal acreditar que as criacuteticas apresentadas no Parmecircnides estatildeo endereccediladas a

Eudoxo ou a Espeusipo equivale a tornar estas criacuteticas um mero caso de ignoratio

elenchi com relaccedilatildeo a toda argumentaccedilatildeo anteriormente desenvolvida no diaacutelogo

A distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis apresentada por Soacutecrates

como soluccedilatildeo ao paradoxo de Zenatildeo eacute a mesma formulada nos diaacutelogos meacutedios e

da juventude e este fato deve parecer oacutebvio ao leitor do Parmecircnides tanto pelo

vocabulaacuterio empregado por Soacutecrates quanto pelo motivo pelo qual a Teoria das

Ideias eacute trazida agrave discussatildeo Sendo assim seria completamente incompreensiacutevel

que Platatildeo resolvesse representar o personagem Parmecircnides criticando qualquer

outra teoria senatildeo aquela que Soacutecrates apresenta reiteradamente nos diaacutelogos em

que figura como personagem principal e que eacute anunciada no proacuteprio Parmecircnides

como soluccedilatildeo ao paradoxo de Zenatildeo27

27 Haacute ainda outra objeccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo de que as criacuteticas do Parmecircnides estatildeo direcionadas

contra teorias heterodoxas defendidas por membros da Academia em divergecircncia a Platatildeo Como observa Dancy em Two Studies in the Early Academy este tipo de interpretaccedilatildeo depende de uma hipoacutetese cronoloacutegica acerca da data de composiccedilatildeo do Parmecircnides dificilmente verificaacutevel Afinal para admitirmos que o Parmecircnides conteacutem uma criacutetica agrave teoria de Eudoxo ou Espeusipo devemos supor que na ocasiatildeo da composiccedilatildeo do diaacutelogo a teoria criticada jaacute havia sido desenvolvida No entanto nada nos impede de realizar a inferecircncia no sentido oposto e afirmar que Eudoxo ou Espeusipo propuseram suas teorias a partir de uma leitura do Parmecircnides Caso esta uacuteltima hipoacutetese cronoloacutegica esteja correta o Parmecircnides foi escrito antes da formulaccedilatildeo das teorias de Eudoxo e Espeusipo e portanto natildeo poderia conter criacuteticas a estas teorias (cf Dancy 1991 p20-24)

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421 A separaccedilatildeo das Formas

Parmecircnides inicia seu exame enfatizando a distinccedilatildeo fundamental na qual

a hipoacutetese de Soacutecrates estaacute baseada Em sua fala Soacutecrates havia afirmado que o

Semelhante o Dessemelhante o Um o Muacuteltiplo e as demais Formas devem ser

entendidas como entidades em si e por si (αὐτὰ καθ αὑτὰ) detentoras de um

estatuto ontoloacutegico proacuteprio e marcadamente distintas dos objetos sensiacuteveis

Assumindo a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis estabelecida por Soacutecrates

Parmecircnides levanta duas questotildees acerca desta distinccedilatildeo 1) Se foi o proacuteprio

Soacutecrates quem fez a divisatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis e 2) Se a

Semelhanccedila mesma eacute algo separado da semelhanccedila que possuiacutemos e o mesmo

com relaccedilatildeo aos outros termos mencionados por Zenatildeo

ldquoE foi isso entatildeo que expressou Parmecircnides quando ele [Soacutecrates] terminou Soacutecrates disse quatildeo digno eacutes de ser admirado pelo ardor que tens pelos argumentos Mas dize-me 1) tu mesmo assim fizestes a divisatildeo tal como falas de um lado certas coisas mesmas de outro as coisas que delas participam E 2) te parece a semelhanccedila mesma ser algo separada da semelhanccedila que temos e tambeacutem o um e as muacuteltiplas coisas e todas as coisas que haacute pouco ouviste de Zenatildeo Parece-me que sim disse Soacutecratesrdquo ὅπερ οὖν καὶ παυσαmicroένου αὐτοῦ εἰπεῖν τὸν Παρmicroενίδην Ὦ Σώκρατες φάναι ὡς ἄξιος εἶ ἄγασθαι τῆς ὁρmicroῆς τῆς ἐπὶ τοὺς λόγους καί microοι εἰπέ 1) αὐτὸς σὺ οὕτω διῄρησαι ὡς λέγεις χωρὶς microὲν εἴδη αὐτὰ ἄττα χωρὶς δὲ τὰ τούτων αὖ microετέχοντα καί 2) τί σοι δοκεῖ εἶναι αὐτὴ ὁmicroοιότης χωρὶς ἧς ἡmicroεῖς ὁmicroοιότητος ἔχοmicroεν καὶ ἓν δὴ καὶ πολλὰ καὶ πάντα ὅσα νυνδὴ Ζήνωνος ἤκουες Ἔmicroοιγε φάναι τὸν Σωκράτη (130b1-5)

Parmecircnides destaca o tema da separaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis

mencionando a preposiccedilatildeoadveacuterbio χωρίς (separadoseparadamente) nada menos

do que trecircs vezes em apenas quatro linhas Devemos entender a insistecircncia de

Parmecircnides sobre este ponto como um artifiacutecio dramaacutetico cujo objetivo eacute chamar

a atenccedilatildeo do leitor para questatildeo da ldquoseparaccedilatildeordquo entre Formas e objetos sensiacuteveis

na qual a teoria de Soacutecrates estaacute fundamentada Soacutecrates jaacute havia usado o termo

χωρίς com relaccedilatildeo agraves Formas anteriormente (διαιρῆται χωρὶς αὐτὰ καθ αὑτὰ τὰ

εἴδη 129d7) E de fato sua teoria parece envolver algum modo de separaccedilatildeo entre

duas classes distintas de objetos pois Soacutecrates afirma haver aleacutem das muacuteltiplas

coisas apontadas por Zenatildeo um outro conjunto de objetos distintos das coisas

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sensiacuteveis e detentores de um estatuto ontoloacutegico proacuteprio as Formas Mas o que

significa afirmar que as Formas satildeo entidades separadas Com o que exatamente

estaria Soacutecrates se comprometendo ao responder afirmativamente agrave pergunta de

Parmecircnides

Em seu sentido mais baacutesico podemos entender a afirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo

entre duas entidades como equivalente agrave atribuiccedilatildeo de natildeo-identidade numeacuterica

entre elas Assim compreendido o termo ldquoseparaccedilatildeordquo natildeo teria outro papel senatildeo

enfatizar o fato pressuposto pela teoria apresentada por Soacutecrates de que a Forma

natildeo eacute idecircntica aos objetos que dela participam ou seja se o objeto x participa da

Forma F entatildeo x e F satildeo coisas numericamente distintas isto eacute separadas Uma

segunda interpretaccedilatildeo possiacutevel seria entendermos a afirmaccedilatildeo de separaccedilatildeo como

equivalente agrave afirmaccedilatildeo de independecircncia ontoloacutegica De acordo com este sentido

uma coisas eacute separada da outra se ela pode existir independentemente da outra

Portanto nesta segunda acepccedilatildeo do termo x eacute separado de y se x pode continuar

a existir ainda que y deixe de existir ou mesmo que y nunca tenha existido28 Uma

terceira opccedilatildeo seria entendermos a afirmaccedilatildeo de que x eacute separado de y como

equivalente ao isolamento ou dissociaccedilatildeo total entre estes dois itens Assim

entendida a separaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis implicaria na inexistecircncia

de contato entre estas entidades tal como quando dizemos que uma mesa estaacute

separada da parede para afirmar que estas duas coisas natildeo estatildeo em contato uma

com a outra

Soacutecrates natildeo pede esclarecimentos a Parmecircnides acerca do que estaacute sendo

entendido por ldquoseparaccedilatildeordquo e noacutes como leitores devemos buscar nas entrelinhas

do texto o significado desta expressatildeo Esta tarefa nos eacute facilitada por Platatildeo que

oferece uma informaccedilatildeo fundamental acerca do sentido da palavra χωρίς por meio

da construccedilatildeo de um paralelismo entre a afirmaccedilatildeo de que a Forma F eacute separada

(χωρίς) e a afirmaccedilatildeo de que a Forma F eacute em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτό)

Em 129b4 Parmecircnides comeccedila seu exame perguntando a Soacutecrates se ele

acredita ser a Semelhanccedila mesma algo separado (χωρίς) da semelhanccedila que noacutes

temos Logo em seguida (130b7-9) Parmecircnides formula o mesmo tipo de questatildeo

utilizando agora a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτό ldquoSeraacute que tambeacutem coisas tais

28 Note que diferente da relaccedilatildeo de natildeo-identidade a indenpendecircncia ontoloacutegica natildeo eacute uma

relaccedilatildeo simeacutetrica Podemos considerar que x possui um modo de existecircncia independente de y e ao mesmo tempo afirmarmos que y eacute ontologicamente dependente de x

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como uma certa Forma em si e por si do Belo e do Justo [existem]rdquo Por fim em

130c1-2 Parmecircnides volta a usar o termo χωρίς e pergunta ldquoMas e uma Forma

do Homem [existiria esta Forma] separada de noacutes e de todos tais como somos

noacutesrdquo

Conforme observa Vlastos durante toda esta arguiccedilatildeo as expressotildees χωρίς

e αὐτὸ καθ αὑτό ldquosatildeo usadas intercaladamente para enunciar a mesma tese

metafiacutesica (metaphysical claim)rdquo (Vlastos 1991 p259) Como Soacutecrates natildeo se

manifesta contra a assimilaccedilatildeo do significado destas duas expressotildees e aceita sem

ressalvas o paralelismo estabelecido por Parmecircnides natildeo temos razatildeo para

duvidar de que as proposiccedilotildees ldquoA Forma F eacute separadardquo e ldquoA Forma F eacute em si e

por sirdquo possuem o mesmo significado e expressam o mesmo fato ontoloacutegico

A identidade entre o significado das expressotildees χωρίς e αὐτὸ καθ αὑτό

natildeo nos seria uacutetil contudo caso natildeo soubeacutessemos o que Soacutecrates entende pela

afirmaccedilatildeo de que as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὸ καθ αὑτό) No

entanto como vimos anteriormente a afirmaccedilatildeo de que as Formas satildeo ldquoem si e

por sirdquo eacute extremamente recorrente nos diaacutelogos e devemos entendecirc-la como

equivalente agrave tese da independecircncia ontoloacutegica das Formas As Formas satildeo ditas

αὐτὰ καθ αὑτὰ devido ao fato de apresentarem um modo de existecircncia

independente com relaccedilatildeo aos objetos sensiacuteveis que delas participam No

Banquete (211a5-b6) por exemplo a foacutermula ainda mais enfaacutetica αὐτὸ καθ αὑτὸ

microεθ αὑτοῦ eacute usada para expressar o modo de existecircncia autossuficente da Forma

do Belo que natildeo eacute afetada em absoluto pelas vicissitudes que as coisas belas do

mundo empiacuterico estatildeo fadadas a sofrer Pois ldquo() nem o nascimento nem a morte

destas coisas o fazem aumentar ou diminuir ou lhe produzem qualquer efeitordquo

(οἷον γιγνοmicroένων τε τῶν ἄλλων καὶ ἀπολλυmicroένων microηδὲν ἐκεῖνο microήτε τι πλέον

microήτε ἔλαττον γίγνεσθαι microηδὲ πάσχειν microηδέν) Gozando de uma modo de

existecircncia plenamente independente e natildeo dependendo de qualquer tipo de relaccedilatildeo

com outras entidades para ser aquilo que eacute o Belo ele mesmo permaneceraacute ldquosendo

sempre uacutenico em aspectordquo (microονοειδὲς ἀεὶ ὄν)

No Feacutedon Soacutecrates usa o mesmo paralelismo entre χωρίς (representado

pelo verbo χωρίζω) e αὐτὸ καθ αὑτό para explicar como o evento da morte que

nada mais eacute do que a separaccedilatildeo da alma do corpo faz com que estes dois

elementos passem a existir em si e por si ou seja de maneira independente

(Feacuted64C5-8) A morte significa para alma o fim da longa dependecircncia

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estabelecida com o corpo ao qual estava relacionada durante a encarnaccedilatildeo Apoacutes a

morte tanto o corpo quanto a alma passam a gozar de um modo de existecircncia

separado O corpo existiraacute de maneira independente poreacutem apenas pelo breve

espaccedilo de tempo que separa o evento da morte de sua dissoluccedilatildeo total enquanto a

alma continuaraacute a existir separada e independente mesmo apoacutes o

desaparecimento do corpo

Em ambas as passagens a locuccedilatildeo αὐτὸ καθ αὑτό eacute usada para designar o

estatuto ontoloacutegico independente de uma entidade Sendo assim dado o

paralelismo apontado por Vlastos entre a afirmaccedilatildeo de que ldquoA Forma F eacute em si e

por sirdquo e a afirmaccedilatildeo de que ldquoA Forma F eacute separadardquo podemos concluir que

Soacutecrates ao concordar que as Formas satildeo entidades separadas estaacute se

comprometendo com a tese de que as Formas existem de maneira completamente

independente dos objetos sensiacuteveis que delas participam natildeo necessitando deles

para serem aquilo que elas satildeo29

A insistecircncia de Parmecircnides sobre a questatildeo da separaccedilatildeo das Formas

representa seu reconhecimento de que a Teoria das Ideias apresentada por

Soacutecrates estaacute fundamentalmente vinculada agrave independecircncia ontoloacutegica destas

entidades Para que as Formas se apresentem como soluccedilatildeo agraves contradiccedilotildees do

mundo empiacuterico eacute imprescindiacutevel que estas entidades demonstrem-se aptas a

manter suas caracteriacutesticas ontoloacutegicas fundamentais a despeito do que aconteccedila

com os objetos que delas participam e sobretudo a despeito de como seja

entendida a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que as vincula aos objetos sensiacuteveis Assim a

29 Alguns comentadores entendem que a pergunta de Parmecircnides pressupotildee a simetria da relaccedilatildeo

de ldquoseparaccedilatildeordquo isto eacute se x eacute separado de y entatildeo y eacute separado de x Este fato por si soacute seria suficiente para descartarmos a hipoacutetese de que o termo χωρίς e por extensatildeo a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτό possam implicar independecircncia ontoloacutegica Afinal a Teoria das Ideias certamente afirma a independecircncia ontoloacutegica das Formas frente aos objetos sensiacuteveis Poreacutem segundo estes autores a afirmaccedilatildeo da indenpendecircncia ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis frente agraves Formas estaacute em clara contradiccedilatildeo com a Teoria das Ideias Portanto como Soacutecrates aceita sem ressalvas a formulaccedilatildeo de Parmecircnides devemos entender o termo χωρίς em algum dos sentidos que natildeo implicam a independecircncia ontoloacutegica da entidade separada (cf Gill 1996 p17 n23) ou devemos admitir que o jovem Soacutecrates natildeo estaacute completamente ciente da tese com a qual estaacute se comprometendo e aceita a independecircncia ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por engano (cf Allen 1997 p23-23) Vlastos apresenta um contra-argumento a estes autores afirmando que este tipo de interpretaccedilatildeo deriva de uma leitura errocircnea do texto Segundo Vlastos natildeo haacute razatildeo para acreditarmo que a relaccedilatildeo de separaccedilatildeo estaacute sendo tratada como uma relaccedilatildeo simeacutetrica porque as ocorrecircncias de χωρίς em 130b2 e b3 devem ser entendida como adveacuterbios de διῄρησαι Assim em b2-3 natildeo estamos falando de ldquoexistir separadamenterdquo mas de ldquodistinguir separadamenterdquo e a afirmaccedilatildeo do modo de existecircncia separado das Formas soacute aconteceria na sentenccedila seguinte b4 onde natildeo haacute sinal algum de simetria (cf Vlastos 1991 p 256)

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ecircnfase no tema da separaccedilatildeo durante a fala de abertura da argumentaccedilatildeo de

Pamecircnides antecipa ao leitor do diaacutelogo o conteuacutedo das criacuteticas que se seguiratildeo

Como veremos os argumentos de Parmecircnides pretendem demonstrar justamente

a impossibilidade das Formas preservarem sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica distintiva

enquanto estejam vinculadas aos objetos sensiacuteveis por meio da relaccedilatildeo de

participaccedilatildeo

O questionamento parmeniacutedico contudo natildeo termina por ai e suas duas

perguntas iniciais satildeo oferecidas em uma uacutenica sentenccedila como dois problemas

intimamente conectados Assim sua segunda questatildeo (130b3-4) eacute enunciada

como um mero corolaacuterio da primeira (130b2-3) se as Formas satildeo entidades

separadas dos objetos sensiacuteveis e estes objetos por sua vez satildeo separados das

Formas haveria entatildeo uma Forma do Semelhante separada da semelhanccedila que as

coisas sensiacuteveis possuem

Soacutecrates responde afirmativamente agraves duas perguntas reconhecendo a

existecircncia de uma Forma do Semelhante separada tanto dos objetos sensiacuteveis

quanto da semelhanccedila que haacute em noacutes Deste modo Parmecircnides torna expliacutecito

aquilo que jaacute havia sido antecipado pelo aparecimento da expressatildeo αὐτὰ τὰ

ὅmicroοιά isto eacute que a teoria apresentada por Soacutecrates pressupotildee a distinccedilatildeo natildeo

somente entre Formas e objetos sensiacuteveis mas tambeacutem entre Formas e

propriedades imanentes Portanto de acordo com Soacutecrates se estamos falando de

dois homens semelhantes entre si nossa anaacutelise pressupotildee a distinccedilatildeo de trecircs tipos

de entidades 1) a Forma do Semelhante 2) os indiviacuteduos em questatildeo e 3) a

semelhanccedila que estes indiviacuteduos possuem devido ao fato de participarem da

Forma do Semelhante

Como Parmecircnides demonstra perceber a distinccedilatildeo entre Formas e

propriedades imanentes eacute uma consequecircncia direta da hipoacutetese da separaccedilatildeo das

Formas As Formas satildeo entidades em si e por si separadas dos objetos sensiacuteveis

mas ao mesmo tempo se apresentam como causas das caracteriacutesticas destes

objetos Sendo assim eacute preciso supor a existecircncia de um resultado nas coisas da

accedilatildeo causal exercida pelas Formas Neste momento da discussatildeo nenhuma

informaccedilatildeo eacute passada ao leitor acerca do estatuto ontoloacutegico deste terceiro

elemento a natildeo ser o fato de que esta entidade encontra-se nas coisas sendo

portanto presente nos objetos sensiacuteveis Parmecircnides iraacute solucionar esta carecircncia

de informaccedilatildeo durante a enunciaccedilatildeo do seu ldquodilema da participaccedilatildeordquo Segundo

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este dilema soacute haacute duas possibilidades de compreensatildeo para o que satildeo as

propriedade imanentes ou bem estas entidades satildeo as proacuteprias Formas presentes

por inteiro nos objetos que delas participam ou bem satildeo partes de Formas

compartilhadas pelos objetos sensiacuteveis por meio da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo

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422 A extensatildeo do conjunto de Formas

Apoacutes se certificar da separaccedilatildeo entre Formas objetos sensiacuteveis e

propriedades imanentes Parmecircnides realiza trecircs perguntas acerca da extensatildeo do

conjunto de Formas Claramente sua intenccedilatildeo eacute determinar para que tipo de

coisas existe uma Formas correspondente De um ponto de vista dramaacutetico seu

interesse sobre esta questatildeo eacute extremamente natural Parmecircnides acabara de ser

apresentado agrave Teoria das Ideias e a primeira duacutevida que lhe surge eacute quais Formas

existem

Soacutecrates jaacute havia concordado que existem as Formas do Semelhante do

Dessemelhante do Um do Muacuteltiplo do Repouso e do Movimento Estas Formas

correspondem a termos gerais de aplicaccedilatildeo irrestrita pois todo elemento da

realidade precisa possuir senatildeo cada um destes pares de predicados ao menos um

membro de cada par30 Parmecircnides natildeo se deteacutem nestas Formas e se refere a elas

apenas pela designaccedilatildeo geneacuterica de ldquoas coisas que haacute pouco ouviste de Zenatildeordquo

(130b5)31

Por outro lado Parmecircnides se mostra bastante interessado em saber se

Soacutecrates admite aleacutem de Formas correspondentes a termos de aplicaccedilatildeo irrestrita

ldquouma Forma em si e por si do Justo e tambeacutem do Belo e do Bom e ainda de todas

as coisas deste tipordquo Ao que Soacutecrates responde confiantemente que sim (130b7-

10)

Ora termos com ldquoo belordquo ldquoo bomrdquo e ldquoo justordquo exemplificam as virtudes

que encontramos em diaacutelogos relacionados agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees

(δίκαιος Eut12d HiacuteppMa287c Goacuterg483d 492a Prot329c-330c Mecircn73e

30 Ryle denomina estes predicados de ldquoconceitos formaisrdquo e enfatiza o fato de que eles se

diferenciam natildeo apenas pela sua universalidade de aplicaccedilatildeo mas tambem pelo seu tipo loacutegico Pois um conceito deste tipo natildeo eacute ldquoespeciacutefico a um toacutepico mas integral a todos os toacutepicos de discurso (subject-matter) (Ryle 1965 p115) Posteriormente Ryle se refere a estes conceitos como ldquosincategoremaacuteticosrdquo (Ryle 165 p131) Gill e Turnbull por sua vez chamam as Formas correspondentes a estes predicados de ldquoFormas estruturaisrdquo (Gill 2012 p29) e (Turnbull 1998 p19) Estes autores parecem estar corretos em identificar a universalidade de aplicaccedilatildeo destes termos como seu caraacuteter distintivo Curiosamente os comentaacuterios mais antigos identificam este grupo de Formas como correspondente a termos matemaacuteticos mas este natildeo parece ser o ponto em questatildeo uma vez que ldquorepousordquo e ldquomovimentordquo estatildeo incluidos na lista

31 No Feacutedro estes mesmo predicados satildeo relacionados ao tipo de argumentaccedilatildeo desenvolvida por Zenatildeo Neste diaacutelogo Soacutecrates afirma que o Palamendes de Eleacuteia (Zenatildeo) eacute capaz de fazer sua audiecircncia crer que as coisas satildeo simultaneamente semelhantes e dessemelhantes unas e muacuteltiplas em repouso e em movimento (Feacutedr261d)

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καλός Liacutes216d HiacuteppMa 287d-304e ἀγαθός Liacutes216d HiacuteppMa287c

Mecircn87d Goacuterg495a Prot352c) Como vimos estes diaacutelogos conteacutem

argumentos em que expressotildees como ldquoo Belo em sirdquo e ldquoa Forma do Belordquo satildeo

entendidas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder causal

exercido por estas entidades nos levou ainda a reconhecer a independecircncia e

prioridade ontoloacutegica inerente a elas e a concluir que a busca por definiccedilotildees dos

diaacutelogos iniciais deve ser entendida desde sempre como uma busca pela Forma

das virtudes e termos morais ali mencionados Nos diaacutelogos da fase meacutedia

Formas correspondentes a virtudes continuam a receber papel proeminente como

por exemplo no Feacutedon (65d 70d-71e 76d 100c-d) no Banquete (210e-211d) e

na Repuacuteblica (479a-b) Sendo assim ao aceitar a existecircncia de Formas

correspondentes a virtudes valores morais e valores eacuteticos Soacutecrates natildeo estaacute

fazendo nada mais do que manter-se coerente com aquilo que um leitor dos

diaacutelogos platocircnicos esperaria

O segundo grupo de Formas a despertar o interesse de Parmecircnides

corresponde ao que chamariacuteamos de termos sortais ldquohomemrdquo ldquofogordquo e ldquoaacuteguardquo32

As perguntas anteriores mencionam Formas correspondentes a adjetivos

predicados incompletos ou caracteriacutesticas das coisas Parmecircnides agora

questiona Soacutecrates acerca da existecircncia de Formas correspondentes a substantivos

ou expressotildees nominais usadas para designar tipos ou classes de coisas Soacutecrates

natildeo se mostra seguro acerca da existecircncia destas Formas mas tambeacutem natildeo nega

que elas possam existir afirmando apenas ter ficado muitas vezes em aporia

acerca deste assunto (130c1-4)

A inseguranccedila de Soacutecrates acerca da existecircncia de Formas correspondentes

a termos sortais eacute facilmente compreendida se levarmos em conta que nos

diaacutelogos anteriores ao Parmecircnides as Formas satildeo apresentadas sobretudo como

uma tentativa de solucionar problemas relacionados com a copresenccedila de opostos

nas coisas sensiacuteveis No primeiro grupo de diaacutelogos Soacutecrates sai em busca de

uma definiccedilatildeo precisa para termos morais por perceber que casos exemplares de

32 Estritamente falando ldquoaacuteguardquo e ldquofogordquo natildeo satildeo termos sortais pelo fato de natildeo poderem receber

adjetivos numeacutericos Assim ldquocubo de gelordquo eacute um termo sortal porque podemos falar ldquotrecircs cubos de gelordquo poreacutem o mesmo natildeo acontece com ldquoaacuteguardquo e ldquofogordquo A caracteriacutestica fundamental que une este grupo de termos eacute portanto o fato de constituirem elementos com funccedilatildeo nominal aos quais adjetivos e predicados satildeo atribuidos e que satildeo oferecidos como resposta a questotildees do tipo ldquoo que eacute istordquo No Fileacutebo (15a) Soacutecrates menciona uma Forma de Homem e no Timeu (51b) uma Forma do Fogo eacute mencionada

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demonstraccedilatildeo de uma determinada virtude podem aparecer sob certos aspectos ou

determinadas condiccedilotildees como um exemplo do viacutecio exatamente oposto Assim

ldquodevolver a cada um o que lhe eacute proacutepriordquo (RepI 331c) pode ser considerado um

exemplo de justiccedila No entanto no caso de algueacutem tomado pela loucura exigir a

devoluccedilatildeo de suas armas a mesma definiccedilatildeo estaraacute apresentando uma caso

daquilo que eacute o oposto da justiccedila Do mesmo modo levar a julgamento aquele que

comete um crime em mateacuteria religiosa parece fazer parte daquilo que eacute a piedade

poreacutem caso esta pessoa seja seu proacuteprio pai e o julgamento venha a levaacute-lo a

morte o mesmo tipo de ato teraacute como resultado um parriciacutedio o pior e mais iacutempio

dos casos de derramamento de sangue

Durante a fase meacutedia o problema da co-presenccedila de opostos continua a

receber um papel de destaque Em uma passagem da Repuacuteblica VII (523a-524e) a

busca por uma soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila de opostos eacute apresentada

por Soacutecrates como a proacutepria razatildeo para o surgimento da Teoria das Ideias

Segundo Soacutecrates eacute o fato de um mesmo dedo parecer simultaneamente grande e

pequeno que nos leva a formular questotildees do tipo ldquoo que eacute o granderdquo ldquoo que eacute o

pequenordquo e a concluir que o Grande e o Pequeno devem ser afirmados como um

tipo de coisa separada dos objetos sensiacuteveis Contudo o dedo enquanto dedo

nunca se apresenta como o contraacuterio de si mesmo e a mente da maioria dos

homens natildeo eacute levada a formular a pergunta o que eacute o dedo E como

consequecircncia a mente da maioria dos homens tambeacutem natildeo eacute levada a postular

uma Forma correspondente ao termo sortal ldquodedordquo

Esta passagem da Repuacuteblica VII assim como nossa passagem do

Parmecircnides natildeo nega a existecircncia de Formas correspondentes a termos como

ldquodedordquo e ldquohomemrdquo De fato no livro X da Repuacuteblica o proacuteprio Soacutecrates afirma

ter o haacutebito de assumir a existecircncia de uma Forma uacutenica para cada conjunto de

coisas muacuteltiplas agraves quais chamamos por um mesmo nome (εἶδος γάρ πού τι ἓν

ἕκαστον εἰώθαmicroεν τίθεσθαι περὶ ἕκαστα τὰ πολλά οἷς ταὐτὸν ὄνοmicroα ἐπιφέροmicroεν

Rep596a6-7) Igualmente em uma passagem sobre do ldquoprodutor de nomesrdquo

(ὀνοmicroατουργός) do Craacutetilo (389a-390a) o mesmo princiacutepio segundo o qual

haveria uma Forma para cada palavra parece estar em jogo No proacuteprio

Parmecircnides Soacutecrates reconhece a possibilidade de uma aceitaccedilatildeo bastante

abrangente para o contigente de Formas afirmando jaacute ter considerado a

possibilidade do princiacutepio de postulaccedilatildeo das Formas ser ldquoo mesmo com relaccedilatildeo a

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todas as coisasrdquo (περὶ πάντων ταὐτόν 130d5-6) A proacutepria observaccedilatildeo de

Parmenides que conclui a passagem sobre a extensatildeo do conjunto de Formas

parece apontar na mesma direccedilatildeo ao prever que nenhuma destas coisas seraacute

desprezada por Soacutecrates assim que a filosofia dele se apoderar completamente

(130e1-4)

Sendo assim a duacutevida demonstrada pelo jovem Soacutecrates acerca da

existecircncia de Formas correspondentes a termos sortais deve ser entendida em

paralelo com a passagem sobre o dedo na Repuacuteblica como um testemunho de

Platatildeo acerca da origem da Teoria das Ideias Ao que tudo indica as Formas foram

primeiro propostas como uma tentativa de soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos tanto no caso dos predicados incompletos e propriedades relacionais

dos objetos sensiacuteveis quanto no caso das virtudes e valores morais que se

negavam a ser capturados por uma soacute definiccedilatildeo As falas de Soacutecrates e

Parmecircnides em 130d5-e4 nos levam a crer que na eacutepoca de composiccedilatildeo do

Parmecircnides o nuacutemero de Formas admitidas jaacute havia sido expandido o suficiente

para incluir uma Forma correspondente a cada conjunto de muacuteltiplas coisas que

chamamos pelo mesmo nome confirmando assim a impressatildeo que nos chega dos

diaacutelogos da fase meacutedia

Em oposiccedilatildeo a estas admissotildees Soacutecrates se mostra definitivamente contra

a existecircncia de Formas correspondentes a um quarto grupo de termos enunciado

por Parmecircnides constituiacutedo por cabelo lama e sujeira (θρὶξ καὶ πηλὸς καὶ ῥύπος

) e afirma que acreditar na existecircncia destas Formas seria por demais absurdo

(130d4) Mas por que Soacutecrates se negaria admitir a existecircncia destas Formas

A explicaccedilatildeo mais comumente apresentada pelos comentadores baseia-se

no fato de que coisas como cabelo lama e sujeira seriam indignas e ignoacutebeis

demais para serem harmonizadas com a grandiloquecircncia das descriccedilotildees acerca da

natureza divina das Formas encontradas em diaacutelogos como Banquete e

Repuacuteblica33 De fato esta interpretaccedilatildeo parece estar sugerida pela fala de

Parmecircnides que caracteriza estas coisas como ridiacuteculas (γελοῖα) despreziacuteveis

(ἀτιmicroότατόν) e vis (φαυλότατον) No entanto podemos atribuir um significado

33 El Murr por exemplo afirma ldquoSe Soacutecrates natildeo pode admitir que existe uma Forma de Lama eacute

evidentemente porque ele confunde a questatildeo do valor e a questatildeo da essecircncia porque ele pensa que uma Forma da lama coisa de pouco valor seria uma Forma de pouco valorrdquo (El Murr 2010 p145) Para outros autores que defendem esta mesma linha de raciociacutenio (cf Allan 1997 p124) (cf Cornford 1951 p83) (cf Miller 1986 p 45-46) (cf Turnbull 1998

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mais profundo para a recusa de Soacutecrates caso estejamos dispostos a reconhecer

nestes exemplos uma antecipaccedilatildeo dos problemas vinculados agrave relaccedilatildeo partetodo

que encontraremos de maneira recorrente no restante das criacuteticas de Parmecircnides

agrave hipoacutetese das Formas

Soacutecrates havia se mostrado relutante poreacutem natildeo havia negado a existecircncia

de uma Forma de Homem Parmecircnides deseja saber agora se precisamos de uma

Forma de Cabelo uma vez que tenhamos admitido uma Forma de Homem Um

homem eacute um todo composto por diversas partes como ressaltado por Soacutecrates

que usa a si proacuteprio como exemplo (129c4-d1) Seria tambeacutem a Forma do

Homem um todo composto por partes Se sim seriam entatildeo as Formas do

Cabelo e do Dedo partes da Forma do Homem Mas e estas Formas seriam elas

tambeacutem entidades compostas cujas partes corresponderiam aos componentes do

dedo e do cabelo sensiacuteveis Se natildeo entatildeo precisariacuteamos de uma Forma separada

para cada parte do corpo humano E para as partes destas partes teriacuteamos uma

Forma correspondente a cada componente do corpo humano ateacute chegarmos a um

elemento sensiacutevel completamente indivisiacutevel Por outro lado seria necessaacuterio

uma Forma de Lama caso exista uma Forma para os dois elementos a partir dos

quais a lama eacute composta terra e de aacutegua (cfTeet147c) Ou seria a lama sensiacutevel

apenas o resultado da presenccedila destas duas Formas em um uacutenico objeto Por fim

teria a sujeira uma natureza proacutepria um caraacuteter determinado Ou seria a sujeira

apenas um agregado de pequenas partes de outras coisas como terra e cabelo

cada uma delas correspondendo a uma Forma especiacutefica

As questotildees de Parmecircnides acerca da extensatildeo do conjunto de Formas natildeo

chegam a constituir propriamente uma tentativa de refutaccedilatildeo da teoria apresentada

por Soacutecrates Contudo esta primeira bateria de perguntas deixa claro ao leitor que

a hipoacutetese das Formas estaacute sujeita a criacuteticas como de fato estaacute sujeita toda e

qualquer teoria De um ponto de vista dramaacutetico estas perguntas realizam a

transiccedilatildeo entre a apresentaccedilatildeo da Teoria das Ideias e a refutaccedilatildeo desta teoria que

se daraacute no restante do diaacutelogo Atraveacutes desta pequena passagem Platatildeo apresenta

a seus leitores ateacute entatildeo acostumados a ver Soacutecrates como protagonista e

condutor principal da argumentaccedilatildeo uma clara inversatildeo de papeacuteis No restante do

Parmecircnides ao inveacutes de encontramos o Soacutecrates confiante e eloquente da Feacutedon e

p22-23)

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do Banquete ou o Soacutecrates irocircnico e refutador do Ecircutifron e do Laacuteques

encontraremos um Soacutecrates receoso e reticente preza dos ataques de Parmecircnides

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423 O dilema da Participaccedilatildeo

Parmecircnides inicia sua efetiva reduccedilatildeo ao absurdo da Teoria das Ideias por

meio de uma reapresentaccedilatildeo sumaacuteria da posiccedilatildeo socraacutetica

ldquoMas dize-me o seguinte34 parece-te como dizes haver certas Formas em tendo participaccedilatildeo nas quais essas outras coisas aqui recebem suas denominaccedilotildees Por exemplo se tecircm participaccedilatildeo na Semelhanccedila as coisas se tornam semelhantes se na Grandeza grandes se no Belo e na Justiccedila justas e belas Perfeitamente disse Soacutecratesrdquo τόδε δ οὖν microοι εἰπέ δοκεῖ σοι ὡς φῄς εἶναι εἴδη ἄττα ὧν τάδε τὰ ἄλλα microεταλαmicroβάνοντα τὰς ἐπωνυmicroίας αὐτῶν ἴσχειν οἷον ὁmicroοιότητος microὲν microεταλαβόντα ὅmicroοια microεγέθους δὲ microεγάλα κάλλους δὲ καὶ δικαιοσύνης δίκαιά τε καὶ καλὰ γίγνεσθαι Πάνυ γε φάναι τὸν Σωκράτη (130e4-131a1)

Nesta passagem Parmecircnides reduz a posiccedilatildeo socraacutetica a trecircs proposiccedilotildees

fundamentais 1) existem Formas 2) os objetos sensiacuteveis (τάδε τὰ ἄλλα)

participam nestas Formas e 3) devido a esta de participaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis

recebem os nomes pelos quais satildeo chamados A tese segundo a qual as coisas

recebem suas denominaccedilotildees devido ao fato de participarem nas Formas

conhecida como tese da eponiacutemia (ἐπωνυmicroία) natildeo havia sido mencionada por

Soacutecrates No entanto devemos entendecirc-la como um mero corolaacuterio linguiacutestico da

hipoacutetese de que as Formas satildeo causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis As

coisas recebem suas denominaccedilotildees pelo fato de apresentarem as caracteriacutesticas e

propriedades que apresentam Como as Formas satildeo as causas destas propriedades

Parmecircnides deduz corretamente que as coisas recebem suas denominaccedilotildees em

funccedilatildeo da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que mantecircm com as Formas 35

Como sabemos de acordo com a Teoria das Ideias o fato de que Simmias

eacute grande pressupotildee a existecircncia de duas entidades ontologicamente distintas

34 Platatildeo marca de maneira muito clara o iniacutecio de uma nova seacuterie de argumento pela frase ldquoτόδε δ οὖν microοι εἰπέrdquo Do mesmo modo o iniacutecio da passagem acerca da extensatildeo do conjunto de Formas havia sido marcado pelas palavras ldquoκαί microοι εἰπέrdquo (130b1) e posteriormente a introduccedilatildeo do argumento do terceiro homem seraacute marcado pela expressatildeo ldquoπρὸς τόδε πῶς ἔχειςrdquo (131e8) 35 Como observa Cornford (Cornford 1951 p84 n2) esta fala de Parmecircnides traz uma

referecircncia bastante direta agrave passagem do Feacutedon em que Soacutecrates propotildee sua teoria da participaccedilatildeo como uma soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila de opostos em Simmias Compare ldquoὧν τάδε τὰ ἄλλα microεταλαmicroβάνοντα τὰς ἐπωνυmicroίας αὐτῶν ἴσχεινrdquo (Parm130e5-6) com ldquoκαὶ τούτων τἆλλα microεταλαmicroβάνοντα αὐτῶν τούτων τὴν ἐπωνυmicroίαν ἴσχεινrdquo (Feacuted102b1-2)

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Simmias e a Forma da Grandeza Aleacutem disso como Soacutecrates jaacute havia antecipado

pelo uso da expressatildeo αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e como o proacuteprio Parmecircnides jaacute havia

concluiacutedo em 130b3-4 o fato de que Simmias eacute grande pressupotildee ainda a

existecircncia da propriedade imanente grandeza-em-Simmias (Parm130b4 αὐτὴ

ὁmicroοιότης χωρὶς ἧς ἡmicroεῖς ὁmicroοιότητος ἔχοmicroεν Feacuted102d7 τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος

Feacuted103b5 οὔτε τὸ ἐν ἡmicroῖν [ἐναντίον] οὔτε τὸ ἐν τῇ φύσει) Diferente da Forma

que lhe daacute origem uma propriedade imanente eacute ontologicamente dependente do

indiviacuteduo na qual estaacute localizada Afinal sua existecircncia estaacute intimamente

conectada com a existecircncia do indiviacuteduo que a possui e podemos considerar que

caso este indiviacuteduo deixe de ser grande de todos os modos possiacuteveis a

propriedade imanente da grandeza que este indiviacuteduo apresentava cessaraacute de

existir

Podemos nos perguntar agora como estas trecircs entidades estatildeo

relacionadas Soacutecrates havia sugerido que os objetos sensiacuteveis participam das

Formas e como resultado desta participaccedilatildeo adquirem suas diversas

propriedade36 No entanto o poder causal exercido pelas Formas natildeo pode ser

considerado por si soacute suficientemente elucidativo Haacute de haver um modo

especiacutefico de relaccedilatildeo entre estas entidades que explique como as Formas podem

ser responsaacuteveis pelo surgimento das propriedades imanentes nos objetos

sensiacuteveis Parmecircnides deseja saber portanto como devemos entender a relaccedilatildeo de

participaccedilatildeo de modo a tornarmos teoricamente viaacutevel a hipoacutetese de que as coisas

sensiacuteveis adquirem suas propriedades imanentes por causa das Formas

No Feacutedon Soacutecrates havia se recusado a explicitar a natureza desta relaccedilatildeo

oferecendo de maneira inconclusiva os termos ldquopresenccedilardquo e ldquocomunhatildeordquo como

modos possiacuteveis de descrevecirc-la

ldquoNada aleacutem do Belo torna esta coisa bela seja pela sua presenccedila (παρουσία) seja

36 Assim no Parmecircnides (129a4-5) certas coisas ldquotendo participaccedilatildeo na Semelhanccedila se tornam

semelhantesrdquo (τὰ microὲν τῆς ὁmicroοιότητος microεταλαmicroβάνοντα ὅmicroοια γίγνεσθαι) isto eacute passam a possuir a propriedade imanente da semelhanccedila ldquopor causa disso e na medida em que nela tenham participaccedilatildeordquo (ταύτῃ τε καὶ κατὰ τοσοῦτον ὅσον ἂν microεταλαmicroβάνῃ) E no Feacutedon (100c4-6) ldquoSe existe alguma coisa bela aleacutem do Belo em si a uacutenica razatildeo pela qual esta coisa eacute bela eacute porque ela participa da Belo em si E digo o mesmo com relaccedilatildeo a todo o restordquo (εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν οὐδὲ δι ἓν ἄλλο καλὸν εἶναι ἢ διότι microετέχει ἐκείνου τοῦ καλοῦ καὶ πάντα δὴ οὕτως λέγω) Nestas passagens Soacutecrates deixa claro por meio do emprego do dativo instrumental da conjunccedilatildeo διότι e da preposiccedilatildeo κατά + acusativo que eacute unicamente pela participaccedilatildeo nas Formas que as coisas adquirem as diversas propriedades que possuem

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pela comunhatildeo (κοινωνία) ou como quer que ele [o Belo] venha a se adicionar agraves coisas (ὅπῃ δὴ καὶ ὅπως προσγενοmicroένη) pois natildeo irei insistir nisto apenas que eacute pelo Belo que todas as coisas belas se tornam belasrdquo οὐκ ἄλλο τι ποιεῖ αὐτὸ καλὸν ἢ ἡ ἐκείνου τοῦ καλοῦ εἴτε παρουσία εἴτε κοινωνία εἴτε ὅπῃ δὴ καὶ ὅπως προσγενοmicroένη οὐ γὰρ ἔτι τοῦτο διισχυρίζοmicroαι ἀλλ ὅτι τῷ καλῷ πάντα τὰ καλὰ [γίγνεται] καλά (Fed100d4-7)

No Parmecircnides apenas duas alternativas satildeo inicialmente apresentadas

ou bem 1) cada coisa que participa de uma Forma participa na Forma inteira ou

bem 2) cada coisa que participa de uma Forma participa em uma parte da Forma

De acordo com 1) a propriedade imanente que um objeto sensiacutevel adquire como

consequecircncia da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo equivale agrave totalidade da Forma De

acordo com 2) esta propriedade imanente equivale a apenas uma parte da Forma

Soacutecrates aceita o dilema formulado por Parmecircnides e concorda ainda que estas

duas opccedilotildees satildeo exaustivas

ldquoNatildeo eacute verdade que cada uma das coisas que tecircm participaccedilatildeo ou bem tem participaccedilatildeo na Forma inteira ou bem em uma parte dela Ou haveria uma outra participaccedilatildeo aleacutem dessas Como poderia haver disse [Soacutecrates]rdquo Οὐκοῦν ἤτοι ὅλου τοῦ εἴδους ἢ microέρους ἕκαστον τὸ microεταλαmicroβάνον microεταλαmicroβάνει ἢ ἄλλη τις ἂν microετάληψις χωρὶς τούτων γένοιτο Καὶ πῶς ἄν εἶπεν (131a4-7)

Em sua forma o dilema anuncia uma reduccedilatildeo ao absurdo 1) Se as coisas

participam das Formas entatildeo elas participam no todo ou em parte de uma Forma

Contudo 2) natildeo pode haver participaccedilatildeo no todo das Formas nem em partes das

Formas Logo 3) natildeo haacute participaccedilatildeo isto eacute as coisas natildeo participam das Formas

A validade desta reduccedilatildeo depende diretamente do reconhecimento de que as duas

opccedilotildees previstas na premissa maior do argumento esgotam todas as possibilidades

de se pensar a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis Por isso

Parmecircnides pergunta a Soacutecrates se poderia haver algum outro tipo de participaccedilatildeo

aleacutem da participaccedilatildeo no todo ou em parte de uma Forma Neste primeiro

momento Soacutecrates concorda que natildeo poderia haver reconhecendo a completude

da premissa maior do argumento de Parmecircnides e se comprometendo

antecipadamente com a validade da reduccedilatildeo37

37 Posteriormente confrontado pelos paradoxos resultantes do dilema da participaccedilatildeo Soacutecrates

iraacute propor maneiras de entender a relaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que extrapolam as opccedilotildees previstas neste dilema inicial Contudo como veremos estas propostas tampouco se mostraratildeo imunes aos ataques do saacutebio eleata

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424 A estrutura do dilema de participaccedilatildeo

Eacute constantemente apontado pelos comentadores o fato de que o dilema da

participaccedilatildeo possuiria uma estrutura assimeacutetrica Enquanto o primeiro ramo do

dilema de acordo com o qual as coisas participam no todo de uma Forma levaria

a uma impossibilidade loacutegica a argumentaccedilatildeo que contradiz o segundo ramo do

dilema seria meramente ad hominen e resultaria em apenas um par de

contradiccedilotildees especiacuteficas restritas a um determinado conjunto de Formas Esta

interpretaccedilatildeo foi proposta pela primeira vez por Reginald Allen

ldquoSoacutecrates rejeita ambas disjunccedilotildees do Dilema da Participaccedilatildeo mas a modalidade destas disjunccedilotildees eacute bastante diferente A primeira disjunccedilatildeo dada a pluralidade de participantes envolve uma absurdidade loacutegica (hellip) A segunda disjunccedilatildeo seja verdadeira ou como Soacutecrates acredita falsa natildeo envolve uma absurdidade loacutegica (hellip) Portanto se natildeo haacute participaccedilatildeo no todo nem na parte da Ideia entatildeo natildeo haacute participaccedilatildeo mas se haacute participaccedilatildeo ela natildeo pode ser no todo mas deve ser na parte de uma Ideiardquo (Allen 1997 p133)

Apesar da aceitaccedilatildeo geral que a interpretaccedilatildeo de Allen tem recebido38 sua

leitura natildeo deve ser assumida de antematildeo Em primeiro lugar porque levanta o

seguinte problema interpretativo se o segundo ramo do dilema apresenta uma

opccedilatildeo logicamente viaacutevel por que Soacutecrates natildeo se apega a esta opccedilatildeo procurando

apresentar maneiras plausiacuteveis de entender as propriedades imanentes como partes

das Formas Ao contraacuterio do que seria esperado caso a participaccedilatildeo em partes das

Formas fosse a uacutenica opccedilatildeo logicamente possiacutevel Soacutecrates procura manter

durante toda seacuterie de argumentos a unidade das Formas se mostrando

decididamente contra a hipoacutetese de que elas possam ser divididas

Aleacutem disso a leitura assimeacutetrica para o dilema da participaccedilatildeo eacute

responsaacutevel por um problema interpretativo ainda mais fundamental que ameaccedila

a proacutepria relevacircncia das criacuteticas de Parmecircnides e como consequecircncia a unidade

temaacutetica do diaacutelogo Allen considera o segundo ramo do dilema como uma opccedilatildeo

logicamente viaacutevel por entender que apenas as Formas do Grande do Pequeno e

do Igual estatildeo sujeitas a paradoxos caso optemos pela participaccedilatildeo em partes das

38 Brisson (Brisson 2011 p37 n76) Curd (Curd 1986 p128) e Harte (Harte 2002 p66-67) dentre outros assumem a assimetria do dilema adotando a interpretaccedilatildeo proposta por Allen

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Formas Contudo os argumentos sobre estas trecircs Formas natildeo constituem o passo

decisivo na refutaccedilatildeo deste ramo do dilema Na verdade estes paradoxos apenas

ilustram algumas das consequecircncias indesejaacuteveis decorrentes da efetiva divisatildeo

das Formas que jaacute havia sido admitida por Soacutecrates em 131c9-10 Esta mudanccedila

de foco acaba impedindo Allen de reconhecer que eacute a proacutepria divisatildeo das Formas

o que leva agrave rejeiccedilatildeo da hipoacutetese da participaccedilatildeo em partes das Formas

Ao contraacuterio do que Allen acredita ambos os braccedilos do dilema apresentam

argumentos contra uma mesma tese cuja importacircncia eacute fundamental para a

validade da Teoria das Ideias a tese de que as Formas satildeo entidades uacutenicas

(singulares e indivisiacuteveis) e portanto essencialmente distintas dos objetos

sensiacuteveis

Em toda sua argumentaccedilatildeo Parmecircnides utiliza o adjetivo ldquoumrdquo de maneira

ambiacutegua ora para designar a singularidade (unidade numeacuterica) ora para designar

a uniformidade (indivisibilidade) de uma Forma O dilema da participaccedilatildeo

pretende demonstrar como estes dois sentidos de unidade natildeo podem ser

atribuiacutedos simultaneamente agraves Formas caso estas entidades estejam submetidas

agrave relaccedilatildeo de participaccedilatildeo Assim no primeiro ramo do dilema a integridade das

Formas natildeo eacute posta em questatildeo mas a sua singularidade eacute comprometida Pois

estando presentes por inteiro em cada um dos seus participantes as Formas se

multiplicariam e passariam a existir em nuacutemero igual ao das coisas que delas

participam Por outro lado no segundo ramo do dilema natildeo eacute mais a unidade

numeacuterica das Formas que eacute posta em questatildeo mas a sua indivisibilidade Pois

uma vez divididas pelos seus participantes as Formas passariam a ter tantas partes

quantos objetos que delas participam

Esta estrateacutegia estabelecida pelo dilema da participaccedilatildeo organiza todo o

conjunto de criacuteticas apresentadas por Parmecircnides na primeira parte do diaacutelogo E

eacute justamente isso que a leitura assimeacutetrica de Allen nos impede de reconhecer As

diversas criacuteticas apresentadas por Parmecircnides constituem passos distintos de um

mesmo argumento cujo uacutenico objetivo eacute demonstrar a impossibilidade de se

conceber as Formas como unidades perfeitas isto eacute singulares e indivisiacuteveis

O dilema da participaccedilatildeo reproduz em sua forma a estrateacutegia geral das

criacuteticas de Parmecircnides que pretendem demonstrar a incompatibilidade entre duas

teses centrais da Teoria das Ideias 1) a tese de que as Formas satildeo as causas das

propriedades dos objetos sensiacuteveis e 2) a tese de que as Formas satildeo entidades

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uacutenicas singulares e indivisiacuteveis Se observarmos a conclusatildeo de cada um dos

argumentos podemos ver que Parmecircnides insiste a todo instante na

impossibilidade de se manter simultaneamente estas duas afirmaccedilotildees

1) Se a participaccedilatildeo se daacute na totalidade da Forma entatildeo as Formas

satildeo indivisiacuteveis poreacutem natildeo satildeo numericamente uacutenicas (132b1-2

Ἓν ἄρα ὂν καὶ ταὐτὸν ἐν πολλοῖς καὶ χωρὶς οὖσιν ὅλον ἅmicroα

ἐνέσται καὶ οὕτως αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς ἂν εἴη)

2) Se a participaccedilatildeo se daacute em uma parte da Forma entatildeo as Formas

satildeo numericamente uacutenicas poreacutem natildeo satildeo indivisiacuteveis (132c9-

10Ἦ οὖν ἐθελήσεις ὦ Σώκρατες φάναι τὸ ἓν εἶδος ἡmicroῖν τῇ

ἀληθείᾳ microερίζεσθαι καὶ ἔτι ἓν ἔσται

2) Perceber uma Forma uacutenica sobre uma multiplicidade de objetos

sensiacuteveis implica em um regresso ao infinito e o que seria uma

Forma uacutenica mostra-se ldquoilimitada em quantidaderdquo (132b1-2καὶ

οὐκέτι δὴ ἓν ἕκαστόν σοι τῶν εἰδῶν ἔσται ἀλλὰ ἄπειρα τὸ

πλῆθος)

3) Sustentar que cada Forma eacute um ldquopensamentordquo (νόηmicroα) permite que

ela seja tanto uacutenica quanto indivisiacutevel Poreacutem neste caso a proacutepria

noccedilatildeo de participaccedilatildeo se mostra absurda (132c9-11 οὐκ ἀνάγκῃ ᾗ

τἆλλα φῂς τῶν εἰδῶν microετέχειν ἢ δοκεῖ σοι ἐκ νοηmicroάτων ἕκαστον

εἶναι καὶ πάντα νοεῖν ἢ νοήmicroατα ὄντα ἀνόητα εἶναι)

4) Sustentar que a Formas satildeo ldquoparadigmasrdquo (παραδείγmicroατα) garante

sua indivisibilidade poreacutem o regresso ao infinito resurge e as

Formas passam novamente a se multiplicar indefinidamente

(133a1-3 καὶ οὐδέποτε παύσεται ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον ἐὰν

τὸ εἶδος τῷ ἑαυτοῦ microετέχοντι ὅmicroοιον γίγνηται)

Como podemos perceber a duplicidade de sentido que o termo ἓν recebe

nos argumentos de Parmecircnides equivale agrave duplicidade de sentido que o termo

πολλά adquire durante a argumentaccedilatildeo de Zenatildeo De um ponto de vista dramaacutetico

a formulaccedilatildeo do dilema da participaccedilatildeo representa o momento em que

Parmecircnides aceitando o desafio lanccedilado por Soacutecrates inicia sua demonstraccedilatildeo de

que as Formas natildeo estatildeo aptas a manter as caracteriacutesticas ontoloacutegicas que as

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distinguem dos objetos sensiacuteveis e as tornam imunes ao paradoxo de Zenatildeo Caso

Soacutecrates natildeo se mostre capaz de articular uma explicaccedilatildeo para a hipoacutetese da

participaccedilatildeo que salve ao mesmo tempo a singularidade e a indivisibilidade das

Formas Parmecircnides teraacute demonstrado que as Formas natildeo constituem uma soluccedilatildeo

teoricamente viaacutevel para o paradoxo de abertura do diaacutelogo Afinal privadas de

sua singularidade e uniformidade caracteriacutesticas as Formas estaratildeo elas tambeacutem

sujeitas aos paradoxos de Zenatildeo O tema da unidade das Formas eacute portanto o

elemento fundamental de ligaccedilatildeo entre as criacuteticas de Parmecircnides e os argumentos

anteriormente desenvolvidos por Soacutecrates e Zenatildeo

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425 Participaccedilatildeo no todo da Forma

No primeiro ramo do dilema proposto por Parmecircnides os objetos

sensiacuteveis participam no todo de uma Forma (ὅλου τοῦ εἴδους) Como

consequecircncia as coisas recebem como sua propriedade imanente a totalidade de

uma Forma que por sua vez passa a estar presente (ἐν ἐνεῖναι) inteira em cada

um de seus participantes

ldquoEntatildeo parece-te que a Forma inteira sendo uma39 estaacute em cada uma das muacuteltiplas coisas Ou como seria ldquoMas o que impede Parmecircnides [que ela esteja que ela seja uma]40 Entatildeo sendo uma e a mesma estaraacute inteira simultaneamente em coisas que satildeo muacuteltiplas e separadas e assim ela estaria separada de si mesma41rdquo Πότερον οὖν δοκεῖ σοι ὅλον τὸ εἶδος ἐν ἑκάστῳ εἶναι τῶν πολλῶν ἓν ὄν ἢ πῶς Τί γὰρ κωλύει φάναι τὸν Σωκράτη ὦ Παρmicroενίδη [ἓν εἶναι ἐνεῖναι ] Ἓν ἄρα ὂν καὶ ταὐτὸν ἐν πολλοῖς καὶ χωρὶς οὖσιν ὅλον ἅmicroα ἐνέσται καὶ οὕτως αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς ἂν εἴη (131a8-b2)

Com este breve argumento Parmecircnides pretende demonstrar que para que

possam estar presentes por inteiro em uma multiplicidade de coisas distintas as

Formas precisam tambeacutem ser muacuteltiplas Apesar de extremamente conciso o

argumento pode ser entendido da seguinte maneira De acordo com a premissa de

participaccedilatildeo no todo de uma Forma se os objetos x y e z participam da Forma F

a Forma F estaacute presente por inteiro em x y e z Ora as variaacuteveis x y e z

representam objetos sensiacuteveis distintos ldquocoisas muacuteltiplas e separadasrdquo (πολλοῖς

καὶ χωρὶς) Sendo assim para que possa estar presente como um todo (ὅλον τὸ

39 ldquoSendo umardquo (ἓν ὄν) significa aqui ldquosendo numericamente uacutenicardquo Este sentido eacute mais

claramente explicitado em 131b1 pela expressatildeo ἓν ὂν καὶ ταὐτὸν ὅλον em que a qualificaccedilatildeo καὶ ταὐτὸν eacute acrescentada para destacar que segundo a hipoacutetese adotada uma mesma Forma uacutenica deve estar por inteiro em cada um dos muacuteltiplos participantes

40 A maior parte dos tradutores modernos leem a uacuteltima claacuteusula desta sentenccedila como ἐνεῖναι (que ela esteja) corrigindo os manuscritos antigos nos quais consta ἓν εἶναι (que seja uma) A hipoacutetese que jaacute aparece em Proacuteclus e foi ressucitada por Schleiermacher parece fazer sentido Afinal sem esta correccedilatildeo Soacutecrates estaria mudando o foco da discussatildeo e antecipando de maneira surpreendente a conclusatildeo do argumento de Parmecircnides A questatildeo contudo eacute irrelevante para validade de argumentaccedilatildeo aqui proposta uma vez que segundo nossa interpretaccedilatildeo Parmecircnides pretende demonstrar justamente a contradiccedilatildeo entre a hipoacutetese da presenccedila da Forma nas coisas (ἐνεῖναι) e a hipoacutetese de sua unidade (ἓν εἶναι)

41 ldquoSeparada de si mesmardquo (αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς) Uma vez que esta expressatildeo eacute apresentada em contraste com ἓν ὂν καὶ ταὐτὸν devemos enterder que ldquoseparar-se de si mesmordquo significa ldquomultiplicar-serdquo ldquotornar-se (numericamente) muacuteltiplordquo em oposiccedilatildeo a ldquomanter-se (numericamente) singularrdquo ou ldquoser um e o mesmordquo (ἓν ὂν καὶ ταὐτὸν)

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εἶδος) em cada uma destas coisas a Forma F deve ser ela mesma separada de si

mesma isto eacute muacuteltipla Portanto caso optemos pelo primeiro ramo do dilema da

participaccedilatildeo natildeo podemos falar de uma uacutenica Forma F pois o que temos eacute uma

diversidade de Formas Fx Fy e Fz cada uma das quais presente em um dos

objetos sensiacuteveis que participam de F

Eacute preciso notar que este argumento pressupotildee a participaccedilatildeo simultacircnea

de uma multiplicidade de coisas em uma mesma Forma Nenhuma contradiccedilatildeo

surgiria caso Soacutecrates estivesse disposto a reconhecer que a participaccedilatildeo se daacute de

maneira exclusiva com cada Forma tendo apenas um participante por vez Assim

Soacutecrates poderia participar da Forma do Homem apenas no caso de que Platatildeo

natildeo participasse no mesmo momento desta Forma Parmecircnides parece

reconhecer este fato e acrescenta a palavra ἅmicroα (simultaneamente) em sua

conclusatildeo do argumento Soacutecrates no entanto sequer considera a hipoacutetese de um

modo de participaccedilatildeo exclusivo Afinal a adoccedilatildeo de tal hipoacutetese significaria

privar as Formas de seu papel de causa universal o que tornaria a proacutepria relaccedilatildeo

de participaccedilatildeo irrelevante como explicaccedilatildeo para a diversidade de fenocircmenos do

mundo sensiacutevel

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426 Participaccedilatildeo em partes da Forma

Na tentativa de salvar a singularidade das Formas sem ter que abandonar

o caraacuteter muacuteltiplo e simultacircneo da participaccedilatildeo Soacutecrates apresenta uma analogia

uma Forma natildeo estaria separada de si mesma caso ela fosse como o dia que pode

estar em diferentes lugares sem perder sua singularidade isto eacute sem deixar de ser

um e o mesmo dia (ἡmicroέρα microία καὶ ἡ αὐτὴ)

ldquoNatildeo estaria disse ele se pelo menos como o dia que sendo um e o mesmo estaacute em muitos lugares simultaneamente e nem por isso estaacute ele mesmo separado de si mesmo se assim tambeacutem cada uma das Formas fosse uma e a mesma [estando] simultaneamente em todas as coisasrdquo Οὐκ ἄν εἴ γε φάναι οἷον [εἰ] ἡmicroέρα [εἴη] microία καὶ ἡ αὐτὴ οὖσα πολλαχοῦ ἅmicroα ἐστὶ καὶ οὐδέν τι microᾶλλον αὐτὴ αὑτῆς χωρίς ἐστιν εἰ οὕτω καὶ ἕκαστον τῶν εἰδῶν ἓν ἐν πᾶσιν ἅmicroα ταὐτὸν εἴη (131b3-6)

Parmecircnides responde propondo uma nova analogia

ldquoDe bela maneira Soacutecrates disse ele fazes uma e a mesma coisa [estar] simultaneamente em muitos lugares como se cobrindo com uma vela muitos homens dissesses ser ela inteira uma sobre muacuteltiplos Ou natildeo eacute algo deste tipo que acreditas estar dizendo Talvez disse elerdquo Ἡδέως γε φάναι ὦ Σώκρατες ἓν ταὐτὸν ἅmicroα πολλαχοῦ ποιεῖς οἷον εἰ ἱστίῳ καταπετάσας πολλοὺς ἀνθρώπους φαίης ἓν ἐπὶ πολλοῖς εἶναι ὅλον ἢ οὐ τὸ τοιοῦτον ἡγῇ λέγειν Ἴσως φάναι (131b7-c1)

Eacute comum entre os comentadores a opiniatildeo de que a metaacutefora apresentada

por Parmecircnides natildeo possui as mesmas virtudes da metaacutefora socraacutetica e que apenas

a inexperiecircncia do jovem Soacutecrates pode explicar a sua aceitaccedilatildeo da equivalecircncia

entre estas duas maneiras de entender a relaccedilatildeo entre Formas e coisas (cf Sayre

1996 p76) (cf Miller 1986 p49) Mas o que exatamente Soacutecrates poderia estar

entendendo por ldquodiardquo neste argumento Qual eacute o sentido de sua analogia e de que

maneira esta analogia poderia apresentar uma alternativa viaacutevel para compreensatildeo

da participaccedilatildeo no todo de uma Forma

A primeira opccedilatildeo eacute que Soacutecrates esteja entendo por ldquodiardquo a ldquoluz do diardquo

Neste caso a proposta de Parmecircnides eacute certamente equivalente e apenas torna

mais clara a metaacutefora socraacutetica Afinal a luz do dia possui uma natureza material

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e nada mais eacute do que uma espeacutecie de substacircncia homogecircnea que cobre

simultaneamente diferentes lugares A luminosidade do dia banha distintos

lugares exatamente como uma vela estendida sobre diversas pessoas Contudo

assim entendida a metaacutefora socraacutetica natildeo realiza o objetivo em vista do qual eacute

formulada O que Soacutecrates precisa demonstrar natildeo eacute meramente que a luz de um

mesmo dia ilumina diferentes lugares ao mesmo tempo Para que a metaacutefora

cumpra seu papel Soacutecrates precisa demonstrar como estes diferentes lugares

podem estar iluminados simultaneamente pela totalidade da luz de um mesmo

dia isto eacute como a luz do dia ldquosendo uma e a mesmardquo pode estar por inteiro em

cada um dos lugares que ilumina

A segunda opccedilatildeo de interpretaccedilatildeo para metaacutefora socraacutetica parece a

princiacutepio mais promissora Eacute possiacutevel que Soacutecrates esteja entendendo por ldquodiardquo o

periacuteodo de tempo em que esta luminosidade recobre a terra e que sendo um e o

mesmo estaria presente simultaneamente em Atenas e Esparta Neste caso a

analogia socraacutetica ldquoum dia sobre muitos lugaresrdquo possuiria o meacuterito de ressaltar a

imaterialidade das Formas o que eacute completamente perdido na analogia ldquouma vela

sobre muitas pessoasrdquo apresentada por Parmecircnides Pois quando Soacutecrates afirma

que o mesmo dia estaacute ao mesmo tempo em diferentes lugares o que ele estaacute

dizendo eacute que um mesmo intervalo de tempo ocorre simultaneamente em

lugares distintos Assim no mesmo intervalo de tempo em que Soacutecrates eacute julgado

em Atenas Lisandro se diverte em Esparta

Apesar de trivialmente correta esta segunda interpretaccedilatildeo para a analogia

do dia tampouco parece servir para os propoacutesitos de Soacutecrates Para que sua

metaacutefora lhe seja uacutetil na presente argumentaccedilatildeo Soacutecrates precisaria demonstrar

natildeo que diversas coisas acontecem simultaneamente em um mesmo dia mas que

o mesmo dia estaacute presente por inteiro em cada um dos momentos em que estas

coisas acontecem Ningueacutem negaria o fato de que um determinado momento do

dia ocorre simultaneamente em diferentes lugares Poreacutem o ponto em disputa eacute se

podemos ou natildeo entender cada um destes momentos como equivalentes agrave

totalidade de um mesmo dia Ora eacute claro que uma resposta afirmativa para esta

questatildeo seria absurda uma vez que colapsaria a totalidade de um dia em cada um

dos momentos de que eacute composto O dia entendido como um intervalo de tempo

possui duraccedilatildeo da mesma maneira que um objeto fiacutesico possui extensatildeo Sendo

assim os momentos sucessivos de um dia natildeo podem ser considerados idecircnticos agrave

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totalidade deste dia do mesmo modo que as diversas partes de um objeto extenso

natildeo satildeo idecircnticas agrave totalidade da qual fazem parte Aleacutem disso uma interpretaccedilatildeo

temporal para a metaacutefora do dia ainda estaacute sujeita agrave seguinte circularidade se

entendermos ldquosimultaneamenterdquo no seu sentido usual de ldquoao mesmo tempordquo a

analogia de Soacutecrates estaria afirmando que ldquoum mesmo intervalo de tempordquo

ocorre ldquoao mesmo tempordquo em diferentes lugares o que eacute claramente absurdo 42

O que Parmecircnides revela ao transformar a imagem de um dia sobre vaacuterios

lugares na imagem de uma vela sobre diversas pessoas eacute que ambas estas coisas (o

dia e a vela) quando consideradas com a devida atenccedilatildeo natildeo se apresentam como

entidades uacutenicas e indivisiacuteveis tal como Soacutecrates pretende fazer crer O fato de

falarmos de ldquoum diardquo como uma entidade singular natildeo nos garante que estejamos

tratando de fato de uma entidade uacutenica e indivisiacutevel Noacutes tambeacutem nos referimos

agrave ldquoguerra de Troacuteiardquo como um evento singular no entanto eacute muito claro que a

guerra de Troacuteia constitui na verdade uma seacuterie de eventos distintos Da mesma

maneira quando falamos de uma vela sobre diversas pessoas (ou diversas pessoas

sob um mesmo teto) tratamos esta vela (ou este teto) como um entidade singular

Neste caso poreacutem eacute mais faacutecil perceber que natildeo eacute a totalidade da vela que se

encontra sobre cada um dos indiviacuteduos mas apenas uma parte dela

Portanto ao formular a metaacutefora de uma vela sobre uma multiplicidade de

pessoas Parmecircnides natildeo estaacute deturpando a metaacutefora socraacutetica ou destituindo-a de

seu valor como soluccedilatildeo ao problema da participaccedilatildeo Muito pelo contraacuterio ao

reinterpretar a analogia socraacutetica Parmecircnides apenas torna evidente as

consequecircncias da proposta inicial apresentada por Soacutecrates Afirmar que uma

Forma uacutenica estaacute sobre muitas coisas equivale a afirmar que cada coisa possui

sobre si uma parte desta Forma exatamente da mesma maneira que a luz que

banha Soacutecrates pela manhatilde eacute apenas uma parte da totalidade da luz que ilumina a

Aacutetica e do mesmo modo que o momento da manhatilde em que Soacutecrates toma seu

banho de sol eacute apenas uma parte do intervalo de tempo que compotildee um dia

ldquoSeraacute entatildeo que a vela inteira estaria sobre cada um ou uma parte dela sobre um outra sobre outro Uma parte Logo Soacutecrates disse ele satildeo divisiacuteveis as Formas mesmas e as coisas que delas

42 Esta circularidade foi observada primeiramente por Allen que acaba por descartar

completamente a possibilidade da metaacutefora socraacutetica estar se referindo ao dia em seu sentido temporal (cf Allen 1997 p132)

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participam participariam de uma de suas partes e natildeo eacute mais o todo que estaria em cada uma das coisas mas sim uma parte caberia a cada coisa Parece pelo menos que eacute assim Seraacute entatildeo Soacutecrates que estaraacutes disposto a dizer que a Forma uma em verdade se nos divide e ainda seraacute uma43 De maneira alguma disse Soacutecratesrdquo Ἦ οὖν ὅλον ἐφ ἑκάστῳ τὸ ἱστίον εἴη ἄν ἢ microέρος αὐτοῦ ἄλλο ἐπ ἄλλῳ Μέρος Μεριστὰ ἄρα φάναι ὦ Σώκρατες ἔστιν αὐτὰ τὰ εἴδη καὶ τὰ microετέχοντα αὐτῶν microέρους ἂν microετέχοι καὶ οὐκέτι ἐν ἑκάστῳ ὅλον ἀλλὰ microέρος ἑκάστου ἂν εἴη Φαίνεται οὕτω γε Ἦ οὖν ἐθελήσεις ὦ Σώκρατες φάναι τὸ ἓν εἶδος ἡmicroῖν τῇ ἀληθείᾳ microερίζεσθαι καὶ ἔτι ἓν ἔσται Οὐδαmicroῶς εἰπεῖν (131c2-11)

A tentativa de oferecer uma metaacutefora como explicaccedilatildeo para a hipoacutetese da

participaccedilatildeo no todo de uma Forma apenas forccedilou Soacutecrates na direccedilatildeo do segundo

ramo do dilema Tal como uma vela estendida sobre uma multiplicidade de

indiviacuteduos a Forma se mostra agora divida por seus participantes Cada um dos

objetos sensiacuteveis que participam de uma Forma recebe como sua propriedade

imanente uma parte desta Forma Isto eacute se x e y participam da Forma F entatildeo

uma parte de F estaacute em x e uma parte de F estaacute em y Eacute preciso observar que cada

um destes objetos recebe sua propriedade imanente de maneira exclusiva Pois se

considerarmos a propriedade imanente F-em-x como idecircntica agrave propriedade

imanente F-em-y nos encontraremos novamente submetidos ao argumento do

primeiro ramo do dilema Sendo assim como resultado da adoccedilatildeo do segundo

ramo do dilema da participaccedilatildeo as Formas passam a possuir um nuacutemero de partes

igual ao nuacutemero de objetos que delas participam

Novamente o caraacuteter unitaacuterio das Formas se mostra incompatiacutevel com a

hipoacutetese de que os objetos sensiacuteveis participam nas Formas Neste caso poreacutem

natildeo eacute a singularidade numeacuterica das Formas o que eacute perdido na relaccedilatildeo com os

muacuteltiplos objetos do mundo sensiacutevel mas a uniformidade ou integridade das

Formas isto eacute sua indivisibilidade

Soacutecrates reconhece prontamente o absurdo desta conclusatildeo e se recusa a

admitir que uma Forma uacutenica possa estar dividida pelos objetos sensiacuteveis que

dela participam (τὸ ἓν εἶδος ἡmicroῖν τῇ ἀληθείᾳ microερίζεσθαι) Este resultado por si soacute

43 καὶ ἔτι ἓν ἔσται aqui ldquoser umrdquo significa ldquoser indivisiacutevelrdquo como deixa claro o contraste

estabelecido por Parmecircnides entre esta claacuteusula e o verbo microερίζεσθαι (dividir-se) Como jaacute observamos neste segundo ramo do dilema da participaccedilatildeo eacute a noccedilatildeo de integridade ou indivisibilidade das Forma que se mostra incompatiacutevel com a hipoacutetese da participaccedilatildeo

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jaacute eacute suficiente para descartar o segundo ramo do dilema e com ele a hipoacutetese de

que as coisas participam em partes das Formas A partir deste momento a reduccedilatildeo

ao absurdo operada pelo dilema jaacute estaacute realizada Segundo as premissas do

dilema soacute haacute participaccedilatildeo no todo ou em parte de uma Forma Contudo a

participaccedilatildeo no todo acaba por multiplicar as Formas e a participaccedilatildeo em partes

por dividi-las Como as Formas satildeo por definiccedilatildeo entidades singulares e

indivisiacuteveis entatildeo natildeo pode haver participaccedilatildeo nas Formas

Entretanto Parmecircnides natildeo se daacute por satisfeito com este resultado e passa

a apresentar uma seacuterie de argumentos que pretendem ilustrar as consequecircncias

absurdas agraves quais seriacuteamos levados caso aceitaacutessemos a efetiva divisatildeo das

Formas

ldquoPois vecirc disse Parmecircnides Se dividires a Grandeza mesma e se cada uma das muacuteltiplas coisas grandes for grande em virtude de uma parte da Grandeza [parte esta] menor que a Grandeza mesma seraacute que isso natildeo pareceraacute absurdo Perfeitamente disse ele Mas como Cada coisa recebendo uma parte do Igual uma [parte] pequena que eacute menor que o Igual mesmo teraacute algo com que seraacute igual ao que quer que seja Impossiacutevel E mais eacute uma parte do Pequeno que algum de noacutes teraacute e o Pequeno seraacute maior que essa parte mesma sendo esta uma parte dele e assim pois o Pequeno seraacute maior e aquilo a que for adicionada a parte subtraiacuteda seraacute menor e natildeo maior que antes Isso natildeo poderia ocorrer disse ele Ὅρα γάρ φάναι εἰ αὐτὸ τὸ microέγεθος microεριεῖς καὶ ἕκαστον τῶν πολλῶν microεγάλων microεγέθους microέρει σmicroικροτέρῳ αὐτοῦ τοῦ microεγέθους microέγα ἔσται ἆρα οὐκ ἄλογον φανεῖται Πάνυ γ ἔφη Τί δέ τοῦ ἴσου microέρος ἕκαστον σmicroικρὸν ἀπολαβόν τι ἕξει ᾧ ἐλάττονι ὄντι αὐτοῦ τοῦ ἴσου τὸ ἔχον ἴσον τῳ ἔσται Ἀδύνατον Ἀλλὰ τοῦ σmicroικροῦ microέρος τις ἡmicroῶν ἕξει τούτου δὲ αὐτοῦ τὸ σmicroικρὸν microεῖζον ἔσται ἅτε microέρους ἑαυτοῦ ὄντος καὶ οὕτω δὴ αὐτὸ τὸ σmicroικρὸν microεῖζον ἔσται ᾧ δ ἂν προστεθῇ τὸ ἀφαιρεθέν τοῦτο σmicroικρότερον ἔσται ἀλλ οὐ microεῖζον ἢ πρίν Οὐκ ἂν γένοιτο φάναι τοῦτό γε (131c12-e2)

Na tentativa de estabelecer de maneira ainda mais clara a inviabilidade do

segundo ramo do dilema da participaccedilatildeo satildeo apresentadas trecircs consequecircncias

absurdas decorrentes da hipoacutetese de que os objetos sensiacuteveis participam em partes

das Formas Segundo a argumentaccedilatildeo de Parmecircnides caso adotemos o segundo

ramo do dilema

1) Uma coisa grande seraacute grande em virtude de uma parte da

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Grandeza menor do que a Grandeza mesma e portanto seraacute grande

em virtude daquilo que eacute pequeno

2) Uma coisa igual seraacute igual em virtude de uma parte pequena da

Igualdade e portanto seraacute igual em virtude daquilo que eacute desigual

3) Se subtrairmos uma parte do Pequeno o Pequeno em si seraacute maior

do que cada uma de suas partes e portanto o Pequeno seraacute maior

Por outro lado o objeto sensiacutevel que receber uma de suas partes se

tornaraacute menor e natildeo maior em virtude desta adiccedilatildeo

Para que possamos entender o que torna estas conclusotildees inaceitaacuteveis do

ponto de vista de Soacutecrates e sua Teoria das Ideias precisamos ter em mente o

poder causal exercido pelas Formas sobre os objetos sensiacuteveis De acordo com a

teoria da causalidade defendida por Soacutecrates uma causa deve possuir a

caracteriacutestica que ela produz nas coisas Assim no Protaacutegoras (332b1) Soacutecrates

afirma que eacute ldquopela temperanccedila que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (σωφροσύνῃ

σωφρονοῦσιν) no Teeteto (145d11) que eacute ldquopela sabedoria que os saacutebios satildeo

saacutebiordquo (Σοφίᾳ δέ γ οἶmicroαι σοφοὶ οἱ σοφοί) e no Hiacuteppias Maior que eacute ldquopelo belo

que todas as coisas belas satildeo belasrdquo (Ἆρ οὖν οὐ καὶ τὰ καλὰ πάντα τῷ καλῷ ἐστι

καλά) Nestas passagens Soacutecrates faz uso do dativo instrumental para apresentar

em uma sentenccedila cuja forma eacute aparentemente tautoloacutegica aquilo que ele e seus

interlocutores tomam como uma verdade autoevidente Isto eacute que a despeito do

estatuto ontoloacutegico que estejamos dispostos a atribuir para a causa das

propriedades dos objetos sensiacuteveis eacute impossiacutevel pensar que esta causa natildeo

possua ela mesma a propriedade que produz Em paralelo a esta assunccedilatildeo

Soacutecrates e seus interlocutores tomam como autocontraditoacuteria a hipoacutetese de que

uma causa possa ser caracterizada pela propriedade oposta agravequela de que eacute causa

Pois ldquoeacute iloacutegico (ἄλογόν) [admitir] que algueacutem seja corajoso pelo medo e pela

covardiardquo (καίτοι ἄλογόν γε δέει τινὰ καὶ δειλίᾳ ἀνδρεῖον εἶναι Feacuted68d) e ldquoeacute

assombroso (τέρας) que algo grande seja grande em virtude de alguma coisa

pequenardquo (καὶ τοῦτο δὴ τέρας εἶναι τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι Feacuted101b1-

2)44

44 Para outras passagens em que Soacutecrates afirma a impossibilidade de que uma causa possa ser

caracterizada pela propriedade oposta agravequela de que eacute causa Feacuted 68d 68e 100a-b Rep335c-d Prot355d Teet 199d

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Como vimos este princiacutepio baacutesico relativo agrave noccedilatildeo de causalidade eacute

ostensivamente apresentado no Feacutedon como a razatildeo para o fato de podermos de

maneira segura oferecer as Formas como causas das propriedades dos objetos

sensiacuteveis Em Feacuted102d6-8 Soacutecrates expande estes criteacuterios para as propriedades

imanentes afirmando que ldquonatildeo apenas a Grandeza em si jamais admitiraacute ser

simultaneamente grande e pequena como tambeacutem a grandeza-em-noacutes jamais

admitiraacute a pequenezrdquo (οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ

σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν)45

No Parmecircnides (129b1-2) encontramos esta mesma alegaccedilatildeo repetida quanto

Soacutecrates desafia seus interlocutores a lhe demonstrarem que a propriedade

imanente da semelhanccedila (αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά) pode se tornar dessemelhante e a

propriedade imanente da dessemelhanccedila semelhante

Portanto de acordo com a Teoria das Ideias para que possamos dizer que

um determinado objeto sensiacutevel x eacute F eacute preciso que tanto a Forma F quanto a

propriedade imanente F-em-x sejam unicamente caracterizadas pelo predicado F

isto eacute sejam auto-predicativas e natildeo apareccedilam nunca como o contraacuterio de F

Nos argumentos 1 e 2 Parmecircnides demonstra que a adoccedilatildeo do segundo

ramo do dilema natildeo pode ser harmonizada com a hipoacutetese de que as propriedades

imanentes satildeo entidades uniformes unicamente caracterizadas pela auto-

predicaccedilatildeo e completamente isentas da predicaccedilatildeo de opostos De acordo com o

segundo ramo do dilema um objeto x eacute grande por apresentar como sua

propriedade imanente uma parte da Grandeza Contudo por ser apenas uma parte

a grandeza-em-x eacute menor do que a Grandeza em si que representa o todo do qual

a grandeza-em-x eacute uma parte Consequentemente x eacute grande em virtude de uma

propriedade imanente que eacute ela mesma pequena Da mesma maneira se um

objeto y eacute igual em virtude de uma parte do Igual menor do que o Igual em si

entatildeo y eacute igual em virtude daquilo que eacute desigual

Em 3 Parmecircnides muda o foco de sua criacutetica A propriedade imanente

pequeno-em-x considerada como uma parte do Pequeno em si eacute de fato

pequena e natildeo estaria sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos Contudo neste caso a

45 O mesmo ponto eacute reafirmado em 102e5-103a1 Eacute preciso notar que tal afirmaccedilatildeo estaacute em pleno

acordo com o papel das propriedades imanentes na soluccedilatildeo de Soacutecrates para o problema da copresenccedila de opostos Afinal admtir que uma propriedade imanente eacute caracterizada por seu oposto seria equivalente a afirmar que um mesmo elemento constituinte de Soacutecrates eacute simultaneamente grande e pequeno o que natildeo solucionaria o problema da copresenccedila de

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contradiccedilatildeo eacute encontrada na proacutepria Forma do Pequeno Pois se a Forma do

Pequeno eacute maior do que cada uma de suas partes o Pequeno em si eacute grande

Novamente nos vemos frente a uma impossibilidade loacutegica pois a causa das

coisas serem pequenas seria ela mesma grande Com relaccedilatildeo ao poder causal

exercido pela Forma do Pequeno Parmecircnides ainda acrescenta uma uacuteltima

perplexidade caso entendamos que um objeto z torna-se pequeno por adquirir a

propriedade imanente pequeno-em-z seremos obrigados a admitir que o objeto z

torna-se pequeno em virtude de uma adiccedilatildeo o que estaacute em claro desacordo com os

princiacutepios baacutesicos da matemaacutetica

As conclusotildees obtidas por Parmecircnides demonstram que a hipoacutetese da

participaccedilatildeo em partes das Formas teria como consequecircncia a predicaccedilatildeo de

opostos da Forma do Pequeno e das propriedades imanentes do grande e do igual

Consequentemente o poder causal exercido por estas trecircs Formas especiacuteficas

tornar-se-ia inexplicaacutevel uma vez que um dos princiacutepios baacutesicos da causalidade

seria violado e estas entidades estariam sujeitas ao problema da predicaccedilatildeo de

opostos para o qual deveriam servir de soluccedilatildeo

Como podemos perceber estes trecircs argumentos apresentam paradoxos

especiacuteficos relativos apenas agraves Formas do Grande do Igual e do Pequeno

fugindo portanto da generalidade encontrada na argumentaccedilatildeo de Parmecircnides ateacute

aqui Aleacutem disso estes argumentos satildeo estruturalmente desnecessaacuterios uma vez

que Soacutecrates jaacute havia admitido a inviabilidade do segundo ramo do dilema ao

concluir que seria impossiacutevel aceitar que uma Forma uacutenica possa estar dividida

por seus participantes (τὸ ἓν εἶδος microερίζεσθαι)46

Podemos nos perguntar por que Platatildeo incluiria esta descontinuidade

umas vez que os argumentos seguintes voltaratildeo a ser dirigidos contra o conjunto

de Formas em sua generalidade Minha opiniatildeo eacute que Platatildeo apresenta estes trecircs

argumentos como encerramento dos problemas relativos ao dilema da participaccedilatildeo

com o intuito de chamar a atenccedilatildeo do leitor para o tema da auto-predicaccedilatildeo das

Formas O fato de que as Formas satildeo entidades auto-predicativas estaacute diretamente

opostos

46 De fato no momento mesmo em que Soacutecrates aceita a analogia da vela oferecida por Parmecircnides o segundo ramo do dilema da participaccedilatildeo torna-se inviaacutevel Afinal o fato de Soacutecrates possuir diversas partes havia sido suficiente para concluir que ele Soacutecrates eacute muacuteltiplo Sendo assim por paridade de raciociacutenio o fato de mais de um objeto sensiacutevel participar de uma mesma Forma que estende suas diversas partes sobre estes objetos eacute suficiente para concluir a multiplicidade desta Forma

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relacionado com os paradoxos relativos agraves Formas do Grande do Igual e do

Pequeno e seraacute fundamental na compreensatildeo dos dois regressos ao infinito que

seratildeo apresentados nos proacuteximos argumentos Contudo em todos estes

argumentos a caracteriacutestica de auto-prediccedilatildeo das Formas aparece como uma

premissa pressuposta nunca textualmente expressa Portanto ao apresentar esta

seacuterie de trecircs paradoxos nos quais a auto-predicaccedilatildeo das Formas estaacute claramente

em jogo Platatildeo oferece aos leitores do Parmecircnides uma chave de leitura para a

compreensatildeo dos regressos que seratildeo apresentados em seguida

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427 A validade do dilema da participaccedilatildeo como criacutetica agrave Teoria das Ideias

O dilema da participaccedilatildeo constitui uma reduccedilatildeo ao absurdo formalmente

vaacutelida Soacutecrates havia sustentado que 1) existem Formas e 2) os objetos sensiacuteveis

participam nestas Formas O dilema apresenta duas alternativas exaustivas de

compreensatildeo para o que seria a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo e ambas se mostram

inaceitaacuteveis para Teoria das Ideias Logo o dilema da participaccedilatildeo implica na

falsidade da tese 2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis participam nas Formas Eacute

claro contudo que a validade destas duas teses eacute plenamente independente

Parmecircnides provou que a tese 2) eacute falsa a despeito do fato de que a tese 1) possa

ser verdadeira e as Formas possam ser consideradas entidades reais

No entanto desde jaacute cabe a pergunta qual seria a vantagem teoacuterica de se

admitir a existecircncia das Formas sem que fique esclarecida a natureza da relaccedilatildeo

que estas entidades mantecircm com os objetos do mundo empiacuterico Uma satisfatoacuteria

compreensatildeo para natureza da relaccedilatildeo entre Formas e coisas mostra-se essencial

para validade da hipoacutetese das Formas pois a incapacidade de elucidar o modo

especiacutefico de relacionamento entre estes dois niacuteveis distintos da realidade teria

como resultado a total irrelevacircncia da postulaccedilatildeo das Formas Isto porque

isoladas das coisas do mundo sensiacutevel as Formas passariam a representar

entidades teoricamente irrelevantes e a postulaccedilatildeo destas entidades natildeo passaria

de uma supeacuterflua duplicaccedilatildeo da realidade empiacuterica

Contudo nada disso estaraacute em jogo caso as criacuteticas de Parmecircnides

comprovem-se irrelevantes para a Teoria das Ideias ou simplesmente falaciosas

Assim na tradiccedilatildeo de comentaacuterios ao Parmecircnides diversos autores procuraram

desqualificar natildeo apenas o sentido geral da argumentaccedilatildeo parmeniacutedica sob a

alegaccedilatildeo de que suas criacuteticas natildeo passam de uma grande piada ou de um mero

exerciacutecio eriacutestico como tambeacutem cada um dos argumentos separadamente Na

tentativa de invalidar o dilema da participaccedilatildeo e salvar a Teoria das Ideias deste

primeiro conjunto de criacuteticas trecircs estrateacutegias foram adotadas pelos comentadores

A primeira estrateacutegia jaacute foi por noacutes mencionada e consiste em afirmar que o

dilema da participaccedilatildeo natildeo diz respeito agrave Teoria das Ideias socraacutetica mas a uma

outra teoria qualquer Contudo como vimos a proacutepria estrutura do Parmecircnides

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proiacutebe este tipo de interpretaccedilatildeo No Parmecircnides eacute o proacuteprio Soacutecrates quem

apresenta a Teoria das Ideias e como demonstramos esta apresentaccedilatildeo guarda

todas as caracteriacutesticas essenciais da Teoria das Ideias encontrada nos diaacutelogos da

Juventude e Fase Meacutedia Sendo assim natildeo podemos descartar a validade do

dilema da participaccedilatildeo pela simples alegaccedilatildeo de que estamos lidando com um

caso de ignoratio elenchi

Uma segunda opccedilatildeo consiste em considerar o dilema da participaccedilatildeo como

formalmente correto poreacutem materialmente falso isto eacute fundado em falsas

premissas De acordo com este tipo de interpretaccedilatildeo que remonta ao comentaacuterio

de Proacuteclus (In Parm 859-862) o sentido de ldquoparticipaccedilatildeordquo inerente agraves criacuteticas de

Parmecircnides natildeo condiz com o sentido que esta expressatildeo recebe nos outros

diaacutelogos platocircnicos em que a Teoria das Ideias eacute apresentada Assim Cornford

comentando o dilema afirma que ldquoo argumento pressupotildee que o exemplar da

Grandeza que cabe agrave participaccedilatildeo de uma coisa grande eacute uma parte da Forma

entendida como um pedaccedilo (bit) no qual a Forma eacute cortada (cut up)rdquo De acordo

com Cornford este raciociacutenio entende os conceitos de ldquoparterdquo e ldquotodordquo em seu

ldquosentido mais grosseiro e materialrdquo (Cornford 1951 p85)

Adotando a mesma linha interpretativa Sprague alega que Parmecircnides soacute

pode chegar a suas conclusotildees porque interpreta ldquoparticipaccedilatildeordquo em um sentido

fiacutesico (physical sense) Segundo Sprague ldquouma reductio ad absurdum foi

construiacuteda mas apenas por meio de uma distorccedilatildeo da dualidade essencial da

teoria [das Ideias] e da relaccedilatildeo entre estes dois tipos de entidades [relaccedilatildeo esta]

que Platatildeo procura exprimir por meio de expressotildees como ldquoestar presenterdquo e

ldquoparticiparrdquo (Sprague 1967 p96)

Portanto de acordo estes autores o dilema da participaccedilatildeo apesar de

formalmente vaacutelido natildeo se apresenta como uma criacutetica honesta agrave Teoria das

Ideias Segundo este argumento Parmecircnides estaria interpretando de maneira

errocircnea o sentido do termo ldquoparticipaccedilatildeordquo O uso dos conceitos de todoparte

maiormenor e a compreensatildeo de ldquoparticipaccedilatildeordquo como a presenccedila da Forma nos

objetos sensiacuteveis seriam evidecircncias de uma reificaccedilatildeo da realidade inteligiacutevel que

segundo estes comentadores representaria uma brutal e inaceitaacutevel distorccedilatildeo da

verdadeira posiccedilatildeo socraacutetica

Ora a primeira objeccedilatildeo que podemos oferecer a este tipo de interpretaccedilatildeo

consiste em apresentar o fato dramaacutetico de que em nenhum momento da

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discussatildeo Soacutecrates protesta contra esta suposta deformaccedilatildeo de sua teoria Quando

Parmecircnides comeccedila a formular suas criacuteticas Soacutecrates jaacute havia apresentado sua

distinccedilatildeo fundamental entre ldquoas coisas que se vecircemrdquo (τοῖς ὁρωmicroένοις ) e ldquoas

coisas apreendidas pelo raciociacuteniordquo (τοῖς λογισmicroῷ λαmicroβανοmicroένοις ) estabelecendo

claros paracircmetros de diferenciaccedilatildeo entre estes dois tipos de entidades objetos

sensiacuteveis e Formas Caso o dilema da participaccedilatildeo se apresentasse como o

resultado da mera negligecircncia desta distinccedilatildeo fundamental o mais natural seria

que Soacutecrates reafirmasse esta distinccedilatildeo e bloqueasse a argumentaccedilatildeo parmeniacutedica

desde o iniacutecio Simplesmente natildeo haacute razatildeo para acreditarmos que Platatildeo tenha

decidido representar Soacutecrates em aporia por conta de um argumento decorrente da

negligecircncia da distinccedilatildeo proposta pelo proacuteprio Soacutecrates entre entidades sensiacuteveis

e inteligiacuteveis

O dilema da participaccedilatildeo funda-se no vocabulaacuterio empregado por Soacutecrates

para descrever a relaccedilatildeo entre Formas e coisas natildeo soacute no Parmecircnides como

tambeacutem por toda fase meacutedia e inicial Segundo Soacutecrates as coisas sensiacuteveis

ldquoparticipamrdquo (metexousin metalambanousin) das Formas ou ldquocomunicam-serdquo

(koinwnou=sin koinwnian e)xousin) com elas Como resultado desta relaccedilatildeo as

coisas sensiacuteveis passam a ldquopossuirrdquo (e)xousin) ou ldquoreceberrdquo (dexontai) as Formas

As Formas por sua vez passam a ldquoestar presentesrdquo (πάρεστιν) ou a ldquoestar nasrdquo

(e)neστι) coisas Portanto ao propor que a noccedilatildeo de participaccedilatildeo soacute pode ser

entendida por meio da disjunccedilatildeo partetodo Parmecircnides estaacute oferecendo

paracircmetros baacutesicos de compreensatildeo e anaacutelise para um conceito apresentado pelo

proacuteprio Soacutecrates

Os argumentos de Parmecircnides podem inclusive ser construiacutedos

formalmente sem que uma interpretaccedilatildeo material das Formas seja de qualquer

modo pressuposta Afinal a disjunccedilatildeo partetodo se mostra como uacutenica opccedilatildeo

vaacutelida para compreensatildeo de uma relaccedilatildeo descrita como ldquoa participaccedilatildeo da

entidade x na entidade yrdquo independente do estatuto ontoloacutegico atribuiacutedo e estas

entidades Uma evidecircncia disto encontra-se no fato de que nos Elementos (I

axioma 5) Euclides lista o axioma de que ldquoo todo eacute maior do que as partesrdquo (Καὶ

τὸ ὅλον τοῦ microέρους microεῖζον [ἐστιν]) como uma ldquonoccedilatildeo comumrdquo Tais ldquonoccedilotildees

comunsrdquo (koinai e)nnoiai) satildeo definidas como princiacutepios indemonstraacuteveis

comuns a todas as ciecircncias e que portanto ultrapassam o campo da geometria e

natildeo tecircm sua validade restrita aos raciociacutenios envolvendo coisas estendidas no

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espaccedilo (cf Heath 1956 p221-222)

Sendo assim natildeo haacute porque desqualificar o dilema da participaccedilatildeo sob a

alegaccedilatildeo de que este argumento funda-se em uma ldquocoisificaccedilatildeordquo falaciosa da

hipoacutetese das Formas Os argumentos de Parmecircnides ilustram contradiccedilotildees

decorrentes de uma determinada interpretaccedilatildeo para relaccedilatildeo entre objetos

empiacutericos e Formas proposta pelo proacuteprio Soacutecrates e que natildeo estaacute diretamente

fundada na atribuiccedilatildeo de uma natureza material para as Formas mas deriva do

reconhecimento de que qualquer tipo de participaccedilatildeo deve ser entendida por meio

dos conceitos baacutesicos de parte e todo Soacutecrates havia proposto que as coisas

sensiacuteveis participam das Formas e como consequecircncia desta participaccedilatildeo

adquirem suas diversas propriedades imanentes Natildeo haacute falaacutecia alguma em se

apresentar a disjunccedilatildeo todoparte como modos exaustivos de se compreender esta

relaccedilatildeo Pois de fato estas satildeo as uacutenicas maneiras logicamente possiacuteveis de

entendermos uma relaccedilatildeo descrita deste modo

Uma terceira maneira de desqualificar a validade do dilema consiste em

alegar tal como faz David Ross (Ross 1951 p88-89) que os argumentos de

Parmecircnides baseiam-se em uma interpretaccedilatildeo literal para termos que Soacutecrates

apresenta como meras metaacuteforas Segundo este tipo de interpretaccedilatildeo Soacutecrates

estaria imune agraves criacuteticas de Parmecircnides pelo fato de natildeo se propor a definir de

maneira precisa a relaccedilatildeo entre Formas e coisas Para Ross os conceitos de

ldquoparticipaccedilatildeordquo e ldquocomunhatildeordquo satildeo apresentados por Soacutecrates como ilustraccedilotildees

aproximadas para uma relaccedilatildeo reconhecida como na verdade indescritiacutevel

Ora eacute claro que tal objeccedilatildeo sequer constitui um argumento contra a

validade do dilema parmeniacutedico A noccedilatildeo de que a relaccedilatildeo entre Formas e coisas eacute

uma relaccedilatildeo uacutenica para qual nenhuma definiccedilatildeo satisfatoacuteria pode ser apresentada eacute

conveniente apenas como uma soluccedilatildeo ad hoc para os problemas levantados por

Parmecircnides De fato esta explicaccedilatildeo pressupotildee a validade das criacuteticas de

Parmecircnides para concluir que o termo ldquoparticipaccedilatildeordquo eacute meramente metafoacuterico e

natildeo se pretende como uma definiccedilatildeo seacuteria Aleacutem disso nos vemos novamente

frente ao fato dramaacutetico de que Soacutecrates em momento algum atribui uma

natureza sui generis e indescritiacutevel para relaccedilatildeo entre Formas e coisas Em total

oposiccedilatildeo ao que esperariacuteamos caso Platatildeo desejasse indicar o caraacuteter indefiniacutevel

desta relaccedilatildeo Soacutecrates iraacute propor no decorrer do diaacutelogo maneiras alternativas de

entender o relacionamento entre Formas e coisas o que evidencia a crenccedila deste

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personagem na possibilidade de uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria para esta relaccedilatildeo De

qualquer maneira o fato de Soacutecrates propor o termo ldquoparticipaccedilatildeordquo como uma

descriccedilatildeo metafoacuterica para o relacionamento entre Formas e coisas natildeo invalida ou

deslegitima as criacuteticas de Parmecircnides Afinal mesmo uma metaacutefora deve ser

investigada quando aparece no interior de uma hipoacutetese filosoacutefica Portanto

ainda que se trate de um uso meramente ilustrativo da palavra ldquoparticipaccedilatildeordquo este

uso deve ser analisado na intenccedilatildeo de concluirmos se este termo configura-se

como uma ilustraccedilatildeo adequada para a relaccedilatildeo entre Formas e coisas ou natildeo

A confirmaccedilatildeo dramaacutetica da relevacircncia da argumentaccedilatildeo de Parmecircnides e

ainda da validade do seu dilema como uma apresentaccedilatildeo exaustiva das

possibilidades de compreensatildeo da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo encontra-se nas linhas

que encerram este estaacutegio da discussatildeo

ldquoEntatildeo de que maneira Soacutecrates disse ele as outras coisas para ti teratildeo participaccedilatildeo nas Formas natildeo podendo ter participaccedilatildeo nem quanto agrave parte nem quanto ao todo Por Zeus disse ele natildeo me parece de modo algum ser faacutecil determinar tal coisardquo Τίνα οὖν τρόπον εἰπεῖν ὦ Σώκρατες τῶν εἰδῶν σοι τὰ ἄλλα microεταλήψεται microήτε κατὰ microέρη microήτε κατὰ ὅλα microεταλαmicroβάνειν δυνάmicroενα Οὐ microὰ τὸν ∆ία φάναι οὔ microοι δοκεῖ εὔκολον εἶναι τὸ τοιοῦτον οὐδαmicroῶς διορίσασθαι (131e3-7)

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43 O Argumento do Terceiro Homem e a multiplicaccedilatildeo inf inita das Formas

Tendo terminado suas objeccedilotildees agrave noccedilatildeo de participaccedilatildeo defendida por

Soacutecrates Parmecircnides inicia uma segunda seacuterie de criacuteticas na qual seratildeo

apresentados dois casos daquilo que ficou conhecido na literatura secundaacuteria

como ldquoArgumento do Terceiro Homemrdquo A expressatildeo ldquoo terceiro homemrdquo (ὁ

τρίτος ἄνθρωπος) pode ser encontrada mais de uma vez na obra de Aristoacuteteles

(RefSof178b36 179a3 Meta990b17 1039a2-3 1059b8 1079a13) onde eacute

usada para designar um conjunto heterogecircneo de criacuteticas agrave Teoria das Ideias Em

seus comentaacuterios agrave Metafiacutesica Alexandre de Afrodiacutesia nos fornece diversos

exemplos de argumentos que receberam esta denominaccedilatildeo geneacuterica Enquanto

alguns dos exemplos descritos por Alexandre natildeo possuem qualquer relaccedilatildeo com

as criacuteticas do Parmecircnides uma de suas descriccedilotildees apresenta profunda semelhanccedila

com os dois argumentos que encontramos em nosso diaacutelogo47

ldquoSe um termo predicado verdadeiramente de uma multiplicidade de coisas existe separadamente (κεχωρισmicroένον) das coisas de que eacute predicado (hellip) entatildeo haveraacute um terceiro Homem Pois se o Homem que eacute predicado eacute diferente das coisas de que eacute predicado e possui uma existecircncia independente e se eacute predicado tanto dos indiviacuteduos quantos das Formas haveraacute um terceiro Homem ao lado dos indiviacuteduos e da Forma E do mesmo modo um quarto predicado deste terceiro da Forma e dos indiviacuteduos e um quinto e assim indefinidamente ( ἐπ ἄπειρον)rdquo εἰ τὸ κατηγορούmicroενόν τινων πλειόνων ἀληθῶς καὶ ἔστιν ἄλλο παρὰ τὰ ὧν κατηγορεῖται κεχωρισmicroένον αὐτῶν () ἀλλ εἰ τοῦτο ἔσται τις τρίτος ἄνθρωπος εἰ γὰρ ἄλλος ὁ κατηγορούmicroενος ὧν κατηγορεῖται καὶ κατ ἰδίαν ὑφεστώς κατηγορεῖται δὲ κατά τε τῶν καθ ἕκαστα καὶ κατὰ τῆς ἰδέας ὁ ἄνθρωπος ἔσται τρίτος τις ἄνθρωπος παρά τε τοὺς καθ ἕκαστα καὶ τὴν ἰδέαν οὕτως δὲ καὶ τέταρτος ὁ κατά τε τούτου καὶ τῆς ἰδέας καὶ τῶν καθ ἕκαστα κατηγορούmicroενος ὁmicroοίως δὲ καὶ πέmicroπτος καὶ τοῦτο ἐπ ἄπειρον (InMetaph 8422-8523)

Como podemos perceber o argumento descrito por Alexandre pretende a

partir do reconhecimento da existecircncia de uma uacutenica Forma de Homem gerar

uma multiplicidade indefinida (ἄπειρον) destas Formas No Parmecircnides esta

conclusatildeo seraacute usada para demonstrar mais uma vez a impossibilidade de

47 O primeiro argumento denominado de Terceiro Homem por Alexandre eacute atribuiacutedo a Eudemos

(In Metaph842-7 859-11) O segundo (847-16) eacute atribuiacutedo de maneira imprecisa a ldquosofistasrdquo O terceiro (8416-21) eacute atribuiacutedo a Polixeno um contemporacircneo de Platatildeo e o quarto agrave Aristoacuteteles (8422-8523) Destes quatro apenas o uacuteltimo deles guarda semelhanccedilas

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mantermos simultaneamente a tese da unidade das Formas e a tese de que as

Formas satildeo responsaacuteveis pelas propriedades dos objetos sensiacuteveis Por meio de

seu dilema Parmecircnides havia provado que a noccedilatildeo de participaccedilatildeo implica em

qualquer das acepccedilotildees possiacuteveis para este termo na anulaccedilatildeo da tese da unidade

das Formas Afinal entendida como uma relaccedilatildeo no todo de uma Forma a

participaccedilatildeo acarretaria na multiplicaccedilatildeo destas entidades de modo que seriacuteamos

obrigados a admitir tantas Formas de F quantas entidades sensiacuteveis possuidoras

desta propriedade Por outro lado entendida como uma relaccedilatildeo entre os muacuteltiplos

Fs sensiacuteveis e partes da Forma F a participaccedilatildeo acabaria por destruir a integridade

das Formas e cada Forma teria tantas partes quantos participantes se tornando

uma entidade internamente complexa e sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos Como

proacuteximo passo de sua demonstraccedilatildeo Parmecircnides pretende demonstrar que de

acordo com a teoria apresentada por Soacutecrates as Formas estatildeo fadadas a uma

multiplicaccedilatildeo infinita

Assim como havia feito ao introduzir o dilema da participaccedilatildeo

Parmecircnides marca muito claramente o iniacutecio de uma nova seacuterie de argumentos

ldquoPois bem E em relaccedilatildeo ao seguinte como pensas Em relaccedilatildeo a quecirc Creio que tu crecircs que cada Forma eacute uma48 pelo seguinte quando algumas coisas muacuteltiplas te parecem ser grandes talvez te pareccedila a ti que as olhas todas haver uma certa ideia49 uma e a mesma em todas donde acreditas o grande ser um Dizes a verdade [Soacutecrates] disse Mas e quanto ao Grande ele mesmo e agraves outras coisas grandes Se olhares da mesma maneira com a alma para todos esses natildeo apareceraacute de novo um Grande um em virtude do qual eacute necessaacuterio todas aquelas coisas aparecerem como grandes Parece que sim Logo uma outra Forma da Grandeza apareceraacute surgindo ao lado da Grandeza ela mesma e das coisas que destas participam E sobre todas essas [apareceraacute] de novo uma outra de modo a em virtude dela todas essas parecerem grandes E natildeo mais seraacute uma cada uma das tuas Formas mas ilimitadas em quantidaderdquo Τί δὲ δή πρὸς τόδε πῶς ἔχεις Τὸ ποῖον Οἶmicroαί σε ἐκ τοῦ τοιοῦδε ἓν ἕκαστον εἶδος οἴεσθαι εἶναι ὅταν πόλλ ἄττα microεγάλα σοι δόξῃ εἶναι microία τις ἴσως δοκεῖ ἰδέα ἡ αὐτὴ εἶναι ἐπὶ πάντα ἰδόντι ὅθεν ἓν τὸ

com o par de argumentos encontrados no Parmecircnides

48 Aqui novamente ἓν designa a unidade numeacuterica de cada Forma Compare as expressotildees ἓν ἕκαστον εἶδος com πόλλ ἄττα microεγάλα e πάντα microεγάλα usadas para descrever a multiplicidade de objetos grandes sensiacuteveis

49 Natildeo me parece claro que Soacutecrates esteja usando ἰδέα em sua acepccedilatildeo teacutecnica de Forma platocircnica nesta sentenccedila apesar desta leitura ser certamente uma opccedilatildeo viaacutevel Em funccedilatildeo desta indefiniccedilatildeo optei por deixar a palavra ldquoideiardquo sem a maiuacutescula que venho usando para designar as Formas

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microέγα ἡγῇ εἶναι Ἀληθῆ λέγεις φάναι Τί δ αὐτὸ τὸ microέγα καὶ τἆλλα τὰ microεγάλα ἐὰν ὡσαύτως τῇ ψυχῇ ἐπὶ πάντα ἴδῃς οὐχὶ ἕν τι αὖ microέγα φανεῖται ᾧ ταῦτα πάντα microεγάλα φαίνεσθαι Ἔοικεν Ἄλλο ἄρα εἶδος microεγέθους ἀναφανήσεται παρ αὐτό τε τὸ microέγεθος γεγονὸς καὶ τὰ microετέχοντα αὐτοῦ καὶ ἐπὶ τούτοις αὖ πᾶσιν ἕτερον ᾧ ταῦτα πάντα microεγάλα ἔσται καὶ οὐκέτι δὴ ἓν ἕκαστόν σοι τῶν εἰδῶν ἔσται ἀλλὰ ἄπειρα τὸ πλῆθος (131e8-132b2)

Esta primeira versatildeo do Argumento do Terceiro Homem desenvolve-se de

maneira muito claramente anaacuteloga ao argumento descrito por Alexandre Se as

coisas satildeo grandes por causa (ᾧ) da Grandeza e se paralelamente podemos

considerar a Grandeza ela mesma uma coisa grande entatildeo devemos supor a

existecircncia de uma segunda Forma da Grandeza causa da propriedade da grandeza

tanto das coisas grandes quanto da primeira Grandeza Aleacutem disso considerando

esta segunda Forma da Grandeza novamente uma coisa grande uma terceira

Forma surgiria e assim ad infinitum Portanto segundo este raciociacutenio nenhuma

Forma seria numericamente uacutenica uma vez que o proacuteprio poder causal exercido

pelas Formas seria razatildeo de sua infinita multiplicaccedilatildeo Frente a esta multiplicaccedilatildeo

indesejada das Formas Soacutecrates procura uma saiacuteda inteiramente diversa

formulando uma hipoacutetese completamente inesperada50

ldquoMas Parmecircnides disse Soacutecrates vai ver cada uma dessas Formas eacute um pensamento e natildeo lhe cabe surgir em nenhum outro lugar a natildeo ser nas almas Pois sendo assim cada uma seria uma e natildeo mais seria afetada pelo que haacute pouco foi ditordquo Ἀλλά φάναι ὦ Παρmicroενίδη τὸν Σωκράτη microὴ τῶν εἰδῶν ἕκαστον ᾖ τούτων νόηmicroα καὶ οὐδαmicroοῦ αὐτῷ προσήκῃ ἐγγίγνεσθαι ἄλλοθι ἢ ἐν ψυχαῖς οὕτω γὰρ ἂν ἕν γε ἕκαστον εἴη καὶ οὐκ ἂν ἔτι πάσχοι ἃ νυνδὴ ἐλέγετο (132b3-6)

Tendo defendido anteriormente que as Formas satildeo entidades inteligiacuteveis

isto eacute apreendidas pela razatildeo Soacutecrates procura escapar dos paradoxos de

Parmecircnides afirmando que as Formas satildeo elas mesmas pensamentos (νοήmicroατα)

Entendidas como pensamentos cada uma das Formas manteria sua unidade

caracteriacutestica e natildeo estaria em qualquer outro lugar senatildeo na alma daquele que a

percebe Eacute importante notar contudo que natildeo devemos interpretar a sugestatildeo de

50 A idiossincrasia da proposta de Soacutecrates estaacute refletida no fato de que excluindo a presente

passagem e uma citaccedilatildeo ao poema de Parmecircnides no Sofista a palavra νόηmicroα soacute aparece trecircs vezes em toda obra platocircnica e em contextos sem grande importacircncia (cf Men95e5 Banq197e5 Pol260d8)

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Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de um subjetivismo radical de acordo com o qual as

Formas deixariam de possuir um estatuto ontoloacutegico separado e passariam a ser

completamente dependentes da mente daqueles que as concebe Caso o presente

passo da argumentaccedilatildeo socraacutetica pudesse ser entendido como a transformaccedilatildeo das

Formas em meros conteuacutedos de pensamento ou produtos da atividade da mente

humana estariacuteamos frente a uma nova concepccedilatildeo de Formas certamente

problemaacutetica poreacutem completamente distinta da noccedilatildeo de Formas defendida por

Soacutecrates desde o iniacutecio da discussatildeo Neste caso a proposta de Soacutecrates

representaria muito mais o abandono total da hipoacutetese das Formas do que uma

tentativa de reformulaccedilatildeo desta hipoacutetese

Como nada no texto indica que Soacutecrates esteja rompendo por completo

com a Teoria das Ideias devemos acreditar que a proposta de compreensatildeo das

Formas como pensamentos representa apenas mais uma tentativa de manter a

unidade e integridade caracteriacutesticas destas entidades sem que permaneccedila

inviabilizada a relaccedilatildeo causal que elas mantecircm com os objetos do mundo sensiacutevel

O que Soacutecrates pretende afirmar portanto eacute que as Formas devem ser entendidas

como conceitos universais acessiacuteveis pela alma humana Assim as coisas se

relacionariam com as Formas apenas por meio do pensamento humano e

poderiacuteamos salvar a hipoacutetese da causalidade das Formas ao menos no que diz

respeito agrave nossa apreensatildeo do mundo sensiacutevel Ao mesmo tempo permaneceriam

mantidas as caracteriacutesticas ontoloacutegicas de unidade e integridade das Formas

Parmecircnides no entanto demonstra rapidamente a impossibilidade desta

proposta se todo pensamento eacute pensamento de alguma coisa (νόηmicroα hellip τινός) e

ainda eacute pensamento de alguma coisa que eacute (τινός hellip ὄντος) entatildeo a hipoacutetese de

que a relaccedilatildeo entre Formas e coisas se daacute apenas no acircmbito da mente humana eacute

insustentaacutevel e o pensamento deve novamente ser entendido como uma Forma

uacutenica sobre uma multiplicidade de coisas sensiacuteveis (εἶδος hellip ἓν εἶναι ἀεὶ ὂν τὸ

αὐτὸ ἐπὶ πᾶσιν)

Ficando restabelecido o relacionamento direto entre Formas e coisas pois

todo pensamento eacute pensamento de alguma coisa a proposta de Soacutecrates se mostra

evidentemente contraditoacuteria Afinal se as Formas satildeo pensamentos e as coisas

participam nas Formas entatildeo todas as coisas participam do pensamento e

consequentemente o pensamento estaacute em todas as coisas Ora eacute evidente que nos

dois casos contradiccedilotildees surgiriam Por um lado se todas as coisas participam do

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pensamento entatildeo todas as coisas pensam (πάντα νοεῖν) o que eacute absurdo Por

outro lado por estar presente em todas as coisas o pensamento estaria presente

em coisas que pensam como homens poreacutem tambeacutem em coisas que natildeo pensam

Neste segundo caso teriacuteamos coisas que satildeo pensamento na medida em que

possuem pensamentos em si (ἐκ νοηmicroάτων ἕκαστον εἶναι) poreacutem natildeo pensam

(νοήmicroατα ὄντα ἀνόητα εἶναι) Para usarmos um exemplo concreto se uma pedra

possui a Forma da Grandeza e esta Forma por sua vez eacute um pensamento entatildeo

ou bem temos que admitir que a pedra eacute capaz de pensar ou bem temos que

admitir que a pedra possui em si um pensamento poreacutem natildeo pensa Por fim

atraveacutes destes simples argumentos Soacutecrates eacute levado mais uma vez a reconhecer

o evidente fracasso de sua tentativa

Apesar de sua sugestatildeo anterior ter sido enunciada com certa hesitaccedilatildeo51

Soacutecrates agora se mostra bastante confiante para apresentar uma nova proposta

Ele entatildeo afirma que as Formas devem ser entendidas como paradigmas

(παραδείγmicroατα) enquanto que as coisas sensiacuteveis que delas participam devem ser

entendidas como imagens produzidas a partir das Formas (εἰκασθῆναι αὐτοῖς)

ldquoMas Parmecircnides a mim estaacute sendo evidente que o que se passa eacute antes o seguinte que estas Formas estatildeo na natureza como paradigmas e que as outras coisas se parecem com elas e satildeo semelhanccedilas delas E que essa participaccedilatildeo nas Formas para estas outras coisas natildeo vem a ser senatildeo o serem estas feitas como imagens daquelasrdquo ἀλλ ὦ Παρmicroενίδη microάλιστα ἔmicroοιγε καταφαίνεται ὧδε ἔχειν τὰ microὲν εἴδη ταῦτα ὥσπερ παραδείγmicroατα ἑστάναι ἐν τῇ φύσει τὰ δὲ ἄλλα τούτοις ἐοικέναι καὶ εἶναι ὁmicroοιώmicroατα καὶ ἡ microέθεξις αὕτη τοῖς ἄλλοις γίγνεσθαι τῶν εἰδῶν οὐκ ἄλλη τις ἢ εἰκασθῆναι αὐτοῖς (132c12-d4)

Esta uacuteltima proposta possui a aparente virtude de anunciar uma explicaccedilatildeo

completamente nova para relaccedilatildeo de participaccedilatildeo ao inveacutes de simplesmente

oferecer mais um modo de entendermos a presenccedila das Formas nas coisas Frente

a todas as criacuteticas anteriormente formuladas por Parmecircnides Soacutecrates introduz agrave

discussatildeo a possibilidade das Formas serem entendidas como modelos ou

paradigmas aos quais os objetos sensiacuteveis se assemelham Entendida desta

maneira a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo natildeo implicaria na presenccedila das Formas nas

coisas e portanto representaria uma real alternativa ao dilema formulado por

51 Compare as palavras que iniciam sua proposta anterior (Ἀλλά hellip microὴ) com as palavras usadas

para introduzir sua presente proposta (microάλιστα ἔmicroοιγε καταφαίνεται)

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Parmecircnides no iniacutecio da discussatildeo e que vem dominando o debate desde entatildeo

De acordo com a presente sugestatildeo uma Forma deve ser entendida com

um modelo enquanto os objetos sensiacuteveis seriam como as diversas coacutepias que um

artista produz a partir da contemplaccedilatildeo deste modelo Portanto segundo a

descriccedilatildeo socraacutetica participar de uma determinada Forma seria equivalente a ser

semelhante ou ser uma coacutepia desta Forma Note que a princiacutepio a relaccedilatildeo ldquoser-

semelhante-ardquo pode ser entendida como uma relaccedilatildeo assimeacutetrica Ou seja

podemos pensar casos em que x eacute semelhante a y poreacutem y natildeo eacute semelhante a x

Pense por exemplo na relaccedilatildeo estabelecida entre Soacutecrates e as diversas

representaccedilotildees graacuteficas de Soacutecrates que foram produzidas no decorrer da histoacuteria

Podemos perfeitamente conceber que todas estas representaccedilotildees se assemelham a

Soacutecrates enquanto por outro lado Soacutecrates natildeo se assemelha a nenhuma delas

Entendida desta maneira a compreensatildeo de participaccedilatildeo como semelhanccedila natildeo

daria lugar a um regresso ao infinito No entanto Parmecircnides iraacute focar sua criacutetica

na demonstraccedilatildeo de que a relaccedilatildeo de semelhanccedila pressupotildee um caraacuteter simeacutetrico

ainda que Soacutecrates natildeo esteja plenamente consciente disto

ldquoSe entatildeo algo se parece com uma Forma disse Parmecircnides eacute possiacutevel essa Forma natildeo ser semelhante agravequilo que eacute feito como sua imagem na medida em que esta foi feita semelhante a ela Ou seraacute que haacute um meio de o semelhante natildeo ser semelhante ao semelhante Natildeo haacute Mas seraacute que natildeo eacute fortemente necessaacuterio o semelhante participar da mesma coisa uma que [seu] semelhante Eacute necessaacuterio sim Aquilo de que participando as coisas semelhantes seratildeo semelhantes natildeo seraacute a Forma mesma Absolutamente sim Logo natildeo eacute possiacutevel algo ser semelhante agrave Forma nem a Forma ser semelhante a outra coisa Senatildeo ao lado da Forma sempre apareceraacute outra Forma e se esta for semelhante a algo apareceraacute de novo outra e nunca cessaraacute de surgir sempre uma nova Forma se a Forma for semelhante ao que dela participardquo Εἰ οὖν τι ἔφη ἔοικεν τῷ εἴδει οἷόν τε ἐκεῖνο τὸ εἶδος microὴ ὅmicroοιον εἶναι τῷ εἰκασθέντι καθ ὅσον αὐτῷ ἀφωmicroοιώθη ἢ ἔστι τις microηχανὴ τὸ ὅmicroοιον microὴ ὁmicroοίῳ ὅmicroοιον εἶναι Οὐκ ἔστι Τὸ δὲ ὅmicroοιον τῷ ὁmicroοίῳ ἆρ οὐ microεγάλη ἀνάγκη ἑνὸς τοῦ αὐτοῦ microετέχειν Ἀνάγκη Οὗ δ ἂν τὰ ὅmicroοια microετέχοντα ὅmicroοια ᾖ οὐκ ἐκεῖνο ἔσται αὐτὸ τὸ εἶδος Παντάπασι microὲν οὖν Οὐκ ἄρα οἷόν τέ τι τῷ εἴδει ὅmicroοιον εἶναι οὐδὲ τὸ εἶδος ἄλλῳ εἰ δὲ microή παρὰ τὸ εἶδος ἀεὶ ἄλλο ἀναφανήσεται εἶδος καὶ ἂν ἐκεῖνό τῳ ὅmicroοιον ᾖ ἕτερον αὖ καὶ οὐδέποτε παύσεται ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον ἐὰν τὸ εἶδος τῷ ἑαυτοῦ microετέχοντι ὅmicroοιον γίγνηται (132d5-133a1)

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A demonstraccedilatildeo de Parmecircnides guarda novamente profundas

similaridades com o tipo de regresso ao infinito descrito por Alexandre de

Afrodiacutesia De acordo com a proposta socraacutetica diversas coisas belas possuem a

propriedade da beleza porque satildeo semelhantes agrave Beleza ela mesma (ἔοικεν τῷ

εἴδει) Parmecircnides entatildeo argumenta que caso as muacuteltiplas coisas belas sensiacuteveis

sejam semelhantes agrave Forma da Beleza entatildeo a Forma da Beleza seraacute tambeacutem

semelhante a elas Afinal devemos pressupor que coisas semelhantes se

assemelham por compartilhar alguma propriedade em comum (τὸ ὅmicroοιον τῷ

ὁmicroοίῳ ἀνάγκη ἑνὸς τοῦ αὐτοῦ microετέχειν) em nosso exemplo a propriedade da

beleza Neste caso contudo uma nova Forma da Beleza surgiria Esta nova

Forma teria a funccedilatildeo de explicar a beleza compartilhada pelas coisas belas e pela

Beleza ela mesma (παρὰ τὸ εἶδος ἀεὶ ἄλλο ἀναφανήσεται εἶδος) Tal como

ocorrido anteriormente este processo se repetiria indefinidamente (οὐδέποτε

παύσεται ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον) e acabariacuteamos por ter que admitir a

existecircncia de uma infinidade de Formas da Beleza numericamente distintas

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431 A formalizaccedilatildeo do Argumento do Terceiro Homem

O lugar de destaque que criacuteticas agrave Teoria das Ideias envolvendo regressotildees

ao infinito receberam ainda no tempo de Platatildeo fica comprovado pelas menccedilotildees

de Aristoacuteteles a estes argumentos O comentaacuterio de Alexandre nos garante ainda

que tal posiccedilatildeo de destaque se manteacutem por todo periacuteodo heleniacutestico Apesar disso

a tradiccedilatildeo de comentaacuterios moderna iniciada na Alemanha do seacuteculo XIX parece

ter relegado este tipo de argumento agrave condiccedilatildeo de uma simples falaacutecia ou

colocando-o em peacute de igualdade aos argumentos decorrentes do dilema da

participaccedilatildeo (cf Waddell 1894 p94-95 99-100) Esta situaccedilatildeo modifica-se

completamente a partir da segunda metade do seacuteculo XX quando a publicaccedilatildeo de

um artigo de Gregory Vlastos (1955) restitui ao Argumento do Terceiro Homem

entendido agora estritamente como a demonstraccedilatildeo de uma multiplicaccedilatildeo infinita

do nuacutemero de Formas seu lugar de importacircncia em meio agraves criacuteticas agrave Teoria das

Ideias

O artigo de Vlastos possui como tema central a reconstruccedilatildeo da estrutura

loacutegica dos argumentos encontrados no Parmecircnides Como vimos anteriormente

uma leitura das passagens em que as duas versotildees do regresso estatildeo anunciadas

permite um entendimento relativamente claro do raciociacutenio envolvido Poreacutem

como o amplo debate que se seguiu agrave publicaccedilatildeo do artigo de Vlastos demonstra

a reconstruccedilatildeo precisa das premissas implicadas no argumento natildeo eacute uma tarefa

simples Afinal eacute evidente que da maneira como estatildeo formulados no

Parmecircnides os argumentos necessitam de premissas natildeo expressas para que

sejam considerados vaacutelidos De fato a uacutenica premissa explicitamente apresentada

no texto de nosso diaacutelogo tanto no argumento de 131e-132b quanto no argumento

de 132d-133a eacute aquela que afirma a partir de uma multiplicidade de coisas que

recebem um determinado predicado F a existecircncia de uma Forma F em virtude da

qual todas as coisas recebem o predicado F Esta premissa eacute chamada por Vlastos

de premissa ldquoUm sobre Muitosrdquo (UM) e eacute apresentada em seu artigo de 1955

por meio da seguinte formulaccedilatildeo

(UMv) Se vaacuterias coisas a b c satildeo todas F entatildeo deve haver uma Forma uacutenica F-

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idade em virtude da qual apreendemos a b c como F

A argumentaccedilatildeo prosseguiria da seguinte maneira A partir de uma

multiplicidade de coisas F aplicariacuteamos a premissa (UM) para gerarmos uma

Forma de F-idade Esta Forma eacute entatildeo adicionada agrave coleccedilatildeo inicial e por meio de

mais uma aplicaccedilatildeo de (UM) gerariacuteamos outra Forma Esta nova Forma eacute

adicionada agrave coleccedilatildeo anterior e a premissa (UM) eacute aplicada novamente para gerar

uma nova Forma O mesmo processo poderia ser repetido ad infinitum

Eacute muito claro contudo que a premissa (UM) por si soacute natildeo eacute capaz de

gerar o regresso previamente descrito Afinal nenhuma claacuteusula foi oferecida para

a aplicaccedilatildeo reiterada da premissa (UM) aleacutem de nada nos obrigar a considerar

que cada nova aplicaccedilatildeo de (UM) seja responsaacutevel pelo surgimento de uma nova

Forma numericamente distinta daquela que foi gerada na aplicaccedilatildeo anterior deste

mesmo princiacutepio

Em vista disto Vlastos conclui que ldquoPlatatildeo devia ter algo mais em menterdquo

(Vlastos 1955 p236) e propotildee que na condiccedilatildeo de inteacuterpretes completemos as

lacunas do texto platocircnico Assim como justificativa para reitera aplicaccedilatildeo da

premissa (UM) Vlastos propotildee a seguinte premissa adicional

(APv) F-idade eacute F

Por meio desta premissa de ldquoAuto-Predicaccedilatildeordquo (AP)52 podemos explicar a

adiccedilatildeo da Forma F-idade ao grupo de coisas a b c Afinal (AP) garante que a

Forma F-idade eacute F tal como a b c Desta maneira apoacutes cada aplicaccedilatildeo de (UM)

estariacuteamos frente a um novo conjunto de entidades (Formas e coisas) todas elas

possuidoras de um mesmo predicado F o que nos permitiria uma nova aplicaccedilatildeo

de (UM)

Por outro lado para justificar a inferecircncia de que cada aplicaccedilatildeo de (OM)

produz uma Forma inteiramente nova Vlastos propotildee a seguinte premissa

(NIv) Se x eacute F entatildeo x natildeo pode ser idecircntico a F-idade

52 Entenderei durante toda discussatildeo subsequente que (AP) implica na univocidade de aplicaccedilatildeo

do predicado F isto eacute F-idade eacute F do mesmo modo que um objeto sensiacutevel x eacute F

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Por meio da adiccedilatildeo desta segunda premissa podemos garantir a natildeo

identidade entre cada uma das Formas geradas pelas diferentes aplicaccedilotildees de

(UM) Isto porque segundo (NI) qualquer coisa que seja F em virtude da

participaccedilatildeo em uma determinada Forma natildeo pode ser idecircntica agrave Forma da qual

participa Portanto a Forma produzida pela segunda aplicaccedilatildeo de (UM) natildeo pode

ser idecircntica agrave Forma produzida pela primeira aplicaccedilatildeo de (UM) caso contraacuterio

violaria (NI) e seria idecircntica agrave Forma em virtude da qual ela mesma eacute F

A accedilatildeo conjunta destas trecircs premissas eacute capaz de gerar o regresso ao

infinito que o personagem Parmecircnides apresenta explicitamente como a conclusatildeo

de seu argumento tanto em 132b quanto em 133a Contudo conforme notado pelo

proacuteprio Vlastos as duas premissas por ele adicionadas ao texto do diaacutelogo

possuem a caracteriacutestica de serem mutuamente inconsistentes Afinal a partir de

(NI) podemos facilmente inferir que F-idade natildeo eacute F contudo isto eacute justamente o

contraditoacuterio do que afirma (AP) Vlastos no entanto permanece convencido de

que estas satildeo exatamente as premissas que devemos atribuir a Soacutecrates E em

vista disto conclui que Platatildeo natildeo estava plenamente ciente das implicaccedilotildees de

seu argumento e nos apresenta estes dois regressos como um ldquoregistro de sua

honesta perplexidaderdquo (Vlastos 1955 p254)

Diversas publicaccedilotildees se seguiram ao artigo de Vlastos muitas delas com o

claro objetivo de formular um conjunto de premissas que natildeo estivesse sujeito agrave

inconsistecircncia encontrada na proposta inicial Sellars (1955) por exemplo

observa que Vlastos havia usado a expressatildeo ldquoF-idaderdquo como um designador

direto para as Formas e como alternativa propotildee que entendamos esta expressatildeo

como uma variaacutevel sujeita agrave quantificaccedilatildeo Assim concebidas as premissas do

Argumento do Terceiro Homem receberiam a seguinte formulaccedilatildeo

(UMs) Se vaacuterias coisas satildeo F entatildeo deve haver alguma F-idade em virtude da

qual estas coisas satildeo F

(APs)Todas F-idades satildeo F

(NIs) Se x eacute F entatildeo x natildeo eacute idecircntico agrave F-idade em virtude da qual x eacute F

(Sellars 1955 p418-419)

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Estas trecircs premissas satildeo de fato mutuamente consistentes aleacutem de serem

capazes de gerar o regresso ao infinito necessaacuterio para conclusatildeo dos argumentos

No entanto segundo Vlastos (1969) a formulaccedilatildeo proposta por Sellars para a

premissa (UMs) natildeo corresponde ao que encontramos no texto do Parmecircnides

Afinal em nosso diaacutelogo estaacute explicitamente afirmado que uma uacutenica Forma eacute

gerada a partir de uma determinada multiplicidade de coisas F (microία τις ἰδέα ἡ αὐτὴ

εἶναι ἐπὶ πάντα) enquanto a formulaccedilatildeo de Sellars faz uso de um quantificador

existencial ordinaacuterio cujo sentido deve ser entendido como ldquopelo menos uma

Formardquo

Concluindo que nenhuma formulaccedilatildeo de (UM) poderia estar correta sem

respeitar a singularidade implicada no raciociacutenio platocircnico Vlastos oferece uma

revisatildeo de seu conjunto de premissas

(UMv) Se qualquer conjunto de coisas compartilha uma mesma caracteriacutestica

entatildeo existe uma uacutenica Forma correspondente a esta caracteriacutestica e cada uma

destas coisas possui esta caracteriacutestica por participar nesta Forma

(APv) A Forma correspondente a uma determinada caracteriacutestica possui ela

mesma esta caracteriacutestica

(NIv) Se qualquer coisa possui uma determinada caracteriacutestica por participar em

uma Forma entatildeo esta coisa natildeo eacute idecircntica a esta Forma

(Vlastos 1969 p348-351)

Nesta nova formulaccedilatildeo do Argumento do Terceiro Homem natildeo haacute conflito

entre (AP) e (NI) Contudo se tomarmos as trecircs premissas em conjunto vemos

surgir uma nova inconsistecircncia Pois suponha que haacute uma seacuterie de coisas

possuidoras de uma mesma caracteriacutestica F entatildeo de acordo com (UMv) haveraacute

uma uacutenica Forma F correspondente agrave caracteriacutestica F Esta Forma por sua vez

possuiraacute ela mesma a caracteriacutestica F (APv) e compartilharaacute esta caracteriacutestica

com seus participantes No entanto por compartilhar de uma mesma caracteriacutestica

F a Forma F necessariamente participaria da Forma correspondente a esta

caracteriacutestica (UMv) Ora esta Forma eacute a proacutepria Forma F e portanto a Forma F

participaria de si mesma o que contradiz a premissa (Niv) A nova proposta de

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Vlastos resolveu a inconsistecircncia entre (NI) e (AP) apenas para criar outra

inconsistecircncia agora envolvendo as trecircs premissas do argumento

O problema de termos um conjunto inconsistente de premissas eacute que neste

caso o regresso ao infinito eacute gerado trivialmente isto eacute qualquer conjunto

inconsistente de premissas seria suficiente para gerar o regresso assim como o

mesmo conjunto de premissas poderia ser usado para gerar qualquer conclusatildeo na

medida em que ex falso sequitur quodlibet Assim entendido portanto o

argumento natildeo constituiria uma criacutetica vaacutelida agrave Teoria das Ideias e representaria

apenas uma evidecircncia indireta da contradiccedilatildeo inerente agraves premissas desta teoria

Surpreendentemente Vlastos acolhe esta particularidade de sua

interpretaccedilatildeo E mesmo em seus artigos posteriores continua mantendo a opiniatildeo

de que ambos os regressos apresentados no Parmecircnides satildeo muito mais

expressotildees imprecisas da perplexidade de Platatildeo do que argumentos vaacutelidos e

criacuteticas relevantes agrave sua concepccedilatildeo de Formas Assim Vlastos conclui que o

resultado da multiplicaccedilatildeo infinita do nuacutemero de Formas natildeo passa de ldquoum mero

bocircnus (hellip) adicionado somente pelo seu efeito retoacutericordquo (Vlastos 1969 p352)

Este tipo de interpretaccedilatildeo no entanto natildeo parece estar de acordo com o

texto de nosso diaacutelogo Em primeiro lugar teriacuteamos que menosprezar o fato de

que o texto claramente afirma a produccedilatildeo de um regresso ao infinito como o

resultado de ambos os argumentos apresentados por Parmecircnides (οὐκέτι δὴ ἓν

ἕκαστόν σοι τῶν εἰδῶν ἔσται ἀλλὰ ἄπειρα τὸ πλῆθος 132b2 οὐδέποτε παύσεται

ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον 133a1) e segundo Vlastos este resultado seria

apenas um acreacutescimo retoacuterico A multiplicaccedilatildeo infinita do nuacutemero de Formas estaacute

de pleno acordo com a estrutura geral das criacuteticas de Parmecircnides que como jaacute

sabemos concentram-se em demonstrar a impossibilidade das Formas manterem

sua unidade (numeacuterica e aspectual) ao mesmo tempo em que satildeo causas das

propriedades dos objetos sensiacuteveis

Em segundo lugar aceitar a sugestatildeo de que o conjunto de premissas

envolvido em nossos argumentos eacute inevitavelmente inconsistente equivale a

afirmar que Platatildeo representa o personagem Parmecircnides propondo criacuteticas

confusas nas quais a conclusatildeo natildeo se segue das premissas Esta admissatildeo

entretanto tornaria este par de argumentos completamente desviante agrave estrutura de

argumentaccedilatildeo que identificamos em nosso diaacutelogo Pois ateacute aqui toda seacuterie de

argumentos demonstrou possuir rigor loacutegico Devemos portanto buscar um

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conjunto consistente de premissas para nossos argumentos de modo a tornaacute-los

vaacutelidos e condizentes com a estrutura dramaacutetica que identificamos ateacute o presente

momento da discussatildeo

De fato diversos autores se dedicaram agrave tarefa de construir um conjunto

consistente de premissas para estes argumentos Como ficou comprovado a

formulaccedilatildeo deste conjunto depende da possibilidade de usarmos quantificaccedilotildees de

segunda ordem sobretudo se pretendemos manter a claacuteusula de singularidade em

(UM) defendida por Vlastos (cf Cohen 1971 p448-475) (cf Mignucci 1990)

Isto eacute precisariacuteamos usar variaacuteveis natildeo apenas sobre Formas e coisas mas

tambeacutem sobre funccedilotildees e conjuntos de Formas e coisas para mantermos a correccedilatildeo

do argumento sem abrir matildeo da formulaccedilatildeo singular de (UM) proposta por

Vlastos53

Formulaccedilotildees envolvendo um aparato loacutegico muito complexo no entanto

possuem a desvantagem de se distanciarem demais de um argumento apresentado

em linguagem relativamente simples E ainda estatildeo sujeitas agrave criacutetica de que

Platatildeo natildeo poderia ter pensado nestes termos na medida em que tais categorias

ainda natildeo faziam parte das anaacutelises loacutegicas disponiacuteveis em seu tempo

Devemos lembrar contudo que o conjunto de premissas apresentado por

Sellars (1955) jaacute possuiacutea o caraacuteter de ser consistente e gerar de maneira vaacutelida a

conclusatildeo expressamente apresentada por Parmecircnides Este conjunto havia sido

descartado por Vlastos com base em uma argumentaccedilatildeo puramente textual De

acordo Vlastos (1969) a formulaccedilatildeo do princiacutepio (UMs) natildeo faria jus agrave fala de

Parmecircnides em 132a2 Pois nesta sentenccedila estaria expressamente afirmado que

uma uacutenica Forma F pode ser gerada a partir de um conjunto qualquer de coisas F

(microία τις ἰδέα ἡ αὐτὴ εἶναι ἐπὶ πάντα) enquanto a formulaccedilatildeo de Sellars faz

menccedilatildeo a ldquoalguma Formardquo

A criacutetica de Vlastos se desenvolve da seguinte maneira em 132a1 a

expressatildeo ldquocada uma Formardquo (ἓν ἕκαστον εἶδος) estaacute apresentada em oposiccedilatildeo agrave

ldquoilimitadas em quantidadesrdquo (ἄπειρα τὸ πλῆθος 132b2) De maneira a manter esta

oposiccedilatildeo devemos entender ldquouma Formardquo como equivalente a ldquoapenas uma

53 Cohen em ldquoThe Logic of the Third Manrdquo (1971) constroacutei usando quantificaccedilotildees de segunda

ordem um conjunto consistente de premissas com base em uma analogia com os postulados de Peano e a derivaccedilatildeo da sequecircncia de nuacutemeros racionais Mignucci (1990) tambeacutem propotildee um conjunto consistente de premissas capazes de gerar o regresso desejado poreacutem novamente com base em um instrumental da loacutegica de segunda ordem

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Formardquo Portanto alega Vlastos o mesmo sentido deve ser atribuiacutedo agrave expressatildeo

ldquouma certa ideiardquo (microία τις ἰδέα) em 132a2 Assim o que Parmecircnides estaria

dizendo eacute que deve haver uma uacutenica Forma capaz de explicar porque toda e

qualquer coisa F recebe este predicado Como consequecircncia Vlastos afirma que

devemos incluir uma claacuteusula de singularidade na formulaccedilatildeo de (UM) a despeito

da correccedilatildeo loacutegica do argumento (Vlastos 1969 p354-355)

A pergunta que devemos fazer eacute se a interpretaccedilatildeo de Vlastos para a

expressatildeo microία τις ἰδέα eacute a uacutenica possiacutevel Na realidade como o proacuteprio Vlastos

afirma a oposiccedilatildeo necessaacuteria entre ldquouma Formardquo e ldquomuacuteltiplas Formasrdquo estaacute

estabelecida pelo contraste entre as expressotildees ἓν ἕκαστον εἶδος e ἄπειρα τὸ

πλῆθος Portanto o sentido geral de nosso argumento que pretende gerar uma

infinidade de Formas como maneira de contradizer a tese socraacutetica da

singularidade destas entidades jaacute estaacute garantido de antematildeo a despeito de como

entendamos a expressatildeo microία τις ἰδέα A razatildeo principal oferecida por Vlastos para

a leitura estritamente singular de microία τις ἰδέα estaacute no fato de que esta expressatildeo

encontra-se localizada entre ἓν ἕκαστον εἶδος (132a1) e ἓν τὸ microέγα (132a3) e

sendo assim devemos entender que as trecircs foacutermulas expressam por proximidade

e analogia exatamente a mesma tese

Ora podemos concordar que tanto em (132a1) quanto (132a3) o termo ἓν

significa ldquoapenas umardquo Contudo disto natildeo se segue que o termo microία em microία τις

ἰδέα ἡ αὐτὴ εἶναι possui o mesmo significado Em (132a1) e (132a3) o termo ἓν

aparece como um predicado enquanto o termo microία eacute um adjetivo do sujeito ἰδέα

na expressatildeo controversa Haacute uma grande diferenccedila entre se dizer que ldquox eacute umrdquo e

se dizer que ldquoum x eacute Frdquo Mesmo se no primeiro caso podemos afirmar que ldquoumrdquo

equivale a ldquoapenas umrdquo natildeo temos razotildees suficiente para afirmar que no segundo

caso ldquoumrdquo natildeo possa estar significando ldquopelo menos umrdquo Por possuiacuterem funccedilotildees

sintaacuteticas distintas os termos ἓν e microία podem ter significados distintos sem que o

texto seja considerado contraditoacuterio ou obscuro

Frente agrave validade da leitura de 132a2 como (UMs) podemos considerar o

conjunto de premissas apresentado por Sellars (Sellars 1955 p418-419) como

uma formalizaccedilatildeo adequada para os pressupostos envolvidos no Argumento do

Terceiro Homem Esta formalizaccedilatildeo possui a virtude de tornar os argumentos

apresentados pelo personagem Parmecircnides vaacutelidos ao mesmo tempo em que

apresenta premissas plausiacuteveis e facilmente identificaacuteveis na argumentaccedilatildeo

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desenvolvida por Soacutecrates Adotando o conjunto de premissas apresentado por

Sellars o raciociacutenio por traacutes dos argumentos de Parmecircnides poderia ser

esquematizado da seguinte maneira

Para o argumento de 131e-132b

1) A partir de uma multiplicidade a b c de coisas grandes

afirmamos a existecircncia da Forma do Grande (UMs)

2) A Forma do Grande eacute incluiacuteda no conjunto de coisas grandes

(APs)

3) A Forma do Grande natildeo pode ser grande em virtude de si mesma

(NIs)

4) Logo o conjunto de coisas grandes a b c Forma do Grande natildeo

pode ser considerado grande em virtude da Forma do Grande e

precisamos afirmar a existecircncia de uma nova Forma Grande2

(UMs)

5) A Forma do Grande2 eacute incluiacuteda no conjunto de coisas grandes

(APs)

6) A Forma do Grande2 natildeo pode ser grande em virtude de si mesma

(NIs)

7) Logo o conjunto de coisas grandes a b c Forma do Grande

Forma do Grande2 natildeo pode ser considerado grande em virtude

da Forma do Grande2 e precisamos afirmar a existecircncia de uma

nova Forma Grande3 (UMs)

etc

Para o argumento de 132d-133a

1) Diversas coisas a b c satildeo F em virtude de serem semelhantes agrave

Forma F (UMs)

2) a b c satildeo semelhantes agrave Forma F por compartilharem com esta

Forma a propriedade de serem F (APs)

3) A Forma F natildeo pode ser F em virtude de ser semelhante a si

mesma (NIs)

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4) Logo o conjunto a b c Forma F natildeo pode ser considerado F em

virtude de cada um de seus membros ser semelhante agrave Forma F e

precisamos afirmar a existecircncia de uma nova Forma F2 (UMs)

5) a b c Forma F satildeo semelhantes agrave Forma F2 por compartilharem

com esta Forma a propriedade de serem F (APs)

6) A Forma F2 natildeo pode ser F em virtude de ser semelhante a si

mesma (NIs)

7) Logo o conjunto a b c Forma F Forma F2 natildeo pode ser

considerado F em virtude de cada um de seus membros ser

semelhante agrave Forma F2 e precisamos afirmar a existecircncia de uma

nova Forma F3 (UMs)

etc

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276

432 A auto-predicaccedilatildeo das Formas

Fazendo uso dos dois regressos acima descritos Parmecircnides eacute capaz de

mais uma vez demonstrar a impossibilidade de serem mantidas simultaneamente

a tese do poder causal das Formas e a tese de que as Formas satildeo entidades uacutenicas

Eacute evidente contudo que os regressos apresentados por Parmecircnides soacute podem ser

considerados legiacutetimas criacuteticas agrave teoria socraacutetica caso as trecircs premissas em que

estes argumentos estatildeo baseados sejam de fato adotadas por Soacutecrates

Se olharmos para as trecircs assunccedilotildees necessaacuterias para a validade do

Argumento do Terceiro Homem podemos reconhecer que duas delas satildeo muito

evidentemente defendidas por Soacutecrates A premissa (UM) por exemplo formaliza

o poder causal atribuiacutedo agraves Formas pela Teoria das Ideias Como vimos uma das

hipoacuteteses centrais da teoria defendida por Soacutecrates desde os primeiros diaacutelogos

afirma que os objetos sensiacuteveis adquirem suas propriedades por meio da

participaccedilatildeo nas Formas De fato em Repuacuteblica 596a6-7 Soacutecrates trata como

parte de seu ldquomeacutetodo habitualrdquo (εἰωθυίας microεθόδου) afirmar a existecircncia (τίθεσθαι)

de uma uacutenica Forma para ldquocada conjunto de muacuteltiplas coisas agraves quais atribuiacutemos

um mesmo nomerdquo (ἕκαστα τὰ πολλά οἷς ταὐτὸν ὄνοmicroα ἐπιφέροmicroεν)54 Da mesma

maneira a premissa (NI) natildeo passa de uma implicaccedilatildeo direta da tese socraacutetica

segundo a qual as Formas satildeo entidades separadas Como sabemos a separaccedilatildeo

das Formas equivale agrave afirmaccedilatildeo da independecircncia ontoloacutegica destas entidades

que natildeo necessitam dos objetos sensiacuteveis para existirem Ora da afirmaccedilatildeo de que

as Formas satildeo entidades ontologicamente independentes dos objetos que delas

participam segue-se (NI) ldquoSe qualquer coisa possui uma determinada

caracteriacutestica por participar em uma Forma entatildeo esta coisa natildeo eacute idecircntica a esta

Formardquo

A premissa (AP) contudo foi alvo de grande controversa e diversos

comentadores contestam sua legitimidade como parte da Teoria das Ideias Estes

comentadores tecircm que lidar com o fato de que Soacutecrates em diversos diaacutelogos faz

54 Note que na formulaccedilatildeo socraacutetica de (UM) em Repuacuteblica 596a6-7 εἶδος τι ἓν ἕκαστον estaacute em

oposiccedilatildeo a ἕκαστα τὰ πολλά o que natildeo inviabiliza a leitura de Sellars Na reconstruccedilatildeo acima proposta por exemplo cada conjunto de muacuteltiplas coisas ( ἕκαστα τὰ πολλά) corresponde a uma uacutenica Forma (εἶδος τι ἓν ἕκαστον) apesar dos elementos envolvidos participarem de mais de um conjunto e portanto terem mais de uma Forma como causa de suas propriedades

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afirmaccedilotildees na forma ldquoa F-idade eacute Frdquo No Hippiacuteas Maior (292e) por exemplo

Soacutecrates afirma que ldquoo Belo eacute sempre belordquo (ἀεὶ γάρ που τό γε καλὸν καλόν) No

Protaacutegoras (330c-e) explica que se existe alguma coisa chamada ldquoJusticcedilardquo ou

ldquoPiedaderdquo entatildeo a Justiccedila eacute necessariamente justa (ἡ δικαιοσύνη οἷον δίκαιον

εἶναι) e a Piedade pia (αὐτή γε ἡ ὁσιότης ὅσιον) Aleacutem disso no Banquete (210e-

211b) a Forma do Belo eacute claramente apresentada como algo belo Na realidade

como vimos o Belo ele mesmo eacute sempre belo (microονοειδὲς ἀεὶ ὄν) em contraste

com os objetos belos sensiacuteveis que satildeo belos em determinadas relaccedilotildees poreacutem

natildeo em outras (τῇ microὲν καλόν τῇ δ αἰσχρόν τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ etc) Aleacutem

disso atraveacutes do Feacutedon sabemos que Soacutecrates adota uma compreensatildeo da relaccedilatildeo

de causalidade segundo a qual uma Forma deve possuir a propriedade de que eacute

causa nos objetos sensiacuteveis

Frente a todas estas evidecircncias os comentadores adotam basicamente duas

estrateacutegias para negar que estas afirmaccedilotildees possam representar o

comprometimento de Soacutecrates com (AP) De acordo com um primeiro grupo de

inteacuterpretes as asserccedilotildees socraacuteticas na forma ldquoA F-idade eacute Frdquo ou ldquoo F ele mesmo eacute

Frdquo natildeo devem ser entendidas como oferecendo uma descriccedilatildeo ou caracterizaccedilatildeo

da Forma de F Isto eacute tais sentenccedilas seriam apenas aparentes exemplos de

predicaccedilatildeo Na realidade contudo natildeo teriam a funccedilatildeo de atribuir o predicado F agrave

Forma que ocupa o lugar de sujeito da sentenccedila Deste modo natildeo poderiam

representar ldquoauto-predicaccedilotildeesrdquo na medida em que sequer seriam casos de

predicaccedilatildeo A segunda estrateacutegia adotada pelos comentadores para negar que

Soacutecrates esteja comprometido com (AP) consiste em afirmar que apesar de

verdadeiras predicaccedilotildees sentenccedilas na forma ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo podem ser

equiparadas a sentenccedilas na forma ldquox eacute Frdquo em que x corresponde a uma entidade

sensiacutevel Teriacuteamos assim dois tipos distintos de predicaccedilatildeo a Forma F eacute F

poreacutem de um modo completamente diferente da coisa x ser F Natildeo havendo

uniformidade na maneira em que estes dois tipos de entidades recebem seus

predicados natildeo estaria justificada a inclusatildeo de F-idade no conjunto de coisas (a

b c) e o regresso estaria bloqueado em seu primeiro passo

Cada uma destas duas estrateacutegias baacutesicas de negar a validade de (AP) foi

defendida por mais de um argumento Portanto trataremos delas separadamente a

comeccedilar pelos comentadores que afirmam o primeiro tipo de abordagem segundo

o qual as sentenccedilas na forma ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo representam tentativas de

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descriccedilotildees das Formas e portanto natildeo satildeo legiacutetimas predicaccedilotildees

Reginald Allen (1960) baseia-se nas noccedilotildees de eponiacutemia e homoniacutemia

para afirmar que quando Soacutecrates chama uma determinada Forma F de F ele natildeo

estaacute propriamente atribuindo a esta Forma a caracteriacutestica de ser-F Segundo

Allen nas sentenccedilas do tipo ldquox eacute Frdquo em que particulares ocupam o lugar do

sujeito o predicado F estaacute normalmente descrevendo ou classificando o sujeito x

Contudo nas sentenccedilas auto-predicativas em que uma Forma estaacute ocupando o

lugar do sujeito o termo F possui uma funccedilatildeo completamente distinta e deve ser

entendido como um nome proacuteprio Allen faz uso de duas passagens no Feacutedon para

defender sua teoria Na primeira delas (78e1) Soacutecrates afirma que os objetos

sensiacuteveis satildeo homocircnimos (ὁmicroωνύmicroων) das Formas Enquanto na segunda

passagem (102b) oferece a explicaccedilatildeo de que as coisas sensiacuteveis ldquorecebem os

nomes das Formas em que participamrdquo (τἆλλα microεταλαmicroβάνοντα αὐτῶν τούτων

τὴν ἐπωνυmicroίαν ἴσχειν)

De acordo com Allen (1960 p45) estas duas passagens seriam suficientes

para afirmarmos que segundo a teoria defendida por Soacutecrates toda sentenccedila na

estrutura sujeito-predicado natildeo passa de uma reproduccedilatildeo por homoniacutemia das

relaccedilotildees entre Formas e coisas Isto eacute estas poucas linhas seriam evidecircncia

suficiente para atribuirmos a Soacutecrates uma teoria da significaccedilatildeo em que toda

predicaccedilatildeo ficaria reduzida a uma anaacutelise das relaccedilotildees de designaccedilatildeo atraveacutes de

nomes Assim em virtude da participaccedilatildeo na Forma F os objetos sensiacuteveis

recebem o nome desta Forma com uma de suas designaccedilotildees ganhando o direito

de serem verdadeiramente chamados de F

Apesar do iacutenfimo apoio textual oferecido como suporte para a atribuiccedilatildeo

de uma teoria da linguagem tatildeo extravagante a Soacutecrates Allen distingue em

seguida dois modos de designaccedilatildeo Um nome possuiria uma designaccedilatildeo

primaacuteria quando aplicado a uma Forma e uma designaccedilatildeo secundaacuteria quando

aplicado aos objetos sensiacuteveis Em sua designaccedilatildeo primaacuteria o termo F seria usado

como um nome proacuteprio que identifica a Forma F poreacutem natildeo a descreve A

relaccedilatildeo de designaccedilatildeo secundaacuteria por outro lado seria essencialmente derivativa

e atribuiria a uma entidade sensiacutevel um nome que lhe pertence apenas

indiretamente devido agrave relaccedilatildeo de homoniacutemia que esta entidade manteacutem com

uma Forma

Aceitando a explicaccedilatildeo de Allen somos obrigados a reconhecer que

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sentenccedilas do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo servem para descrever a F-idade uma vez

que o termo F natildeo passa de um mais um nome desta Forma Assim todo caso de

aparente auto-predicaccedilatildeo das Formas natildeo passaria de uma tautologia entre

sinocircnimos e natildeo afirmaria nada aleacutem da identidade da Forma F com ela mesma Eacute

evidente que neste caso a foacutermula ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo constituiria uma legiacutetima

predicaccedilatildeo e portanto natildeo poderia ser usada como evidecircncia do

comprometimento de Soacutecrates com (AP)

O maior problema da interpretaccedilatildeo de Allen eacute que os poucos textos por ele

apresentados natildeo parecem oferecer o suporte necessaacuterio para sua caracterizaccedilatildeo

da concepccedilatildeo socraacutetica de predicaccedilatildeo como designaccedilatildeo Segundo Allen as coisas

sensiacuteveis recebem os nomes das Formas No entanto se analisarmos as passagens

do Feacutedon citadas por Allen assim como a passagem do proacuteprio Parmecircnides em

que a noccedilatildeo de eponiacutemia eacute evocada veremos que em nenhuma delas eacute possiacutevel

encontrar o termo F como um nome para as Formas Em Feacutedon 102b-c Soacutecrates

menciona a Grandeza (microέγεθος) e a Pequenez (σmicroικρότητα) como nomes de

Formas No Parmecircnides aparecem ainda os termos Igualdade (ὁmicroοιότητος) e

Justiccedila (δικαιοσύνης) Ora todas estas passagens mencionam apenas substantivos

abstratos (F-idade) como designadores diretos das Formas Uma anaacutelise

tautoloacutegica para sentenccedilas auto-predicativas no entanto depende que as Formas

sejam designadas natildeo soacute como F-idade mas tambeacutem como F Sem uma afirmaccedilatildeo

expliacutecita de que o termo F pode servir como um nome para as Formas natildeo temos

como derivar uma identidade a partir da sentenccedila ldquoF-idade eacute Frdquo

A outra passagem apresentada por Allen (Feacuted78e) na qual se afirma a

homoniacutemia entre Formas e coisas tampouco apresenta F como uma designaccedilatildeo

primaacuteria das Formas Nesta passagem as designaccedilotildees citadas para as Formas satildeo

o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) e o Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

Novamente natildeo temos o termo desejado apenas a expressatildeo ldquoo F ele mesmordquo

(αὐτὸ τὸ F) Tal como no caso da eponiacutemia para que sentenccedilas auto-predicativas

envolvendo Formas ficassem seguramente estabelecidas como tautologias

precisariacuteamos que aleacutem de ldquoF-idaderdquo e ldquoo F ele mesmordquo o proacuteprio termo F

servisse como nome para as Formas Contudo natildeo eacute isso que encontramos em

qualquer dos textos apresentados por Allen55

55 Como reconhece Malcolm quem primeiro formulou este tipo de objeccedilatildeo a Allen outros textos

apresentam o termo F como nome da Forma F-idade por exemplo Eut10d Fed76d

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De fato mesmo se nas passagens elencadas por Allen o termo F fosse

apresentado como um designador direto da Forma F-idade natildeo teriacuteamos razotildees

suficientes para descartar por completo a possibilidade de (AP) representar um

real princiacutepio da Teoria das Ideias Afinal natildeo eacute apenas nos contextos de

homoniacutemia e eponiacutemia mencionados por Allen que Soacutecrates descreve uma Forma

como possuidora da propriedade de que eacute causa nos objetos sensiacuteveis Considere

por exemplo a Forma do Belo no Banquete Como vimos neste diaacutelogo a Forma

do Belo eacute caracterizada como ldquoalgo maravilhosamente belo por naturezardquo (τι

θαυmicroαστὸν τὴν φύσιν καλόν) sem que seja feita qualquer menccedilatildeo a questotildees de

homoniacutemia ou relaccedilotildees de significado Mesmo que a anaacutelise de Allen nos

fornecesse uma interpretaccedilatildeo vaacutelida para a teoria socraacutetica da predicaccedilatildeo

passagens como esta do Banquete (210e-211b) ainda poderiam ser usadas para

comprometer Soacutecrates com (AP) Afinal como poderiacuteamos explicar a doutrina de

que o Belo eacute o objeto maior de desejo eroacutetico por ser sempre belo (microονοειδὲς ἀεὶ

ὄν) Segundo Allen isto seria equivalente a afirmarmos que o Belo eacute o objeto

maior de desejo eroacutetico por ser sempre igual a ele mesmo Tal afirmaccedilatildeo

contudo eacute claramente insustentaacutevel uma vez que cada coisa eacute sempre igual a ela

mesma e portanto todas elas seriam o objeto maior de desejo eroacutetico

Este uacuteltimo tipo de objeccedilatildeo se estende a todos aqueles que pretendem

interpretar sentenccedilas do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo como casos de identidade a despeito

de aceitarem a anaacutelise de predicaccedilotildees como relaccedilotildees de homoniacutemia proposta por

Allen Cherniss (1957) o primeiro a propor que devemos entender sentenccedilas auto-

predicativas envolvendo Formas como casos de identidade distingue entre ter F e

ser F Segundo Cherniss enquanto os objetos sensiacuteveis tecircm uma propriedade F

em virtude de sua participaccedilatildeo na Forma F a F-idade eacute a propriedade F Assim

somente em sentenccedilas contendo particulares sensiacuteveis como sujeitos o predicado

estaria fornecendo uma descriccedilatildeo do sujeito em questatildeo Em sentenccedilas na forma

ldquoa F-idade eacute Frdquo por outro lado teriacuteamos uma afirmaccedilatildeo de identidade e natildeo uma

predicaccedilatildeo ordinaacuteria

Ora a primeira coisa que devemos notar eacute que nada na anaacutelise de Cherniss

proiacutebe que a F-idade possa ser F e simultaneamente ter F como um legiacutetimo

Sof255a No entanto na medida em que toda teoria de Allen jaacute possui escasso apoio textual podemos considerar o fato de que o termo F natildeo aparece como um designador das Formas nas passagens por ele apresentadas como uma evidecircncia contra sua interpretaccedilatildeo (cf Malcolm

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predicado E caso Cherniss argumente que soacute eacute possiacutevel ter uma propriedade em

virtude da participaccedilatildeo em uma Forma podemos coerentemente responder que ou

bem F-idade tem F por participar de si mesma ou bem precisariacuteamos de uma

segunda Forma F-idade para explicar a propriedade F que F-idade tem

Estariacuteamos assim novamente no caso de decidir sobre a validade de (AP)

mesmo aceitando a anaacutelise de Cherniss que a princiacutepio deveria servir de soluccedilatildeo

para este dilema Aleacutem disso considerando que Cherniss venha a negar

completamente a possibilidade de uma Forma F ter a propriedade F e mantenha

que toda sentenccedila do tipo ldquoA F-idade eacute Frdquo deve ser entendia como uma predicaccedilatildeo

de identidade algumas afirmaccedilotildees de Soacutecrates resultariam em inaceitaacuteveis contra-

sensos Considere por exemplo o que fala Soacutecrates em Feacutedon 100c4-6

ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute bela (εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν56) aleacutem do Belo ele mesmo (πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o restordquo φαίνεται γάρ microοι εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν οὐδὲ δι ἓν ἄλλο καλὸν εἶναι ἢ διότι microετέχει ἐκείνου τοῦ καλοῦ (100c4-6)

Esta sentenccedila afirma claramente que 1) o Belo ele mesmo eacute belo e 2) que

se alguma outra coisa tambeacutem eacute bela entatildeo ela eacute bela por participar no Belo ele

mesmo Ora de acordo com Allen e Cherniss 1) dever ser entendido como ldquoo

Belo ele mesmo eacute idecircntico ao Belordquo Sendo assim 2) estaria afirmando a seguinte

absurdidade ldquoSe alguma outra coisa eacute idecircntica ao Belo ele mesmo entatildeo esta

coisa eacute idecircntica ao Belo ele mesmo porque participa no Belo ele mesmordquo Isto no

entanto contradiz de maneira oacutebvia a Teoria das Ideias Afinal toda coisa bela

incluindo objetos sensiacuteveis seria idecircntica agrave Forma da Beleza Aleacutem disso a

proacutepria participaccedilatildeo teria como resultado a identidade entre a coisa participante e

a Forma participada

Uma uacuteltima interpretaccedilatildeo que pretende negar que a sentenccedila ldquoa F-idade eacute

Frdquo forneccedila uma descriccedilatildeo da Forma F-idade foi apresentada pelo proacuteprio Vlastos

quem primeiro identificou (AP) Anos depois de sua primeira publicaccedilatildeo sobre o

assunto Vlastos decide mudar sua interpretaccedilatildeo para o sentido de sentenccedilas auto-

predicativas envolvendo Formas Segundo ele a compreensatildeo de sentenccedilas da

1991 p 67-68)

56 Note que a mesma ocorrecircncia de καλὸν serve de predicado tanto para τί ἄλλο quanto para αὐτὸ τὸ καλόν Portanto a mesma anaacutelise deve ser oferecida para ldquo τί ἄλλο ἐστιν καλὸνrdquo e ldquo αὐτὸ

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forma ldquoa F-idade eacute Frdquo como casos de (AP) levaria a contradiccedilotildees tatildeo evidentes

que Platatildeo natildeo poderia ter deixado de notaacute-las No Protaacutegoras (330c7-8) por

exemplo Soacutecrates afirma que a ldquoJusticcedila eacute justardquo e logo apoacutes que a ldquoPiedade eacute

piardquo De acordo com Vlastos estas sentenccedilas natildeo podem representar descriccedilotildees

pois na condiccedilatildeo de Formas a Justiccedila e a Piedade natildeo poderiam ser justas ou

pias Estes atributos morais aplicam-se a pessoas ou atitudes e natildeo faria qualquer

sentido afirmar que uma entidade inteligiacutevel universal possui uma qualidade

moral Assim Vlastos admite que o Belo do Banquete seja belo ou que a Unidade

seja uacutenica pois a proacutepria condiccedilatildeo de Formas platocircnicas exige que natildeo soacute o Belo

e a Unidade mas de fato todas as Formas sejam belas e uacutenicas Poreacutem nenhuma

Forma incluindo a Justiccedila poderia ser justa na medida em que nenhuma entidade

inteligiacutevel universal eacute capaz de realizar atitudes passiacuteveis de julgamento moral

Como anaacutelise para sentenccedilas do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo nas quais o termo F

natildeo representa uma caracteriacutestica proacutepria das Formas enquanto Formas Vlastos

propotildee a seguinte anaacutelise ldquoNecessariamente se x participa de F-idade entatildeo x eacute

Frdquo (Vlastos 1972 p252-265) Deste modo afirmaccedilotildees do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo

natildeo teriam uma Forma como sujeito mas ofereceriam uma descriccedilatildeo da classe de

coisas que participam em F-idade Inspirado em uma passagem de Satildeo Paulo

(Carta aos Coriacutentios I 13 4-8) Vlastos denomina o tipo de predicaccedilatildeo por ele

descrito como ldquopredicaccedilatildeo paulinardquo

Em sua epiacutestola Satildeo Paulo faz afirmaccedilotildees como ldquoa caridade eacute piardquo e ldquoa

caridade eacute magnacircnimardquo De acordo com Vlastos o que S Paulo pretende dizer

por meio destas sentenccedilas eacute que ldquotodo aquele que eacute caridoso eacute tambeacutem piedoso e

magnacircnimordquo Assim transposto para o contexto platocircnico as afirmaccedilotildees do

Protaacutegoras natildeo estariam afirmando rigorosamente nada sobre as Formas da

Justiccedila e Piedade mas apenas sustentando a tese de que ldquotodo aquele que participa

da Justiccedila eacute justordquo Deste modo casos problemaacuteticos de auto-predicaccedilatildeo de

Formas ficariam reduzidos a casos de predicaccedilotildees gerais sobre coisas sensiacuteveis

O problema gerado pela anaacutelise proposta por Vlastos possui natureza

essencialmente conceitual Para comeccedilar a teoria da predicaccedilatildeo paulina pressupotildee

que sentenccedilas envolvendo Formas como sujeito possam ser diretamente

traduzidas em sentenccedilas envolvendo somente particulares sensiacuteveis isto eacute no

τὸ καλόν ἐστιν καλὸνrdquo

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caso de termos uma sentenccedila do tipo ldquoa F-idade eacute xrdquo estariacuteamos falando natildeo da F-

idade mas do conjunto de coisas sensiacuteveis que satildeo F Como observa Fronterotta

(2001 p250-251) isto vai de encontro agrave proacutepria concepccedilatildeo de Forma como uma

entidade separada dos objetos sensiacuteveis que dela participam De acordo com a

ontologia socraacutetica a Forma F-idade natildeo corresponde agrave soma dos objetos que satildeo

F mas caracteriza-se por ser ontologicamente distinta destas coisas Portanto

qualquer anaacutelise que resulte em confusatildeo ou sobreposiccedilatildeo entre o que eacute a F-idade

e o que satildeo os muacuteltiplos objetos sensiacuteveis que possuem a propriedade de serem F

estaacute sujeita agrave criacutetica de estar ignorando a distinccedilatildeo mais fundamental da Teoria das

Ideias

Suponha por exemplo uma relaccedilatildeo entre Formas expressa na sentenccedila ldquoa

F-idade eacute a G-idaderdquo Segundo Vlastos estas sentenccedilas deveriam ter sua

veracidade comprovada por meio da verificaccedilatildeo da relaccedilatildeo de inclusatildeo entre o

conjunto de coisas que satildeo F e o conjunto de coisas que satildeo G Uma relaccedilatildeo entre

Formas ficaria reduzida no espiacuterito da teoria da predicaccedilatildeo paulina a uma relaccedilatildeo

entre extensotildees de conjuntos de coisas Entretanto isto violaria a prioridade

ontoloacutegica e epistemoloacutegica das Formas em relaccedilatildeo aos objetos sensiacuteveis e uma

relaccedilatildeo entre coisas seria responsaacutevel pelo estabelecimento de uma relaccedilatildeo entre

Formas quando uma anaacutelise fiel aos princiacutepios da Teoria das Ideias deveria

apresentar exatamente o oposto

Podemos concluir portanto que nenhum dos autores acima mencionados

conseguiram oferecer uma anaacutelise para sentenccedilas do tipo ldquoA F-idade eacute Frdquo que

livrasse Soacutecrates de (AP) e consequentemente do Argumento do Terceiro

Homem Tentar afirmar que sentenccedilas auto-predicativas envolvendo Formas natildeo

oferecem descriccedilotildees e portanto natildeo satildeo legiacutetimas predicaccedilotildees resulta em

distorccedilotildees tatildeo gritantes do conteuacutedo dos diaacutelogos que natildeo podemos aceitar este

tipo de anaacutelise

Tendo descartado as interpretaccedilotildees que pretendem livrar Soacutecrates de (AP)

por meio da afirmaccedilatildeo de que a sentenccedila ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo constituiria uma

descriccedilatildeo da Forma F-idade podemos nos voltar para a segunda estrateacutegia adota

pelos comentadores com o objetivo de invalidar o Argumento do Terceiro

Homem Como dito anteriormente este segundo grupo de inteacuterpretes assume que

sentenccedilas auto-predicativas oferecem uma descriccedilatildeo da Forma que ocupa o lugar

de sujeito poreacutem alegam que esta descriccedilatildeo natildeo eacute suficiente para agruparmos a

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Forma F-idade com os diversos objetos sensiacuteveis que satildeo F Isto porque a Forma

F-idade natildeo receberia o predicado F da mesma maneira que objetos sensiacuteveis (a

b c) o recebem Teriacuteamos portanto dois tipos distintos de predicaccedilatildeo a F-idade eacute

F poreacutem de um modo completamente diferente das coisas (a b c) serem F Uma

vez que o predicado F natildeo estaria sendo aplicado de maneira uniacutevoca a Formas e

coisas a inclusatildeo de F-idade no conjunto de coisas (a b c) necessaacuteria para

gerarmos o regresso ao infinito natildeo estaria justificada e todo o argumento seria

invalidado

De acordo com os proponentes desta tese a fonte textual para atribuirmos

este tipo de interpretaccedilatildeo a Platatildeo estaria nos textos em que Soacutecrates descreve a

relaccedilatildeo entre Formas e coisas como uma relaccedilatildeo anaacuteloga agravequela entre um Modelo

ou Original (παραδείγmicroατα) e suas coacutepias (εἰκόνες) imagens (ei)dwla) ou

imitaccedilotildees (mimhmata) Uma vez que tenhamos em mente afirmam estes

comentadores que Soacutecrates entende a relaccedilatildeo entre Formas e coisas da mesma

maneira que entendemos a relaccedilatildeo entre um Modelo e suas coacutepias (um Original e

suas imagens) seremos levados a concluir que a sentenccedila ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo

atribui o predicado F a seu sujeito do mesmo modo que a sentenccedila ldquox eacute Frdquo atribui

o predicado F ao objeto sensiacutevel x

Ora para que este argumento seja realmente efetivo eacute preciso que fique

especificado exatamente qual eacute esta relaccedilatildeo entre um ModeloOriginal e suas

coacutepiasimagens que quando transposta para relaccedilatildeo entre Formas e coisas

sensiacuteveis eacute capaz de falsificar (AP) Uma explicaccedilatildeo repetidamente apresentada

pelos comentadores baseia-se na relaccedilatildeo entre um padratildeo (standard) de medida e

as muacuteltiplas coisas que podem ser alvo de mediccedilatildeo em comparaccedilatildeo a este

padratildeo57 De acordo com este tipo de argumentaccedilatildeo uma Forma deveria ser

comparada a um Modelo de medida como por exemplo o padratildeo do Metro

contido na Academia de Medidas Francesa Aceitando esta analogia seriacuteamos

levados a ver que assim como o Metro padratildeo natildeo possui a medida de um metro

uma vez que ele eacute o proacuteprio modelo para a aplicaccedilatildeo deste predicado tambeacutem F-

idade natildeo pode ser dita F ou classificada como uma coisa F

Um testemunho de grande peso eacute neste contexto evocado pelos

defensores deste tipo de interpretaccedilatildeo que citam Wittgenstein ldquoHaacute uma uacutenica

57 Este tipo de argmentaccedilatildeo eacute explicitamente adotado por Bluck em ldquoForms as Standardsrdquo (1957)

e Allen (1960 p 45-47) sendo por vezes defendido por Patterson (1985)

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coisa sobre a qual natildeo podemos dizer que tem um metro de comprimento nem que

natildeo tem um metro de comprimento esta coisa eacute o padratildeo do metro situado em

Parisrdquo (Investigaccedilotildees Filosoacuteficas 50) Esta afirmaccedilatildeo seria suficiente para colocar

Wittgenstein ao lado daqueles que acham que assim como natildeo podemos dizer do

padratildeo do Metro que ele possui um metro de comprimento tampouco poderiacuteamos

dizer de F-idade que ela eacute F

Conforme demonstrado por Malcolm (1991 p 70-72) a explicaccedilatildeo para a

enigmaacutetica sentenccedila de Wittgenstein deve ser buscada na sua teoria de que nomear

e descrever satildeo essencialmente atos de fala distintos De fato na seccedilatildeo

imediatamente anterior a esta afirmaccedilatildeo Wittgenstein nos diz ldquoNomear e

descrever natildeo estatildeo no mesmo niacutevel a nomeaccedilatildeo eacute uma preparaccedilatildeo para

descriccedilatildeordquo (Investigaccedilotildees Filosoacuteficas 49) Devemos entender portanto que ao

nomearmos uma determinada barra de ferro em Paris como o Modelo do Metro

natildeo estamos descrevendo esta barra mas estabelecendo um padratildeo que serviraacute

para posterior descriccedilatildeo desta medida Assim o criteacuterio de verdade da sentenccedila ldquoo

Metro tem um metrordquo eacute estabelecido por nomeaccedilatildeo enquanto o criteacuterio de

verdade para descriccedilatildeo ldquoesta mesa tem um metrordquo eacute estabelecido por comparaccedilatildeo

ao Modelo de metro ldquoesta mesa tem um metrordquo soacute eacute uma sentenccedila verdadeira

quando a mesa possuir o mesmo comprimento do Metro Modelo

A pergunta que devemos fazer eacute se este ato de nomeaccedilatildeo anula por

completo a possibilidade de subsequentes descriccedilotildees deste Modelo Considerando

por exemplo que o ato de nomeaccedilatildeo se daacute uma uacutenica vez entatildeo nunca mais

poderiacuteamos fazer afirmaccedilotildees sobre o comprimento da barra de ferro situada na

Academia de Medidas Francesa Eacute muito mais razoaacutevel acreditarmos que seu

estabelecimento como Modelo eacute aquilo que nos permite descrevecirc-la como tendo

um metro de comprimento Nada parece obrigar que o estabelecimento de um

padratildeo sirva de preparaccedilatildeo para que apenas outras coisas sejam descritas

Podemos considerar inclusive que o estabelecimento de um padratildeo depende da

realizaccedilatildeo de dois atos simultacircneos a descriccedilatildeo de uma propriedade deste padratildeo

e a nomeaccedilatildeo desta entidade como Modelo para subsequente aplicaccedilotildees desta

descriccedilatildeo Sendo assim creio que a afirmaccedilatildeo de Wittgenstein estaacute restrita ao

acircmbito do momento de estabelecimento do Modelo do Metro De fato para

estabelecermos um comprimento como padratildeo de metro precisamos nomeaacute-lo e

natildeo descrevecirc-lo Poreacutem apoacutes estabelecido este padratildeo natildeo haacute motivo aparente

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para negar que possamos descrever o Metro Modelo como tendo um metro de

comprimento

Assim se utilizarmos a relaccedilatildeo entre o padratildeo do Metro e as coisas

descritas como tendo um metro de comprimento para entender a relaccedilatildeo entre

Formas e coisas veremos que esta analogia natildeo eacute suficiente para combater a

validade de (AP) Mesmo natildeo havendo um momento de nomeaccedilatildeo da Forma de F-

idade como padratildeo o que os comentadores que fazem uso da discussatildeo iniciada

por Wittgenstein pretendem afirmar eacute que assim como o criteacuterio de

estabelecimento da verdade de ldquoa mesa tem um metrordquo natildeo pode ser o mesmo

criteacuterio de estabelecimento da verdade de ldquoo Metro tem um metrordquo tambeacutem o

criteacuterio de verdade de ldquoF-idade eacute Frdquo deve ser distinto do criteacuterio de verdade de ldquoa

eacute Frdquo

Contudo se as coisas de um metro possuem a mesma medida do padratildeo de

Metro entatildeo logicamente o padratildeo de Metro possui a mesma medida das coisas

de um metro Sendo assim se o comprimento destas coisas pode ser descrito pelo

predicado ldquoter um metrordquo entatildeo o Metro padratildeo tambeacutem deve poder ser descrito

pelo mesmo predicado No caso das Formas se a b c satildeo F em virtude da F-

idade entatildeo de acordo com a analogia proposta a b c possuem a mesma

propriedade que F-idade e somos obrigados a admitir que ldquoa F-idade eacute Frdquo do

mesmo modo que ldquoa b c satildeo Frdquo a despeito do criteacuterio para o estabelecimento da

verdade das sentenccedilas ldquoa eacute Frdquo ldquob eacute Frdquo e ldquoc eacute Frdquo ser diferente daquele usado para

estabelecer a verdade de ldquoa F-idade eacute Frdquo Entender a relaccedilatildeo entre Formas e coisas

como anaacuteloga agrave relaccedilatildeo entre um padratildeo e as coisas descritas a partir deste padratildeo

natildeo fornece uma saiacuteda ao Argumento do Terceiro Homem

Outra proposta de compreensatildeo para a natureza da remissatildeo

Modelocoacutepias parece oferecer uma explicaccedilatildeo muito mais promissora para

relaccedilatildeo entre Formas e coisas Alguns autores como Allen (1960 p48-52) Geach

(1956) e Patterson (1985) sugerem que entendamos a relaccedilatildeo entre Formas e

coisas em analogia agrave relaccedilatildeo entre um determinado objeto e suas muacuteltiplas

imagens Neste tipo de relaccedilatildeo alegam estes comentadores eacute muito claro que as

imagens natildeo satildeo um caso de F da mesma maneira que o original eacute F Pense por

exemplo na relaccedilatildeo entre um gato e as diversas fotos deste gato Parece muito

oacutebvio que o gato original recebe o predicado ldquoser-um-gatordquo de um modo muito

diferente de suas imagens pois estas falando estritamente natildeo satildeo gatos

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Seguindo esta analogia a Forma da F-idade seria a uacutenica coisa realmente F

enquanto as muacuteltiplas coisas sensiacuteveis receberiam este predicado de uma maneira

derivativa por serem uma imagem de F-idade De acordo com esta interpretaccedilatildeo

Formas seriam Modelos ou Originais (παραδείγmicroατα) dos quais os objetos

sensiacuteveis representariam imagens (ei)dwla εἰκόνες) ou imitaccedilotildees (mimhmata)

Uma primeira criacutetica possiacutevel a esta interpretaccedilatildeo consiste em afirmar que

a relaccedilatildeo Originalimagens eacute de natureza muito estrita para servir como uma

explicaccedilatildeo adequada para relaccedilatildeo entre Formas e coisas Uma imagem deve

representar com maior ou menor sucesso as caracteriacutesticas aspectuais de seu

original e inversamente um original deve conter as caracteriacutesticas aspectuais de

suas imagens Poreacutem qual original de aacutervore poderia conter em si as

caracteriacutesticas aspectuais de todas as aacutervores sensiacuteveis Se um triacircngulo precisa

ser ou isoacutesceles ou equilaacutetero ou escaleno e natildeo pode ter estas trecircs caracteriacutesticas

simultaneamente como a Triangularidade poderia servir como um uacutenico Modelo

para imagens com caracteriacutesticas mutuamente excludentes

Esta criacutetica contudo pode ser facilmente contornada por meio da alegaccedilatildeo

de que a relaccedilatildeo Originalimagens natildeo precisa ser entendida de maneira tatildeo

restrita Eacute possiacutevel pensar por exemplo que o Original soacute possuiria as

caracteriacutesticas aspectuais essenciais enquanto as diferenccedilas especiacuteficas estariam

manifestas apenas em suas imagens A Triangularidade teria a caracteriacutestica de

possuir trecircs lados iguais e apenas suas imagens sensiacuteveis seriam triacircngulos

equilaacuteteros isoacutesceles ou escalenos Outra saiacuteda seria aumentar o nuacutemero de

Originais afirmando a existecircncia de uma Forma da Triangularidade Isoacutesceles

outra Escalena e outra Equilaacutetero Estas modificaccedilotildees no entanto teriam como

resultado por um lado uma extensatildeo indesejada do conjunto de Formas que

passaria a incluir Formas de espeacutecies e por outro lado o enfraquecimento da

proacutepria analogia entre Originalimagens proposta inicialmente

Patterson (1985 p42) adota a primeira destas duas linhas de

argumentaccedilatildeo e procura evitar resultados problemaacuteticos traccedilando uma diferenccedila

entre coacutepias e imagens Para Patterson enquanto ser-uma-coacutepia implicaria em

assemelhar-se ao Original mantendo suas caracteriacutesticas aspectuais ser-uma-

imagem natildeo traria esta implicaccedilatildeo Para defender esta distinccedilatildeo Patterson eacute

obrigado a forccedilar o vocabulaacuterio platocircnico entendendo por imagens natildeo soacute o termo

ei)dwla como tambeacutem o(moiw=mata εἰκόνες e mimhmata que agrave primeira vista

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implicariam na estrita semelhanccedila entre Original e coacutepias

Apoacutes destituir a relaccedilatildeo Originalimagens da necessidade de semelhanccedila

entre seus dois elementos Patterson reinterpreta sua analogia inicial como uma

relaccedilatildeo entre ldquouma natureza abstrata e um exemplo concreto ou entre a natureza

inteligiacutevel de F ele mesmo e aquilo que concretamente possui ou tem a natureza

de F ele mesmordquo (Patterson 1985 p 95) Ora eacute muito evidente que atraveacutes deste

movimento Patterson estaacute abandonando por completo a relaccedilatildeo Originalimagem

inicialmente proposta e passando a entender os objetos sensiacuteveis ldquoexemplos

concretosrdquo das Formas que por sua vez satildeo entendidas como ldquonaturezas

inteligiacuteveis ou abstratasrdquo

Como o caso de Patterson deixa evidente compreender a relaccedilatildeo

Originalimagens sem pressupor qualquer niacutevel de semelhanccedila entre estes dois

elementos representa uma grande subversatildeo agrave natureza desta relaccedilatildeo Poreacutem

mesmo que seja possiacutevel compreender que uma imagem natildeo se assemelha ao

original de que eacute imagem seria preciso demonstrar ainda que o personagem

Soacutecrates estaacute entendendo a relaccedilatildeo entre Formas e coisas sensiacuteveis em analogia a

esta compreensatildeo sui generis de imagens que natildeo guardam qualquer semelhanccedila

com seu original Se olharmos para as passagens em que Soacutecrates trata os objetos

sensiacuteveis como imagens ou imitaccedilotildees das Formas no entanto veremos que a

relaccedilatildeo de semelhanccedila entre Formas e coisas estaacute sempre pressuposta

Um exemplo oferecido por Patterson (1985 p61) sugere que imagens

sonhadas natildeo se assemelham de modo algum aos seus originais pois natildeo podem

realmente possuir as propriedades que seus originais possuem Contudo para que

seja estabelecida uma relaccedilatildeo de semelhanccedila natildeo eacute preciso que as imagens sejam

como seus originas basta que as imagens pareccedilam com seus originais Uma prova

disto eacute que reconhecemos quando algueacutem familiar aparece em nossos sonhos Se

somos capazes de reconhecer algueacutem em sonhos eacute porque a imagem que

experienciamos se assemelha de algum modo agrave pessoal real Soacutecrates parece

corroborar esta anaacutelise trivial para relaccedilatildeo entre imagens sonhadas e originais e

na Repuacuteblica (476c5-7) nos explica que o sonhar (τὸ ὀνειρώττειν) quer

dormindo quer acordado nada mais eacute do que ldquocrer que o semelhante a algo (τὸ

ὅmicroοιόν τῳ) natildeo eacute semelhante a algo mas aquilo mesmo com o que se parece (microὴ

ὅmicroοιον ἀλλ αὐτὸ ἡγῆται εἶναι ᾧ ἔοικεν)rdquo

As passagens em que o termo εἰκών eacute usado para designar objetos

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sensiacuteveis tampouco parecem oferecer o material necessaacuterio para a anaacutelise de

ldquoimagens natildeo semelhantes a seu originalrdquo desejada por Patterson Em Repuacuteblica

(506b) Soacutecrates eacute instigado a discursar sobre o Bem poreacutem se recusa

consentindo em falar sobre ldquoo rebento do Bem e o que haacute de mais semelhante

possiacutevel a elerdquo (ὃς δὲ ἔκγονός τε τοῦ ἀγαθοῦ φαίνεται καὶ ὁmicroοιότατος ἐκείνῳ

506e3) Este rebento mais tarde nos eacute revelado trata-se do sol e em 509a9

Soacutecrates se refere a ele como ldquoa imagem do Bemrdquo (τὴν εἰκόνα αὐτοῦ)

Novamente a relaccedilatildeo entre imagem e original se daacute por semelhanccedila O sol eacute uma

imagem do Bem porque eacute ldquoo que haacute de mais semelhante a elerdquo (ὁmicroοιότατος

ἐκείνῳ)

Do mesmo modo na passagem da linha dividida a primeira seccedilatildeo da linha

estaacute reservada agraves imagens Soacutecrates oferece a seguinte explicaccedilatildeo para o que estas

imagens satildeo

ldquoChamo imagens (τὰς εἰκόνας) em primeiro lugar as sombras (τὰς σκιάς) em seguida os reflexos nas aacuteguas (τὰ ἐν τοῖς ὕδασι φαντάσmicroατα) e em todas aquelas superfiacutecies que satildeo compactas lisas e brilhantes e tudo mais deste tipordquo λέγω δὲ τὰς εἰκόνας πρῶτον microὲν τὰς σκιάς ἔπειτα τὰ ἐν τοῖς ὕδασι φαντάσmicroατα καὶ ἐν τοῖς ὅσα πυκνά τε καὶ λεῖα καὶ φανὰ συνέστηκεν καὶ πᾶν τὸ τοιοῦτον (510a1-3)

A descriccedilatildeo de εἰκόνες como ldquosombrasrdquo e ldquofantasmasrdquo parece favorecer a

equaccedilatildeo entre os termos εἰκών e ei)dwlon e a noccedilatildeo de imagem-dessemelhante

desejada por Patterson No entanto na continuaccedilatildeo do argumento Soacutecrates pede

para que na segunda seccedilatildeo da linha sejam colocadas as coisas que datildeo origens agraves

imagens da primeira seccedilatildeo isto eacute os objetos empiacutericos sensiacuteveis Em seguida

Soacutecrates passa para a parte do inteligiacutevel e descreve a primeira seccedilatildeo desta parte

como aquela em que a alma utiliza como se fossem imagens (ὡς εἰκόσιν χρωmicroένη

ψυχὴ) as coisas que antes eram imitadas (τοῖς τότε microιmicroηθεῖσιν) O exemplo

utilizado por Soacutecrates vem da Geometria

ldquoSabes tambeacutem que eles (os geocircmetras) utilizam figuras visiacuteveis e constroem raciociacutenios sobre elas embora natildeo seja nelas que pensem mas em outras coisas agraves quais essas se parecem (οἷς ταῦτα ἔοικε) construindo raciociacutenios em vista do quadrado ele mesmo (τοῦ τετραγώνου αὐτοῦ) da diagonal ela mesma (διαmicroέτρου αὐτῆς) e natildeo da diagonal que traccedilam e assim tambeacutem para as outras figuras Todas aquelas que eles modelam ou traccedilam das quais haacute sombras e imagens nas aacuteguas (ὧν καὶ σκιαὶ καὶ ἐν ὕδασιν εἰκόνες εἰσίν) eles as utilizam como se fossem imagens (ὡς εἰκόσιν αὖ χρώmicroενοι) ao procurar ver aquelas coisas mesmas que

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natildeo se vecircem senatildeo pelo pensamentordquo Οὐκοῦν καὶ ὅτι τοῖς ὁρωmicroένοις εἴδεσι προσχρῶνται καὶ τοὺς λόγους περὶ αὐτῶν ποιοῦνται οὐ περὶ τούτων διανοούmicroενοι ἀλλ ἐκείνων πέρι οἷς ταῦτα ἔοικε τοῦ τετραγώνου αὐτοῦ ἕνεκα τοὺς λόγους ποιούmicroενοι καὶ διαmicroέτρου αὐτῆς ἀλλ οὐ ταύτης ἣν γράφουσιν καὶ τἆλλα οὕτως αὐτὰ microὲν ταῦτα ἃ πλάττουσίν τε καὶ γράφουσιν ὧν καὶ σκιαὶ καὶ ἐν ὕδασιν εἰκόνες εἰσίν τούτοις microὲν ὡς εἰκόσιν αὖ χρώmicroενοι ζητοῦντες δὲ αὐτὰ ἐκεῖνα ἰδεῖν ἃ οὐκ ἂν ἄλλως ἴδοι τις ἢ τῇ διανοίᾳ (510d5-511a1)

O resultado final das relaccedilotildees de proporccedilatildeo entre os diversos segmentos da

linha eacute que os objetos sensiacuteveis satildeo imagens (εἰκόνες) das Formas tal como as

sombras e reflexos na aacutegua (σκιάς τὰ ἐν τοῖς ὕδασι φαντάσmicroατα) satildeo imagens

destes mesmos objetos Contudo o que a menccedilatildeo aos procedimentos geomeacutetricos

deixa claro eacute que a relaccedilatildeo entre imagens e original deve ser entendida durante

toda passagem por meio da noccedilatildeo de semelhanccedila Do mesmo modo que minhas

imagens (sombras e reflexos em uma superfiacutecie daacutegua) se parecem comigo

tambeacutem os graacuteficos e desenhos satildeo utilizados pelos geocircmetras como se fossem

imagens (ὡς εἰκόσιν αὖ χρώmicroενοι) das Formas inteligiacuteveis porque com elas se

parecem (οἷς ταῦτα ἔοικε) Em suma imagens (εἰκόνες) satildeo imagens de coisas

com as quais guardam similaridades e compartilham propriedades de outro modo

natildeo haveria porque um geocircmetra desenhar quadrados com a intenccedilatildeo de estudar o

Quadrado ideal

Portanto considero as passagens acima citadas suficientes para comprovar

que Soacutecrates entendia por εἰκόνες o que normalmente entendemos por imagens

isto eacute algo fundamentalmente distinto daquilo de que eacute imagem poreacutem que

guarda algum tipo de semelhanccedila com o original ao qual remete Sendo assim

podemos descartar a interpretaccedilatildeo de Patterson que pretende fazer uso da relaccedilatildeo

Originalimagens como forma de compreensatildeo da relaccedilatildeo Formascoisas poreacutem

negando que haja qualquer tipo de semelhanccedila entre os dois elementos de cada

uma destes pares

A relaccedilatildeo Originalimagens contudo natildeo pode ser completamente

abandonada como um possiacutevel modelo de compreensatildeo para relaccedilatildeo entre Formas

e coisas pois a partir desta analogia ainda eacute possiacutevel extrairmos uma interpretaccedilatildeo

que falsifique (AP) Considere a relaccedilatildeo entre Simmias e os diversos retratos de

Simmias Quando pegamos um dos retratos de Simmias e perguntamos quem eacute a

pessoa neste retrato A resposta que recebemos eacute esta pessoa eacute Simmias

Evidentemente esta resposta nos eacute dada em funccedilatildeo da semelhanccedila entre o

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Simmias original e a imagem de Simmias no retrato pois eacute esta semelhanccedila o que

nos permite dizer que tanto Simmias quanto suas imagens possuem a propriedade

de ser-Simmias Apesar disto estas coisas possuem a propriedade de ser-Simmias

de maneiras distintas a imagem de Simmias no retrato eacute Simmias poreacutem em um

sentido diferente daquele em que Simmias eacute Simmias Como vimos a

transposiccedilatildeo desta relaccedilatildeo para o caso envolvendo Formas e coisas poderia

fornecer uma saiacuteda ao Argumento do Terceiro Homem Afinal de acordo com este

modelo a Forma F-idade eacute F de uma maneira distinta das coisas (a b c) o que

falsificaria (AP)

No entanto uma nova criacutetica pode ser dirigida agravequeles que defendem este

tipo de interpretaccedilatildeo segundo a qual a F-idade e os muacuteltiplos objetos sensiacuteveis

que dela satildeo imagens natildeo recebem o predicado F univocamente Afinal se uma

coisa sensiacutevel natildeo possui o predicado F do mesmo modo que a F-idade como esta

Forma poderia servir de Modelo (Original ou Paradigma) para a aplicaccedilatildeo do

predicado que esta coisa sensiacutevel possui

Suponha por exemplo que F1 e F2 representam os diferentes modos em

que o predicado F pode ser aplicado Assim diriacuteamos que a F-idade eacute F1

enquanto um objeto sensiacutevel x eacute F2 Neste caso como F-idade que eacute

exclusivamente F1 poderia servir de Modelo ou Paradigma para aplicaccedilatildeo do

predicado F2 nos objetos sensiacuteveis Para ser um ModeloOriginalParadigma dos

objetos sensiacuteveis que recebem o predicado F a Forma precisa ser um

ModeloOriginalParadigma de aplicaccedilatildeo do mesmo predicado F possuiacutedo pelos

objetos sensiacuteveis Pois se a relaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis estaacute fundada

no fato de que os objetos sensiacuteveis recebem o predicado F em virtude da F-idade

por que neste caso exatamente F-idade e natildeo outra Forma seria a causa da

propriedade F nas coisas sensiacuteveis Caso natildeo aceitemos que Formas e coisas

compartilhem um mesmo predicado de maneira uniacutevoca natildeo temos razotildees

suficientes para identificar a F-idade (ao inveacutes de G-idade) como causa da

caracteriacutestica F encontrada nos objetos sensiacuteveis

Em Feacutedon (74b-c) por exemplo a visatildeo de um par de pedaccedilos de

madeiras iguais em comprimento eacute capaz de nos fazer lembrar a Forma da

Igualdade com a qual tivemos contato antes de nascermos Ora se o par de

madeiras em questatildeo natildeo possui a mesma propriedade que a Forma da Igualdade

por que entatildeo nos lembrariacuteamos desta Forma e natildeo de qualquer outra Da mesma

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maneira o Banquete (210-211) nos apresenta um percurso de ascensatildeo que inicia-

se nos corpos discursos e ciecircncias sensiacuteveis para chegar ao Belo ele mesmo

Aceitando que o Belo natildeo compartilha uma mesma propriedade com estes corpos

discursos e ciecircncias por que seriam exatamente estas coisas sensiacuteveis que

formariam o caminho para o Belo

Em resposta a este tipo de criacuteticas algumas interpretaccedilotildees pretendem

abordar a diferenccedila entre o modo de uma Forma e uma coisa sensiacutevel receberem o

mesmo predicado F por meio da qualificaccedilatildeo da relaccedilatildeo de predicaccedilatildeo Assim

estariacuteamos falando de um mesmo predicado F poreacutem de duas relaccedilotildees de

predicaccedilatildeo natildeo uniacutevocas Podemos pensar por exemplo que enquanto a Forma F-

idade recebe o predicado F de maneira necessaacuteria os objetos sensiacuteveis satildeo F

apenas de maneira contingente Supostamente esta explicaccedilatildeo seria suficiente

para evidenciar dois modos natildeo-uniacutevocos de predicaccedilatildeo portanto falsificando

(AP) sem trazer as indesejadas consequecircncias acima descritas

Na realidade contudo esta distinccedilatildeo natildeo eacute capaz de desqualificar

univocidade Caso contraacuterio teriacuteamos que admitir que as sentenccedilas ldquoTodo

torcedor do Vasco eacute necessariamente vascaiacutenordquo e ldquoEu sou contingentemente

vascaiacutenordquo apresentam o predicado ldquoser-vascaiacutenordquo de maneira distinta Aleacutem disso

teriacuteamos que negar que a sentenccedila ldquoEu sou contingentemente torcedor do Vascordquo

pode ser corretamente inferida das duas sentenccedilas anteriores Acrescentar um

operador modal como qualificaccedilatildeo do predicado F natildeo eacute suficiente para produzir

um novo predicado natildeo-uniacuteco a F Portanto sob a luz desta distinccedilatildeo Formas e

coisas continuam possuindo o mesmo predicado e tanto (AP) quanto o Argumento

do Terceiro Homem continuam vaacutelidos

Outra tentativa de negar a aparente univocidade entre a aplicaccedilatildeo de um

predicado a uma Forma e a aplicaccedilatildeo deste mesmo predicado aos objetos

sensiacuteveis consiste em apelar para distinccedilatildeo entre predicaccedilatildeo per se e predicaccedilatildeo

per aliud Em paralelo agrave distinccedilatildeo aristoteacutelica entre predicaccedilatildeo essencial e

predicaccedilatildeo acidental alguns comentadores reconhecem em Platatildeo a diferenciaccedilatildeo

entre um tipo de predicaccedilatildeo ldquoem virtude de sua proacutepria naturezardquo (per se) e um

segundo tipo de predicaccedilatildeo ldquoem virtude de outra coisardquo (per aliud) Assim

enquanto as Formas receberiam seus predicados per se de maneira proacutepria os

objetos sensiacuteveis receberiam seus predicados per aliud de maneira derivativa

Entendida deste modo a auto-predicaccedilatildeo de uma Forma seria uma espeacutecie de

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definiccedilatildeo miacutenima desta entidade Alegadamente isto faria com que natildeo

pudeacutessemos reduzir sentenccedilas auto-predicativas envolvendo Formas a meras

identidades ao mesmo tempo em que diferenciariacuteamos dois modos natildeo uniacutevocos

de predicaccedilatildeo

De fato esta distinccedilatildeo parece se encaixar nos paracircmetros traccedilados pela

Teoria das Ideias Tal como as substacircncias aristoteacutelicas as Formas recebem seus

predicados de maneira natildeo derivativa (per se) enquanto as coisas que participam

das Formas recebem seus predicados em virtude desta participaccedilatildeo (per aliud) No

entanto a questatildeo relevante para nossa discussatildeo eacute se este tipo de distinccedilatildeo eacute

capaz de falsificar (AP) e bloquear a reduccedilatildeo ao infinito proposta por Parmecircnides

Como observa Teloh (1981 p124) a distinccedilatildeo proposta explica a aplicaccedilatildeo

de predicados por meio de relaccedilotildees entre entidades mas certamente este tipo de

explicaccedilatildeo eacute compatiacutevel com predicados uniacutevocos A aplicaccedilatildeo de um predicado a

entidades de tipos distintos por si soacute natildeo eacute suficiente para concluirmos uma

diferenccedila de sentido deste predicado Mesmo entendendo as Formas como sujeitos

proacuteprios de F e os objetos sensiacuteveis como sujeitos derivados deste mesmo

predicado natildeo somos obrigados a abandonar a tese da unidade de sentido do

predicado em questatildeo Por outro lado caso usemos esta distinccedilatildeo como base para

uma diferenciaccedilatildeo de sentido entre predicados per se e per aliud voltaremos ao

problema anteriormente descrito de considerar as Formas como causas de

propriedades que natildeo possuem e inversamente os objetos sensiacuteveis como

recebendo por derivaccedilatildeo predicados distintos daqueles possuiacutedos pelas Formas

O maior problema da distinccedilatildeo entre aplicaccedilatildeo per se e per aliud como

soluccedilatildeo ao Argumento do Terceiro Homem contudo estaacute no fato desta distinccedilatildeo

natildeo poder ser encontrada na Teoria das Ideias apresentada pelo personagem

Soacutecrates no Parmecircnides ou em qualquer outro diaacutelogo O primeiro autor a

reconhecer a possibilidade de uma aplicaccedilatildeo da diferenciaccedilatildeo entre estes dois

modos natildeo uniacutevocos de aplicaccedilatildeo de um mesmo predicado foi Frede (1967) De

acordo com Frede a diferenccedila entre uma predicaccedilatildeo que definiria o que uma coisa

eacute em virtude de si mesmo e uma predicaccedilatildeo ordinaacuteria que apenas descreveria os

atributos desta coisa estaacute pressuposta na investigaccedilatildeo sobre as relaccedilotildees entre os

gecircneros do Sofista sobretudo em 255c12-13 Posteriormente Meinwald (1991)

aplicou a distinccedilatildeo proposta por Frede em sua anaacutelise dos argumentos da segunda

parte do Parmecircnides afirmando explicitamente que a diferenciaccedilatildeo entre

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predicaccedilotildees per se e per aliud seria capaz de bloquear o Argumento do Terceiro

Homem

Ora em nenhum destes dois casos eacute o personagem Soacutecrates quem propotildee

as anaacutelises que dariam ensejo agrave distinccedilatildeo entre os dois modos natildeo uniacutevocos de

predicaccedilatildeo No Sofista quem apresenta as relaccedilotildees entre os gecircneros supremos eacute

um Estrangeiro de Eleacuteia enquanto no Parmecircnides eacute o proacuteprio Parmecircnides quem

conduz as deduccedilotildees da segunda parte do diaacutelogo Em ambos os casos Soacutecrates

natildeo estaacute envolvido nas discussotildees e muito menos apresenta explicitamente sua

Teoria das Ideias como fonte da distinccedilatildeo em questatildeo Portanto mesmo que

admitamos que uma diferenciaccedilatildeo entre predicaccedilotildees per se e per aliud pode

bloquear os regressos apresentados por Parmecircnides o que natildeo necessariamente eacute

o caso como explica Teloh (1981 p124) natildeo temos motivos algum para afirmar

que Soacutecrates estaacute de posse desta distinccedilatildeo Sendo assim como criacutetica agrave

formulaccedilatildeo claacutessica da Teoria das Ideias o Argumento do Terceiro Homem segue

sendo vaacutelido

Deste modo podemos concluir que a segunda estrateacutegia adotada para

falsificar (AP) e livrar a Teoria das Ideias do regresso ao infinito demonstrado por

Parmecircnides tampouco representa uma alternativa viaacutevel Entender a F-idade em

analogia a um padratildeo (standard) como o Metro Modelo natildeo impede que usemos

o predicado F para descrevecirc-la Por outro lado ao tentarmos apelar para relaccedilatildeo

Originalimagens como forma de entender modos natildeo uniacutevocos de se possuir um

mesmo predicado ou bem acabamos por ter que aceitar a semelhanccedila entre

imagens e Original abrindo caminho para o Argumento do Terceiro Homem ou

bem somos obrigados a reconhecer a existecircncia de imagens natildeo semelhantes a

seus originais o que eacute certamente absurdo aleacutem de ir contra o texto dos diaacutelogos

Por fim a tentativa de distinguir entre dois sentidos de aplicaccedilatildeo de um mesmo

predicado implica em tornar os objetos sensiacuteveis tatildeo distintos das Formas das

quais derivam seus predicados que o proacuteprio papel causal das Formas acaba por

tornar-se arbitraacuterio

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44 Conclusatildeo do quarto capiacutetulo

Como resultado de suas criacuteticas Parmecircnides passa a pressupor que natildeo

pode haver qualquer tipo de relaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis Sua

conclusatildeo estaacute fundada no fato de Soacutecrates se mostrar incapaz de fornecer uma

explicaccedilatildeo para natureza da relaccedilatildeo entre estes dois acircmbitos da realidade que natildeo

resulte na destruiccedilatildeo da unidade caracteriacutestica das Formas

ldquoEstaacute vendo entatildeo Soacutecrates quatildeo grande eacute a aporia se algueacutem determinar as Formas sendo em si e por si Sim certamente Pois fica sabendo que por assim dizer ainda natildeo a tocas tamanha eacute a aporia que surge se sempre ao definir algo puseres cada um dos seres como uma Forma uacutenicardquo Ὁρᾷς οὖν φάναι ὦ Σώκρατες ὅση ἡ ἀπορία ἐάν τις ὡς εἴδη ὄντα αὐτὰ καθ αὑτὰ διορίζηται Καὶ microάλα Εὖ τοίνυν ἴσθι φάναι ὅτι ὡς ἔπος εἰπεῖν οὐδέπω ἅπτῃ αὐτῆς ὅση ἐστὶν ἡ ἀπορία εἰ ἓν εἶδος ἕκαστον τῶν ὄντων ἀεί τι ἀφοριζόmicroενος θήσεις (133a8-b2)

A menccedilatildeo de Parmecircnides agrave independecircncia ontoloacutegica (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e agrave

unidade caracteriacutestica das Formas (ἓν εἶδος ἕκαστον τῶν ὄντων) retoma os temas

enunciados na abertura de suas criacutetica Por serem ldquoem si e por sirdquo e

necessariamente unitaacuterias as Formas natildeo podem estar em noacutes (microηδεmicroίαν αὐτῶν

εἶναι ἐν ἡmicroῖν 133c6-7) Afinal cada uma das explicaccedilotildees socraacuteticas para relaccedilatildeo

entre Formas e coisas resultou na multiplicaccedilatildeo (numeacuterica ou aspectual) das

Formas Como por princiacutepio natildeo podemos aceitar que as Formas deixem de ser

entidades uacutenicas Parmecircnides passa a apresentar as consequecircncias paradoxais

decorrentes da postulaccedilatildeo de entidades uniformes e ontologicamente

independentes poreacutem completamente separadas das coisas sensiacuteveis

ldquoHaacute muitas outras dificuldade disse ele mas a maior eacute a seguinte se algueacutem dissesse que nem mesmo cabe serem elas as Formas conhecidas se forem tal como dizemos que devem ser a este algueacutem que assim falasse natildeo poderia provar que se engana (hellip) Como assim Parmecircnides disse Soacutecrates Porque Soacutecrates creio que tu e qualquer outro que potildee haver alguma essecircncia mesma em si e por si de cada coisas (αὐτήν τινα καθ αὑτὴν ἑκάστου οὐσίαν) concordariacuteeis antes de mais nada que nenhuma delas estaacute entre noacutes (microηδεmicroίαν αὐτῶν εἶναι ἐν ἡmicroῖν)

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Pois neste caso como seria ela ainda em si e por si disse Soacutecrates Eacute correto o que dizes disse Parmecircnides Entatildeo tambeacutem dentre as Formas todas aquelas que satildeo o que satildeo na relaccedilatildeo umas com as outras eacute na relaccedilatildeo delas mesmas umas com as outras que elas tecircm a sua essecircncia e natildeo na relaccedilatildeo com as coisas entre noacutes (hellip) Quanto as coisas que satildeo entre noacutes estas por sua vez sendo homocircnimas daquelas satildeo elas mesmas na relaccedilatildeo umas com as outras e natildeo na relaccedilatildeo com as Formas () Que queres dizer disse Soacutecrates Por exemplo disse Parmecircnides se algum de noacutes eacute senhor ou escravo de algueacutem natildeo eacute certamente daquele Senhor mesmo (αὐτοῦ δεσπότου) daquilo que eacute realmente Senhor (ὃ ἔστι δεσπότης) que ele eacute escravo nem eacute do Escravo mesmo (αὐτοῦ δούλου) daquilo que realmente eacute Escravo (ὃ ἔστι δοῦλος) que o senhor eacute senhor mas sendo homem eacute de um homem que ele eacute ambas essas coisas Por outro lado a Senhoria mesma eacute o que eacute da Escravidatildeo mesma e do mesmo modo a Escravidatildeo mesma eacute Escravidatildeo da Senhoria mesma As coisas entre noacutes natildeo tecircm seu poder em relaccedilatildeo agravequelas nem aquelas em relaccedilatildeo a noacutes Πολλὰ microὲν καὶ ἄλλα φάναι microέγιστον δὲ τόδε εἴ τις φαίη microηδὲ προσήκειν αὐτὰ γιγνώσκεσθαι ὄντα τοιαῦτα οἷά φαmicroεν δεῖν εἶναι τὰ εἴδη τῷ ταῦτα λέγοντι οὐκ ἂν ἔχοι τις ἐνδείξασθαι ὅτι ψεύδεται () Πῇ δή ὦ Παρmicroενίδη φάναι τὸν Σωκράτη Ὅτι ὦ Σώκρατες οἶmicroαι ἂν καὶ σὲ καὶ ἄλλον ὅστις αὐτήν τινα καθ αὑτὴν ἑκάστου οὐσίαν τίθεται εἶναι ὁmicroολογῆσαι ἂν πρῶτον microὲν microηδεmicroίαν αὐτῶν εἶναι ἐν ἡmicroῖν Πῶς γὰρ ἂν αὐτὴ καθ αὑτὴν ἔτι εἴη φάναι τὸν Σωκράτη Οὐκοῦν καὶ ὅσαι τῶν ἰδεῶν πρὸς ἀλλήλας εἰσὶν αἵ εἰσιν αὐταὶ πρὸς αὑτὰς τὴν οὐσίαν ἔχουσιν ἀλλ οὐ πρὸς τὰ παρ ἡmicroῖν () τὰ δὲ παρ ἡmicroῖν ταῦτα ὁmicroώνυmicroα ὄντα ἐκείνοις αὐτὰ αὖ πρὸς αὑτά ἐστιν ἀλλ οὐ πρὸς τὰ εἴδη (hellip) Πῶς λέγεις φάναι τὸν Σωκράτη Οἷον φάναι τὸν Παρmicroενίδην εἴ τις ἡmicroῶν του δεσπότης ἢ δοῦλός ἐστιν οὐκ αὐτοῦ δεσπότου δήπου ὃ ἔστι δεσπότης ἐκείνου δοῦλός ἐστιν οὐδὲ αὐτοῦ δούλου ὃ ἔστι δοῦλος δεσπότης ὁ δεσπότης ἀλλ ἄνθρωπος ὢν ἀνθρώπου ἀmicroφότερα ταῦτ ἐστίν αὐτὴ δὲ δεσποτεία αὐτῆς δουλείας ἐστὶν ὅ ἐστι καὶ δουλεία ὡσαύτως αὐτὴ δουλεία αὐτῆς δεσποτείας ἀλλ οὐ τὰ ἐν ἡmicroῖν πρὸς ἐκεῖνα τὴν δύναmicroιν ἔχει οὐδὲ ἐκεῖνα πρὸς ἡmicroᾶς (133b4-e5)

Desprovidos do poder causal exercido pelas Formas os objetos sensiacuteveis

manifestam suas propriedades unicamente em funccedilatildeo das relaccedilotildees mantidas entre

si Parmecircnides continua falando em participaccedilatildeo (microετέχοντες 133d2) No entanto

tendo sido eliminada a possibilidade de relaccedilatildeo causal entre Formas e coisas a

participaccedilatildeo restringe-se a cada uma destas duas esferas da realidade objetos

sensiacuteveis participam de relaccedilotildees com outros objetos sensiacuteveis enquanto Formas

participam de relaccedilotildees com outras Formas Como consequecircncia a Forma do

Senhor possui a propriedade de ser-senhor apenas em relaccedilatildeo agrave Forma do Escravo

e por outro lado o senhor sensiacutevel adquire esta propriedade unicamente em

funccedilatildeo da sua relaccedilatildeo com um escravo sensiacutevel

Neste caso contudo seraacute preciso reconhecer que caso exista uma ciecircncia

das Formas esta ciecircncia estaacute restrita ao acircmbito das entidades inteligiacuteveis e nada

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diz sobre as coisas do mundo sensiacutevel E por outro lado a ciecircncia relativa aos

objetos sensiacuteveis estaria limitada a seu proacuteprio acircmbito da realidade e em nada

dependeria das Formas

ldquoEntatildeo disse ele tambeacutem a Ciecircncia mesma (ἐπιστήmicroη αὐτὴ) aquilo que realmente eacute Ciecircncia (ὃ ἔστι ἐπιστήmicroη) eacute daquela Verdade mesma daquilo que realmente eacute Verdade (τῆς ὃ ἔστιν ἀλήθεια αὐτῆς) que ela seria ciecircncia natildeo eacute Perfeitamente () Mas a ciecircncia entre noacutes (παρ ἡmicroῖν ἐπιστήmicroη) natildeo seria ciecircncia da verdade entre noacutes (παρ ἡmicroῖν ἀληθείας) e por sua vez cada ciecircncia entre noacutes natildeo resultaria ser ciecircncia de cada um dos seres entre noacutes (τῶν παρ ἡmicroῖν ὄντων ἑκάστου) Necessariamente (hellip) Logo por noacutes pelo menos nenhuma das Formas eacute conhecida jaacute que natildeo participamos da Ciecircncia mesma Parece que natildeo Logo eacute-nos incognosciacutevel tanto o Belo mesmo o que realmente eacute (αὐτὸ τὸ καλὸν ὃ ἔστι) como o Bem e todas as coisas que concebemos como sendo Ideias mesmas (πάντα ἃ δὴ ὡς ἰδέας αὐτὰς οὔσας)rdquo Οὐκοῦν καὶ ἐπιστήmicroη φάναι αὐτὴ microὲν ὃ ἔστι ἐπιστήmicroη τῆς ὃ ἔστιν ἀλήθεια αὐτῆς ἂν ἐκείνης εἴη ἐπιστήmicroη Πάνυ γε Ἡ δὲ παρ ἡmicroῖν ἐπιστήmicroη οὐ τῆς παρ ἡmicroῖν ἂν ἀληθείας εἴη καὶ αὖ ἑκάστη ἡ παρ ἡmicroῖν ἐπιστήmicroη τῶν παρ ἡmicroῖν ὄντων ἑκάστου ἂν ἐπιστήmicroη συmicroβαίνοι εἶναι Ἀνάγκη Οὐκ ἄρα ὑπό γε ἡmicroῶν γιγνώσκεται τῶν εἰδῶν οὐδέν ἐπειδὴ αὐτῆς ἐπιστήmicroης οὐ microετέχοmicroεν Οὐκ ἔοικεν Ἄγνωστον ἄρα ἡmicroῖν καὶ αὐτὸ τὸ καλὸν ὃ ἔστι καὶ τὸ ἀγαθὸν καὶ πάντα ἃ δὴ ὡς ἰδέας αὐτὰς οὔσας ὑπολαmicroβάνοmicroεν

Como resultado teriacuteamos que nos contentar com o conhecimento

imperfeito que a instabilidade ontoloacutegica das coisas sensiacuteveis eacute capaz de nos

proporcionar e reconhecer que somente os deuses poderiam obter o conhecimento

seguro fornecido pelas Formas O argumento como um todo nos convida a

questionar o valor da postulaccedilatildeo de entidades inteligiacuteveis Afinal se as coisas

sensiacuteveis recebem suas propriedades por meio das relaccedilotildees que mantecircm entre si

natildeo teriacuteamos motivos para nos preocupar com as Formas entidades

completamente irrelevantes para o andamento e conhecimento do mundo em que

vivemos

Restringindo o resultado da argumentaccedilatildeo de Parmecircnides ao nosso

diaacutelogo podemos concluir que a Teoria das Ideias natildeo representa uma saiacuteda

legiacutetima ao problema da predicaccedilatildeo de opostos exemplificado no paradoxo de

Zenatildeo Afinal para figurarem em uma relaccedilatildeo de participaccedilatildeo com os objetos

sensiacuteveis as Formas precisariam abrir matildeo de sua unidade caracteriacutestica o que as

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submeteria ao mesmo tipo de problema relacionado agrave predicaccedilatildeo de opostos

apontado por Zenatildeo nos objetos sensiacuteveis

No entanto as criacuteticas de Parmecircnides extrapolam o acircmbito do debate

contido no Parmecircnides e configuram-se como uma refutaccedilatildeo da proacutepria ontologia

socraacutetica Pois se Soacutecrates propotildee que entendamos as Formas como causas das

propriedades dos objetos sensiacuteveis entatildeo haacute de haver algum tipo de relaccedilatildeo entre

estas entidades A argumentaccedilatildeo acima exposta contudo demonstra que uma

explicaccedilatildeo para este relacionamento que natildeo resulte na destruiccedilatildeo do proacuteprio

modo de ser das Formas ainda natildeo estaacute disponiacutevel Afinal cada uma das hipoacuteteses

socraacuteticas para natureza da relaccedilatildeo entre coisas e Formas levou inexoravelmente agrave

dissoluccedilatildeo da unidade caracteriacutestica destas entidades Por outro lado caso

quiseacutessemos sustentar a unidade das Formas a qualquer custo afirmando sua

completa separaccedilatildeo das coisas sensiacuteveis as Formas passariam a ser

incognosciacuteveis e completamente irrelevantes

Haacute portanto um niacutetido paradoxo no interior da ontologia socraacutetica

Somente porque possui um modo de ser natildeo relacional e separado uma Forma eacute

ontologicamente prioritaacuteria uacutenica indivisiacutevel e auto-predicativa podendo ser

apresentada como causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e soluccedilatildeo para o

problema da copresenccedila de opostos No entanto para cumprirem seu papel de

causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis as Formas precisam estar em relaccedilatildeo

com as entidades do mundo empiacuterico E como demonstra Parmecircnides esta

relaccedilatildeo eacute suficiente para modificar a natureza das Formas tornando-as entidades

muacuteltiplas sujeitas a predicaccedilatildeo de opostos e tatildeo auto-contraditoacuterias quanto os

objetos sensiacuteveis

Portanto se a interpretaccedilatildeo aqui proposta estaacute correta a primeira parte do

diaacutelogo Parmecircnides revela um problema real e indiscutiacutevel na Teoria das Ideias

defendida pelo personagem Soacutecrates nos diaacutelogos meacutedios e iniciais Natildeo por

acaso Platatildeo como resultado final de sua anaacutelise criacutetica da ontologia socraacutetica

coloca na boca de Parmecircnides as seguintes palavras carregadas de dramaticidade

ldquoQue faraacutes da Filosofia Para onde te voltaraacutes sendo estas coisas desconhecidasrdquo

Τί οὖν ποιήσεις φιλοσοφίας πέρι πῇ τρέψῃ ἀγνοουmicroένων τούτων (135c5-6)

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Page 6: 4 O Diálogo Parmênides e a Ontologia Socrática

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mais proacutexima agravequela do Parmecircnides

(Brandwood 1990 p86)

Estas idiossincrasias de estilo contudo podem ser compreendidas caso

tenhamos em mente que o Parmecircnides possui longas falas de personagens que natildeo

aparecem em nenhum outro diaacutelogo platocircnico Eacute portanto natural que a

linguagem deste diaacutelogo desvie do restante da obra platocircnica Sendo assim o natildeo

uso de expressotildees vocativas como ὦ ἄριστε por exemplo pode muito bem ser

uma decisatildeo plenamente consciente de Platatildeo Assim considerada a ausecircncia

destas expressotildees no Parmecircnides denota apenas o caraacuteter direto da argumentaccedilatildeo

desenvolvida pelos personagens Parmecircnides e Zenatildeo4 Da mesma maneira a

mudanccedila constante de orador deve-se claramente ao estilo e extensatildeo da

argumentaccedilatildeo desenvolvida na segunda parte do diaacutelogo na qual cada pequeno

passo no desenvolvimento loacutegico dos argumentos eacute confirmado pelo interlocutor

O mesmo vale com relaccedilatildeo ao uso constante das expressotildees ἀδύνατον e ἀνάγκη

que demonstram apenas o reconhecimento por parte dos interlocutores da

necessidade loacutegica inerente aos argumentos desenvolvidos no diaacutelogo Por fim

como observa Brandwood eacute preciso notar que o caraacuteter geral do Parmecircnides eacute tatildeo

proacuteprio e diverge tanto daquilo que encontramos em outros diaacutelogos que a

admissatildeo de sua autenticidade prejudicaria o argumento de Ritter com relaccedilatildeo agrave

inautenticidade de outras obras uma vez que tal argumentaccedilatildeo funda-se

exclusivamente em uma anaacutelise estiliacutestica (cf Brandwood 1990 p86)

Portanto sobre a questatildeo da autenticidade de nossa obra podemos

apresentar os seguintes resultados

1) O Parmecircnides eacute tido como autecircntico por Thrasillus (36 DC) e

muito provavelmente tambeacutem por Aristoacutefanes de Bizacircncio (180

AC) aleacutem de nenhum comentador antigo jamais ter levantado

duacutevidas sobre sua autenticidade

2) Temos fortes razotildees para acreditar que Platatildeo refere-se ao

Parmecircnides em diversas outras obras e por assim dizer nosso

diaacutelogo possui um papel de destaque na intertextualidade platocircnica

4 Aleacutem disso a ausecircncia de expressotildees como ὦ ἄριστε e ὦ ἑταῖρε eacute apenas um dos resultados da

teacutecnica de evitar hiatos adotada por Platatildeo durante a uacuteltima fase de sua carreira literaacuteria Afinal ambas expressotildees possuem hiatos e podem ser facilmente substituiacutedas

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3) A imensa maioria das anaacutelises estilomeacutetricas apresenta o

Parmecircnides como um diaacutelogo legiacutetimo Aleacutem disso a

argumentaccedilatildeo de Ritter uacutenico autor a desenvolver argumentos

estiliacutesticos contra a autenticidade de nosso diaacutelogo estaacute claramente

sujeita a criacuteticas de ordem metodoloacutegica e pelo menos a metade

de sua lista de caracteriacutesticas estiliacutesticas desviantes do Parmecircnides

(pontos 2 3 e 4) pode ser facilmente compreendida como o

resultado direto do tipo de argumentaccedilatildeo apresentada no diaacutelogo

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411 A Posiccedilatildeo do Parmecircnides no interior da obra de Platatildeo

Tendo apresentado nossas consideraccedilotildees acerca da autenticidade do

Parmecircnides passamos agora ao natildeo menos conturbado assunto do

posicionamento desta obra no interior da seacuterie de diaacutelogos platocircnicos Como

vimos os comentadores do inicio do seacuteculo XIX natildeo estavam de posse de um

criteacuterio objetivo para a ordenaccedilatildeo dos diaacutelogos contavam apenas com os criteacuterios

bastante duvidosos de referecircncia intertextual e menccedilatildeo a fatos histoacutericos

conhecidos Sendo assim as ordenaccedilotildees de diaacutelogos oferecidas por estes

comentadores fundavam-se basicamente naquilo que cada um considerava ser o

conteuacutedo da filosofia platocircnica o que os levava a resultados bastante inusitados

Deste modo a despeito disto parecer impensaacutevel para um leitor moderno

o Parmecircnides foi considerado pela maior parte dos helenistas alematildees do seacuteculo

XIX um dos primeiros diaacutelogos de Platatildeo Schleiermacher por exemplo

considera o Parmecircnides uma das primeiras obras e encontra em nosso diaacutelogo tal

como encontra no Feacutedro e no Protaacutegoras uma ldquomaneira jovial de expressatildeordquo

(Schleiermacher 1836 p115) Esta afirmaccedilatildeo de Schleiermacher eacute

posteriormente reafirmada por Hermann (1839) que ainda aponta na bibliografia

de Platatildeo uma justificativa para a identificaccedilatildeo do Parmecircnides como uma obra da

juventude Com base no testemunho de um certo Hermoacutegenes (cf Dioacutegenes

Laeacutercio II 106 III 6) segundo o qual Platatildeo teria fugido para Meacutegara logo apoacutes

a morte de Soacutecrates Hermann atribui a composiccedilatildeo do Parmecircnides ao momento

em que Platatildeo tendo por volta de vinte anos estaria entrando em contato com

pensadores de fora do circuito ateniense e socraacutetico De acordo com Hermann a

presenccedila de Parmecircnides e Zenatildeo no diaacutelogo evidencia a influecircncia megaacuterica sob a

qual o diaacutelogo teria sido escrito

A identificaccedilatildeo do Parmecircnides como uma das primeiras obras de Platatildeo

permanece prevalecente entre os classicistas alematildees ateacute Ueberweg (1861)

Ueberweg eacute o primeiro autor a questionar a veracidade do depoimento acerca da

fuga de Platatildeo para Meacutegara desfazendo assim a crenccedila no periacuteodo megaacuterico de

Platatildeo Contudo Ueberweg atribui uma data tatildeo tardia para a composiccedilatildeo do

Parmecircnides que eacute levado a crer que nosso diaacutelogo eacute uma obra espuacuteria escrita por

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algum membro da academia apoacutes a morte de Platatildeo Com o fim do mito do

periacuteodo megaacuterico de Platatildeo passamos a encontrar as propostas mais discrepantes

acerca do posicionamento do Parmecircnides e no extremo oposto da posiccedilatildeo de

Schleiermacher Zeller (1883) identifica o Parmecircnides como o diaacutelogo (natildeo-

escrito) Filosoacutefo colocando-o no fim da trilogia iniciada por Sofista e Poliacutetico no

fim da carreira literaacuteria de Platatildeo5

Com o aparecimento do meacutetodo estilomeacutetrico o Parmecircnides deixa de

figurar nos extremos das cronologias de composiccedilatildeo dos diaacutelogos e passa a ocupar

uma posiccedilatildeo intermediaacuteria que vai em pouco tempo se tornar bastante

consolidada Para sermos precisos o primeiro dos estudos estilomeacutetricos aquele

de Campbell (1867) coloca o Parmecircnides estranhamente como um dos primeiros

diaacutelogos proacuteximo a obras como Ecircutifron Apologia e Ion No entanto esta

posiccedilatildeo eacute tatildeo discrepante das expectativas gerais acerca do Parmecircnides que o

proacuteprio Campbell recusa-se a aceitaacute-la e atribui este resultado a ldquocircunstacircncias

excepcionaisrdquo sem especificar quais satildeo estas circunstacircncias (Campbell 1867

pxxxiii)

A partir do refinamento dos criteacuterios de anaacutelise estiliacutestica operado por

Dittenberger (1896) o Parmecircnides passa a ser colocado entre os uacuteltimos diaacutelogos

ocupando especialmente a posiccedilatildeo de primeiro diaacutelogo da uacuteltima fase estiliacutestica de

Platatildeo Tal posicionamento para o Parmecircnides eacute subsequentemente consolidado

pelos criteacuterios de Ritter von Arnim e Baron (cf Brandwood 1990 p251) De

fato Campbell trinta anos depois de sua primeira publicaccedilatildeo sobre o assunto

lanccedila um artigo especificamente sobre o estilo do Parmecircnides no qual apresenta

novos resultados e conclui que nosso diaacutelogo eacute certamente posterior a obras

como Repuacuteblica e Feacutedro De modo geral o trabalho de Campbell sobre o

vocabulaacuterio do Parmecircnides tambeacutem corrobora a posiccedilatildeo de Dittenberger

identificando nosso diaacutelogo ao lado do Teeteto como obras diretamente

anteriores ao Sofista e ao Poliacutetico (Campbell 1896 p129-136) Todos estes

resultados satildeo ainda reforccedilados pelas circunstacircncias jaacute notadas por Ueberweg de

que o Parmecircnides possui muito pouca accedilatildeo dramaacutetica quando comparado a

diaacutelogos como Repuacuteblica e Banquete possui trechos de discurso direto inseridos

5 Para um resumo das posiccedilotildees dos comentadores alematildees do seacuteculo XIX acerca da cronologia

de composiccedilatildeo das obras de Platatildeo (cf Lutoslawski 1897 p35-63)

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em meio a um longo discurso indireto6 e sobretudo natildeo apresenta Soacutecrates como

orador principal trecircs caracteriacutesticas proacuteprias dos diaacutelogos da uacuteltima fase

Finalmente resta observar que mesmo natildeo sendo possiacutevel determinar a

posiccedilatildeo exata de um diaacutelogo no interior de cada fase estiliacutestica podemos dizer que

o Parmecircnides possui um estilo claramente transicional possuindo um vocabulaacuterio

relativo agrave apresentaccedilatildeo claacutessica da Teoria das Ideias tal como exposta nos

diaacutelogos da fase meacutedia e ao mesmo tempo inovaccedilotildees de estilo caracteriacutesticas dos

diaacutelogos da uacuteltima fase Some-se a isso o fato de que o conteuacutedo do Parmecircnides

parece ilustrar exatamente esta dualidade apresentando uma primeira parte

voltada para questotildees relativas agrave formulaccedilatildeo claacutessica da Teoria das Ideias poreacutem

com um caraacuteter criacutetico e uma segunda parte na qual o personagem Soacutecrates

praticamente desaparece e um estilo completamente novo de argumentaccedilatildeo eacute

apresentado

Em funccedilatildeo desta soma de fatores a partir da virada do seacuteculo XX nosso

diaacutelogo passa a figurar em uma posiccedilatildeo intermediaacuteria entre a segunda e terceira

fase da obra de Platatildeo de maneira virtualmente inquestionaacutevel Esta hipoacutetese

permanece tatildeo consolidada entre os comentadores contemporacircneos que mesmo

com a imensa diversidade de interpretaccedilotildees apresentadas para nosso diaacutelogo

simplesmente desconheccedilo qualquer publicaccedilatildeo lanccedilada nos uacuteltimos cem anos em

que este posicionamento para o Parmecircnides no interior da obra de Platatildeo seja

questionado

6 Este aspecto formal eacute particularmente visiacutevel na segunda parte do Parmecircnides onde um uacutenico

φάναι inicial (137c4) antecede vaacuterias paacuteginas de discurso em forma direta

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412 O Proacutelogo do Parmecircnides

O Parmecircnides descreve um diaacutelogo travado entre Soacutecrates ainda bastante

jovem Zenatildeo Parmecircnides e Aristoacuteteles natildeo o filoacutesofo mas um jovem que viria a

se tornar um dos trinta tiranos A conversa que nos chega natildeo eacute narrada por um

dos presentes no encontro mas por Ceacutefalo que o tinha ouvido de Antifonte meio

irmatildeo de Platatildeo que havia ouvido e memorizado a conversa a partir do relato de

Pitodoro Pitodoro por sua vez havia ouvido a conversa por ser companheiro de

Zenatildeo e ter abrigado os visitantes durante sua estada em Atenas (AlcibI 119a)

Apesar de natildeo ser o uacutenico diaacutelogo a apresentar este tipo de encadeamento

narrativo7 o Parmecircnides eacute o diaacutelogo no qual o relato que nos eacute oferecido estaacute

mais distante da conversa original tanto no tempo quanto no nuacutemero de ldquoelosrdquo da

cadeia narrativa Afinal aquele que lecirc o Parmecircnides (e portanto ldquoouverdquo a

narrativa de Ceacutefalo) encontra-se no quarto estaacutegio de uma cadeia de transmissatildeo

do conteuacutedo de uma conversa que teria acontecido haacute pelo menos cinquenta anos

antes do momento dramaacutetico em que Ceacutefalo oferece seu relato8 A estrutura

narrativa descrita no proacutelogo do Parmecircnides pode ser representada pela seguinte

figura

[ZENAtildeO PARMEcircNIDES SOacuteCRATES ARISTOacuteTELES]

[PITODORO ANTIFONTE]

[ANTIFONTE CEacuteFALO]

[CEacuteFALO LEITOR]

7 O Feacutedon o Banquete e o Teeteto tambeacutem satildeo narrados por pessoas que natildeo presenciaram os

acontecimentos descritos 8 A data dramaacutetica para a realizaccedilatildeo do suposto encontro entre Parmecircnides Soacutecrates e Zenatildeo eacute

estabelecida pela menccedilatildeo agraves Grande Panateneacuteias festivais realizados de quatro em quatro anos em honra a Atenaacute Segundo o diaacutelogo Parmecircnides e Zenatildeo estariam em visita a Atenas com o objetivo de participar deste festival De acordo com as informaccedilotildees que nos satildeo fornecidas acerca da idade dos personagens do diaacutelogo (127b-c Parmecircnides teria por volta de sessenta e cinco anos Zenatildeo estaria proacuteximo dos quarenta e Soacutecrates era ainda bastante jovem) podemos estabelecer o festival do ano de 449450 AC como a data base para o encontro narrado Como Ceacutefalo natildeo busca o proacuteprio Soacutecrates para ouvir o relato deste encontro podemos deduzir ainda que no momento da chegada de Ceacutefalo e sua comitiva em Atenas Soacutecrates jaacute havia sido executado fato ocorrido em 399 AC Sendo assim ao menos cinquenta anos separam o relato de Antifonte do momento do encontro inicial Natildeo temos razatildeo para acreditar que o relato de Ceacutefalo esteja ocorrendo muito depois desta data mas as indicaccedilotildees satildeo precisas o suficiente para deixar claro ao leitor a consideraacutevel distacircncia entre a narrativa que nos chega e a conversa original

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Deste modo o Parmecircnides relata uma conversa travada entre Zenatildeo

Parmecircnides Soacutecrates e Aristoacuteteles que foi narrada por Pitodoro a Antifonte que

narrou a Ceacutefalo que por sua vez narra ao leitor Este fato nos eacute lembrado em

pelo menos duas passagens do texto nas quais a cadeia de transmissatildeo eacute

explicitada (130a e 136e) Aleacutem disso esta estrutura nunca desaparece plenamente

de vista para o leitor do texto grego pois todo o diaacutelogo eacute em forma de discurso

indireto com discursos diretos inseridos Eacute claro portanto que tamanha

complexidade de estrutura narrativa natildeo pode ser acidental Platatildeo certamente

intencionava passar alguma mensagem por meio da apresentaccedilatildeo de um proacutelogo

tatildeo cuidadosamente construiacutedo e eacute tarefa do inteacuterprete levantar hipoacuteteses acerca

destas intenccedilotildees

Como a maior parte dos comentadores observa a primeira liccedilatildeo que

podemos tirar da estrutura narrativa do Parmecircnides diz respeito agrave ausecircncia total de

veracidade histoacuterica do relato Ao estabelecer uma longa distacircncia temporal entre

a narrativa que nos eacute oferecida e o fato dramaacutetico que nos eacute narrado Platatildeo indica

ao leitor que o conteuacutedo do Parmecircnides eacute plenamente ficcional e que ningueacutem

deve tentar confirmar nenhum dos seus detalhes mesmo que um encontro entre

Parmecircnides e Soacutecrates tenha de fato acontecido coisa que a maior parte dos

comentadores considera improvaacutevel ou mesmo impossiacutevel9

A segunda conclusatildeo que podemos extrair da complexa estrutura narrativa

apresentada no Parmecircnides diz respeito ao efeito dramaacutetico que este tipo de

proacutelogo pretende criar no leitor Nosso diaacutelogo se inicia com a histoacuteria de que

cinquenta anos apoacutes um encontro entre Parmecircnides Zenatildeo e Soacutecrates um grupo

de pessoas ldquobastante interessadas em questotildees de sabedoriardquo (microάλα φιλόσοφοι) eacute

levado a deixar Clazocircmenas para cruzar o mar Egeu em busca de um ateniense

que acreditam ter informaccedilotildees sobre o que teria se passado nesta reuniatildeo Este

ateniense apesar de natildeo haver estado presente no encontro ocorrido antes mesmo

de seu nascimento considerava o conteuacutedo da conversa ali desenrolada tatildeo

importante que decidiu dedicar-se a decoraacute-la durante sua juventude A pessoa de

9 A ausecircncia de pretensatildeo histoacuterica eacute notada por praticamente todos os comentadores recentes

Mansfeld adotando 462461 como data dramaacutetica para o suposto encontro entre Parmecircnides e Soacutecrates acredita ainda que este evento nunca poderia ter acontecido como descrito por Platatildeo pois nesta data Soacutecrates teria apenas oito anos de idade ldquoNem ao menos se espera que os leitores do Parmecircnides acreditem que o encontro tenha realmente ocorridordquo (Mansfeld

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quem este ateniense ouviu a histoacuteria Pitodoro tampouco participou ativamente da

conversa poreacutem igualmente decorou o conteuacutedo do diaacutelogo e passou adiante10

O proacutelogo do Parmecircnides nos gera assim uma sensaccedilatildeo de curiosidade

acerca do texto que estamos prestes a ter acesso Aleacutem disso a longa lista de

pessoas dedicadas agrave preservaccedilatildeo do conteuacutedo desta conversa assim como a longa

jornada de Ceacutefalo e seus companheiros em busca desta narrativa nos garante a

seriedade e a importacircncia daquilo que nos seraacute revelado Como observa Allen ldquoa

proacutepria introduccedilatildeo do Parmecircnides por si soacute nos proiacutebe tratar o diaacutelogo como um

tipo estranho de piada ou trivializar o diaacutelogo como uma mera ginaacutestica ou um

exerciacutecio de detecccedilatildeo de simples falaacuteciasrdquo (Allen 1997 p71) O proacutelogo do

Parmecircnides adverte o leitor a se preparar desde o iniacutecio para a profundidade e

relevacircncia do conteuacutedo que seraacute apresentado

A caracteriacutestica mais importante da abertura de nosso diaacutelogo no entanto

parece ter passado despercebida para maior parte dos comentadores Trata-se do

fato de que a complexa estrutura narrativa montada no proacutelogo do Parmecircnides

encontra-se refletida na estrutura argumentativa do diaacutelogo Diferente da maior

parte dos diaacutelogos nos quais um mesmo interlocutor expotildee suas teses ou conduz a

refutaccedilatildeo de outro(s) personagem(s) o Parmecircnides eacute constituiacutedo por uma seacuterie de

momentos argumentativos distintos Nosso diaacutelogo comeccedila com a leitura dos

argumentos de Zenatildeo e uma menccedilatildeo aos detratores de Parmecircnides contra quem

estes argumentos satildeo endereccedilados Logo em seguida Soacutecrates aparece em cena e

passa a argumentar contra Zenatildeo Por fim Parmecircnides entra na discussatildeo e passa

a apresentar argumentos contra Soacutecrates Desta maneira temos Parmecircnides

oferecendo criacuteticas agrave Teoria das Ideias de Soacutecrates que havia sido apresentada

como uma refutaccedilatildeo agrave argumentaccedilatildeo de Zenatildeo que por sua vez havia sido

apresentada como uma criacutetica agrave tese pluralista defendida pelos detratores de

Parmecircnides Esta estrutura argumentativa pode ser representada pelo seguinte

1986 p44)

10 Eacute importante notar que no momento em que Ceacutefalo chega agrave Atenas em busca de informaccedilotildees sobre o encontro de Soacutecrates Zenatildeo e Parmecircnides todas as pessoas que estavam presentes neste encontro jaacute estatildeo mortas incluindo o proacuteprio Soacutecrates Portanto para Antifonte e Ceacutefalo assim como para o leitor do diaacutelogo o Parmecircnides narra momentos da vida de figuras de uma geraccedilatildeo passada uma geraccedilatildeo de grande importacircncia para a comunidade filosoacutefica grega cujas conversas e debates merecem ser lembrados e revividos meio seacuteculo apoacutes seu acontecimento O proacutelogo do Parmecircnides presta assim uma homenagem a esta geraccedilatildeo de pensadores jaacute perdida e o fato de Platatildeo fazer com que vaacuterios personagens tenham se dedicado ao ato de memorizar o conteuacutedo de um encontro entre estas pessoas indica ainda o apreccedilo de Platatildeo por estes indiviacuteduos

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esquema

[ PARMEcircNIDES PLURALISTAS]

[ PLURALISTAS ZENAtildeO]

[ ZENAtildeO SOacuteCRATES]

[SOacuteCRATES PARMEcircNIDES]

Da mesma forma que nossa histoacuteria eacute narrada por uma pessoa que conta o

que lhe foi narrado por outra pessoa que contou o que lhe foi narrado por outra

os argumentos do diaacutelogo satildeo ordenados de tal modo que cada um deles remete

aos resultados alcanccedilados pelos argumentos precedentes ao mesmo tempo em que

fornece a base para o argumento que se seguiraacute A estrutura argumentativa do

Parmecircnides encontra-se assim refletida e prenunciada na estrutura narrativa

descrita no proacutelogo do diaacutelogo

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413 O paradoxo de Zenatildeo

O primeiro argumento apresentado ao leitor do Parmecircnides eacute atribuiacutedo a

Zenatildeo Como sabemos Zenatildeo foi um defensor do monismo eleata e seus

argumentos receberam muito prestiacutegio ainda na antiguidade O interesse acerca

do pensamento de Zenatildeo faz com que muitos comentadores do Parmecircnides

analisem o paradoxo zenoniano presente no diaacutelogo em comparaccedilatildeo aos

argumentos do Zenatildeo histoacuterico Esta atitude pode ser vista por exemplo em

Proacuteclus que interpreta o paradoxo presente no Parmecircnides em funccedilatildeo do

conteuacutedo de uma obra atribuiacuteda a Zenatildeo na qual este paradoxo estaria descrito (In

Parm 694)11

Nos comentadores modernos esta abordagem tambeacutem parece prevalecer

Assim Cornford (Cornford 1951 p 53-62) dedica toda primeira seccedilatildeo de seu

comentaacuterio ao Parmecircnides agrave questatildeo da relaccedilatildeo entre Zenatildeo e seus oponentes da

escola pitagoacuterica Brisson (Brisson 1990 p15-28) igualmente passa boa parte

de sua introduccedilatildeo ao Parmecircnides discutindo a relaccedilatildeo entre as teses de Zenatildeo e

Parmecircnides natildeo como personagens do drama platocircnico mas como figuras

histoacutericas Ambos os autores mesmo reconhecendo a escassez de fontes sobre o

tema acabam por projetar a sua compreensatildeo do pensamento do Zenatildeo histoacuterico

na interpretaccedilatildeo do papel desta figura no interior de nosso diaacutelogo

Em contrapartida a esta atitude a importacircncia do paradoxo de Zenatildeo na

interpretaccedilatildeo do Parmecircnides tem sido na maior parte das vezes negligenciada

pelos comentadores Como observa Harte ldquomuito constantemente o interesse em

examinar a relaccedilatildeo entre as deduccedilotildees [da segunda parte do diaacutelogo] e a criacutetica de

Parmecircnides agraves Formas deu-se agraves custas de uma consideraccedilatildeo da conversa inicial

entre Soacutecrates e Zenatildeordquo (Harte 2002 p52) Uma das razotildees para esta negligecircncia

estaacute sem duacutevida no fato de que os comentadores consideram relativamente clara

a relaccedilatildeo desta conversa inicial com o restante da obra Segundo a opiniatildeo geral o

paradoxo de Zenatildeo serve como um pretexto para que Soacutecrates apresente a Teoria

11 Dillon em sua introduccedilatildeo ao Comentaacuterio ao Parmecircnides de Proacuteclus defende a tese de que

Proacuteclus daacute claros sinais de possuir um manuscrito da obra de Zenatildeo e que portanto devemos considerar vaacutelidas suas observaccedilotildees sobre o conteuacutedo desta obra A mais famosa destas observaccedilotildees afirma que o paradoxo apresentado no Parmecircnides fazia parte de um livro que conteria quarenta argumentos (cf MorrowampDillon 1987 p xxviii-xliii)

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das Ideias Sendo assim os comentadores tecem raacutepidas consideraccedilotildees sobre o

paradoxo de Zenatildeo e na maior parte das vezes jaacute em funccedilatildeo da soluccedilatildeo

apresentada por Soacutecrates para este paradoxo12

No entanto caso adotemos este tipo de interpretaccedilatildeo para o papel do

paradoxo de Zenatildeo no diaacutelogo estaremos de iniacutecio comprometendo a unidade da

argumentaccedilatildeo do Parmecircnides Pois segundo este ponto de vista o paradoxo de

Zenatildeo natildeo estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do restante do diaacutelogo e

natildeo passa de uma deixa dramaacutetica para entrada em cena de Soacutecrates e sua teoria

Sendo assim evitarei abrir a caixa de pandora do conteuacutedo do pensamento

eleaacutetico e me limitarei a oferecer uma interpretaccedilatildeo para o paradoxo de Zenatildeo agrave

altura do papel de destaque que este argumento recebe no nosso diaacutelogo No

Parmecircnides o paradoxo de Zenatildeo daacute ensejo a toda discussatildeo subsequente

Portanto segundo o princiacutepio de relaccedilatildeo entre os argumentos do diaacutelogo esboccedilado

na seccedilatildeo precedente os conceitos envolvidos neste paradoxo devem ressoar por

todo o restante da argumentaccedilatildeo

12 Allen (1997) eacute uma exceccedilatildeo

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414 Dois sentidos de multiplicidade e unidade implicado s na argumentaccedilatildeo zenoniana

A narrativa de Ceacutefalo inicia-se com a descriccedilatildeo de uma leitura puacuteblica dos

ldquoescritos de Zenatildeordquo (τῶν τοῦ Ζήνωνος γραmicromicroάτων) realizada na casa de Pitodoro

Eacute o proacuteprio Zenatildeo quem realiza a leitura e Soacutecrates acompanhado de muitos

outros faz parte da audiecircncia que se reuniu ansiosa para escutar o que seria dito

uma vez que esta era a primeira vez que tais escritos eram trazidos para Atenas

Ao final da apresentaccedilatildeo Soacutecrates pede para que seja lida novamente a primeira

hipoacutetese do primeiro argumento e ao fim diz

ldquoQue queres dizer com isso Zenatildeo Que se os seres satildeo muacuteltiplos entatildeo eacute preciso que eles sejam tanto semelhantes quanto dessemelhantes mas que isso eacute impossiacutevel pois nem as coisas dessemelhantes podem ser semelhantes nem as semelhantes dessemelhantes Natildeo eacute isso que queres dizerrdquo Πῶς φάναι ὦ Ζήνων τοῦτο λέγεις εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα ὡς ἄρα δεῖ αὐτὰ ὅmicroοιά τε εἶναι καὶ ἀνόmicroοια τοῦτο δὲ δὴ ἀδύνατον οὔτε γὰρ τὰ ἀνόmicroοια ὅmicroοια οὔτε τὰ ὅmicroοια ἀνόmicroοια οἷόν τε εἶναι οὐχ οὕτω λέγεις (127e1-5)

Zenatildeo responde afirmativamente e somos apresentados assim ao primeiro

argumento do diaacutelogo Platatildeo constroacutei este argumento de maneira bastante

resumida nos fornecendo apenas as premissas e a conclusatildeo da argumentaccedilatildeo

zenoniana Fica claro a partir do resumo de Soacutecrates que estamos lidando com

uma reduccedilatildeo ao absurdo da tese pluralista segundo a qual os seres satildeo muacuteltipos

(πολλά ἐστι τὰ ὄντα) O sentido preciso desta tese contudo natildeo estaacute claro de

imediato Sobretudo porque logo depois Soacutecrates iraacute reformulaacute-la por meio do

condicional ldquose os muacuteltipos satildeordquo ou ldquose haacute muacuteltiplas [coisas]rdquo (εἰ πολλά ἐστιν)

(128d5) No primeiro caso εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα o adjetivo πολλά (muacuteltiplos) eacute

apresentado como um predicado do sujeito ὄντα (seres) significando que os seres

satildeo muacuteltiplos no sentido de que possuem vaacuterios atributos Jaacute no segundo caso o

adjetivo substantivado [τὰ] πολλά torna-se o sujeito de uma sentenccedila absoluta

podendo ser traduzida por ldquose muacuteltiplas [coisas] satildeordquo ou ldquose haacute muacuteltiplas

[coisas]rdquo13

13 A diferenccedila entre estas duas formulaccedilotildees natildeo eacute tatildeo bem definida em grego quanto sugerem as

traduccedilotildees por mim apresentadas Afinal τὰ ὄντα pode estar subentendido como sujeito da

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Temos portanto dois sentidos distintos para o argumento de Zenatildeo O

argumento pode estar visando demonstrar a impossibilidade de uma pluralidade

numeacuterica isto eacute da tese de que haacute mais de uma coisa no mundo ou pode estar

visando demonstrar a impossibilidade de uma mesma coisa possuir mais de um

atributo Neste uacuteltimo caso seu objetivo eacute demonstrar que cada coisa eacute

perfeitamente simples homogecircnea e indivisiacutevel Naturalmente estas duas teses

satildeo independentes uma da outra Afinal podemos sustentar que soacute haacute uma coisa

no mundo poreacutem considerando esta coisa como muacuteltipla dotada de vaacuterias partes

ou atributos Ao passo que por outro lado podemos sustentar que haacute vaacuterias

coisas no entanto considerarmos cada uma delas como simples e indivisiacutevel

Soacutecrates contudo oferece tanto εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα quanto εἰ πολλά ἐστιν

como formulaccedilotildees vaacutelidas para uma mesma hipoacutetese Sendo assim devemos

entender que ao menos em nosso diaacutelogo estas duas teses estatildeo sendo

apresentadas em conjunto representando dois lados de uma mesma moeda ou

duas perspectivas complementares de uma mesma posiccedilatildeo filosoacutefica

Os personagens do Parmecircnides parecem reconhecer esta dualidade

inerente agrave argumentaccedilatildeo zenoniana Soacutecrates por exemplo daacute sinais de sua

compreensatildeo deste fato ao ressaltar ora um ora outro aspecto da argumentaccedilatildeo

zenoniana Em 127e8-128a1 por exemplo Soacutecrates pergunta a Zenatildeo

ldquoSeraacute que eacute isso que querem dizer teus argumentos natildeo outra coisa senatildeo sustentar decididamente contra tudo o que se afirma que natildeo haacute muacuteltiplas coisas (οὐ πολλά ἐστι) E disso mesmo crecircs ser prova para ti cada um dos argumentos de sorte que tambeacutem acreditas apresentar tantas provas de que natildeo haacute muacuteltiplas coisas quantos argumentos escrevestesrdquo ἆρα τοῦτό ἐστιν ὃ βούλονταί σου οἱ λόγοι οὐκ ἄλλο τι ἢ διαmicroάχεσθαι παρὰ πάντα τὰ λεγόmicroενα ὡς οὐ πολλά ἐστι καὶ τούτου αὐτοῦ οἴει σοι τεκmicroήριον εἶναι ἕκαστον τῶν λόγων ὥστε καὶ ἡγῇ τοσαῦτα τεκmicroήρια παρέχεσθαι ὅσουσπερ λόγους γέγραφας ὡς οὐκ ἔστι πολλά (127e8-128a1)

Nesta passagem por meio do uso repetitivo de expressotildees no plural

Soacutecrates indica a incongruecircncia da atitude de Zenatildeo que afirma que natildeo haver

muacuteltiplas coisas (οὐ πολλά ἐστι) natildeo obstante fazendo uso de muacuteltiplos

argumentos para provar esta afirmaccedilatildeo Como observa Soacutecrates ao tentar provar a

segunda sentenccedila o que tornaria as duas formulaccedilatildeo idecircnticas Trata-se de um caso de ambiguidade sintaacutetica em que as duas leituras satildeo possiacuteveis para cada uma das formulaccedilotildees De acordo com minha interpretaccedilatildeo este tipo de ambiguidade recorrente na primeira parte do diaacutelogo eacute proposital

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inexistecircncia de uma pluralidade de coisas por meio de muacuteltiplos argumentos

Zenatildeo comete um claacutessico caso de paradoxo performativo dando prova

justamente daquilo que ele nega ser possiacutevel

Ora fica claro que neste momento Soacutecrates estaacute tratando o argumento de

Zenatildeo como uma prova da impossibilidade da existecircncia de muacuteltiplos indiviacuteduos

ou como uma defesa da tese de que soacute haacute uma uacutenica coisa (monismo numeacuterico)

Esta identificaccedilatildeo eacute ainda reafirmada por Soacutecrates quando ele estabelece logo em

seguida a equivalecircncia entre o argumento de Zenatildeo e a tese parmeniacutedica de que

ldquoo todo eacute umrdquo (ἓν εἶναι τὸ πᾶν)

Este comentaacuterio eacute geralmente considerado como a palavra final de

Soacutecrates acerca do sentido da argumentaccedilatildeo zenoniana sendo seguido por uma

longa fala em que a Teoria das Ideias eacute apresentada e o paradoxo de Zenatildeo eacute

superado e natildeo mais invocado na discussatildeo Esta leitura do texto leva a maior

parte dos comentadores a considerar o paradoxo de Zenatildeo como uma defesa

apenas da tese do monismo numeacuterico sem que esteja implicada no paradoxo uma

prova da impossibilidade das coisas possuiacuterem muacuteltiplos atributos14 O defensor

mais radical deste tipo de interpretaccedilatildeo eacute sem duacutevida Luc Brisson (1990) que

com base nesta passagem pretende natildeo apenas limitar a argumentaccedilatildeo de Zenatildeo a

uma afirmaccedilatildeo do monismo numeacuterico como tambeacutem identificar a expressatildeo τὸ

πᾶν traduzida por ele como ldquoo universordquo ou ldquoo conjunto de todos os conjuntos de

todas as coisas sensiacuteveisrdquo como o sujeito impliacutecito de todas as formulaccedilotildees da

tese unitarista (cf Brisson 1990 p18-27)15

Entretanto a identificaccedilatildeo da argumentaccedilatildeo de Zenatildeo com o monismo

numeacuterico de Parmecircnides soacute eacute estabelecida explicitamente nesta passagem Por

todo o restante do diaacutelogo Platatildeo faz uso de expressotildees deliberadamente

ambiacuteguas para se referir tanto agrave tese pluralista alvo do paradoxo de Zenatildeo quanto

14 Vide por exemplo o comentaacuterio de Rossvaer ldquoZenatildeo toma como ponto de partida a hipoacutetese

de que as coisas satildeo muacuteltiplas Mas natildeo eacute exatamente isso o que ele quer dizer O que ele quer dizer eacute que o Ser (o todo) eacute Um tal como seu mestre (Rossvaer1983 p15) No mesmo sentido (cf Coxon 1999 p97) O uacutenico autor que reconhece a dualidade implicada na argumentaccedilatildeo de Zenatildeo eacute El Murr (2010) embora a interpretaccedilatildeo oferecida por MacCabe (1996) tambeacutem pressuponha este reconhecimento

15 Bisson vai aleacutem e identifica τὸ πᾶν como o sujeito subentendido de todas as hipoacuteteses da segunda parte do Parmecircnides (cf Brisson 1990 p18-27) No entanto ao afirmar a expressatildeo τὸ πᾶν como o sujeito oculto de todas as expressotildees em que o um aparece ligado ao verbo ldquoserrdquo tanto na primeira quanto na segunda parte do diaacutelogo Brisson estaacute oferecendo uma interpretaccedilatildeo claramente violenta ao texto do Parmecircnides Afinal Platatildeo dificilmente esconderia a chave para compreensatildeo de todo o diaacutelogo em uma uacutenica ocorrecircncia da expressatildeo

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agrave tese monista defendida por Zenatildeo e Parmecircnides Isto fica claro a partir do

inventaacuterio realizado por Giovanni Casertano que nos lista todas as formulaccedilotildees

das teses monista e pluralista presentes no Parmecircnides divididas entre afirmaccedilotildees

diretas e formulaccedilotildees hipoteacuteticas (cf Cassertano 1990 p386-388) Como

afirmaccedilotildees hipoteacuteticas em sentenccedilas condicionais temos

1) εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα (127e1)

2) εἰ γὰρ πολλὰ εἴη (127e7)

3) εἰ ἕν ἐστι (128d1)

4) εἰ πολλά ἐστιν (128d5)

5) ἡ τοῦ ἓν εἶναι (128d5)

6) εἰ πολλά ἐστι (136a6)

7) εἰ microή ἐστι πολλά (136a6)

Como assertivas diretas temos

8) ἀδύνατον δὴ καὶ πολλὰ εἶναι (127e6-7)

9) ὡς οὐ πολλά ἐστι (127e9)

10) ὡς οὐκ ἔστι πολλά (127e9-128a1)

11) ἓν φῂς εἶναι τὸ πᾶν (128a7-b1)

12) οὐ πολλά φησιν εἶναι (128b2)

13) τὸν microὲν ἓν φάναι τὸν δὲ microὴ πολλά (128b3)

14) τὰ πολλὰ λέγοντας

15) τῆς ἐmicroαυτοῦ ὑποθέσεως () εἴτε ἕν ἐστιν εἴτε microὴ ἕν (137b3-4)

Com base neste inventaacuterio eacute possiacutevel constatar que somente na passagem

nuacutemero 11 τὸ πᾶν eacute apresentado como o sujeito expliacutecito da hipoacutetese de

Parmecircnides Por todo o restante do diaacutelogo Platatildeo faz uso de expressotildees

ambiacuteguas sem sujeito definido para se referir tanto agraves teses de Parmecircnides e

Zenatildeo quanto agraves teses dos defensores do pluralismo16 Portanto dado o grande

nuacutemero de passagens em que a tese monista de Zenatildeo e Parmecircnides natildeo aparece

τὸ πᾶν em meio a esta fala aparentemente despretenciosa de Soacutecrates

16 Com a exceccedilatildeo eacute claro da sentenccedila nuacutemero 1 que como jaacute observamos apresenta πολλά como predicativo do sujeito τὰ ὄντα

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diretamente vinculada ao monismo numeacuterico natildeo temos razatildeo para projetar

aquilo que encontramos em uma uacutenica passagem como a interpretaccedilatildeo definitiva

para todas as outras

Caso tenhamos em mente a ambiguidade inerente agrave formulaccedilatildeo do

paradoxo de Zenatildeo poderemos notar que o segundo sentido de multiplicidade

implicado na sua argumentaccedilatildeo emerge como a interpretaccedilatildeo natural para outras

passagens do diaacutelogo Em uma destas passagens a possibilidade de um mesmo

indiviacuteduo possuir uma multiplicidade de partes eacute apresentada por Soacutecrates como

um dos resultados da sua soluccedilatildeo para o paradoxo Em 129c Soacutecrates diz

ldquoMas se algueacutem demonstrar que eu sou um17 e muacuteltiplas coisas que haacute nisso de espantoso Quando quiser mostrar que eu sou muacuteltiplas coisas diraacute que uma coisa eacute meu lado direito outra o esquerdo e que uma coisa eacute a frente outra a parte de traacutes e do mesmo modo com relaccedilatildeo agrave parte inferior e posterior pois participo creio da quantidade e por outro lado quando [quiser mostra] que sou um diraacute que dos sete que aqui estatildeo eu sou um homem participante que sou tambeacutem do umrdquo εἰ δ ἐmicroὲ ἕν τις ἀποδείξει ὄντα καὶ πολλά τί θαυmicroαστόν λέγων ὅταν microὲν βούληται πολλὰ ἀποφῆναι ὡς ἕτερα microὲν τὰ ἐπὶ δεξιά microού ἐστιν ἕτερα δὲ τὰ ἐπ ἀριστερά καὶ ἕτερα microὲν τὰ πρόσθεν ἕτερα δὲ τὰ ὄπισθεν καὶ ἄνω καὶ κάτω ὡσαύτως ndash πλήθους γὰρ οἶmicroαι microετέχω ndash ὅταν δὲ ἕν ἐρεῖ ὡς ἑπτὰ ἡmicroῶν ὄντων εἷς ἐγώ εἰmicroι ἄνθρωπος microετέχων καὶ τοῦ ἑνός (129c4-d1)

A importacircncia desta fala de Soacutecrates na compreensatildeo do conteuacutedo da

argumentaccedilatildeo de Zenatildeo natildeo parece ter sido notada pelos comentadores Isto deve-

se ao fato desta colocaccedilatildeo fazer parte de um discurso mais amplo no qual

Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que suas Formas estatildeo

sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos tal como estatildeo sujeitos os objetos sensiacuteveis

Contudo se limitarmos nossa interpretaccedilatildeo destas palavras de Soacutecrates agrave questatildeo

da copresenccedila de opostos a introduccedilatildeo do tema da unidade e multiplicidade torna-

se completamente incidental Afinal Soacutecrates poderia ter apresentado seu desafio

por meio de qualquer outro par de propriedades opostas Na verdade de acordo

com esta linha de raciociacutenio o aparecimento dos conceitos de unidade e

multiplicidade nesta passagem eacute inclusive desnecessaacuterio uma vez que Soacutecrates

jaacute havia formulado seu desafio por meio das propriedades ldquosemelhanterdquo e

ldquodessemelhanterdquo No entanto natildeo podemos considerar meramente ocasional esta

especiacutefica formulaccedilatildeo sobretudo em meio a uma discussatildeo centrada na questatildeo da

17 Coloco ldquoumrdquo em itaacutelico nesta e nas seguintes passagens para diferenciar o atributo ldquoser-umrdquo

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viabilidade teoacuterica da noccedilatildeo de multiplicidade Eacute claro que na dinacircmica

conversacional do diaacutelogo qualquer afirmaccedilatildeo sobre o tema da

unidademultiplicidade remete o leitor diretamente ao paradoxo de Zenatildeo e agrave

compreensatildeo de seu significado

A observaccedilatildeo de Soacutecrates deixa de ser irrelevante e passa a fazer sentido

se entendermos o paradoxo de Zenatildeo como uma prova tambeacutem da

impossibilidade de uma coisa uacutenica qualquer possuir muacuteltiplos atributos Soacutecrates

estaacute tornando expliacutecito nesta passagem o segundo sentido de multiplicidade

negado pela argumentaccedilatildeo de Zenatildeo a multiplicidade de partes ou atributos de

um mesmo indiviacuteduo Segundo Soacutecrates natildeo haacute nada de espantoso ao contraacuterio

do que pretende afirmar Zenatildeo no fato de uma dada coisa uacutenica ser tambeacutem

muacuteltipla dotada de vaacuterias partes

Portando para defender o monismo de seu mestre Parmecircnides Zenatildeo

pretende demonstrar a contradiccedilatildeo envolvida na admissatildeo da multiplicidade tout

court quer esta seja entendia como uma multiplicidade de indiviacuteduos quer como

uma multiplicidade de atributos de um mesmo indiviacuteduo Como veremos o

reconhecimento desta dualidade da argumentaccedilatildeo zenoniana se mostraraacute essencial

para a compreensatildeo dos argumentos seguintes Pois estes dois sentidos de

multiplicidade estaratildeo implicados na soluccedilatildeo de Soacutecrates para o paradoxos de

Zenatildeo assim como faratildeo parte da estrateacutegia utilizada por Parmecircnides na sua

contra-argumentaccedilatildeo agrave soluccedilatildeo socraacutetica

do artigo indefinido

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415 A reduccedilatildeo ao absurdo da tese pluralista

Tendo estabelecido os dois sentidos de multiplicidade afirmados pela tese

pluralista e negados pelo monismo de Zenatildeo e Parmecircnides podemos passar para a

anaacutelise do argumento zenoniano De acordo com o resumo apresentado por

Soacutecrates em 127e1-5 a reduccedilatildeo ao absurdo da tese pluralista eacute operada por Zenatildeo

por meio do seguinte raciociacutenio

1) Suponha que os seres satildeo muacuteltiplos (tese provisoriamente

assumida)

2) Se eles satildeo muacuteltiplos entatildeo eles satildeo tanto semelhantes quanto

dessemelhantes

3) Logo os seres satildeo tanto semelhantes quanto dessemelhantes (a

partir de 1 amp 2)

4) Ora eacute impossiacutevel que uma mesma coisa seja semelhante e

dessemelhante

5) Portanto os seres natildeo satildeo muacuteltiplos (afirma-se a negaccedilatildeo de 1

com base na contradiccedilatildeo entre 3 amp 4) 18

A invenccedilatildeo do meacutetodo de reduccedilatildeo ao absurdo que consiste em assumir

temporariamente uma tese para a partir dela derivar uma contradiccedilatildeo e assim

concluir a negaccedilatildeo da tese inicial natildeo deve ser atribuiacuteda a Zenatildeo embora

saibamos que ele tenha usado extensivamente este meacutetodo argumentativo

Segundo Thomas Heath o meacutetodo de reduccedilatildeo ao absurdo pode ter sua origem

traccedilada ateacute a escola pitagoacuterica e no tempo de Platatildeo este argumento jaacute era usado

largamente em provas matemaacuteticas envolvendo teoria dos nuacutemeros (cf Heath

1960 p294-295) Sendo assim podemos considerar que os leitores de Platatildeo natildeo

viam com estranheza este tipo de argumentaccedilatildeo

18 Trata-se de um argumento em Modus Tollendo Tollens isto eacute um argumento que neganto

(tollendo) o consequente da implicaccedilatildeo expressa na premissa nega (tollens) por consequecircncia loacutegica tambeacutem o antecedente Em notaccedilatildeo formal P rarr Q

~Q ~P

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Da mesma maneira a premissa nuacutemero 2 do argumento de Zenatildeo parece

bastante plausiacutevel e dificilmente teria sua validade objetada Zenatildeo pode estar

argumentando por exemplo que os muacuteltiplos seres como seres satildeo semelhantes

entre si enquanto que como muacuteltiplos e portanto numericamente distintos uns

dos outros satildeo dessemelhantes ou ainda que as diversas partes de um indiviacuteduo

satildeo semelhantes entre si enquanto partes de um mesmo indiviacuteduo poreacutem

dessemelhantes enquanto partes distintas

No entanto chama muita atenccedilatildeo o conteuacutedo da premissa nuacutemero 4 do

argumento Segundo esta premissa uma mesma coisa natildeo pode ser ao mesmo

tempo semelhante e dessemelhante Mas por quecirc Podemos pensar em miriacuteades

de casos em que uma mesma coisa eacute tanto semelhante quanto dessemelhante

Soacutecrates e Platatildeo por exemplo satildeo semelhantes pelo fato de ambos serem

atenienses no entanto satildeo dessemelhantes em vaacuterios outros aspectos como em

idade condiccedilatildeo social etc Enquanto inteacuterpretes devemos tentar entender porque

os interlocutores do Parmecircnides consideram intrigante e paradoxal o fato de uma

dada coisa possuir simultaneamente propriedades opostas mesmo quando estas

propriedades representam termos relativos (semelhante-dessemelhante maior-

menor etc)

A explicaccedilatildeo mais constantemente apresentada pelos comentadores segue

a mesma linha de raciociacutenio da criacutetica desenvolvida por Vlastos que citamos

anteriormente Zenatildeo estaria tratando predicados relacionais como predicados

monaacutedicos (ou adjetivos) Assim ele estaria ignorando o complemento existente

nos predicados relacionais e tratando a propriedade ldquoser semelhante a xrdquo como

equivalente agrave propriedade ldquoser semelhante simpliciterrdquo isto eacute estaria tratando um

predicado incompleto (que necessita de um complemento para ser significativo)

como um predicado completo (significativo por si soacute) Negligenciada a diferenccedila

entre estes dois tipos de predicados uma sentenccedila do tipo ldquoA eacute maior que B e

menor que Crdquo passa a ser equivalente a ldquoA eacute maior e menor simpliciterrdquo

tornando-se tatildeo contraditoacuteria quanto a sentenccedila ldquoA eacute quadrado e redondordquo

Este tipo de interpretaccedilatildeo foi primeiramente apresentada por Cornford

segundo o qual ldquonenhuma distinccedilatildeo eacute traccedilada entre qualidades e relaccedilotildees

Grandeza eacute tratada como se fosse uma qualidade como Brancura inerente agrave

pessoa granderdquo (Cornford 1951 p78) Cornford observa ainda que este tipo de

raciociacutenio parece ser particularmente favorecido pela sintaxe grega que permite

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sentenccedilas do tipo ldquoSimmias eacute grande em relaccedilatildeo (πρὸς) a Soacutecratesrdquo ou ainda

ldquoSimmias tem grandeza com relaccedilatildeo (πρὸς) a Soacutecratesrdquo nas quais o segundo

termo da relaccedilatildeo binaacuteria ldquoser-maior-querdquo natildeo eacute necessariamente introduzido por

um pronome relativo mas pode ser introduzido pela preposiccedilatildeo πρὸς Este fato

sintaacutetico teria supostamente induzido os pensadores gregos a negligenciar o

caraacuteter relacional de propriedades como ldquoser-semelhante-ardquo ou ldquoser-maior-querdquo

os levando a classificaacute-las como propriedades monaacutedicas do tipo ldquoser-brancordquo ou

ldquoser-belordquo

No entanto esta anaacutelise linguiacutestica por si soacute natildeo pode ser considerada

uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria Caso assim fosse Soacutecrates poderia simplesmente

argumentar em termos estritamente gramaticais e afirmar que usamos sentenccedilas

significativas com predicados relativos cotidianamente e que portanto o

paradoxo de Zenatildeo deveria ser simplesmente desconsiderado Pois soacute haacute

contradiccedilatildeo quando propriedades opostas satildeo atribuiacutedas a uma mesma coisa ao

mesmo tempo da mesma maneira e em relaccedilatildeo a uma mesma coisa 19

A ausecircncia de distinccedilatildeo entre predicados relacionais e predicados

completos no argumento de Zenatildeo no entanto nos remete diretamente a um tema

extremamente recorrente nos diaacutelogos a copresenccedila de propriedades opostas

Como vimos em diversos diaacutelogos Soacutecrates e seus interlocutores consideram a

copresenccedila de propriedades opostas nos objetos sensiacuteveis algo intrigante e

merecedor de uma explicaccedilatildeo teoacuterica complexa Na realidade o fato das entidades

sensiacuteveis estarem submetidas a este tipo de predicaccedilatildeo constitui aquilo que mais

propriamente as caracteriza o que fica claro pelo uso de predicados relacionais

nas demonstraccedilotildees socraacuteticas da diferenccedila entre o modo de ser das Formas e o

modo de ser das coisas do mundo sensiacutevel Assim submetidas a uma

multiplicidade de relaccedilotildees as entidades sensiacuteveis estatildeo sempre sujeitas agrave

predicaccedilatildeo de opostos o que eacute tido por Soacutecrates como uma evidecircncia de

contradiccedilatildeo interna e deficiecircncia ontoloacutegica nestes objetos

Portanto devemos entender que os predicados ldquosemelhanterdquo e

ldquodessemelhanterdquo do argumento de Zenatildeo estatildeo sendo empregados para ilustrar o

fato de que os objetos sensiacuteveis tecircm suas propriedades definidas pelas relaccedilotildees

em que estatildeo inseridos o que resulta na copresenccedila de opostos em um mesmo

19 De fato em uma passagem da Repuacuteblica IV (436b-c) Soacutecrates formula uma versatildeo da Lei da

Natildeo-Contradiccedilatildeo na qual todas estas qualificaccedilotildees satildeo mencionadas

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objeto e lhes confere um caraacuteter contraditoacuterio Ora eacute evidente que a extinccedilatildeo das

muacutetuas relaccedilotildees existentes entre os objetos sensiacuteveis seria suficiente para eliminar

o problema da copresenccedila de opostos pois um uacutenico objeto privado de qualquer

relaccedilatildeo eacute somente idecircntico a si mesmo

Eacute justamente esta a estrateacutegia da argumentaccedilatildeo zenoniana Reduzindo a

multiplicidade dos objetos sensiacuteveis a uma uacutenica entidade Zenatildeo elimina por

completo as muacuteltiplas relaccedilotildees entre eles consequentemente resolvendo o

problema da copresenccedila de opostos Assim enquanto Soacutecrates usa a copresenccedila

de opostos para caracterizar a deficiecircncia do mundo sensiacutevel e ainda postular a

existecircncia de entidades natildeo submetidas agraves relaccedilotildees que geram esta copresenccedila

Zenatildeo usa esta caracteriacutestica para negar toda possibilidade de multiplicidade

extinguindo por completo qualquer tipo de relaccedilatildeo e postulando a existecircncia de

uma uacutenica coisa privada de qualquer atributo salvo sua auto-identidade

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416 A soluccedilatildeo de Soacutecrates para o paradoxo de Zenatildeo

A despeito de todas as polecircmicas acerca da interpretaccedilatildeo do Parmecircnides a

compreensatildeo da soluccedilatildeo oferecida por Soacutecrates ao paradoxo de Zenatildeo destaca-se

como um ponto de notaacutevel consenso Os comentadores parecem concordar que a

estrateacutegia adotada por Soacutecrates consiste em desafiar o conteuacutedo da premissa

nuacutemero 4 do argumento de Zenatildeo por meio da distinccedilatildeo entre dois tipo de

entidades Formas e objetos sensiacuteveis Soacutecrates entende que os seres (τὰ ὄντα)

sobre os quais fala Zenatildeo satildeo objetos sensiacuteveis e como soluccedilatildeo ao paradoxo

apresenta as Formas como um tipo de entidade imune agrave copresenccedila de opostos

apontada por Zenatildeo

Recentemente contudo ateacute mesmo este aparente consenso foi ameaccedilado

Sandra Peterson em seu capiacutetulo sobre o Parmecircnides para The Oxford Handbook

of Plato (2008) distingue sua proacutepria interpretaccedilatildeo das interpretaccedilotildees que

atribuem a Soacutecrates uma apresentaccedilatildeo teacutecnica da Teoria das Ideias Ela acredita

que ldquose consideramos que Soacutecrates ostenta uma nova teoria de caraacuteter teacutecnico

com entidades desconhecidas [isto eacute as Formas] (hellip) natildeo percebemos o genuiacuteno

poder de sua simples refutaccedilatildeordquo (Peterson 2008 p383-411)

No entanto como se daria a soluccedilatildeo do paradoxo caso Soacutecrates natildeo

apelasse para Formas inteligiacuteveis Segundo a interpretaccedilatildeo proposta por Peterson

ldquoSoacutecrates simplesmente aponta pressuposiccedilotildees inegaacuteveis da fala cotidiana

(undeniable presuppositions of customary speech)rdquo para refutar Zenatildeo (Peterson

2008 p387) De acordo com Peterson a estrateacutegia geral da argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates consiste em demonstrar que predicados opostos satildeo ordinariamente

atribuiacutedos agraves coisas Sendo assim seu objetivo natildeo seria provar a invalidade do

argumento de Zenatildeo mas sim a sua irrelevacircncia ao fim de sua argumentaccedilatildeo

Soacutecrates teria demonstrado que o argumento de Zenatildeo natildeo apresenta um

paradoxo mas apenas uma verdade amplamente reconhecida

Peterson reconstroacutei a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates em trecircs movimentos

distintos que analisaremos separadamente O primeiro movimento eacute descrito por

ela da seguinte maneira

ldquoPrimeiro de 127e a 128b apoacutes ter esclarecido que o argumento de Zenatildeo eacute uma reduccedilatildeo

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ao absurdo da afirmaccedilatildeo de que os seres satildeo muacuteltiplos Soacutecrates leva Zenatildeo a expor sua

proacutepria crenccedila de que muacuteltiplas coisas satildeo semelhantes e dessemelhantes como por

exemplo quando Zenatildeo daacute a entender que ele e Parmecircnides satildeo semelhantes por dizerem

as mesmas coisas (128b5) e dessemelhantes por Zenatildeo dizer ldquonatildeo muacuteltiplosrdquo (not many) e

Parmecircnides dizer ldquoumrdquo (128b3ndash5) Por sugerir que haacute vaacuterios seres semelhantes em algum

aspecto e dessemelhantes em outros mesmo enquanto ele defende que natildeo pode haver

seres tanto semelhantes quanto dessemelhantes Zenatildeo eacute claramente inconsistenterdquo

(Peterson 2008 p 387)

Peterson estaacute se referindo agrave passagem por noacutes jaacute citada em que Soacutecrates

assimila o objetivo da argumentaccedilatildeo de Zenatildeo com a tese de Parmecircnides de que

tudo eacute um Segundo ela esta passagem inicia a refutaccedilatildeo do argumento ao

demonstrar que Zenatildeo eacute semelhante a Parmecircnides por ambos defenderem a tese

monista e ao mesmo tempo dessemelhante pois enquanto Zenatildeo afirma natildeo

haver muacuteltiplas coisas Parmecircnides afirma o todo ser um Contudo Peterson

parece negligenciar o fato de que em toda passagem natildeo haacute uma uacutenica ocorrecircncia

das palavras ldquosemelhanterdquo (ὅmicroοιος) ou ldquodessemelhanterdquo (ἀνόmicroοιος) Natildeo me

parece nada provaacutevel que Soacutecrates desejando demonstrar a contradiccedilatildeo apontada

por Peterson deixasse de mencionar o ponto especiacutefico de sua acusaccedilatildeo e se

limitasse a atacar aquilo que Zenatildeo ldquosugererdquo (implies) Em argumentaccedilotildees ad

hominen como esta nas quais se pretende demonstrar a existecircncia de uma

contradiccedilatildeo entre as teses que determinada pessoa defende e as atitudes desta

pessoa o valor da acusaccedilatildeo estaacute em tornar evidente a inconsistecircncia em questatildeo

Sendo assim a interpretaccedilatildeo oferecida por Peterson que pretende ler esta

passagem como a demonstraccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo acerca de temas que sequer

satildeo mencionados natildeo pode ser considerada uma interpretaccedilatildeo com suficiente

apoio textual

Nesta passagem Soacutecrates estaacute de fato realizando uma argumentaccedilatildeo ad

hominen do mesmo tipo identificado por Peterson No entanto a contradiccedilatildeo

atribuiacuteda a Zenatildeo eacute outra Como vimos ao empregar repetidamente formas

plurais para se referir aos argumentos de Zenatildeo Soacutecrates torna expliacutecita a

contradiccedilatildeo envolvida em se negar a existecircncia de muacuteltiplas coisas por meio de

muacuteltiplos argumentos Esta acusaccedilatildeo eacute cuidadosamente montada pela recorrecircncia

de expressotildees plurais para se referir aos argumentos de Zenatildeo e termina com a

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afirmaccedilatildeo claramente irocircnica de que Zenatildeo apresenta ldquomuito numerosas provasrdquo

(τεκmicroήρια πάmicroπολλα) para demonstrar sua tese de que natildeo haacute muacuteltiplas coisas

(128b2) Podemos considerar portanto que a interpretaccedilatildeo que atribui a Soacutecrates

o reconhecimento deste segundo tipo de contradiccedilatildeo possui mais apoio textual do

que a interpretaccedilatildeo oferecida por Peterson e deve ser eleita como a interpretaccedilatildeo

correta para passagem em detrimento da interpretaccedilatildeo de Peterson que lecirc a

passagem como a identificaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo natildeo mencionada

Contudo a segunda fase da argumentaccedilatildeo de Soacutecrates representaria

segundo Peterson o passo fundamental da refutaccedilatildeo ao argumento de Zenatildeo Ela

explica esta fase da seguinte maneira

ldquoSegundo Soacutecrates explicitamente apresenta a mais profunda e devastadora objeccedilatildeo (128e5ndash129a3) de que Zenatildeo ao conduzir sua reduccedilatildeo ao absurdo presume que haacute dois opostos ndash semelhanccedila e dessemelhanccedila ndash cada um deles sendo um ser (τούτοιν δὲ δυοῖν ὄντοιν) Zenatildeo presume que a semelhanccedila ela mesma eacute um item e que a dessemelhanccedila eacute um segundo e oposto item As premissas de Zenatildeo implicam a negaccedilatildeo de sua conclusatildeo E isso eacute desastrosordquo (Peterson 2008 p 387)

Portanto a ldquodevastadora objeccedilatildeordquo apresentada por Soacutecrates consiste em

demonstrar que Zenatildeo reconhece a existecircncia de pelo menos duas coisas a

semelhanccedila e a dessemelhanccedila o que estaria em clara contradiccedilatildeo com sua tese de

que natildeo haacute muacuteltiplas coisas Segundo Peterson isto acontece na seguinte

passagem

ldquoPois bem aceito disse Soacutecrates e acredito ser como dizes Mas diz-me o seguinte natildeo julgas haver uma certa forma em si e por si da semelhanccedila e por outro lado contraacuteria a tal forma uma outra aquilo que realmente eacute dessemelhante E que nestas duas coisas que satildeo tanto eu quanto vocecirc temos participaccedilatildeordquo Ἀλλ ἀποδέχοmicroαι φάναι τὸν Σωκράτη καὶ ἡγοῦmicroαι ὡς λέγεις ἔχειν τόδε δέ microοι εἰπέ οὐ νοmicroίζεις εἶναι αὐτὸ καθαὑτὸ εἶδός τι ὁmicroοιότητος καὶ τῷ τοιούτῳ αὖ ἄλλο τι ἐναντίον ὃ ἔστιν ἀνόmicroοιον τούτοιν δὲ δυοῖν ὄντοιν καὶ ἐmicroὲ καὶ σὲ καὶ τἆλλα ἃ δὴ πολλὰ καλοῦmicroεν microεταλαmicroβάνειν (128e5ndash129a3)

Eacute realmente difiacutecil entender como Peterson com base na passagem citada

pode atribuir a Zenatildeo o reconhecimento da existecircncia destas duas coisas (a

semelhanccedila e a dessemelhanccedila) Afinal quem se refere agrave semelhanccedila e agrave

dessemelhanccedila como dois seres distintos (τούτοιν δυοῖν ὄντοιν) eacute Soacutecrates e natildeo

Zenatildeo Para atribuir o reconhecimento destas entidades a Zenatildeo Peterson afirma

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que o verbo utilizado por Soacutecrates (νοmicroίζειν) indicaria que ele estaacute tratando de

uma noccedilatildeo comum aceita tambeacutem por Zenatildeo

De fato em seu paradoxo Zenatildeo fala da semelhanccedila e da dessemelhanccedila

como propriedades que os objetos teriam caso fossem muacuteltiplos Entretanto em

contraste com o uso de νοmicroίζειν que pode ou natildeo possuir a nuance de

significado indicada por Peterson Soacutecrates menciona uma seacuterie de termos

relativos agraves Formas que dificilmente poderiam fazer parte de um vocabulaacuterio

ldquocomumrdquo compartilhado por Zenatildeo Sendo assim o simples uso de νοmicroίζειν natildeo

eacute razatildeo suficiente para atribuirmos a Zenatildeo aquilo que Soacutecrates estaacute dizendo

Aleacutem disso caso o desejo de Soacutecrates fosse apresentar uma contradiccedilatildeo inerente agrave

argumentaccedilatildeo de Zenatildeo natildeo haveria porque fazecirc-lo por meio de uma pergunta

bastaria constatar que Zenatildeo reconhece a existecircncia do semelhante e do

semelhante e portanto admite uma multiplicidade de seres

Contudo o maior erro da argumentaccedilatildeo de Peterson natildeo estaacute em atribuir a

Zenatildeo aquilo que Soacutecrates estaacute afirmando Pois mesmo admitindo que a

argumentaccedilatildeo de Zenatildeo pressuponha a existecircncia destas duas entidades a

constataccedilatildeo deste fato sequer representaria uma refutaccedilatildeo ao paradoxo Como o

argumento de Zenatildeo eacute uma reduccedilatildeo ao absurdo o uso de noccedilotildees que se provaratildeo

contraditoacuterias eacute plenamente justificaacutevel Em seu paradoxo Zenatildeo conclui que as

coisas seriam simultaneamente semelhantes e dessemelhantes apenas caso as

coisas fossem muacuteltiplas No entanto Zenatildeo natildeo acredita que as coisas satildeo

muacuteltiplas Portanto em nenhum momento afirma seriamente a existecircncia da

semelhanccedila e da dessemelhanccedila O apelo de Zenatildeo a estas entidades eacute meramente

contra-factual e natildeo representa sua posiccedilatildeo A ldquodevastadora refutaccedilatildeordquo

apresentada por Peterson sequer se configura como uma legiacutetima refutaccedilatildeo

O uacuteltimo movimento da argumentaccedilatildeo de Soacutecrates consistiria em

ldquoenfatizar que os predicados ldquosemelhanterdquo e ldquodessemelhanterdquo satildeo incompletos e

que uma conversa ordinaacuteria (ordinary talk) eacute capaz de reconhecer diversas coisas

que satildeo tanto semelhantes quanto dessemelhantes ou possuem semelhanccedila e

dessemelhanccedila em vaacuterios aspectosrdquo (Peterson 2008 p 387) Isto aconteceria na

seguinte passagem

ldquoE [natildeo julgas] que algumas coisas tendo participaccedilatildeo na semelhanccedila se tornam semelhantes por causa disso e na medida em que nelas tenham participaccedilatildeo e que outras tendo participaccedilatildeo na dessemelhanccedila [se tornam] dessemelhantes e

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que outras [tendo participaccedilatildeo] em ambas se tornam semelhantes e dessemelhantes E mesmo que todas as coisas tenham participaccedilatildeo em ambas essas coisas que satildeo contraacuterias e que sejam pelo participar nas duas elas mesmas em relaccedilatildeo a si mesmas tanto semelhantes quanto dessemelhantes o que haacute de espantoso Καὶ τὰ microὲν τῆς ὁmicroοιότητος microεταλαmicroβάνοντα ὅmicroοια γίγνεσθαι ταύτῃ τε καὶ κατὰ τοσοῦτον ὅσον ἂν microεταλαmicroβάνῃ τὰ δὲ τῆς ἀνοmicroοιότητος ἀνόmicroοια τὰ δὲ ἀmicroφοτέρων ἀmicroφότερα εἰ δὲ καὶ πάντα ἐναντίων ὄντων ἀmicroφοτέρων microεταλαmicroβάνει καὶ ἔστι τῷ microετέχειν ἀmicroφοῖν ὅmicroοιά τε καὶ ἀνόmicroοια αὐτὰ αὑτοῖς τί θαυmicroαστόν (129a3-b1)

Como reconhece Peterson de acordo com a interpretaccedilatildeo por ela proposta

estas perguntas de Soacutecrates apenas ldquonegam a premissa de Zenatildeo de que eacute

impossiacutevel para qualquer coisa ser tanto semelhante quanto dessemelhanterdquo

(Peterson 2008 p 387) No entanto como podemos considerar a mera negaccedilatildeo

injustificada de uma premissa uma argumentaccedilatildeo suficientemente satisfatoacuteria

Zenatildeo argumenta em termos loacutegicos e espera que uma contra-argumentaccedilatildeo lhe

seja apresentada no mesmo niacutevel Caso o comentaacuterio final de Soacutecrates se limitasse

a negar injustificadamente a premissa problemaacutetica do argumento de Zenatildeo

dificilmente poderiacuteamos considerar tal comentaacuterio parte de uma argumentaccedilatildeo

seacuteria 20

Por fim resta observar que a interpretaccedilatildeo proposta por Peterson encontra-

se em clara oposiccedilatildeo ao que um leitor dos diaacutelogos poderia esperar Segundo o

argumento de Zenatildeo eacute impossiacutevel que os seres sejam tanto semelhantes quanto

dessemelhantes ou de maneira geral que uma dada coisa possua qualquer par de

predicados opostos (F e natildeo-F) Ora um leitor acostumado com o tipo de

argumentaccedilatildeo que Soacutecrates desempenha nos diaacutelogos da fase meacutedia espera

naturalmente que as Formas sejam apresentadas como soluccedilatildeo para este

problema

Esta expectativa eacute plenamente satisfeita quando Soacutecrates pede a Zenatildeo que

aceite a existecircncia de ldquouma Forma em si e por si da Semelhanccedila e por outro lado

uma outra Forma aquilo que eacute realmente Dessemelhanterdquo (οὐ νοmicroίζεις εἶναι αὐτὸ

καθαὑτὸ εἶδός τι ὁmicroοιότητος καὶ τῷ τοιούτῳ αὖ ἄλλο τι ἐναντίον ὃ ἔστιν

ἀνόmicroοιον 129a1) Dificilmente uma apresentaccedilatildeo das Formas poderia ser feita de

20 Neste caso Soacutecrates estaria agindo como Dioacutegenes de Ciacutenope que pretendeu refutar os

argumentos de Zenatildeo contra a possibilidade do movimento simplemente andando em praccedila puacuteblica Ora eacute claro que este poderia ser o caso No entanto esta natildeo parece ser a intenccedilatildeo de Soacutecrates e dificilmente Zenatildeo e Parmecircnides demonstrariam respeito por Soacutecrates tal como demonstram no decorrer do diaacutelogo caso este fosse o teor de sua argumentaccedilatildeo

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maneira mais expliacutecita Aleacutem do termo εἶδος Soacutecrates usa as expressotildees αὐτὸ

καθ αὑτὸ e ὃ ἔστιν ambas extremamente recorrentes nos diaacutelogos e

indubitavelmente parte do vocabulaacuterio relativo agraves Formas Fica claro portanto

que Soacutecrates identifica os seres (τὰ ὄντα) aos quais Zenatildeo se refere como objetos

sensiacutevieis e como primeiro passo na soluccedilatildeo do paradoxo introduz suas Formas

na discussatildeo

No entanto a simples apresentaccedilatildeo de entidades imunes agrave copresenccedila de

opostos natildeo se configura como uma soluccedilatildeo ao paradoxo A premissa 4 de Zenatildeo

afirma a impossibilidade das coisas serem simultaneamente semelhantes e

dessemelhantes o que certamente natildeo exclui a possibilidade de algo ser

exclusivamente semelhante ou dessemelhantes Para que a premissa 4 seja

falsificada eacute preciso que Soacutecrates demonstre como os seres podem possuir

propriedades opostas sem que isso implique em uma contradiccedilatildeo Portanto de

modo a servirem de soluccedilatildeo ao paradoxo as Formas precisam natildeo apenas estar

imunes agrave copresenccedila de opostos mas sobretudo explicar esta copresenccedila nos

objetos sensiacutevieis Para que isto seja feito Soacutecrates introduz a noccedilatildeo de

participaccedilatildeo (aqui representada pelos verbos microεταλαmicroβάνειν e microετέχειν) e

pergunta a Zenatildeo se ele estaacute disposto a aceitar que ldquoalgumas coisas tendo

participaccedilatildeo na Semelhanccedila se tornam semelhantes () que outras tendo

participaccedilatildeo na Dessemelhanccedila [se tornam] dessemelhantes e que outras [tendo

participaccedilatildeo] em ambas se tornam semelhantes e dessemelhantesrdquo (129a3-8)

Caso Zenatildeo esteja disposto a aceitar estas duas hipoacuteteses 1) que existem

Formas e 2) que os objetos sensiacuteveis participam destas Formas a aparente

contradiccedilatildeo presente na premissa 4 do seu argumento pode ser dissolvida Pois

uma vez que estes dois pontos lhe sejam concedidos Soacutecrates estaraacute apto a

demonstrar como a copresenccedila de propriedades opostas nos objetos sensiacutevieis

pode ser explicada por meio da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que estes objetos mantecircm

com as Formas21

No Parmecircnides Soacutecrates natildeo desenvolve em pormenores esta explicaccedilatildeo

se limitando a dizer que mesmo que todas as coisas sensiacuteveis tenham participaccedilatildeo

21 Note que Soacutecrates apresenta estas duas hipoacuteteses (a existecircncia das Formas e a relaccedilatildeo de

participaccedilatildeo) por meio de uma pergunta (129a1-3) Isto indica que ele estaacute introduzindo um novo material conceitual e que espera um assentimento por parte de seus interlocutores com relaccedilatildeo agrave viabilidade teoacuterica destas hipoacuteteses Como veremos a resposta de Parmecircnides seraacute admitir temporariamente a validade das hipoacuteteses de Soacutecrates com o objetivo de submetecirc-las

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em ambas estas Formas e em consequecircncia desta participaccedilatildeo sejam semelhantes

e dessemelhantes nada haacute nisso de espantoso (129a8-b1) Esta brevidade da

explicaccedilatildeo de Soacutecrates pode ser solucionada se relacionarmos a soluccedilatildeo aqui

apresentada para o paradoxo de Zenatildeo com a explicaccedilatildeo oferecida no Feacutedon

(101-103) para o fato de Simmias ser grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates e pequeno em

relaccedilatildeo a Feacutedon A assimilaccedilatildeo entre as duas explicaccedilotildees parece justificada uma

vez que em ambos os diaacutelogos vemos Soacutecrates oferecer a Teoria das Ideias como

soluccedilatildeo para o mesmo problema a copresenccedila de propriedades (relacionais)

opostas nos objetos sensiacuteveis22

Adotando o paralelismo entre estas duas explicaccedilotildees podemos entender

que tal como acontece no Feacutedon a semelhanccedila e dessemelhanccedila no Parmecircnides

deixam de ser predicados atribuiacutedos diretamente ao sujeito em questatildeo e passam a

ser predicados das propriedades imanentes que este sujeito possui devido agrave

relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que manteacutem com as Formas Sendo assim as muacuteltiplas

coisas do paradoxo de Zenatildeo satildeo tanto semelhantes quanto dessemelhantes por

participarem simultaneamente das Formas do Semelhante e do Dessemelhante e

devido a esta participaccedilatildeo possuiacuterem as propriedades imanentes do semelhante e

do dessemelhante com partes de si Portanto quando dizemos que o objeto x eacute

semelhante e dessemelhante estamos nos referindo a este fato de maneira

inadequada Pois natildeo eacute propriamente o indiviacuteduo x que eacute semelhante e

dessemelhante mas a semelhanccedila-de-x que eacute semelhante e a dessemelhanccedila-de-x

que eacute dessemelhante Estabelecida a diferenccedila entre Forma propriedades

imanentes e objetos sensiacuteveis natildeo haacute nada de contraditoacuterio no fato de uma mesma

coisa possuir simultaneamente propriedades imanentes opostas Afinal

predicados opostos nunca estatildeo sendo atribuiacutedos propriamente agrave mesma coisa

a uma nova reduccedilatildeo ao absurdo

22 Aleacutem da identidade de temas as passagens do Feacutedon e do Parmecircnides apresentam grande semelhanccedila de vocabulaacuterio εἶδος (Feacuted102B1) αὐτὸ καθ αὑτὸ (Feacuted78D3) ὄντοιν (Feacuted71a13) αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά (Feacuted74c1 αὐτὰ τὰ ἴσα) De fato a assimilaccedilatildeo entre os dois diaacutelogos eacute extremamente comum entre os comentadores Scolnicov por exemplo afirma que ldquoesta passagem eacute uma breve reafirmaccedilatildeo da doutrina das Formas desenvolvida no Feacutedonrdquo (Scolnicov 2003 p48) Gill oferece sua explicaccedilatildeo para resoluccedilatildeo do paradoxo de Zenatildeo por meio da teoria apresentada no Feacutedon (cf Gill 2012 p19-27) e (cf Gill 1996 p12-18) Cornford tambeacutem adota a estrateacutegia de explicar a soluccedilatildeo do paradoxo atraveacutes da analogia com a soluccedilatildeo do problema da copresenccedila de opostos no Feacutedon e afirma haver jaacute em 1951 aceitaccedilatildeo geral (it is generally agreed) de que ldquoa teoria das ideias aqui apresentada eacute idecircntica agrave afirmada anteriormente no Feacutedonrdquo (Cornford 1951 p70) Ainda Brisson (Brisson 2011 p29) Sayre (Sayre 1996 p65) e Turnbull (Turnbull 1998 p 16) assumem a identidade entre a teoria do Feacutedon e a teoria do Parmecircnides

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A hipoacutetese das Formas contradiz o conteuacutedo da premissa 4 do argumento

de Zenatildeo ao explicar aquilo que esta premissa afirmava ser impossiacutevel a

copresenccedila de propriedades opostas nos objetos sensiacuteveis Provada a falsidade da

premissa nuacutemero 4 do argumento de Zenatildeo todo paradoxo eacute desfeito Afinal a

reduccedilatildeo ao absurdo da assunccedilatildeo inicial de que as coisas satildeo muacuteltiplas depende

diretamente da existecircncia de contradiccedilatildeo entre as premissas 3 e 4

De acordo com a explicaccedilatildeo acima esboccedilada o paradoxo de Zenatildeo eacute

solucionado por Soacutecrates por meio da distinccedilatildeo ontoloacutegica entre Formas e objetos

sensiacuteveis que encontramos de maneira expliacutecita nos diaacutelogos da fase meacutedia e

impliacutecita nos argumentos dos primeiros diaacutelogos No decorrer das proacuteximas

seccedilotildees investigaremos se a ontologia defendida por Soacutecrates no Parmecircnides

pode ser identificada com aquela apresentada nestes diaacutelogos Em especial

investigaremos se a compreensatildeo acerca da natureza da participaccedilatildeo e auto-

predicaccedilatildeo das Formas que emerge da leitura do Parmecircnides pode ser identificada

com o tratamento que Soacutecrates oferece para estes temas nos diaacutelogos anteriores

Por ora basta observar que o vocabulaacuterio empregado sugere esta identificaccedilatildeo

Pois aleacutem de εἶδος tanto αὐτὸ καθ αὑτὸ quanto ὃ ἔστιν satildeo expressotildees

recorrentes nos diaacutelogos platocircnicos Estas expressotildees fazem parte do vocabulaacuterio

relativo agraves Formas que como vimos nos capiacutetulos precedentes eacute cuidadosamente

construiacutedo desde os primeiros diaacutelogos Da mesma maneira microετέχειν e

microεταλαmicroβάνειν satildeo expressotildees tipicamente socraacuteticas e fazem parte do vasto rol

de verbos empregados para descrever a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo entre Formas e

objetos sensiacuteveis tanto nos diaacutelogos iniciais quanto nos diaacutelogos da fase meacutedia

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417 O desafio de Soacutecrates

A proximidade entre a Teoria das Ideias apresentada no Parmecircnides e a

ontologia socraacutetica dos diaacutelogos da fase meacutedia e inicial eacute reafirmada ainda no

desafio lanccedilado por Soacutecrates a seus interlocutores Logo apoacutes a apresentaccedilatildeo das

Formas como soluccedilatildeo ao problema da copresenccedila de opostos Soacutecrates compele

seus interlocutores a demonstrarem nas Formas a validade dos mesmos

problemas que Zenatildeo acabara de apontar nos objetos sensiacuteveis

A passagem possui um problema textual que precisamos enfrentar para

podermos oferecer uma interpretaccedilatildeo adequada ao sentido do texto Trata-se do

aparecimento da expressatildeo αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά em 129b1 O neutro plural dos adjetivos

gregos eacute muitas vezes usado para designar de maneira geneacuterica um conjunto de

coisas que compartilham uma mesma caracteriacutestica Assim entendido o sentido de

expressotildees como τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια seria capturado pelas traduccedilotildees ldquoas

coisas semelhantesrdquo e ldquoas coisas dessemelhantesrdquo

No entanto estas traduccedilotildees estatildeo em claro desacordo com o conteuacutedo da

fala de Soacutecrates em 129a-c Na passagem em questatildeo Soacutecrates afirma que ficaria

assombrado caso algueacutem lhe demonstrasse que αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά venha(m) a se

tornar dessemelhante(s) e τὰ ἀνόmicroοια semelhante(s) Ora como vimos Soacutecrates

havia apresentado as Formas justamente como parte de uma demonstraccedilatildeo de

que ldquoas coisas semelhantesrdquo podem perfeitamente se tornar dessemelhantes e

vice-versa Portanto natildeo podemos adotar a interpretaccedilatildeo mais usual para o uso

do neutro plural de adjetivos na leitura de nossa passagem e somos obrigados a

descartar a hipoacutetese de que as expressotildees tenham como referecircncia um conjunto

geneacuterico de objetos sensiacuteveis sob pena de estarmos atribuindo agrave Soacutecrates uma

niacutetida contradiccedilatildeo Por outro lado caso queiramos identificar estas expressotildees

como designaccedilotildees das Formas nos encontramos novamente em dificuldade

Afinal sabemos que as Formas satildeo caracterizadas por serem uacutenicas Soacute haacute uma

uacutenica Forma da Beleza em oposiccedilatildeo agrave multiplicidade de coisas belas As

expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια no entanto estatildeo no plural

Haacute uma forte tendecircncia entre os comentadores a desqualificar este uso do

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plural e considerar ambas expressotildees como maneiras de se referir agraves Formas23

Apesar desta soluccedilatildeo ser amplamente adotada poucos satildeo os casos de defesa

textual desta leitura Agrave parte a afirmaccedilatildeo de que substantivos plurais gregos

podem ser utilizados de maneira gramaticalmente correta para designar entidades

singulares um uacutenico argumento de caraacuteter textual foi oferecido em defesa da

posiccedilatildeo de que as expressotildees representam maneiras idiossincraacuteticas de se referir

agraves Formas Rist em Equals and Intermediates in Plato (1964) argumenta que o

pronome τούτων na sentenccedila imediatamente seguinte (129b3) refere-se agrave

expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια De acordo com Rist como a sentenccedila

afirma que certas coisas participam de τούτων (τὰ τούτων microετέχοντα) ficaria

claro que as expressotildees dizem respeito agrave Formas pois soacute Formas podem ser

objeto de participaccedilatildeo (Rist 1964 p30)

Sendo assim caso o pronome τούτων seja de fato anafoacuterico em relaccedilatildeo agraves

expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια somos obrigados a aceitar o argumento de

Rist e admitir que as expressotildees no neutro plural em 129b1 designam as Formas

do Semelhante e do Dessemelhante No entanto esta natildeo parece ser a uacutenica opccedilatildeo

de leitura Na passagem em questatildeo o pronome τούτων estaacute associado agrave

ἀmicroφοτέρων e como observa Calvert ldquoquando Platatildeo se refere agraves Formas do

Semelhante e do Dessemelhante ele alterna entre o uso do dual (τούτοιν δυοῖν

ὄντοιν 129 a1 ἀmicroφοῖν a8) e o plural ἀmicroφοτέρων (a6 a7)rdquo (Clavert 1982 p53)

Nestes dois uacuteltimos casos (a6 a7) eacute certamente inquestionaacutevel que Platatildeo estaacute

usando ἀmicroφοτέρων para se referir agraves Formas Sendo assim quando lemos τούτων

ἀmicroφοτέρων em 129b3 o mais natural eacute considerar que esta expressatildeo refere-se agraves

Formas do Semelhante e do Dessemelhante apresentadas anteriormente e natildeo a

αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια

Portanto se aceitamos que estamos lidando com entidades que natildeo estatildeo

sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos e no entanto natildeo estamos nos referindo agraves

Formas os candidatos naturais ao posto de referecircncia das expressotildees αὐτὰ τὰ

ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια satildeo as propriedades imanentes da semelhanccedila e

dessemelhanccedila Como vimos no Feacutedon propriedades imanentes satildeo evocadas

23 Scolnicov por exemplo afirma categoriacamente ldquoO plural eacute irrelevanterdquo (Scolnicov 2003

p49) Allen (Allen 1997 p89) Brisson (Brisson 2011 p90) Rickless (Rickless 2007 p48) Sayre (Sayre 1996 p6) e Teloh (Teloh 1981 p152) tambeacutem tratam as expressotildees como maneiras de se referir agraves Formas Segundo Miller o uso de expressotildees plurais para designar as Formas representa uma ldquoconfusatildeo no pensamento de Soacutecratesrdquo reflexo do caraacuteter incipiente

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como parte do argumento que procura provar a diferenccedila ontoloacutegica entre Formas

e objetos sensiacuteveis (74b7-c5) e em seguida fazem parte da explicaccedilatildeo da

copresenccedila de opostos em Simmias (101-103) Em ambas passagens as

propriedades imanentes se diferenciam dos objetos sensiacuteveis que as possuem por

natildeo estarem elas mesmas sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza estes

objetos O paralelismo entre estas passagens do Feacutedon e nossa passagem do

Parmecircnides torna-se evidente quando consideramos que αὐτὰ τὰ ἴσα (Feacuted74c) e

αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά (Parm129b1) representam as uacutenicas ocorrecircncias de expressotildees da

forma αὐτὰ + adjetivo neutro plural no corpus platocircnico

Sendo assim encontramos total uniformidade no emprego deste tipo de

expressatildeo em Platatildeo ambas ocorrecircncias satildeo usadas para designar as propriedades

imanentes dos objetos sensiacuteveis adquiridas por meio da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo

que estes objetos mantecircm com as Formas Tal como as Formas as propriedades

imanentes natildeo estatildeo sujeitas agrave copresenccedila de opostos Poreacutem em oposiccedilatildeo agrave

unidade caracteriacutestica das Formas estas entidades satildeo muacuteltiplas e possuem um

tipo de existecircncia dependente dos objetos sensiacutevieis pois estatildeo localizadas nas

coisas (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος Feacuted102d ἡmicroεῖς ὁmicroοιότητος ἔχοmicroεν Parm130b)

Estando resolvida a questatildeo da referecircncia das expressotildees αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e

τὰ ἀνόmicroοια podemos analisar o desafio lanccedilado por Soacutecrates e nos questionar se

neste desafio estatildeo mantidas as caracteriacutesticas da ontologia defendida por

Soacutecrates nos diaacutelogos da juventude e da fase meacutedia ou natildeo A passagem pode ser

dividia em quatro partes

1) 129b1 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que as

propriedades imanentes αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια podem receber

predicados opostos

ldquoPois se algueacutem mostrasse que αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά se tornam dessemelhantes ou que

τὰ ἀνόmicroοια se tornam semelhantes seria assombroso creiordquo

2) 129b6-c1 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que

a Forma da Unidade eacute muacuteltiplas coisas e o Muacuteltipo eacute um

da Teoria das Ideias apresentada no Parmecircnides (Miller 1986 p38)

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ldquoMas se aquilo que eacute realmente Um algueacutem demonstrar que isso mesmo eacute

muacuteltiplas coisas e de outra parte que o Muacuteltiplo eacute um jaacute disso me espantareirdquo

3) 129c1-3 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que

as Formas satildeo tanto unas quanto muacuteltiplas

ldquoE do mesmo modo com respeito a todas as outras coisas se algueacutem mostrar que

em si mesmos os gecircneros mesmos e as Formas mesmas satildeo afetados por essas

afecccedilotildees contraacuterias [unidade e multiplicidade] isso seraacute digno de espantordquo

4) 129d6-130a1 Soacutecrates desafia seus interlocutores a demonstrarem

como as Formas podem estar misturadas e separadas entre si

ldquoMas dentre as coisas que haacute pouco mencionei se algueacutem em primeiro lugar separasse uma das outras as Formas mesmas em si mesmas ndash por exemplo a Semelhanccedila a Dessemelhanccedila a Quantidade o Um o Repouso o Movimento e todas as coisas deste tipo ndash em seguida mostrasse que estas entre si podem ser misturadas e separadas eu pelo menos disse [Soacutecrates] ficaria encantado cheio de espanto Zenatildeo Quanto agravequelas coisas [sensiacuteveis] acredito terem sido tratadas por ti com muita determinaccedilatildeo Entretanto eu como digo me encantaria muito mais se algueacutem pudesse essa mesma aporia da maneira como expuseste no caso das coisas que se vecircem exibi-la dessa mesma maneira tambeacutem no caso das coisas apreendidas pelo raciociacutenio entrelaccediladas de todos os modos nas Formas mesmasrdquo

1 e 2 representam basicamente o mesmo tipo de desafio Em 1 Soacutecrates

diz que ficaria assombrado caso lhe mostrassem que as propriedades imanentes

αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e τὰ ἀνόmicroοια estatildeo sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos Em 2 este

desafio eacute expandido para as Formas da Unidade e da Multiplicidade e Soacutecrates

pede que lhe seja demonstrado como o Um eacute muacuteltiplas coisas e o Muacuteltiplo um No

Feacutedon (102d-e) Soacutecrates havia afirmado que o Grande em si (αὐτὸ τὸ microέγεθος)

jamais apareceraacute como grande e pequeno e que tampouco o Gr ande (τὸ ἐν ἡmicroῖν

microέγεθος ) admitiraacute o pequeno ou consentiraacute em receber a pequenez e se tornar

contraacuterio ao que ele eacute (102e2) A imunidade agrave predicaccedilatildeo de opostos eacute portanto

vaacutelida igualmente para Formas e propriedades imanentes Neste ponto αὐτὰ τὰ

ὅmicroοιά e o Semelhante em si (αὐτὸ καθαὑτὸ εἶδός ὁmicroοιότητος) diferenciam-se dos

objetos sensiacuteveis e Soacutecrates desafia seus interlocutores a lhe demonstrarem como

qualquer uma destas entidades pode estar sujeita agrave copresenccedila de opostos que

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caracteriza os objetos empiacutericos

Logo apoacutes intimar Zenatildeo e Parmecircnides a lhe demonstrarem que a Unidade

(ὃ ἔστιν ἕν) eacute muacuteltiplas coisas e que o Muacuteltiplo eacute um Soacutecrates muda o foco de sua

argumentaccedilatildeo e deixando de falar de um par especiacutefico de Formas passa a tratar

de Formas em geral (περὶ τῶν ἄλλων ἁπάντων) Soacutecrates entatildeo compele seus

interlocutores a lhe provarem 3 que as Formas elas mesmas satildeo afetadas

simultaneamente pela unidade e multiplicidade Os comentadores costumam

entender o desafio expresso em 3 como a generalizaccedilatildeo do problema da

copresenccedila de opostos apresentado em 1 e 2 Contudo como dito anteriormente

natildeo podemos considerar uma mera casualidade o fato de Soacutecrates escolher as

propriedades da unidade e da multiplicidade para operar esta generalizaccedilatildeo O

debate entre Soacutecrates e Zenatildeo eacute motivado pelo tema da unidademultiplicidade e a

reintroduccedilatildeo deste par de conceitos neste momento remete o leitor agrave distinccedilatildeo

inicial entre a multiplicidade de objetos sensiacuteveis (as coisas que chamamos

muitas τἆλλα ἃ δὴ πολλὰ καλοῦmicroεν) e a unidade caracteriacutestica das Formas

(τούτοιν δὲ δυοῖν ὄντοιν) Devemos entender portanto que Soacutecrates em 3 natildeo

estaacute apenas generalizando o problema da copresenccedila de opostos para o conjunto

de todas as Formas mas estaacute apresentando um novo desafio Soacutecrates desafia seus

interlocutores a lhe provarem que as Formas entidades caracterizadas por serem

uacutenicas e indivisiacuteveis podem ser caracterizadas pela multiplicidade encontrada nos

objetos sensiacuteveis

Como vimos o paradoxo de Zenatildeo pressupotildee a afirmaccedilatildeo da

multiplicidade das coisas em dois niacuteveis distintos Segundo Zenatildeo os objetos

sensiacuteveis satildeo muacuteltiplos tanto numericamente quanto por serem divisiacuteveis em

muacuteltiplas partes e receberem muacuteltiplos predicados Em paralelo a esta dualidade

inerente ao conceito de multiplicidade adotado por Zenatildeo as Formas platocircnicas

satildeo ditas uacutenicas tanto numericamente por soacute haver uma Forma da Beleza em

contraste com a pluralidade de objetos belos quanto por serem incompostas e

indivisiacuteveis Neste momento do desafio devemos pressupor que os dois sentidos

de unidade e multiplicidade estatildeo em jogo e que Soacutecrates estaacute desafiando seus

interlocutores a demonstrarem a multiplicidade das Formas tout court seja ela

entendida como a existecircncia de uma multiplicidade numeacuterica (diversas Formas da

Beleza por exemplo) ou uma multiplicidade de partes ou atributos de uma mesma

Forma

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Por fim em 4 Soacutecrates afirma que ficaria surpreso caso algueacutem

ldquoseparasse uma das outras as Formas e em seguida mostrasse que estas Formas

entre si podem ser misturadas e separadasrdquo O sentido preciso desta afirmaccedilatildeo

natildeo estaacute claro de iniacutecio e seu significado deve ser acessado pela explicaccedilatildeo que se

segue Nas sentenccedilas seguintes Soacutecrates esclarece que sua surpresa estaacute

relacionada agrave possibilidade de algueacutem expor no caso das Formas a aporia que

Zenatildeo acabara de expor com relaccedilatildeo agraves coisas sensiacuteveis Como vimos a aporia

apresentada por Zenatildeo consiste em afirmar que os objetos sensiacuteveis satildeo muacuteltiplos

e por conta disso estatildeo sujeitos agrave predicaccedilatildeo de propriedades opostas Portanto

devemos entender que o entrelaccedilamento ao qual se refere Soacutecrates implica na

demonstraccedilatildeo de que as Formas satildeo tal como os objetos sensiacuteveis muacuteltiplas e

por conta desta multiplicidade estatildeo sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos

Em sua fala Soacutecrates enumera uma seacuterie de pares de Formas opostas

SemelhanccedilaDessemelhanccedila QuantidadeUm RepousoMovimento Como

observa Allen (Allen 1997 p101) o pronome ταῦτα em 129e2 possui como

antecedente estas Formas tomadas como pares e natildeo cada uma delas

isoladamente Sendo assim a passagem afirma que natildeo podemos considerar cada

um destes pares de Formas como separados e ao mesmo tempo supor que os dois

membros do par estatildeo misturados e caracterizando um ao outro

Ora estaacute claro que o entrelaccedilamento ou participaccedilatildeo de uma Forma em

outra faria com que elas perdessem sua unidade e uniformidade caracteriacutestica e

passassem a possuir uma multiplicidade de partes e atributos24 Aleacutem disso caso

Formas opostas estejam entrelaccediladas entre si cada uma delas teraacute um predicado

contraacuterio agrave sua auto-predicaccedilatildeo (a Semelhanccedila seraacute dessemelhante o Movimento

estaraacute em repouso etc) Portanto em 4 Soacutecrates recapitula os desafios expressos

anteriormente e reafirma a distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis expressa em

sua soluccedilatildeo ao paradoxo de Zenatildeo

O desafio apresentado por Soacutecrates retoma portanto aspectos

fundamentais da apresentaccedilatildeo da Teoria das Ideias a uniformidade das Formas

que se caracterizam por estarem imunes agrave predicaccedilatildeo de opostos e a unidade

24 No argumento desenvolvido em 142c8-143a2 por exemplo conclui-se que se o um eacute entatildeo o

um eacute constituido de partes Pois afirmar que ldquoo um eacuterdquo equivale a afirmar que uma parte do um participa da unidade e outra parte participa do ser (οὐσίας microετέχειν) O argumento pressupotildee portanto que a participaccedilatildeo em mais de uma Forma (entrelaccedilamento) eacute suficiente para concluir a existecircncia de muacuteltiplas partes do objeto participante

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destas entidades que satildeo numericamente singulares Estas caracteriacutesticas estatildeo

mutuamente implicadas pois as Formas satildeo ditas uacutenicas e homogecircneas por serem

de maneira exclusiva auto-predicativas Em contraste como as coisas sensiacuteveis

sujeitas a uma diversidade de predicados inclusive predicados opostos as Formas

satildeo exclusivamente aquilo que elas satildeo A Forma F eacute apenas F e nada mais

estando imune agrave presenccedila da propriedade oposta natildeo-F e de maneira geral a

qualquer outro tipo de predicaccedilatildeo25 Estas caracteriacutesticas das Formas satildeo a base da

distinccedilatildeo ontoloacutegica entre Formas e objetos sensiacuteveis e se encontram articuladas

na soluccedilatildeo de Soacutecrates para o paradoxo de Zenatildeo Zenatildeo acredita que as coisas

satildeo muacuteltiplas e por causa disso estatildeo sempre sujeitas agrave predicaccedilatildeo de opostos

Com o objetivo de desfazer o paradoxo Soacutecrates apresenta um novo tipo de

entidade caracterizada pela sua unidade e uniformidade Segundo Soacutecrates estas

entidades podem desfazer o problema da copresenccedila de opostos e serem a causa

das propriedades encontradas nos objetos sensiacuteveis por estarem elas mesmas

imunes agrave multiplicidade e copresenccedila de opostos encontrada nos objetos

empiacutericos

Sendo assim a demonstraccedilatildeo de que as Formas satildeo elas mesmas sujeitas

agrave copresenccedila de opostos retiraria destas entidades a capacidade de se apresentarem

como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis Pois segundo a compreensatildeo

de causalidade apresentada por Soacutecrates no Feacutedon eacute justamente o fato do Grande

nunca se apresentar como pequeno o que faz dele o candidato mais adequado para

o cargo de causa da grandeza das coisas sensiacuteveis A Forma da Beleza deve ser

incondicionalmente bela para assegurar o seu papel de causa da beleza nas coisas

Caso contraacuterio a Beleza ela mesma violaria um dos princiacutepios baacutesicos da

causalidade e poderia ser considerada tatildeo responsaacutevel pela beleza das coisas

quanto os adereccedilos de ouro que adornam Helena e a tornam bela para um

banquete poreacutem feia e repulsiva para um funeral Por outro lado a atribuiccedilatildeo de

multiplicidade agraves Formas abriria a possibilidade do paradoxo de Zenatildeo se repetir

em cada uma destas entidades quer entendamos esta multiplicidade como uma

multiplicidade numeacuterica ou como uma multiplicidade de atributos Pois ou bem

cada Forma seria composta por partes semelhantes entre si (por serem partes de

25 As afirmaccedilotildees de que F eacute uacutenica uniforme indivisiacutevel etc representam meta-predicados

atribuidos a todas as Formas Estes meta-predicados devem ser entendidos como afirmaccedilotildees restritas ao acircmbito da Teoria das Ideias e natildeo entram em conflito com a auto-predicaccedilatildeo das

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uma mesma Forma) e ao mesmo tempo dessemelhantes (por serem partes

distintas) ou bem as muacuteltiplas Formas de F seriam semelhantes (por serem todas

elas Formas de uma mesma propriedade F) e dessemelhantes (por serem

numericamente distintas) Em ambos os casos as Formas estariam sujeitas aos

mesmos problemas encontrados nos objetos sensiacuteveis que supostamente

deveriam solucionar

O desafio lanccedilado por Soacutecrates eacute portanto uma consequecircncia direta da

sua soluccedilatildeo para o paradoxo de Zenatildeo A validade da hipoacutetese das Formas como

soluccedilatildeo ao paradoxo depende destas entidades manterem estes dois aspectos

fundamentais de sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica imunidade agrave copresenccedila de opostos e

unidade (numeacuterica e aspectual) Afinal estas caracteriacutesticas satildeo a base da

diferenciaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis e a distinccedilatildeo entre estes dois tipos

de entidade natildeo restaria estabelecida caso estas caracteriacutesticas proacuteprias dos

objetos sensiacuteveis fossem encontradas tambeacutem nas Formas Portanto caso a

multiplicidade e predicaccedilatildeo de opostos apontadas por Zenatildeo nos objetos sensiacuteveis

sejam vaacutelidas paras Formas a soluccedilatildeo apresentada por Soacutecrates se mostraraacute falsa

e o paradoxo de Zenatildeo permaneceraacute irresoluto

A importacircncia do desafio de Soacutecrates para a compreensatildeo da estrutura do

Parmecircnides dificilmente pode ser superestimada A fala em que Soacutecrates

soluciona o paradoxo de Zenatildeo e em seguida desafia seus interlocutores a

provarem a falsidade de sua resoluccedilatildeo representa o mais longo discurso

ininterrupto do diaacutelogo e possui um forte apelo dramaacutetico No desafio que encerra

esta fala Soacutecrates usa as palavras ldquomaravilhadordquo ldquoencantadordquo e seus cognatos

nada menos do que oito vezes e deixa bem claro ao leitor quatildeo arraigado eacute o seu

comprometimento com as teses da uniformidade e unidade das Formas e quatildeo

chocante e arrasador seria o reconhecimento da falsidade destes princiacutepios

fundamentais de sua teoria Esta insistecircncia no tema do maravilhamento de

Soacutecrates faz parte da estrateacutegia dramaacutetica adotada por Platatildeo que pretende

chamar atenccedilatildeo para importacircncia destas duas caracteriacutesticas fundamentais da

constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e antecipar para o leitor o esquema geral do

ataque agrave Teoria das Ideias que seraacute realizado por Parmecircnides Como veremos

Parmecircnides aceita o desafio lanccedilado por Soacutecrates e localiza suas criacuteticas

Formas

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justamente nos princiacutepios de uniformidade e unidade das Formas Por meio da

sequecircncia de paradoxos que compotildeem o restante da primeira parte do diaacutelogo

Parmecircnides iraacute provar a Soacutecrates como estas caracteriacutesticas das Formas mostram-

se irreconciliaacuteveis com a noccedilatildeo de participaccedilatildeo e de maneira geral com a tese de

que as Formas satildeo causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis

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42 As criacuteticas de Parmecircnides agrave teoria da participaccedilatildeo

Apoacutes Soacutecrates terminar sua longa fala Parmecircnides que ateacute entatildeo ouvia a

discussatildeo calado volta-se para Soacutecrates e passa a formular uma seacuterie de criacuteticas agrave

distinccedilatildeo ontoloacutegica que este havia apresentado Tal como prenunciado na

complexa estrutura narrativa delineada pelo proacutelogo do diaacutelogo a fala de

Parmecircnides emerge em continuidade ao debate anteriormente desenvolvido por

Soacutecrates e Zenatildeo e toma como ponto de partida os resultados obtidos pela

discussatildeo anterior Em especial a argumentaccedilatildeo desenvolvida por Parmecircnides

pretende recuperar em forma e intenccedilatildeo o paradoxo de abertura do diaacutelogo

Formalmente as criacuteticas de Parmecircnides retomam o tipo de argumentaccedilatildeo

em reduccedilatildeo ao absurdo na qual o paradoxo de Zenatildeo havia sido formulado A

estrateacutegia consiste em aceitar de maneira provisoacuteria a teoria apresentada por

Soacutecrates com o intuito de derivar a partir do conjunto de hipoacuteteses que

constituem esta teoria contradiccedilotildees internas ou consequecircncias inaceitaacuteveis Em

intenccedilatildeo as criacuteticas pretendem restabelecer a validade deste paradoxo por meio da

demonstraccedilatildeo da inviabilidade da soluccedilatildeo oferecida por Soacutecrates Assim do

mesmo modo que Zenatildeo havia formulado seu paradoxo pretendendo proteger

Parmecircnides dos ataques de seus detratores Parmecircnides apresenta suas criacuteticas

como uma defesa de Zenatildeo a quem Soacutecrates afirma ser capaz de refutar

Em linhas gerais as criacuteticas de Parmecircnides seguem a seguinte estrutura

Parmecircnides comeccedila questionando Soacutecrates acerca da extensatildeo e populaccedilatildeo do

ldquomundo da Ideiasrdquo isto eacute que tipos de objetos sensiacuteveis possuem uma Forma

correspondente Em seguida Parmecircnides desenvolve uma seacuterie de paradoxos

intimamente relacionados entre si voltados contra a noccedilatildeo de participaccedilatildeo

adotada por Soacutecrates Na tentativa de escapar destas criacuteticas Soacutecrates procura

oferecer explicaccedilotildees distintas para natureza da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo e propotildee

primeiro que as Formas sejam entendidas como pensamentos e em seguida

como paradigmas Contudo ambas propostas levam a mais paradoxos e

Parmecircnides acaba por concluir que a participaccedilatildeo eacute impossiacutevel e que de acordo

com a concepccedilatildeo socraacutetica do que eacute uma Forma estas entidades estariam

completamente isoladas da realidade sensiacutevel o que as tornaria incognosciacuteveis e

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irrelevantes

Caso sejam consideradas vaacutelidas as criacuteticas oferecidas por Parmecircnides

representam um ataque avassalador agrave teoria apresentada por Soacutecrates Este fato

parece ser reconhecido por Soacutecrates que diz ao final dos ataques de Parmecircnides

natildeo vislumbrar uma saiacuteda nos garantindo que ao menos no contexto dramaacutetico

do diaacutelogo o criticismo parmeniacutedico eacute tido como procedente Contudo a despeito

da aporia e do embaraccedilo demonstrados por Soacutecrates alguns comentadores negam

a importacircncia destes argumentos e afirmam que Platatildeo nunca admitiu a

legitimidade das criacuteticas aqui apresentadas

Uma maneira de desqualificar a argumentaccedilatildeo de Parmecircnide que

precisamos desde jaacute analisar consiste em reconhecer a validade dos argumentos

poreacutem negar a sua relevacircncia com relaccedilatildeo agrave Teoria das Ideias De acordo com este

tipo de interpretaccedilatildeo os paradoxos apresentados por Parmecircnides natildeo teriam como

alvo a Teoria das Ideias platocircnicas mas estariam direcionadas contra concepccedilotildees

heterodoxas acerca da natureza das Formas adotadas por membros da Academia

cujas teorias Platatildeo estaria atacando

O alvo mais constantemente apresentado eacute Eudoxo de Cnidos Eudoxo foi

um astrocircnomo e matemaacutetico extremamente respeitado e seu nome estaacute

relacionado a uma seacuterie de descobertas matemaacuteticas de seu tempo Segundo

algumas fontes Eudoxo seria associado a Academia e teria inclusive assumido o

cargo de diretor da escola (sxolarxhj) durante a viagem de Platatildeo para Sciciacutelia

em 366 (cf Philoch fr223) De fato vaacuterios testemunhos nos levam a crer que em

algum momento de sua carreira filosoacutefica Eudoxo desenvolveu uma teoria

proacutepria acerca da natureza das Formas e de acordo com o comentaacuterio de

Alexandre de Afrodiacutesia esta teoria estaria criticada por uma seacuterie de argumentos

do tratado aristoteacutelico PERI IDEWN (In Methaph 97-98)

Em Aristotles Criticism of Plato and The Academy Cherniss reconhece

uma grande similaridade entre as criacuteticas descritas por Alexandre e as criacuteticas que

encontramos no Parmecircnides A partir da identificaccedilatildeo entre estas duas seacuteries de

argumentos Cherniss conclui que o criticismo apresentado em nosso diaacutelogo estaacute

direcionado contra a noccedilatildeo imanentista de Formas defendida por Eudoxo e natildeo

contra a Teoria das Ideias descrita nos diaacutelogos de Platatildeo (Cherniss 1944 p144)

Esta interpretaccedilatildeo eacute posteriormente endossada por Cornford para quem as

criacuteticas do Parmecircnides devem ser entendidas como a rejeiccedilatildeo do proacuteprio Platatildeo agrave

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compreensatildeo rudimentar de participaccedilatildeo defendida por Eudoxo (Cornford 1951

p87)26

Recentemente outro membro da Academia foi oferecido como alvo dos

argumentos do Parmecircnides Em The Fog Dispelled (2010) Graeser propotildee que o

Parmecircnides deve ser entendido como uma refutaccedilatildeo da concepccedilatildeo de Formas

defendida por Espeusipo sobrinho de Platatildeo e sxolarxhj da Academia durante

os oito anos seguintes agrave sua morte Segundo Graeser no Parmecircnides ldquoPlatatildeo guia

seus leitores agrave compreensatildeo de que seu criticismo das Formas inteligiacuteveis reverte-

se contra a teoria dos princiacutepios de Espeusipordquo (Graeser 2010 p17)

Para podermos avaliar a viabilidade do tipo de hipoacutetese interpretativa

defendida por Cherniss Cornford e Graeser segundo a qual as criacuteticas de

Parmecircnides estatildeo endereccediladas a uma outra teoria que natildeo a proacutepria Teoria das

Ideias encontrada nos diaacutelogos platocircnicos precisamos recapitular as

caracteriacutesticas da distinccedilatildeo ontoloacutegica oferecida por Soacutecrates como soluccedilatildeo ao

paradoxo de Zenatildeo No Parmecircnides Soacutecrates apresenta uma teoria segundo a

qual

1) Existem Formas (εἴδη) entidades em si (αὐτὰ καθ αὑτὰ τὰ)

separadas (χωρὶς) dos objetos sensiacuteveis (128e6-130b-5) e

conhecidas pela razatildeo (ἐν τοῖς λογισmicroῷ λαmicroβανοmicroένοις) (129e5-

130a2)

2) Estas Formas satildeo entidades auto-predicativas isto eacute a Forma do

Grande eacute grande a Forma do Pequeno eacute pequena etc (132a)

3) As Formas satildeo entidades singulares e indivisiacuteveis (ἓν ἕκαστον

εἶδος εἶναι) em oposiccedilatildeo agrave multiplicidade numeacuterica e

complexidade mereoloacutegica que caracteriza os objetos sensiacuteveis

4) As Formas satildeo entidades ldquounicas em aspectordquo (microονοειδὲς) isto eacute

imunes agrave copresenccedila de propriedades opostas Em oposiccedilatildeo a isto

os objetos sensiacuteveis estatildeo sempre sujeitos a este tipo de

26 Em Eudoxos in The Parmecircnides (1973) Malcolm Shofield defende que a teoria de Eudoxo eacute

discutida no Parmecircnides poreacutem natildeo na primeira parte do diaacutelogo Shoefield acredita que alguns argumentos da longa seacuterie de deduccedilotildees que compotildee a segunda parte do Parmecircnides precisam ser entendidos sobre o background da teoria de Eudoxo Como o proacuteprio Shofield reconhece (Shoefied 1973 p4-5) a hipoacutetese de que a teoria de Eudoxo eacute discutida em algumas deduccedilotildees da segunda parte do Parmecircnides jaacute havia sido levantada por Brumbaugh (cf Brumbaugh 1961 p25-26)

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copresenccedila (129b6-c1)

5) Os objetos sensiacuteveis por outro lado participam das Formas e eacute

pela participaccedilatildeo (microετάληψις) nas Formas que adquirem as

propiedades que possuem (129a3-129b1) e os nomes pelos quais

satildeo chamadas (ἐπωνυmicroία) (130e5-131a2)

Como qualquer leitor dos diaacutelogos platocircnicos pode facilmente perceber as

sentenccedilas listadas acima definem de maneira inequiacutevoca a Teoria das Ideias que

delineamos nos capiacutetulos precedentes Como vimos a existecircncia de Formas

entidades separadas dos objetos empiacutericos e detentoras de um estatuto ontoloacutegico

proacuteprio estaacute pressuposta desde os diaacutelogos inicias Estas entidades satildeo

caracterizadas por serem inteligiacuteveis isto eacute captadas unicamente pela razatildeo

(Feacutedon 65d4-66a10) sempre idecircnticas a si mesmas e auto-predicativas

(Protaacutegoras 330c7-e1 Hiacuteppias Maior 292e Eutidemos 301b5-c2 e Feacutedon 100c4-

6) estando portanto imunes agrave predicaccedilatildeo de opostos (Hiacuteppias Maior 291d1-3

Feacutedon 102e5-6 Banquete 211a2-5 Repuacuteblica V 479a) Como resultado da soma

destas caracteriacutesticas as Formas satildeo entidades completamente isentas de

pluralidade incapazes de sofrer qualquer tipo de mudanccedila singulares e

indivisiacuteveis (microονοειδὲς ἀσύνθετα Fed78c6)

Por outro lado em oposiccedilatildeo agrave unidade e estabilidade ontoloacutegica

caracteriacutestica das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo descritos por Soacutecrates como

entidades compostas e internamente complexas sujeitas agrave mudanccedila constante e

submetidas a uma infinidade de predicaccedilotildees inclusive opostas (Hiacuteppias Maior

289a3-b7 Feacutedon 74b7-9 102b-c Repuacuteblica 479a-b)

Do mesmo modo o poder causal exercido pelas Formas sobre os objetos

sensiacuteveis e o vocabulaacuterio da participaccedilatildeo a ele relacionado possuem um papel

central nos argumentos dos diaacutelogos e podem ser encontrados desde a busca por

definiccedilotildees do Ecircutifron e do Hippias Maior ateacute os diaacutelogos da fase meacutedia como

Banquete e Feacutedon Assim desde os primeiros diaacutelogos as Formas satildeo

apresentadas como responsaacuteveis pelas caracteriacutesticas dos objetos sensiacuteveis e causa

efetiva das propriedades encontradas nestes objetos

Eacute portanto facilmente constataacutevel que as caracteriacutesticas fundamentais da

Teoria das Ideias estatildeo representadas na listagem acima e mesmo o vocabulaacuterio

empregado por Soacutecrates no Parmecircnides coincide com a terminologia dos diaacutelogos

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anteriores Tendo em vista esta identidade vocabular e conceitual creio que

podemos descartar desde jaacute as interpretaccedilotildees que pretendem identificar qualquer

outra teoria que natildeo a Teoria das Ideias como alvo dos ataques de Parmecircnides

Afinal acreditar que as criacuteticas apresentadas no Parmecircnides estatildeo endereccediladas a

Eudoxo ou a Espeusipo equivale a tornar estas criacuteticas um mero caso de ignoratio

elenchi com relaccedilatildeo a toda argumentaccedilatildeo anteriormente desenvolvida no diaacutelogo

A distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis apresentada por Soacutecrates

como soluccedilatildeo ao paradoxo de Zenatildeo eacute a mesma formulada nos diaacutelogos meacutedios e

da juventude e este fato deve parecer oacutebvio ao leitor do Parmecircnides tanto pelo

vocabulaacuterio empregado por Soacutecrates quanto pelo motivo pelo qual a Teoria das

Ideias eacute trazida agrave discussatildeo Sendo assim seria completamente incompreensiacutevel

que Platatildeo resolvesse representar o personagem Parmecircnides criticando qualquer

outra teoria senatildeo aquela que Soacutecrates apresenta reiteradamente nos diaacutelogos em

que figura como personagem principal e que eacute anunciada no proacuteprio Parmecircnides

como soluccedilatildeo ao paradoxo de Zenatildeo27

27 Haacute ainda outra objeccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo de que as criacuteticas do Parmecircnides estatildeo direcionadas

contra teorias heterodoxas defendidas por membros da Academia em divergecircncia a Platatildeo Como observa Dancy em Two Studies in the Early Academy este tipo de interpretaccedilatildeo depende de uma hipoacutetese cronoloacutegica acerca da data de composiccedilatildeo do Parmecircnides dificilmente verificaacutevel Afinal para admitirmos que o Parmecircnides conteacutem uma criacutetica agrave teoria de Eudoxo ou Espeusipo devemos supor que na ocasiatildeo da composiccedilatildeo do diaacutelogo a teoria criticada jaacute havia sido desenvolvida No entanto nada nos impede de realizar a inferecircncia no sentido oposto e afirmar que Eudoxo ou Espeusipo propuseram suas teorias a partir de uma leitura do Parmecircnides Caso esta uacuteltima hipoacutetese cronoloacutegica esteja correta o Parmecircnides foi escrito antes da formulaccedilatildeo das teorias de Eudoxo e Espeusipo e portanto natildeo poderia conter criacuteticas a estas teorias (cf Dancy 1991 p20-24)

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421 A separaccedilatildeo das Formas

Parmecircnides inicia seu exame enfatizando a distinccedilatildeo fundamental na qual

a hipoacutetese de Soacutecrates estaacute baseada Em sua fala Soacutecrates havia afirmado que o

Semelhante o Dessemelhante o Um o Muacuteltiplo e as demais Formas devem ser

entendidas como entidades em si e por si (αὐτὰ καθ αὑτὰ) detentoras de um

estatuto ontoloacutegico proacuteprio e marcadamente distintas dos objetos sensiacuteveis

Assumindo a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis estabelecida por Soacutecrates

Parmecircnides levanta duas questotildees acerca desta distinccedilatildeo 1) Se foi o proacuteprio

Soacutecrates quem fez a divisatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis e 2) Se a

Semelhanccedila mesma eacute algo separado da semelhanccedila que possuiacutemos e o mesmo

com relaccedilatildeo aos outros termos mencionados por Zenatildeo

ldquoE foi isso entatildeo que expressou Parmecircnides quando ele [Soacutecrates] terminou Soacutecrates disse quatildeo digno eacutes de ser admirado pelo ardor que tens pelos argumentos Mas dize-me 1) tu mesmo assim fizestes a divisatildeo tal como falas de um lado certas coisas mesmas de outro as coisas que delas participam E 2) te parece a semelhanccedila mesma ser algo separada da semelhanccedila que temos e tambeacutem o um e as muacuteltiplas coisas e todas as coisas que haacute pouco ouviste de Zenatildeo Parece-me que sim disse Soacutecratesrdquo ὅπερ οὖν καὶ παυσαmicroένου αὐτοῦ εἰπεῖν τὸν Παρmicroενίδην Ὦ Σώκρατες φάναι ὡς ἄξιος εἶ ἄγασθαι τῆς ὁρmicroῆς τῆς ἐπὶ τοὺς λόγους καί microοι εἰπέ 1) αὐτὸς σὺ οὕτω διῄρησαι ὡς λέγεις χωρὶς microὲν εἴδη αὐτὰ ἄττα χωρὶς δὲ τὰ τούτων αὖ microετέχοντα καί 2) τί σοι δοκεῖ εἶναι αὐτὴ ὁmicroοιότης χωρὶς ἧς ἡmicroεῖς ὁmicroοιότητος ἔχοmicroεν καὶ ἓν δὴ καὶ πολλὰ καὶ πάντα ὅσα νυνδὴ Ζήνωνος ἤκουες Ἔmicroοιγε φάναι τὸν Σωκράτη (130b1-5)

Parmecircnides destaca o tema da separaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis

mencionando a preposiccedilatildeoadveacuterbio χωρίς (separadoseparadamente) nada menos

do que trecircs vezes em apenas quatro linhas Devemos entender a insistecircncia de

Parmecircnides sobre este ponto como um artifiacutecio dramaacutetico cujo objetivo eacute chamar

a atenccedilatildeo do leitor para questatildeo da ldquoseparaccedilatildeordquo entre Formas e objetos sensiacuteveis

na qual a teoria de Soacutecrates estaacute fundamentada Soacutecrates jaacute havia usado o termo

χωρίς com relaccedilatildeo agraves Formas anteriormente (διαιρῆται χωρὶς αὐτὰ καθ αὑτὰ τὰ

εἴδη 129d7) E de fato sua teoria parece envolver algum modo de separaccedilatildeo entre

duas classes distintas de objetos pois Soacutecrates afirma haver aleacutem das muacuteltiplas

coisas apontadas por Zenatildeo um outro conjunto de objetos distintos das coisas

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sensiacuteveis e detentores de um estatuto ontoloacutegico proacuteprio as Formas Mas o que

significa afirmar que as Formas satildeo entidades separadas Com o que exatamente

estaria Soacutecrates se comprometendo ao responder afirmativamente agrave pergunta de

Parmecircnides

Em seu sentido mais baacutesico podemos entender a afirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo

entre duas entidades como equivalente agrave atribuiccedilatildeo de natildeo-identidade numeacuterica

entre elas Assim compreendido o termo ldquoseparaccedilatildeordquo natildeo teria outro papel senatildeo

enfatizar o fato pressuposto pela teoria apresentada por Soacutecrates de que a Forma

natildeo eacute idecircntica aos objetos que dela participam ou seja se o objeto x participa da

Forma F entatildeo x e F satildeo coisas numericamente distintas isto eacute separadas Uma

segunda interpretaccedilatildeo possiacutevel seria entendermos a afirmaccedilatildeo de separaccedilatildeo como

equivalente agrave afirmaccedilatildeo de independecircncia ontoloacutegica De acordo com este sentido

uma coisas eacute separada da outra se ela pode existir independentemente da outra

Portanto nesta segunda acepccedilatildeo do termo x eacute separado de y se x pode continuar

a existir ainda que y deixe de existir ou mesmo que y nunca tenha existido28 Uma

terceira opccedilatildeo seria entendermos a afirmaccedilatildeo de que x eacute separado de y como

equivalente ao isolamento ou dissociaccedilatildeo total entre estes dois itens Assim

entendida a separaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis implicaria na inexistecircncia

de contato entre estas entidades tal como quando dizemos que uma mesa estaacute

separada da parede para afirmar que estas duas coisas natildeo estatildeo em contato uma

com a outra

Soacutecrates natildeo pede esclarecimentos a Parmecircnides acerca do que estaacute sendo

entendido por ldquoseparaccedilatildeordquo e noacutes como leitores devemos buscar nas entrelinhas

do texto o significado desta expressatildeo Esta tarefa nos eacute facilitada por Platatildeo que

oferece uma informaccedilatildeo fundamental acerca do sentido da palavra χωρίς por meio

da construccedilatildeo de um paralelismo entre a afirmaccedilatildeo de que a Forma F eacute separada

(χωρίς) e a afirmaccedilatildeo de que a Forma F eacute em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτό)

Em 129b4 Parmecircnides comeccedila seu exame perguntando a Soacutecrates se ele

acredita ser a Semelhanccedila mesma algo separado (χωρίς) da semelhanccedila que noacutes

temos Logo em seguida (130b7-9) Parmecircnides formula o mesmo tipo de questatildeo

utilizando agora a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτό ldquoSeraacute que tambeacutem coisas tais

28 Note que diferente da relaccedilatildeo de natildeo-identidade a indenpendecircncia ontoloacutegica natildeo eacute uma

relaccedilatildeo simeacutetrica Podemos considerar que x possui um modo de existecircncia independente de y e ao mesmo tempo afirmarmos que y eacute ontologicamente dependente de x

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como uma certa Forma em si e por si do Belo e do Justo [existem]rdquo Por fim em

130c1-2 Parmecircnides volta a usar o termo χωρίς e pergunta ldquoMas e uma Forma

do Homem [existiria esta Forma] separada de noacutes e de todos tais como somos

noacutesrdquo

Conforme observa Vlastos durante toda esta arguiccedilatildeo as expressotildees χωρίς

e αὐτὸ καθ αὑτό ldquosatildeo usadas intercaladamente para enunciar a mesma tese

metafiacutesica (metaphysical claim)rdquo (Vlastos 1991 p259) Como Soacutecrates natildeo se

manifesta contra a assimilaccedilatildeo do significado destas duas expressotildees e aceita sem

ressalvas o paralelismo estabelecido por Parmecircnides natildeo temos razatildeo para

duvidar de que as proposiccedilotildees ldquoA Forma F eacute separadardquo e ldquoA Forma F eacute em si e

por sirdquo possuem o mesmo significado e expressam o mesmo fato ontoloacutegico

A identidade entre o significado das expressotildees χωρίς e αὐτὸ καθ αὑτό

natildeo nos seria uacutetil contudo caso natildeo soubeacutessemos o que Soacutecrates entende pela

afirmaccedilatildeo de que as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὸ καθ αὑτό) No

entanto como vimos anteriormente a afirmaccedilatildeo de que as Formas satildeo ldquoem si e

por sirdquo eacute extremamente recorrente nos diaacutelogos e devemos entendecirc-la como

equivalente agrave tese da independecircncia ontoloacutegica das Formas As Formas satildeo ditas

αὐτὰ καθ αὑτὰ devido ao fato de apresentarem um modo de existecircncia

independente com relaccedilatildeo aos objetos sensiacuteveis que delas participam No

Banquete (211a5-b6) por exemplo a foacutermula ainda mais enfaacutetica αὐτὸ καθ αὑτὸ

microεθ αὑτοῦ eacute usada para expressar o modo de existecircncia autossuficente da Forma

do Belo que natildeo eacute afetada em absoluto pelas vicissitudes que as coisas belas do

mundo empiacuterico estatildeo fadadas a sofrer Pois ldquo() nem o nascimento nem a morte

destas coisas o fazem aumentar ou diminuir ou lhe produzem qualquer efeitordquo

(οἷον γιγνοmicroένων τε τῶν ἄλλων καὶ ἀπολλυmicroένων microηδὲν ἐκεῖνο microήτε τι πλέον

microήτε ἔλαττον γίγνεσθαι microηδὲ πάσχειν microηδέν) Gozando de uma modo de

existecircncia plenamente independente e natildeo dependendo de qualquer tipo de relaccedilatildeo

com outras entidades para ser aquilo que eacute o Belo ele mesmo permaneceraacute ldquosendo

sempre uacutenico em aspectordquo (microονοειδὲς ἀεὶ ὄν)

No Feacutedon Soacutecrates usa o mesmo paralelismo entre χωρίς (representado

pelo verbo χωρίζω) e αὐτὸ καθ αὑτό para explicar como o evento da morte que

nada mais eacute do que a separaccedilatildeo da alma do corpo faz com que estes dois

elementos passem a existir em si e por si ou seja de maneira independente

(Feacuted64C5-8) A morte significa para alma o fim da longa dependecircncia

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estabelecida com o corpo ao qual estava relacionada durante a encarnaccedilatildeo Apoacutes a

morte tanto o corpo quanto a alma passam a gozar de um modo de existecircncia

separado O corpo existiraacute de maneira independente poreacutem apenas pelo breve

espaccedilo de tempo que separa o evento da morte de sua dissoluccedilatildeo total enquanto a

alma continuaraacute a existir separada e independente mesmo apoacutes o

desaparecimento do corpo

Em ambas as passagens a locuccedilatildeo αὐτὸ καθ αὑτό eacute usada para designar o

estatuto ontoloacutegico independente de uma entidade Sendo assim dado o

paralelismo apontado por Vlastos entre a afirmaccedilatildeo de que ldquoA Forma F eacute em si e

por sirdquo e a afirmaccedilatildeo de que ldquoA Forma F eacute separadardquo podemos concluir que

Soacutecrates ao concordar que as Formas satildeo entidades separadas estaacute se

comprometendo com a tese de que as Formas existem de maneira completamente

independente dos objetos sensiacuteveis que delas participam natildeo necessitando deles

para serem aquilo que elas satildeo29

A insistecircncia de Parmecircnides sobre a questatildeo da separaccedilatildeo das Formas

representa seu reconhecimento de que a Teoria das Ideias apresentada por

Soacutecrates estaacute fundamentalmente vinculada agrave independecircncia ontoloacutegica destas

entidades Para que as Formas se apresentem como soluccedilatildeo agraves contradiccedilotildees do

mundo empiacuterico eacute imprescindiacutevel que estas entidades demonstrem-se aptas a

manter suas caracteriacutesticas ontoloacutegicas fundamentais a despeito do que aconteccedila

com os objetos que delas participam e sobretudo a despeito de como seja

entendida a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que as vincula aos objetos sensiacuteveis Assim a

29 Alguns comentadores entendem que a pergunta de Parmecircnides pressupotildee a simetria da relaccedilatildeo

de ldquoseparaccedilatildeordquo isto eacute se x eacute separado de y entatildeo y eacute separado de x Este fato por si soacute seria suficiente para descartarmos a hipoacutetese de que o termo χωρίς e por extensatildeo a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτό possam implicar independecircncia ontoloacutegica Afinal a Teoria das Ideias certamente afirma a independecircncia ontoloacutegica das Formas frente aos objetos sensiacuteveis Poreacutem segundo estes autores a afirmaccedilatildeo da indenpendecircncia ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis frente agraves Formas estaacute em clara contradiccedilatildeo com a Teoria das Ideias Portanto como Soacutecrates aceita sem ressalvas a formulaccedilatildeo de Parmecircnides devemos entender o termo χωρίς em algum dos sentidos que natildeo implicam a independecircncia ontoloacutegica da entidade separada (cf Gill 1996 p17 n23) ou devemos admitir que o jovem Soacutecrates natildeo estaacute completamente ciente da tese com a qual estaacute se comprometendo e aceita a independecircncia ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por engano (cf Allen 1997 p23-23) Vlastos apresenta um contra-argumento a estes autores afirmando que este tipo de interpretaccedilatildeo deriva de uma leitura errocircnea do texto Segundo Vlastos natildeo haacute razatildeo para acreditarmo que a relaccedilatildeo de separaccedilatildeo estaacute sendo tratada como uma relaccedilatildeo simeacutetrica porque as ocorrecircncias de χωρίς em 130b2 e b3 devem ser entendida como adveacuterbios de διῄρησαι Assim em b2-3 natildeo estamos falando de ldquoexistir separadamenterdquo mas de ldquodistinguir separadamenterdquo e a afirmaccedilatildeo do modo de existecircncia separado das Formas soacute aconteceria na sentenccedila seguinte b4 onde natildeo haacute sinal algum de simetria (cf Vlastos 1991 p 256)

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ecircnfase no tema da separaccedilatildeo durante a fala de abertura da argumentaccedilatildeo de

Pamecircnides antecipa ao leitor do diaacutelogo o conteuacutedo das criacuteticas que se seguiratildeo

Como veremos os argumentos de Parmecircnides pretendem demonstrar justamente

a impossibilidade das Formas preservarem sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica distintiva

enquanto estejam vinculadas aos objetos sensiacuteveis por meio da relaccedilatildeo de

participaccedilatildeo

O questionamento parmeniacutedico contudo natildeo termina por ai e suas duas

perguntas iniciais satildeo oferecidas em uma uacutenica sentenccedila como dois problemas

intimamente conectados Assim sua segunda questatildeo (130b3-4) eacute enunciada

como um mero corolaacuterio da primeira (130b2-3) se as Formas satildeo entidades

separadas dos objetos sensiacuteveis e estes objetos por sua vez satildeo separados das

Formas haveria entatildeo uma Forma do Semelhante separada da semelhanccedila que as

coisas sensiacuteveis possuem

Soacutecrates responde afirmativamente agraves duas perguntas reconhecendo a

existecircncia de uma Forma do Semelhante separada tanto dos objetos sensiacuteveis

quanto da semelhanccedila que haacute em noacutes Deste modo Parmecircnides torna expliacutecito

aquilo que jaacute havia sido antecipado pelo aparecimento da expressatildeo αὐτὰ τὰ

ὅmicroοιά isto eacute que a teoria apresentada por Soacutecrates pressupotildee a distinccedilatildeo natildeo

somente entre Formas e objetos sensiacuteveis mas tambeacutem entre Formas e

propriedades imanentes Portanto de acordo com Soacutecrates se estamos falando de

dois homens semelhantes entre si nossa anaacutelise pressupotildee a distinccedilatildeo de trecircs tipos

de entidades 1) a Forma do Semelhante 2) os indiviacuteduos em questatildeo e 3) a

semelhanccedila que estes indiviacuteduos possuem devido ao fato de participarem da

Forma do Semelhante

Como Parmecircnides demonstra perceber a distinccedilatildeo entre Formas e

propriedades imanentes eacute uma consequecircncia direta da hipoacutetese da separaccedilatildeo das

Formas As Formas satildeo entidades em si e por si separadas dos objetos sensiacuteveis

mas ao mesmo tempo se apresentam como causas das caracteriacutesticas destes

objetos Sendo assim eacute preciso supor a existecircncia de um resultado nas coisas da

accedilatildeo causal exercida pelas Formas Neste momento da discussatildeo nenhuma

informaccedilatildeo eacute passada ao leitor acerca do estatuto ontoloacutegico deste terceiro

elemento a natildeo ser o fato de que esta entidade encontra-se nas coisas sendo

portanto presente nos objetos sensiacuteveis Parmecircnides iraacute solucionar esta carecircncia

de informaccedilatildeo durante a enunciaccedilatildeo do seu ldquodilema da participaccedilatildeordquo Segundo

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este dilema soacute haacute duas possibilidades de compreensatildeo para o que satildeo as

propriedade imanentes ou bem estas entidades satildeo as proacuteprias Formas presentes

por inteiro nos objetos que delas participam ou bem satildeo partes de Formas

compartilhadas pelos objetos sensiacuteveis por meio da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo

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422 A extensatildeo do conjunto de Formas

Apoacutes se certificar da separaccedilatildeo entre Formas objetos sensiacuteveis e

propriedades imanentes Parmecircnides realiza trecircs perguntas acerca da extensatildeo do

conjunto de Formas Claramente sua intenccedilatildeo eacute determinar para que tipo de

coisas existe uma Formas correspondente De um ponto de vista dramaacutetico seu

interesse sobre esta questatildeo eacute extremamente natural Parmecircnides acabara de ser

apresentado agrave Teoria das Ideias e a primeira duacutevida que lhe surge eacute quais Formas

existem

Soacutecrates jaacute havia concordado que existem as Formas do Semelhante do

Dessemelhante do Um do Muacuteltiplo do Repouso e do Movimento Estas Formas

correspondem a termos gerais de aplicaccedilatildeo irrestrita pois todo elemento da

realidade precisa possuir senatildeo cada um destes pares de predicados ao menos um

membro de cada par30 Parmecircnides natildeo se deteacutem nestas Formas e se refere a elas

apenas pela designaccedilatildeo geneacuterica de ldquoas coisas que haacute pouco ouviste de Zenatildeordquo

(130b5)31

Por outro lado Parmecircnides se mostra bastante interessado em saber se

Soacutecrates admite aleacutem de Formas correspondentes a termos de aplicaccedilatildeo irrestrita

ldquouma Forma em si e por si do Justo e tambeacutem do Belo e do Bom e ainda de todas

as coisas deste tipordquo Ao que Soacutecrates responde confiantemente que sim (130b7-

10)

Ora termos com ldquoo belordquo ldquoo bomrdquo e ldquoo justordquo exemplificam as virtudes

que encontramos em diaacutelogos relacionados agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees

(δίκαιος Eut12d HiacuteppMa287c Goacuterg483d 492a Prot329c-330c Mecircn73e

30 Ryle denomina estes predicados de ldquoconceitos formaisrdquo e enfatiza o fato de que eles se

diferenciam natildeo apenas pela sua universalidade de aplicaccedilatildeo mas tambem pelo seu tipo loacutegico Pois um conceito deste tipo natildeo eacute ldquoespeciacutefico a um toacutepico mas integral a todos os toacutepicos de discurso (subject-matter) (Ryle 1965 p115) Posteriormente Ryle se refere a estes conceitos como ldquosincategoremaacuteticosrdquo (Ryle 165 p131) Gill e Turnbull por sua vez chamam as Formas correspondentes a estes predicados de ldquoFormas estruturaisrdquo (Gill 2012 p29) e (Turnbull 1998 p19) Estes autores parecem estar corretos em identificar a universalidade de aplicaccedilatildeo destes termos como seu caraacuteter distintivo Curiosamente os comentaacuterios mais antigos identificam este grupo de Formas como correspondente a termos matemaacuteticos mas este natildeo parece ser o ponto em questatildeo uma vez que ldquorepousordquo e ldquomovimentordquo estatildeo incluidos na lista

31 No Feacutedro estes mesmo predicados satildeo relacionados ao tipo de argumentaccedilatildeo desenvolvida por Zenatildeo Neste diaacutelogo Soacutecrates afirma que o Palamendes de Eleacuteia (Zenatildeo) eacute capaz de fazer sua audiecircncia crer que as coisas satildeo simultaneamente semelhantes e dessemelhantes unas e muacuteltiplas em repouso e em movimento (Feacutedr261d)

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καλός Liacutes216d HiacuteppMa 287d-304e ἀγαθός Liacutes216d HiacuteppMa287c

Mecircn87d Goacuterg495a Prot352c) Como vimos estes diaacutelogos conteacutem

argumentos em que expressotildees como ldquoo Belo em sirdquo e ldquoa Forma do Belordquo satildeo

entendidas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder causal

exercido por estas entidades nos levou ainda a reconhecer a independecircncia e

prioridade ontoloacutegica inerente a elas e a concluir que a busca por definiccedilotildees dos

diaacutelogos iniciais deve ser entendida desde sempre como uma busca pela Forma

das virtudes e termos morais ali mencionados Nos diaacutelogos da fase meacutedia

Formas correspondentes a virtudes continuam a receber papel proeminente como

por exemplo no Feacutedon (65d 70d-71e 76d 100c-d) no Banquete (210e-211d) e

na Repuacuteblica (479a-b) Sendo assim ao aceitar a existecircncia de Formas

correspondentes a virtudes valores morais e valores eacuteticos Soacutecrates natildeo estaacute

fazendo nada mais do que manter-se coerente com aquilo que um leitor dos

diaacutelogos platocircnicos esperaria

O segundo grupo de Formas a despertar o interesse de Parmecircnides

corresponde ao que chamariacuteamos de termos sortais ldquohomemrdquo ldquofogordquo e ldquoaacuteguardquo32

As perguntas anteriores mencionam Formas correspondentes a adjetivos

predicados incompletos ou caracteriacutesticas das coisas Parmecircnides agora

questiona Soacutecrates acerca da existecircncia de Formas correspondentes a substantivos

ou expressotildees nominais usadas para designar tipos ou classes de coisas Soacutecrates

natildeo se mostra seguro acerca da existecircncia destas Formas mas tambeacutem natildeo nega

que elas possam existir afirmando apenas ter ficado muitas vezes em aporia

acerca deste assunto (130c1-4)

A inseguranccedila de Soacutecrates acerca da existecircncia de Formas correspondentes

a termos sortais eacute facilmente compreendida se levarmos em conta que nos

diaacutelogos anteriores ao Parmecircnides as Formas satildeo apresentadas sobretudo como

uma tentativa de solucionar problemas relacionados com a copresenccedila de opostos

nas coisas sensiacuteveis No primeiro grupo de diaacutelogos Soacutecrates sai em busca de

uma definiccedilatildeo precisa para termos morais por perceber que casos exemplares de

32 Estritamente falando ldquoaacuteguardquo e ldquofogordquo natildeo satildeo termos sortais pelo fato de natildeo poderem receber

adjetivos numeacutericos Assim ldquocubo de gelordquo eacute um termo sortal porque podemos falar ldquotrecircs cubos de gelordquo poreacutem o mesmo natildeo acontece com ldquoaacuteguardquo e ldquofogordquo A caracteriacutestica fundamental que une este grupo de termos eacute portanto o fato de constituirem elementos com funccedilatildeo nominal aos quais adjetivos e predicados satildeo atribuidos e que satildeo oferecidos como resposta a questotildees do tipo ldquoo que eacute istordquo No Fileacutebo (15a) Soacutecrates menciona uma Forma de Homem e no Timeu (51b) uma Forma do Fogo eacute mencionada

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demonstraccedilatildeo de uma determinada virtude podem aparecer sob certos aspectos ou

determinadas condiccedilotildees como um exemplo do viacutecio exatamente oposto Assim

ldquodevolver a cada um o que lhe eacute proacutepriordquo (RepI 331c) pode ser considerado um

exemplo de justiccedila No entanto no caso de algueacutem tomado pela loucura exigir a

devoluccedilatildeo de suas armas a mesma definiccedilatildeo estaraacute apresentando uma caso

daquilo que eacute o oposto da justiccedila Do mesmo modo levar a julgamento aquele que

comete um crime em mateacuteria religiosa parece fazer parte daquilo que eacute a piedade

poreacutem caso esta pessoa seja seu proacuteprio pai e o julgamento venha a levaacute-lo a

morte o mesmo tipo de ato teraacute como resultado um parriciacutedio o pior e mais iacutempio

dos casos de derramamento de sangue

Durante a fase meacutedia o problema da co-presenccedila de opostos continua a

receber um papel de destaque Em uma passagem da Repuacuteblica VII (523a-524e) a

busca por uma soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila de opostos eacute apresentada

por Soacutecrates como a proacutepria razatildeo para o surgimento da Teoria das Ideias

Segundo Soacutecrates eacute o fato de um mesmo dedo parecer simultaneamente grande e

pequeno que nos leva a formular questotildees do tipo ldquoo que eacute o granderdquo ldquoo que eacute o

pequenordquo e a concluir que o Grande e o Pequeno devem ser afirmados como um

tipo de coisa separada dos objetos sensiacuteveis Contudo o dedo enquanto dedo

nunca se apresenta como o contraacuterio de si mesmo e a mente da maioria dos

homens natildeo eacute levada a formular a pergunta o que eacute o dedo E como

consequecircncia a mente da maioria dos homens tambeacutem natildeo eacute levada a postular

uma Forma correspondente ao termo sortal ldquodedordquo

Esta passagem da Repuacuteblica VII assim como nossa passagem do

Parmecircnides natildeo nega a existecircncia de Formas correspondentes a termos como

ldquodedordquo e ldquohomemrdquo De fato no livro X da Repuacuteblica o proacuteprio Soacutecrates afirma

ter o haacutebito de assumir a existecircncia de uma Forma uacutenica para cada conjunto de

coisas muacuteltiplas agraves quais chamamos por um mesmo nome (εἶδος γάρ πού τι ἓν

ἕκαστον εἰώθαmicroεν τίθεσθαι περὶ ἕκαστα τὰ πολλά οἷς ταὐτὸν ὄνοmicroα ἐπιφέροmicroεν

Rep596a6-7) Igualmente em uma passagem sobre do ldquoprodutor de nomesrdquo

(ὀνοmicroατουργός) do Craacutetilo (389a-390a) o mesmo princiacutepio segundo o qual

haveria uma Forma para cada palavra parece estar em jogo No proacuteprio

Parmecircnides Soacutecrates reconhece a possibilidade de uma aceitaccedilatildeo bastante

abrangente para o contigente de Formas afirmando jaacute ter considerado a

possibilidade do princiacutepio de postulaccedilatildeo das Formas ser ldquoo mesmo com relaccedilatildeo a

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todas as coisasrdquo (περὶ πάντων ταὐτόν 130d5-6) A proacutepria observaccedilatildeo de

Parmenides que conclui a passagem sobre a extensatildeo do conjunto de Formas

parece apontar na mesma direccedilatildeo ao prever que nenhuma destas coisas seraacute

desprezada por Soacutecrates assim que a filosofia dele se apoderar completamente

(130e1-4)

Sendo assim a duacutevida demonstrada pelo jovem Soacutecrates acerca da

existecircncia de Formas correspondentes a termos sortais deve ser entendida em

paralelo com a passagem sobre o dedo na Repuacuteblica como um testemunho de

Platatildeo acerca da origem da Teoria das Ideias Ao que tudo indica as Formas foram

primeiro propostas como uma tentativa de soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos tanto no caso dos predicados incompletos e propriedades relacionais

dos objetos sensiacuteveis quanto no caso das virtudes e valores morais que se

negavam a ser capturados por uma soacute definiccedilatildeo As falas de Soacutecrates e

Parmecircnides em 130d5-e4 nos levam a crer que na eacutepoca de composiccedilatildeo do

Parmecircnides o nuacutemero de Formas admitidas jaacute havia sido expandido o suficiente

para incluir uma Forma correspondente a cada conjunto de muacuteltiplas coisas que

chamamos pelo mesmo nome confirmando assim a impressatildeo que nos chega dos

diaacutelogos da fase meacutedia

Em oposiccedilatildeo a estas admissotildees Soacutecrates se mostra definitivamente contra

a existecircncia de Formas correspondentes a um quarto grupo de termos enunciado

por Parmecircnides constituiacutedo por cabelo lama e sujeira (θρὶξ καὶ πηλὸς καὶ ῥύπος

) e afirma que acreditar na existecircncia destas Formas seria por demais absurdo

(130d4) Mas por que Soacutecrates se negaria admitir a existecircncia destas Formas

A explicaccedilatildeo mais comumente apresentada pelos comentadores baseia-se

no fato de que coisas como cabelo lama e sujeira seriam indignas e ignoacutebeis

demais para serem harmonizadas com a grandiloquecircncia das descriccedilotildees acerca da

natureza divina das Formas encontradas em diaacutelogos como Banquete e

Repuacuteblica33 De fato esta interpretaccedilatildeo parece estar sugerida pela fala de

Parmecircnides que caracteriza estas coisas como ridiacuteculas (γελοῖα) despreziacuteveis

(ἀτιmicroότατόν) e vis (φαυλότατον) No entanto podemos atribuir um significado

33 El Murr por exemplo afirma ldquoSe Soacutecrates natildeo pode admitir que existe uma Forma de Lama eacute

evidentemente porque ele confunde a questatildeo do valor e a questatildeo da essecircncia porque ele pensa que uma Forma da lama coisa de pouco valor seria uma Forma de pouco valorrdquo (El Murr 2010 p145) Para outros autores que defendem esta mesma linha de raciociacutenio (cf Allan 1997 p124) (cf Cornford 1951 p83) (cf Miller 1986 p 45-46) (cf Turnbull 1998

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mais profundo para a recusa de Soacutecrates caso estejamos dispostos a reconhecer

nestes exemplos uma antecipaccedilatildeo dos problemas vinculados agrave relaccedilatildeo partetodo

que encontraremos de maneira recorrente no restante das criacuteticas de Parmecircnides

agrave hipoacutetese das Formas

Soacutecrates havia se mostrado relutante poreacutem natildeo havia negado a existecircncia

de uma Forma de Homem Parmecircnides deseja saber agora se precisamos de uma

Forma de Cabelo uma vez que tenhamos admitido uma Forma de Homem Um

homem eacute um todo composto por diversas partes como ressaltado por Soacutecrates

que usa a si proacuteprio como exemplo (129c4-d1) Seria tambeacutem a Forma do

Homem um todo composto por partes Se sim seriam entatildeo as Formas do

Cabelo e do Dedo partes da Forma do Homem Mas e estas Formas seriam elas

tambeacutem entidades compostas cujas partes corresponderiam aos componentes do

dedo e do cabelo sensiacuteveis Se natildeo entatildeo precisariacuteamos de uma Forma separada

para cada parte do corpo humano E para as partes destas partes teriacuteamos uma

Forma correspondente a cada componente do corpo humano ateacute chegarmos a um

elemento sensiacutevel completamente indivisiacutevel Por outro lado seria necessaacuterio

uma Forma de Lama caso exista uma Forma para os dois elementos a partir dos

quais a lama eacute composta terra e de aacutegua (cfTeet147c) Ou seria a lama sensiacutevel

apenas o resultado da presenccedila destas duas Formas em um uacutenico objeto Por fim

teria a sujeira uma natureza proacutepria um caraacuteter determinado Ou seria a sujeira

apenas um agregado de pequenas partes de outras coisas como terra e cabelo

cada uma delas correspondendo a uma Forma especiacutefica

As questotildees de Parmecircnides acerca da extensatildeo do conjunto de Formas natildeo

chegam a constituir propriamente uma tentativa de refutaccedilatildeo da teoria apresentada

por Soacutecrates Contudo esta primeira bateria de perguntas deixa claro ao leitor que

a hipoacutetese das Formas estaacute sujeita a criacuteticas como de fato estaacute sujeita toda e

qualquer teoria De um ponto de vista dramaacutetico estas perguntas realizam a

transiccedilatildeo entre a apresentaccedilatildeo da Teoria das Ideias e a refutaccedilatildeo desta teoria que

se daraacute no restante do diaacutelogo Atraveacutes desta pequena passagem Platatildeo apresenta

a seus leitores ateacute entatildeo acostumados a ver Soacutecrates como protagonista e

condutor principal da argumentaccedilatildeo uma clara inversatildeo de papeacuteis No restante do

Parmecircnides ao inveacutes de encontramos o Soacutecrates confiante e eloquente da Feacutedon e

p22-23)

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do Banquete ou o Soacutecrates irocircnico e refutador do Ecircutifron e do Laacuteques

encontraremos um Soacutecrates receoso e reticente preza dos ataques de Parmecircnides

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423 O dilema da Participaccedilatildeo

Parmecircnides inicia sua efetiva reduccedilatildeo ao absurdo da Teoria das Ideias por

meio de uma reapresentaccedilatildeo sumaacuteria da posiccedilatildeo socraacutetica

ldquoMas dize-me o seguinte34 parece-te como dizes haver certas Formas em tendo participaccedilatildeo nas quais essas outras coisas aqui recebem suas denominaccedilotildees Por exemplo se tecircm participaccedilatildeo na Semelhanccedila as coisas se tornam semelhantes se na Grandeza grandes se no Belo e na Justiccedila justas e belas Perfeitamente disse Soacutecratesrdquo τόδε δ οὖν microοι εἰπέ δοκεῖ σοι ὡς φῄς εἶναι εἴδη ἄττα ὧν τάδε τὰ ἄλλα microεταλαmicroβάνοντα τὰς ἐπωνυmicroίας αὐτῶν ἴσχειν οἷον ὁmicroοιότητος microὲν microεταλαβόντα ὅmicroοια microεγέθους δὲ microεγάλα κάλλους δὲ καὶ δικαιοσύνης δίκαιά τε καὶ καλὰ γίγνεσθαι Πάνυ γε φάναι τὸν Σωκράτη (130e4-131a1)

Nesta passagem Parmecircnides reduz a posiccedilatildeo socraacutetica a trecircs proposiccedilotildees

fundamentais 1) existem Formas 2) os objetos sensiacuteveis (τάδε τὰ ἄλλα)

participam nestas Formas e 3) devido a esta de participaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis

recebem os nomes pelos quais satildeo chamados A tese segundo a qual as coisas

recebem suas denominaccedilotildees devido ao fato de participarem nas Formas

conhecida como tese da eponiacutemia (ἐπωνυmicroία) natildeo havia sido mencionada por

Soacutecrates No entanto devemos entendecirc-la como um mero corolaacuterio linguiacutestico da

hipoacutetese de que as Formas satildeo causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis As

coisas recebem suas denominaccedilotildees pelo fato de apresentarem as caracteriacutesticas e

propriedades que apresentam Como as Formas satildeo as causas destas propriedades

Parmecircnides deduz corretamente que as coisas recebem suas denominaccedilotildees em

funccedilatildeo da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que mantecircm com as Formas 35

Como sabemos de acordo com a Teoria das Ideias o fato de que Simmias

eacute grande pressupotildee a existecircncia de duas entidades ontologicamente distintas

34 Platatildeo marca de maneira muito clara o iniacutecio de uma nova seacuterie de argumento pela frase ldquoτόδε δ οὖν microοι εἰπέrdquo Do mesmo modo o iniacutecio da passagem acerca da extensatildeo do conjunto de Formas havia sido marcado pelas palavras ldquoκαί microοι εἰπέrdquo (130b1) e posteriormente a introduccedilatildeo do argumento do terceiro homem seraacute marcado pela expressatildeo ldquoπρὸς τόδε πῶς ἔχειςrdquo (131e8) 35 Como observa Cornford (Cornford 1951 p84 n2) esta fala de Parmecircnides traz uma

referecircncia bastante direta agrave passagem do Feacutedon em que Soacutecrates propotildee sua teoria da participaccedilatildeo como uma soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila de opostos em Simmias Compare ldquoὧν τάδε τὰ ἄλλα microεταλαmicroβάνοντα τὰς ἐπωνυmicroίας αὐτῶν ἴσχεινrdquo (Parm130e5-6) com ldquoκαὶ τούτων τἆλλα microεταλαmicroβάνοντα αὐτῶν τούτων τὴν ἐπωνυmicroίαν ἴσχεινrdquo (Feacuted102b1-2)

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Simmias e a Forma da Grandeza Aleacutem disso como Soacutecrates jaacute havia antecipado

pelo uso da expressatildeo αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά e como o proacuteprio Parmecircnides jaacute havia

concluiacutedo em 130b3-4 o fato de que Simmias eacute grande pressupotildee ainda a

existecircncia da propriedade imanente grandeza-em-Simmias (Parm130b4 αὐτὴ

ὁmicroοιότης χωρὶς ἧς ἡmicroεῖς ὁmicroοιότητος ἔχοmicroεν Feacuted102d7 τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος

Feacuted103b5 οὔτε τὸ ἐν ἡmicroῖν [ἐναντίον] οὔτε τὸ ἐν τῇ φύσει) Diferente da Forma

que lhe daacute origem uma propriedade imanente eacute ontologicamente dependente do

indiviacuteduo na qual estaacute localizada Afinal sua existecircncia estaacute intimamente

conectada com a existecircncia do indiviacuteduo que a possui e podemos considerar que

caso este indiviacuteduo deixe de ser grande de todos os modos possiacuteveis a

propriedade imanente da grandeza que este indiviacuteduo apresentava cessaraacute de

existir

Podemos nos perguntar agora como estas trecircs entidades estatildeo

relacionadas Soacutecrates havia sugerido que os objetos sensiacuteveis participam das

Formas e como resultado desta participaccedilatildeo adquirem suas diversas

propriedade36 No entanto o poder causal exercido pelas Formas natildeo pode ser

considerado por si soacute suficientemente elucidativo Haacute de haver um modo

especiacutefico de relaccedilatildeo entre estas entidades que explique como as Formas podem

ser responsaacuteveis pelo surgimento das propriedades imanentes nos objetos

sensiacuteveis Parmecircnides deseja saber portanto como devemos entender a relaccedilatildeo de

participaccedilatildeo de modo a tornarmos teoricamente viaacutevel a hipoacutetese de que as coisas

sensiacuteveis adquirem suas propriedades imanentes por causa das Formas

No Feacutedon Soacutecrates havia se recusado a explicitar a natureza desta relaccedilatildeo

oferecendo de maneira inconclusiva os termos ldquopresenccedilardquo e ldquocomunhatildeordquo como

modos possiacuteveis de descrevecirc-la

ldquoNada aleacutem do Belo torna esta coisa bela seja pela sua presenccedila (παρουσία) seja

36 Assim no Parmecircnides (129a4-5) certas coisas ldquotendo participaccedilatildeo na Semelhanccedila se tornam

semelhantesrdquo (τὰ microὲν τῆς ὁmicroοιότητος microεταλαmicroβάνοντα ὅmicroοια γίγνεσθαι) isto eacute passam a possuir a propriedade imanente da semelhanccedila ldquopor causa disso e na medida em que nela tenham participaccedilatildeordquo (ταύτῃ τε καὶ κατὰ τοσοῦτον ὅσον ἂν microεταλαmicroβάνῃ) E no Feacutedon (100c4-6) ldquoSe existe alguma coisa bela aleacutem do Belo em si a uacutenica razatildeo pela qual esta coisa eacute bela eacute porque ela participa da Belo em si E digo o mesmo com relaccedilatildeo a todo o restordquo (εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν οὐδὲ δι ἓν ἄλλο καλὸν εἶναι ἢ διότι microετέχει ἐκείνου τοῦ καλοῦ καὶ πάντα δὴ οὕτως λέγω) Nestas passagens Soacutecrates deixa claro por meio do emprego do dativo instrumental da conjunccedilatildeo διότι e da preposiccedilatildeo κατά + acusativo que eacute unicamente pela participaccedilatildeo nas Formas que as coisas adquirem as diversas propriedades que possuem

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pela comunhatildeo (κοινωνία) ou como quer que ele [o Belo] venha a se adicionar agraves coisas (ὅπῃ δὴ καὶ ὅπως προσγενοmicroένη) pois natildeo irei insistir nisto apenas que eacute pelo Belo que todas as coisas belas se tornam belasrdquo οὐκ ἄλλο τι ποιεῖ αὐτὸ καλὸν ἢ ἡ ἐκείνου τοῦ καλοῦ εἴτε παρουσία εἴτε κοινωνία εἴτε ὅπῃ δὴ καὶ ὅπως προσγενοmicroένη οὐ γὰρ ἔτι τοῦτο διισχυρίζοmicroαι ἀλλ ὅτι τῷ καλῷ πάντα τὰ καλὰ [γίγνεται] καλά (Fed100d4-7)

No Parmecircnides apenas duas alternativas satildeo inicialmente apresentadas

ou bem 1) cada coisa que participa de uma Forma participa na Forma inteira ou

bem 2) cada coisa que participa de uma Forma participa em uma parte da Forma

De acordo com 1) a propriedade imanente que um objeto sensiacutevel adquire como

consequecircncia da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo equivale agrave totalidade da Forma De

acordo com 2) esta propriedade imanente equivale a apenas uma parte da Forma

Soacutecrates aceita o dilema formulado por Parmecircnides e concorda ainda que estas

duas opccedilotildees satildeo exaustivas

ldquoNatildeo eacute verdade que cada uma das coisas que tecircm participaccedilatildeo ou bem tem participaccedilatildeo na Forma inteira ou bem em uma parte dela Ou haveria uma outra participaccedilatildeo aleacutem dessas Como poderia haver disse [Soacutecrates]rdquo Οὐκοῦν ἤτοι ὅλου τοῦ εἴδους ἢ microέρους ἕκαστον τὸ microεταλαmicroβάνον microεταλαmicroβάνει ἢ ἄλλη τις ἂν microετάληψις χωρὶς τούτων γένοιτο Καὶ πῶς ἄν εἶπεν (131a4-7)

Em sua forma o dilema anuncia uma reduccedilatildeo ao absurdo 1) Se as coisas

participam das Formas entatildeo elas participam no todo ou em parte de uma Forma

Contudo 2) natildeo pode haver participaccedilatildeo no todo das Formas nem em partes das

Formas Logo 3) natildeo haacute participaccedilatildeo isto eacute as coisas natildeo participam das Formas

A validade desta reduccedilatildeo depende diretamente do reconhecimento de que as duas

opccedilotildees previstas na premissa maior do argumento esgotam todas as possibilidades

de se pensar a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis Por isso

Parmecircnides pergunta a Soacutecrates se poderia haver algum outro tipo de participaccedilatildeo

aleacutem da participaccedilatildeo no todo ou em parte de uma Forma Neste primeiro

momento Soacutecrates concorda que natildeo poderia haver reconhecendo a completude

da premissa maior do argumento de Parmecircnides e se comprometendo

antecipadamente com a validade da reduccedilatildeo37

37 Posteriormente confrontado pelos paradoxos resultantes do dilema da participaccedilatildeo Soacutecrates

iraacute propor maneiras de entender a relaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que extrapolam as opccedilotildees previstas neste dilema inicial Contudo como veremos estas propostas tampouco se mostraratildeo imunes aos ataques do saacutebio eleata

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424 A estrutura do dilema de participaccedilatildeo

Eacute constantemente apontado pelos comentadores o fato de que o dilema da

participaccedilatildeo possuiria uma estrutura assimeacutetrica Enquanto o primeiro ramo do

dilema de acordo com o qual as coisas participam no todo de uma Forma levaria

a uma impossibilidade loacutegica a argumentaccedilatildeo que contradiz o segundo ramo do

dilema seria meramente ad hominen e resultaria em apenas um par de

contradiccedilotildees especiacuteficas restritas a um determinado conjunto de Formas Esta

interpretaccedilatildeo foi proposta pela primeira vez por Reginald Allen

ldquoSoacutecrates rejeita ambas disjunccedilotildees do Dilema da Participaccedilatildeo mas a modalidade destas disjunccedilotildees eacute bastante diferente A primeira disjunccedilatildeo dada a pluralidade de participantes envolve uma absurdidade loacutegica (hellip) A segunda disjunccedilatildeo seja verdadeira ou como Soacutecrates acredita falsa natildeo envolve uma absurdidade loacutegica (hellip) Portanto se natildeo haacute participaccedilatildeo no todo nem na parte da Ideia entatildeo natildeo haacute participaccedilatildeo mas se haacute participaccedilatildeo ela natildeo pode ser no todo mas deve ser na parte de uma Ideiardquo (Allen 1997 p133)

Apesar da aceitaccedilatildeo geral que a interpretaccedilatildeo de Allen tem recebido38 sua

leitura natildeo deve ser assumida de antematildeo Em primeiro lugar porque levanta o

seguinte problema interpretativo se o segundo ramo do dilema apresenta uma

opccedilatildeo logicamente viaacutevel por que Soacutecrates natildeo se apega a esta opccedilatildeo procurando

apresentar maneiras plausiacuteveis de entender as propriedades imanentes como partes

das Formas Ao contraacuterio do que seria esperado caso a participaccedilatildeo em partes das

Formas fosse a uacutenica opccedilatildeo logicamente possiacutevel Soacutecrates procura manter

durante toda seacuterie de argumentos a unidade das Formas se mostrando

decididamente contra a hipoacutetese de que elas possam ser divididas

Aleacutem disso a leitura assimeacutetrica para o dilema da participaccedilatildeo eacute

responsaacutevel por um problema interpretativo ainda mais fundamental que ameaccedila

a proacutepria relevacircncia das criacuteticas de Parmecircnides e como consequecircncia a unidade

temaacutetica do diaacutelogo Allen considera o segundo ramo do dilema como uma opccedilatildeo

logicamente viaacutevel por entender que apenas as Formas do Grande do Pequeno e

do Igual estatildeo sujeitas a paradoxos caso optemos pela participaccedilatildeo em partes das

38 Brisson (Brisson 2011 p37 n76) Curd (Curd 1986 p128) e Harte (Harte 2002 p66-67) dentre outros assumem a assimetria do dilema adotando a interpretaccedilatildeo proposta por Allen

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Formas Contudo os argumentos sobre estas trecircs Formas natildeo constituem o passo

decisivo na refutaccedilatildeo deste ramo do dilema Na verdade estes paradoxos apenas

ilustram algumas das consequecircncias indesejaacuteveis decorrentes da efetiva divisatildeo

das Formas que jaacute havia sido admitida por Soacutecrates em 131c9-10 Esta mudanccedila

de foco acaba impedindo Allen de reconhecer que eacute a proacutepria divisatildeo das Formas

o que leva agrave rejeiccedilatildeo da hipoacutetese da participaccedilatildeo em partes das Formas

Ao contraacuterio do que Allen acredita ambos os braccedilos do dilema apresentam

argumentos contra uma mesma tese cuja importacircncia eacute fundamental para a

validade da Teoria das Ideias a tese de que as Formas satildeo entidades uacutenicas

(singulares e indivisiacuteveis) e portanto essencialmente distintas dos objetos

sensiacuteveis

Em toda sua argumentaccedilatildeo Parmecircnides utiliza o adjetivo ldquoumrdquo de maneira

ambiacutegua ora para designar a singularidade (unidade numeacuterica) ora para designar

a uniformidade (indivisibilidade) de uma Forma O dilema da participaccedilatildeo

pretende demonstrar como estes dois sentidos de unidade natildeo podem ser

atribuiacutedos simultaneamente agraves Formas caso estas entidades estejam submetidas

agrave relaccedilatildeo de participaccedilatildeo Assim no primeiro ramo do dilema a integridade das

Formas natildeo eacute posta em questatildeo mas a sua singularidade eacute comprometida Pois

estando presentes por inteiro em cada um dos seus participantes as Formas se

multiplicariam e passariam a existir em nuacutemero igual ao das coisas que delas

participam Por outro lado no segundo ramo do dilema natildeo eacute mais a unidade

numeacuterica das Formas que eacute posta em questatildeo mas a sua indivisibilidade Pois

uma vez divididas pelos seus participantes as Formas passariam a ter tantas partes

quantos objetos que delas participam

Esta estrateacutegia estabelecida pelo dilema da participaccedilatildeo organiza todo o

conjunto de criacuteticas apresentadas por Parmecircnides na primeira parte do diaacutelogo E

eacute justamente isso que a leitura assimeacutetrica de Allen nos impede de reconhecer As

diversas criacuteticas apresentadas por Parmecircnides constituem passos distintos de um

mesmo argumento cujo uacutenico objetivo eacute demonstrar a impossibilidade de se

conceber as Formas como unidades perfeitas isto eacute singulares e indivisiacuteveis

O dilema da participaccedilatildeo reproduz em sua forma a estrateacutegia geral das

criacuteticas de Parmecircnides que pretendem demonstrar a incompatibilidade entre duas

teses centrais da Teoria das Ideias 1) a tese de que as Formas satildeo as causas das

propriedades dos objetos sensiacuteveis e 2) a tese de que as Formas satildeo entidades

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uacutenicas singulares e indivisiacuteveis Se observarmos a conclusatildeo de cada um dos

argumentos podemos ver que Parmecircnides insiste a todo instante na

impossibilidade de se manter simultaneamente estas duas afirmaccedilotildees

1) Se a participaccedilatildeo se daacute na totalidade da Forma entatildeo as Formas

satildeo indivisiacuteveis poreacutem natildeo satildeo numericamente uacutenicas (132b1-2

Ἓν ἄρα ὂν καὶ ταὐτὸν ἐν πολλοῖς καὶ χωρὶς οὖσιν ὅλον ἅmicroα

ἐνέσται καὶ οὕτως αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς ἂν εἴη)

2) Se a participaccedilatildeo se daacute em uma parte da Forma entatildeo as Formas

satildeo numericamente uacutenicas poreacutem natildeo satildeo indivisiacuteveis (132c9-

10Ἦ οὖν ἐθελήσεις ὦ Σώκρατες φάναι τὸ ἓν εἶδος ἡmicroῖν τῇ

ἀληθείᾳ microερίζεσθαι καὶ ἔτι ἓν ἔσται

2) Perceber uma Forma uacutenica sobre uma multiplicidade de objetos

sensiacuteveis implica em um regresso ao infinito e o que seria uma

Forma uacutenica mostra-se ldquoilimitada em quantidaderdquo (132b1-2καὶ

οὐκέτι δὴ ἓν ἕκαστόν σοι τῶν εἰδῶν ἔσται ἀλλὰ ἄπειρα τὸ

πλῆθος)

3) Sustentar que cada Forma eacute um ldquopensamentordquo (νόηmicroα) permite que

ela seja tanto uacutenica quanto indivisiacutevel Poreacutem neste caso a proacutepria

noccedilatildeo de participaccedilatildeo se mostra absurda (132c9-11 οὐκ ἀνάγκῃ ᾗ

τἆλλα φῂς τῶν εἰδῶν microετέχειν ἢ δοκεῖ σοι ἐκ νοηmicroάτων ἕκαστον

εἶναι καὶ πάντα νοεῖν ἢ νοήmicroατα ὄντα ἀνόητα εἶναι)

4) Sustentar que a Formas satildeo ldquoparadigmasrdquo (παραδείγmicroατα) garante

sua indivisibilidade poreacutem o regresso ao infinito resurge e as

Formas passam novamente a se multiplicar indefinidamente

(133a1-3 καὶ οὐδέποτε παύσεται ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον ἐὰν

τὸ εἶδος τῷ ἑαυτοῦ microετέχοντι ὅmicroοιον γίγνηται)

Como podemos perceber a duplicidade de sentido que o termo ἓν recebe

nos argumentos de Parmecircnides equivale agrave duplicidade de sentido que o termo

πολλά adquire durante a argumentaccedilatildeo de Zenatildeo De um ponto de vista dramaacutetico

a formulaccedilatildeo do dilema da participaccedilatildeo representa o momento em que

Parmecircnides aceitando o desafio lanccedilado por Soacutecrates inicia sua demonstraccedilatildeo de

que as Formas natildeo estatildeo aptas a manter as caracteriacutesticas ontoloacutegicas que as

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distinguem dos objetos sensiacuteveis e as tornam imunes ao paradoxo de Zenatildeo Caso

Soacutecrates natildeo se mostre capaz de articular uma explicaccedilatildeo para a hipoacutetese da

participaccedilatildeo que salve ao mesmo tempo a singularidade e a indivisibilidade das

Formas Parmecircnides teraacute demonstrado que as Formas natildeo constituem uma soluccedilatildeo

teoricamente viaacutevel para o paradoxo de abertura do diaacutelogo Afinal privadas de

sua singularidade e uniformidade caracteriacutesticas as Formas estaratildeo elas tambeacutem

sujeitas aos paradoxos de Zenatildeo O tema da unidade das Formas eacute portanto o

elemento fundamental de ligaccedilatildeo entre as criacuteticas de Parmecircnides e os argumentos

anteriormente desenvolvidos por Soacutecrates e Zenatildeo

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425 Participaccedilatildeo no todo da Forma

No primeiro ramo do dilema proposto por Parmecircnides os objetos

sensiacuteveis participam no todo de uma Forma (ὅλου τοῦ εἴδους) Como

consequecircncia as coisas recebem como sua propriedade imanente a totalidade de

uma Forma que por sua vez passa a estar presente (ἐν ἐνεῖναι) inteira em cada

um de seus participantes

ldquoEntatildeo parece-te que a Forma inteira sendo uma39 estaacute em cada uma das muacuteltiplas coisas Ou como seria ldquoMas o que impede Parmecircnides [que ela esteja que ela seja uma]40 Entatildeo sendo uma e a mesma estaraacute inteira simultaneamente em coisas que satildeo muacuteltiplas e separadas e assim ela estaria separada de si mesma41rdquo Πότερον οὖν δοκεῖ σοι ὅλον τὸ εἶδος ἐν ἑκάστῳ εἶναι τῶν πολλῶν ἓν ὄν ἢ πῶς Τί γὰρ κωλύει φάναι τὸν Σωκράτη ὦ Παρmicroενίδη [ἓν εἶναι ἐνεῖναι ] Ἓν ἄρα ὂν καὶ ταὐτὸν ἐν πολλοῖς καὶ χωρὶς οὖσιν ὅλον ἅmicroα ἐνέσται καὶ οὕτως αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς ἂν εἴη (131a8-b2)

Com este breve argumento Parmecircnides pretende demonstrar que para que

possam estar presentes por inteiro em uma multiplicidade de coisas distintas as

Formas precisam tambeacutem ser muacuteltiplas Apesar de extremamente conciso o

argumento pode ser entendido da seguinte maneira De acordo com a premissa de

participaccedilatildeo no todo de uma Forma se os objetos x y e z participam da Forma F

a Forma F estaacute presente por inteiro em x y e z Ora as variaacuteveis x y e z

representam objetos sensiacuteveis distintos ldquocoisas muacuteltiplas e separadasrdquo (πολλοῖς

καὶ χωρὶς) Sendo assim para que possa estar presente como um todo (ὅλον τὸ

39 ldquoSendo umardquo (ἓν ὄν) significa aqui ldquosendo numericamente uacutenicardquo Este sentido eacute mais

claramente explicitado em 131b1 pela expressatildeo ἓν ὂν καὶ ταὐτὸν ὅλον em que a qualificaccedilatildeo καὶ ταὐτὸν eacute acrescentada para destacar que segundo a hipoacutetese adotada uma mesma Forma uacutenica deve estar por inteiro em cada um dos muacuteltiplos participantes

40 A maior parte dos tradutores modernos leem a uacuteltima claacuteusula desta sentenccedila como ἐνεῖναι (que ela esteja) corrigindo os manuscritos antigos nos quais consta ἓν εἶναι (que seja uma) A hipoacutetese que jaacute aparece em Proacuteclus e foi ressucitada por Schleiermacher parece fazer sentido Afinal sem esta correccedilatildeo Soacutecrates estaria mudando o foco da discussatildeo e antecipando de maneira surpreendente a conclusatildeo do argumento de Parmecircnides A questatildeo contudo eacute irrelevante para validade de argumentaccedilatildeo aqui proposta uma vez que segundo nossa interpretaccedilatildeo Parmecircnides pretende demonstrar justamente a contradiccedilatildeo entre a hipoacutetese da presenccedila da Forma nas coisas (ἐνεῖναι) e a hipoacutetese de sua unidade (ἓν εἶναι)

41 ldquoSeparada de si mesmardquo (αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς) Uma vez que esta expressatildeo eacute apresentada em contraste com ἓν ὂν καὶ ταὐτὸν devemos enterder que ldquoseparar-se de si mesmordquo significa ldquomultiplicar-serdquo ldquotornar-se (numericamente) muacuteltiplordquo em oposiccedilatildeo a ldquomanter-se (numericamente) singularrdquo ou ldquoser um e o mesmordquo (ἓν ὂν καὶ ταὐτὸν)

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εἶδος) em cada uma destas coisas a Forma F deve ser ela mesma separada de si

mesma isto eacute muacuteltipla Portanto caso optemos pelo primeiro ramo do dilema da

participaccedilatildeo natildeo podemos falar de uma uacutenica Forma F pois o que temos eacute uma

diversidade de Formas Fx Fy e Fz cada uma das quais presente em um dos

objetos sensiacuteveis que participam de F

Eacute preciso notar que este argumento pressupotildee a participaccedilatildeo simultacircnea

de uma multiplicidade de coisas em uma mesma Forma Nenhuma contradiccedilatildeo

surgiria caso Soacutecrates estivesse disposto a reconhecer que a participaccedilatildeo se daacute de

maneira exclusiva com cada Forma tendo apenas um participante por vez Assim

Soacutecrates poderia participar da Forma do Homem apenas no caso de que Platatildeo

natildeo participasse no mesmo momento desta Forma Parmecircnides parece

reconhecer este fato e acrescenta a palavra ἅmicroα (simultaneamente) em sua

conclusatildeo do argumento Soacutecrates no entanto sequer considera a hipoacutetese de um

modo de participaccedilatildeo exclusivo Afinal a adoccedilatildeo de tal hipoacutetese significaria

privar as Formas de seu papel de causa universal o que tornaria a proacutepria relaccedilatildeo

de participaccedilatildeo irrelevante como explicaccedilatildeo para a diversidade de fenocircmenos do

mundo sensiacutevel

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426 Participaccedilatildeo em partes da Forma

Na tentativa de salvar a singularidade das Formas sem ter que abandonar

o caraacuteter muacuteltiplo e simultacircneo da participaccedilatildeo Soacutecrates apresenta uma analogia

uma Forma natildeo estaria separada de si mesma caso ela fosse como o dia que pode

estar em diferentes lugares sem perder sua singularidade isto eacute sem deixar de ser

um e o mesmo dia (ἡmicroέρα microία καὶ ἡ αὐτὴ)

ldquoNatildeo estaria disse ele se pelo menos como o dia que sendo um e o mesmo estaacute em muitos lugares simultaneamente e nem por isso estaacute ele mesmo separado de si mesmo se assim tambeacutem cada uma das Formas fosse uma e a mesma [estando] simultaneamente em todas as coisasrdquo Οὐκ ἄν εἴ γε φάναι οἷον [εἰ] ἡmicroέρα [εἴη] microία καὶ ἡ αὐτὴ οὖσα πολλαχοῦ ἅmicroα ἐστὶ καὶ οὐδέν τι microᾶλλον αὐτὴ αὑτῆς χωρίς ἐστιν εἰ οὕτω καὶ ἕκαστον τῶν εἰδῶν ἓν ἐν πᾶσιν ἅmicroα ταὐτὸν εἴη (131b3-6)

Parmecircnides responde propondo uma nova analogia

ldquoDe bela maneira Soacutecrates disse ele fazes uma e a mesma coisa [estar] simultaneamente em muitos lugares como se cobrindo com uma vela muitos homens dissesses ser ela inteira uma sobre muacuteltiplos Ou natildeo eacute algo deste tipo que acreditas estar dizendo Talvez disse elerdquo Ἡδέως γε φάναι ὦ Σώκρατες ἓν ταὐτὸν ἅmicroα πολλαχοῦ ποιεῖς οἷον εἰ ἱστίῳ καταπετάσας πολλοὺς ἀνθρώπους φαίης ἓν ἐπὶ πολλοῖς εἶναι ὅλον ἢ οὐ τὸ τοιοῦτον ἡγῇ λέγειν Ἴσως φάναι (131b7-c1)

Eacute comum entre os comentadores a opiniatildeo de que a metaacutefora apresentada

por Parmecircnides natildeo possui as mesmas virtudes da metaacutefora socraacutetica e que apenas

a inexperiecircncia do jovem Soacutecrates pode explicar a sua aceitaccedilatildeo da equivalecircncia

entre estas duas maneiras de entender a relaccedilatildeo entre Formas e coisas (cf Sayre

1996 p76) (cf Miller 1986 p49) Mas o que exatamente Soacutecrates poderia estar

entendendo por ldquodiardquo neste argumento Qual eacute o sentido de sua analogia e de que

maneira esta analogia poderia apresentar uma alternativa viaacutevel para compreensatildeo

da participaccedilatildeo no todo de uma Forma

A primeira opccedilatildeo eacute que Soacutecrates esteja entendo por ldquodiardquo a ldquoluz do diardquo

Neste caso a proposta de Parmecircnides eacute certamente equivalente e apenas torna

mais clara a metaacutefora socraacutetica Afinal a luz do dia possui uma natureza material

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e nada mais eacute do que uma espeacutecie de substacircncia homogecircnea que cobre

simultaneamente diferentes lugares A luminosidade do dia banha distintos

lugares exatamente como uma vela estendida sobre diversas pessoas Contudo

assim entendida a metaacutefora socraacutetica natildeo realiza o objetivo em vista do qual eacute

formulada O que Soacutecrates precisa demonstrar natildeo eacute meramente que a luz de um

mesmo dia ilumina diferentes lugares ao mesmo tempo Para que a metaacutefora

cumpra seu papel Soacutecrates precisa demonstrar como estes diferentes lugares

podem estar iluminados simultaneamente pela totalidade da luz de um mesmo

dia isto eacute como a luz do dia ldquosendo uma e a mesmardquo pode estar por inteiro em

cada um dos lugares que ilumina

A segunda opccedilatildeo de interpretaccedilatildeo para metaacutefora socraacutetica parece a

princiacutepio mais promissora Eacute possiacutevel que Soacutecrates esteja entendendo por ldquodiardquo o

periacuteodo de tempo em que esta luminosidade recobre a terra e que sendo um e o

mesmo estaria presente simultaneamente em Atenas e Esparta Neste caso a

analogia socraacutetica ldquoum dia sobre muitos lugaresrdquo possuiria o meacuterito de ressaltar a

imaterialidade das Formas o que eacute completamente perdido na analogia ldquouma vela

sobre muitas pessoasrdquo apresentada por Parmecircnides Pois quando Soacutecrates afirma

que o mesmo dia estaacute ao mesmo tempo em diferentes lugares o que ele estaacute

dizendo eacute que um mesmo intervalo de tempo ocorre simultaneamente em

lugares distintos Assim no mesmo intervalo de tempo em que Soacutecrates eacute julgado

em Atenas Lisandro se diverte em Esparta

Apesar de trivialmente correta esta segunda interpretaccedilatildeo para a analogia

do dia tampouco parece servir para os propoacutesitos de Soacutecrates Para que sua

metaacutefora lhe seja uacutetil na presente argumentaccedilatildeo Soacutecrates precisaria demonstrar

natildeo que diversas coisas acontecem simultaneamente em um mesmo dia mas que

o mesmo dia estaacute presente por inteiro em cada um dos momentos em que estas

coisas acontecem Ningueacutem negaria o fato de que um determinado momento do

dia ocorre simultaneamente em diferentes lugares Poreacutem o ponto em disputa eacute se

podemos ou natildeo entender cada um destes momentos como equivalentes agrave

totalidade de um mesmo dia Ora eacute claro que uma resposta afirmativa para esta

questatildeo seria absurda uma vez que colapsaria a totalidade de um dia em cada um

dos momentos de que eacute composto O dia entendido como um intervalo de tempo

possui duraccedilatildeo da mesma maneira que um objeto fiacutesico possui extensatildeo Sendo

assim os momentos sucessivos de um dia natildeo podem ser considerados idecircnticos agrave

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totalidade deste dia do mesmo modo que as diversas partes de um objeto extenso

natildeo satildeo idecircnticas agrave totalidade da qual fazem parte Aleacutem disso uma interpretaccedilatildeo

temporal para a metaacutefora do dia ainda estaacute sujeita agrave seguinte circularidade se

entendermos ldquosimultaneamenterdquo no seu sentido usual de ldquoao mesmo tempordquo a

analogia de Soacutecrates estaria afirmando que ldquoum mesmo intervalo de tempordquo

ocorre ldquoao mesmo tempordquo em diferentes lugares o que eacute claramente absurdo 42

O que Parmecircnides revela ao transformar a imagem de um dia sobre vaacuterios

lugares na imagem de uma vela sobre diversas pessoas eacute que ambas estas coisas (o

dia e a vela) quando consideradas com a devida atenccedilatildeo natildeo se apresentam como

entidades uacutenicas e indivisiacuteveis tal como Soacutecrates pretende fazer crer O fato de

falarmos de ldquoum diardquo como uma entidade singular natildeo nos garante que estejamos

tratando de fato de uma entidade uacutenica e indivisiacutevel Noacutes tambeacutem nos referimos

agrave ldquoguerra de Troacuteiardquo como um evento singular no entanto eacute muito claro que a

guerra de Troacuteia constitui na verdade uma seacuterie de eventos distintos Da mesma

maneira quando falamos de uma vela sobre diversas pessoas (ou diversas pessoas

sob um mesmo teto) tratamos esta vela (ou este teto) como um entidade singular

Neste caso poreacutem eacute mais faacutecil perceber que natildeo eacute a totalidade da vela que se

encontra sobre cada um dos indiviacuteduos mas apenas uma parte dela

Portanto ao formular a metaacutefora de uma vela sobre uma multiplicidade de

pessoas Parmecircnides natildeo estaacute deturpando a metaacutefora socraacutetica ou destituindo-a de

seu valor como soluccedilatildeo ao problema da participaccedilatildeo Muito pelo contraacuterio ao

reinterpretar a analogia socraacutetica Parmecircnides apenas torna evidente as

consequecircncias da proposta inicial apresentada por Soacutecrates Afirmar que uma

Forma uacutenica estaacute sobre muitas coisas equivale a afirmar que cada coisa possui

sobre si uma parte desta Forma exatamente da mesma maneira que a luz que

banha Soacutecrates pela manhatilde eacute apenas uma parte da totalidade da luz que ilumina a

Aacutetica e do mesmo modo que o momento da manhatilde em que Soacutecrates toma seu

banho de sol eacute apenas uma parte do intervalo de tempo que compotildee um dia

ldquoSeraacute entatildeo que a vela inteira estaria sobre cada um ou uma parte dela sobre um outra sobre outro Uma parte Logo Soacutecrates disse ele satildeo divisiacuteveis as Formas mesmas e as coisas que delas

42 Esta circularidade foi observada primeiramente por Allen que acaba por descartar

completamente a possibilidade da metaacutefora socraacutetica estar se referindo ao dia em seu sentido temporal (cf Allen 1997 p132)

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participam participariam de uma de suas partes e natildeo eacute mais o todo que estaria em cada uma das coisas mas sim uma parte caberia a cada coisa Parece pelo menos que eacute assim Seraacute entatildeo Soacutecrates que estaraacutes disposto a dizer que a Forma uma em verdade se nos divide e ainda seraacute uma43 De maneira alguma disse Soacutecratesrdquo Ἦ οὖν ὅλον ἐφ ἑκάστῳ τὸ ἱστίον εἴη ἄν ἢ microέρος αὐτοῦ ἄλλο ἐπ ἄλλῳ Μέρος Μεριστὰ ἄρα φάναι ὦ Σώκρατες ἔστιν αὐτὰ τὰ εἴδη καὶ τὰ microετέχοντα αὐτῶν microέρους ἂν microετέχοι καὶ οὐκέτι ἐν ἑκάστῳ ὅλον ἀλλὰ microέρος ἑκάστου ἂν εἴη Φαίνεται οὕτω γε Ἦ οὖν ἐθελήσεις ὦ Σώκρατες φάναι τὸ ἓν εἶδος ἡmicroῖν τῇ ἀληθείᾳ microερίζεσθαι καὶ ἔτι ἓν ἔσται Οὐδαmicroῶς εἰπεῖν (131c2-11)

A tentativa de oferecer uma metaacutefora como explicaccedilatildeo para a hipoacutetese da

participaccedilatildeo no todo de uma Forma apenas forccedilou Soacutecrates na direccedilatildeo do segundo

ramo do dilema Tal como uma vela estendida sobre uma multiplicidade de

indiviacuteduos a Forma se mostra agora divida por seus participantes Cada um dos

objetos sensiacuteveis que participam de uma Forma recebe como sua propriedade

imanente uma parte desta Forma Isto eacute se x e y participam da Forma F entatildeo

uma parte de F estaacute em x e uma parte de F estaacute em y Eacute preciso observar que cada

um destes objetos recebe sua propriedade imanente de maneira exclusiva Pois se

considerarmos a propriedade imanente F-em-x como idecircntica agrave propriedade

imanente F-em-y nos encontraremos novamente submetidos ao argumento do

primeiro ramo do dilema Sendo assim como resultado da adoccedilatildeo do segundo

ramo do dilema da participaccedilatildeo as Formas passam a possuir um nuacutemero de partes

igual ao nuacutemero de objetos que delas participam

Novamente o caraacuteter unitaacuterio das Formas se mostra incompatiacutevel com a

hipoacutetese de que os objetos sensiacuteveis participam nas Formas Neste caso poreacutem

natildeo eacute a singularidade numeacuterica das Formas o que eacute perdido na relaccedilatildeo com os

muacuteltiplos objetos do mundo sensiacutevel mas a uniformidade ou integridade das

Formas isto eacute sua indivisibilidade

Soacutecrates reconhece prontamente o absurdo desta conclusatildeo e se recusa a

admitir que uma Forma uacutenica possa estar dividida pelos objetos sensiacuteveis que

dela participam (τὸ ἓν εἶδος ἡmicroῖν τῇ ἀληθείᾳ microερίζεσθαι) Este resultado por si soacute

43 καὶ ἔτι ἓν ἔσται aqui ldquoser umrdquo significa ldquoser indivisiacutevelrdquo como deixa claro o contraste

estabelecido por Parmecircnides entre esta claacuteusula e o verbo microερίζεσθαι (dividir-se) Como jaacute observamos neste segundo ramo do dilema da participaccedilatildeo eacute a noccedilatildeo de integridade ou indivisibilidade das Forma que se mostra incompatiacutevel com a hipoacutetese da participaccedilatildeo

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jaacute eacute suficiente para descartar o segundo ramo do dilema e com ele a hipoacutetese de

que as coisas participam em partes das Formas A partir deste momento a reduccedilatildeo

ao absurdo operada pelo dilema jaacute estaacute realizada Segundo as premissas do

dilema soacute haacute participaccedilatildeo no todo ou em parte de uma Forma Contudo a

participaccedilatildeo no todo acaba por multiplicar as Formas e a participaccedilatildeo em partes

por dividi-las Como as Formas satildeo por definiccedilatildeo entidades singulares e

indivisiacuteveis entatildeo natildeo pode haver participaccedilatildeo nas Formas

Entretanto Parmecircnides natildeo se daacute por satisfeito com este resultado e passa

a apresentar uma seacuterie de argumentos que pretendem ilustrar as consequecircncias

absurdas agraves quais seriacuteamos levados caso aceitaacutessemos a efetiva divisatildeo das

Formas

ldquoPois vecirc disse Parmecircnides Se dividires a Grandeza mesma e se cada uma das muacuteltiplas coisas grandes for grande em virtude de uma parte da Grandeza [parte esta] menor que a Grandeza mesma seraacute que isso natildeo pareceraacute absurdo Perfeitamente disse ele Mas como Cada coisa recebendo uma parte do Igual uma [parte] pequena que eacute menor que o Igual mesmo teraacute algo com que seraacute igual ao que quer que seja Impossiacutevel E mais eacute uma parte do Pequeno que algum de noacutes teraacute e o Pequeno seraacute maior que essa parte mesma sendo esta uma parte dele e assim pois o Pequeno seraacute maior e aquilo a que for adicionada a parte subtraiacuteda seraacute menor e natildeo maior que antes Isso natildeo poderia ocorrer disse ele Ὅρα γάρ φάναι εἰ αὐτὸ τὸ microέγεθος microεριεῖς καὶ ἕκαστον τῶν πολλῶν microεγάλων microεγέθους microέρει σmicroικροτέρῳ αὐτοῦ τοῦ microεγέθους microέγα ἔσται ἆρα οὐκ ἄλογον φανεῖται Πάνυ γ ἔφη Τί δέ τοῦ ἴσου microέρος ἕκαστον σmicroικρὸν ἀπολαβόν τι ἕξει ᾧ ἐλάττονι ὄντι αὐτοῦ τοῦ ἴσου τὸ ἔχον ἴσον τῳ ἔσται Ἀδύνατον Ἀλλὰ τοῦ σmicroικροῦ microέρος τις ἡmicroῶν ἕξει τούτου δὲ αὐτοῦ τὸ σmicroικρὸν microεῖζον ἔσται ἅτε microέρους ἑαυτοῦ ὄντος καὶ οὕτω δὴ αὐτὸ τὸ σmicroικρὸν microεῖζον ἔσται ᾧ δ ἂν προστεθῇ τὸ ἀφαιρεθέν τοῦτο σmicroικρότερον ἔσται ἀλλ οὐ microεῖζον ἢ πρίν Οὐκ ἂν γένοιτο φάναι τοῦτό γε (131c12-e2)

Na tentativa de estabelecer de maneira ainda mais clara a inviabilidade do

segundo ramo do dilema da participaccedilatildeo satildeo apresentadas trecircs consequecircncias

absurdas decorrentes da hipoacutetese de que os objetos sensiacuteveis participam em partes

das Formas Segundo a argumentaccedilatildeo de Parmecircnides caso adotemos o segundo

ramo do dilema

1) Uma coisa grande seraacute grande em virtude de uma parte da

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Grandeza menor do que a Grandeza mesma e portanto seraacute grande

em virtude daquilo que eacute pequeno

2) Uma coisa igual seraacute igual em virtude de uma parte pequena da

Igualdade e portanto seraacute igual em virtude daquilo que eacute desigual

3) Se subtrairmos uma parte do Pequeno o Pequeno em si seraacute maior

do que cada uma de suas partes e portanto o Pequeno seraacute maior

Por outro lado o objeto sensiacutevel que receber uma de suas partes se

tornaraacute menor e natildeo maior em virtude desta adiccedilatildeo

Para que possamos entender o que torna estas conclusotildees inaceitaacuteveis do

ponto de vista de Soacutecrates e sua Teoria das Ideias precisamos ter em mente o

poder causal exercido pelas Formas sobre os objetos sensiacuteveis De acordo com a

teoria da causalidade defendida por Soacutecrates uma causa deve possuir a

caracteriacutestica que ela produz nas coisas Assim no Protaacutegoras (332b1) Soacutecrates

afirma que eacute ldquopela temperanccedila que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (σωφροσύνῃ

σωφρονοῦσιν) no Teeteto (145d11) que eacute ldquopela sabedoria que os saacutebios satildeo

saacutebiordquo (Σοφίᾳ δέ γ οἶmicroαι σοφοὶ οἱ σοφοί) e no Hiacuteppias Maior que eacute ldquopelo belo

que todas as coisas belas satildeo belasrdquo (Ἆρ οὖν οὐ καὶ τὰ καλὰ πάντα τῷ καλῷ ἐστι

καλά) Nestas passagens Soacutecrates faz uso do dativo instrumental para apresentar

em uma sentenccedila cuja forma eacute aparentemente tautoloacutegica aquilo que ele e seus

interlocutores tomam como uma verdade autoevidente Isto eacute que a despeito do

estatuto ontoloacutegico que estejamos dispostos a atribuir para a causa das

propriedades dos objetos sensiacuteveis eacute impossiacutevel pensar que esta causa natildeo

possua ela mesma a propriedade que produz Em paralelo a esta assunccedilatildeo

Soacutecrates e seus interlocutores tomam como autocontraditoacuteria a hipoacutetese de que

uma causa possa ser caracterizada pela propriedade oposta agravequela de que eacute causa

Pois ldquoeacute iloacutegico (ἄλογόν) [admitir] que algueacutem seja corajoso pelo medo e pela

covardiardquo (καίτοι ἄλογόν γε δέει τινὰ καὶ δειλίᾳ ἀνδρεῖον εἶναι Feacuted68d) e ldquoeacute

assombroso (τέρας) que algo grande seja grande em virtude de alguma coisa

pequenardquo (καὶ τοῦτο δὴ τέρας εἶναι τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι Feacuted101b1-

2)44

44 Para outras passagens em que Soacutecrates afirma a impossibilidade de que uma causa possa ser

caracterizada pela propriedade oposta agravequela de que eacute causa Feacuted 68d 68e 100a-b Rep335c-d Prot355d Teet 199d

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Como vimos este princiacutepio baacutesico relativo agrave noccedilatildeo de causalidade eacute

ostensivamente apresentado no Feacutedon como a razatildeo para o fato de podermos de

maneira segura oferecer as Formas como causas das propriedades dos objetos

sensiacuteveis Em Feacuted102d6-8 Soacutecrates expande estes criteacuterios para as propriedades

imanentes afirmando que ldquonatildeo apenas a Grandeza em si jamais admitiraacute ser

simultaneamente grande e pequena como tambeacutem a grandeza-em-noacutes jamais

admitiraacute a pequenezrdquo (οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ

σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν)45

No Parmecircnides (129b1-2) encontramos esta mesma alegaccedilatildeo repetida quanto

Soacutecrates desafia seus interlocutores a lhe demonstrarem que a propriedade

imanente da semelhanccedila (αὐτὰ τὰ ὅmicroοιά) pode se tornar dessemelhante e a

propriedade imanente da dessemelhanccedila semelhante

Portanto de acordo com a Teoria das Ideias para que possamos dizer que

um determinado objeto sensiacutevel x eacute F eacute preciso que tanto a Forma F quanto a

propriedade imanente F-em-x sejam unicamente caracterizadas pelo predicado F

isto eacute sejam auto-predicativas e natildeo apareccedilam nunca como o contraacuterio de F

Nos argumentos 1 e 2 Parmecircnides demonstra que a adoccedilatildeo do segundo

ramo do dilema natildeo pode ser harmonizada com a hipoacutetese de que as propriedades

imanentes satildeo entidades uniformes unicamente caracterizadas pela auto-

predicaccedilatildeo e completamente isentas da predicaccedilatildeo de opostos De acordo com o

segundo ramo do dilema um objeto x eacute grande por apresentar como sua

propriedade imanente uma parte da Grandeza Contudo por ser apenas uma parte

a grandeza-em-x eacute menor do que a Grandeza em si que representa o todo do qual

a grandeza-em-x eacute uma parte Consequentemente x eacute grande em virtude de uma

propriedade imanente que eacute ela mesma pequena Da mesma maneira se um

objeto y eacute igual em virtude de uma parte do Igual menor do que o Igual em si

entatildeo y eacute igual em virtude daquilo que eacute desigual

Em 3 Parmecircnides muda o foco de sua criacutetica A propriedade imanente

pequeno-em-x considerada como uma parte do Pequeno em si eacute de fato

pequena e natildeo estaria sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos Contudo neste caso a

45 O mesmo ponto eacute reafirmado em 102e5-103a1 Eacute preciso notar que tal afirmaccedilatildeo estaacute em pleno

acordo com o papel das propriedades imanentes na soluccedilatildeo de Soacutecrates para o problema da copresenccedila de opostos Afinal admtir que uma propriedade imanente eacute caracterizada por seu oposto seria equivalente a afirmar que um mesmo elemento constituinte de Soacutecrates eacute simultaneamente grande e pequeno o que natildeo solucionaria o problema da copresenccedila de

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contradiccedilatildeo eacute encontrada na proacutepria Forma do Pequeno Pois se a Forma do

Pequeno eacute maior do que cada uma de suas partes o Pequeno em si eacute grande

Novamente nos vemos frente a uma impossibilidade loacutegica pois a causa das

coisas serem pequenas seria ela mesma grande Com relaccedilatildeo ao poder causal

exercido pela Forma do Pequeno Parmecircnides ainda acrescenta uma uacuteltima

perplexidade caso entendamos que um objeto z torna-se pequeno por adquirir a

propriedade imanente pequeno-em-z seremos obrigados a admitir que o objeto z

torna-se pequeno em virtude de uma adiccedilatildeo o que estaacute em claro desacordo com os

princiacutepios baacutesicos da matemaacutetica

As conclusotildees obtidas por Parmecircnides demonstram que a hipoacutetese da

participaccedilatildeo em partes das Formas teria como consequecircncia a predicaccedilatildeo de

opostos da Forma do Pequeno e das propriedades imanentes do grande e do igual

Consequentemente o poder causal exercido por estas trecircs Formas especiacuteficas

tornar-se-ia inexplicaacutevel uma vez que um dos princiacutepios baacutesicos da causalidade

seria violado e estas entidades estariam sujeitas ao problema da predicaccedilatildeo de

opostos para o qual deveriam servir de soluccedilatildeo

Como podemos perceber estes trecircs argumentos apresentam paradoxos

especiacuteficos relativos apenas agraves Formas do Grande do Igual e do Pequeno

fugindo portanto da generalidade encontrada na argumentaccedilatildeo de Parmecircnides ateacute

aqui Aleacutem disso estes argumentos satildeo estruturalmente desnecessaacuterios uma vez

que Soacutecrates jaacute havia admitido a inviabilidade do segundo ramo do dilema ao

concluir que seria impossiacutevel aceitar que uma Forma uacutenica possa estar dividida

por seus participantes (τὸ ἓν εἶδος microερίζεσθαι)46

Podemos nos perguntar por que Platatildeo incluiria esta descontinuidade

umas vez que os argumentos seguintes voltaratildeo a ser dirigidos contra o conjunto

de Formas em sua generalidade Minha opiniatildeo eacute que Platatildeo apresenta estes trecircs

argumentos como encerramento dos problemas relativos ao dilema da participaccedilatildeo

com o intuito de chamar a atenccedilatildeo do leitor para o tema da auto-predicaccedilatildeo das

Formas O fato de que as Formas satildeo entidades auto-predicativas estaacute diretamente

opostos

46 De fato no momento mesmo em que Soacutecrates aceita a analogia da vela oferecida por Parmecircnides o segundo ramo do dilema da participaccedilatildeo torna-se inviaacutevel Afinal o fato de Soacutecrates possuir diversas partes havia sido suficiente para concluir que ele Soacutecrates eacute muacuteltiplo Sendo assim por paridade de raciociacutenio o fato de mais de um objeto sensiacutevel participar de uma mesma Forma que estende suas diversas partes sobre estes objetos eacute suficiente para concluir a multiplicidade desta Forma

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relacionado com os paradoxos relativos agraves Formas do Grande do Igual e do

Pequeno e seraacute fundamental na compreensatildeo dos dois regressos ao infinito que

seratildeo apresentados nos proacuteximos argumentos Contudo em todos estes

argumentos a caracteriacutestica de auto-prediccedilatildeo das Formas aparece como uma

premissa pressuposta nunca textualmente expressa Portanto ao apresentar esta

seacuterie de trecircs paradoxos nos quais a auto-predicaccedilatildeo das Formas estaacute claramente

em jogo Platatildeo oferece aos leitores do Parmecircnides uma chave de leitura para a

compreensatildeo dos regressos que seratildeo apresentados em seguida

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427 A validade do dilema da participaccedilatildeo como criacutetica agrave Teoria das Ideias

O dilema da participaccedilatildeo constitui uma reduccedilatildeo ao absurdo formalmente

vaacutelida Soacutecrates havia sustentado que 1) existem Formas e 2) os objetos sensiacuteveis

participam nestas Formas O dilema apresenta duas alternativas exaustivas de

compreensatildeo para o que seria a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo e ambas se mostram

inaceitaacuteveis para Teoria das Ideias Logo o dilema da participaccedilatildeo implica na

falsidade da tese 2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis participam nas Formas Eacute

claro contudo que a validade destas duas teses eacute plenamente independente

Parmecircnides provou que a tese 2) eacute falsa a despeito do fato de que a tese 1) possa

ser verdadeira e as Formas possam ser consideradas entidades reais

No entanto desde jaacute cabe a pergunta qual seria a vantagem teoacuterica de se

admitir a existecircncia das Formas sem que fique esclarecida a natureza da relaccedilatildeo

que estas entidades mantecircm com os objetos do mundo empiacuterico Uma satisfatoacuteria

compreensatildeo para natureza da relaccedilatildeo entre Formas e coisas mostra-se essencial

para validade da hipoacutetese das Formas pois a incapacidade de elucidar o modo

especiacutefico de relacionamento entre estes dois niacuteveis distintos da realidade teria

como resultado a total irrelevacircncia da postulaccedilatildeo das Formas Isto porque

isoladas das coisas do mundo sensiacutevel as Formas passariam a representar

entidades teoricamente irrelevantes e a postulaccedilatildeo destas entidades natildeo passaria

de uma supeacuterflua duplicaccedilatildeo da realidade empiacuterica

Contudo nada disso estaraacute em jogo caso as criacuteticas de Parmecircnides

comprovem-se irrelevantes para a Teoria das Ideias ou simplesmente falaciosas

Assim na tradiccedilatildeo de comentaacuterios ao Parmecircnides diversos autores procuraram

desqualificar natildeo apenas o sentido geral da argumentaccedilatildeo parmeniacutedica sob a

alegaccedilatildeo de que suas criacuteticas natildeo passam de uma grande piada ou de um mero

exerciacutecio eriacutestico como tambeacutem cada um dos argumentos separadamente Na

tentativa de invalidar o dilema da participaccedilatildeo e salvar a Teoria das Ideias deste

primeiro conjunto de criacuteticas trecircs estrateacutegias foram adotadas pelos comentadores

A primeira estrateacutegia jaacute foi por noacutes mencionada e consiste em afirmar que o

dilema da participaccedilatildeo natildeo diz respeito agrave Teoria das Ideias socraacutetica mas a uma

outra teoria qualquer Contudo como vimos a proacutepria estrutura do Parmecircnides

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proiacutebe este tipo de interpretaccedilatildeo No Parmecircnides eacute o proacuteprio Soacutecrates quem

apresenta a Teoria das Ideias e como demonstramos esta apresentaccedilatildeo guarda

todas as caracteriacutesticas essenciais da Teoria das Ideias encontrada nos diaacutelogos da

Juventude e Fase Meacutedia Sendo assim natildeo podemos descartar a validade do

dilema da participaccedilatildeo pela simples alegaccedilatildeo de que estamos lidando com um

caso de ignoratio elenchi

Uma segunda opccedilatildeo consiste em considerar o dilema da participaccedilatildeo como

formalmente correto poreacutem materialmente falso isto eacute fundado em falsas

premissas De acordo com este tipo de interpretaccedilatildeo que remonta ao comentaacuterio

de Proacuteclus (In Parm 859-862) o sentido de ldquoparticipaccedilatildeordquo inerente agraves criacuteticas de

Parmecircnides natildeo condiz com o sentido que esta expressatildeo recebe nos outros

diaacutelogos platocircnicos em que a Teoria das Ideias eacute apresentada Assim Cornford

comentando o dilema afirma que ldquoo argumento pressupotildee que o exemplar da

Grandeza que cabe agrave participaccedilatildeo de uma coisa grande eacute uma parte da Forma

entendida como um pedaccedilo (bit) no qual a Forma eacute cortada (cut up)rdquo De acordo

com Cornford este raciociacutenio entende os conceitos de ldquoparterdquo e ldquotodordquo em seu

ldquosentido mais grosseiro e materialrdquo (Cornford 1951 p85)

Adotando a mesma linha interpretativa Sprague alega que Parmecircnides soacute

pode chegar a suas conclusotildees porque interpreta ldquoparticipaccedilatildeordquo em um sentido

fiacutesico (physical sense) Segundo Sprague ldquouma reductio ad absurdum foi

construiacuteda mas apenas por meio de uma distorccedilatildeo da dualidade essencial da

teoria [das Ideias] e da relaccedilatildeo entre estes dois tipos de entidades [relaccedilatildeo esta]

que Platatildeo procura exprimir por meio de expressotildees como ldquoestar presenterdquo e

ldquoparticiparrdquo (Sprague 1967 p96)

Portanto de acordo estes autores o dilema da participaccedilatildeo apesar de

formalmente vaacutelido natildeo se apresenta como uma criacutetica honesta agrave Teoria das

Ideias Segundo este argumento Parmecircnides estaria interpretando de maneira

errocircnea o sentido do termo ldquoparticipaccedilatildeordquo O uso dos conceitos de todoparte

maiormenor e a compreensatildeo de ldquoparticipaccedilatildeordquo como a presenccedila da Forma nos

objetos sensiacuteveis seriam evidecircncias de uma reificaccedilatildeo da realidade inteligiacutevel que

segundo estes comentadores representaria uma brutal e inaceitaacutevel distorccedilatildeo da

verdadeira posiccedilatildeo socraacutetica

Ora a primeira objeccedilatildeo que podemos oferecer a este tipo de interpretaccedilatildeo

consiste em apresentar o fato dramaacutetico de que em nenhum momento da

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discussatildeo Soacutecrates protesta contra esta suposta deformaccedilatildeo de sua teoria Quando

Parmecircnides comeccedila a formular suas criacuteticas Soacutecrates jaacute havia apresentado sua

distinccedilatildeo fundamental entre ldquoas coisas que se vecircemrdquo (τοῖς ὁρωmicroένοις ) e ldquoas

coisas apreendidas pelo raciociacuteniordquo (τοῖς λογισmicroῷ λαmicroβανοmicroένοις ) estabelecendo

claros paracircmetros de diferenciaccedilatildeo entre estes dois tipos de entidades objetos

sensiacuteveis e Formas Caso o dilema da participaccedilatildeo se apresentasse como o

resultado da mera negligecircncia desta distinccedilatildeo fundamental o mais natural seria

que Soacutecrates reafirmasse esta distinccedilatildeo e bloqueasse a argumentaccedilatildeo parmeniacutedica

desde o iniacutecio Simplesmente natildeo haacute razatildeo para acreditarmos que Platatildeo tenha

decidido representar Soacutecrates em aporia por conta de um argumento decorrente da

negligecircncia da distinccedilatildeo proposta pelo proacuteprio Soacutecrates entre entidades sensiacuteveis

e inteligiacuteveis

O dilema da participaccedilatildeo funda-se no vocabulaacuterio empregado por Soacutecrates

para descrever a relaccedilatildeo entre Formas e coisas natildeo soacute no Parmecircnides como

tambeacutem por toda fase meacutedia e inicial Segundo Soacutecrates as coisas sensiacuteveis

ldquoparticipamrdquo (metexousin metalambanousin) das Formas ou ldquocomunicam-serdquo

(koinwnou=sin koinwnian e)xousin) com elas Como resultado desta relaccedilatildeo as

coisas sensiacuteveis passam a ldquopossuirrdquo (e)xousin) ou ldquoreceberrdquo (dexontai) as Formas

As Formas por sua vez passam a ldquoestar presentesrdquo (πάρεστιν) ou a ldquoestar nasrdquo

(e)neστι) coisas Portanto ao propor que a noccedilatildeo de participaccedilatildeo soacute pode ser

entendida por meio da disjunccedilatildeo partetodo Parmecircnides estaacute oferecendo

paracircmetros baacutesicos de compreensatildeo e anaacutelise para um conceito apresentado pelo

proacuteprio Soacutecrates

Os argumentos de Parmecircnides podem inclusive ser construiacutedos

formalmente sem que uma interpretaccedilatildeo material das Formas seja de qualquer

modo pressuposta Afinal a disjunccedilatildeo partetodo se mostra como uacutenica opccedilatildeo

vaacutelida para compreensatildeo de uma relaccedilatildeo descrita como ldquoa participaccedilatildeo da

entidade x na entidade yrdquo independente do estatuto ontoloacutegico atribuiacutedo e estas

entidades Uma evidecircncia disto encontra-se no fato de que nos Elementos (I

axioma 5) Euclides lista o axioma de que ldquoo todo eacute maior do que as partesrdquo (Καὶ

τὸ ὅλον τοῦ microέρους microεῖζον [ἐστιν]) como uma ldquonoccedilatildeo comumrdquo Tais ldquonoccedilotildees

comunsrdquo (koinai e)nnoiai) satildeo definidas como princiacutepios indemonstraacuteveis

comuns a todas as ciecircncias e que portanto ultrapassam o campo da geometria e

natildeo tecircm sua validade restrita aos raciociacutenios envolvendo coisas estendidas no

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espaccedilo (cf Heath 1956 p221-222)

Sendo assim natildeo haacute porque desqualificar o dilema da participaccedilatildeo sob a

alegaccedilatildeo de que este argumento funda-se em uma ldquocoisificaccedilatildeordquo falaciosa da

hipoacutetese das Formas Os argumentos de Parmecircnides ilustram contradiccedilotildees

decorrentes de uma determinada interpretaccedilatildeo para relaccedilatildeo entre objetos

empiacutericos e Formas proposta pelo proacuteprio Soacutecrates e que natildeo estaacute diretamente

fundada na atribuiccedilatildeo de uma natureza material para as Formas mas deriva do

reconhecimento de que qualquer tipo de participaccedilatildeo deve ser entendida por meio

dos conceitos baacutesicos de parte e todo Soacutecrates havia proposto que as coisas

sensiacuteveis participam das Formas e como consequecircncia desta participaccedilatildeo

adquirem suas diversas propriedades imanentes Natildeo haacute falaacutecia alguma em se

apresentar a disjunccedilatildeo todoparte como modos exaustivos de se compreender esta

relaccedilatildeo Pois de fato estas satildeo as uacutenicas maneiras logicamente possiacuteveis de

entendermos uma relaccedilatildeo descrita deste modo

Uma terceira maneira de desqualificar a validade do dilema consiste em

alegar tal como faz David Ross (Ross 1951 p88-89) que os argumentos de

Parmecircnides baseiam-se em uma interpretaccedilatildeo literal para termos que Soacutecrates

apresenta como meras metaacuteforas Segundo este tipo de interpretaccedilatildeo Soacutecrates

estaria imune agraves criacuteticas de Parmecircnides pelo fato de natildeo se propor a definir de

maneira precisa a relaccedilatildeo entre Formas e coisas Para Ross os conceitos de

ldquoparticipaccedilatildeordquo e ldquocomunhatildeordquo satildeo apresentados por Soacutecrates como ilustraccedilotildees

aproximadas para uma relaccedilatildeo reconhecida como na verdade indescritiacutevel

Ora eacute claro que tal objeccedilatildeo sequer constitui um argumento contra a

validade do dilema parmeniacutedico A noccedilatildeo de que a relaccedilatildeo entre Formas e coisas eacute

uma relaccedilatildeo uacutenica para qual nenhuma definiccedilatildeo satisfatoacuteria pode ser apresentada eacute

conveniente apenas como uma soluccedilatildeo ad hoc para os problemas levantados por

Parmecircnides De fato esta explicaccedilatildeo pressupotildee a validade das criacuteticas de

Parmecircnides para concluir que o termo ldquoparticipaccedilatildeordquo eacute meramente metafoacuterico e

natildeo se pretende como uma definiccedilatildeo seacuteria Aleacutem disso nos vemos novamente

frente ao fato dramaacutetico de que Soacutecrates em momento algum atribui uma

natureza sui generis e indescritiacutevel para relaccedilatildeo entre Formas e coisas Em total

oposiccedilatildeo ao que esperariacuteamos caso Platatildeo desejasse indicar o caraacuteter indefiniacutevel

desta relaccedilatildeo Soacutecrates iraacute propor no decorrer do diaacutelogo maneiras alternativas de

entender o relacionamento entre Formas e coisas o que evidencia a crenccedila deste

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personagem na possibilidade de uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria para esta relaccedilatildeo De

qualquer maneira o fato de Soacutecrates propor o termo ldquoparticipaccedilatildeordquo como uma

descriccedilatildeo metafoacuterica para o relacionamento entre Formas e coisas natildeo invalida ou

deslegitima as criacuteticas de Parmecircnides Afinal mesmo uma metaacutefora deve ser

investigada quando aparece no interior de uma hipoacutetese filosoacutefica Portanto

ainda que se trate de um uso meramente ilustrativo da palavra ldquoparticipaccedilatildeordquo este

uso deve ser analisado na intenccedilatildeo de concluirmos se este termo configura-se

como uma ilustraccedilatildeo adequada para a relaccedilatildeo entre Formas e coisas ou natildeo

A confirmaccedilatildeo dramaacutetica da relevacircncia da argumentaccedilatildeo de Parmecircnides e

ainda da validade do seu dilema como uma apresentaccedilatildeo exaustiva das

possibilidades de compreensatildeo da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo encontra-se nas linhas

que encerram este estaacutegio da discussatildeo

ldquoEntatildeo de que maneira Soacutecrates disse ele as outras coisas para ti teratildeo participaccedilatildeo nas Formas natildeo podendo ter participaccedilatildeo nem quanto agrave parte nem quanto ao todo Por Zeus disse ele natildeo me parece de modo algum ser faacutecil determinar tal coisardquo Τίνα οὖν τρόπον εἰπεῖν ὦ Σώκρατες τῶν εἰδῶν σοι τὰ ἄλλα microεταλήψεται microήτε κατὰ microέρη microήτε κατὰ ὅλα microεταλαmicroβάνειν δυνάmicroενα Οὐ microὰ τὸν ∆ία φάναι οὔ microοι δοκεῖ εὔκολον εἶναι τὸ τοιοῦτον οὐδαmicroῶς διορίσασθαι (131e3-7)

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43 O Argumento do Terceiro Homem e a multiplicaccedilatildeo inf inita das Formas

Tendo terminado suas objeccedilotildees agrave noccedilatildeo de participaccedilatildeo defendida por

Soacutecrates Parmecircnides inicia uma segunda seacuterie de criacuteticas na qual seratildeo

apresentados dois casos daquilo que ficou conhecido na literatura secundaacuteria

como ldquoArgumento do Terceiro Homemrdquo A expressatildeo ldquoo terceiro homemrdquo (ὁ

τρίτος ἄνθρωπος) pode ser encontrada mais de uma vez na obra de Aristoacuteteles

(RefSof178b36 179a3 Meta990b17 1039a2-3 1059b8 1079a13) onde eacute

usada para designar um conjunto heterogecircneo de criacuteticas agrave Teoria das Ideias Em

seus comentaacuterios agrave Metafiacutesica Alexandre de Afrodiacutesia nos fornece diversos

exemplos de argumentos que receberam esta denominaccedilatildeo geneacuterica Enquanto

alguns dos exemplos descritos por Alexandre natildeo possuem qualquer relaccedilatildeo com

as criacuteticas do Parmecircnides uma de suas descriccedilotildees apresenta profunda semelhanccedila

com os dois argumentos que encontramos em nosso diaacutelogo47

ldquoSe um termo predicado verdadeiramente de uma multiplicidade de coisas existe separadamente (κεχωρισmicroένον) das coisas de que eacute predicado (hellip) entatildeo haveraacute um terceiro Homem Pois se o Homem que eacute predicado eacute diferente das coisas de que eacute predicado e possui uma existecircncia independente e se eacute predicado tanto dos indiviacuteduos quantos das Formas haveraacute um terceiro Homem ao lado dos indiviacuteduos e da Forma E do mesmo modo um quarto predicado deste terceiro da Forma e dos indiviacuteduos e um quinto e assim indefinidamente ( ἐπ ἄπειρον)rdquo εἰ τὸ κατηγορούmicroενόν τινων πλειόνων ἀληθῶς καὶ ἔστιν ἄλλο παρὰ τὰ ὧν κατηγορεῖται κεχωρισmicroένον αὐτῶν () ἀλλ εἰ τοῦτο ἔσται τις τρίτος ἄνθρωπος εἰ γὰρ ἄλλος ὁ κατηγορούmicroενος ὧν κατηγορεῖται καὶ κατ ἰδίαν ὑφεστώς κατηγορεῖται δὲ κατά τε τῶν καθ ἕκαστα καὶ κατὰ τῆς ἰδέας ὁ ἄνθρωπος ἔσται τρίτος τις ἄνθρωπος παρά τε τοὺς καθ ἕκαστα καὶ τὴν ἰδέαν οὕτως δὲ καὶ τέταρτος ὁ κατά τε τούτου καὶ τῆς ἰδέας καὶ τῶν καθ ἕκαστα κατηγορούmicroενος ὁmicroοίως δὲ καὶ πέmicroπτος καὶ τοῦτο ἐπ ἄπειρον (InMetaph 8422-8523)

Como podemos perceber o argumento descrito por Alexandre pretende a

partir do reconhecimento da existecircncia de uma uacutenica Forma de Homem gerar

uma multiplicidade indefinida (ἄπειρον) destas Formas No Parmecircnides esta

conclusatildeo seraacute usada para demonstrar mais uma vez a impossibilidade de

47 O primeiro argumento denominado de Terceiro Homem por Alexandre eacute atribuiacutedo a Eudemos

(In Metaph842-7 859-11) O segundo (847-16) eacute atribuiacutedo de maneira imprecisa a ldquosofistasrdquo O terceiro (8416-21) eacute atribuiacutedo a Polixeno um contemporacircneo de Platatildeo e o quarto agrave Aristoacuteteles (8422-8523) Destes quatro apenas o uacuteltimo deles guarda semelhanccedilas

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mantermos simultaneamente a tese da unidade das Formas e a tese de que as

Formas satildeo responsaacuteveis pelas propriedades dos objetos sensiacuteveis Por meio de

seu dilema Parmecircnides havia provado que a noccedilatildeo de participaccedilatildeo implica em

qualquer das acepccedilotildees possiacuteveis para este termo na anulaccedilatildeo da tese da unidade

das Formas Afinal entendida como uma relaccedilatildeo no todo de uma Forma a

participaccedilatildeo acarretaria na multiplicaccedilatildeo destas entidades de modo que seriacuteamos

obrigados a admitir tantas Formas de F quantas entidades sensiacuteveis possuidoras

desta propriedade Por outro lado entendida como uma relaccedilatildeo entre os muacuteltiplos

Fs sensiacuteveis e partes da Forma F a participaccedilatildeo acabaria por destruir a integridade

das Formas e cada Forma teria tantas partes quantos participantes se tornando

uma entidade internamente complexa e sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos Como

proacuteximo passo de sua demonstraccedilatildeo Parmecircnides pretende demonstrar que de

acordo com a teoria apresentada por Soacutecrates as Formas estatildeo fadadas a uma

multiplicaccedilatildeo infinita

Assim como havia feito ao introduzir o dilema da participaccedilatildeo

Parmecircnides marca muito claramente o iniacutecio de uma nova seacuterie de argumentos

ldquoPois bem E em relaccedilatildeo ao seguinte como pensas Em relaccedilatildeo a quecirc Creio que tu crecircs que cada Forma eacute uma48 pelo seguinte quando algumas coisas muacuteltiplas te parecem ser grandes talvez te pareccedila a ti que as olhas todas haver uma certa ideia49 uma e a mesma em todas donde acreditas o grande ser um Dizes a verdade [Soacutecrates] disse Mas e quanto ao Grande ele mesmo e agraves outras coisas grandes Se olhares da mesma maneira com a alma para todos esses natildeo apareceraacute de novo um Grande um em virtude do qual eacute necessaacuterio todas aquelas coisas aparecerem como grandes Parece que sim Logo uma outra Forma da Grandeza apareceraacute surgindo ao lado da Grandeza ela mesma e das coisas que destas participam E sobre todas essas [apareceraacute] de novo uma outra de modo a em virtude dela todas essas parecerem grandes E natildeo mais seraacute uma cada uma das tuas Formas mas ilimitadas em quantidaderdquo Τί δὲ δή πρὸς τόδε πῶς ἔχεις Τὸ ποῖον Οἶmicroαί σε ἐκ τοῦ τοιοῦδε ἓν ἕκαστον εἶδος οἴεσθαι εἶναι ὅταν πόλλ ἄττα microεγάλα σοι δόξῃ εἶναι microία τις ἴσως δοκεῖ ἰδέα ἡ αὐτὴ εἶναι ἐπὶ πάντα ἰδόντι ὅθεν ἓν τὸ

com o par de argumentos encontrados no Parmecircnides

48 Aqui novamente ἓν designa a unidade numeacuterica de cada Forma Compare as expressotildees ἓν ἕκαστον εἶδος com πόλλ ἄττα microεγάλα e πάντα microεγάλα usadas para descrever a multiplicidade de objetos grandes sensiacuteveis

49 Natildeo me parece claro que Soacutecrates esteja usando ἰδέα em sua acepccedilatildeo teacutecnica de Forma platocircnica nesta sentenccedila apesar desta leitura ser certamente uma opccedilatildeo viaacutevel Em funccedilatildeo desta indefiniccedilatildeo optei por deixar a palavra ldquoideiardquo sem a maiuacutescula que venho usando para designar as Formas

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microέγα ἡγῇ εἶναι Ἀληθῆ λέγεις φάναι Τί δ αὐτὸ τὸ microέγα καὶ τἆλλα τὰ microεγάλα ἐὰν ὡσαύτως τῇ ψυχῇ ἐπὶ πάντα ἴδῃς οὐχὶ ἕν τι αὖ microέγα φανεῖται ᾧ ταῦτα πάντα microεγάλα φαίνεσθαι Ἔοικεν Ἄλλο ἄρα εἶδος microεγέθους ἀναφανήσεται παρ αὐτό τε τὸ microέγεθος γεγονὸς καὶ τὰ microετέχοντα αὐτοῦ καὶ ἐπὶ τούτοις αὖ πᾶσιν ἕτερον ᾧ ταῦτα πάντα microεγάλα ἔσται καὶ οὐκέτι δὴ ἓν ἕκαστόν σοι τῶν εἰδῶν ἔσται ἀλλὰ ἄπειρα τὸ πλῆθος (131e8-132b2)

Esta primeira versatildeo do Argumento do Terceiro Homem desenvolve-se de

maneira muito claramente anaacuteloga ao argumento descrito por Alexandre Se as

coisas satildeo grandes por causa (ᾧ) da Grandeza e se paralelamente podemos

considerar a Grandeza ela mesma uma coisa grande entatildeo devemos supor a

existecircncia de uma segunda Forma da Grandeza causa da propriedade da grandeza

tanto das coisas grandes quanto da primeira Grandeza Aleacutem disso considerando

esta segunda Forma da Grandeza novamente uma coisa grande uma terceira

Forma surgiria e assim ad infinitum Portanto segundo este raciociacutenio nenhuma

Forma seria numericamente uacutenica uma vez que o proacuteprio poder causal exercido

pelas Formas seria razatildeo de sua infinita multiplicaccedilatildeo Frente a esta multiplicaccedilatildeo

indesejada das Formas Soacutecrates procura uma saiacuteda inteiramente diversa

formulando uma hipoacutetese completamente inesperada50

ldquoMas Parmecircnides disse Soacutecrates vai ver cada uma dessas Formas eacute um pensamento e natildeo lhe cabe surgir em nenhum outro lugar a natildeo ser nas almas Pois sendo assim cada uma seria uma e natildeo mais seria afetada pelo que haacute pouco foi ditordquo Ἀλλά φάναι ὦ Παρmicroενίδη τὸν Σωκράτη microὴ τῶν εἰδῶν ἕκαστον ᾖ τούτων νόηmicroα καὶ οὐδαmicroοῦ αὐτῷ προσήκῃ ἐγγίγνεσθαι ἄλλοθι ἢ ἐν ψυχαῖς οὕτω γὰρ ἂν ἕν γε ἕκαστον εἴη καὶ οὐκ ἂν ἔτι πάσχοι ἃ νυνδὴ ἐλέγετο (132b3-6)

Tendo defendido anteriormente que as Formas satildeo entidades inteligiacuteveis

isto eacute apreendidas pela razatildeo Soacutecrates procura escapar dos paradoxos de

Parmecircnides afirmando que as Formas satildeo elas mesmas pensamentos (νοήmicroατα)

Entendidas como pensamentos cada uma das Formas manteria sua unidade

caracteriacutestica e natildeo estaria em qualquer outro lugar senatildeo na alma daquele que a

percebe Eacute importante notar contudo que natildeo devemos interpretar a sugestatildeo de

50 A idiossincrasia da proposta de Soacutecrates estaacute refletida no fato de que excluindo a presente

passagem e uma citaccedilatildeo ao poema de Parmecircnides no Sofista a palavra νόηmicroα soacute aparece trecircs vezes em toda obra platocircnica e em contextos sem grande importacircncia (cf Men95e5 Banq197e5 Pol260d8)

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Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de um subjetivismo radical de acordo com o qual as

Formas deixariam de possuir um estatuto ontoloacutegico separado e passariam a ser

completamente dependentes da mente daqueles que as concebe Caso o presente

passo da argumentaccedilatildeo socraacutetica pudesse ser entendido como a transformaccedilatildeo das

Formas em meros conteuacutedos de pensamento ou produtos da atividade da mente

humana estariacuteamos frente a uma nova concepccedilatildeo de Formas certamente

problemaacutetica poreacutem completamente distinta da noccedilatildeo de Formas defendida por

Soacutecrates desde o iniacutecio da discussatildeo Neste caso a proposta de Soacutecrates

representaria muito mais o abandono total da hipoacutetese das Formas do que uma

tentativa de reformulaccedilatildeo desta hipoacutetese

Como nada no texto indica que Soacutecrates esteja rompendo por completo

com a Teoria das Ideias devemos acreditar que a proposta de compreensatildeo das

Formas como pensamentos representa apenas mais uma tentativa de manter a

unidade e integridade caracteriacutesticas destas entidades sem que permaneccedila

inviabilizada a relaccedilatildeo causal que elas mantecircm com os objetos do mundo sensiacutevel

O que Soacutecrates pretende afirmar portanto eacute que as Formas devem ser entendidas

como conceitos universais acessiacuteveis pela alma humana Assim as coisas se

relacionariam com as Formas apenas por meio do pensamento humano e

poderiacuteamos salvar a hipoacutetese da causalidade das Formas ao menos no que diz

respeito agrave nossa apreensatildeo do mundo sensiacutevel Ao mesmo tempo permaneceriam

mantidas as caracteriacutesticas ontoloacutegicas de unidade e integridade das Formas

Parmecircnides no entanto demonstra rapidamente a impossibilidade desta

proposta se todo pensamento eacute pensamento de alguma coisa (νόηmicroα hellip τινός) e

ainda eacute pensamento de alguma coisa que eacute (τινός hellip ὄντος) entatildeo a hipoacutetese de

que a relaccedilatildeo entre Formas e coisas se daacute apenas no acircmbito da mente humana eacute

insustentaacutevel e o pensamento deve novamente ser entendido como uma Forma

uacutenica sobre uma multiplicidade de coisas sensiacuteveis (εἶδος hellip ἓν εἶναι ἀεὶ ὂν τὸ

αὐτὸ ἐπὶ πᾶσιν)

Ficando restabelecido o relacionamento direto entre Formas e coisas pois

todo pensamento eacute pensamento de alguma coisa a proposta de Soacutecrates se mostra

evidentemente contraditoacuteria Afinal se as Formas satildeo pensamentos e as coisas

participam nas Formas entatildeo todas as coisas participam do pensamento e

consequentemente o pensamento estaacute em todas as coisas Ora eacute evidente que nos

dois casos contradiccedilotildees surgiriam Por um lado se todas as coisas participam do

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pensamento entatildeo todas as coisas pensam (πάντα νοεῖν) o que eacute absurdo Por

outro lado por estar presente em todas as coisas o pensamento estaria presente

em coisas que pensam como homens poreacutem tambeacutem em coisas que natildeo pensam

Neste segundo caso teriacuteamos coisas que satildeo pensamento na medida em que

possuem pensamentos em si (ἐκ νοηmicroάτων ἕκαστον εἶναι) poreacutem natildeo pensam

(νοήmicroατα ὄντα ἀνόητα εἶναι) Para usarmos um exemplo concreto se uma pedra

possui a Forma da Grandeza e esta Forma por sua vez eacute um pensamento entatildeo

ou bem temos que admitir que a pedra eacute capaz de pensar ou bem temos que

admitir que a pedra possui em si um pensamento poreacutem natildeo pensa Por fim

atraveacutes destes simples argumentos Soacutecrates eacute levado mais uma vez a reconhecer

o evidente fracasso de sua tentativa

Apesar de sua sugestatildeo anterior ter sido enunciada com certa hesitaccedilatildeo51

Soacutecrates agora se mostra bastante confiante para apresentar uma nova proposta

Ele entatildeo afirma que as Formas devem ser entendidas como paradigmas

(παραδείγmicroατα) enquanto que as coisas sensiacuteveis que delas participam devem ser

entendidas como imagens produzidas a partir das Formas (εἰκασθῆναι αὐτοῖς)

ldquoMas Parmecircnides a mim estaacute sendo evidente que o que se passa eacute antes o seguinte que estas Formas estatildeo na natureza como paradigmas e que as outras coisas se parecem com elas e satildeo semelhanccedilas delas E que essa participaccedilatildeo nas Formas para estas outras coisas natildeo vem a ser senatildeo o serem estas feitas como imagens daquelasrdquo ἀλλ ὦ Παρmicroενίδη microάλιστα ἔmicroοιγε καταφαίνεται ὧδε ἔχειν τὰ microὲν εἴδη ταῦτα ὥσπερ παραδείγmicroατα ἑστάναι ἐν τῇ φύσει τὰ δὲ ἄλλα τούτοις ἐοικέναι καὶ εἶναι ὁmicroοιώmicroατα καὶ ἡ microέθεξις αὕτη τοῖς ἄλλοις γίγνεσθαι τῶν εἰδῶν οὐκ ἄλλη τις ἢ εἰκασθῆναι αὐτοῖς (132c12-d4)

Esta uacuteltima proposta possui a aparente virtude de anunciar uma explicaccedilatildeo

completamente nova para relaccedilatildeo de participaccedilatildeo ao inveacutes de simplesmente

oferecer mais um modo de entendermos a presenccedila das Formas nas coisas Frente

a todas as criacuteticas anteriormente formuladas por Parmecircnides Soacutecrates introduz agrave

discussatildeo a possibilidade das Formas serem entendidas como modelos ou

paradigmas aos quais os objetos sensiacuteveis se assemelham Entendida desta

maneira a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo natildeo implicaria na presenccedila das Formas nas

coisas e portanto representaria uma real alternativa ao dilema formulado por

51 Compare as palavras que iniciam sua proposta anterior (Ἀλλά hellip microὴ) com as palavras usadas

para introduzir sua presente proposta (microάλιστα ἔmicroοιγε καταφαίνεται)

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Parmecircnides no iniacutecio da discussatildeo e que vem dominando o debate desde entatildeo

De acordo com a presente sugestatildeo uma Forma deve ser entendida com

um modelo enquanto os objetos sensiacuteveis seriam como as diversas coacutepias que um

artista produz a partir da contemplaccedilatildeo deste modelo Portanto segundo a

descriccedilatildeo socraacutetica participar de uma determinada Forma seria equivalente a ser

semelhante ou ser uma coacutepia desta Forma Note que a princiacutepio a relaccedilatildeo ldquoser-

semelhante-ardquo pode ser entendida como uma relaccedilatildeo assimeacutetrica Ou seja

podemos pensar casos em que x eacute semelhante a y poreacutem y natildeo eacute semelhante a x

Pense por exemplo na relaccedilatildeo estabelecida entre Soacutecrates e as diversas

representaccedilotildees graacuteficas de Soacutecrates que foram produzidas no decorrer da histoacuteria

Podemos perfeitamente conceber que todas estas representaccedilotildees se assemelham a

Soacutecrates enquanto por outro lado Soacutecrates natildeo se assemelha a nenhuma delas

Entendida desta maneira a compreensatildeo de participaccedilatildeo como semelhanccedila natildeo

daria lugar a um regresso ao infinito No entanto Parmecircnides iraacute focar sua criacutetica

na demonstraccedilatildeo de que a relaccedilatildeo de semelhanccedila pressupotildee um caraacuteter simeacutetrico

ainda que Soacutecrates natildeo esteja plenamente consciente disto

ldquoSe entatildeo algo se parece com uma Forma disse Parmecircnides eacute possiacutevel essa Forma natildeo ser semelhante agravequilo que eacute feito como sua imagem na medida em que esta foi feita semelhante a ela Ou seraacute que haacute um meio de o semelhante natildeo ser semelhante ao semelhante Natildeo haacute Mas seraacute que natildeo eacute fortemente necessaacuterio o semelhante participar da mesma coisa uma que [seu] semelhante Eacute necessaacuterio sim Aquilo de que participando as coisas semelhantes seratildeo semelhantes natildeo seraacute a Forma mesma Absolutamente sim Logo natildeo eacute possiacutevel algo ser semelhante agrave Forma nem a Forma ser semelhante a outra coisa Senatildeo ao lado da Forma sempre apareceraacute outra Forma e se esta for semelhante a algo apareceraacute de novo outra e nunca cessaraacute de surgir sempre uma nova Forma se a Forma for semelhante ao que dela participardquo Εἰ οὖν τι ἔφη ἔοικεν τῷ εἴδει οἷόν τε ἐκεῖνο τὸ εἶδος microὴ ὅmicroοιον εἶναι τῷ εἰκασθέντι καθ ὅσον αὐτῷ ἀφωmicroοιώθη ἢ ἔστι τις microηχανὴ τὸ ὅmicroοιον microὴ ὁmicroοίῳ ὅmicroοιον εἶναι Οὐκ ἔστι Τὸ δὲ ὅmicroοιον τῷ ὁmicroοίῳ ἆρ οὐ microεγάλη ἀνάγκη ἑνὸς τοῦ αὐτοῦ microετέχειν Ἀνάγκη Οὗ δ ἂν τὰ ὅmicroοια microετέχοντα ὅmicroοια ᾖ οὐκ ἐκεῖνο ἔσται αὐτὸ τὸ εἶδος Παντάπασι microὲν οὖν Οὐκ ἄρα οἷόν τέ τι τῷ εἴδει ὅmicroοιον εἶναι οὐδὲ τὸ εἶδος ἄλλῳ εἰ δὲ microή παρὰ τὸ εἶδος ἀεὶ ἄλλο ἀναφανήσεται εἶδος καὶ ἂν ἐκεῖνό τῳ ὅmicroοιον ᾖ ἕτερον αὖ καὶ οὐδέποτε παύσεται ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον ἐὰν τὸ εἶδος τῷ ἑαυτοῦ microετέχοντι ὅmicroοιον γίγνηται (132d5-133a1)

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A demonstraccedilatildeo de Parmecircnides guarda novamente profundas

similaridades com o tipo de regresso ao infinito descrito por Alexandre de

Afrodiacutesia De acordo com a proposta socraacutetica diversas coisas belas possuem a

propriedade da beleza porque satildeo semelhantes agrave Beleza ela mesma (ἔοικεν τῷ

εἴδει) Parmecircnides entatildeo argumenta que caso as muacuteltiplas coisas belas sensiacuteveis

sejam semelhantes agrave Forma da Beleza entatildeo a Forma da Beleza seraacute tambeacutem

semelhante a elas Afinal devemos pressupor que coisas semelhantes se

assemelham por compartilhar alguma propriedade em comum (τὸ ὅmicroοιον τῷ

ὁmicroοίῳ ἀνάγκη ἑνὸς τοῦ αὐτοῦ microετέχειν) em nosso exemplo a propriedade da

beleza Neste caso contudo uma nova Forma da Beleza surgiria Esta nova

Forma teria a funccedilatildeo de explicar a beleza compartilhada pelas coisas belas e pela

Beleza ela mesma (παρὰ τὸ εἶδος ἀεὶ ἄλλο ἀναφανήσεται εἶδος) Tal como

ocorrido anteriormente este processo se repetiria indefinidamente (οὐδέποτε

παύσεται ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον) e acabariacuteamos por ter que admitir a

existecircncia de uma infinidade de Formas da Beleza numericamente distintas

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431 A formalizaccedilatildeo do Argumento do Terceiro Homem

O lugar de destaque que criacuteticas agrave Teoria das Ideias envolvendo regressotildees

ao infinito receberam ainda no tempo de Platatildeo fica comprovado pelas menccedilotildees

de Aristoacuteteles a estes argumentos O comentaacuterio de Alexandre nos garante ainda

que tal posiccedilatildeo de destaque se manteacutem por todo periacuteodo heleniacutestico Apesar disso

a tradiccedilatildeo de comentaacuterios moderna iniciada na Alemanha do seacuteculo XIX parece

ter relegado este tipo de argumento agrave condiccedilatildeo de uma simples falaacutecia ou

colocando-o em peacute de igualdade aos argumentos decorrentes do dilema da

participaccedilatildeo (cf Waddell 1894 p94-95 99-100) Esta situaccedilatildeo modifica-se

completamente a partir da segunda metade do seacuteculo XX quando a publicaccedilatildeo de

um artigo de Gregory Vlastos (1955) restitui ao Argumento do Terceiro Homem

entendido agora estritamente como a demonstraccedilatildeo de uma multiplicaccedilatildeo infinita

do nuacutemero de Formas seu lugar de importacircncia em meio agraves criacuteticas agrave Teoria das

Ideias

O artigo de Vlastos possui como tema central a reconstruccedilatildeo da estrutura

loacutegica dos argumentos encontrados no Parmecircnides Como vimos anteriormente

uma leitura das passagens em que as duas versotildees do regresso estatildeo anunciadas

permite um entendimento relativamente claro do raciociacutenio envolvido Poreacutem

como o amplo debate que se seguiu agrave publicaccedilatildeo do artigo de Vlastos demonstra

a reconstruccedilatildeo precisa das premissas implicadas no argumento natildeo eacute uma tarefa

simples Afinal eacute evidente que da maneira como estatildeo formulados no

Parmecircnides os argumentos necessitam de premissas natildeo expressas para que

sejam considerados vaacutelidos De fato a uacutenica premissa explicitamente apresentada

no texto de nosso diaacutelogo tanto no argumento de 131e-132b quanto no argumento

de 132d-133a eacute aquela que afirma a partir de uma multiplicidade de coisas que

recebem um determinado predicado F a existecircncia de uma Forma F em virtude da

qual todas as coisas recebem o predicado F Esta premissa eacute chamada por Vlastos

de premissa ldquoUm sobre Muitosrdquo (UM) e eacute apresentada em seu artigo de 1955

por meio da seguinte formulaccedilatildeo

(UMv) Se vaacuterias coisas a b c satildeo todas F entatildeo deve haver uma Forma uacutenica F-

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idade em virtude da qual apreendemos a b c como F

A argumentaccedilatildeo prosseguiria da seguinte maneira A partir de uma

multiplicidade de coisas F aplicariacuteamos a premissa (UM) para gerarmos uma

Forma de F-idade Esta Forma eacute entatildeo adicionada agrave coleccedilatildeo inicial e por meio de

mais uma aplicaccedilatildeo de (UM) gerariacuteamos outra Forma Esta nova Forma eacute

adicionada agrave coleccedilatildeo anterior e a premissa (UM) eacute aplicada novamente para gerar

uma nova Forma O mesmo processo poderia ser repetido ad infinitum

Eacute muito claro contudo que a premissa (UM) por si soacute natildeo eacute capaz de

gerar o regresso previamente descrito Afinal nenhuma claacuteusula foi oferecida para

a aplicaccedilatildeo reiterada da premissa (UM) aleacutem de nada nos obrigar a considerar

que cada nova aplicaccedilatildeo de (UM) seja responsaacutevel pelo surgimento de uma nova

Forma numericamente distinta daquela que foi gerada na aplicaccedilatildeo anterior deste

mesmo princiacutepio

Em vista disto Vlastos conclui que ldquoPlatatildeo devia ter algo mais em menterdquo

(Vlastos 1955 p236) e propotildee que na condiccedilatildeo de inteacuterpretes completemos as

lacunas do texto platocircnico Assim como justificativa para reitera aplicaccedilatildeo da

premissa (UM) Vlastos propotildee a seguinte premissa adicional

(APv) F-idade eacute F

Por meio desta premissa de ldquoAuto-Predicaccedilatildeordquo (AP)52 podemos explicar a

adiccedilatildeo da Forma F-idade ao grupo de coisas a b c Afinal (AP) garante que a

Forma F-idade eacute F tal como a b c Desta maneira apoacutes cada aplicaccedilatildeo de (UM)

estariacuteamos frente a um novo conjunto de entidades (Formas e coisas) todas elas

possuidoras de um mesmo predicado F o que nos permitiria uma nova aplicaccedilatildeo

de (UM)

Por outro lado para justificar a inferecircncia de que cada aplicaccedilatildeo de (OM)

produz uma Forma inteiramente nova Vlastos propotildee a seguinte premissa

(NIv) Se x eacute F entatildeo x natildeo pode ser idecircntico a F-idade

52 Entenderei durante toda discussatildeo subsequente que (AP) implica na univocidade de aplicaccedilatildeo

do predicado F isto eacute F-idade eacute F do mesmo modo que um objeto sensiacutevel x eacute F

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Por meio da adiccedilatildeo desta segunda premissa podemos garantir a natildeo

identidade entre cada uma das Formas geradas pelas diferentes aplicaccedilotildees de

(UM) Isto porque segundo (NI) qualquer coisa que seja F em virtude da

participaccedilatildeo em uma determinada Forma natildeo pode ser idecircntica agrave Forma da qual

participa Portanto a Forma produzida pela segunda aplicaccedilatildeo de (UM) natildeo pode

ser idecircntica agrave Forma produzida pela primeira aplicaccedilatildeo de (UM) caso contraacuterio

violaria (NI) e seria idecircntica agrave Forma em virtude da qual ela mesma eacute F

A accedilatildeo conjunta destas trecircs premissas eacute capaz de gerar o regresso ao

infinito que o personagem Parmecircnides apresenta explicitamente como a conclusatildeo

de seu argumento tanto em 132b quanto em 133a Contudo conforme notado pelo

proacuteprio Vlastos as duas premissas por ele adicionadas ao texto do diaacutelogo

possuem a caracteriacutestica de serem mutuamente inconsistentes Afinal a partir de

(NI) podemos facilmente inferir que F-idade natildeo eacute F contudo isto eacute justamente o

contraditoacuterio do que afirma (AP) Vlastos no entanto permanece convencido de

que estas satildeo exatamente as premissas que devemos atribuir a Soacutecrates E em

vista disto conclui que Platatildeo natildeo estava plenamente ciente das implicaccedilotildees de

seu argumento e nos apresenta estes dois regressos como um ldquoregistro de sua

honesta perplexidaderdquo (Vlastos 1955 p254)

Diversas publicaccedilotildees se seguiram ao artigo de Vlastos muitas delas com o

claro objetivo de formular um conjunto de premissas que natildeo estivesse sujeito agrave

inconsistecircncia encontrada na proposta inicial Sellars (1955) por exemplo

observa que Vlastos havia usado a expressatildeo ldquoF-idaderdquo como um designador

direto para as Formas e como alternativa propotildee que entendamos esta expressatildeo

como uma variaacutevel sujeita agrave quantificaccedilatildeo Assim concebidas as premissas do

Argumento do Terceiro Homem receberiam a seguinte formulaccedilatildeo

(UMs) Se vaacuterias coisas satildeo F entatildeo deve haver alguma F-idade em virtude da

qual estas coisas satildeo F

(APs)Todas F-idades satildeo F

(NIs) Se x eacute F entatildeo x natildeo eacute idecircntico agrave F-idade em virtude da qual x eacute F

(Sellars 1955 p418-419)

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Estas trecircs premissas satildeo de fato mutuamente consistentes aleacutem de serem

capazes de gerar o regresso ao infinito necessaacuterio para conclusatildeo dos argumentos

No entanto segundo Vlastos (1969) a formulaccedilatildeo proposta por Sellars para a

premissa (UMs) natildeo corresponde ao que encontramos no texto do Parmecircnides

Afinal em nosso diaacutelogo estaacute explicitamente afirmado que uma uacutenica Forma eacute

gerada a partir de uma determinada multiplicidade de coisas F (microία τις ἰδέα ἡ αὐτὴ

εἶναι ἐπὶ πάντα) enquanto a formulaccedilatildeo de Sellars faz uso de um quantificador

existencial ordinaacuterio cujo sentido deve ser entendido como ldquopelo menos uma

Formardquo

Concluindo que nenhuma formulaccedilatildeo de (UM) poderia estar correta sem

respeitar a singularidade implicada no raciociacutenio platocircnico Vlastos oferece uma

revisatildeo de seu conjunto de premissas

(UMv) Se qualquer conjunto de coisas compartilha uma mesma caracteriacutestica

entatildeo existe uma uacutenica Forma correspondente a esta caracteriacutestica e cada uma

destas coisas possui esta caracteriacutestica por participar nesta Forma

(APv) A Forma correspondente a uma determinada caracteriacutestica possui ela

mesma esta caracteriacutestica

(NIv) Se qualquer coisa possui uma determinada caracteriacutestica por participar em

uma Forma entatildeo esta coisa natildeo eacute idecircntica a esta Forma

(Vlastos 1969 p348-351)

Nesta nova formulaccedilatildeo do Argumento do Terceiro Homem natildeo haacute conflito

entre (AP) e (NI) Contudo se tomarmos as trecircs premissas em conjunto vemos

surgir uma nova inconsistecircncia Pois suponha que haacute uma seacuterie de coisas

possuidoras de uma mesma caracteriacutestica F entatildeo de acordo com (UMv) haveraacute

uma uacutenica Forma F correspondente agrave caracteriacutestica F Esta Forma por sua vez

possuiraacute ela mesma a caracteriacutestica F (APv) e compartilharaacute esta caracteriacutestica

com seus participantes No entanto por compartilhar de uma mesma caracteriacutestica

F a Forma F necessariamente participaria da Forma correspondente a esta

caracteriacutestica (UMv) Ora esta Forma eacute a proacutepria Forma F e portanto a Forma F

participaria de si mesma o que contradiz a premissa (Niv) A nova proposta de

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Vlastos resolveu a inconsistecircncia entre (NI) e (AP) apenas para criar outra

inconsistecircncia agora envolvendo as trecircs premissas do argumento

O problema de termos um conjunto inconsistente de premissas eacute que neste

caso o regresso ao infinito eacute gerado trivialmente isto eacute qualquer conjunto

inconsistente de premissas seria suficiente para gerar o regresso assim como o

mesmo conjunto de premissas poderia ser usado para gerar qualquer conclusatildeo na

medida em que ex falso sequitur quodlibet Assim entendido portanto o

argumento natildeo constituiria uma criacutetica vaacutelida agrave Teoria das Ideias e representaria

apenas uma evidecircncia indireta da contradiccedilatildeo inerente agraves premissas desta teoria

Surpreendentemente Vlastos acolhe esta particularidade de sua

interpretaccedilatildeo E mesmo em seus artigos posteriores continua mantendo a opiniatildeo

de que ambos os regressos apresentados no Parmecircnides satildeo muito mais

expressotildees imprecisas da perplexidade de Platatildeo do que argumentos vaacutelidos e

criacuteticas relevantes agrave sua concepccedilatildeo de Formas Assim Vlastos conclui que o

resultado da multiplicaccedilatildeo infinita do nuacutemero de Formas natildeo passa de ldquoum mero

bocircnus (hellip) adicionado somente pelo seu efeito retoacutericordquo (Vlastos 1969 p352)

Este tipo de interpretaccedilatildeo no entanto natildeo parece estar de acordo com o

texto de nosso diaacutelogo Em primeiro lugar teriacuteamos que menosprezar o fato de

que o texto claramente afirma a produccedilatildeo de um regresso ao infinito como o

resultado de ambos os argumentos apresentados por Parmecircnides (οὐκέτι δὴ ἓν

ἕκαστόν σοι τῶν εἰδῶν ἔσται ἀλλὰ ἄπειρα τὸ πλῆθος 132b2 οὐδέποτε παύσεται

ἀεὶ καινὸν εἶδος γιγνόmicroενον 133a1) e segundo Vlastos este resultado seria

apenas um acreacutescimo retoacuterico A multiplicaccedilatildeo infinita do nuacutemero de Formas estaacute

de pleno acordo com a estrutura geral das criacuteticas de Parmecircnides que como jaacute

sabemos concentram-se em demonstrar a impossibilidade das Formas manterem

sua unidade (numeacuterica e aspectual) ao mesmo tempo em que satildeo causas das

propriedades dos objetos sensiacuteveis

Em segundo lugar aceitar a sugestatildeo de que o conjunto de premissas

envolvido em nossos argumentos eacute inevitavelmente inconsistente equivale a

afirmar que Platatildeo representa o personagem Parmecircnides propondo criacuteticas

confusas nas quais a conclusatildeo natildeo se segue das premissas Esta admissatildeo

entretanto tornaria este par de argumentos completamente desviante agrave estrutura de

argumentaccedilatildeo que identificamos em nosso diaacutelogo Pois ateacute aqui toda seacuterie de

argumentos demonstrou possuir rigor loacutegico Devemos portanto buscar um

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conjunto consistente de premissas para nossos argumentos de modo a tornaacute-los

vaacutelidos e condizentes com a estrutura dramaacutetica que identificamos ateacute o presente

momento da discussatildeo

De fato diversos autores se dedicaram agrave tarefa de construir um conjunto

consistente de premissas para estes argumentos Como ficou comprovado a

formulaccedilatildeo deste conjunto depende da possibilidade de usarmos quantificaccedilotildees de

segunda ordem sobretudo se pretendemos manter a claacuteusula de singularidade em

(UM) defendida por Vlastos (cf Cohen 1971 p448-475) (cf Mignucci 1990)

Isto eacute precisariacuteamos usar variaacuteveis natildeo apenas sobre Formas e coisas mas

tambeacutem sobre funccedilotildees e conjuntos de Formas e coisas para mantermos a correccedilatildeo

do argumento sem abrir matildeo da formulaccedilatildeo singular de (UM) proposta por

Vlastos53

Formulaccedilotildees envolvendo um aparato loacutegico muito complexo no entanto

possuem a desvantagem de se distanciarem demais de um argumento apresentado

em linguagem relativamente simples E ainda estatildeo sujeitas agrave criacutetica de que

Platatildeo natildeo poderia ter pensado nestes termos na medida em que tais categorias

ainda natildeo faziam parte das anaacutelises loacutegicas disponiacuteveis em seu tempo

Devemos lembrar contudo que o conjunto de premissas apresentado por

Sellars (1955) jaacute possuiacutea o caraacuteter de ser consistente e gerar de maneira vaacutelida a

conclusatildeo expressamente apresentada por Parmecircnides Este conjunto havia sido

descartado por Vlastos com base em uma argumentaccedilatildeo puramente textual De

acordo Vlastos (1969) a formulaccedilatildeo do princiacutepio (UMs) natildeo faria jus agrave fala de

Parmecircnides em 132a2 Pois nesta sentenccedila estaria expressamente afirmado que

uma uacutenica Forma F pode ser gerada a partir de um conjunto qualquer de coisas F

(microία τις ἰδέα ἡ αὐτὴ εἶναι ἐπὶ πάντα) enquanto a formulaccedilatildeo de Sellars faz

menccedilatildeo a ldquoalguma Formardquo

A criacutetica de Vlastos se desenvolve da seguinte maneira em 132a1 a

expressatildeo ldquocada uma Formardquo (ἓν ἕκαστον εἶδος) estaacute apresentada em oposiccedilatildeo agrave

ldquoilimitadas em quantidadesrdquo (ἄπειρα τὸ πλῆθος 132b2) De maneira a manter esta

oposiccedilatildeo devemos entender ldquouma Formardquo como equivalente a ldquoapenas uma

53 Cohen em ldquoThe Logic of the Third Manrdquo (1971) constroacutei usando quantificaccedilotildees de segunda

ordem um conjunto consistente de premissas com base em uma analogia com os postulados de Peano e a derivaccedilatildeo da sequecircncia de nuacutemeros racionais Mignucci (1990) tambeacutem propotildee um conjunto consistente de premissas capazes de gerar o regresso desejado poreacutem novamente com base em um instrumental da loacutegica de segunda ordem

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Formardquo Portanto alega Vlastos o mesmo sentido deve ser atribuiacutedo agrave expressatildeo

ldquouma certa ideiardquo (microία τις ἰδέα) em 132a2 Assim o que Parmecircnides estaria

dizendo eacute que deve haver uma uacutenica Forma capaz de explicar porque toda e

qualquer coisa F recebe este predicado Como consequecircncia Vlastos afirma que

devemos incluir uma claacuteusula de singularidade na formulaccedilatildeo de (UM) a despeito

da correccedilatildeo loacutegica do argumento (Vlastos 1969 p354-355)

A pergunta que devemos fazer eacute se a interpretaccedilatildeo de Vlastos para a

expressatildeo microία τις ἰδέα eacute a uacutenica possiacutevel Na realidade como o proacuteprio Vlastos

afirma a oposiccedilatildeo necessaacuteria entre ldquouma Formardquo e ldquomuacuteltiplas Formasrdquo estaacute

estabelecida pelo contraste entre as expressotildees ἓν ἕκαστον εἶδος e ἄπειρα τὸ

πλῆθος Portanto o sentido geral de nosso argumento que pretende gerar uma

infinidade de Formas como maneira de contradizer a tese socraacutetica da

singularidade destas entidades jaacute estaacute garantido de antematildeo a despeito de como

entendamos a expressatildeo microία τις ἰδέα A razatildeo principal oferecida por Vlastos para

a leitura estritamente singular de microία τις ἰδέα estaacute no fato de que esta expressatildeo

encontra-se localizada entre ἓν ἕκαστον εἶδος (132a1) e ἓν τὸ microέγα (132a3) e

sendo assim devemos entender que as trecircs foacutermulas expressam por proximidade

e analogia exatamente a mesma tese

Ora podemos concordar que tanto em (132a1) quanto (132a3) o termo ἓν

significa ldquoapenas umardquo Contudo disto natildeo se segue que o termo microία em microία τις

ἰδέα ἡ αὐτὴ εἶναι possui o mesmo significado Em (132a1) e (132a3) o termo ἓν

aparece como um predicado enquanto o termo microία eacute um adjetivo do sujeito ἰδέα

na expressatildeo controversa Haacute uma grande diferenccedila entre se dizer que ldquox eacute umrdquo e

se dizer que ldquoum x eacute Frdquo Mesmo se no primeiro caso podemos afirmar que ldquoumrdquo

equivale a ldquoapenas umrdquo natildeo temos razotildees suficiente para afirmar que no segundo

caso ldquoumrdquo natildeo possa estar significando ldquopelo menos umrdquo Por possuiacuterem funccedilotildees

sintaacuteticas distintas os termos ἓν e microία podem ter significados distintos sem que o

texto seja considerado contraditoacuterio ou obscuro

Frente agrave validade da leitura de 132a2 como (UMs) podemos considerar o

conjunto de premissas apresentado por Sellars (Sellars 1955 p418-419) como

uma formalizaccedilatildeo adequada para os pressupostos envolvidos no Argumento do

Terceiro Homem Esta formalizaccedilatildeo possui a virtude de tornar os argumentos

apresentados pelo personagem Parmecircnides vaacutelidos ao mesmo tempo em que

apresenta premissas plausiacuteveis e facilmente identificaacuteveis na argumentaccedilatildeo

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desenvolvida por Soacutecrates Adotando o conjunto de premissas apresentado por

Sellars o raciociacutenio por traacutes dos argumentos de Parmecircnides poderia ser

esquematizado da seguinte maneira

Para o argumento de 131e-132b

1) A partir de uma multiplicidade a b c de coisas grandes

afirmamos a existecircncia da Forma do Grande (UMs)

2) A Forma do Grande eacute incluiacuteda no conjunto de coisas grandes

(APs)

3) A Forma do Grande natildeo pode ser grande em virtude de si mesma

(NIs)

4) Logo o conjunto de coisas grandes a b c Forma do Grande natildeo

pode ser considerado grande em virtude da Forma do Grande e

precisamos afirmar a existecircncia de uma nova Forma Grande2

(UMs)

5) A Forma do Grande2 eacute incluiacuteda no conjunto de coisas grandes

(APs)

6) A Forma do Grande2 natildeo pode ser grande em virtude de si mesma

(NIs)

7) Logo o conjunto de coisas grandes a b c Forma do Grande

Forma do Grande2 natildeo pode ser considerado grande em virtude

da Forma do Grande2 e precisamos afirmar a existecircncia de uma

nova Forma Grande3 (UMs)

etc

Para o argumento de 132d-133a

1) Diversas coisas a b c satildeo F em virtude de serem semelhantes agrave

Forma F (UMs)

2) a b c satildeo semelhantes agrave Forma F por compartilharem com esta

Forma a propriedade de serem F (APs)

3) A Forma F natildeo pode ser F em virtude de ser semelhante a si

mesma (NIs)

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4) Logo o conjunto a b c Forma F natildeo pode ser considerado F em

virtude de cada um de seus membros ser semelhante agrave Forma F e

precisamos afirmar a existecircncia de uma nova Forma F2 (UMs)

5) a b c Forma F satildeo semelhantes agrave Forma F2 por compartilharem

com esta Forma a propriedade de serem F (APs)

6) A Forma F2 natildeo pode ser F em virtude de ser semelhante a si

mesma (NIs)

7) Logo o conjunto a b c Forma F Forma F2 natildeo pode ser

considerado F em virtude de cada um de seus membros ser

semelhante agrave Forma F2 e precisamos afirmar a existecircncia de uma

nova Forma F3 (UMs)

etc

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432 A auto-predicaccedilatildeo das Formas

Fazendo uso dos dois regressos acima descritos Parmecircnides eacute capaz de

mais uma vez demonstrar a impossibilidade de serem mantidas simultaneamente

a tese do poder causal das Formas e a tese de que as Formas satildeo entidades uacutenicas

Eacute evidente contudo que os regressos apresentados por Parmecircnides soacute podem ser

considerados legiacutetimas criacuteticas agrave teoria socraacutetica caso as trecircs premissas em que

estes argumentos estatildeo baseados sejam de fato adotadas por Soacutecrates

Se olharmos para as trecircs assunccedilotildees necessaacuterias para a validade do

Argumento do Terceiro Homem podemos reconhecer que duas delas satildeo muito

evidentemente defendidas por Soacutecrates A premissa (UM) por exemplo formaliza

o poder causal atribuiacutedo agraves Formas pela Teoria das Ideias Como vimos uma das

hipoacuteteses centrais da teoria defendida por Soacutecrates desde os primeiros diaacutelogos

afirma que os objetos sensiacuteveis adquirem suas propriedades por meio da

participaccedilatildeo nas Formas De fato em Repuacuteblica 596a6-7 Soacutecrates trata como

parte de seu ldquomeacutetodo habitualrdquo (εἰωθυίας microεθόδου) afirmar a existecircncia (τίθεσθαι)

de uma uacutenica Forma para ldquocada conjunto de muacuteltiplas coisas agraves quais atribuiacutemos

um mesmo nomerdquo (ἕκαστα τὰ πολλά οἷς ταὐτὸν ὄνοmicroα ἐπιφέροmicroεν)54 Da mesma

maneira a premissa (NI) natildeo passa de uma implicaccedilatildeo direta da tese socraacutetica

segundo a qual as Formas satildeo entidades separadas Como sabemos a separaccedilatildeo

das Formas equivale agrave afirmaccedilatildeo da independecircncia ontoloacutegica destas entidades

que natildeo necessitam dos objetos sensiacuteveis para existirem Ora da afirmaccedilatildeo de que

as Formas satildeo entidades ontologicamente independentes dos objetos que delas

participam segue-se (NI) ldquoSe qualquer coisa possui uma determinada

caracteriacutestica por participar em uma Forma entatildeo esta coisa natildeo eacute idecircntica a esta

Formardquo

A premissa (AP) contudo foi alvo de grande controversa e diversos

comentadores contestam sua legitimidade como parte da Teoria das Ideias Estes

comentadores tecircm que lidar com o fato de que Soacutecrates em diversos diaacutelogos faz

54 Note que na formulaccedilatildeo socraacutetica de (UM) em Repuacuteblica 596a6-7 εἶδος τι ἓν ἕκαστον estaacute em

oposiccedilatildeo a ἕκαστα τὰ πολλά o que natildeo inviabiliza a leitura de Sellars Na reconstruccedilatildeo acima proposta por exemplo cada conjunto de muacuteltiplas coisas ( ἕκαστα τὰ πολλά) corresponde a uma uacutenica Forma (εἶδος τι ἓν ἕκαστον) apesar dos elementos envolvidos participarem de mais de um conjunto e portanto terem mais de uma Forma como causa de suas propriedades

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afirmaccedilotildees na forma ldquoa F-idade eacute Frdquo No Hippiacuteas Maior (292e) por exemplo

Soacutecrates afirma que ldquoo Belo eacute sempre belordquo (ἀεὶ γάρ που τό γε καλὸν καλόν) No

Protaacutegoras (330c-e) explica que se existe alguma coisa chamada ldquoJusticcedilardquo ou

ldquoPiedaderdquo entatildeo a Justiccedila eacute necessariamente justa (ἡ δικαιοσύνη οἷον δίκαιον

εἶναι) e a Piedade pia (αὐτή γε ἡ ὁσιότης ὅσιον) Aleacutem disso no Banquete (210e-

211b) a Forma do Belo eacute claramente apresentada como algo belo Na realidade

como vimos o Belo ele mesmo eacute sempre belo (microονοειδὲς ἀεὶ ὄν) em contraste

com os objetos belos sensiacuteveis que satildeo belos em determinadas relaccedilotildees poreacutem

natildeo em outras (τῇ microὲν καλόν τῇ δ αἰσχρόν τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ etc) Aleacutem

disso atraveacutes do Feacutedon sabemos que Soacutecrates adota uma compreensatildeo da relaccedilatildeo

de causalidade segundo a qual uma Forma deve possuir a propriedade de que eacute

causa nos objetos sensiacuteveis

Frente a todas estas evidecircncias os comentadores adotam basicamente duas

estrateacutegias para negar que estas afirmaccedilotildees possam representar o

comprometimento de Soacutecrates com (AP) De acordo com um primeiro grupo de

inteacuterpretes as asserccedilotildees socraacuteticas na forma ldquoA F-idade eacute Frdquo ou ldquoo F ele mesmo eacute

Frdquo natildeo devem ser entendidas como oferecendo uma descriccedilatildeo ou caracterizaccedilatildeo

da Forma de F Isto eacute tais sentenccedilas seriam apenas aparentes exemplos de

predicaccedilatildeo Na realidade contudo natildeo teriam a funccedilatildeo de atribuir o predicado F agrave

Forma que ocupa o lugar de sujeito da sentenccedila Deste modo natildeo poderiam

representar ldquoauto-predicaccedilotildeesrdquo na medida em que sequer seriam casos de

predicaccedilatildeo A segunda estrateacutegia adotada pelos comentadores para negar que

Soacutecrates esteja comprometido com (AP) consiste em afirmar que apesar de

verdadeiras predicaccedilotildees sentenccedilas na forma ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo podem ser

equiparadas a sentenccedilas na forma ldquox eacute Frdquo em que x corresponde a uma entidade

sensiacutevel Teriacuteamos assim dois tipos distintos de predicaccedilatildeo a Forma F eacute F

poreacutem de um modo completamente diferente da coisa x ser F Natildeo havendo

uniformidade na maneira em que estes dois tipos de entidades recebem seus

predicados natildeo estaria justificada a inclusatildeo de F-idade no conjunto de coisas (a

b c) e o regresso estaria bloqueado em seu primeiro passo

Cada uma destas duas estrateacutegias baacutesicas de negar a validade de (AP) foi

defendida por mais de um argumento Portanto trataremos delas separadamente a

comeccedilar pelos comentadores que afirmam o primeiro tipo de abordagem segundo

o qual as sentenccedilas na forma ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo representam tentativas de

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descriccedilotildees das Formas e portanto natildeo satildeo legiacutetimas predicaccedilotildees

Reginald Allen (1960) baseia-se nas noccedilotildees de eponiacutemia e homoniacutemia

para afirmar que quando Soacutecrates chama uma determinada Forma F de F ele natildeo

estaacute propriamente atribuindo a esta Forma a caracteriacutestica de ser-F Segundo

Allen nas sentenccedilas do tipo ldquox eacute Frdquo em que particulares ocupam o lugar do

sujeito o predicado F estaacute normalmente descrevendo ou classificando o sujeito x

Contudo nas sentenccedilas auto-predicativas em que uma Forma estaacute ocupando o

lugar do sujeito o termo F possui uma funccedilatildeo completamente distinta e deve ser

entendido como um nome proacuteprio Allen faz uso de duas passagens no Feacutedon para

defender sua teoria Na primeira delas (78e1) Soacutecrates afirma que os objetos

sensiacuteveis satildeo homocircnimos (ὁmicroωνύmicroων) das Formas Enquanto na segunda

passagem (102b) oferece a explicaccedilatildeo de que as coisas sensiacuteveis ldquorecebem os

nomes das Formas em que participamrdquo (τἆλλα microεταλαmicroβάνοντα αὐτῶν τούτων

τὴν ἐπωνυmicroίαν ἴσχειν)

De acordo com Allen (1960 p45) estas duas passagens seriam suficientes

para afirmarmos que segundo a teoria defendida por Soacutecrates toda sentenccedila na

estrutura sujeito-predicado natildeo passa de uma reproduccedilatildeo por homoniacutemia das

relaccedilotildees entre Formas e coisas Isto eacute estas poucas linhas seriam evidecircncia

suficiente para atribuirmos a Soacutecrates uma teoria da significaccedilatildeo em que toda

predicaccedilatildeo ficaria reduzida a uma anaacutelise das relaccedilotildees de designaccedilatildeo atraveacutes de

nomes Assim em virtude da participaccedilatildeo na Forma F os objetos sensiacuteveis

recebem o nome desta Forma com uma de suas designaccedilotildees ganhando o direito

de serem verdadeiramente chamados de F

Apesar do iacutenfimo apoio textual oferecido como suporte para a atribuiccedilatildeo

de uma teoria da linguagem tatildeo extravagante a Soacutecrates Allen distingue em

seguida dois modos de designaccedilatildeo Um nome possuiria uma designaccedilatildeo

primaacuteria quando aplicado a uma Forma e uma designaccedilatildeo secundaacuteria quando

aplicado aos objetos sensiacuteveis Em sua designaccedilatildeo primaacuteria o termo F seria usado

como um nome proacuteprio que identifica a Forma F poreacutem natildeo a descreve A

relaccedilatildeo de designaccedilatildeo secundaacuteria por outro lado seria essencialmente derivativa

e atribuiria a uma entidade sensiacutevel um nome que lhe pertence apenas

indiretamente devido agrave relaccedilatildeo de homoniacutemia que esta entidade manteacutem com

uma Forma

Aceitando a explicaccedilatildeo de Allen somos obrigados a reconhecer que

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sentenccedilas do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo servem para descrever a F-idade uma vez

que o termo F natildeo passa de um mais um nome desta Forma Assim todo caso de

aparente auto-predicaccedilatildeo das Formas natildeo passaria de uma tautologia entre

sinocircnimos e natildeo afirmaria nada aleacutem da identidade da Forma F com ela mesma Eacute

evidente que neste caso a foacutermula ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo constituiria uma legiacutetima

predicaccedilatildeo e portanto natildeo poderia ser usada como evidecircncia do

comprometimento de Soacutecrates com (AP)

O maior problema da interpretaccedilatildeo de Allen eacute que os poucos textos por ele

apresentados natildeo parecem oferecer o suporte necessaacuterio para sua caracterizaccedilatildeo

da concepccedilatildeo socraacutetica de predicaccedilatildeo como designaccedilatildeo Segundo Allen as coisas

sensiacuteveis recebem os nomes das Formas No entanto se analisarmos as passagens

do Feacutedon citadas por Allen assim como a passagem do proacuteprio Parmecircnides em

que a noccedilatildeo de eponiacutemia eacute evocada veremos que em nenhuma delas eacute possiacutevel

encontrar o termo F como um nome para as Formas Em Feacutedon 102b-c Soacutecrates

menciona a Grandeza (microέγεθος) e a Pequenez (σmicroικρότητα) como nomes de

Formas No Parmecircnides aparecem ainda os termos Igualdade (ὁmicroοιότητος) e

Justiccedila (δικαιοσύνης) Ora todas estas passagens mencionam apenas substantivos

abstratos (F-idade) como designadores diretos das Formas Uma anaacutelise

tautoloacutegica para sentenccedilas auto-predicativas no entanto depende que as Formas

sejam designadas natildeo soacute como F-idade mas tambeacutem como F Sem uma afirmaccedilatildeo

expliacutecita de que o termo F pode servir como um nome para as Formas natildeo temos

como derivar uma identidade a partir da sentenccedila ldquoF-idade eacute Frdquo

A outra passagem apresentada por Allen (Feacuted78e) na qual se afirma a

homoniacutemia entre Formas e coisas tampouco apresenta F como uma designaccedilatildeo

primaacuteria das Formas Nesta passagem as designaccedilotildees citadas para as Formas satildeo

o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) e o Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

Novamente natildeo temos o termo desejado apenas a expressatildeo ldquoo F ele mesmordquo

(αὐτὸ τὸ F) Tal como no caso da eponiacutemia para que sentenccedilas auto-predicativas

envolvendo Formas ficassem seguramente estabelecidas como tautologias

precisariacuteamos que aleacutem de ldquoF-idaderdquo e ldquoo F ele mesmordquo o proacuteprio termo F

servisse como nome para as Formas Contudo natildeo eacute isso que encontramos em

qualquer dos textos apresentados por Allen55

55 Como reconhece Malcolm quem primeiro formulou este tipo de objeccedilatildeo a Allen outros textos

apresentam o termo F como nome da Forma F-idade por exemplo Eut10d Fed76d

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De fato mesmo se nas passagens elencadas por Allen o termo F fosse

apresentado como um designador direto da Forma F-idade natildeo teriacuteamos razotildees

suficientes para descartar por completo a possibilidade de (AP) representar um

real princiacutepio da Teoria das Ideias Afinal natildeo eacute apenas nos contextos de

homoniacutemia e eponiacutemia mencionados por Allen que Soacutecrates descreve uma Forma

como possuidora da propriedade de que eacute causa nos objetos sensiacuteveis Considere

por exemplo a Forma do Belo no Banquete Como vimos neste diaacutelogo a Forma

do Belo eacute caracterizada como ldquoalgo maravilhosamente belo por naturezardquo (τι

θαυmicroαστὸν τὴν φύσιν καλόν) sem que seja feita qualquer menccedilatildeo a questotildees de

homoniacutemia ou relaccedilotildees de significado Mesmo que a anaacutelise de Allen nos

fornecesse uma interpretaccedilatildeo vaacutelida para a teoria socraacutetica da predicaccedilatildeo

passagens como esta do Banquete (210e-211b) ainda poderiam ser usadas para

comprometer Soacutecrates com (AP) Afinal como poderiacuteamos explicar a doutrina de

que o Belo eacute o objeto maior de desejo eroacutetico por ser sempre belo (microονοειδὲς ἀεὶ

ὄν) Segundo Allen isto seria equivalente a afirmarmos que o Belo eacute o objeto

maior de desejo eroacutetico por ser sempre igual a ele mesmo Tal afirmaccedilatildeo

contudo eacute claramente insustentaacutevel uma vez que cada coisa eacute sempre igual a ela

mesma e portanto todas elas seriam o objeto maior de desejo eroacutetico

Este uacuteltimo tipo de objeccedilatildeo se estende a todos aqueles que pretendem

interpretar sentenccedilas do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo como casos de identidade a despeito

de aceitarem a anaacutelise de predicaccedilotildees como relaccedilotildees de homoniacutemia proposta por

Allen Cherniss (1957) o primeiro a propor que devemos entender sentenccedilas auto-

predicativas envolvendo Formas como casos de identidade distingue entre ter F e

ser F Segundo Cherniss enquanto os objetos sensiacuteveis tecircm uma propriedade F

em virtude de sua participaccedilatildeo na Forma F a F-idade eacute a propriedade F Assim

somente em sentenccedilas contendo particulares sensiacuteveis como sujeitos o predicado

estaria fornecendo uma descriccedilatildeo do sujeito em questatildeo Em sentenccedilas na forma

ldquoa F-idade eacute Frdquo por outro lado teriacuteamos uma afirmaccedilatildeo de identidade e natildeo uma

predicaccedilatildeo ordinaacuteria

Ora a primeira coisa que devemos notar eacute que nada na anaacutelise de Cherniss

proiacutebe que a F-idade possa ser F e simultaneamente ter F como um legiacutetimo

Sof255a No entanto na medida em que toda teoria de Allen jaacute possui escasso apoio textual podemos considerar o fato de que o termo F natildeo aparece como um designador das Formas nas passagens por ele apresentadas como uma evidecircncia contra sua interpretaccedilatildeo (cf Malcolm

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predicado E caso Cherniss argumente que soacute eacute possiacutevel ter uma propriedade em

virtude da participaccedilatildeo em uma Forma podemos coerentemente responder que ou

bem F-idade tem F por participar de si mesma ou bem precisariacuteamos de uma

segunda Forma F-idade para explicar a propriedade F que F-idade tem

Estariacuteamos assim novamente no caso de decidir sobre a validade de (AP)

mesmo aceitando a anaacutelise de Cherniss que a princiacutepio deveria servir de soluccedilatildeo

para este dilema Aleacutem disso considerando que Cherniss venha a negar

completamente a possibilidade de uma Forma F ter a propriedade F e mantenha

que toda sentenccedila do tipo ldquoA F-idade eacute Frdquo deve ser entendia como uma predicaccedilatildeo

de identidade algumas afirmaccedilotildees de Soacutecrates resultariam em inaceitaacuteveis contra-

sensos Considere por exemplo o que fala Soacutecrates em Feacutedon 100c4-6

ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute bela (εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν56) aleacutem do Belo ele mesmo (πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o restordquo φαίνεται γάρ microοι εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν οὐδὲ δι ἓν ἄλλο καλὸν εἶναι ἢ διότι microετέχει ἐκείνου τοῦ καλοῦ (100c4-6)

Esta sentenccedila afirma claramente que 1) o Belo ele mesmo eacute belo e 2) que

se alguma outra coisa tambeacutem eacute bela entatildeo ela eacute bela por participar no Belo ele

mesmo Ora de acordo com Allen e Cherniss 1) dever ser entendido como ldquoo

Belo ele mesmo eacute idecircntico ao Belordquo Sendo assim 2) estaria afirmando a seguinte

absurdidade ldquoSe alguma outra coisa eacute idecircntica ao Belo ele mesmo entatildeo esta

coisa eacute idecircntica ao Belo ele mesmo porque participa no Belo ele mesmordquo Isto no

entanto contradiz de maneira oacutebvia a Teoria das Ideias Afinal toda coisa bela

incluindo objetos sensiacuteveis seria idecircntica agrave Forma da Beleza Aleacutem disso a

proacutepria participaccedilatildeo teria como resultado a identidade entre a coisa participante e

a Forma participada

Uma uacuteltima interpretaccedilatildeo que pretende negar que a sentenccedila ldquoa F-idade eacute

Frdquo forneccedila uma descriccedilatildeo da Forma F-idade foi apresentada pelo proacuteprio Vlastos

quem primeiro identificou (AP) Anos depois de sua primeira publicaccedilatildeo sobre o

assunto Vlastos decide mudar sua interpretaccedilatildeo para o sentido de sentenccedilas auto-

predicativas envolvendo Formas Segundo ele a compreensatildeo de sentenccedilas da

1991 p 67-68)

56 Note que a mesma ocorrecircncia de καλὸν serve de predicado tanto para τί ἄλλο quanto para αὐτὸ τὸ καλόν Portanto a mesma anaacutelise deve ser oferecida para ldquo τί ἄλλο ἐστιν καλὸνrdquo e ldquo αὐτὸ

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forma ldquoa F-idade eacute Frdquo como casos de (AP) levaria a contradiccedilotildees tatildeo evidentes

que Platatildeo natildeo poderia ter deixado de notaacute-las No Protaacutegoras (330c7-8) por

exemplo Soacutecrates afirma que a ldquoJusticcedila eacute justardquo e logo apoacutes que a ldquoPiedade eacute

piardquo De acordo com Vlastos estas sentenccedilas natildeo podem representar descriccedilotildees

pois na condiccedilatildeo de Formas a Justiccedila e a Piedade natildeo poderiam ser justas ou

pias Estes atributos morais aplicam-se a pessoas ou atitudes e natildeo faria qualquer

sentido afirmar que uma entidade inteligiacutevel universal possui uma qualidade

moral Assim Vlastos admite que o Belo do Banquete seja belo ou que a Unidade

seja uacutenica pois a proacutepria condiccedilatildeo de Formas platocircnicas exige que natildeo soacute o Belo

e a Unidade mas de fato todas as Formas sejam belas e uacutenicas Poreacutem nenhuma

Forma incluindo a Justiccedila poderia ser justa na medida em que nenhuma entidade

inteligiacutevel universal eacute capaz de realizar atitudes passiacuteveis de julgamento moral

Como anaacutelise para sentenccedilas do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo nas quais o termo F

natildeo representa uma caracteriacutestica proacutepria das Formas enquanto Formas Vlastos

propotildee a seguinte anaacutelise ldquoNecessariamente se x participa de F-idade entatildeo x eacute

Frdquo (Vlastos 1972 p252-265) Deste modo afirmaccedilotildees do tipo ldquoa F-idade eacute Frdquo

natildeo teriam uma Forma como sujeito mas ofereceriam uma descriccedilatildeo da classe de

coisas que participam em F-idade Inspirado em uma passagem de Satildeo Paulo

(Carta aos Coriacutentios I 13 4-8) Vlastos denomina o tipo de predicaccedilatildeo por ele

descrito como ldquopredicaccedilatildeo paulinardquo

Em sua epiacutestola Satildeo Paulo faz afirmaccedilotildees como ldquoa caridade eacute piardquo e ldquoa

caridade eacute magnacircnimardquo De acordo com Vlastos o que S Paulo pretende dizer

por meio destas sentenccedilas eacute que ldquotodo aquele que eacute caridoso eacute tambeacutem piedoso e

magnacircnimordquo Assim transposto para o contexto platocircnico as afirmaccedilotildees do

Protaacutegoras natildeo estariam afirmando rigorosamente nada sobre as Formas da

Justiccedila e Piedade mas apenas sustentando a tese de que ldquotodo aquele que participa

da Justiccedila eacute justordquo Deste modo casos problemaacuteticos de auto-predicaccedilatildeo de

Formas ficariam reduzidos a casos de predicaccedilotildees gerais sobre coisas sensiacuteveis

O problema gerado pela anaacutelise proposta por Vlastos possui natureza

essencialmente conceitual Para comeccedilar a teoria da predicaccedilatildeo paulina pressupotildee

que sentenccedilas envolvendo Formas como sujeito possam ser diretamente

traduzidas em sentenccedilas envolvendo somente particulares sensiacuteveis isto eacute no

τὸ καλόν ἐστιν καλὸνrdquo

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caso de termos uma sentenccedila do tipo ldquoa F-idade eacute xrdquo estariacuteamos falando natildeo da F-

idade mas do conjunto de coisas sensiacuteveis que satildeo F Como observa Fronterotta

(2001 p250-251) isto vai de encontro agrave proacutepria concepccedilatildeo de Forma como uma

entidade separada dos objetos sensiacuteveis que dela participam De acordo com a

ontologia socraacutetica a Forma F-idade natildeo corresponde agrave soma dos objetos que satildeo

F mas caracteriza-se por ser ontologicamente distinta destas coisas Portanto

qualquer anaacutelise que resulte em confusatildeo ou sobreposiccedilatildeo entre o que eacute a F-idade

e o que satildeo os muacuteltiplos objetos sensiacuteveis que possuem a propriedade de serem F

estaacute sujeita agrave criacutetica de estar ignorando a distinccedilatildeo mais fundamental da Teoria das

Ideias

Suponha por exemplo uma relaccedilatildeo entre Formas expressa na sentenccedila ldquoa

F-idade eacute a G-idaderdquo Segundo Vlastos estas sentenccedilas deveriam ter sua

veracidade comprovada por meio da verificaccedilatildeo da relaccedilatildeo de inclusatildeo entre o

conjunto de coisas que satildeo F e o conjunto de coisas que satildeo G Uma relaccedilatildeo entre

Formas ficaria reduzida no espiacuterito da teoria da predicaccedilatildeo paulina a uma relaccedilatildeo

entre extensotildees de conjuntos de coisas Entretanto isto violaria a prioridade

ontoloacutegica e epistemoloacutegica das Formas em relaccedilatildeo aos objetos sensiacuteveis e uma

relaccedilatildeo entre coisas seria responsaacutevel pelo estabelecimento de uma relaccedilatildeo entre

Formas quando uma anaacutelise fiel aos princiacutepios da Teoria das Ideias deveria

apresentar exatamente o oposto

Podemos concluir portanto que nenhum dos autores acima mencionados

conseguiram oferecer uma anaacutelise para sentenccedilas do tipo ldquoA F-idade eacute Frdquo que

livrasse Soacutecrates de (AP) e consequentemente do Argumento do Terceiro

Homem Tentar afirmar que sentenccedilas auto-predicativas envolvendo Formas natildeo

oferecem descriccedilotildees e portanto natildeo satildeo legiacutetimas predicaccedilotildees resulta em

distorccedilotildees tatildeo gritantes do conteuacutedo dos diaacutelogos que natildeo podemos aceitar este

tipo de anaacutelise

Tendo descartado as interpretaccedilotildees que pretendem livrar Soacutecrates de (AP)

por meio da afirmaccedilatildeo de que a sentenccedila ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo constituiria uma

descriccedilatildeo da Forma F-idade podemos nos voltar para a segunda estrateacutegia adota

pelos comentadores com o objetivo de invalidar o Argumento do Terceiro

Homem Como dito anteriormente este segundo grupo de inteacuterpretes assume que

sentenccedilas auto-predicativas oferecem uma descriccedilatildeo da Forma que ocupa o lugar

de sujeito poreacutem alegam que esta descriccedilatildeo natildeo eacute suficiente para agruparmos a

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Forma F-idade com os diversos objetos sensiacuteveis que satildeo F Isto porque a Forma

F-idade natildeo receberia o predicado F da mesma maneira que objetos sensiacuteveis (a

b c) o recebem Teriacuteamos portanto dois tipos distintos de predicaccedilatildeo a F-idade eacute

F poreacutem de um modo completamente diferente das coisas (a b c) serem F Uma

vez que o predicado F natildeo estaria sendo aplicado de maneira uniacutevoca a Formas e

coisas a inclusatildeo de F-idade no conjunto de coisas (a b c) necessaacuteria para

gerarmos o regresso ao infinito natildeo estaria justificada e todo o argumento seria

invalidado

De acordo com os proponentes desta tese a fonte textual para atribuirmos

este tipo de interpretaccedilatildeo a Platatildeo estaria nos textos em que Soacutecrates descreve a

relaccedilatildeo entre Formas e coisas como uma relaccedilatildeo anaacuteloga agravequela entre um Modelo

ou Original (παραδείγmicroατα) e suas coacutepias (εἰκόνες) imagens (ei)dwla) ou

imitaccedilotildees (mimhmata) Uma vez que tenhamos em mente afirmam estes

comentadores que Soacutecrates entende a relaccedilatildeo entre Formas e coisas da mesma

maneira que entendemos a relaccedilatildeo entre um Modelo e suas coacutepias (um Original e

suas imagens) seremos levados a concluir que a sentenccedila ldquoa F-idade eacute Frdquo natildeo

atribui o predicado F a seu sujeito do mesmo modo que a sentenccedila ldquox eacute Frdquo atribui

o predicado F ao objeto sensiacutevel x

Ora para que este argumento seja realmente efetivo eacute preciso que fique

especificado exatamente qual eacute esta relaccedilatildeo entre um ModeloOriginal e suas

coacutepiasimagens que quando transposta para relaccedilatildeo entre Formas e coisas

sensiacuteveis eacute capaz de falsificar (AP) Uma explicaccedilatildeo repetidamente apresentada

pelos comentadores baseia-se na relaccedilatildeo entre um padratildeo (standard) de medida e

as muacuteltiplas coisas que podem ser alvo de mediccedilatildeo em comparaccedilatildeo a este

padratildeo57 De acordo com este tipo de argumentaccedilatildeo uma Forma deveria ser

comparada a um Modelo de medida como por exemplo o padratildeo do Metro

contido na Academia de Medidas Francesa Aceitando esta analogia seriacuteamos

levados a ver que assim como o Metro padratildeo natildeo possui a medida de um metro

uma vez que ele eacute o proacuteprio modelo para a aplicaccedilatildeo deste predicado tambeacutem F-

idade natildeo pode ser dita F ou classificada como uma coisa F

Um testemunho de grande peso eacute neste contexto evocado pelos

defensores deste tipo de interpretaccedilatildeo que citam Wittgenstein ldquoHaacute uma uacutenica

57 Este tipo de argmentaccedilatildeo eacute explicitamente adotado por Bluck em ldquoForms as Standardsrdquo (1957)

e Allen (1960 p 45-47) sendo por vezes defendido por Patterson (1985)

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coisa sobre a qual natildeo podemos dizer que tem um metro de comprimento nem que

natildeo tem um metro de comprimento esta coisa eacute o padratildeo do metro situado em

Parisrdquo (Investigaccedilotildees Filosoacuteficas 50) Esta afirmaccedilatildeo seria suficiente para colocar

Wittgenstein ao lado daqueles que acham que assim como natildeo podemos dizer do

padratildeo do Metro que ele possui um metro de comprimento tampouco poderiacuteamos

dizer de F-idade que ela eacute F

Conforme demonstrado por Malcolm (1991 p 70-72) a explicaccedilatildeo para a

enigmaacutetica sentenccedila de Wittgenstein deve ser buscada na sua teoria de que nomear

e descrever satildeo essencialmente atos de fala distintos De fato na seccedilatildeo

imediatamente anterior a esta afirmaccedilatildeo Wittgenstein nos diz ldquoNomear e

descrever natildeo estatildeo no mesmo niacutevel a nomeaccedilatildeo eacute uma preparaccedilatildeo para

descriccedilatildeordquo (Investigaccedilotildees Filosoacuteficas 49) Devemos entender portanto que ao

nomearmos uma determinada barra de ferro em Paris como o Modelo do Metro

natildeo estamos descrevendo esta barra mas estabelecendo um padratildeo que serviraacute

para posterior descriccedilatildeo desta medida Assim o criteacuterio de verdade da sentenccedila ldquoo

Metro tem um metrordquo eacute estabelecido por nomeaccedilatildeo enquanto o criteacuterio de

verdade para descriccedilatildeo ldquoesta mesa tem um metrordquo eacute estabelecido por comparaccedilatildeo

ao Modelo de metro ldquoesta mesa tem um metrordquo soacute eacute uma sentenccedila verdadeira

quando a mesa possuir o mesmo comprimento do Metro Modelo

A pergunta que devemos fazer eacute se este ato de nomeaccedilatildeo anula por

completo a possibilidade de subsequentes descriccedilotildees deste Modelo Considerando

por exemplo que o ato de nomeaccedilatildeo se daacute uma uacutenica vez entatildeo nunca mais

poderiacuteamos fazer afirmaccedilotildees sobre o comprimento da barra de ferro situada na

Academia de Medidas Francesa Eacute muito mais razoaacutevel acreditarmos que seu

estabelecimento como Modelo eacute aquilo que nos permite descrevecirc-la como tendo

um metro de comprimento Nada parece obrigar que o estabelecimento de um

padratildeo sirva de preparaccedilatildeo para que apenas outras coisas sejam descritas

Podemos considerar inclusive que o estabelecimento de um padratildeo depende da

realizaccedilatildeo de dois atos simultacircneos a descriccedilatildeo de uma propriedade deste padratildeo

e a nomeaccedilatildeo desta entidade como Modelo para subsequente aplicaccedilotildees desta

descriccedilatildeo Sendo assim creio que a afirmaccedilatildeo de Wittgenstein estaacute restrita ao

acircmbito do momento de estabelecimento do Modelo do Metro De fato para

estabelecermos um comprimento como padratildeo de metro precisamos nomeaacute-lo e

natildeo descrevecirc-lo Poreacutem apoacutes estabelecido este padratildeo natildeo haacute motivo aparente

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para negar que possamos descrever o Metro Modelo como tendo um metro de

comprimento

Assim se utilizarmos a relaccedilatildeo entre o padratildeo do Metro e as coisas

descritas como tendo um metro de comprimento para entender a relaccedilatildeo entre

Formas e coisas veremos que esta analogia natildeo eacute suficiente para combater a

validade de (AP) Mesmo natildeo havendo um momento de nomeaccedilatildeo da Forma de F-

idade como padratildeo o que os comentadores que fazem uso da discussatildeo iniciada

por Wittgenstein pretendem afirmar eacute que assim como o criteacuterio de

estabelecimento da verdade de ldquoa mesa tem um metrordquo natildeo pode ser o mesmo

criteacuterio de estabelecimento da verdade de ldquoo Metro tem um metrordquo tambeacutem o

criteacuterio de verdade de ldquoF-idade eacute Frdquo deve ser distinto do criteacuterio de verdade de ldquoa

eacute Frdquo

Contudo se as coisas de um metro possuem a mesma medida do padratildeo de

Metro entatildeo logicamente o padratildeo de Metro possui a mesma medida das coisas

de um metro Sendo assim se o comprimento destas coisas pode ser descrito pelo

predicado ldquoter um metrordquo entatildeo o Metro padratildeo tambeacutem deve poder ser descrito

pelo mesmo predicado No caso das Formas se a b c satildeo F em virtude da F-

idade entatildeo de acordo com a analogia proposta a b c possuem a mesma

propriedade que F-idade e somos obrigados a admitir que ldquoa F-idade eacute Frdquo do

mesmo modo que ldquoa b c satildeo Frdquo a despeito do criteacuterio para o estabelecimento da

verdade das sentenccedilas ldquoa eacute Frdquo ldquob eacute Frdquo e ldquoc eacute Frdquo ser diferente daquele usado para

estabelecer a verdade de ldquoa F-idade eacute Frdquo Entender a relaccedilatildeo entre Formas e coisas

como anaacuteloga agrave relaccedilatildeo entre um padratildeo e as coisas descritas a partir deste padratildeo

natildeo fornece uma saiacuteda ao Argumento do Terceiro Homem

Outra proposta de compreensatildeo para a natureza da remissatildeo

Modelocoacutepias parece oferecer uma explicaccedilatildeo muito mais promissora para

relaccedilatildeo entre Formas e coisas Alguns autores como Allen (1960 p48-52) Geach

(1956) e Patterson (1985) sugerem que entendamos a relaccedilatildeo entre Formas e

coisas em analogia agrave relaccedilatildeo entre um determinado objeto e suas muacuteltiplas

imagens Neste tipo de relaccedilatildeo alegam estes comentadores eacute muito claro que as

imagens natildeo satildeo um caso de F da mesma maneira que o original eacute F Pense por

exemplo na relaccedilatildeo entre um gato e as diversas fotos deste gato Parece muito

oacutebvio que o gato original recebe o predicado ldquoser-um-gatordquo de um modo muito

diferente de suas imagens pois estas falando estritamente natildeo satildeo gatos

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Seguindo esta analogia a Forma da F-idade seria a uacutenica coisa realmente F

enquanto as muacuteltiplas coisas sensiacuteveis receberiam este predicado de uma maneira

derivativa por serem uma imagem de F-idade De acordo com esta interpretaccedilatildeo

Formas seriam Modelos ou Originais (παραδείγmicroατα) dos quais os objetos

sensiacuteveis representariam imagens (ei)dwla εἰκόνες) ou imitaccedilotildees (mimhmata)

Uma primeira criacutetica possiacutevel a esta interpretaccedilatildeo consiste em afirmar que

a relaccedilatildeo Originalimagens eacute de natureza muito estrita para servir como uma

explicaccedilatildeo adequada para relaccedilatildeo entre Formas e coisas Uma imagem deve

representar com maior ou menor sucesso as caracteriacutesticas aspectuais de seu

original e inversamente um original deve conter as caracteriacutesticas aspectuais de

suas imagens Poreacutem qual original de aacutervore poderia conter em si as

caracteriacutesticas aspectuais de todas as aacutervores sensiacuteveis Se um triacircngulo precisa

ser ou isoacutesceles ou equilaacutetero ou escaleno e natildeo pode ter estas trecircs caracteriacutesticas

simultaneamente como a Triangularidade poderia servir como um uacutenico Modelo

para imagens com caracteriacutesticas mutuamente excludentes

Esta criacutetica contudo pode ser facilmente contornada por meio da alegaccedilatildeo

de que a relaccedilatildeo Originalimagens natildeo precisa ser entendida de maneira tatildeo

restrita Eacute possiacutevel pensar por exemplo que o Original soacute possuiria as

caracteriacutesticas aspectuais essenciais enquanto as diferenccedilas especiacuteficas estariam

manifestas apenas em suas imagens A Triangularidade teria a caracteriacutestica de

possuir trecircs lados iguais e apenas suas imagens sensiacuteveis seriam triacircngulos

equilaacuteteros isoacutesceles ou escalenos Outra saiacuteda seria aumentar o nuacutemero de

Originais afirmando a existecircncia de uma Forma da Triangularidade Isoacutesceles

outra Escalena e outra Equilaacutetero Estas modificaccedilotildees no entanto teriam como

resultado por um lado uma extensatildeo indesejada do conjunto de Formas que

passaria a incluir Formas de espeacutecies e por outro lado o enfraquecimento da

proacutepria analogia entre Originalimagens proposta inicialmente

Patterson (1985 p42) adota a primeira destas duas linhas de

argumentaccedilatildeo e procura evitar resultados problemaacuteticos traccedilando uma diferenccedila

entre coacutepias e imagens Para Patterson enquanto ser-uma-coacutepia implicaria em

assemelhar-se ao Original mantendo suas caracteriacutesticas aspectuais ser-uma-

imagem natildeo traria esta implicaccedilatildeo Para defender esta distinccedilatildeo Patterson eacute

obrigado a forccedilar o vocabulaacuterio platocircnico entendendo por imagens natildeo soacute o termo

ei)dwla como tambeacutem o(moiw=mata εἰκόνες e mimhmata que agrave primeira vista

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implicariam na estrita semelhanccedila entre Original e coacutepias

Apoacutes destituir a relaccedilatildeo Originalimagens da necessidade de semelhanccedila

entre seus dois elementos Patterson reinterpreta sua analogia inicial como uma

relaccedilatildeo entre ldquouma natureza abstrata e um exemplo concreto ou entre a natureza

inteligiacutevel de F ele mesmo e aquilo que concretamente possui ou tem a natureza

de F ele mesmordquo (Patterson 1985 p 95) Ora eacute muito evidente que atraveacutes deste

movimento Patterson estaacute abandonando por completo a relaccedilatildeo Originalimagem

inicialmente proposta e passando a entender os objetos sensiacuteveis ldquoexemplos

concretosrdquo das Formas que por sua vez satildeo entendidas como ldquonaturezas

inteligiacuteveis ou abstratasrdquo

Como o caso de Patterson deixa evidente compreender a relaccedilatildeo

Originalimagens sem pressupor qualquer niacutevel de semelhanccedila entre estes dois

elementos representa uma grande subversatildeo agrave natureza desta relaccedilatildeo Poreacutem

mesmo que seja possiacutevel compreender que uma imagem natildeo se assemelha ao

original de que eacute imagem seria preciso demonstrar ainda que o personagem

Soacutecrates estaacute entendendo a relaccedilatildeo entre Formas e coisas sensiacuteveis em analogia a

esta compreensatildeo sui generis de imagens que natildeo guardam qualquer semelhanccedila

com seu original Se olharmos para as passagens em que Soacutecrates trata os objetos

sensiacuteveis como imagens ou imitaccedilotildees das Formas no entanto veremos que a

relaccedilatildeo de semelhanccedila entre Formas e coisas estaacute sempre pressuposta

Um exemplo oferecido por Patterson (1985 p61) sugere que imagens

sonhadas natildeo se assemelham de modo algum aos seus originais pois natildeo podem

realmente possuir as propriedades que seus originais possuem Contudo para que

seja estabelecida uma relaccedilatildeo de semelhanccedila natildeo eacute preciso que as imagens sejam

como seus originas basta que as imagens pareccedilam com seus originais Uma prova

disto eacute que reconhecemos quando algueacutem familiar aparece em nossos sonhos Se

somos capazes de reconhecer algueacutem em sonhos eacute porque a imagem que

experienciamos se assemelha de algum modo agrave pessoal real Soacutecrates parece

corroborar esta anaacutelise trivial para relaccedilatildeo entre imagens sonhadas e originais e

na Repuacuteblica (476c5-7) nos explica que o sonhar (τὸ ὀνειρώττειν) quer

dormindo quer acordado nada mais eacute do que ldquocrer que o semelhante a algo (τὸ

ὅmicroοιόν τῳ) natildeo eacute semelhante a algo mas aquilo mesmo com o que se parece (microὴ

ὅmicroοιον ἀλλ αὐτὸ ἡγῆται εἶναι ᾧ ἔοικεν)rdquo

As passagens em que o termo εἰκών eacute usado para designar objetos

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sensiacuteveis tampouco parecem oferecer o material necessaacuterio para a anaacutelise de

ldquoimagens natildeo semelhantes a seu originalrdquo desejada por Patterson Em Repuacuteblica

(506b) Soacutecrates eacute instigado a discursar sobre o Bem poreacutem se recusa

consentindo em falar sobre ldquoo rebento do Bem e o que haacute de mais semelhante

possiacutevel a elerdquo (ὃς δὲ ἔκγονός τε τοῦ ἀγαθοῦ φαίνεται καὶ ὁmicroοιότατος ἐκείνῳ

506e3) Este rebento mais tarde nos eacute revelado trata-se do sol e em 509a9

Soacutecrates se refere a ele como ldquoa imagem do Bemrdquo (τὴν εἰκόνα αὐτοῦ)

Novamente a relaccedilatildeo entre imagem e original se daacute por semelhanccedila O sol eacute uma

imagem do Bem porque eacute ldquoo que haacute de mais semelhante a elerdquo (ὁmicroοιότατος

ἐκείνῳ)

Do mesmo modo na passagem da linha dividida a primeira seccedilatildeo da linha

estaacute reservada agraves imagens Soacutecrates oferece a seguinte explicaccedilatildeo para o que estas

imagens satildeo

ldquoChamo imagens (τὰς εἰκόνας) em primeiro lugar as sombras (τὰς σκιάς) em seguida os reflexos nas aacuteguas (τὰ ἐν τοῖς ὕδασι φαντάσmicroατα) e em todas aquelas superfiacutecies que satildeo compactas lisas e brilhantes e tudo mais deste tipordquo λέγω δὲ τὰς εἰκόνας πρῶτον microὲν τὰς σκιάς ἔπειτα τὰ ἐν τοῖς ὕδασι φαντάσmicroατα καὶ ἐν τοῖς ὅσα πυκνά τε καὶ λεῖα καὶ φανὰ συνέστηκεν καὶ πᾶν τὸ τοιοῦτον (510a1-3)

A descriccedilatildeo de εἰκόνες como ldquosombrasrdquo e ldquofantasmasrdquo parece favorecer a

equaccedilatildeo entre os termos εἰκών e ei)dwlon e a noccedilatildeo de imagem-dessemelhante

desejada por Patterson No entanto na continuaccedilatildeo do argumento Soacutecrates pede

para que na segunda seccedilatildeo da linha sejam colocadas as coisas que datildeo origens agraves

imagens da primeira seccedilatildeo isto eacute os objetos empiacutericos sensiacuteveis Em seguida

Soacutecrates passa para a parte do inteligiacutevel e descreve a primeira seccedilatildeo desta parte

como aquela em que a alma utiliza como se fossem imagens (ὡς εἰκόσιν χρωmicroένη

ψυχὴ) as coisas que antes eram imitadas (τοῖς τότε microιmicroηθεῖσιν) O exemplo

utilizado por Soacutecrates vem da Geometria

ldquoSabes tambeacutem que eles (os geocircmetras) utilizam figuras visiacuteveis e constroem raciociacutenios sobre elas embora natildeo seja nelas que pensem mas em outras coisas agraves quais essas se parecem (οἷς ταῦτα ἔοικε) construindo raciociacutenios em vista do quadrado ele mesmo (τοῦ τετραγώνου αὐτοῦ) da diagonal ela mesma (διαmicroέτρου αὐτῆς) e natildeo da diagonal que traccedilam e assim tambeacutem para as outras figuras Todas aquelas que eles modelam ou traccedilam das quais haacute sombras e imagens nas aacuteguas (ὧν καὶ σκιαὶ καὶ ἐν ὕδασιν εἰκόνες εἰσίν) eles as utilizam como se fossem imagens (ὡς εἰκόσιν αὖ χρώmicroενοι) ao procurar ver aquelas coisas mesmas que

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natildeo se vecircem senatildeo pelo pensamentordquo Οὐκοῦν καὶ ὅτι τοῖς ὁρωmicroένοις εἴδεσι προσχρῶνται καὶ τοὺς λόγους περὶ αὐτῶν ποιοῦνται οὐ περὶ τούτων διανοούmicroενοι ἀλλ ἐκείνων πέρι οἷς ταῦτα ἔοικε τοῦ τετραγώνου αὐτοῦ ἕνεκα τοὺς λόγους ποιούmicroενοι καὶ διαmicroέτρου αὐτῆς ἀλλ οὐ ταύτης ἣν γράφουσιν καὶ τἆλλα οὕτως αὐτὰ microὲν ταῦτα ἃ πλάττουσίν τε καὶ γράφουσιν ὧν καὶ σκιαὶ καὶ ἐν ὕδασιν εἰκόνες εἰσίν τούτοις microὲν ὡς εἰκόσιν αὖ χρώmicroενοι ζητοῦντες δὲ αὐτὰ ἐκεῖνα ἰδεῖν ἃ οὐκ ἂν ἄλλως ἴδοι τις ἢ τῇ διανοίᾳ (510d5-511a1)

O resultado final das relaccedilotildees de proporccedilatildeo entre os diversos segmentos da

linha eacute que os objetos sensiacuteveis satildeo imagens (εἰκόνες) das Formas tal como as

sombras e reflexos na aacutegua (σκιάς τὰ ἐν τοῖς ὕδασι φαντάσmicroατα) satildeo imagens

destes mesmos objetos Contudo o que a menccedilatildeo aos procedimentos geomeacutetricos

deixa claro eacute que a relaccedilatildeo entre imagens e original deve ser entendida durante

toda passagem por meio da noccedilatildeo de semelhanccedila Do mesmo modo que minhas

imagens (sombras e reflexos em uma superfiacutecie daacutegua) se parecem comigo

tambeacutem os graacuteficos e desenhos satildeo utilizados pelos geocircmetras como se fossem

imagens (ὡς εἰκόσιν αὖ χρώmicroενοι) das Formas inteligiacuteveis porque com elas se

parecem (οἷς ταῦτα ἔοικε) Em suma imagens (εἰκόνες) satildeo imagens de coisas

com as quais guardam similaridades e compartilham propriedades de outro modo

natildeo haveria porque um geocircmetra desenhar quadrados com a intenccedilatildeo de estudar o

Quadrado ideal

Portanto considero as passagens acima citadas suficientes para comprovar

que Soacutecrates entendia por εἰκόνες o que normalmente entendemos por imagens

isto eacute algo fundamentalmente distinto daquilo de que eacute imagem poreacutem que

guarda algum tipo de semelhanccedila com o original ao qual remete Sendo assim

podemos descartar a interpretaccedilatildeo de Patterson que pretende fazer uso da relaccedilatildeo

Originalimagens como forma de compreensatildeo da relaccedilatildeo Formascoisas poreacutem

negando que haja qualquer tipo de semelhanccedila entre os dois elementos de cada

uma destes pares

A relaccedilatildeo Originalimagens contudo natildeo pode ser completamente

abandonada como um possiacutevel modelo de compreensatildeo para relaccedilatildeo entre Formas

e coisas pois a partir desta analogia ainda eacute possiacutevel extrairmos uma interpretaccedilatildeo

que falsifique (AP) Considere a relaccedilatildeo entre Simmias e os diversos retratos de

Simmias Quando pegamos um dos retratos de Simmias e perguntamos quem eacute a

pessoa neste retrato A resposta que recebemos eacute esta pessoa eacute Simmias

Evidentemente esta resposta nos eacute dada em funccedilatildeo da semelhanccedila entre o

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Simmias original e a imagem de Simmias no retrato pois eacute esta semelhanccedila o que

nos permite dizer que tanto Simmias quanto suas imagens possuem a propriedade

de ser-Simmias Apesar disto estas coisas possuem a propriedade de ser-Simmias

de maneiras distintas a imagem de Simmias no retrato eacute Simmias poreacutem em um

sentido diferente daquele em que Simmias eacute Simmias Como vimos a

transposiccedilatildeo desta relaccedilatildeo para o caso envolvendo Formas e coisas poderia

fornecer uma saiacuteda ao Argumento do Terceiro Homem Afinal de acordo com este

modelo a Forma F-idade eacute F de uma maneira distinta das coisas (a b c) o que

falsificaria (AP)

No entanto uma nova criacutetica pode ser dirigida agravequeles que defendem este

tipo de interpretaccedilatildeo segundo a qual a F-idade e os muacuteltiplos objetos sensiacuteveis

que dela satildeo imagens natildeo recebem o predicado F univocamente Afinal se uma

coisa sensiacutevel natildeo possui o predicado F do mesmo modo que a F-idade como esta

Forma poderia servir de Modelo (Original ou Paradigma) para a aplicaccedilatildeo do

predicado que esta coisa sensiacutevel possui

Suponha por exemplo que F1 e F2 representam os diferentes modos em

que o predicado F pode ser aplicado Assim diriacuteamos que a F-idade eacute F1

enquanto um objeto sensiacutevel x eacute F2 Neste caso como F-idade que eacute

exclusivamente F1 poderia servir de Modelo ou Paradigma para aplicaccedilatildeo do

predicado F2 nos objetos sensiacuteveis Para ser um ModeloOriginalParadigma dos

objetos sensiacuteveis que recebem o predicado F a Forma precisa ser um

ModeloOriginalParadigma de aplicaccedilatildeo do mesmo predicado F possuiacutedo pelos

objetos sensiacuteveis Pois se a relaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis estaacute fundada

no fato de que os objetos sensiacuteveis recebem o predicado F em virtude da F-idade

por que neste caso exatamente F-idade e natildeo outra Forma seria a causa da

propriedade F nas coisas sensiacuteveis Caso natildeo aceitemos que Formas e coisas

compartilhem um mesmo predicado de maneira uniacutevoca natildeo temos razotildees

suficientes para identificar a F-idade (ao inveacutes de G-idade) como causa da

caracteriacutestica F encontrada nos objetos sensiacuteveis

Em Feacutedon (74b-c) por exemplo a visatildeo de um par de pedaccedilos de

madeiras iguais em comprimento eacute capaz de nos fazer lembrar a Forma da

Igualdade com a qual tivemos contato antes de nascermos Ora se o par de

madeiras em questatildeo natildeo possui a mesma propriedade que a Forma da Igualdade

por que entatildeo nos lembrariacuteamos desta Forma e natildeo de qualquer outra Da mesma

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maneira o Banquete (210-211) nos apresenta um percurso de ascensatildeo que inicia-

se nos corpos discursos e ciecircncias sensiacuteveis para chegar ao Belo ele mesmo

Aceitando que o Belo natildeo compartilha uma mesma propriedade com estes corpos

discursos e ciecircncias por que seriam exatamente estas coisas sensiacuteveis que

formariam o caminho para o Belo

Em resposta a este tipo de criacuteticas algumas interpretaccedilotildees pretendem

abordar a diferenccedila entre o modo de uma Forma e uma coisa sensiacutevel receberem o

mesmo predicado F por meio da qualificaccedilatildeo da relaccedilatildeo de predicaccedilatildeo Assim

estariacuteamos falando de um mesmo predicado F poreacutem de duas relaccedilotildees de

predicaccedilatildeo natildeo uniacutevocas Podemos pensar por exemplo que enquanto a Forma F-

idade recebe o predicado F de maneira necessaacuteria os objetos sensiacuteveis satildeo F

apenas de maneira contingente Supostamente esta explicaccedilatildeo seria suficiente

para evidenciar dois modos natildeo-uniacutevocos de predicaccedilatildeo portanto falsificando

(AP) sem trazer as indesejadas consequecircncias acima descritas

Na realidade contudo esta distinccedilatildeo natildeo eacute capaz de desqualificar

univocidade Caso contraacuterio teriacuteamos que admitir que as sentenccedilas ldquoTodo

torcedor do Vasco eacute necessariamente vascaiacutenordquo e ldquoEu sou contingentemente

vascaiacutenordquo apresentam o predicado ldquoser-vascaiacutenordquo de maneira distinta Aleacutem disso

teriacuteamos que negar que a sentenccedila ldquoEu sou contingentemente torcedor do Vascordquo

pode ser corretamente inferida das duas sentenccedilas anteriores Acrescentar um

operador modal como qualificaccedilatildeo do predicado F natildeo eacute suficiente para produzir

um novo predicado natildeo-uniacuteco a F Portanto sob a luz desta distinccedilatildeo Formas e

coisas continuam possuindo o mesmo predicado e tanto (AP) quanto o Argumento

do Terceiro Homem continuam vaacutelidos

Outra tentativa de negar a aparente univocidade entre a aplicaccedilatildeo de um

predicado a uma Forma e a aplicaccedilatildeo deste mesmo predicado aos objetos

sensiacuteveis consiste em apelar para distinccedilatildeo entre predicaccedilatildeo per se e predicaccedilatildeo

per aliud Em paralelo agrave distinccedilatildeo aristoteacutelica entre predicaccedilatildeo essencial e

predicaccedilatildeo acidental alguns comentadores reconhecem em Platatildeo a diferenciaccedilatildeo

entre um tipo de predicaccedilatildeo ldquoem virtude de sua proacutepria naturezardquo (per se) e um

segundo tipo de predicaccedilatildeo ldquoem virtude de outra coisardquo (per aliud) Assim

enquanto as Formas receberiam seus predicados per se de maneira proacutepria os

objetos sensiacuteveis receberiam seus predicados per aliud de maneira derivativa

Entendida deste modo a auto-predicaccedilatildeo de uma Forma seria uma espeacutecie de

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definiccedilatildeo miacutenima desta entidade Alegadamente isto faria com que natildeo

pudeacutessemos reduzir sentenccedilas auto-predicativas envolvendo Formas a meras

identidades ao mesmo tempo em que diferenciariacuteamos dois modos natildeo uniacutevocos

de predicaccedilatildeo

De fato esta distinccedilatildeo parece se encaixar nos paracircmetros traccedilados pela

Teoria das Ideias Tal como as substacircncias aristoteacutelicas as Formas recebem seus

predicados de maneira natildeo derivativa (per se) enquanto as coisas que participam

das Formas recebem seus predicados em virtude desta participaccedilatildeo (per aliud) No

entanto a questatildeo relevante para nossa discussatildeo eacute se este tipo de distinccedilatildeo eacute

capaz de falsificar (AP) e bloquear a reduccedilatildeo ao infinito proposta por Parmecircnides

Como observa Teloh (1981 p124) a distinccedilatildeo proposta explica a aplicaccedilatildeo

de predicados por meio de relaccedilotildees entre entidades mas certamente este tipo de

explicaccedilatildeo eacute compatiacutevel com predicados uniacutevocos A aplicaccedilatildeo de um predicado a

entidades de tipos distintos por si soacute natildeo eacute suficiente para concluirmos uma

diferenccedila de sentido deste predicado Mesmo entendendo as Formas como sujeitos

proacuteprios de F e os objetos sensiacuteveis como sujeitos derivados deste mesmo

predicado natildeo somos obrigados a abandonar a tese da unidade de sentido do

predicado em questatildeo Por outro lado caso usemos esta distinccedilatildeo como base para

uma diferenciaccedilatildeo de sentido entre predicados per se e per aliud voltaremos ao

problema anteriormente descrito de considerar as Formas como causas de

propriedades que natildeo possuem e inversamente os objetos sensiacuteveis como

recebendo por derivaccedilatildeo predicados distintos daqueles possuiacutedos pelas Formas

O maior problema da distinccedilatildeo entre aplicaccedilatildeo per se e per aliud como

soluccedilatildeo ao Argumento do Terceiro Homem contudo estaacute no fato desta distinccedilatildeo

natildeo poder ser encontrada na Teoria das Ideias apresentada pelo personagem

Soacutecrates no Parmecircnides ou em qualquer outro diaacutelogo O primeiro autor a

reconhecer a possibilidade de uma aplicaccedilatildeo da diferenciaccedilatildeo entre estes dois

modos natildeo uniacutevocos de aplicaccedilatildeo de um mesmo predicado foi Frede (1967) De

acordo com Frede a diferenccedila entre uma predicaccedilatildeo que definiria o que uma coisa

eacute em virtude de si mesmo e uma predicaccedilatildeo ordinaacuteria que apenas descreveria os

atributos desta coisa estaacute pressuposta na investigaccedilatildeo sobre as relaccedilotildees entre os

gecircneros do Sofista sobretudo em 255c12-13 Posteriormente Meinwald (1991)

aplicou a distinccedilatildeo proposta por Frede em sua anaacutelise dos argumentos da segunda

parte do Parmecircnides afirmando explicitamente que a diferenciaccedilatildeo entre

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predicaccedilotildees per se e per aliud seria capaz de bloquear o Argumento do Terceiro

Homem

Ora em nenhum destes dois casos eacute o personagem Soacutecrates quem propotildee

as anaacutelises que dariam ensejo agrave distinccedilatildeo entre os dois modos natildeo uniacutevocos de

predicaccedilatildeo No Sofista quem apresenta as relaccedilotildees entre os gecircneros supremos eacute

um Estrangeiro de Eleacuteia enquanto no Parmecircnides eacute o proacuteprio Parmecircnides quem

conduz as deduccedilotildees da segunda parte do diaacutelogo Em ambos os casos Soacutecrates

natildeo estaacute envolvido nas discussotildees e muito menos apresenta explicitamente sua

Teoria das Ideias como fonte da distinccedilatildeo em questatildeo Portanto mesmo que

admitamos que uma diferenciaccedilatildeo entre predicaccedilotildees per se e per aliud pode

bloquear os regressos apresentados por Parmecircnides o que natildeo necessariamente eacute

o caso como explica Teloh (1981 p124) natildeo temos motivos algum para afirmar

que Soacutecrates estaacute de posse desta distinccedilatildeo Sendo assim como criacutetica agrave

formulaccedilatildeo claacutessica da Teoria das Ideias o Argumento do Terceiro Homem segue

sendo vaacutelido

Deste modo podemos concluir que a segunda estrateacutegia adotada para

falsificar (AP) e livrar a Teoria das Ideias do regresso ao infinito demonstrado por

Parmecircnides tampouco representa uma alternativa viaacutevel Entender a F-idade em

analogia a um padratildeo (standard) como o Metro Modelo natildeo impede que usemos

o predicado F para descrevecirc-la Por outro lado ao tentarmos apelar para relaccedilatildeo

Originalimagens como forma de entender modos natildeo uniacutevocos de se possuir um

mesmo predicado ou bem acabamos por ter que aceitar a semelhanccedila entre

imagens e Original abrindo caminho para o Argumento do Terceiro Homem ou

bem somos obrigados a reconhecer a existecircncia de imagens natildeo semelhantes a

seus originais o que eacute certamente absurdo aleacutem de ir contra o texto dos diaacutelogos

Por fim a tentativa de distinguir entre dois sentidos de aplicaccedilatildeo de um mesmo

predicado implica em tornar os objetos sensiacuteveis tatildeo distintos das Formas das

quais derivam seus predicados que o proacuteprio papel causal das Formas acaba por

tornar-se arbitraacuterio

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44 Conclusatildeo do quarto capiacutetulo

Como resultado de suas criacuteticas Parmecircnides passa a pressupor que natildeo

pode haver qualquer tipo de relaccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis Sua

conclusatildeo estaacute fundada no fato de Soacutecrates se mostrar incapaz de fornecer uma

explicaccedilatildeo para natureza da relaccedilatildeo entre estes dois acircmbitos da realidade que natildeo

resulte na destruiccedilatildeo da unidade caracteriacutestica das Formas

ldquoEstaacute vendo entatildeo Soacutecrates quatildeo grande eacute a aporia se algueacutem determinar as Formas sendo em si e por si Sim certamente Pois fica sabendo que por assim dizer ainda natildeo a tocas tamanha eacute a aporia que surge se sempre ao definir algo puseres cada um dos seres como uma Forma uacutenicardquo Ὁρᾷς οὖν φάναι ὦ Σώκρατες ὅση ἡ ἀπορία ἐάν τις ὡς εἴδη ὄντα αὐτὰ καθ αὑτὰ διορίζηται Καὶ microάλα Εὖ τοίνυν ἴσθι φάναι ὅτι ὡς ἔπος εἰπεῖν οὐδέπω ἅπτῃ αὐτῆς ὅση ἐστὶν ἡ ἀπορία εἰ ἓν εἶδος ἕκαστον τῶν ὄντων ἀεί τι ἀφοριζόmicroενος θήσεις (133a8-b2)

A menccedilatildeo de Parmecircnides agrave independecircncia ontoloacutegica (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e agrave

unidade caracteriacutestica das Formas (ἓν εἶδος ἕκαστον τῶν ὄντων) retoma os temas

enunciados na abertura de suas criacutetica Por serem ldquoem si e por sirdquo e

necessariamente unitaacuterias as Formas natildeo podem estar em noacutes (microηδεmicroίαν αὐτῶν

εἶναι ἐν ἡmicroῖν 133c6-7) Afinal cada uma das explicaccedilotildees socraacuteticas para relaccedilatildeo

entre Formas e coisas resultou na multiplicaccedilatildeo (numeacuterica ou aspectual) das

Formas Como por princiacutepio natildeo podemos aceitar que as Formas deixem de ser

entidades uacutenicas Parmecircnides passa a apresentar as consequecircncias paradoxais

decorrentes da postulaccedilatildeo de entidades uniformes e ontologicamente

independentes poreacutem completamente separadas das coisas sensiacuteveis

ldquoHaacute muitas outras dificuldade disse ele mas a maior eacute a seguinte se algueacutem dissesse que nem mesmo cabe serem elas as Formas conhecidas se forem tal como dizemos que devem ser a este algueacutem que assim falasse natildeo poderia provar que se engana (hellip) Como assim Parmecircnides disse Soacutecrates Porque Soacutecrates creio que tu e qualquer outro que potildee haver alguma essecircncia mesma em si e por si de cada coisas (αὐτήν τινα καθ αὑτὴν ἑκάστου οὐσίαν) concordariacuteeis antes de mais nada que nenhuma delas estaacute entre noacutes (microηδεmicroίαν αὐτῶν εἶναι ἐν ἡmicroῖν)

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Pois neste caso como seria ela ainda em si e por si disse Soacutecrates Eacute correto o que dizes disse Parmecircnides Entatildeo tambeacutem dentre as Formas todas aquelas que satildeo o que satildeo na relaccedilatildeo umas com as outras eacute na relaccedilatildeo delas mesmas umas com as outras que elas tecircm a sua essecircncia e natildeo na relaccedilatildeo com as coisas entre noacutes (hellip) Quanto as coisas que satildeo entre noacutes estas por sua vez sendo homocircnimas daquelas satildeo elas mesmas na relaccedilatildeo umas com as outras e natildeo na relaccedilatildeo com as Formas () Que queres dizer disse Soacutecrates Por exemplo disse Parmecircnides se algum de noacutes eacute senhor ou escravo de algueacutem natildeo eacute certamente daquele Senhor mesmo (αὐτοῦ δεσπότου) daquilo que eacute realmente Senhor (ὃ ἔστι δεσπότης) que ele eacute escravo nem eacute do Escravo mesmo (αὐτοῦ δούλου) daquilo que realmente eacute Escravo (ὃ ἔστι δοῦλος) que o senhor eacute senhor mas sendo homem eacute de um homem que ele eacute ambas essas coisas Por outro lado a Senhoria mesma eacute o que eacute da Escravidatildeo mesma e do mesmo modo a Escravidatildeo mesma eacute Escravidatildeo da Senhoria mesma As coisas entre noacutes natildeo tecircm seu poder em relaccedilatildeo agravequelas nem aquelas em relaccedilatildeo a noacutes Πολλὰ microὲν καὶ ἄλλα φάναι microέγιστον δὲ τόδε εἴ τις φαίη microηδὲ προσήκειν αὐτὰ γιγνώσκεσθαι ὄντα τοιαῦτα οἷά φαmicroεν δεῖν εἶναι τὰ εἴδη τῷ ταῦτα λέγοντι οὐκ ἂν ἔχοι τις ἐνδείξασθαι ὅτι ψεύδεται () Πῇ δή ὦ Παρmicroενίδη φάναι τὸν Σωκράτη Ὅτι ὦ Σώκρατες οἶmicroαι ἂν καὶ σὲ καὶ ἄλλον ὅστις αὐτήν τινα καθ αὑτὴν ἑκάστου οὐσίαν τίθεται εἶναι ὁmicroολογῆσαι ἂν πρῶτον microὲν microηδεmicroίαν αὐτῶν εἶναι ἐν ἡmicroῖν Πῶς γὰρ ἂν αὐτὴ καθ αὑτὴν ἔτι εἴη φάναι τὸν Σωκράτη Οὐκοῦν καὶ ὅσαι τῶν ἰδεῶν πρὸς ἀλλήλας εἰσὶν αἵ εἰσιν αὐταὶ πρὸς αὑτὰς τὴν οὐσίαν ἔχουσιν ἀλλ οὐ πρὸς τὰ παρ ἡmicroῖν () τὰ δὲ παρ ἡmicroῖν ταῦτα ὁmicroώνυmicroα ὄντα ἐκείνοις αὐτὰ αὖ πρὸς αὑτά ἐστιν ἀλλ οὐ πρὸς τὰ εἴδη (hellip) Πῶς λέγεις φάναι τὸν Σωκράτη Οἷον φάναι τὸν Παρmicroενίδην εἴ τις ἡmicroῶν του δεσπότης ἢ δοῦλός ἐστιν οὐκ αὐτοῦ δεσπότου δήπου ὃ ἔστι δεσπότης ἐκείνου δοῦλός ἐστιν οὐδὲ αὐτοῦ δούλου ὃ ἔστι δοῦλος δεσπότης ὁ δεσπότης ἀλλ ἄνθρωπος ὢν ἀνθρώπου ἀmicroφότερα ταῦτ ἐστίν αὐτὴ δὲ δεσποτεία αὐτῆς δουλείας ἐστὶν ὅ ἐστι καὶ δουλεία ὡσαύτως αὐτὴ δουλεία αὐτῆς δεσποτείας ἀλλ οὐ τὰ ἐν ἡmicroῖν πρὸς ἐκεῖνα τὴν δύναmicroιν ἔχει οὐδὲ ἐκεῖνα πρὸς ἡmicroᾶς (133b4-e5)

Desprovidos do poder causal exercido pelas Formas os objetos sensiacuteveis

manifestam suas propriedades unicamente em funccedilatildeo das relaccedilotildees mantidas entre

si Parmecircnides continua falando em participaccedilatildeo (microετέχοντες 133d2) No entanto

tendo sido eliminada a possibilidade de relaccedilatildeo causal entre Formas e coisas a

participaccedilatildeo restringe-se a cada uma destas duas esferas da realidade objetos

sensiacuteveis participam de relaccedilotildees com outros objetos sensiacuteveis enquanto Formas

participam de relaccedilotildees com outras Formas Como consequecircncia a Forma do

Senhor possui a propriedade de ser-senhor apenas em relaccedilatildeo agrave Forma do Escravo

e por outro lado o senhor sensiacutevel adquire esta propriedade unicamente em

funccedilatildeo da sua relaccedilatildeo com um escravo sensiacutevel

Neste caso contudo seraacute preciso reconhecer que caso exista uma ciecircncia

das Formas esta ciecircncia estaacute restrita ao acircmbito das entidades inteligiacuteveis e nada

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diz sobre as coisas do mundo sensiacutevel E por outro lado a ciecircncia relativa aos

objetos sensiacuteveis estaria limitada a seu proacuteprio acircmbito da realidade e em nada

dependeria das Formas

ldquoEntatildeo disse ele tambeacutem a Ciecircncia mesma (ἐπιστήmicroη αὐτὴ) aquilo que realmente eacute Ciecircncia (ὃ ἔστι ἐπιστήmicroη) eacute daquela Verdade mesma daquilo que realmente eacute Verdade (τῆς ὃ ἔστιν ἀλήθεια αὐτῆς) que ela seria ciecircncia natildeo eacute Perfeitamente () Mas a ciecircncia entre noacutes (παρ ἡmicroῖν ἐπιστήmicroη) natildeo seria ciecircncia da verdade entre noacutes (παρ ἡmicroῖν ἀληθείας) e por sua vez cada ciecircncia entre noacutes natildeo resultaria ser ciecircncia de cada um dos seres entre noacutes (τῶν παρ ἡmicroῖν ὄντων ἑκάστου) Necessariamente (hellip) Logo por noacutes pelo menos nenhuma das Formas eacute conhecida jaacute que natildeo participamos da Ciecircncia mesma Parece que natildeo Logo eacute-nos incognosciacutevel tanto o Belo mesmo o que realmente eacute (αὐτὸ τὸ καλὸν ὃ ἔστι) como o Bem e todas as coisas que concebemos como sendo Ideias mesmas (πάντα ἃ δὴ ὡς ἰδέας αὐτὰς οὔσας)rdquo Οὐκοῦν καὶ ἐπιστήmicroη φάναι αὐτὴ microὲν ὃ ἔστι ἐπιστήmicroη τῆς ὃ ἔστιν ἀλήθεια αὐτῆς ἂν ἐκείνης εἴη ἐπιστήmicroη Πάνυ γε Ἡ δὲ παρ ἡmicroῖν ἐπιστήmicroη οὐ τῆς παρ ἡmicroῖν ἂν ἀληθείας εἴη καὶ αὖ ἑκάστη ἡ παρ ἡmicroῖν ἐπιστήmicroη τῶν παρ ἡmicroῖν ὄντων ἑκάστου ἂν ἐπιστήmicroη συmicroβαίνοι εἶναι Ἀνάγκη Οὐκ ἄρα ὑπό γε ἡmicroῶν γιγνώσκεται τῶν εἰδῶν οὐδέν ἐπειδὴ αὐτῆς ἐπιστήmicroης οὐ microετέχοmicroεν Οὐκ ἔοικεν Ἄγνωστον ἄρα ἡmicroῖν καὶ αὐτὸ τὸ καλὸν ὃ ἔστι καὶ τὸ ἀγαθὸν καὶ πάντα ἃ δὴ ὡς ἰδέας αὐτὰς οὔσας ὑπολαmicroβάνοmicroεν

Como resultado teriacuteamos que nos contentar com o conhecimento

imperfeito que a instabilidade ontoloacutegica das coisas sensiacuteveis eacute capaz de nos

proporcionar e reconhecer que somente os deuses poderiam obter o conhecimento

seguro fornecido pelas Formas O argumento como um todo nos convida a

questionar o valor da postulaccedilatildeo de entidades inteligiacuteveis Afinal se as coisas

sensiacuteveis recebem suas propriedades por meio das relaccedilotildees que mantecircm entre si

natildeo teriacuteamos motivos para nos preocupar com as Formas entidades

completamente irrelevantes para o andamento e conhecimento do mundo em que

vivemos

Restringindo o resultado da argumentaccedilatildeo de Parmecircnides ao nosso

diaacutelogo podemos concluir que a Teoria das Ideias natildeo representa uma saiacuteda

legiacutetima ao problema da predicaccedilatildeo de opostos exemplificado no paradoxo de

Zenatildeo Afinal para figurarem em uma relaccedilatildeo de participaccedilatildeo com os objetos

sensiacuteveis as Formas precisariam abrir matildeo de sua unidade caracteriacutestica o que as

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submeteria ao mesmo tipo de problema relacionado agrave predicaccedilatildeo de opostos

apontado por Zenatildeo nos objetos sensiacuteveis

No entanto as criacuteticas de Parmecircnides extrapolam o acircmbito do debate

contido no Parmecircnides e configuram-se como uma refutaccedilatildeo da proacutepria ontologia

socraacutetica Pois se Soacutecrates propotildee que entendamos as Formas como causas das

propriedades dos objetos sensiacuteveis entatildeo haacute de haver algum tipo de relaccedilatildeo entre

estas entidades A argumentaccedilatildeo acima exposta contudo demonstra que uma

explicaccedilatildeo para este relacionamento que natildeo resulte na destruiccedilatildeo do proacuteprio

modo de ser das Formas ainda natildeo estaacute disponiacutevel Afinal cada uma das hipoacuteteses

socraacuteticas para natureza da relaccedilatildeo entre coisas e Formas levou inexoravelmente agrave

dissoluccedilatildeo da unidade caracteriacutestica destas entidades Por outro lado caso

quiseacutessemos sustentar a unidade das Formas a qualquer custo afirmando sua

completa separaccedilatildeo das coisas sensiacuteveis as Formas passariam a ser

incognosciacuteveis e completamente irrelevantes

Haacute portanto um niacutetido paradoxo no interior da ontologia socraacutetica

Somente porque possui um modo de ser natildeo relacional e separado uma Forma eacute

ontologicamente prioritaacuteria uacutenica indivisiacutevel e auto-predicativa podendo ser

apresentada como causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e soluccedilatildeo para o

problema da copresenccedila de opostos No entanto para cumprirem seu papel de

causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis as Formas precisam estar em relaccedilatildeo

com as entidades do mundo empiacuterico E como demonstra Parmecircnides esta

relaccedilatildeo eacute suficiente para modificar a natureza das Formas tornando-as entidades

muacuteltiplas sujeitas a predicaccedilatildeo de opostos e tatildeo auto-contraditoacuterias quanto os

objetos sensiacuteveis

Portanto se a interpretaccedilatildeo aqui proposta estaacute correta a primeira parte do

diaacutelogo Parmecircnides revela um problema real e indiscutiacutevel na Teoria das Ideias

defendida pelo personagem Soacutecrates nos diaacutelogos meacutedios e iniciais Natildeo por

acaso Platatildeo como resultado final de sua anaacutelise criacutetica da ontologia socraacutetica

coloca na boca de Parmecircnides as seguintes palavras carregadas de dramaticidade

ldquoQue faraacutes da Filosofia Para onde te voltaraacutes sendo estas coisas desconhecidasrdquo

Τί οὖν ποιήσεις φιλοσοφίας πέρι πῇ τρέψῃ ἀγνοουmicroένων τούτων (135c5-6)

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