(3)lucas angioni

Upload: lucas-caruso

Post on 04-Jun-2018

223 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    1/44

    Logic, Language and Knowledge. Essays on Chateauriands Logical FormsWalter A. Carnielli and Jairo J. da Silva (eds

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    CDD: 185

    A Noo Aristotlica de Matria

    LUCAS ANGIONI

    Departamento de FilosofiaUniversidade Estadual de CampinasCAMPINAS, SP

    [email protected]

    Resumo:Este artigo discute os elementos pelos quais se poderia reconstituir a concepo aristotlica de matria.Aristteles parece oscilar entre uma concepo em que a matria conta como princpio que explica o devir e umaconcepo em que a matria conta como elemento constituinte sem nenhuma relevncia para explicar o devir.Aristteles s vezes concebe a matria como uma coisa independente em si mesma, qual advm, como forma,uma propriedade que no contribui para sua essncia e que no condio necessria sua existncia. Mas svezes Aristteles parece conceber a matria como elemento constituinte cuja existncia dependeria do todo doqual matria. Essas oscilaes parecem sugerir que a teoria aristotlica da matria seria um amlgama

    inconsistente. Tentamos mostrar que, apesar dessas oscilaes, Aristteles tem uma teoria coerente sobre a noode matria.

    Palavras-chave:Hilemorfismo. Metafsica. Ontologia. Causalidade. Filosofia da Natureza.

    I

    Nosso objetivo neste artigo consiste em analisar a noo aristotlica

    de matria no interesse de saber se Aristteles props uma definio coeren-te desse conceito, ou se ao menos props elementos pelos quais se possareconstituir uma concepo coerente de matria. Vrios problemas parecemameaar a coerncia da teoria de Aristteles sobre a matria. Aristteles pa-rece oscilar entre uma concepo em que a matria conta como princpioque explica o devir e uma concepo em que a matria conta como elementoconstituinte sem nenhuma relevncia para a explicao do devir. Aristteles

    s vezes concebe a matria como uma coisa independente em si mesma,

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    2/44

    Lucas Angioni

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    48

    qual advm, como forma, uma propriedade que no contribui para sua es-

    sncia e que no condio necessria sua existncia. Mas s vezes Arist-teles parece conceber a matria como elemento constituinte cuja existnciadependeria do todo do qual matria. De modo similar, Aristteles pareceno ter uma opinio definitiva a respeito da relao entre as noes de mat-ria e substncia: s vezes ele afirma que a matria substncia, s vezes eleafirma que a matria no substncia. Todas essas hesitaes parecem suge-rir que a teoria aristotlica da matria seria um amlgama precipitado e in-

    consistente. Veremos, no entanto, que esse juzo no acertado.

    II

    Nosso objetivo nesta primeira seo mostrar que, para atinar com aconcepo aristotlica de matria, os primeiros passos consistem em enten-der alguns pontos concernentes ao modo pelo qual Aristteles emprega otermo grego para matria (hyle). Primeiro, devemos estar atentos ao fato deque, no texto de Aristteles, o termo hylemuitas vezes menciona o conceitode matria, mas outras vezes refere-se a algo que designado como mat-ria por satisfazer as condies relevantes para tanto. Neste segundo caso,tambm h dificuldades: quando o termo matria refere-se coisa que matria, s vezes ele refere-se a tal coisa enquanto matria, s vezes refere-se atal coisa tomada em si mesma, como se o ttulo de matria fosse um con-comitante que servisse de pretexto para introduzir a coisa da qual se quer

    falar, mas que no teria mais conseqncias sobre os predicados que ento seatribuem a tal coisa. Suponha-se que a madeira tenha sido designada comomatria da cama. Logo em seguida, pretende-se falar da madeira em simesma, atribuindo-se-lhe o predicado de ser suscetvel de combusto. Noentanto, ao se introduzir o sujeito desse atributo, pode-se usar a expressomatria da cama, em vez do termo madeira, embora no mais seja rele-vante, para a atribuio do predicado em pauta, que a madeira seja tomada

    enquanto matria da cama. Como vemos, essa maleabilidade no uso do termo

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    3/44

    A Noo Aristotlica de Matria

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    49

    matria pode ser fonte de confuso. A madeira matria da cama e

    combustvel, mas no enquanto matria da camaque ela combustvel. Ela combustvel em si mesma, e pode-se facilmente encontrar algum item que,embora seja matria da cama, no seja combustvel.

    Por outro lado, parece haver certo problema com a transitividade dospredicados da matria. Tomemos, para ilustrar o caso, a noo de substncia.Suponha-se, simplificadamente, em vista do contraste relevante para nossaexposio, que (i) a substncia tenha como caracterstica definitria (ou ao

    menos prpria) ser algo separado, e que (ii) seja verdadeiro dizer que um serhumano uma substncia; da se pode inferir com segurana que (iii) ver-dadeiro dizer que um ser humano algo separado. Ora, o caso da matriaparece resistir ao mesmo tipo de inferncia. Suponha-se que (i') a matriatenha como caracterstica definitria (ou ao menos prpria) ser algo incapazde existir separadamente (ser algo no-separado), e que (ii') seja verdadeirodizer que a gua matria; seria de se esperar que fosse garantida a infernciade que (iii') a gua algo incapaz de existir separadamente. No entanto, Aris-tteles no parece admitir que essa concluso seja o caso. Ainda que a guaexista apenas a ttulo de agregado (sros, 1040b 8-10), ela existe separadamen-te daquilo de que vem a ser matria. Ocorre que o conceito de matria, as-sumido na premissa (i'), um conceito correlativo, que se aplica a um dadosujeito apenas no contexto de uma correlao determinada com outra coisa.Da se segue que tudo que matria matria de alguma coisa. essa restrioque d a condio relevante sob a qual unicamente o predicado definitrio

    descrito na premissa (i') pode ser corretamente atribudo, na concluso (iii'), coisa que se apresenta como matria de algo. A premissa (i') quer dizer que,se x matria dey, xno pode existir, a ttulo de matria de y, separadamentedey. Assim, se a gua for tomada enquanto matria de y, a concluso (iii') podeser aceita como verdadeira, no seguinte sentido: a gua enquanto matria deyno pode ser concebida separadamente dey, pois somente pela correlaocomypode receber o ttulo de matria dey. Mas da no se segue que a gua,

    em si mesma, no possa existir parte da entidadey.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    4/44

    Lucas Angioni

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    50

    Em primeiro lugar, consideremos a distino entre a conotao de

    matria e o uso denotativo de matria1. Podemos compreender o pro-blema se compararmos o termo matria com o termo um (hen), doqual Aristteles ocupa-se com algum detalhe no captulo 1 do livro X daMetafsica. Ao buscar delimitar a natureza do um, Aristteles inicia seu argu-mento com a seguinte ponderao:

    preciso considerar o seguinte: no devemos compreender que se afirme demodo idntico quais coisasse dizem umas [poia hen legetai], e o que o ser para

    o um(isto , qual a definio dele) [kai ti esti to heni einai kai tis autou logos].(1052b 1-3)

    Aristteles sublinha a necessidade de no confundir duas questesdistintas, a saber: quais so os itens que merecem (ou podem receber ver-dadeiramente) a designao de um? e, por outro lado, o que o ser para oum?, ou seja, qual o enunciado que define o que o um. Esta ltima ques-to concerne ao sentido conotativo do termo um, ao passo que a primeira

    diz respeito ao uso denotativo do termo em sentenas do tipo x um2.Mas, alm dessa distino, Aristteles observa que parece haver vrios senti-dos conotativos de um: de fato, o um se diz desses tantos modos3, e hde ser um cada coisa qual for atribudo algum desses modos (1052b 3-5).H uma diversidade de critrios para especificar o sentido conotativo deum (pois o um se diz de diversos modos, 1052a 15), e o uso atributivo-denotativo de tal termo poder assumir como regra qualquer um desses

    1A necessidade de analisar a semntica do termo matria nos textos aristo-tlicos foi formulada de maneira exemplar por Furth [1988], p. 87, o qual acerta-damente acusa a tendency among interpreters to stoutly persevere in readingmatter as stuffor oatmeal or goo, wherever encountered and regardless of level.

    2Ver Furth [1988], p. 55, que utiliza esta passagem como testemunho em fa-vor da discriminao dos usos conotativo e denotativo de ousiana formulao dasquestes em 1028b 3-7.

    3

    Aristteles remete aos modos de dizer o um arrolados na seo anteriordo captulo, em 1052a 15-b 1.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    5/44

    A Noo Aristotlica de Matria

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    51

    critrios. Assim, dado que um define-se como (i) contnuo, (ii) como algo

    dotado de certa forma que lhe d coeso interna, (iii) algo cujo conhecimen-to indivisvel, etc., poder ser designado como um aquilo que satisfizerqualquer um desses critrios. Como o que nos interessa no caso do umem si mesmo, no vamos explorar todos os detalhes contidos nessa teoria.Basta-nos notar que Aristteles julga que as mesmas consideraes valemtambm para os termos elemento e causa:

    como se, no que concerne a elemento e causa, fosse preciso dizer (a) re-

    portando-se s coisas [epi tois pragmasin diorizonta] ou (b) fornecendo a defini-o do nome [tou onomatos horon apodidonta]. (1052b 7-9)

    A distino que Aristteles demarca entre os casos (a) e (b) corres-ponde que foi antes estabelecida, em 1052b 2-3, entre dizer quais coisassedenominam umas [poia hen legetai] e dizer o que o ser para o um(isto , qual a definio dele). Por um lado, possvel empregar o termo elemento (eo mesmo verdadeiro para o termo causa) de modo tal que ele responda

    definio do nome, como nas sentenas em que se lhe atribui um predicadoque indica uma propriedade necessria de qualquer elemento, por exemplo,na sentena o elemento fisicamente anterior quilo de que elemento.Por outro lado, possvel utilizar tal termo em referncia s coisas que exi-bem as propriedades relevantes que se encontram especificadas na definiodo termo, como na sentena em que se diz que o fogo elemento. Se,como Aristteles sugere logo a seguir, define-se elemento como algo de que

    outra coisa se constitui, verdadeiro chamar o fogo de elemento porque verdadeiro atribuir ao fogo a definio de elemento: de fato, o fogo algo deque outras coisas se constituem.

    Essa distino entre os casos (a) e (b) corresponde exatamente dis-tino que, em FsicaI 8 (191b 4-5, 13-15), Aristteles assinala pela oposioentre as expresses hi auto (enquanto tal) e kata symbebkos (por concomi-tncia ou por acidente). Essas duas expresses so usadas como clusulasque incidem sobre o termo sujeito de uma dada sentena (no sobre a sen-

    tena inteira), para especificar a correta anlise semntica pela qual a sentena

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    6/44

    Lucas Angioni

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    52

    verifica-se como verdadeira. Nessa perspectiva, podemos dizer que a senten-

    a o elemento algo de que se constitui um ente mais complexo verda-deira para elemento enquanto elemento, ao passo que a sentena o elemento um corpo quente e seco verdadeira apenas para o elementopor conco-mitncia, isto , apenas na medida em que o contexto da sentena pressupeque elemento esteja a ser utilizado de modo denotativo para designar outraentidade a saber, o fogo (um corpo quente e seco) qual sucede possuiras propriedades especificadas na definio de elemento. Quando se usa a

    sentena o elemento um corpo quente e seco, o que se quer dizer queo fogo, que um elemento, um corpo quente e seco. Nesta sentena, otermo elemento no pode ser substitudo por sua definio, mas deve sersubstitudo pelo termo que designa a coisa qual elemento, neste contex-to, se refere. De fato, seria falso dizer que tudo aquilo de que outra coisa seconstitui um corpo quente e seco. J em sentenas como o elemento fisicamente anterior quilo que constitui, o termo elemento pode sersubstitudo por sua definio. De fato, verdadeiro dizer que aquilo de quealgo se constitui fisicamente anterior quilo que constitui4. Aristteles cuidadoso nessa distino:

    (i) de certo modo, elemento o fogo (...), mas, (ii) de certo modo, no; (iii)pois o ser para o fogoe o ser para o elementono so idnticos. Ao contrrio: (iv)o fogo elemento como uma certa coisa e natureza, ao passo que (v) tal de-nominao significa que tal e tal fato [todi]5lhe sucede como atributo, a saber:que h algo que se constitui dele, a ttulo de primeiro inerente. (1052a 9-14)

    4O mesmo vale para o termo causa. Em uma dada sentena, preciso dis-cernir se o termo causa est tomado em sua conotao, podendo ser substitudopor sua definio, ou se est em seu uso denotativo, de modo que, longe de poderser substitudo por sua definio, poderia ser substitudo apenas pelo nome dacoisa qual ocorre, no contexto em questo, ser atribudo denotativamente.

    5O pronome todi em 1052b 13 funciona como uma varivelno lugar das pro-priedades especificadas na definio do sentido conotativo de elemento. Para

    uso idntico de todi, verA. Po. 76b 6;Met. 1006a 30; Fsica 200a 1, 2, 3. Ver tam-bm o toioutonemMet.1010b 26.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    7/44

    A Noo Aristotlica de Matria

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    53

    No trecho (i), Aristteles diz que a sentena o fogo elemento

    verdadeira, sob certas condies, e, no trecho (ii), Aristteles j aponta para ocaso em que tal sentena no seria verdadeira, a saber, no caso em que fossetomada como se afirmasse haver uma identidade entre fogo e elemento,de tal modo que um termo sempre pudesse ser usado pelo outro. No trecho(iii), Aristteles deixa claro que o definiensde fogo no idntico ao definiensde elemento, e os dois passos seguintes pressupem a distino j estabe-lecida entre denotao e conotao de um termo. No passo (v), Aristteles

    esclarece que a denominao do fogo pelo termo elemento quer dizer que verdadeiro atribuir ao fogo a descrio que define o que elemento (de fato, verdade dizer que o fogo um fator inerente de que se constitui outracoisa), mas o passo (iv) explica que tal denominao, embora seja verdadei-ra a respeito do fogo, no quer dizer que ser fogoconsista precisamente em serelemento e nada mais.O fogo, ao qual se atribui a propriedade de ser um ele-mento, elemento sendo tambm outra coisa, a saber, um corpo quente e seco,etc. O fogo uma natureza subjacente que no se reduz mera propriedadede ser elemento de corpos mais complexos. O fogo uma coisa dotada depropriedades essenciais que no dependem do fato de ser ele um elemento.Por outro lado, elementoconsiste antes em uma funo a ser desempenhadapor certas coisas em relao a outras. A definio simplificada de elementoseria algo como: elemento = (df)um xtal que, a partir de x, constitui-sey(ver 1052b 14)6. J a definio do fogo seria algo como fogo = (df)um corpoquente e seco, que se dirige para o alto, etc.. Ao afirmar que o fogo ele-

    mento, no afirmamos uma identidade entre ambos, mas apenas usamos otermo elemento denotativamente, isto , atribumo-lo como designao(onoma, 1052b 13)7 apropriada a outra coisa, qual sucede (symbebkenai,

    6No presente contexto argumentativo, esta definio simplificada suficiente.Para definio mais precisa da noo de elemento, ver De Caelo III 3, 302a 15-19,MetafsicaV 3.

    7

    Para onoma neste mesmo sentido de designao ou denominao, verMetafsica 1006a 29-30, 1006b 12.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    8/44

    Lucas Angioni

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    54

    1052b 13) possuir as propriedades especificadas no sentido conotativo de

    elemento (todi, 1052b 13): de fato, o fogo tal que, a partir dele, outrosentes se constituem (1052b 14).

    Ao propor essas distines sobre os termos elemento e causa,Aristteles tem em vista elucidar a semntica do termo um, mas podemosperfeitamente dizer que a mesma situao aplica-se tambm ao termo mat-ria. Tal como os termos elemento e causa, o termo matria no de-signa uma coisa. No h coisa alguma cuja essncia consistisse apenas em ser

    matria, ou seja, no h coisa alguma que, ao ser matria, no seja tambmoutra coisa, especificada por propriedades essenciais que no dependem dapropriedade de ser matria. Ser matria consiste em uma funo, que serexercida por algum item em relao a outro8. Ainda que seja difcil delimitarprecisamente em que consiste essa funo (tarefa a que nos dedicaremos naseo seguinte deste artigo), bem claro que definir a matria como umafuno consiste em conceber o conceito de matria como um correlativo,que pe em cena dois correlatos. Se xdesempenha a funo pela qual sedefine o conceito de matria, xdeve ser designado no apenas sob o ttulode matria tal designao seria incompleta , mas sob o ttulo de mat-ria dey, sendoyo item em relao ao qual xdesempenha as funes requi-sitadas. Como Aristteles diz em Fsica II 2: a matria conta-se entre osrelativos: para uma forma diversa, a matria diversa (194b 8-9).

    importante notar que o carter correlativo do conceito de matriaacarreta uma maleabilidadena referncia do termo matria. O item x a que

    8Ver A. Mansion [1945], p. 102, 241; Brunschwig [1979], p. 145-6; Wieland[1993/62], p. 170, 264-8; Hamlyn [1985], p. 59-61; Furth [1988], p. 86-7; Balme[1990], p. 49-50; Lewis [1991], p. 156, 165; K. Fine [1992], p. 40 ss. No entanto,nem todos que admitem que a matria um termo correlativo que se define poruma funo admitem a conseqncia de que no h coisa alguma que seja matriasem ter em si mesma propriedades essenciais distintas da propriedade de ser mat-ria. Admitir essa conseqncia consiste em admitir que no faz sentido conceber

    uma matria-prima nos moldes tradicionais, como um estofo sem nenhuma pro-priedade essencial (ver anlise desse ponto em Bostock [2006], p. 35).

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    9/44

    A Noo Aristotlica de Matria

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    55

    tal termo remete s pode ser determinado no contexto de uma correlao,

    mediante o outro itemyem relao ao qual xrecebe a designao de mat-ria. Algo matria apenas em relao a outra coisa. Mas, considerado em simesmo, o item que recebe a designao de matria ele prprio uma coisadotada de uma forma, de um conjunto de propriedades e disposies pr-prias e isso verdade mesmo para os quatro elementos9. O bronze, porexemplo, pode ser designado como matria da esttua, mas, consideradoem si mesmo, o bronze algo dotado de uma forma prpria, da qual seriam

    matria elementos situados em um nvel inferior, como cobre, estanho ou,em ltima instncia, terra, gua, ar e fogo10.

    No existe algo que possa ser designado em absoluto como a mat-ria: um item que se designa como matria sempre matria de algo, eapenas esta ltima maneira de se pronunciar conta como estritamente corre-ta11. precisamente isso que Aristteles quer dizer em duas passagens que,infelizmente, tem sido interpretadas de modo bem obscuro. EmMetafsica Z-10, Aristteles afirma que a matria no pode ser reconhecida sozinha em simesma (h d' hyl agnstos kath' hautn, 1036a 8-9), ou, na traduo obscuraque tradicionalmente se prope, a matria incognoscvel em si mesma.Os que atribuem a Aristteles a noo de matria-prima no hesitam emjulgar que esta sentena pe em cena precisamente a matria-prima, que teriao atributo de no ter nenhuma propriedade em si mesma e ser, portanto,incognoscvel antes de ser determinada por uma forma, etc. No entanto,Aristteles quer dizer coisa bem diversa. No comeo desta seo, observa-

    mos que o termo matria (hyle) s vezes introduz o conceito de matria, s

    9Ver Furth [1988], p. 164-5, 190; Gill [1989], p. 69; Sheldon Cohen [1996], p.46-8.

    10VerMeteo. 384b 30-4; 388a 10-16;Metafsica1034b 10-13.11EmMetafsica H, Aristteles sustenta a mesma tese: no h uma matria nica

    para todos os entes, mas uma diversidade de itens que se denominam como ma-tria de algo apenas em funo da correlao com alguma outra coisa: eviden-

    te que a efetividade, assim como a definio, diversa para uma matria diversa(1043a 12-13).

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    10/44

    Lucas Angioni

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    56

    vezes refere-se denotativamente a algo que matria. Tambm observamos

    que, neste segundo caso, quando se refere a uma coisa que matria, o ter-mo matria (hyle) s vezes remete a tal coisa enquanto ela matria, mas svezes remete a tal coisa sem que seja relevante, no contexto em pauta, tom-la enquanto ela matria. Em 1036a 8-9, matria refere-se coisa que, emum contexto qualquer, vem a receber a designao de matria. Que coisa essa? O ponto de Aristteles consiste justamente em dizer que, para discer-nir, em cada caso, que coisa essa que vem a ser designada como matria,

    no podemos consider-la em si mesma, isto , no podemos consider-lasem um correlato, em relao ao qual ela viria a desempenhar a funo de sermatria. Se queremos saber se o vidro matria, a resposta correta no nem sim, nem no, mas a rplica matria do qu? Sem especificar umcorrelato, a pergunta original no pode ser respondida, e, por isso, no sepode discernir se o vidro, em si mesmo, matria. As respostas seriam dis-tintas para correlatos distintos: o vidro matria da taa, mas no matriado serrote. a mesma coisa que Aristteles quer dizer em Fsica I 7: a natu-reza subjacente pode ser reconhecida pela analogia (191a 7-8). Neste con-texto, natureza subjacente no se refere, como muitos presumiram, no-o de matria-prima, mas refere-se coisa que, em um contexto qualquer,vem a receber a designao de natureza subjacente. Que coisa essa? Oponto de Aristteles consiste em dizer que, para discernir, em cada caso, qual a coisa que vem a ser designada como natureza subjacente, devemosconsiderar a analogia, isto , a igualdade da relao entre correlatos distintos:

    tal como o bronze est para a esttua, a madeira est para a cama. Se quere-mos saber se a madeira matria, a resposta correta no nem sim, nemno, pois deve-se replicar: matria do qu? De fato, a madeira matriada cama, mas no matria do serrote (obviamente refiro-me lmina e noao cabo).

    Assim, o predicadoagnstos, que Aristteles atribui matria em 1036a9, consiste em um predicado de segunda ordem concernente nossa capaci-

    dade de discernir (ou reconhecer) os casos em que o termo matria apli-

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    11/44

    A Noo Aristotlica de Matria

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    57

    cado de modo verdadeiro. Mas convm indagar: tal predicado aplica-se

    coisa que matria enquanto ela matria, ou aplica-se coisa que matria,em si mesma, sem que seja relevante tom-la sob o ttulo de matria? Ora, claro que se trata da primeira situao: enquanto matria, a madeira no podeser tomada em si mesma porque, sem especificar o correlato em relao aoqual exercesse a funo de ser matria, no se poderia dizer que a madeira matria (ainda que no se saiba que coisa y, deve-se saber quea madeira matria dey). Mas obviamente isso no quer dizer que a madeira, em si mesma,

    seja algo incognoscvel ou indiscernvel. Em si mesma, a madeira algo quepode ser definido independentemente da propriedade de ser matria. Mas, sese pretende tom-la enquanto matria, s se pode tom-la no contexto de umacorrelao relevante, caso contrrio, se a madeira for tomada isoladamente,no se pode reconhecer se a madeira matria ou no .

    III

    Como vimos, um item xrecebe o ttulo de matria dey se ele cum-pre, em relao ay, determinada funo, a qual desempenha o papel de defini-ensdo conceito de matria. por satisfazer a propriedade de cumprir essafuno que xrecebe a designao de matria dey. Mas cumpre indagarqual seria a funo pela qual se define o conceito aristotlico de matria.

    plausvel esperar que Aristteles tenha proposto uma definio doconceito de matria, e seria plausvel buscar tal definio nos pronunciamen-

    tos que se introduzem pela expresso leg de hyln

    , emMetafsica

    1029a 20-21 e em Fsica 192a 31-32. No entanto, o primeiro desses textos est longe depropor uma definio universal do conceito de matria, pois apenas elucidaqual o sentido relevante de hyl no contexto em pauta, no qual se trata derefutar a tese de que certa concepo de matria pudesse ser concebida co-mo essncia de todas as coisas12. No segundo texto, temos, talvez, uma defi-

    12

    Tratei disso com detalhe em Angioni [2003], bem como no captulo 4 deAngioni [2008].

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    12/44

    Lucas Angioni

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    58

    nio de matria13: denomino matria aquilo que primeiramente est subja-

    cente a cada coisa, como elemento imanente de que algo provm no porconcomitncia. Essa definio parece arrematar o livro I da Fsica: ela ex-prime as caractersticas que, desde Fsica I 7, a anlise de Aristteles atribui aosubjacente, ou natureza subjacente, como terceiro princpio necessrio auma descrio coerente do fenmeno do devir. Aristteles no diz explici-tamente que essa natureza subjacente(cf. 191a 8) que garante a continuidade e ainteligibilidade dos processos de devir corresponde ao seu conceito de mat-

    ria, mas temos boas razes para julgar que essa correspondncia, apesar deno ser explicitada desde o incio, um slido pressuposto assumido porAristteles no livro I da Fsica, e, especificamente em 192a 3-4, Aristtelesdeixa claro que as noes de subjacente e de matria so neste contextoequivalentes.

    Assim, o melhor texto para comear a entender a noo aristotlica dematria consiste no captulo 7 do livro I da Fsica, freqentemente entendidocomo introduo do conceito de matria14. Aristteles preocupa-se, nessecaptulo 7 de Fsica I, em articular de modo mais satisfatrio a soluo jinsinuada no captulo 6 para os dilemas eleticos sobre o devir. No captulo6, no intuito de provar que odevir na natureza pode ser descrito de maneirainteligvel, Aristteles introduzira a noo de subjacente, como terceiro princpiosobre o qual os contrrios unicamente podem atuar (cf. 189a 21-26, 27-32,34-b 1). esse interesse argumentativo que anima o captulo 7, no qual Aris-tteles parece ter dois objetivos: (i) mostrar que o subjacenteconstitui um

    pressuposto implcito em todos os enunciados que propomos para descrevero devir, (ii) especificar os critrios pelos quais podemos discernir em cadacaso osubjacenteque garante a inteligibilidade do devir.

    13

    Cf. Graham [1987], p. 481.14Ver Jones [1974], p. 474, e Furth [1988], p. 217.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    13/44

    A Noo Aristotlica de Matria

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    59

    Aristteles inicia Fsica I-7 com a proposta de analisar os enunciados

    pelos quais ordinariamente descrevemos processos de devir (cf. 189b32 ss.)15. Tomemos como exemplo uma alterao: o processo de instruopelo qual um homem no-musical torna-se ou vem a ser um homem musi-cal. Para descrever tal processo, usa-se o esquema sentencial xgignetaiy: xo terminus a quo, que se submete ao processo de se tornar outra coisa, ey oterminus ad quem, que emerge como novo no final do processo. Aristtelesdistingue, de incio, duas maneiras pelas quais xey podem ser substitudos

    nessa frmula. A primeira delas divide-se em duas (189b 30- 190a 13):a) ou relatamos o processo propondo, no lugar de xey, dois termos

    simples; essa possibilidade bifurca-se em dois tipos de enunciado:a.1) homem vem a ser musical;a.2) no-musical vem a ser musical;b) ou relatamos o processo propondo, no lugar de xey, descries

    nas quais um termo est composto com outro, como na sentena homemno-musical vem a ser homem musical.

    Aristteles observa que, no caso (a.1), o item que se submete ao pro-cesso de devir isto , o terminus a quo, que ocupa a posio de sujeito namencionada sentena permanece ou subsiste (hypomenei) durante o proces-so; ao passo que, no caso (a.2), o terminus a quono permanece sob o proces-so de devir, mas desaparece e d lugar ao terminus ad quem que ocupa a posi-o de predicado na respectiva sentena (cf. 190a 9-13). Observe-se que ocaso (b) apresenta-se como certa conjuno dos casos (a.1) e (a.2), ao menos

    para a descrio do terminus a quo. Aristteles parece pressupor esse ponto,do qual se pode concluir que o item complexo que se submete ao processode vir a ser isto , o terminus a quo, que ocupa a posio de sujeito da sen-tena (b) tem duplo comportamento, de acordo com cada um de seus

    15Ver Wieland [1993/62], p. 182, 185-6. Wieland talvez exagere o sentido dafrase 190a 14 e, na segunda edio de sua obra, volta atrs quanto interpretao

    que havia proposto. Mas a perspectiva geral que ele prope no depende apenasdeste detalhe. Ver tambm Jones [1974], p. 476-8.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    14/44

    Lucas Angioni

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    60

    constituintes: em certo sentido tal item permanece o mesmo, mas, em outro

    sentido, perece e d lugar a seu oposto. De fato, o homemsubsiste ao longode todo o processo, mas ono-musical, em vez de sobreviver ao processo, dlugar a seu oposto, omusical (cf. 190a 16-21). Aristteles quer ressaltar queapenas esta terceira e ltima maneira de enunciao pode ser tida como estri-tamente correta: as duas restantes, embora possam ser eficazes na linguagemordinria graas aos pressupostos implcitos partilhados pelos interlocutores,apresentam-se antes como abreviaes do terceiro tipo de enunciao, ao

    qual, em ltima instncia, deveriam ser reduzidos16. Assim, pelo exame des-sas maneiras de relatar o devir, Aristteles depreende algumas regras gerais(190a 13-21): (i) em qualquer devir, sempre necessrio haver algo subjacentequilo que precisamente vem a ser(quilo que surge) pois um novo item no surgedo nada (cf. 1032b 30-32); (ii) o item que sofre o processo de vir a ser (gigno-menon) um composto, cujos elementos so distintos em suas respectivasformas (eidei), isto , so respectivamente distintos naquilo que so essencialmenteem si mesmos so distintos pelo ser (ti einai) (cf. 1033b 12-13).

    Essas duas regras, introduzidas no interesse de resolver as aporiaseleticas a respeito do devir, podem ser reformuladas do seguinte modo: (A)todo item que vem a ser, a despeito de certas formas ordinrias pelas quais serelata um processo de devir, sempre um composto, isto , algo em que sepode discernir ao menos duas coisas distintas; (B) em todo devir, um (aomenos um) dos elementos do compostopersiste e subsistecomo aquilo peloque podemos marcar sua identidade durante o processo. Torna-se claro,

    assim, que o esquema sentencial xvem a sery, pelo qual se relata umprocesso de devir, mera abreviao do modelo Sque no-Pvem a ser Sque P.

    16Na sentena o no-musical vem a ser musical, o termo no-musicalfunciona como o termo branco na sentena o branco musical: designa um

    composto acidental, isto , um item subjacente xao qual sucede concomitante-mente no ser musical.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    15/44

    A Noo Aristotlica de Matria

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    61

    Apesar de Aristteles pretender que essas teses sejam vlidas para

    qualquer tipo de devir (cf. 190a 13-15), o modelo que lhe fornece tais distin-es consiste em uma alterao, que apenas umadas quatro classes de devir.Certamente no h dificuldade em aplicar essas teses, obtidas pela anlise daalterao, s outras classes de devir acidental(isto , crescimento/diminuio edeslocamento). No entanto, o problema consiste em saber se essas teses soaplicveis ao devir que concerne a categoria da substncia, isto , gerao e corrupo. nesse terreno que encontramos o problema da matria prima.

    No entanto, o problema que nos interessa antes o seguinte: saber quais soos critrios para determinar qual o elemento persistente que garante a iden-tidade de cada processo de vir a ser. No caso das alteraes (e todas as demaismudanas no-substanciais), a resposta parece ser simples: uma mesmasubstncia que persiste sob a modificao de suas propriedades acidentais,como no exemplo do homem no-musical que se torna homem musical.Pelo modelo da alterao, podemos depreender que o elemento subsistente, quedetermina a identidade do processo de devir, deve ser discernido pela con-juno de trs critrios, a saber:

    (i) ele devepr-existir ao processo de vir a ser, como um item identificvelpor si mesmoantes que o processo se inicie;

    (ii) ele deve sobreviverao final do processo, como um item identificvel porsi mesmo depois que tal processo se tenha encerrado;

    (iii) ele deveperdurarao longo de todo o intervalo situado entre as eta-pas contempladas nos itens anteriores (i) e (ii).

    Essa noo de subjacentedelimitada por esses trs critrios coaduna-secom o modelo de descrio do devir no-substancial. Todos os casos dedevir no-substancial podem ser entendidos como processos nos quais omesmo subjacente (uma substncia) passa pela substituio de uma proprie-dade acidental por outra, entre propriedades de mesma famlia, e a subs-tncia facilmente satisfaz os trs critrios porque sua essncia no dependedas propriedades acidentais entre as quais se d o processo de devir. No

    entanto, esses critrios seriam aplicveis ao caso das geraes substanciais?

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    16/44

    Lucas Angioni

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    62

    Para enfrentar essa questo, Aristteles toma como exemplo a gerao de

    artefatos, como esttuas de bronze (190b 1 ss.). No caso de um artefato,parece haver estrita satisfao dos critrios obtidos na anlise da alterao,pois correto afirmar que (i) o bronzepr-existe fabricao de uma esttuaparticular, (ii) sobreviveaps esse processo de fabricao e (iii)perduradurantetodo esse processo de fabricao17.

    No entanto, quando passamos anlise da gerao de um ser vivo, osproblemas se avolumam. Qual seria o elemento constitutivoque poderia satisfa-

    zer os trs critrios? Osexemplos que Aristteles oferece no satisfazem si-multaneamente esses trs critrios no apenas os exemplos de FsicaI 7,mas tambm a maior parte dos itens que Aristteles habitualmente designacomo matria de um ser vivo. Aristteles diz, por exemplo, que a sementeaquilo a partir de quevem a ser um animal (cf. 190b 3-5). No h dvida deque a sementesatisfaz o critrio (i) h pouco mencionado. No entanto, a semen-teno satisfaz os outros dois critrios: ela no sobrevive ao processo degerao do ser vivo, pois desaparece para lhe dar lugar, nem perdura ao lon-go de todo o processo de formao do ser vivo. De maneira semelhante, ascarnes e os ossos, que Aristteles freqentemente cita como exemplos dematria do animal (cf. 1035a 18-20, 33), parecem satisfazer o critrio (ii),pois, ao final do processo de gerao, emergem como partes constitutivas doanimal; mas carnes e ossos no se encontram inicialmente dados no incio doprocesso isto , no satisfazem o critrio (i).

    Descartamos duas tentativas de resolver essas dificuldades. Por um

    lado, a noo tradicional de matria prima concebida como substrato aptoa preencher a lacuna entre terminus a quoe terminus ad quem18, isto , comosubstrato primeiro que satisfaria tanto o critrio (i) como o critrio (ii) e,conseqentemente, tambm o critrio (iii), pois seria um substrato que permane-

    17Ainda que Jones [1974] , p. 486, esteja correto em dizer que o bronze persis-

    ta apenas como tipo e no como pedao individual de bronze.18

    Devemos esta feliz formulao a Charlton [1992/70], p. 76. Sobre a noode matria-prima, concordamos com Charles [2003], p. 152-6.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    17/44

    A Noo Aristotlica de Matria

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    63

    ceria ao longo de todos os processos de devir. Por outro lado, alguns intr-

    pretes sustentam que a noo aristotlica de matria, longe de circunscre-ver um elemento constituinteque satisfizesse os trs critrios h pouco arrolados,designaria apenas o item que serve como ponto de partidaa um processo de gerao sendo indiferente a sobrevivncia desse item ao longo de todo o pro-cesso19. Isso equivale a dizer que apenas o critrio (i) seria relevante paraconceber a noo de matria.

    Ambas as propostas parecem-nos inadequadas, embora a segunda te-

    nha introduzido muito mais clareza no debate. No entanto, essa segundaproposta ignora os pronunciamentos em que Aristteles parece delimitar amatria ou como elemento constituinte, ou como terminus ad quemno qualresulta a corrupode uma substncia (por exemplo, 1035a 17-b 3). Seus de-fensores poderiam enfrentar a primeira objeo insistindo em interpretar aexpresso ex hou em sentido exclusivamente diacrnico e no sincrnico: elespoderiam alegar que, quando Aristteles supostamente diz que a matriaseria o elemento de que se constitui uma coisa (como em Fsica, 192a31-32), ele quer dizer que a matria o princpio pr-existente a partir doqual se inicia o processo de gerao de uma coisa20. No entanto, ainda quevrias ocorrncias da expresso ex hou possam ser interpretadas em sentidoexclusivamente diacrnico, a expresso enyparchontos, em Fsica 192a 32,mostra que ex hou deve ser entendido tambm em perspectiva sincrnicaque analisa o todo em suas partes constituintes. Ou seja, ex hou, neste con-texto, remete ao elemento do qual algo se constitui e que est preservado

    no resultado que surge ao final do processo. O mesmo vale para a expressoex hou gignetai ti enyparchontos em Fsica 194b 24, na definio da assim cha-mada causa material.

    19Charlton [1992/70], p. 140-1, e Jones [1974], p. 476, 493.20Esta foi a estratgia de Charlton [1992/70], p. 140-1, e Jones [1974], p. 476,

    486, 493. Ver, a este respeito, crticas acertadas de Code [1976], p. 359-61; Furth[1988], p. 217-221, e Gill [1989], p. 63, 96-7.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    18/44

    Lucas Angioni

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    64

    Consiste em objeo ainda mais forte contra essa proposta o fato de

    Aristteles constantemente designar como matria os elementos em queresulta a corrupo de uma substncia. Veja-se, por exemplo, o seguintetexto: no verdade que o ser humano, por se corromper em ossos, ten-des e carnes, seja, por isso, constitudo deles como se eles fossem partes desua essncia; antes, ele se constitui deles como matria (1035a 17-20) 21.

    Os argumentos de Aristteles em Z-10 so bem difceis de desemara-nhar, mas num ponto eles so claros: assumem que uma substncia indivi-

    dual, suscetvel a gerao e corrupo, composta de matria e forma, e quea matria designa o conjunto de elementos (i) aos quais a forma advm e (ii)nos quais o composto dissolve-se no momento em que se corrompe. Estasegunda caracterstica torna evidente a necessidade de reformular os trscritrios obtidos pela anlise de FsicaI 7 para adequ-los ao caso das subs-tncias. Esse ponto ser explorado na prxima seo.

    IV

    Para dar conta da gerao e da corrupo de substncias, a noo desubjacente proposta em Fsica I 7 tem de ser reformulada. Deve-se conside-rar um eixo diacrnico em cinco estgios, com os quais se contempla a traje-tria de uma substncia composta desde o momento em que se inicia o pro-cesso que ir ger-la at o momento em que ela se encontra j corrompida,passando pelo estgio em que ela est em processo de vir a ser, pelo estgio

    em que ela se encontra plenamente formada e pelo estgio em que ela estem processo de corrupo. Mas esse modelo em cinco etapas pode ser sim-plificado: basta considerar o momento em que se inicia a gerao, o momen-to em que a substncia encontra-se plenamente desenvolvida e o momentoem que sua destruio termina. Assim, se correto dizer que a noo dematria concebe-se como subjacente dos processos de gerao e corrupo,podemos dizer que ela deve ser delimitada pelos trs seguintes critrios:

    21Cf. 1035a 24-30.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    19/44

    A Noo Aristotlica de Matria

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    65

    (i) a matria devepr-existirao processo de gerao, como um item iden-

    tificvel por si mesmoantes que o processo se inicie;(ii) a matria deve sobreviverao processo oposto de corrupo, como

    um item identificvel por si mesmo depoisque tal processo tenha-se encerrado;(iii) a matria deveperdurar ao longo de todo o intervalo situado entre

    as etapas contempladas nos itens anteriores (i) e (ii).No entanto, o terceiro critrio ainda precisa de retificao. Em sua

    teoria da mistura, Aristteles reconhece que os quatro elementos so capazes

    de constituir composies em que nenhum deles est presente em efetividade,mas apenaspotencialmente22. No precisamos discutir os detalhes dessa teoriada mistura, pois apenas interessa-nos ressaltar que Aristteles reconhece queos quatro elementos satisfazem os critrios (i) e (ii), sem satisfazer o critrio(iii), mas, apesar disso, so reconhecidos como matria de que se constitui amistura. A conseqncia disso que a caracterizao da matria como ingre-diente do qualse constitui um composto e no qual se dissolve um compostono requer que esse ingrediente seja efetivamente discernvel no compostodesde o momento de sua gerao at o momento de sua corrupo23.

    Assim, com a devida retificao do terceiro critrio, poderamos dizerque a matria seria aquilo:

    (i*) que se encontra previamente dado e que serve como princpio doqual se inicia o processo de gerao de uma substncia;

    (ii*) que restitudo a seu estado original no trmino do processo decorrupo de uma substncia;

    (iii*) e que de um modo ou outro sejapotencialmente, seja efetivamente apresenta-se como elemento constituinte da substncia durante o intervalo

    22Ver Gen. Cor. I 10, 327b 22-31; Part. Anim.II 3, 649b 9-17.23 Ver boas formulaes desse ponto em Whiting [1992], p. 82-5, Lewis

    [1994], p. 273-4; Charles [1994], p. 100-2, e Sheldon Cohen [1996], p. 46-50, 88-94.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    20/44

    Lucas Angioni

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    66

    compreendido entre os momentos contemplados nos dois critrios ante-

    riores24.Seria correto, porm, dizer que a noo de matria deve ser definida

    pela conjuno desses trs critrios? Se fosse correto, todos os itens designadoscomo matria de algo deveriam satisfaz-los conjuntamente. No entanto,vrios itens que Aristteles designa como matria do animal no satisfa-zem nem o critrio (i*) nem o critrio (ii*). Ou seja: eles no se encontrampreviamente dados, pois no so capazes de vir a existir independentemente

    do organismo do qual so matria, nem so restitudos a um suposto estadoprvio aps a morte do animal, pois no so capazes de sobreviver, na confi-gurao que os caracteriza, sem a forma do animal pois so definidos pelafuno que exercem no organismo e, sem o exerccio dessa funo, no maisse pode dizer que so aquilo que so, a no ser por homonmia25.

    Esse problema foi formulado de modo preciso por Ackrill26e desdeento tem comparecido na literatura sob o ttulo de problema de Ackrill.Aristteles, em vrios textos, usa o termo matria para designar as partesorgnicas e homemeras dos animais. No entanto, como tais partes sodefinidas estritamente pela funo que exercem no organismo como umtodo, elas jamais podem ser encontradas sem o organismo do qual so partes,pois nem sequer so capazes de ser [sc. continuar a existir], ao serem sepa-radas; de fato, no parte do animal o dedo que se dispe de qualquer ma-neira, mas homnimo o dedo morto (1035b 23-25). As exigncias funcio-nais do organismo so condies necessrias para que essas partes venham

    primeiramente a existir e continuem a existir, de modo que impossvel que

    24Discordamos de Bostock [2006], p. 31, que diz que in any change there isalways something which both persists and underlies. Tambm discordamos deCohen [1984], p. 183-8, para quem o requisito da persistncia do substrato teria

    validade apenas para casos de gerao recproca dos quatro elementos.25Para o princpio de homonmia, verMetafsica, 1035b 23-25; De Anima,

    412b 13-15, 21; Part. Anim., 640b 33- 641a 5, Gen. Anim. , 726b 22-4, II 1, 734b

    24-7. Ver Shields [1999], p. 131-149.26Ackrill [1979], p. 69-70, 74-5.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    21/44

    A Noo Aristotlica de Matria

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    67

    elas satisfaam os critrios (i*) e (ii*). Ainda que certas partes sobrevivam

    morte do animal (como ossos, cabelos, etc.), no se trata do tipo de sobrevi-vncia que conta como relevante para a satisfao do critrio (ii*). A ossadaque sobrevive putrefao de um cadver no mais capaz de executar afuno que cabe aos ossos, e, dado que toda parte do animal define-se pelafuno, no verdade que tais ossos ainda so, em sua essncia, ossos: elesso ossos apenas por homonmia.

    Possvel soluo dessa dificuldade consistiria em dizer que os concei-

    tos de matria e forma, que teriam sido originados no intuito de responder asaporias eleticas sobre o devir e garantir a inteligibilidade do movimento nanatureza, seriam inaplicveis anlise dos seres vivos, ainda que Aristtelesno tivesse percebido essa inaplicabilidade. Essa a proposta de Ackrill27, aqual julgamos, porm, insatisfatria do ponto de vista da exegese dos textos,bem como do ponto de vista estritamente filosfico.

    Se o conceito de matria tem por destinao explicar o devir, preci-so que ele seja definido pelos trs critrios h pouco mencionados, poissomente a satisfao conjunta desses trs critrios pode assegurar matriasua propriedade de identificar a continuidade de um mesmo processo dedevir. Mas Aristteles diria que todos os itens reconhecidos como matriade algo deveriam satisfazer conjuntamente os trs critrios? Creio que aresposta correta consiste em dizer que todos os itens que so designadoscomo matria deX a ttulo de subjacente que explica a continuidade dosprocessos pelos quaisXvem a existir e deixa de existir devem satisfazer

    conjuntamente os trs critrios. Mas nem todo item que se designa comomatria deX recebe tal designao a ttulo de subjacente que explica acontinuidade dos processos pelos quaisXvem a existir e deixa de existir.Para todoX, h um respectivo subjacente Y que explica esses processos econta como matria de Y. Mas nem todo item que se designa como matriadeX tem por destinao explicar esses processos de devir. Aristteles dis-tribui o ttulo matria deX em ateno a outros interesses. Contam tam-

    27Ver Ackrill [1979], p. 69, 74.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    22/44

    Lucas Angioni

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    68

    bm como matria deX itens que satisfazem apenas o critrio (iii*). Isso

    no compromete a coerncia da teoria aristotlica da matria, como veremos.Devemos examinar, porm, se legtimo dizer que Aristteles introduz umanova noo de matria que no teria nenhuma relao com a noo de sub-jacente destinado a marcar a continuidade do devir, ou se, ao contrrio, esseuso mais generoso do ttulo matria deX pode ser compreendido semcomprometer a coerncia da teoria.

    VNo livro II da Fsica, Aristteles introduz a noo de matria como

    um dos dois sentidos predominantes de natureza e como uma das quatrocausas. Em 193a 9-12, ele afirma o seguinte: alguns reputam que a nature-za e a essncia dos entes naturais seria aquilo que, desarranjado em si mes-mo, est primeiramente inerente em cada um, por exemplo, de uma cama,seria natureza a madeira e, de uma esttua, o bronze. O termo matria

    (hyle) no aparece nesse trecho, mas, ao recapitular sua exposio, em 193a28-30, Aristteles pronuncia-se do seguinte modo: denomina-se natureza aprimeira matria que subjaz a cada coisa que possui em si mesma princpiode movimento ou mudana. Poder-se-ia objetar que, nessas passagens,Aristteles apenas teria relatado certas opinies, como a de Antifonte, sem secomprometer com a tese de que a matria um tipo de natureza enquantoprincpio interno de movimento ou repouso. No entanto, em 194a 12-13, ao

    propor certas regras que devem pautar o procedimento dos cientistas natu-rais, em oposio aos matemticos, Aristteles no hesita em usar comopremissa o fato de que a natureza se concebe de duas maneiras a forma ea matria. Mais adiante, no captulo que introduz a clebre teoria das qua-tro causas, Aristteles reconhece como um dos tipos de causa o item ima-nente de que algo provm ou vem a ser [gignetai], por exemplo, o bronze daesttua e a prata da taa (194b 24-25). Poder-se-ia objetar que Aristtelesno diz explicitamente que esse tipo de causa coincide com a noo de mat-

    ria, mas, em Fsica II-7, ao retomar a teoria das quatro causas, Aristteles no

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    23/44

    A Noo Aristotlica de Matria

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    69

    hesita em usar o termo matria para se referir precisamente a esse tipo de

    causa (cf. 198a 21, 24, 32). Na definio preliminar que Aristteles ofereceem 194b 24-25, percebe-se que a matria um tipo de causa relacionado aodevir, e no seria exagero dizer que a descrio o item imanente de que algoprovm ou vem a ser contm compactadamente os critrios que antes iden-tificamos como (i*) e (iii*): estar dado como ponto de partida do qual pro-vm a gerao deX, e ser elemento imanente deX. Os exemplos fornecidosno oferecem nenhuma dificuldade para a concluso de que parecem estar

    em cenas os mesmos trs critrios que h pouco mencionamos: de fato, fcil conceber que o bronze pode perfeitamente continuar a existir em simesmo aps a destruio da esttua, de modo a satisfazer tambm o critrio(ii*). Parece, portanto, que h perfeita continuidade entre os livros I e II daFsica, no que respeita coerncia da noo de matria28.

    Alguns problemas, no entanto, parecem emergir do uso que Aristte-les faz da noo de causa material nos livros centrais daMetafsica. EmMeta-fsica H 2-3, Aristteles parece admitir que, sob certas condies, a definiodas substncias compostas deve incluir a forma e a matria, e isso confirmaos resultados do argumento do livro II da Fsica (cf. 194a 21-27, 200b 5-8).Nesse contexto, em que se apresenta como causa a ser mencionada no e-nunciado definiensda substncia composta, a matria parece ser tomada sobperspectiva bem peculiar. Em 1044b 1-3, Aristteles afirma que precisorelatar as causas mais prximas. Qual a matria? No fogo, ou terra, massim aquela que prpria. EmMetafsica IX-7, Aristteles ressalta que a ex-

    presso matria deX deve ser usada preferencialmente para remeter matria que est mais prxima, no matria remota: a banqueta no se dizde terra, nem terra, mas sim de madeira, pois isto que em potncia

    28A rigor, h problemas: em 194b 24-25, se lemos ex houem sentido no-diacrnico, a definio da causa material pode ser entendida como se o critrio(iii*) fosse suficiente e no houvesse nenhuma remisso ao critrio (i*). Mas basta

    em nossa estratgia de exposio notar queparecehaver continuidade entre os doislivros da Fsica.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    24/44

    Lucas Angioni

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    70

    uma banqueta, e esta a matria da banqueta (1049a 22-23). Dado que a

    noo de matria um correlativo, e dado que a correlao em questo transitiva, pode-se falar em vrias matrias do mesmoX, uma, mais prxima,outra mais remota (cf. 1044a 20-23). Se a terra matria da madeira, e se amadeira matria de uma banqueta, pode-se dizer que a terra matria dabanqueta29. No entanto, em 1049a 22-23, bem como em 1044b 1-3, Arist-teles manifesta claramente sua preferncia pela matria prxima: mais cor-reto, ou mais apropriado, do ponto de vista explanatrio, designar como

    matria deX o item que est mais prximo de ser efetivamenteX, ou seja,o item que pode vir a se tornarX(ou pode exercer efetivamente a atividadeque essencial aX) por uma nica modificao simples (cf. 1049a 5-11).

    De modo similar, a matria ltimaque, em H-6, encarregada de re-solver o problema da unidade da definio da substncia composta. Essanoo de matria ltima de difcil compreenso, mas tudo indica que setrata da matria que j se encontra determinada com todas as propriedadesrelevantes que a fazem ser uma dada substncia composta. Tratar-se-ia, porexemplo, do corpo j organizado (como sistema de rgos, etc.),que serve alma como suporte para a efetividade de suas funes, mas no se trata docorpo que tem a capacidade de, mediante alguma transformao ulterior, vira se tornar um corpo animado (cf. De Anima412b 25-27).

    Vrias dificuldades envolvem essas noes de matria prxima, mat-ria ltima, etc., mas basta-nos ressaltar o seguinte ponto: os itens que satisfa-zem a condio de ser matria ltima so tais que no satisfazem os trs

    critrios que antes mencionamos na definio do conceito de matria. Ositens que se poderia reconhecer como matria ltima no podem satisfazeros critrios (i*) e (ii*): eles no podem existir em si mesmos, parte da subs-tncia composta da qual so matria.

    29Discordamos de Bostock [2006], p. 33, que, por anlise superficial desses

    textos, levado a negar que a relao ser matria deseja transitiva, mas admite que transitiva a relao de subjazer a(underlying).

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    25/44

    A Noo Aristotlica de Matria

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    71

    Tome-se o caso dos organismos naturais. A anlise desses organismos

    envolve ao menos quatro nveis ou camadas: (1) o organismo em seu todo,definido por um complexo de funes vitais; (2) as partes orgnicas (mos,olhos, dedos, membros, etc.); (3) as partes homemeras (sangue, tendes,carne, ossos, etc.); (4) os quatro elementos: fogo, ar, gua e terra30. Essascamadas perfazem uma hierarquia de relaes transitivas, na qual os itensinferiores podem ser tomados como matriaem relao aos itens situados nascamadas superiores. Aristteles usa o termo matria com toda a licenciosi-

    dade que esse quadro lhe permite: assim, os quatro elementos so matriadas partes homemeras, matria das partes orgnicas e matria do ani-mal; as partes homemeras, por sua vez, so matria dos partes orgnicase matria do animal e, enfim, as prprias partes orgnicas so matria doanimal31. Aristteles jamais poderia usar o termo matria desse modo, seconsiderasse como regra necessria para designar algo como matria asatisfao conjunta de todos os trs critriosque antes mencionamos, a no ser que

    30Ver Part. Anim. II-1, 646a 12 ss., e Furth [1988], 10-11-12, principalmentep. 84-87.

    31O texto mais claro a este respeito Gen. Anim., 715a 9-11, no qual o termohyle designa as relaes (1)-(2), (2)-(3) e (3)-(4). Pelo simples fato de que a rela-o ser matria de concebida como transitiva (verMet.1044a 20-3), podemos

    inferir que as restantes relaes tambm poderiam ser descritas com os mesmostermos. Para o uso de hyle para designar a relao (1)-(2), veja-seMet. 1035b 10-12, 23-5. Para a relao (2)-(3), ver Part. Anim., 647b 21-2 e 646b 25-6, 30-1. Para arelao (3)-(4), verMeteo., 389b 26-8,Met., 1041b 13 ss. Para a relao (1)-(3), ver

    Met., 1035a 17-20, 33; 1036b 3-6. Algumas passagens de Z falam em geral departes do animal, podendo ser entendidas indiferentemente como descries de(1)-(2) ou de (1)-(3): 1035b 20-22, e 1040b 6-8. Para a relao (1)-(4), ver Part.

    Anim., 646a 16-7; 640b 15-7; De Caelo, 288b 16-7;Meteo., 389b 28-29. No encon-tramos nenhuma declarao explcita para a relao (2)-(4), masMeteo. 389b 28-

    390a 2 pode ser entendido nesse sentido e, como j dissemos, a transitividade darelao ser matria de garante tal concepo.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    26/44

    Lucas Angioni

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    72

    fosse ele prprio inconseqente com suas prprias exigncias32. Desde

    Ackrill, nota-se que as partes orgnicas e homemeras, s quais se aplica oprincpio da homonmia, no satisfazem os critrios (i*) e (ii*): elas no socapazes de vir a existir separadamente da forma do animal. Mas o que nosinteressa notar que, de acordo com a estratificao das camadas de anlisematerial, os itens que no satisfazem os critrios (i*) e (ii*) so justamenteaqueles que, nos livros centrais daMetafsica, tendem a ser chamados de mat-ria ltimae matria prximae que, portanto, de acordo com a definio hile-

    mrfica da substncia composta, teriam prioridade explanatria, em detri-mento da matria remota.

    Muitos afirmam que esse problema configura uma inconsistncia fatalna teoria aristotlica da matria. Alguns afirmam que Aristteles teria duasconcepes de matria, e que as noes propostas nos livros centrais daMetafsica nada mais deveriam noo de subjacente proposta no livro I daFsica33. No entanto, em direo contrria a esses juzos severos, afirmamosque a suposta inconsistncia fatal resume-se apenas a uma diversidade deinteresses, que no compromete a coerncia da teoria de Aristteles. emfavor disso que argumentaremos na prxima seo deste artigo.

    VI

    Nos contextos em que Aristteles enfrenta a questo de saber de quemaneira deve ser definida a substncia composta(Fsica II,MetafsicaVIII), o termo

    matria usado em ateno apenas ao critrio (iii*), sem consideraopelos critrios (i*) e (ii*). Nessa perspectiva, no interessa o problema dagerao; interessa discernir quais seriam as propriedades relevantes que fa-

    32Para essa acusao de inconseqncia, ver Charlton [1992/70], p. 76-7. Ver

    tambm Ackrill [1975], p. 69-70.33Cf. Lewis [1994]: aps formular a dificuldade de definir a matria por crit-

    rios diacrnicos que a habilitassem a explicar o devir (p. 257), ele prope o aban-

    dono dos mesmos (p. 276-7), como se houvesse outra noo de matria quepudesse ser compreendida sem nenhuma referncia ao problema do devir.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    27/44

    A Noo Aristotlica de Matria

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    73

    zem uma substncia ser o que ela . Trata-se de saber at que ponto os ele-

    mentos constituintes de uma substncia contribuem com propriedades rele-vantes para explicar o que essa substncia. Nesse contexto, pode-se ignorara trajetria diacrnica de uma substncia, bem como o problema de sabercomo se pode descrever de modo razovel o processo de devir pelo qual elavem a existir e deixa de existir. Para Aristteles, a essncia explanatoria-mente anterior gerao (cf. Partes dos Animais640a 15-19). Isso quer dizerque a essncia de uma substncia que, por determinar quais so suas pro-

    priedades relevantes, determina tambm as propriedades que caracterizam oprocesso de gerao dessa substncia, ao passo que as peculiaridades doprocesso de gerao enquanto processo de gerao no so determinantespara explicar por que uma dada substncia tem como propriedade essencialtal e tal caracterstica (cf. 640a 19-25).

    O processo de gerao de uma substncia requer uma anlise diacr-nica em trs instantes: em t1, a matria no tem a forma Fpela qual se de-termina uma substncia S (e, portanto, ainda no existe uma substncia S);em t2, a matria tem a forma Fpela qual se determina uma substncia S (e,portanto, existe uma substnciaS); em t3, a matria no mais tem a forma Fpela qual se determina uma substncia S(e, portanto, no mais existe umasubstnciaS). Em t2, a composio entre matria e forma gera uma novasubstncia S. A questo de saber se, para definir o que S em sua essncia,devemos considerar tambm a matria, no depende dos instantes t1e t3,pois a substnciaS, que se toma como definiendum, existe apenas em t2. O que

    se quer saber, nessa perspectiva, se, em t2, a matria relevante (ou neces-sria) para caracterizar a substncia S, e, para responder essa questo, irre-levante sabe se a matriapode no ser S emt1e t3ou se, em geral, possvelconceb-la parte da forma, em t1e t3. Essas questes so diferentes daquesto de saber se a matria deve ser considerada como elemento da defini-o de uma substncia composta. Quando se considera esta ltima questo,os critrios diacrnicos (i*) e (ii*) podem ser desconsiderados, e no surpre-

    ende que, neste contexto, o termo matria seja aplicado a itens diversos

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    28/44

    Lucas Angioni

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    74

    daqueles que so designados como matria quando se trata de atender a

    esses requisitos diacrnicos e explicar como e por que uma substncia podevir a existir e deixar de existir.

    De fato, no caso dos seres vivos, apenas os quatro elementos parecematender conjuntamente aos trs critrios. Ou seja: entre todos os itens que,de um modo ou de outro, podem ser designados como matria do ser vi-vo, somente os quatro elementos podem existir parte do ser vivo e, por-tanto, podem explicar o processo de gerao de um ser vivo. No entanto,

    quando se trata de definir um ser vivo qualquer, isto , quando se trata dedefinir um tipo especfico de ser vivo, no parece ser to relevante mencio-nar em sua definio o fato de que ele composto dos quatro elementos,pois essa caracterstica partilhada em comum por outros tipos de seresvivos e no explica propriamente nenhuma caracterstica especfica. Conside-remos novamente a distino entre matria prxima e matria remota, noquadro da estratificao das constituies do ser vivo: os elementos so ma-tria mais remota que o corpo j dotado das propriedades que o tornamcapaz de dar o suporte adequado s funes que definem o ser vivo. Mas evidente que este corpo que tem maior relevncia explanatria, quando setrata de saber se a matria contribui com alguma propriedade essencial quedefine um ser vivo. a matria mais prxima que contm mais informaesrelevantes sobre o que um tipo especfico de substncia que se queira defi-nir, ao passo que a matria mais remota envolve propriedades comuns avrios tipos de substncia.

    A distino entre essas duas perspectivas obscurecida pelo recursoconstante de Aristteles s comparaes com artefatos, em ambos os con-textos, isto , nos contextos em que se trata de expor um modelo para adescrio do devir e nos contextos em que ele lida com o problema de saberse a matria deveria ser considerada na definio da substncia composta.No caso de boa parte dos artefatos (por exemplo, no caso de uma banqueta),diferentemente do caso dos seres vivos, os constituintes, que satisfazem o

    critrio (iii*), satisfazem tambm os critrios diacrnicos (i*) e (ii*). De fato,

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    29/44

    A Noo Aristotlica de Matria

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    75

    a madeira pode existir sem ser elemento da banqueta34. Por isso, quando

    Aristteles introduz artefatos como exemplos comparativos, o problemaconsiste em saber qual situao ele busca ilustrar: ou ele busca ressaltar queos materiais dos artefatos satisfazem os trscritrios e, portanto, funcionamcomo matria subjacente que garante a identidade do processo de gerao doartefato, ou antes busca ressaltar que tais materiais, satisfazendo exatamente ocritrio (iii*), devem ser considerados na definio do artefato (cf. 1033a 2-5).H risco de confuso quanto ao trao comum que Aristteles supostamente

    quer pr em relevo, ao comparar substncias naturais e artefatos. Emboraartefatos sejam modelos convenientes para elucidar a estrutura e, em menorgrau, o processo de gerao das substncias naturais, importante notar queh assimetrias relevantes entre os dois domnios35.

    Assim, quando se pergunta qual a matria da substncia compostaX?, no se deve responder de imediato, sem exigir nova qualificao dapergunta. Deve-se replicar: matria deX em qual dos sentidos de mat-ria? So duas questes distintas (i) procurar saber qual a matria deXno sentido de matria que permite explicar a gerao de X e (ii) procurarsaber qual a matria deX no sentido de matria que d alguma contri-buio para determinar as propriedades relevantes pelas quais se define o queX.

    Parece que, em alguns contextos, a argumentao do texto aristotlicoprocede como se essas duas questes fossem confundidas em uma s. Masno julgamos que a confuso possa ser imputada a Aristteles, pois h fortes

    indcios de que a confuso encontra-se no argumento adversrio, e a refuta-o de Aristteles consiste em notar que as duas perguntas so distintas.

    34Mas isso no pode ser generalizado para o caso de todos os artefatos. Ostijolos, por exemplo, so entidades que vm a existir, pela primeira vez, porqueconcebe-se que, para a forma da casa, so necessrias certas peas com tais e taispropriedades, etc.

    35

    Sobre a inadequao dos exemplos de artefatos, ver Furth [1988], p. 154,181-4.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    30/44

    Lucas Angioni

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    76

    Essas confuses podem ser notadas emMetafsica Z-10, nas passagens em

    que Aristteles supostamente estaria a argumentar contra a incluso da mat-ria no enunciado definiens de uma substncia composta36.

    Notemos que, enquanto princpio de generabilidade e corruptibilidadedos indivduos, a matria satisfaz plenamente os trs critrios mencionados.Na medida em que ela capaz de ser uma substncia S, ela dada comoponto de partida do qual se inicia a gerao dessa substncia. Por outro lado,enquanto ela capaz de no mais ser uma substncia S, ela precisamente

    aquilo que ocasiona a corrupo de Se aquilo em que a corrupo de Sre-sulta. Sendo capaz de ser e no ser (1032a 20-22, 1039b 29-30), ou, sim-plesmente, sendo capaz de ser de outro modo, a matria contingente. Sob apremissa de que o contingente no pode ser cientificamente apreendido, oseguinte argumento poderia ser proposto:

    (1) o contingente no pode ser cientificamente conhecido;(2) a matria contingente;(3) a matria no pode ser cientificamente conhecida37.De acordo com o que Aristteles explicita em Z-15, 1039a 39- 1040a

    2, o argumento contra a incluso da matria no enunciado definiens de umasubstncia poderia prosseguir do seguinte modo:

    (4) definies e demonstraes so conhecimento cientfico;(5) = (3) a matria no pode ser cientificamente conhecida; (6) A matria no se presta a procedimentos definitrios e de-

    monstrativos.

    Se a matria no suscetvel de definio, conclui-se que ipso factoelano pode ser includa na definio de uma substncia composta, pois os

    36O restante desta seo compacta argumentos que foram mais bem expostosno captulo 7 de nosso livroAs noes aristotlicas de substncia e essncia, a aparecerem 2008.

    37Julga-se que a sentena que encontramos em Z-10, 1036a8-9, a matria, em

    si mesma, no pode ser (re)conhecida, seria expresso da concluso (3). Mas janalisamos esse texto no final da seo II.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    31/44

    A Noo Aristotlica de Matria

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    77

    elementos mencionados em uma definio devem ser eles mesmos suscet-

    veis de definio.Esses argumentos so formalmente vlidos, mas devemos ter cautela

    quanto ao modo de entender a premissa (2). Em que sentido a matria contingente? O que queremos dizer quando dizemos que a matria de umasubstncia composta S contingente?

    Em primeiro lugar, lembremos que matria uma noo correlativa.Quando se diz que a matria da substncia compostaS contingente, mat-

    ria remete a uma entidadeX que existe por si mesma, cujas propriedadesessenciais no dependem da propriedade de ser matria de S. No entanto,dizer que a matria da substncia composta S contingente no consiste ematribuir entidadeXem si mesma a propriedade de ser contingente. Dizerque a matria da substncia composta S contingente consiste em atribuir aXuma propriedade que lhe cabe apenas enquanto ela considerada emcorrelao com Se sob o ttulo de matria de S. Quando dizemos que amatria de S contingente, queremos dizer que contingente queXtenha apropriedade de ser um constituinte de S. De fato, a entidadeX, ao longo dotempo, pode adquirir propriedades distintas:Xpode ter a propriedade quefaz dela uma substncia Sno instante t1(isto , ela pode ter a forma pela qualse determina uma substncia do tipo S) e pode no mais ter a mesma propri-edade no instante t2. por isso queX satisfaz os critrios (i*) e (ii*) antesformulados e, por isso, torna-se matria de S no sentido de princpio quepermite compreender a gerao da substncia S.

    No entanto, o fato de que contingente, paraX, adquirir a proprie-dade relevante que a torna uma substncia Sno permite concluir que sejaigualmente contingente, para a substncia composta S, ser constituda, emtodos os instantes em que existe, de uma matria do tipoX. Aristteles nose compromete com essa inferncia, mas tampouco aceita que seja verdadei-ra em si mesma a proposio que figura como conseqente. Muitos insistemem dizer que Aristteles teria adotado a tese de que a matria contingen-

    te no sentido de que a especificao de materiais para a realizao de uma

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    32/44

    Lucas Angioni

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    78

    forma (e para a constituio de uma substncia composta S) no invari-

    vel38. Tomemos o produtor encarregado de produzir uma casa. De quaismateriais a casa poder ser constituda? O construtor pode optar entreopes igualmente satisfatrias: ele pode fazer a parede (por exemplo) depedras, ou de tijolos, ou de madeira, etc. Do mesmo modo, ele tem aindamais opes quando procura saber, precisamente, quais tipos de pedra (oude madeira) dever utilizar, assim como quando procura saber quais peassingulares de pedra (ou de madeira) dever utilizar. De fato, contingente a

    determinao de um desses materiais, com excluso das respectivas opesigualmente satisfatrias.

    No entanto, esses fatos ainda no so razo suficiente para excluir amatria da definio da substncia composta. Tomemos o paradigma daproduo, como Aristteles o utiliza. Dada a forma do produto (concebidacomo algo a ser realizado), contingente que ela seja realizada em tais e taismateriais ou em tais e tais outros. No entanto, esses diversos materiais soboas opes para o produtor justamente devido a uma caracterstica comuma todos: eles so propcios ou adequados em vista da funo do produto.Havendo tal caracterstica comum, pela qual se descreve precisamente apropriedade material que estritamente requisitada para a funo do produto, oproblema de saber se a matria contingente torna-se um problema de en-contrar a descrio apropriada do item a que matria se refere. Seria poss-vel encontrar (ou estipular) uma denominao nica para os itens que parti-lham em comum da caracterstica requisitada pela forma do produto, e, nes-

    se sentido, a matria, considerada sob tal descrio, no seria contingente emrelao forma do produto39(embora isso ainda no prove que ela deva sermencionada na definio do produto). Um serrote, para cumprir a funopela qual se define sua essncia, deve necessariamente ser constitudo (emsua lmina, obviamente) por materiais metlicos. contingente que um

    38Nussbaum [1978], p. 69-72, 82-3, Nussbaum & Putnam [1992], p. 33, 48-51,

    S. Marc Cohen [1992], p. 58-60, e Shields [1999], p. 151.39Cf. Kung [1977], p. 370.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    33/44

    A Noo Aristotlica de Matria

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    79

    serrote seja constitudo de ferro ou de bronze, assim como contingente que

    ele seja constitudo por este ou por aquele pedao de ferro (ou de bronze),mas o ferro e o bronze, como materiais contingentes, podem e devem serreunidos sob a mesma descrio comum, que circunscreve um tipode mate-rial que, longe de ser contingente, estritamente necessrio para a realizaodo serrote. Assim, suponha-se que a descrio correta da matria do serroteseja algo como metal dotado de tais e tais propriedades, sendo que tais etais propriedades podem ser igualmente bem satisfeitas pelo ferro ou pelo

    bronze. Assim, para qualquer serrote, absolutamente necessrio que ele sejaconstitudo por uma matria que satisfaa a descrio metal dotado de tais etais propriedades. Trata-se de uma necessidade que emana da funo pelaqual se define o serrote40. E essa necessidade no afetada (i) nem pelo fatode que, para um dado serrote individual, contingente que ele seja consti-tudo de ferro ou de bronze (ou de outro metal que satisfaa a descriorelevante), (ii) nem pelo fato de que o materialXque constitui um serroteem dado instante t1pode no mais constituir o serrote em instante posterior,assim como no constitua um serrote nos instantes anteriores produodo serrote.

    Podemos voltar, assim, questo de saber o que queremos dizerquando dizemos que a matria de uma substncia compostaS contingente.Quando se diz que a matria da substncia composta S contingente, pode-se querer dizer duas coisas: (a) ou que, para a entidadeX, que conta comomatria de S, contingente que ela tenha a forma Fque faz dela uma subs-

    tncia composta S, (b) ou que, para uma substncia composta individual S, contingente que ela seja constituda por este ou por aquele tipo de material,ou por esta ou aquela poro individual de matria. No entanto, nenhum dosdois casos afeta a relao de necessidade entre a substncia compostaSe aquiloque conta estritamente como sua matria prpria: para qualquer substnciaS, necessrio que ela seja constituda por materiais cujas propriedades satis-faam a descrio relevante pela qual contam como matria prpriaM. Nes-

    40Tratei desse ponto com mais detalhe em Angioni [2006].

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    34/44

    Lucas Angioni

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    80

    sa perspectiva, a matria prpriaM deve ser includa na definio da subs-

    tncia composta S, independentemente dos fatos contemplados em (a) e (b).Quando se conclui que a matria no pode ser cientificamente conhecida,pelas premissas de que (1) o contingente no pode ser cientificamente co-nhecido e (2) a matria contingente, o que se quer dizer uma das seguin-tes opes. Ou bem se quer dizer que (a) impossvel conhecer cientifica-mente que a entidadeX, em todos os instantes em que existe, a matria dasubstncia S. Ou bem se quer dizer que (b) impossvel conhecer cientifi-

    camente que, para toda substncia S, ela necessariamente ser constitudapelo material peculiar Y(que apenas um dos tipos de material que apresen-ta as propriedades relevantes para contar como matria apropriadaM). Defato, ambas as proposies so falsas, e impossvel conhecer cientificamen-te aquilo que no o caso (cf. Segundos Analticos71b 25-6). O conhecimentocientfico requer universalidade, mas ambas as proposies so falsas justa-mente em virtude da quantificao universal que as acompanha.

    No entanto, qualquer uma dessas interpretaes da proposio de quea matria no pode ser cientificamente conhecida no permite inferir que amatria apropriadaM no deve ser considerada no enunciado definitrio dasubstncia composta. Aristteles parece particularmente interessado embloquear essa inferncia, embora por caminhos bem tortuosos. Muitos deseus argumentos emMetafsica Z 10-11 parecem estabelecer o ponto (a),assim como alguns argumentos emMetafsica Z-11 parecem lidar com o pon-to (b). Tudo que o argumento de Z-10 prova que, se h uma matria que

    deve ser considerada no enunciado definiensda substncia composta S, no setrata da entidadeXque pode indiferentemente ter e no ter a forma que fazdela uma substncia S, tampouco se trata do tipo peculiar de materialXque apenas um dos casos possveis que satisfazem o requisito de ter as proprie-dades relevantes.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    35/44

    A Noo Aristotlica de Matria

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    81

    VII

    Se a interpretao que propomos nas sees anteriores correta, po-demos entender que a teoria aristotlica da matria est longe de ser incoe-rente, est longe de manifestar alguma inconsistncia fatal entre dois modosirreconciliveis de definir a matria. De fato, Aristteles apresenta duas con-cepes de matria. Na primeira concepo, a matria deve ser entendidacomo subjacente que garante a identidade de um processo de devir. Nasegunda concepo, a matria deve ser entendida como elemento consti-

    tuinte que contribui com alguma propriedade relevante para a essncia da-quilo de que matria41. Mas no h nenhuma inconsistncia fatal entreessas duas concepes, e a compatibilidade entre ambas atesta-se pelo merofato de que elas partilham em comum o mesmo critrio que antes identifi-camos pelo ndice (iii*). Retomemos os trs critrios expostos na seo IIIdeste artigo:

    (i*) matria o item que se encontra previamente dado e que serve

    como princpio do qual se inicia o processo de gerao de uma substncia;(ii*) matria o item que restitudo a seu estado original no trmino

    do processo de corrupo de uma substncia;(iii*) matria o item que de um modo ou outro sejapotencialmente,

    seja efetivamente apresenta-se como elemento constituinte da substnciadurante o intervalo compreendido entre os momentos contemplados nosdois critrios anteriores.

    Como j dissemos, a noo de matria enquanto subjacente que de-marca a identidade de um processo de devir define-se pela conjuno dostrs critrios, mas a noo de matria enquanto elemento que contribui comalguma propriedade relevante para a essncia daquilo de que matria defi-ne-se apenas pelo critrio (iii*), sem considerar os demais critrios, que ope-ram no eixo diacrnico do devir. Mas o prprio fato de ser utilizado em

    41O fato de a matria no ser o princpio preponderante para determinar a es-

    sncia daquilo de que matria no modifica o ponto: embora seja subordinada forma, a matria d alguma contribuio para a essncia daquilo de que matria.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    36/44

    Lucas Angioni

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    82

    ambos os casos o mesmo critrio (iii*) mostra que no h nenhum hiato

    radical entre as duas concepes. Como vimos, a restrio ao critrio (iii*) bem justificada na segunda concepo de matria, pois, para decidir se umelemento d alguma contribuio para a essncia daquilo de que elemento,no relevante considerar, no eixo diacrnico, o processo pelo qual vem aexistir o composto de que elemento.

    Poder-se-ia objetar que, para ser mencionado no enunciado definiensda substncia composta, um item deveria satisfazer tambm os critrios

    diacrnicos (i*) e (ii*), pois, caso contrrio, seria um item que dependeria dasubstncia composta para sua existncia e, conseqentemente, dependeria dasubstncia composta para sua definio, de modo que, se fosse mencionadona definio da substncia composta, esta incorreria em crculo vicioso.

    No entanto, no parece seguro inferir que, se a existncia de xdepen-de da existncia dey, ento a definio de xdever mencionary. A definiode ser humano no menciona o sol, embora a existncia de seres humanosdependa da existncia do sol. Algo similar se d com a matria prpriaMdeuma substncia composta S42. Tomemos como exemplo o animal. A defini-o do animal deve ser constituda pela forma e pela matria prpria: alma aforma, e corpo organizado a matria prpria. No entanto, a matria prpria,em si mesma, consiste em algo composto: trata-se de uma poro dos quatroelementos, com tais e tais propriedades. Tais e tais propriedades so exigidaspela forma do animal, mas so acidentais aos quatro elementos. Isso significaque a matria prpria, que a designao que se d ao composto constitudo

    pelos quatro elementos e pelas propriedades tais e tais, deve sua existncia,em primeiro lugar, forma do animal, pois essa forma que, enquanto fun-o, exige que seu suporte material seja determinado por tais e tais proprie-dades. a funo de serrar que determina que o serrote deve ser constitudopor materiais metlicos com tais e tais configuraes. a funo de ser ali-mento das partes corporais que determina que o sangue deve ser constitudo

    42

    O que se segue at o final desta seo condensa o que expus de modo maisdetalhado no captulo 11 de [2008].

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    37/44

    A Noo Aristotlica de Matria

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    83

    por certa proporo dos quatro elementos, dotada de um grau especfico de

    calor, que acidental e extrnseco aos elementos. A existncia de uma lminametlica com a configurao tpica de um serrote s emerge devido funodo serrote. De igual modo, a existncia de tal composio dos quatro ele-mentos dotada de certo grau especfico de calor s emerge devido s exign-cias funcionais do sangue. A existncia do sangue condio necessria paraa existncia dessa composio. No entanto, da no se segue que, para definira matria prpria do sangue, que precisamente essa composio dos

    quatro elementos dotada de certo grau especfico de calor, deva-se mencio-nar o prprio sangue. Poderamos definir o sangue do seguinte modo:

    O sangue (df.)o alimento das partes, constitudo por tais e tais composies deelementos, mais certo grau de calor.

    Ser alimento consiste na forma, e a parte assinalada em itlico consistena matria prpria. claro que, se perguntssemos por que essa matria

    prpria vem a existir em primeiro lugar, deveramos mencionar a funo dosangue, como pressuposto que explica a necessidade de que, sob tais e taiscondies, os quatro elementos venham a adquirir as propriedades relevan-tes. No entanto, da no se segue que a definio dessa matria prpria devamencionar o sangue (que aquilo de queela matria). Essa matria prpriaconsiste em uma composio acidental (no sentido de que acidental aosquatro elementos ter o grau especfico de calor que a funo do sangue lhesimpe)43que pode ser definida em si mesma pela mera especificao de seusconstituintes. Como diz Aristteles, como se algum estabelecesse umadenominao para a gua quente ou o ferro quente (649a 16-17). Havendouma denominao para a matria prpria, sua definio consiste na mera

    43

    Cf. Lewis [1994], p. 264. Ver propostas similares em Whiting [1992], p. 79-81, Charles [1994], p. 100-2, e Lennox [2001a], p. 195-200.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    38/44

    Lucas Angioni

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    84

    especificao de que o nome corresponde composio acidental entre os

    quatro elementos e as propriedades exigidas pela forma da substncia com-posta. A matria prpria corpo organizado, por exemplo, pode ser defini-da pelo enunciado composio dos quatro elementos, com tais e tais pro-priedades, na qual no ocorre mencionar a substncia composta da qual ocorpo organizado matria. Poder-se-ia objetar que essas definies soapenas concluses do silogismo da qididade (Cf. De Anima413a 13-20,Segundos Analticos94a 7-9, 13-14), porque lhes falta mencionar a causa rele-

    vante, sem a qual seria impossvel explicar em que consiste o definiendum.Assim, para definir corpo organizado, no bastaria mencionar a descriocomposio dos quatro elementos, com tais e tais propriedades: seria pre-ciso dizer que essa composio emergepor exigncia da forma do animal. Decerto modo, isso correto. Seria preciso dizer que o corpo organizado con-siste em uma composio dos quatro elementos, dotada das propriedadesrelevantes exigidas pela forma do animal. No entanto, a parte em itlico noprecisa ser entendida como parte do definiensque poderia substituir em qual-quer contexto a expresso corpo orgnico. Trata-se apenas de uma eluci-dao sobre o contexto restrito de aplicao do definienspropriamente dito.Suponha-se um contexto em que a definio do animal no est em questo.Obviamente, se se menciona a noo de corpo organizado e algum pedesua definio, pode-se-lhe responder que se trata de uma composio dosquatro elementos, dotada das propriedades relevantes exigidas pela forma doanimal. Mas, se algum define o animal como corpo organizado capaz de

    sensao ou algo similar, no faz sentido substituir a expresso corpoorganizado pela descrio antes proposta, o que resultaria em dizer que oanimal uma composio dos quatro elementos, dotada das propriedadesrelevantes exigidas pela forma do animal, capaz de sensao. Se a descriocomposio dos quatro elementos, dotada das propriedades tais e tais proposta como elemento do definiensde animal, bvio que a elucidaocontextual exigidas pela forma do animal no mais necessria, pois ela

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    39/44

    A Noo Aristotlica de Matria

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    85

    necessria justamente nos contextos em que no est claro que essa descri-

    o desempenha o papel de elemento do definiensde animal44.Alm do mais, um dos elementos mencionados na definio da mat-

    ria prpria consiste em uma matria que satisfaz perfeitamente aos critrios(i*) e (ii*): os quatro elementos apresentam-se como subjacente de proprie-dades acidentais, que lhes so instiladas de fora, mas que no so condiesnecessrias para que os quatro elementos venham a existir ou continuem aexistir. Como matria subjacente matria prpria, os quatro elementos

    permitem reencontrar, na noo de matria como fator que contribui para adeterminar a essncia da substncia composta, a noo de matria comosubstrato que garante a identidade dos processos de devir. E isso garante acoerncia da teoria aristotlica da matria.

    VIII

    Charlton tem certa razo em dizer que Aristteles parece oscilar entre

    duas maneiras de compreender a relao entre forma e matria45. Por umlado, Aristteles s vezes concebe a relao entre matria e forma como sefosse uma relao entre uma coisa e uma propriedade, ou melhor, entre umacoisa j completa em si mesma e uma propriedade ulterior que lhe advmsem contribuir para sua essncia. Por outro lado, Aristteles s vezes conce-be a relao entre matria e forma como se fosse uma relao entre constitu-intes e o todo. A primeira concepo corresponde matria enquanto natu-

    reza subjacente que permite descrever o processo de gerao de modocoerente. Dado que a forma que esse subjacente adquire no processo dedevir no uma propriedade necessria existncia desse subjacente, fcilcompreender que o termo matria, neste caso, remete a entidades dotadas

    44Essas observaes inspiram-se em Menn [2007], na parte de seu draftintitu-lada Why things said per accidens do not have essences, na qual ele analisa Z-5e o caso do simon. Embora eu no concorde com sua anlise de Z-5, nem do caso

    do simon, tirei proveito de suas sugestes sobre a noo de definition-in-a-context.45Charlton [1992/70], p. 70-1.

  • 8/13/2019 (3)Lucas Angioni

    40/44

    Lucas Angioni

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 47-90, jan.-jun. 2007.

    86

    de certa independncia ontolgica. A matria, neste contexto, algo que

    pode existir independentemente daquilo de que matria. em ateno aesses casos que Aristteles diz, em vrios contextos, que a matria substn-cia (ousia) (1042a 26-7, 1042a 32- b 6, 1042b 9-10, 1035a 2). J a segundaconcepo corresponde matria enquanto elemento constituinte que dalguma contribuio relevante para a essncia daquilo de que matria. Nes-te caso, os itens que contam como matria podem satisfazer tambm oscritrios (i*) e (ii*), mas essa satisfao no necessria, nem usual. Na maio-

    ria dos casos, os ingredientes que contam como matria de algo nesse se-gundo sentido (que so matria prpria) so entidades que no podem vir aexistir, nem continuar a existir, sem a existncia daquilo de que so matria.O termo matria, nesse caso, remete a entidades que no tm independn-cia ontolgica. em ateno a esses casos que Aristteles diz, em vrioscontextos, que a matria no substncia (ousia), pois no satisfaz o requisitode poder existir separadamente daquilo de que matria (cf. 1040b 6-8)46. bem verdade que, em alguns casos, os ingredientes que contam como mat-ria de algo nesse segundo sentido so entidades que podem existir parte

    46Algo similar ocorre quando Aristteles afirma que a matria no certo isto(tode ti). (a) Ou bem ele quer dizer que a coisa x, qual ocorre ser matria dey, no em si mesma certo istoporque no algo que tenha em si mesmo o tipo de uni-dade interna requisitado para ser um