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2ª Jornada Pedagógica da Educação Infantil
“Quero ensinar as crianças, elas ainda têm olhos encantados.”
Dia 18 de julho de 2011
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INFÂNCIA & PSICOLOGIA
Marcos Teóricos da Compreensão do Desenvolvimento da Criança Pequena
Vera Maria Ramos de Vasconcellos
Faculdade de Educação – UERJ
Introdução
A Psicologia do Desenvolvimento se constitui, historicamente, em diálogo com a Infância. Fala-se
de gêneses (origem), início: de infância da Psicologia da Infância (Kohan, 2003). O que fez a Psicologia
com o conhecimento acumulado de tanto estudar a criança? O que fez a Psicologia com as imagens de
Infância e criança que construiu ao longo de todo o século XX – Século da Criança? A quem a Psicologia
serve/serviu quando fala de Infância? E em que momento a Psicologia deixa de falar das/sobre as crianças
e começa a falar com as crianças?
Para responder a essas perguntas decidimos transitar pelos principais marcos teóricos tradicionais
à Psicologia do Desenvolvimento voltada para a Infância, produzidos ao longo da história. Esperamos
que, pela localização histórica das principais linhas de pensamento, dando destaque à Teoria do Apego
(Attachment Theory) de John Bowlby (1969), à Epistemologia Genética de Jean Piaget (1936-70), à
sociogênese de Henry Wallon (1949/95, 1979) e à perspectiva socio-histórica de Lev Vygotsky (1986/
95, 1987), possamos discutir a relação entre os fatores sociais e biológicos, presentes nas teorias do
Desenvolvimento que falam da Infância, a partir das tendências da literatura internacional do início do
século XX até a atualidade. Temos como objetivo compreender como os conceitos de infância e criança
vêm mudando na Psicologia e influenciando a Educação, e como tais mudanças têm marcado os temas
em estudo e as práticas, tanto de pesquisa quanto de ensino, além da atuação profissional dos psicólogos e
educadores.
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Sabemos bem que a criança – o bebê em particular – não era vista como sujeito de investigação da
Psicologia e da Educação até as últimas décadas do século XVI (Ariès, 1981). As primeiras observações
sistemáticas do desenvolvimento infantil (as chamadas “biografias de bebês”) foram registradas no final
do século XVIII e no início do século XIX, sendo a origem da observação científica sobre a infância
reconhecida a partir dos estudos e documentação de expressões emocionais em crianças, realizados por
Charles Darwin (1877),1 biólogo inglês, e, mais tarde, na tradição inglesa do Child Study Movement
(Urwin, 1986). Tais estudos, baseados nas teorias biológicas e evolucionistas, acabaram por dar origem
às análises do que era considerado o desenvolvimento “normal” de crianças, estabelecida, inicialmente,
pelos inatistas como capacidades instintivas e funcionais, resultantes de mudanças cumulativas presentes
no desenvolvimento da espécie. Nessa perspectiva, o desenvolvimento seria resultante de processos
maturacionais de características da espécie humana, visando a adaptação ao meio ambiente.
A ausência da infância e das crianças nos estudos científicos existentes até o final do século XIX,
seguida pela concepção do desenvolvimento na qual é enfatizada a maturação orgânica, é encontrada,
ainda hoje, em estudos que adotam a orientação de autores como Gesell (1943) e busca descrever as
mudanças de comportamentos concretos, sem focalizar fatores internos ao próprio sujeito nem aspectos
ambientais. A ênfase nas bases biológicas do comportamento marcou as pesquisas do Desenvolvimento
Humano até a virada do século XIX, entrando no século XX, tendo como um de seus portais a Psicanálise.
Influenciado por Darwin, Sigmund Freud (1856-1939) desenha uma teoria do desenvolvimento
com base nas leis biogenéticas, em especial os conceitos de latência-sexual, sublimação, formação reativa
e regressão, resultando no destaque aos aspectos psicopatológicos presentes no desenvolvimento da
criança. Freud, em 1905, escreve os Três ensaios sobre a sexualidade infantil e, em 1909, exemplifica
com o caso do “Pequeno Hans” a origem das neuroses dos adultos nas experiências da infância.
Nas transformações sofridas pelos estudos da Infância na Psicanálise, principalmente pelos
seguidores de Melanie Klein, as operações dos processos inconscientes na criança – pré-edipianos e
o próprio “conflito edipiano” – passaram a ser explicadas como acontecendo muito antes do que fora
descrito por Freud, nos primeiros anos de vida (Klein, 1928/75). Nos estudos da autora e seguidores,
o desenvolvimento psíquico da criança foi reduzido do triângulo edipiano para a díade mãe-bebê, e
o valor dado por Freud ao desenvolvimento psicossexual foi redefinido. Assim, o drama triangular,
1 Charles Darwin (1877) observou seu filho mais velho, William Erasmus Darwin (Doddy, nascido em 1859), buscando relacionar o desenvolvimento da espécie humana (ontogênese) e a história da espécie humana (filogênese).1
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alimentado pelo desejo da criança em relação aos seus pais – de ambos os sexos – foi relocado a um
estágio cronologicamente anterior, no qual os atores psíquicos ficaram reduzidos a dois: mãe e criança.
A especial atenção dada aos fatores biológicos é reforçada pela trama kleiniana. De acordo com a
autora, o bebê é equipado com impulsos inatos, os quais são direcionados para o primeiro objeto de desejo
– o seio da mãe.
A Psicologia da Infância, alimentada pela psicanálise kleiniana, acumulou uma longa experiência
sobre a Infância, valorizando o seu imaginário, sonhos e patologias psíquicas.
Muito diferente teria sido o caminho traçado pela Psicologia do Desenvolvimento, caso os passos
dos intelectuais da Escola de Frankfurt tivessem sido seguidos. Em 1934, um grupo de eminentes adeptos
da visão psicanalítica de Freud, fortemente comprometidos com a ampliação de tais conceitos a partir de
uma análise sociológica das relações humanas, emigrou para os Estados Unidos, fugindo da Alemanha
nazista. O grupo adotava em suas reflexões teóricas uma combinação de perspectivas psicoanalíticas,
sociológicas e antropológicas, no propósito de analisar criticamente a família como instrumento de
controle social. Os pesquisadores2 baseavam seus trabalhos numa versão popular da teoria psicanalítica
e numa análise antropológico-social da família. Mesmo considerando as importantes divergências de
abordagem presentes nas perspectivas referidas, todos tinham em comum uma postura sociopsicológica,
que situava a cultura e as relações de poder existentes na sociedade no cerne dos estudos relativos à
família. Conseqüentemente, um grande número de estudos surgiu, tendo como principais tópicos o
desenvolvimento de “tipos de personalidade” e “internalização de visões de autoridade”, todos calcados
numa análise crítica do lugar da família e seus membros, inclusive as crianças, em sociedade (Riley,
1980).
Mais tarde, nos anos 1940, nos Estados Unidos, como resultado das mudanças sociopolíticas
vividas pelas Ciências Humanas, as propostas de estudo desse grupo de pensadores, como “tipos
de personalidade”, foram transformadas em “questões mais bem comportadas”, que passaram a ser
conhecidas como Psicanálise do Ego Forte e depois Psicologia do Ego, sendo dissolvidas na Psicologia
Humanista de Erich Fromm. As discussões anteriormente propostas, transladando a triangulação psíquica
(id, ego e superego) para questões sociais, prioritariamente relativas à família, ficaram desfiguradas
nas análises transculturais (cross-cultural), presentes na Psicologia Cultural – estudos da família e do
desenvolvimento da criança – de Eric Erickson (1945). Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, a
2 Marcuse, Horkheimer, Adorno e Fromm, entre outros.1
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ênfase biológica presente na visão psicanalítica de M. Klein vai tomar ares de modernidade com os
trabalhos de seu dileto discípulo John Bowlby sobre o vínculo biológico mãe-bebê, mais bem analisado
pelas observações naturalistas, herdadas da Etologia.
John Bowlby e a Teoria do Apego
John Bowlby (1907-1990) tem suas primeiras publicações, nos anos 1930-40, baseadas na
perspectiva kleiniana de cuidado materno, adotada no Child Guidance Movement (Movimento de
Cuidado da Criança). Além das bases da Teoria do Objeto de M. Klein, as idéias de Bowlby foram
também influenciadas pela proposta etológica, recém-surgida na “Velha Ilha”, a partir de estudos dos
biólogos Hinde e Tinbergen (Bowlby, 1958). Bowlby torna-se, assim, responsável pela introdução das
idéias da Etologia na Psicologia da Criança. Em 1958, ele transpõe, da Etologia para a Psicologia da
Infância, as noções de “vínculo social primário” e “afeto instintivo” do bebê para a mãe, acrescentando-as
à categoria de respostas instintivas, padronizadas.
Os estudos desse pesquisador anteriores à Segunda Guerra Mundial abordavam questões referentes
à delinqüência juvenil, resultado de seu trabalho na Clínica Tavistock, em Londres. O tema, vale lembrar,
acabou por ser retratado em estudos desenvolvidos para a Organização Mundial de Saúde, em 1952,
quando as experiências do tempo vivido durante a guerra tinham encorajado psicólogos a verificar,
experimentalmente, os efeitos negativos da separação mãe-bebê no desenvolvimento psíquico das
crianças. Com efeito, em tempo de guerra, a Inglaterra – e os outros países que com ela se envolveram –
assistiu a separações de crianças, de suas casas e de seus familiares.
A Teoria do Apego (Attachment Theory) é produzida a partir de
observações naturais em que se analisa como crianças pequenas comportam-se na presença e, principalmente, na ausência de suas mães e como isso pode contribuir para uma melhor compreensão do desenvolvimento de sua personalidade.3
Bowlby define o comportamento de apego entre mãe e filho como vínculo primário e resposta
instintiva.4 Ele dá a esse vínculo status de valor “evolutivo” e de “sobrevivência”, fundamentais para toda
a espécie humana e para cada indivíduo em particular. Adota o conceito de “monotropismo” da Zoologia
3 Tradução livre do trecho “observation of how a very young child behaves towards his mother, both in her presence and especially in her absence, can contribute greatly to our understanding of personality development” (Bowlby, 1969/81, p. 23).44 Bowlby obscurece completamente a visão freudiana de instinto (“trieb”), tirando desse conceito seu dinamismo e indeterminismo, já que para Freud “instinto” é “conceito na fronteira entre o somático e o mental…, o representante psíquico das forças orgânicas” (1969, p. 130).1
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para explicar a dependência do recém-nato à sua mãe, básica à sobrevivência da espécie por garantir
alimentação, proteção e aquecimento ao seu corpo (1958, 1969/84).
A ênfase nos aspectos biológicos do comportamento, apoiada em explicação evolucionista, tendo
a díade mãe-filho como unidade de análise para a Psicologia da Infância, em detrimento dos aspectos
socioculturais, fica historicamente enraizada no clima socioeconômico britânico do final dos anos 1940
e início dos 1950 (Rutter, 1980). No final da guerra, a organização social e econômica do país (e por que
não de toda a Europa) exige a retirada das mulheres do mercado de trabalho, encorajando-as a retornar ao
aconchego da vida doméstica. O emprego nas fábricas, principalmente as bélicas, ficou reduzido, e esse
espaço precisava ser ocupado pelos homens – ex-combatentes – em retorno à normalidade da vida social e
familiar. Nesse contexto, a Teoria do Apego acaba por reforçar o papel tradicional da mulher como única
responsável, na família, pelos cuidados e saúde psíquica de seus filhos. Essa recomendação, questionável
já naquela época, mereceu vigorosos debates, provocando uma análise crítica do lugar dessa teoria.5
A questão crucial é: por que uma proposta particular de um país, construída num momento
histórico específico, ainda hoje influencia fortemente as pesquisas em Psicologia da Infância, sobretudo
em países em desenvolvimento?
Jean Piaget e a Epistemologia Genética
Outra abordagem presente na Psicologia do Desenvolvimento de todos os tempos é a Epistemologia
Genética de Jean Piaget (1970). Conhecida como majorante nessa perspectiva, enfatiza a capacidade
cognitiva de superação e criação de novidades por parte do sujeito psicológico (Puche-Navarro, Colinvaux
& Ure, 2001).
Começaremos por comentar a origem epistemológica do projeto piagetiano e sua posição a respeito
das influências sociais.
Piaget (1970) propõe que a Epistemologia se torne uma ciência independente da Filosofia. Para
tanto, precisou proceder como nas outras ciências, formulando perguntas verificáveis, do ponto de vista
tanto formal como experimental. Essa posição requer assim a obtenção de evidências empíricas que
possibilitem ultrapassar a mera especulação filosófica para examinar questões passíveis de investigação. O
autor propõe então substituir a tradicional pergunta metafísica “O que é o conhecimento?” por uma pergunta
5 Entre autores ingleses que deram início a tal polêmica estão: Patricia Morgan (1975), Barbara Wooton (1959), Michel Rutter (1972) e Denise Riley (1980).1
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verificável, que ele formula como segue: “Como se passa de um estado de menor conhecimento para um
estado de maior conhecimento?” (Piaget, 1970; Colinvaux, 2000). Para responder a essa pergunta, Piaget
argumenta que haveria dois caminhos: (i) examinar o desenvolvimento histórico da produção científica, o
que constitui uma análise a posteriori, sem possibilidade de controle experimental; (ii) recorrer à gênese
psicológica individual, isto é, estudar a origem primeira e formação de estruturas intelectuais e noções
básicas em sujeitos humanos em crescimento, controlando experimentalmente suas respostas. O autor
(1970) argumenta que o objetivo da Epistemologia Genética é “buscar delinear as raízes das diversas
variedades de conhecimento desde suas formas mais elementares, e seguir seu desenvolvimento até seus
níveis ulteriores, incluindo o pensamento científico” (p. 6).
A investigação dos estágios de desenvolvimento infantil ao longo das décadas de 1920 a 1950,
resumida no livro A Psicologia da Criança (La Psychologie de L’Enfant – Piaget & Inhelder 1966/93),
acaba por se constituir no passo decisivo para a construção da Epistemologia Genética e permite que Piaget
formule a primeira teoria coerente e rigorosamente explicativa das etapas do desenvolvimento psicogenético
da inteligência humana.
A Piaget interessava saber como as crianças constroem e desenvolvem novas ferramentas
intelectuais e formas de raciocínio no decorrer da ontogênese, e como explicar a sua seqüência
desenvolvimentista. Àqueles pesquisadores que trabalham sob sua influência interessa compreender como
esse processo se dá na rede das relações sociais e como os intercâmbios de significado aí presentes atuam na
constituição do sujeito por inteiro. Disso decorre uma primeira divergência teórica, a propósito da noção de
egocentrismo, adotada por Jean Piaget (1923/59 e 1924/86) como característica definidora do pensamento e
da linguagem da criança pequena.6 Tal noção, que surge no contexto do estudo intitulado A linguagem e o
pensamento da criança (Piaget, 1924/86), designa “a inabilidade inicial para descentrar, para modificar uma
dada perspectiva cognitiva (manque de décentration)” (Piaget, 1981, p. 39).
A noção de egocentrismo acabou tornando-se mais conhecida devido à crítica de Vygotsky, objeto
de réplica por parte de Piaget, mais de trinta anos depois, em seu artigo “Comentários sobre as observações
críticas de Vygotsky” (Piaget, 1981).
As crianças pequenas seriam egocêntricas e não socializadas pela sua dificuldade de diferenciar o
seu próprio ponto de vista do dos outros. Esse egocentrismo cognitivo, ou perspectiva não socializada, foi
entendido por vários desenvolvimentistas como “não-social”, um individualismo que precede as relações
com os outros sociais (Vygotsky, 1986, 1995; Newman & Holzman, 1993/2002; Castorina et all, 1995).
6 É de se notar que nos anos 1920 Piaget também caracterizava o pensamento infantil como sendo “autista”, tomando essa expressão da perspectiva psicanalítica. A esse respeito, ver o estudo de Vidal (1997).1
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Alguns anos mais tarde, no livro O julgamento moral da criança (1932/62), Piaget reconhece que
a experiência da criança com seus pares ocupa importante lugar no seu processo social de desenvolvimento
intelectual, moral e lingüístico, e a aponta como condição necessária ao desenvolvimento do pensamento
do indivíduo. Entretanto, embora essenciais no processo de desenvolvimento, os fatores sociais não são
primordiais para esse autor;7 quando presentes em sua obra e em suas investigações, o detalhamento relativo
à compreensão das crianças sobre invariantes do mundo físico (Piaget & Inhelder, 1966/93) e da lógica
matemática (Piaget 1964), veremos que suas considerações sobre o lugar das relações sociais da criança,
na construção de habilidades cognitivas, são extremamente limitadas. Mesmo na obra de 1932/62, define a
criança egocêntrica como pré-social e incapaz de comunicar-se com sucesso com seus pares.
A noção de “egocentrismo” foi por muito tempo, na história da Psicologia da Criança, uma das
razões da relativa ausência de pesquisas sobre o lugar das relações sociais no desenvolvimento infantil,
causando vácuos enormes no conhecimento de como criar propostas intencionalmente educativas
(Vasconcellos, 1987).
No final da década de 1970 e no início da de 1980, alguns pesquisadores dedicaram atenção especial
às relações entre crianças, para demonstrar o papel das outras crianças – e portanto das interações sociais e
do contexto social – no processo de desenvolvimento emocional e social da criança pequena. Esses autores
passaram a ser identificados como sociocognitivistas8 e suas pesquisas contribuíram para a compreensão das
condições em que as interações sociais favoreciam o desenvolvimento cognitivo..
Assim, em nosso entender, não foram suficientemente esclarecedores os debates com a escola
piagetiana quanto ao vínculo entre o processo individual e social de desenvolvimento. A melhor explicação
dada por Piaget às questões citadas está em seu livro de 1965:
O processo de relação com o mundo físico e social anda de mãos dadas, o problema parece sem solução. Podemos dizer que eles constituem dois inseparáveis aspectos de uma simples realidade, a individual e a social (p. 158).
Sem desmerecer a importância da perspectiva piagetiana, a relevância das relações sociais no
7 Na realidade, o lugar atribuído por Piaget às influências sociais varia ao longo de suas publicações. Enquanto nos anos 1920, o meio social cumpre o papel de definir horizontes e assim influenciar o desenvolvimento psicogenético, os estudos das décadas seguintes tendem a reduzir o papel das influências sociais. Quando Piaget retoma o tema na década de 1960, com a publicação dos Estudos sociológicos (1965/65), afirma peremptoriamente a indissociabilidade das dimensões intelectual e social do desenvolvimento psicogenético (ver Colinvaux, 2000).8 Trevarthen (1975); Trevarthen & Hubley (1978); Bruner (1975); Bruner et al. (1976/85); Eckerman, Whatley & Kutz (1975); Eckerman & Whatley (1977); McGrew (1979); Perret-Clemont (1980); Stambak et al. (1979); Stambak & Verba (1982, 1986); Smith (1982).1
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desenvolvimento cognitivo tem sido largamente demonstrada em diferentes pesquisas empíricas e na prática
pedagógica, no confronto com o desenvolvimento de crianças pequenas, principalmente a partir da ênfase
nas perspectivas sociocognitivistas.9
Mesmo com a rápida expansão de estudos com base na perspectiva piagetiana, algumas dúvidas
permaneceram, obscurecendo a compreensão sobre a competência das crianças pequenas de iniciar e
desenvolver atividades entre elas, que promovam a elaboração de funções cognitivas e afetivas. As questões
principais relativas à interação criança-criança vão além de descrever as atividades sociais de cada um dos
membros da díade ou a natureza do contexto social: tratam da identificação dos mecanismos pelos quais as
interações sociais são constituídas na elaboração das funções cognitivas e afetivas.
Há, porém, aspectos da teoria piagetiana que iremos avançar, pelo menos em interlocução com
outros aportes teóricos (Henri Wallon e Lev Vygotsky). Tais temáticas aparecem, especialmente, em três
estudos de sua gigantesca obra: O nascimento da inteligência na criança (La naissance de l’intelligence
chez l’enfant, 1936/53), A construção do real na criança (La construction du reél chez l’enfant, 1937/54) e
A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho (La formation du symbole chez l’enfant (1946/
62). Juntos, esses trabalhos constituem um todo dedicado ao estudo das etapas iniciais do desenvolvimento
da inteligência, isto é, ao período sensório-motor.
Desenvolvimento Sociogenético da Criança em Henri Wallon
Contemporâneo de Piaget, Henri Wallon (1879-1862) discute, por intermédio da criança, uma
ciência do homem por inteiro10 em que a emoção direciona a vida. A partir desse autor, avançamos nos
estudos que reconhecem a criança como protagonista de seu desenvolvimento e de sua segurança afetiva
que até então ficava restrita à relação diádica com a mãe ou com alguns outros poucos sociais, mais
próximos (Lewis, 1984; Dunn, 1984, Pedrosa 1989, 1990; Galvão 1993, 1995, Oliveira, 1990).
Wallon (1946) brinda-nos com a noção de “constelação familiar”, propiciando à criança que nasce
um contexto social e simbólico, no qual seus outros sociais mediarão e interpretarão suas ações no mundo,
9 Estudos atuais sobre a cognição de crianças pequenas (3 e 4 anos) evidenciam a competência para pensar e “pensar bem” (Bank-Leite, 1997; Colinvaux, 2000; Puche-Navarro, Colinvaux & Ure, 2001). São pesquisas sobre as “ferramentas” cognitivas de crianças pequenas, tais como a “inferência”, isto é, a capacidade de produzir conhecimentos a partir de uma situação dada, os quais vão além da informação que se pode obter por observação.10 Assim o define René Zazzo no livro Psychologie et marxisme (1979, p. 137).1
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dando a elas, desde sempre, significados. Essa mediação na tensão de compreender o que pertence a ela
(criança) e o que pertence ao ambiente – na busca de diferenciação entre ela e o outro – acaba por ocupar
lugar de contexto em si, isto é, contexto da emoção: “Função essencialmente plástica e de expressão, as
emoções constituem uma formação de origem postural e sua substância fundamental é o tônus muscular”
(Wallon, 1949/95, p. 161).
Segundo Wallon, a fórmula para entender o processo de desenvolvimento está em nos voltarmos
à totalidade das relações das quais a criança faz parte e as quais modifica. Para ele, a criança é um ser
geneticamente social, ou seja, nasce num meio envolvente do qual depende inteiramente para a satisfação
de suas necessidades e a solução de seus desconfortos, sendo um ser biológico que nasce já social por ser
membro de um grupo com cultura e linguagem próprias (Vasconcellos, 1996).
(...) unidade indissolúvel que forma a criança e o adulto, o homem e a sociedade (...) separar o homem da sociedade, opor o indivíduo à sociedade, é descorticar-lhe o cérebro (...). A sociedade é para o homem uma necessidade, uma realidade orgânica (Wallon, 1949/95, p. 11-12 – grifo meu).
Na obra As origens do caráter na criança (Les origines du caractère chez l’enfant, 1949/95), o
desenvolvimento sociogenético é descrito em seus três primeiros anos. Durante esse período, a criança
encontra-se num sincretismo subjetivo, imersa no mundo cultural e simbólico que a constitui.
Nesses primeiros anos, a percepção da realidade dependerá da identidade funcional entre os
objetos e as ações, apresentados pelos outros membros de sua constelação familiar; ou seja, pela
interpretação que os outros sociais derem a suas ações e movimentos, estes ganharão formato e expressão.
A partir dos 6 meses, a criança se revelará um ser essencialmente emocional, que deixa o lugar de
organismo vivente, constituindo-se em sujeito psíquico na produção de comportamentos emocionais,
individuação do próprio corpo e formação da consciência de si.
Diferente da tradição da Psicologia Cognitiva, a concepção walloniana de desenvolvimento
estabelece um processo de avanços consecutivos que não são estágios clássicos, mas se dão na dialética
da afetividade e da inteligência – emoção e razão – que se influenciam mutuamente, em composição e
oposição, e são afetadas, constantemente, por fatores tanto biológicos (ações fisiológicas) quanto sociais
(manifestações expressivas). Faz-se, assim, importante o conjunto da vida mental, que diz respeito ao
comportamento inteiro da criança e à conquista da própria personalidade (Wallon, 1968).
“As reações impulsivas, orgânicas e desordenadas precisam ser “completadas, compensadas
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e interpretadas” (Wallon, 1946/75, p. 153). Essas complementações, constituintes do sujeito humano,
aparecem por meio de processos comunicativos e expressivos que ocorrem em trocas sociais, de forma
descontínua e alternada, em que a emoção é a primeira manifestação psicogenética da afetividade e o elo
entre o bebê e seu outro social, portanto precedente à cognição.11
Para Wallon, o começo da atividade mental depende de ações anteriores presentes no contexto,
a que chamava de “meio”. De acordo com o autor, o meio humano tem duplo sentido: milieu – meio
como espaço de ação ou campo de aplicação de condutas – e moyen – recurso, instrumento, condição de
desenvolvimento (Wallon, 1979; Nadel-Brulfert, 1986).
Wallon define a “simbiose afetiva” (participação do outro na formação da consciência de si) do
bebê com seu meio humano (mãe, pai e outros familiares) como sendo o fator emocional, voltado para
a construção da sensibilidade interna (movimento centrípeto)12 do bebê, inicialmente visceral e depois
afetiva (Dantas, 1990). O diálogo tônico passa a ser o prelúdio da comunicação verbal e tem no corpo um
instrumento operacional e relacional (Vasconcellos, 1987). A criança, inicialmente fundida nos outros
sociais, passa a desdobrar, em gestos e palavras, a compreensão de seu papel nas situações interativas, ao
que Wallon chamou de movimento centrífugo.13 Essa etapa, que tem como marca o domínio da marcha
e da fala, corresponde ao intermeio necessário para que o ato motor possa se interiorizar, formando a
representação mental.
De acordo com Dantas (1990),
ao longo dessa etapa, (…) vai haver uma nova utilização das coisas, que deixam de ser apenas exploradas e manuseadas e se tornam significantes, isto é, adquirem uma dimensão além do aqui e do agora. À autonomia sensoriomotora, adquirida com a marcha, segue-se, de maneira quase imediata, a entrada no mundo dos signos, que emancipa a criança da realidade (p. 31).
A preponderância inicial da função motora e emocional, presente logo no início da vida da criança,
propicia o desenvolvimento – relativamente tardio – das funções intelectuais que aparecem por meio da
emergência da fala, da tradução do significado das ações e da busca da autonomia de si. Pela construção
e transformação das relações sociais e do próprio espaço do corpo, a individualização de cada parte dele e
11 “Incapaz de efetuar algo por si própria, ela (a criança) é manipulada pelo ‘outro’ e é nos movimentos do outro que suas primeiras atitudes tomarão forma” (Wallon, 1968, p. 161).
12 Movimento centrípeto = edificação interna do sujeito.13 Movimento centrífugo = relação com o mundo externo ao sujeito.1
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sua integração numa unidade corporal vai causar uma delimitação de si em relação aos outros.
Assim, o signo verbal existe no meio das relações emocionais humanas (interpessoais), antes
de ser usado como instrumento cognitivo (intrapessoal), propiciando a tomada de consciência de si.
Mais adiante aparece o domínio do universo simbólico, permitindo a referência a objetos e pessoas não
presentes, sobre os quais a criança será capaz de pensar e agir. Gradualmente, com o aumento de recursos
próprios e da possibilidade da ação direta sobre o mundo físico e social, a criança começa a se interessar
mais pelas coisas do exterior, diminuindo as solicitações constantes dirigidas aos adultos de seu mundo
social (Wallon, 1989; Tran-Thong, 1987; Vasconcellos, 1987).
Lev Vygotsky e a Psicologia Infantil
No cenário da Psicologia do século XX aparece, de forma tardia,14 a contribuição de outro autor
contemporâneo de Piaget, que havia sido silenciado por barreiras ideológicas, lingüísticas e geográficas:
a partir dos anos 1960, a vida e o pensamento de Lev Vygotsky (1896-1934) passam a ser tema de
grandes debates e divergentes apropriações por alguns estudiosos do Desenvolvimento Humano em geral
(Wertsch, 1985; Kozulin, 1990; Van der Veer & Valsiner, 1991, 1994; Newman & Holzman, 1993/
2002) e da Psicologia da Infância em particular (Bruner, 1975; Cole, 1998; Rogoff, 1998). A maior
parte dos trabalhos voltados para o legado vygotskiano tem sido mediada pelos interesses da Psicologia
e da Educação contemporâneas, privilegiando discussões sobre as ações partilhadas entre diferentes
atores sociais, como base das origens sociais dos processos mentais superiores (Wertsch & Tulviste,
1992). Assim, sua abordagem centralizada na pessoa, isto é, no psiquismo em ação, e sua concepção do
desenvolvimento como oriundo de um plano social e destinado a um plano individual têm sido menos
enfatizadas por quase todos os seus seguidores (Valsiner, 1988). No entanto, em nosso entender, é
exatamente a construção de uma consciência pessoal de origem social, presente no esquema teórico geral
de Lev Vygotsky, que tem relevância, já que para esse autor social e individual são indissociáveis e a
única via para compreender o funcionamento psíquico, tipicamente humano (Vasconcellos, 2002).
Enfatizamos o que Vygotsky (1996) chamou de “problemas da Psicologia Infantil”.15 Para
ele, a ontogênese humana deve ser compreendida com base em acontecimentos diversos, que se dão
14 Em 1960 é publicada a primeira versão em inglês do livro Thought and language; no Brasil foi traduzido por Jefferson L. Camargo e editado pela Martins Fontes em 1987.15 A discussão está apresentada na segunda parte do Livro IV – “Obras escogidas” (1984/96).1
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paralelamente e em decorrência dos fatos da vida social, que são históricos e culturais. Em sua concepção,
a ontogênese é uma das linhas que compõem a história do desenvolvimento; as outras são a filogênese e
a sociogênese. A crise está presente na constituição dessas três linhas, seja na história das espécies, na
história da humanidade ou na história de cada sujeito social.16
Portanto, é necessário sublinhar, na orientação vygotskiana, o lugar da história como chave para
a compreeensão de qualquer processo de desenvolvimento. Scribner (1985, p. 120) esclarece tal visão,
dizendo que, “para se estudar alguma coisa, historicamente, é preciso que se estude esse fenômeno em
movimento”. Desenvolvimento, para Vygotsky, é compreendido como movimento, isto é, processo
dinâmico, no qual a criança e todos os que convivem com ela, seus outros sociais, estão em constante
processo de mútua transformação, num mundo (momento presente) em mudança, onde as alterações
individuais (desenvolvimento) são tornadas possíveis pelas características de cada sujeito em ação, mas
também pelas características do mundo (meio social) no qual esse desenvolvimento ocorre (Vasconcellos,
2001).
Vygotsky (1984/96) descreve o desenvolvimento da criança como marcado e caracterizado pela
alternância entre períodos de calma e de crise, sendo dado destaque aos períodos de crise como os mais
relevantes, por propiciarem transformações.
Para o autor,17 seja na história das espécies, da humanidade ou do homem singular, o
desenvolvimento sempre se dará de forma “catastrófica”, produzindo revoluções totais (revolutionary
breakthrough). O desenvolvimento, sempre, é um processo que se manifesta “de forma brusca,
impetuosa, que adquire, em certas ocasiões, caráter de catástrofe; lembra uma série de acontecimentos
revolucionários, tanto pelo ritmo das mudanças como pelo significado das mesmas” (Vygotsky, 1996, p.
256).18
Vygotsky marca a existência, em todo desenvolvimento, da passagem de estados emergentes (um
presente tranqüilo, que existe em si mesmo e poderia aí ficar) para a brusca construção de ações futuras,
mais extensas e complexas, que subordinam o desenvolvimento antes conquistado e o transformam em
meio:
16 Interessante notar, como o fez Vygotsky (1982/91, 1996), que o aparecimento da “infância” se manifesta já na filogênese, a partir dos vertebrados, pelo surgimento do indivíduo imaturo da espécie aprendendo com o adulto, via jogo e treinamento.17 O tema foi bem discutido na revista Temas em Psicologia (SBP, 1995, n. 2), sob o título “Cognição e linguagem”, pelo grupo do pesquisa Pensamento e Linguagem, do Departamento de Psicologia Educacional da UNICAMP.18 “Desarrolla de forma brusca, impetuosa, que adquire, en ocasiones, carácter de catástrofe; recuerda un curso de acontecimientos revolucionarios tanto por el ritmo de los cambios como por el significado de los mismos.”1
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Produzem processos bruscos e fundamentais de troca e deslocamentos, modificações e
rupturas da personalidade da criança. Num curto espaço de tempo a criança se transforma por
inteiro, se modificam os traços básicos de sua personalidade (p. 256).19
Se os fenômenos relevantes do desenvolvimento ocorrem em períodos de crise, é necessária
a construção de uma teoria que colabore na explicação dos processos humanos, históricos e sociais,
que se processam nesses períodos. Para o autor, todo fenômeno psicológico é detentor de sua própria
história (transformações genéticas), entendido como processo em movimento e em constante
transformações qualitativas e quantitativas. O contexto social e a cultura têm função de alicerce para essas
transformações.
Vygotsky (1996) destaca que as “condições exteriores determinam o caráter concreto na qual se
manifestam e transcorrem os períodos críticos”.20 Em outras palavras,
tais transformações genéticas ocorrem como processos espontâneos, no desenvolvimento do sujeito, a partir de um determinismo biológico, na direção de um indeterminismo social e cultural. Na perspectiva vygotskyana, os processos maturacionais e culturais (...) se constituem no meio onde as adaptações biológicas se transformam em relações sociais (Vasconcellos & Valsiner, 1995, p. 45).
A dialética dos contrastes está presente nas crises de extensão e contração, desintegração
e decomposição dos períodos anteriores e caracterizam a história das espécies, da humanidade e do
desenvolvimento de cada pessoa.
Na espécie humana, o uso e a invenção de instrumentos marcaram a transição de um
desenvolvimento situado na esfera puramente biológica, para transformar o homem em sujeito histórico
e cultural (1996).21 A criança, nos períodos críticos de desenvolvimento, não somente adquire novas
características, como perde algumas que tinha anteriormente.
Um indício valioso e importante para determinar o desenvolvimento da criança, num dado
período, perde seu significado no seguinte e os aspectos que ocupavam antes o primeiro
19 “Producen bruscos y fundamentales cambios y desplazamientos, modificaciones y rupturas en la personalidad del niño. En muy breve espacio de tiempo el niño cambia por entero, se modifican los rasgos básicos de su personalidad.”20 “las condiciones exteriores determinan el carácter concerto en que se manifestan y transcurren los períodos críticos” (p. 256).21 Recomendamos para maior esclarecimento sobre o tema o livro de Leontiev (1978) O desenvolvimento do psiquismo.1
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momento, no curso do desenvolvimento, se desfazem no segundo (p. 252).22
Poucas vezes consideramos, em nossas análises sobre desenvolvimento, os processos
de “involução”, que em certas ocasiões dominam os de “evolução” (Tudge, 1996). O autor nos recorda
que Vygotsky não entendia o desenvolvimento humano como uma linha contínua, unidirecional, indo
das habilidades menos competentes para as mais competentes. Surge a noção de “crise-estrutural”, que
caracteriza o “processo de desenvolvimento psicológico”, que assume e se transforma em novas formas
nos períodos estáveis do desenvolvimento da criança, acontecendo nas alternâncias entre momentos
de crise e de estabilidade. No momento de estabilidade – que é raro e rápido – dá-se a emergência do
novo. É como se os períodos de crise fossem estancados, provisoriamente, dando espaço para o que é
entendido por “síntese dialética” (Vasconcellos & Valsiner, 1995, p. 79).
A criança (...) perde os interesses que antes orientavam sua atividade, que antes (ontem)
ocupavam a maior parte de seu tempo e atenção, e agora se diria que se esvaziam as formas
de suas relações externas, assim como sua vida interior (Vygotsky, 1996, p. 257).23
A obra de Vygotsky evidencia argumentações teóricas que enfatizam a emergência do novo, na
estruturação das funções psicológicas qualitativamente superiores, assim como a idéia de perda das
conquistas anteriores e, também, a noção de bruscas e inesperadas mudanças no desenvolvimento. A
partir de uma concepção histórico-cultural em Psicologia, desenvolvimento é crise, ruptura, revolução
e catástrofe, em contraste com a capacidade de construção do novo, na calmaria do desenvolvimento
pleno, presente em poucos momentos (períodos) de desenvolvimento tranqüilo. Para seguir nessa
análise, devem-se resgatar os três ensaios, originalmente publicados em 1930 e retomados pelo grupo da
UNICAMP.24
Na concepção de linguagem como instrumento, Smolka (1995/2000) ressalta a idéia de Homo
duplex – aquele que tem a capacidade de se desdobrar pelo signo (p. 14), permitindo entender a dialética
do funcionamento mental. A autora resgata o conceito de drama superando o de processo, na formação
22 “Un indicio valioso e importante para determinar el desarrollo del niño en un período dado, pierde su significado en el siguiente, ya que los aspectos que ocupaban antes el primer plano en el curso del desarrollo se desplazan al segundo.”23 “El nino (...) pierde los intereses que ayer todavía orientaban toda su atividad, que ayer ocupaban la mayor parte de su tiempo y atencíon, y ahora diríase que se vacían las formas de sus relaciones externas, así como su vida interior.”24 Em Vygotsky, esses ensaios foram retomados no livro em co-autoria com Luria, em 1996, intitulado Estudos sobre a história do comportamento: símios, homem primitivo e criança. 1
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da dupla linhagem possível ao desenvolvimento: (i) uma central tranqüila e (ii) outra com status de
adjunta, “desdobrando-se pelo signo (eu/meu, eu/outro) e pela linguagem (fala/é falado” (p. 14).
“Podemos depreender daí uma concepção de homem (sujeito) não como uno, mas, pelo menos, duplo, na luta/tensão constante – social, mental – entre autonomia/submissão; homem capaz de, experienciando e condensando diversas posições/papéis sociais, controlar (o outro, a si próprio) e resistir” (p. 14).
A criança não é vista como produto das circunstâncias, mas como alguém que transforma as
circunstâncias transformando-se, e, nessa interdependência, há a formação do novo. A fala, que assume
o papel de adjunto nos primeiros momentos do processo de desenvolvimento infantil, pode ser um bom
exemplo. A fala dá a propriedade do nome ao objeto, nome e objeto estão fundidos um no outro. A marcha
também serve de exemplo. No começo do andar, tem papel central no desenvolvimento da criança, é sua
atividade-fim; após total domínio da marcha, a criança passa a andar-para fazer alguma coisa. A marcha
adquire então o status de adjunto, tornando-se instrumento para ações mais independentes.
Entendemos, portanto, seguindo Vygotsky, que a síntese dialética, presente no período de crise,
transforma e reorganiza as funções psicológicas centrais e adjuntas, possibilitando o surgimento de novas
funções, com base nas perdas e nas reorganizações das funções prévias.
A temática ficará ainda mais clara caso nos debruçemos no artigo “The history of development
of higher psychological functions”,25 no qual ele não só apresenta o “Método da Dupla Estimulação”
(p. 47-96), em Vygotsky (1983/95), como discute o que se tornará a grande contribuição da
abordagem “histórico-cultural”, a metodologia de estudo da “liberdade de escolha” (free-will), presente na
ontogênese.
Com essa orientação, o desenvolvimento da criança se torna cada vez mais livre, no sentido de
ser sempre um passo à frente do que é dado pelo meio (físico e afetivo) (Vygotsky, 1995, p. 16-17),
garantindo a ênfase no desenvolvimento psicológico por inteiro do sujeito que é social, histórico e cultural,
processo que forma a estrutura dinâmica da personalidade da criança (p. 327-340) que nos termos de
hoje seria compreendido como sujeito singular.
25 O artigo está no Livro III – “Obras escogidas” (1983/95).1
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A Noção de Zona de Desenvolvimento Proximal
São muito poucas as construções teóricas em Psicologia que realmente ajudam a compreender
como o processo de desenvolvimento se dá de um momento presente para outro futuro. Entre elas está a
noção de Zona de Desenvolvimento Proximal.
No último ano e meio de sua vida, Vygotsky volta suas atenções e pesquisas para a relação
entre educação e desenvolvimento em geral. Nesse período surge a abordagem sistêmica das zonas de
desenvolvimento, que mais tarde seria consagrada como a Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP).
Em outro trabalho (Vasconcellos, 1998) já discutimos as diferentes elaborações conceituais
de Vygotsky para o que hoje conhecemos como ZDP, porém em todas elas a ênfase sempre recaía
na importância da participação social no processo de desenvolvimento e aprendizagem da criança.
Para Vygotsky, a interação dos diferentes membros de uma cultura favorece a criação da ZDP. Esses
membros podem ser adultos ou crianças de mesma idade ou de idades próximas, mas com capacidades
e habilidades sociais diferentes. Ao estar em contato com outros parceiros, a criança não só desenvolve
sentimentos, posturas corporais e sociais, como transforma o nível de desenvolvimento potencial em nível
de desenvolvimento atual (ou real).
Portanto, quando falamos no nível de desenvolvimento de uma criança, estamos falando de, pelo
menos, dois níveis, o atual e o potencial. A ZDP se caracterizaria por uma certa tensão entre o nível de
desenvolvimento atual (aquilo que o sujeito já é capaz de fazer e que pode ser observado pelo grupo
social) e o nível de desenvolvimento potencial (as funções intrapsíquicas que o sujeito possui, mas que
estão imersas em suas potencialidades). A resultante dessa tensão seria um novo nível de desenvolvimento
atual. Ou seja, a criança tem um desempenho quando realiza alguma atividade sozinha, mas esse
desempenho pode ser ampliado se a mediação de um parceiro (criança ou adulto) criar condições para tal
(Oliveira, 1993).
Assim, o desenvolvimento infantil, para Vygotsky, é visto de forma prospectiva, isto é, vai além
das aparentes capacidades apresentadas pelas crianças. Na ZDP, o nível de desenvolvimento atual é
encarado como fonte de possibilidades para o surgimento das diversas habilidades e capacidades da
criança e não como fim último de tal processo (Vasconcellos & Valsiner, 1995).
Importância da Palavra no Desenvolvimento
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Outra temática vygostkiana central é a concepção de linguagem como instrumento de
comunicação e como ferramenta psicológica.26 Aqui, não voltaremos às discussões já tradicionais entre
as incompatibilidades das duas perspectivas (piagetiana e vygostkiana) e, menos ainda, ao que há de
ideológico em cada uma delas.27 Deter-nos-emos no significado da palavra para a criança pequena em
desenvolvimento e no que ela a auxilia a avançar nesse processo.
O signo/palavra, na criança pequena, aparece como meio nas atividades internas e tem seu
significado definido pelo objeto a que se refere. Pelo uso das palavras, a criança supera as limitações
imediatas do ambiente onde está, já que a palavra dispensa a mobilidade física, levando o falante
para onde quiser. Uma das possibilidades de concepção da linguagem é como instrumento: o signo/
palavra, que, tão logo adquirido, funciona também como “orientador interno do pensamento e, uma vez
internalizado, torna-se uma parte profunda e constante dos processos psicológicos superiores; a fala atua
na organização, unificação e integração de aspectos variados do comportamento da criança, tais como:
percepção, memória e solução de problemas” (Vygotsky, 1998, p. 169).
O caráter constitutivo da fala, do brincar e das interações atua na formação das funções
psicológicas superiores, levando a criança a avançar em seu processo de desenvolvimento. As situações
concretas, mediadas pela fala, pelo outro social e pelo brinquedo, vão se apresentando à criança e
já chegam repletas de significados. O processo de compreensão e reconstrução do novo vai sendo
internalizado e ressignificado no universo infantil. Nessa concepção, a criança não é simples produto
de situações criadas pelas outras gerações: ao contrário, ela está sempre de corpo inteiro, transformando
as circunstâncias e sendo por elas transformada. No ato da fala, a criança vai se conhecendo e se
desdobrando em novas possibilidades. Cumpre lembrar que, na orientação vygostkiana, todas as funções
no desenvolvimento começam no nível social e depois passam para o nível individual. Utilizando as
palavras do autor, “todas as funções superiores originam-se das relações reais entre indivíduos humanos”
(p. 164).
A fala das pessoas ao redor da criança é, ao mesmo tempo, social, instrumental e produtora (Pino,
1995, p. 31). Ela é social não só porque garante a comunicação entre pares, mas por ter algum significado
corrente e constante, sendo, portanto, partilhável. É instrumental por servir de guia e predeterminante para
26 Essa talvez seja a discussão mais completa realizada pelo autor, quando articula sua contestação, ao lugar instrumental e secundário dado à linguagem no desenvolvimento humano, no livro A linguagem e o pensamento da criança (1924/86). Posteriormente, o que escreverá como introdução a uma tradução torna-se mote e parte de sua obra mais promissora, o livro Pensamento e linguagem. Sugerimos a leitura completa do texto original, no Volume II – “Obras escogidas” (1982/93).27 A temática já foi largamente explorada, em Duarte (2000), Vigotski e o aprender a aprender, entre outros.1
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os caminhos pelos quais o desenvolvimento se dará. Mas, enquanto se move por esse caminho definido e
pré-traçado por seus outros sociais, a criança pensa (é produtora), da maneira que é possível ao seu nível de
desenvolvimento intelectual (cognitivo) e vai ao, mesmo tempo, produzindo novas formas de expressão.28
Tanto as ferramentas (palavras) produzidas na realização do ato da fala quanto o produto resultante
(o falado, o discurso) são socializáveis; isso significa que podem voltar ao coletivo e ser usados por qualquer
outro falante com uma história cultural próxima. “Ao mesmo tempo que remete ao seu autor, prenuncia
uma certa modalidade da ação da qual é portador. Esta qualidade do instrumento técnico, como de toda obra
humana, permite a sua socialização: tanto do seu uso (fazer), quanto da idéia que ele encerra (saber)” (Pino,
1995, p. 31-32).
O adulto, com a ajuda de comunicação verbal, pode tentar determinar o caminho através do qual o
processo de generalização prosseguirá no desenvolvimento da criança. Os instrumentos semióticos – a fala,
as conversas, as normas, as argumentações – buscam estabelecer o ponto de chegada desse caminho, isto é,
a generalização a ser obtida, mas os adultos não podem transferir seu modo de raciocinar para as crianças. A
criança percebe os significados das palavras do adulto, mas não pode adotar o modo de raciocinar dele; ela
constrói o seu próprio.
A proliferação e a transferência do significado das palavras são dadas pelas pessoas que
cercam a criança, no processo de mediação semiótica (fala) e técnica (discurso), usando “palavras”,
criando “discursos”, conferindo e se dando conta de outros reais possíveis, de outras formas de existência. A
criança pode chegar a um produto, que é semelhante ao dos adultos, porém obtido via operações intelectuais
completamente diferentes e conseguido através de meios de raciocínio singulares. (Vygotsky, 1931, p.
258). A palavra dita dá outra dimensão ao real e se torna comunicável, pensável, interpretável. Usando o
nome das coisas, compartilha-se a sua existência e desdobra-se a mesma (eu conheço e você também, por
isso posso nomeá-la). Com as palavras, afetamos o comportamento do outro e somos por ele afetados.
Transformamos a ação do outro e nos transformamos pelo discurso.
Brinquedo e Brincar no Processo de Desenvolvimento
De acordo com Vygotsky, o brinquedo serve como referência dos valores das gerações anteriores
28 Smolka (1995) nos relembra a preocupação de Vygotsky de cobrar da Psicologia maiores investigações sobre o pensamento verbal, a atividade mental e a fala: “We need to clarify the functional role of verbal meaning in the act of thinking” (1987, p. 249, em Smolka, p. 15). 1
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que o produziram, tendo papel fundamental na construção/produção da realidade da criança. Mediada
pelo brinquedo, a criança apreende e age no mundo social, construindo sua própria história de vida e de
conhecimento. A criança utiliza o brinquedo como orientador externo, que acaba por produzir
movimentos de transição no seu próprio processo de desenvolvimento.
Para Vygotsky (1987), por intermédio do brinquedo, a criança passa a lidar com diferentes
percepções e significados relacionados com objetos, ações e conceitos, que ela ainda não domina, mas
já fazem parte do conhecimento de seus outros sociais. Em momentos de brincadeira, ações, objetos e
imagens mentais, construídos na vida de relação, servem de transição entre as restrições reais do período
da infância e as situações apreciadas do mundo do adulto, transformando o que é apreciado e desejado
em realizações de sonhos e fantasias. “Uma criança não se comporta de forma puramente simbólica
no brinquedo; ao invés disso, ela quer e realiza seus desejos, permitindo que as categorias básicas da
realidade passem através de sua experiência” (Vygotsky, 1987, p. 114).
Segundo Vygotsky (1998), a primeira manifestação da imaginação da criança é um novo processo
psicológico, que tem origem em situações reais, concretas e imediatas de interação. O brinquedo envolve
a criança num mundo imaginário e, por meio dele, ela experimenta tendências irrealizáveis, criando para
isso uma situação imaginária. “A criança ao querer realizar seus desejos; ao pensar, age. As ações internas
ou externas são inseparáveis: a imaginação, a interpretação e a vontade são processos internos conduzidos
pela ação externa” (idem, p. 114).
Na brincadeira espontânea, a criança utiliza, de maneira prazerosa, sua capacidade de separar
o significado do objeto, sem dar-se conta do que está fazendo. Mais adiante o brinquedo lhe fornecerá
a possibilidade de transição entre o pensamento da situação concreta e imediata para uma situação
imaginária, ou seja, ele garante a passagem de um pensamento puramente situacional, característico da
primeira infância, a pensamentos menos sincréticos e confusos, mais próximos aos do adulto, que podem
ser totalmente desvinculados de situações reais.
Buscando uma síntese
Neste livro de muitos saberes sobre a Infância, a intenção central de nosso capítulo foi apontar como
as abordagens clássicas em Psicologia do Desenvolvimento, que estudam a pequena infância, podem ser
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“Quero ensinar as crianças, elas ainda têm olhos encantados.”
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interpretadas como interlocutoras da Infância e das outras disciplinas que estudam o cotidiano das crianças,
principalmente quando dedicadas à análise da relação mãe-bebê, criança-criança e professora-criança.
Inicialmente, identificamos duas tendências teóricas e as acusamos de serem responsáveis pela “lacuna”
existente por muitos anos nos estudos das relações sociais entre crianças de pouca idade, bem como
a inexistência de investigações sobre a importância dos aspectos sociais nos primeiros anos de vida.
Para nós, as abordagens teóricas de John Bowlby e Jean Piaget, apesar de laboriosamente construídas e
incontestavelmente marcantes nas pesquisas em Psicologia da Infância, inclusive dos dias de hoje, deixam
de registrar a riqueza e a multiplicidade da vida de relações da criança, que existe desde seu nascimento,
em ambientes sociais múltiplos, e, mesmo quando as reconhecem, desprezam o fato de o ambiente físico e
social também se modificar à medida que a criança cresce e se transforma como sujeito social singular.
Vimos em outros autores – Henri Wallon e Lev Vygotsky – a possibilidade de novos postulados
que abrem a perspectiva da primazia do “social” no desenvolvimento humano, “social” como algo que
acontece em ambientes socioculturais estruturados, com específicas formas de relações e significações
próprias a cada cultura (Vasconcellos, 2002).
Vygotsky e Wallon propõem, cada um ao seu modo, um novo paradigma de estudo do psiquismo
humano, a partir do materialismo histórico. Ambos consideram que o desenvolvimento se dá no todo,
não cabendo a fragmentação do sujeito. Contrariamente aos enfoques mecanicistas, reducionistas e
associacionistas da época, esses autores postulam um enfoque qualitativo e dinâmico do psiquismo
humano.
Tanto um quanto o outro criticam a incapacidade do que denominam “psicologia tradicional”,
denotativa de uma visão hierarquizada e organizada das condutas humanas, e escolhem valorizar a
pluralidade de formas de ser das pessoas – das crianças em particular. Outro ponto comum enfatizado
por ambos é a importância da gênese social no ato de conhecer e a natureza mediadora do contexto e das
condições histórico-culturais, que tornam possível o processo de desenvolvimento do sujeito-criança e da
formação de suas funções psicológicas. A criança é vista como ser ativo e interativo, que vai construindo
formas singulares de conhecer e vincular ao seu desenvolvimento o que ocorre em contextos culturais
específicos (Vasconcellos, 1996).
Abandonamos com Wallon e Vygotsky a necessidade de perseguir sistemas estruturais universais
e reducionistas presentes na compreensão das funções e processos de desenvolvimento da criança.
Ganhamos com eles análises e discussões diversas a respeito da infância, do brincar, da linguagem, da
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história, do social e da cultura, e, principalmente, suas idéias de atividade semiótica, com significação
para o outro, antes de ter significação para si. A Psicologia que buscamos pensa não apenas a unidade
integrativa e a organização do psiquismo e das condutas, mas também o que as diferencia internamente
e as relações que provoca entre seus componentes. O enfoque desenvolvimentista almeja, desde sempre,
descrever e compreender não só as relações e contradições entre o indivíduo e o mundo, mas sobretudo
as contradições internas de um mesmo sujeito e as ações, também contraditórias, de um mesmo indivíduo
sobre o mundo, sobre o outro e sobre si mesmo (Vasconcellos, 2002).
Esse enfoque comum leva Wallon e Vygotsky a adotar posições muito próximas sobre muitos
assuntos, mesmo que tais assuntos tenham importância diferenciada em cada uma de suas obras.
Enfatizamos a preocupação comum de Wallon e de Vygotsky em promover um enfoque qualitativo
e dinâmico do psiquismo e do seu desenvolvimento, impedindo a Psicologia e a Educação de separar
pensamento e afeto, concebendo-os como resultante de dois processos de desenvolvimento independentes.
Esses autores nos obrigam a pensar tais relações como interdependentes, como o são os desenvolvimentos
das crianças, dos adultos e das sociedades.
Por isso, presente nos dois autores, está a afirmação de que os processos afetivos, intelectuais
e socioculturais formam uma unidade – não uma unidade estática e invariável, mas uma unidade
que se modifica, sendo que tais mudanças garantem a importância do conjunto do desenvolvimento
psíquico da criança. Vygotsky e Wallon têm concepções comuns quanto à importância da relação entre
desenvolvimento intelectual e cognitivo, por um lado, e desenvolvimento afetivo e subjetivo, por outro,
tese que nos convida a pensar não apenas em sua unidade e em suas relações, mas também que essas
relações nunca são constantes, que elas se desenvolvem, se transformam durante a atividade e a história
das crianças e seu entorno sociocultural. Em outras palavras, eles nos convidam a melhor discutir a
relação entre desenvolvimento intelectual e cognitivo e desenvolvimento afetivo e subjetividade, tornando
o próprio desenvolvimento objeto de diferentes zonas proximais que se constituem, se solicitam e se
completam umas às outras (Rochex, 1999).
Somos firmes na possibilidade de estabelecer conexões claras e explícitas entre as teorias que
insistimos em adotar e que constituem a especificidade de uma reflexão teórica sobre a Infância e as
crianças em desenvolvimento. Nós as entendemos como sujeitos psicológicos emergentes das interações
sociais as quais modificaram pelo simples existir. Privilegiamos compreender a história cultural da
humanidade como vinculadora de uma orientação centrífuga às atividades das crianças, que, em reação a
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esse movimento, construirão um outro, no sentido inverso (orientação centrípeta), constituindo-se como
sujeitos únicos, que sofrem a ação do meio, mas, ao mesmo tempo, agem nele, como sujeitos dessa mesma
história.
Revisitando essa longa história, verificamos que a Infância está no centro do pensamento da
Psicologia há mais de um século. Muitos foram os caminhos e, portanto, também os descaminhos e erros
cometidos nessa trajetória, o que expõe a Psicologia da Infância, mais que qualquer outra ciência, às
críticas de suas jovens parceiras na (re)descoberta da Infância.
Precisamos pensar, compreender e criar formas entender e interpretar o ser humano histórico, seu
processo de desenvolvimento, e de estar no mundo, ao mesmo tempo que analisamos, de forma crítica, as
ciências a ele dedicadas. Entendemos que os conceitos que vão sendo reconstruídos no interior das teorias
passam a interferir diretamente no comportamento das pessoas, nas premissas institucionais, alterando
interesses culturais, sociopolíticos e econômicos de contextos sociais mais amplos (Vasconcellos, 2006).
Mais que paradigmas rivais, que competem entre si, os capítulos que compõem este livro expandem
e apontam espaços de diálogo entre áreas do conhecimento sobre/da Infância, visando contribuir para
a construção de um mundo onde os fenômenos hoje associados a ela, como as trágedias da fome, das
doenças, do tráfico de crianças e da pedofilia, ou qualquer outra forma de violência contra a criança e suas
famílias, possam ser eliminados de nossa história. Temos por compromisso comum situar a Infância no
centro das reflexões das Ciências do Homem.
Esse desafio conceitual é um empreendimento ético e político, que atravessa as práticas sociais
influenciadas pelas diferentes concepções teóricas aqui esboçadas. Iniciamos um diálogo, ao qual
pretendemos dar prosseguimento em outros fóruns. Convidamos os demais autores a investir nesse caminho.
Acreditamos que é esse desafio de impedir toda e qualquer simplificação e redução na forma
de se pensar o ser humano e a(s) ciência(s) a ele dedicadas, que têm inspirado nosso fazer psicológico.
Simultaneamente, as discussões teóricas das Ciências Humanas atravessam as práticas sociais influenciadas
pelas perspectivas éticas e políticas das diferentes concepções teóricas de desenvolvimento humano.
Portanto, enquanto estudiosos da Infância precisamos construir novos patamares complementares
de compreensão, pois quando os paradigmas disputam entre si a hegemonia do conhecimento das
peculiaridades da Infância, são as crianças que perdem e com elas perdemos todos nós como sociedade.
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