25 ago - revista do pÚblico
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PÚBLICO, DOMINGO 25 AGOSTO 2013
ÁLVARO SIZA “O TEMPO É UM GRANDE ARQUITECTO”
2 | Domingo 25 Agosto 2013 | 3
ENRIC VIVES-RUBIO
JOSÉ SARMENTO MATOS
LANCE ROSENFIELD
Fotografia de capa: Fernando Veludo / NFactos
Quando há eleições autárquicas, poucos são os que em Ourique ficam em casa. A quarta reportagem da série Cinco Terras, Cinco Retratos
REVIS
TA 2
ÍNDI
CE
Directora Bárbara Reis Editoras Francisca Gorjão
Henriques [email protected], Paula Barreiros paula.
[email protected] Copydesk Rita Pimenta
Design Mark Porter e Simon Esterson Directora de Arte Sónia Matos Designers Helena Fernandes,
Sandra Silva Email [email protected]
Este suplemento faz parte integrante
do Público e não pode ser vendido separadamente
FICHA TÉCNICA
04 IMAGEM/PALAVRA Bárbara Reis
Guerra — A Síria como nunca a vimos
Rita Pimenta
Ambição — Um sonho fácil de explorar
08 ESCOLHASUm tributo à criadora Elsa Schiaparelli
para ver no MUDE: Schiap Shock. O
excesso dos fi lmes de Bollywood passa
também para a música, como comprova
a compilação de CD Rough Guide to
Psychedelic Bollywood. A escritora
britânica Zadie Smith dá-nos mais uma
dose de ironia com NW. Os 35 retratos
de Julia Margaret Cameron são 35 janelas
abertas para a Inglaterra vitoriana — uma
exposição para conhecer melhor uma
pioneira da fotografi a
12 ÁLVARO SIZA A 25 de Agosto de 1988, um violento
incêndio deixava o Chiado em escombros.
Um mês depois, Álvaro Siza era convidado
para desenhar o projecto de recuperação.
Tinha já obras em Berlim e Haia, e o
prestígio a subir na proporção de uma
capacidade inventiva e introspectiva sem
paralelo na arquitectura contemporânea.
Entrevista de Jorge Figueira
33 PERSONAGENS DE FICÇÃOAngela Merkel. Por Rui Cardoso Martins
34 CRÓNICA URBANAÀ procura de Almada, em vários locais de
Lisboa
CRÓNICASJosé Diogo Quintela
Tatuagem mandatória 6Paulo Varela Gomes
Obra e imagem 8Ângelo Kalaf
BrightBox 9Valter Hugo Mae
Ser terrível 10Sérgio B. Gomes
O reencontro 11Alexandra Lucas Coelho
Azul royal 31Daniel Sampaio
Viagens com adolescentes 32Nuno Pacheco
Um canto pelo cante 32
24Quem faz a estrela de Seguro. De forma silenciosa, o líder do PS mudou o funcionamento da direcção do partido, instalando uma rede de conselheiros
À espera do pôr do sol. Os drive ins fazem 80 anos e estão a passar momentos difíceis
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O “desejo profundo de concretizar alguma coisa”. Esta é uma das definições inocentes da palavra “ambição”, a que equivalem “aspiração”, “pretensão” e “sonho”. Há dicionários que lhe atribuem uma carga mais “pecaminosa”, como “desejo veemente de riqueza, honras ou glórias” e “desejo ardente de poder, fortuna, sucesso”. São os mesmos que escolhem os sinónimos “cobiça” e “avidez”. Para clarificar a
ideia, registam: “A ambição levou-o a cometer algumas loucuras.”Pensamento semelhante terá ocorrido a quem tomou conhecimento do que aconteceu a Moritz Erhardt, o estagiário alemão do Bank of America, de 21 anos, que foi encontrado morto na casa de banho da residência onde vivia em Londres, a 15 de Agosto. Por “ambição” e/ou por “exploração”, terá trabalhado 72 horas seguidas.
“Exploração” significa “abuso de boa-fé de outrem para auferir benefícios”. A dúvida sobre o peso de cada um dos substantivos (“ambição”/”exploração”) no destino do jovem será difícil de esclarecer.Noticiário no PÚBLICO: “Afirmava ser ‘altamente competitivo e de natureza ambiciosa’ (…). A organização britânica Finance Interns utiliza a palavra ‘escravatura’ para descrever a forma como
os jovens são tratados quando entram em algumas empresas do mundo financeiro.”O bem-sucedido Zeinal Bava, que se tornou CEO da PT em 2008 (na altura, o presidente executivo mais jovem dos operadores históricos europeus), dizia nas reuniões: “Não pedimos desculpas por ter ambição, pedimos desculpas quando falhamos.” Lamentavelmente, Moritz Erhardt já não corre o risco de falhar. Rita Pimenta
AMBIÇÃOUM SONHO FÁCIL DE EXPLORAR
IMAG
EMPA
LAVR
AGUERRA E
sta terça-feira, alguma coisa matou cente-
nas de civis na Síria. Não se sabe exacta-
mente o quê. Todos suspeitam de armas
químicas — algo sem cor, sem cheio, talvez
sarin na forma de gás diluído, um neurotó-
xico que se espalha pelo ar a grande velo-
cidade e quase não deixa rasto.
O sarin, que actua sobre o sistema nervoso, é
500 vezes mais potente do que o cianeto, bastam
uns miligramas para matar. A morte pode ser rápi-
da e pode ser longa, mas é sempre agonizante.
É difícil olhar para estas fotografi as. Talvez mais
ainda para os vídeos que amadores puseram a cir-
cular na Internet. Sem pensar, de olhos meio fe-
chados, vamos empurrando a barra de navegação
no ecrã para que o fi lme avance e deixemos de ver
crianças em convulsões.
A serem verdadeiros os relatos, não víamos uma
coisa assim há 25 anos, pelo menos desde que Sa-
ddam Hussein matou milhares de civis na cidade
curda de Halabja em 1988.
Há imagens que chocam simplesmente. Outras
que transfi xam e anestesiam. Estas provocarão,
talvez, todas essas reacções, mas sobretudo in-
formam e mostram-nos a guerra na Síria como
nunca a tínhamos visto. Há claramente um antes
e um depois destas imagens. Bashar al-Assad, o
Presidente que há meses está cego, surdo e mu-
do, fi cará para sempre colado a elas. Não há nada
que possa vir a fazer no futuro capaz de apagar
esta mancha.
E a história está longe de acabar. De nada vale
o choque da “comunidade internacional”, uma
abstracção que já não se aplica à geopolítica de
hoje. O Conselho de Segurança, um fórum enve-
lhecido que espelha o mundo de 1945 e está longe
de refl ectir o mundo complexo e multipolar deste
século, reuniu-se de urgência, mas não conseguiu
sequer chegar ao consenso mais mínimo de pedir
um inquérito sobre o que aconteceu. O mais con-
creto que saiu de Nova Iorque foi um pedido de
“clarifi cação”. É de facto preciso perceber o que
aconteceu. Mas a Síria não vai colaborar e os obs-
táculos de hoje são os mesmos de há um ano. As
“linhas vermelhas” são sucessivamente ultrapas-
sadas, as provas de uso de armas químicas nunca
serão “irrefutáveis”, apenas “razoáveis”, a França
quer uma intervenção, mas não avança sozinha, e
os EUA não querem avançar. Caminhamos para o
fi m de 2013 e está tudo na mesma. Bárbara Reis
REUTERS
Mais de 1300 pessoas terão morrido no ataque desta terça-feira, nos arredores de Damasco. Entre as vítimas, há muitas criançasA SÍRIA COMO
NUNCA A VIMOS
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JOSÉ DIOGO QUINTELAÉ MUITO ISTO
TATUAGEM MANDATÓRIA
Estou de férias numa típica vilazinha pisca-
tória, daquelas que têm as casinhas todas
caiadas de branco. Uma seca, portanto. Não
há um graffi to mordaz, uma mensagem po-
lítica revolucionária, um tag radical. Não há
pichagens iluminadas, a costumeira men-
sagem anti-sistema, aquela iconoclastia singular
que habitualmente se vê em qualquer cidade do
mundo ocidental e que agita as massas ignaras e
adormecidas.
Se algum artista urbano calha estar de passagem e
intervenciona uma parede na vila, no dia seguinte,
pachorrentamente, aparece um saloio com uma
lata e uma trincha, para desfazer a obra artística. Só
porque — e reparem no egoísmo — “a casa é minha
e gosto mais sem desenhos”. No outro dia, assisti à
insolência de um destes campónios, que pergun-
tou: “Se um gaiato me rabisca a parede é uma pin-
tura, então quer dizer que se ma deitar abaixo é
escultura?” Sem dúvida, atrevimento ébrio, como
é apanágio nessas localidades.
Infelizmente, este egoísmo não é exclusivo destes
rústicos, que até teriam desculpa pela sua rusticida-
de. Não, encontra-se disseminado pelos sítios mais
sofi sticados. Por exemplo, na civilizada Roma. Quan-
do visitei o Vaticano, fi quei chocado ao perceber que
há uma pintura (até bem esgalhada, admito) no tecto
da Capela Sistina, mas não há desenho nenhum no
telhado da Capela Sistina. O Miguel Ângelo, artista
do regime, teve todas as condições para trabalhar.
Já ao graffi ter anónimo não foi permitido pichar
uma mensagem rebelde que fosse nas telhas. Típico
de uma instituição elitista como a Igreja Católica,
que deseja manter o povo na ignorância, seques-
trando a arte e limitando-lhe o acesso apenas aos
5 milhões de visitantes anuais do seu museu. Para
se poder apreciar arte, uma pessoa tem de esperar
na bicha e andar rodeado de turistas japoneses.
A arte está guetizada em galerias e museus onde
só vai quem a quer mesmo
ver, em vez de estar na rua,
nas paredes, à vista mesmo
de quem não está interessa-
do em cultivar-se e deve ser
educado à força.
O egoísmo em que vive-
mos não se refl ecte só nas
paredes que as pessoas se re-
cusam a partilhar. Também
se vê na forma possessiva
como encaram o seu pró-
prio corpo. Basta reparar
na quantidade de pessoas
que não têm uma única ta-
tuagem. Tal como graffi ti, a
tatuagem é uma expressão
de inconformismo e indivi-
dualidade num mundo de
carneirinhos. E a verdade é
que há muita gente com es-
paço livre na sua pele, que
guarda egoistamente. Uma
gorda, por exemplo. Tem metros e metros de chicha
onde podia ser desenhada uma rosa, uma borboleta
ou um coração atravessado por uma fl echinha, mas
prefere ter os refegos virgens, tirando eventuais va-
rizes. Defendo que um artista tatuador que deseje
manifestar uma expressão da sua individualidade,
mas já não tenha espaço livre no seu corpo para o
fazer, maniete a gorda de molde a usar a superfície
que, doutra forma, fi ca ao abandono. Se há epider-
me devoluta, ocupa-se.
Para a semana, debruçar-me-ei sobre outra ques-
tão que me atormenta: por que é que só quem vai
ao Jardim Zoológico pode ver elefantes? Os elefantes
deviam andar soltos em Lisboa, para serem vistos
por todos. Mesmo por quem não aprecia paquider-
mes. E quem quisesse devia poder grafi tá-los.
Assisti à insolência de um destes campónios: “Se um gaiato me rabisca a parede é uma pintura, então quer dizer que se ma deitar abaixo é escultura?”
IMAG
EMPA
LAVR
A
Rui Gaudêncio
38.70298N 9.16842WDoca de Alcântara
41.940168N 8.744093WVila Nova de Cerveira
GPS iPHONEFRESCO
9ª EDIÇÃO DOS ENCONTROS DE FOTOGRAFIA DE BAMAKOCURADORIA Michket Krifa e Laura Serani
PRESENT TENSE FOTOGRAFIAS DO SUL DA ÁFRICA
CURADORIA António Pinto Ribeiro
Fundação Calouste Gulbenkian
Av. de Berna, 45 A
terça a domingo 10:00 - 17:45 (até dia 1 de setembro)
www.proximofuturo.gulbenkian.pt
Coprodução Apoio
Foto
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8 | Domingo 25 Agosto 2013 | 2
A pintura cuja imagem se pode ver aqui é
a mais conhecida e mais reproduzida da
História. Contrariamente ao que pensaram
muitos intelectuais desde a invenção da
fotografi a, o número de reproduções não
se traduziu na desvalorização do original.
Pelo contrário, é com reverência crescente que
multidões se aglomeram para ver obras de arte
como esta, cujas reproduções circulam por toda
a parte.
Tornou-se obsoleta a regulamentação de protec-
ção da propriedade das imagens das obras de arte
que vigora ainda em muitos países, entre os quais o
nosso. Não há já qual-
quer razão válida pa-
ra impedir as pessoas
de fazerem imagens
nos museus (desde
que não afectem con-
dições de luminosida-
de ou temperatura e
não incomodem os
visitantes), nem tão-
pouco para restringir
a divulgação de ima-
gens. Isso mesmo tem
sido compreendido
por museus como a
National Gallery e a
Tate, de Londres, o Metropolitan e o Museum Of
Modern Art, de Nova Iorque, os Uffi zi, de Florença,
o Rijksmuseum, de Roterdão, o Hermitage, de Pe-
tersburgo, e muitíssimos outros, num total de mais
de cento e cinquenta, que colaboram com a Google
e os Wikimedia no Projecto Google Art, cujo objec-
tivo fi nal é pôr à disposição
dos utilizadores da Internet
milhares de obras de arte
das suas colecções em ima-
gens de alta defi nição. Estes
museus, e aqueles que, co-
mo o Louvre, se envolveram
noutros projectos do mesmo
tipo, compreenderam tam-
bém que a disponibilização
das imagens não lhes retira
visitantes, muito pelo con-
trário.
Continua o debate sobre
os problemas legais relativos
aos direitos de autor de foto-
grafi as de obras de escultura
ou arquitectura, em relação às quais o papel do
fotógrafo tem importância, por não envolverem
apenas o domínio tecnológico da fotografi a, como
sucede com as imagens de obras a duas dimensões.
Este debate será ultrapassado assim que se vulga-
rizarem imagens em movimento. Mas, com esta
excepção, os problemas ainda existentes derivam
de concepções restritivas do domínio público que
estão condenadas a soçobrar.
Tornou-se possível o acesso de virtualmente to-
das as pessoas ao “museu imaginário” teorizado
por André Malraux nos anos de 1960, quer dizer,
o acesso em imagem a todas as obras de todas as
épocas e lugares. Os progressistas interpretarão
este facto como um triunfo da “democracia”. Os
reaccionários como uma confi rmação da unicida-
de da obra de arte. É possível que tenham ambos
razão.
PAULO VARELA GOMESCARTAS DE VER
OBRA E IMAGEM
Não há já qualquer razão válida para impedir as pessoas de fazerem imagens nos museus
O peso de quase um século passado sobre a rivalidade vibrante entre Coco Chanel e Elsa Schiaparelli parece determinar que quem acabou mais esquecida foi Schiaparelli. O seu nome não é Chanel, não ecoa nas prateleiras das perfumarias nem nas referências dos mais desligados dessa coisa indistinta que é o “mundo da moda”. Schiaparelli não ficou com casa nem um kaiser a tomar conta dela, como a maison Chanel e o seu “cão de guarda” Karl Lagerfeld. Mas Schiaparelli ressuscitou — ou, melhor dizendo, a maison Schiaparelli renasceu das cinzas, quase 60 anos depois do seu encerramento. Em 2012, já com a casa de moda nas mãos do empresário Diego Della Valle (proprietário da Tod’s, entre outras marcas), o Museu Metropolitan de Nova Iorque instalava a sua exposição Schiaparelli and Prada: Impossible Conversations e cerca de 340 mil pessoas foram ver o que era, afinal, o trabalho desta mulher cujo atelier foi descrito por Salvador Dali como “o coração pulsante da Paris
VEJA
ISTO
(1993), de Marc Newson, um aperitivo surrealista para o espólio do Mude com apenas quatro coordenados e três acessórios — um dos quais a carteira Straeten Lite, desenhada por Schiap e Salvador Dali. E fazendo uma ponte para o presente, está um coordenado geometricamente colorido de Lacroix: vestido e casaco em escadinha de crepe de lã desenhado em 1991 a conversar com as peças da década de 1930 e 40 da criadora de moda italiana. Schiap (1890-1973) inspirou e foi inspirada por Dali, Giacometti, Jean Cocteau ou Man Ray. Pôs as mulheres de calções, desenhou saias-lagosta com humor e um piscar de olho à corrente surrealista dos amigos, foi uma pioneira nestas coisas do vestir que dizem tanto sobre o tempo em que vivemos ou como vamos viver. “Elsa é uma esfinge sagrada que nunca cessará de nos fazer questionar as coisas, oferecendo-nos enigmas à laia de respostas”, disse Lacroix sobre Schiap. Algumas pistas estão no Mude. Joana Amaral Cardoso
Schiap ShockMUDEAté ao final de Outubro de 2013De terça a domingo das 10h às 18h, entrada livreR. Augusta, 24, [email protected]
EXPOSIÇÃOBRINCAR AOS CLÁSSICOS COM UM TOQUE SURREALISTA
surrealista”. A arte, sempre ela, foi o ponto de partida para Schiap, como gostava de ser chamada. E a cor, as formas arrojadas e a surpresa eram alguns dos seus traços dominantes, que depois viriam a influenciar tudo — de Yves Saint-Laurent a Christian Lacroix, que fez a primeira colecção Schiaparelli este Verão, recusando a venda de qualquer um dos seus 18 coordenados (o que cada modelo apresenta na passerelle). Portanto, e cheguemos finalmente ao que podemos ver hoje desta mulher (e deste homem, monsieur Lacroix, destituído da sua própria casa de moda há quatro anos) aqui em Portugal. A Colecção Francisco Capelo, que alimenta grande parte do espólio do Museu do Design e da Moda (Mude), em Lisboa, tem algumas peças fundamentais de Schiaparelli e fez, neste Verão, um pequeno núcleo expositivo especial em jeito de tributo.O núcleo expositivo Schiap Shock estava na semana passada rodeado de turistas, um bloco cor-de-rosa mesmo ao pé da cadeira Orgone
ENRIC VIVES-RUBIO
2 | Domingo 25 Agosto 2013 | 9
Rough Guide to Psychedelic BollywoodVáriosWorld Music Network/Megamúsica17,90€
Da mesma forma que Bollywood é uma corruptela de Hollywood — B de Bombaim, epicentro da indústria cinematográfica indiana pós-independência —, também o cinema ali germinado revela há muito um deturpado deslumbramento com as grandes produções norte-americanas. Após a Partição (divisão, em 1947, do subcontinente em Índia e Paquistão), o florescimento de Bollywood não se revestiria de acirrados sentimentos anticolonialistas, antes começaria uma lenta contaminação de valores ocidentais que, no entanto, nunca teriam poder para escorraçar ideias basilares e recorrentes como a reencarnação e o sobrenatural, o heroísmo na pobreza, a meteórica ascensão social, o romantismo amoroso cravejado de ingenuidade e a profusão de números musicais ao longo dos filmes.Aos poucos, também a música cantada e dançada em cada película se foi deixando penetrar pelas
sonoridades norte-americanas. Sobretudo a partir da década de 70, quando o funk e o rock se tornaram a fórmula ideal para ilustrar cenas de perseguição e mistério de uma produção fascinada com os filmes de acção de James Bond e afins. Só que estas influências, mais uma vez, não chegariam para eliminar traços vincados da música local como as cordas enlevadas ou o registo hiper-agudo e hipnótico das duas cantoras fetiche de Bollywood nos anos 70 — as irmãs Asha Bhosle e Lata Mangeshkar. As duas dominavam quase por inteiro as vozes que se ouvia no grande ecrã emprestadas aos corpos das actrizes, ao mesmo tempo que Mohd Rafi se encarregava do correspondente no sector masculino.Esta chegada do psicadelismo via rock a Bollywood funcionava como medida de reciprocidade, uma vez que fora o sitar e a cultura indiana a promover em grande parte (e com o alto patrocínio de Ravi Shankar) o psicadelismo
em terras anglófonas, nomeadamente através de Beatles e Rolling Stones. R. D. Burman, influente autor de bandas sonoras, e o duo Kalyanji Anandji, entusiasta de James Brown, garantiam que esta adopção do funk-rock não se limitava a filmes de segunda linha e alastrava aos grandes sucessos comerciais (Don, Bobby, Apradh, etc.).O fascinante em Rough Guide to Psychedelic Bollywood, extensível a muitos outros temas de bandas sonoras do género, é que o excesso que marca a cinematografia indiana e a coloca num plano de suspensão da realidade (em que a ligação ao quotidiano se resume a uma fina película) persevera na música. Bhosle e Mangeshkar estão lá para isso: o carnal e sufocante das guitarras funk que aqui ouvimos tem como espelho estas vozes diáfanas e planantes. E esse pode ser talvez o mais perfeito retrato da Índia: a sedução de um contraste só equivalente no exagero. Gonçalo Frota OU
ÇAIST
OCDA SEDUÇÃO NO EXAGERO
O que se faz quando não temos electricidade
em casa? Acabo de chegar a Lisboa e, para
minha surpresa, a EDP cortou-me o forne-
cimento de energia. Depois de correr todas
as divisões da casa a ligar e desligar inter-
ruptores, certifi cando-me de que o apagão
geral não foi provocado por um curto-circuito,
peguei no telefone. Como já passava das 7 da tar-
de, ninguém da assistência técnica iria deslocar-se
para me resolver o problema. Ainda assim, pensei
que aquele seria o procedimento correcto. Quanto
mais não fosse, precisava de ouvir alguém explicar-
me o porquê de um corte de eletricidade quando
acredito ser um cliente exemplar: uso lâmpadas
económicas e pago a conta da luz via débito di-
recto, ou seja, sem atrasos. Mas à medida que ia
seguindo as instruções da linha de clientes, o meu
pensamento viajava até Angola, onde os cortes de
energia continuam a ser uma realidade comum.
A energia eléctrica é — mais do que a água ca-
nalizada — o bem mais desejado em África. Há
muito que já nos acostumámos com a escassez
de água nas torneiras. Resolveu-se a questão com
os tanques de zinco, bidões e demais recipientes
para o efeito, religiosamente guardados no fun-
do dos nossos quintais. O acto de tomar banho
de caneca tornou-se tão natural que não me lem-
bro de ver ninguém lamentar-se desta realidade,
ao contrário da falta de luz.
Nunca nos acostumámos ao
transtorno e ao stress provo-
cados pelo corte de energia
e, se nos fosse dado a esco-
lher entre a água canaliza-
da e a eletricidade, não du-
vido que a maioria optaria
por esta última, ainda que
a primeira seja o bem mais
essencial. Até porque os cor-
tes de energia também têm
consequências para a saúde
e para o ambiente, factores
que não podem ser negli-
genciados. O querosene,
por exemplo, representa
um risco grave para a saúde
e todos sabemos que é a maior fonte de energia
em África e também uma das maiores causas de
incêndios domésticos.
Ainda tenho frescas na memória as vezes que a
minha mãe me mandava levar ou pegar produtos
armazenados na arca frigorífi ca de determinada
vizinha, que tinha um gerador eléctrico, para nossa
salvação. É claro que podia aproveitar a ocasião e
romantizar essa questão, apontando para o sen-
tido de entreajuda comunitária provocado pelos
cortes de energia, ou como nos juntávamos todos
à volta da chama do candeeiro a contar estórias do
antigamente. A verdade, porém, é que não existe
nada de belo a assinalar.
De assinalar são iniciativas privadas como a do
empresário Gaurav Manchanda, que se juntou à
Coca-Cola para distribuir no continente a Bright-
Box, um sistema de energia solar portátil, cujo valor
ronda os 80 dólares (60 euros), desenhado para uso
doméstico e com a capacidade de facilitar a vida de
muitas famílias e pequenos negócios ao longo do
vasto continente africano. Como a EDP só me vai en-
viar um técnico daqui a dois dias, bem que me daria
jeito ter uma dessas caixas luminosas à mão.
KALAF ÂNGELOESSE MAMBO
BRIGHTBOX
A energia eléctrica é — mais do que a água canalizada — o bem mais desejado em África
DR
10 | Domingo 25 Agosto 2013 | 2
Zadie Smith escreve como ninguém sobre as diferentes “fatias do multiverso”, o universo multicultural, multiétnico, de cidades como Londres. Depois de uma volta americana em On Beauty (e já foi há sete anos, tanto tempo), em NW volta a Londres e mostra estas diferentes camadas, acompanhando personagens nascidas e criadas num council estate na zona Noroeste da cidade. Este é o seu ambiente: é também o de White Teeth, que a escritora britânica (filha de mãe jamaicana e pai britânico) publicou aos 25 anos, com aclamação da crítica e grande sucesso comercial.NW começa com Leah, uma inglesa que trabalha numa ONG e que se envergonha com a honestidade do seu marido, Michel, um cabeleireiro franco-africano (Leah franze a testa ao ocasional uso de “I feel”, em vez de “I think”, “sinto”, em vez de “penso”, nota de que o inglês não é a língua materna de Michel). A sua melhor amiga, Natalie (tal como Smith de origem jamaicana), que Leah agora odeia, é casada com Frank De Angelis, fruto de um caso entre uma mãe italiana e um homem de Trinidad. E há ainda Nathan, a viver de esquemas como vender bilhetes no metro, e Felix, um dealer e viciado em recuperação.As quatro personagens-LE
IAIST
O
pivot nasceram e foram criadas em Caldwell, local imaginado onde as torres de apartamentos têm nomes de filósofos, que é no entanto ancorado numa zona bem real de Londres — Hampstead Heath, Kilburn. Definem-se, entretanto, pelo grau de distância: Natalie vive suficientemente longe dos caldies (como são chamados os habitantes do bairro social), Leah não consegue evitar o local apesar de estar já noutra esfera. Nathan está embrulhado em toda a malha local de crime e drogas, e Felix pensa que já saiu desta rede.Em NW, há quem do nada queira subir, evoluir (viver num sítio mais africano, menos caribenho), há quem tenha sempre tido tudo — incluindo “cor de café, aquelas sardas”. Há a pobreza, que alguns vêem como traço de carácter. Há quem, numa mudança de nome (também Zadie mudou, nasceu Sadie), passe a ter uma vida diferente, um quadro idílico — “A sua casa é perfeita, a sua mulher é perfeita este é um copo de prosecco perfeitamente fresco” — e há quem fique inebriado tanto do prosecco como por apenas estar ali, em Londres, a achar piada às mesmas coisas a que um banqueiro e uma advogada acham piada.Os retratos são vivos, as cenas têm o toque de
NWZadie SmithPenguin (a edição em português deverá sair em Outubro, pela D. Quixote)
LIVROA LONDRES IRÓNICA DE ZADIE SMITH
PEDRO CUNHA/ARQUIVO
Tenho andado a mudar para uma versão me-
nos simpática de mim. Compreendo que a
simpatia seja uma virtude da decência e da
dignidade, mas os simpáticos são sempre
vítimas dos oportunistas que, com duas fa-
las mansas, congeminam em cima da boa
vontade dos outros. Os simpáticos, quando aldra-
bados, costumam ser discretos. Saem de fi ninho.
Os oportunistas sabem disso. Ando, por isso, a sair
menos de fi ninho e a sacudir das costas um mundo
de gente a usar das minhas energias, sem qualquer
respeito e sem vergonha.
Compreendo hoje que muitos pensam que a pra-
ça pública confere ao indivíduo uma obrigação de
corresponder. Como se alguém que víssemos na
televisão se tornasse nosso funcionário num certo
sentido. Se o apanharmos a jeito, temos direito a
quase tudo. Os escritores, julgo que todos ou mui-
tos, eu, seguramente, vivem atazanados com quem
também quer escrever, publicar, aparecer, ser vis-
to, casar com o Lobo Antunes. Não há limite.
Recebo uma infi nidade de romances escritos à
pressa, poemas de quem descobriu os versos no
último verão ou peças de te-
atro inspiradas nas letras da
Britney Spears. Tudo me en-
viam, de todas as maneiras.
Tornou-se normal deixarem
textos para mim no super-
mercado de sempre, ou no
café, e não param de entrar
e-mails de quem até diz que
nunca me leu, que me acha
simpático, e que fez um cur-
so de escrita criativa com
não sei quem e isso resultou
em quinhentas páginas das
novas sombras cinzentas.
Querem aval, prefácios,
posfácios, coautorias, frases
para as capas, revisões, opi-
niões, ideias para grandes
começos e grandes fi nais,
querem apresentações, re-
comendações, editoras, que-
rem ser amigos íntimos de
quem tenha a possibilidade
de os revelar ao mundo co-
mo bons, inteligentes, inesquecíveis. Querem ser
famosos e ter muito sucesso. Do dia para a noite.
Perguntam: a tiragem de um livro de poesia é o
quê? Dez mil exemplares? Vinte mil? Quanto di-
nheiro posso ganhar com estes poemas acerca do
meu gatinho? Preciso de mudar de casa. Dizem.
As coisas descontrolam-se quando, qualquer que
seja a nossa resposta, nos ofendem sem pudor. Se
digo que não posso, não tenho tempo para ler, até
porque também gostaria de voltar à oportunidade de
ler livros escolhidos por mim, desses bons, sustenta-
dos por um editor no qual acredito, imediatamente
me chamam fi lho de todas as pessoas enjeitadas do
mundo. É pior do que ser algo triste. É uma misé-
ria intelectual, humana, uma mostra de que, sendo
gente, nem toda a gente está acima do meu querido
Crisóstomo, o meu cão. Com isto, sei melhor do que
nunca que mudei para um tipo muito menos bonito
do que era. Já acho alguns cães mais decentes do que
pessoas. Peço desculpa por isso. Mas, pelo desespe-
ro, não posso regressar a quem era.
VALTER HUGO MÃE
SER TERRÍVEL
Tornou-senormal deixarem textos para mim no supermercado de sempre, ou no café, e não param de entrar e-mails de quem até diz que nunca me leu
CASA DE PAPEL
mestre de Zadie Smith, aquele sentido de humor e capacidade de encontrar pequenas ironias, embora por vezes o ritmo stacatto pareça sacrificar fluidez. Talvez se sinta a falta de alguma coerência do conjunto — há uma ou outra volta um pouco inverosímil, e se é certo que a vida é feita de coisas inverosímeis, é bom que consigamos acreditar plenamente nelas quando as lemos num livro.NW não é um novo White Teeth, mas garante muitos bons momentos.Maria João Guimarães
2 | Domingo 25 Agosto 2013 | 11
Eu ia em direcção às abstracções frias de Hi-
roshi Sugimoto e ela regressava ao calor de
Arles. Preparava-me para ver como eram
esses mares nocturnos de horizontes verti-
cais numa das exposições dos Encontros de
Fotografi a que tenta convencer-nos de que
o preto e branco não está morto. E que há quem
queira continuar a criar com ele. A camisa colava-se
às costas e eu já suplicava por um ar condicionado
quando ela me disse que não valia a pena continuar
a andar. A tarde tinha começado. Era o período em
que Arles, Sul de França, entra num estado de so-
nolência, fotografi a incluída — uma pausa para fugir
do calor, para deixar de ver e de pensar. Olhei para
a entrada desiludido por ter batido com o nariz na
porta. E ela, num gesto de reconforto, disse que
valia a pena regressar mais tarde à penumbra das
fotografi as de Sugimoto. Dei meia volta e rumamos
à inclemência do Sol.
Enquanto atravessávamos um pequeno jardim
que deslumbrou Vincent van Gogh, trocámos meia
dúzia de frases de circunstância e revelámos ao que
vínhamos a Arles. Disse-me que era fotógrafa e que
orientava um workshop. E eu, por uma razão parva
qualquer, não lhe perguntei logo o nome. Só nos
apresentámos quando chegou o momento de ca-
minharmos em direcções opostas. “Darcy Padilla,
prazer em conhecer-te”. E fomos embora. Fiquei
com aquele nome a dançar
na cabeça. Sabia que já me
tinha cruzado com ele. Pedi
ajuda ao Google e descobri
que, afi nal, Darcy já tinha
estado comigo... através das
suas fotografi as.
Há uns meses descobri
o enorme talento que vive
dentro de si e que aplicou
no extraordinário ensaio
The Julie Project, um trabalho
que começou em 1993 com
a vontade de mostrar como
é que uma mulher pobre
convivia e lutava com a sida
nos EUA. Um trabalho que
durou 18 anos e que termi-
nou em Setembro de 2010,
com a morte de Julie. Com
ele, Darcy quis mostrar as
falácias dos discursos acer-
ca dos sistemas de saúde, da
pobreza, da sida, dos abusos
sexuais, drogas e álcool. The
Julie Project mostra como se
podem tornar tortuosos os
caminhos da vida. Mostra
como se pode morrer despojado de quase tudo
menos da amizade.
Antes de nos termos despedido, gostava de ter
dito a Darcy como admiro a perseverança, a lu-
cidez, a honestidade e a coragem da caminhada
que decidiu levar a cabo com Julie. Gostava de lhe
ter dito como é importante que as suas fotografi as
existam. Gostava de lhe ter dito como me emocio-
naram. Gostava de lhe ter dito que apesar de não
ter conseguido relacionar de imediato o seu nome
com as suas fotografi as, as suas fotografi as nunca
as esquecerei.
SÉRGIO B. GOMESARTE PHOTOGRAPHICA
O REENCONTRO
Descobri que, afinal, Darcy já tinha estado comigo... através das suas fotografias
a blogues.publico.pt/artephotographica
Julia Margaret CameronMetropolitan Museum of Art, Nova IorqueAté 5 de Janeiro de 2014
São 35 retratos que correspondem a 35 janelas abertas para a Inglaterra vitoriana, trocando os seus formalismos por uma certa excentricidade culta, a partir de alguns dos seus principais protagonistas: pintores, poetas, filósofos e cientistas. Uma elite intelectual que, no estúdio e nos salões da sua propriedade na ilha de Wight, se juntava a empregados da casa, vizinhos e familiares para formar uma imensa galeria — às vezes fotografados em nome próprio, outras transformados em figuras da literatura, como D. Quixote em madonnas saídas da pintura de Rafael ou em heróis arturianos. Em qualquer dos casos, posar para Julia Margaret Cameron era assunto sério, não só porque esta “amadora profissional” exigia muito dos modelos, mas sobretudo porque a fotografia que fazia, escrevem críticos e historiadores, se atrevia a espreitar para a alma do retratado.A exposição que o Museu Metropolitan de Nova Iorque lhe dedica junta duas colecções compradas em 1997 e 2005 — a Rubell e a Gilman — e centra-se em três corpos distintos do trabalho desta pioneira da fotografia, pouco apreciada na sua própria época, dominada por críticos que se entretiveram a ridicularizar as suas imagens intencionalmente imperfeitas, que resultavam de longos períodos de exposição e do uso de uma luz suave, o que, por vezes, fazia com que parecessem perder o foco.No módulo que inclui os retratos de homens, podemos encontrar o poeta Alfred Tennyson, um dos seus amigos mais próximos, o filósofo e escritor Thomas Carlyle e o cientista John Herschel. Na secção protagonizada pelas mulheres, são as vizinhas e familiares que ganham destaque, sobretudo Julia Jackson, a sua sobrinha favorita. Cameron, explica o Metropolitan na sua página
VEJA
ISTO
oficial, fez mais de 20 retratos de Julia, nunca como personagem literária ou mitológica. Para ela, a jovem que aqui aparece a desafiar a câmara, só com uma parte do rosto iluminada, como que suspensa, era a beleza no seu estado natural. A mesma beleza que Julia passará depois à sua filha, a escritora Virginia Woolf, que em 1926 lançaria o primeiro livro sobre as fotografias da sua tia-avó. Os retratos de Julia, como os de outra das suas sobrinhas, May Prinsep, que transforma à luz do poema Christabel de Coleridge, ou da criada Mary Hillier, que trocava muitas vezes a cozinha pelo estúdio da casa de Freshwater, na ilha, mostram até que ponto Cameron se interessava pelo que ficava além do visível, pela intensidade que resulta do que é verdadeiro, natural, em cada um dos seus retratados. Mesmo quando fazem parte, como no terceiro núcleo da exposição do Met, de uma série de encenações que, neste caso, se destinam a ilustrar um poema de Tennyson, Idylls of the King.Cameron (1815-1879), que recebeu a sua primeira câmara aos 48 anos, um presente de Natal da filha e do genro, aprendeu depressa. Nascida em Calcutá, numa família com ligações à aristocracia e com um avô materno que pertenceu à guarda pessoal de Luís XVI e que muito provavelmente foi amante de Maria Antonieta, levava uma vida confortável, rodeada de livros e artistas. Quando, depois de casada, se mudou para Inglaterra, o seu círculo de amigos passou a incluir alguns dos principais nomes do movimento pré-rafaelita — William Michael Rossetti, John Everett Millais e Edward Burne-Jones — cuja estética e temas são visíveis no seu trabalho fotográfico: 900 imagens feitas ao longo de pouco mais de uma década. Sensualidade e melancolia em retratos difíceis de esquecer. Lucinda Canelas
EXPOSIÇÃOJULIA E OS OUTROS EM 35 FOTOGRAFIAS
JULIA MARGARET CAMERON
JULIA MARGARET CAMERON
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A 25 de Agosto de 1988, um violento incêndio deixava o Chiado em escombros. A encomenda do projecto de recuperação chegou a Álvaro Siza um mês depois. Siza tinha já obras em Berlim e Haia, um projecto ganho em Veneza, e o prestígio a subir em proporção com uma capacidade inventiva e introspectiva sem paralelo na arquitectura contemporânea. Chegava a vez de Lisboa JORGE FIGUEIRA TEXTO FERNANDO VELUDO/NFACTOS FOTOGRAFIA
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Diz que está de férias, por se
encontrar calmamente no
atelier, em pleno Agosto,
com poucos colaboradores.
A sala de reuniões tem uma
mesa longa onde se senta,
no meio de papéis e livros,
sem protocolo. “Vamos fa-
lar de um projecto de que
não sei se lembra: o Chia-
do”, digo-lhe para abrir. Si-
za responde prontamente,
entrando no jogo: “Sim, é em Lisboa”.
A importância de Álvaro Siza Vieira para a
arquitectura portuguesa e contemporânea é
tão grande que mais vale não pensar nisso.
Mas impressiona sempre a argúcia que se ca-
mufl a no tom monocórdico e a disciplina que
não impede a ironia e o humor. A conversa
que tende naturalmente para as difi culdades
que se vivem em Portugal ou em Espanha,
onde Siza tem — ou tinha — muito trabalho,
é substituída pelo tema da recuperação do
Chiado, de que guarda boa memória, com bo-
as razões. Hoje, exactamente 25 anos depois
do incêndio, inaugura a exposição Chiado em
Detalhe no Espaço Chiado 8, dedicada ao seu
trabalho. É também publicado um livro com
o mesmo nome.
Sempre combativo, metodicamente com-
bativo, é bom ouvi-lo falar de uma obra que
visivelmente o deixa bem-disposto.
Queria dar-lhe os parabéns por esta comemoração a 25 de Agosto, que é a data do incêndio, mas onde também se comemora o início do enorme sucesso que foi a intervenção no Chiado. Depois de um inesperado convite do então presidente da Câmara Krus Abecasis, seguiu-se um processo que foi conturbado, que teve os seus momentos difíceis. Que balanço é que faz passados estes 25 anos?Bem, o que foi conturbado é o que acontece
em todos os projectos. Há difi culdades, há
obstruções. Neste caso, eu acho que correu
bastante bem. Não tenho uma recordação de
grandes incómodos, de grandes difi culdades,
porque houve um apoio grande por parte da
Câmara, dos vários presidentes. Mas, sobretu-
do, do primeiro presidente que, naturalmente,
era o que tinha a decisão fundamental a tomar.
O presidente Abecasis deu um apoio constante
e muito próximo. Criou, por exemplo, a meu
pedido, o gabinete de recuperação do Chiado,
onde foi convidado o engenheiro Pessanha
Viegas, uma excelente pessoa, já com a expe-
riência de Angra [do Heroísmo], depois do
terramoto. O presidente pôs esse gabinete a
depender directamente da presidência. Isso,
dada a urgência da acção, foi fundamental,
porque não havia os caminhos burocráticos.
Chamava-me ao gabinete várias vezes por
semana e dizia: “Ó menino, preciso de falar
contigo”. E, realmente, deu um apoio muito
bom. Depois, os outros presidentes também
deram. Felizmente não aconteceu aquilo que
acontece muitas vezes: quando há uma mu-
dança [governativa], muda tudo, não é só a
maioria política. De maneira que, do que me
recordo, é com satisfação. É claro que depois
também houve muitos problemas, mas a ideia
base, o que fi cou, foi a de um apoio muito
grande que era fundamental para uma obra
como aquela.
É interessante que em todas as declarações que faz depois de começar a trabalhar, desde o momento zero, assume com grande convicção a continuidade do desenho pombalino. Faz até uma teoria da necessidade dessa continuidade. Nunca lhe ocorreu, por exemplo, que no lugar dos edifícios que
estavam totalmente destruídos pudessem aparecer edifícios novos, tendo em conta, também, que se trata de uma zona mais híbrida do traçado pombalino?A hibridez deve-se à mudança da topografi a.
O traçado pombalino quando chega à encosta,
dos dois lados, hesita e, nalguns casos, nunca
se completa no seu sistema de relações com
a envolvente. E eu julgo que a parte mais im-
portante daquele trabalho era exactamente
a de procurar dar sentido ao encontro com
a topografi a difícil e estabelecer, ou nalguns
casos restabelecer, as relações com as zonas
envolventes.
O que é muito importante no Chiado é que
tudo passa por ali quando se vai para a par-
te alta da cidade, ou quando se desce. Mas
nunca tive essa tentação… O Chiado já não
é Baixa, já está numa dependência, numa
continuidade evidente. Mas tirando os dois
grandes edifícios, o Grandella e os Armazéns
do Chiado, a arquitectura, mesmo a feita no
princípio do século XX, é pombalina. E, por-
tanto, integra-se no que é a Baixa. E a Baixa,
para mim, é um grande edifício pré-fabricado
e assim foi feito.
Os elementos eram feitos fora de Lisboa
( janelas, guardas, enfi m, todos os elemen-
tos arquitectónicos) e trazidos à medida que
eram necessários para esta ou aquela unidade.
De maneira que é um enorme edifício pré-
fabricado, com uma grande unidade, de resto,
desenhada. Há, por exemplo, o desenho da
Rua do Carmo com todo o pormenor. E que
depois teve alterações, naturalmente. Mas as
alterações nunca retiraram o carácter e as ca-
racterísticas daquela arquitectura.
O que eu achava é que não fazia sentido,
num conjunto que é um grande projecto uni-
tário (porque dezoito edifícios, salvo erro,
fi caram danifi cados, destruídos), era meter
uma nova arquitectura. E, realmente, a prin-
cípio, houve polémica por causa disso. Mas
eu recebi a incumbência de fazer isso mesmo
[manter o traçado]. Quer dizer, foi uma deci-
são unânime da câmara que, na altura, tinha
vários partidos no poder. Foi uma sorte para
mim porque eu teria querido o mesmo, e da-
ria, com certeza, muita mais polémica do que
aquela que deu [caso a Câmara quisesse fazer
novo]. Acho que não era caso para isso, acho
que os arquitectos têm tanta oportunidade de
fazer o “moderno” na periferia das cidades
que não faz sentido essa ânsia em sítios onde
não interessa. Vejamos: se se constrói, numa
zona antiga, um edifício que tem um desem-
penho importante na cidade, é por natureza
— e a arquitectura não pode evitar isso — que
esse edifício se destaca, emerge e inclui uma
nova linguagem, eventualmente. Agora, se a
intervenção é numa célula de um tecido — e
neste caso é exactamente isso, embora fossem
dezoito edifícios — não faz sentido. Quer dizer,
é forçado. Eu acho que querer fazer algo de
muito especial numa coisa que por nature-
za não tem um uso, um programa [especial],
nunca dá bom resultado, ou raras vezes dá
bom resultado. Não estou a dizer mal. Há mo-
mentos históricos em que já não é a natureza
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do trabalho que empurra; o que está no ar
naquele momento empurra para qualquer
coisa de muito novo e muito fresco.
Desse ponto de vista, aquilo que estava no ar nessa altura era de facto um respeito e um regresso à história e a uma visão contextual. Digamos que, de alguma forma, o Siza também está a interpretar esse momento, nos anos oitenta?Mas isso nunca se perdeu. O peso da histó-
ria e a pressão da memória nunca desapare-
ceu, embora às vezes fosse dito que sim. A
Bauhaus não tinha a disciplina de História. E
o Corbusier no plano de Paris, no Plan Voisin,
fez tábua rasa. E Berlim, depois da guerra,
por outras razões, também. Mas, no fundo,
acaba por não acontecer isso. Eu julgo que
os próprios protagonistas, embora tivessem
esse desejo de ruptura — ainda que esse de-
sejo tenha uma base de sustentação real, não
é só da cabeça do arquitecto —, no fundo, no
desenrolar dos acontecimentos, de novo se ve-
zamentos que estão ali patentes e que, num
momento chave, conduziram àquele projecto
de vanguarda. Que tem por trás um cataclis-
mo que também é importante na análise dos
factos. Era mais rico do que qualquer um dos
outros, até na emoção das pessoas perante
aquele desastre.
Uma questão central no seu projecto é que não tendo o chamado cartulário pombalino desenhos de pormenorização das fachadas, teve de fazer um levantamento exaustivo daquilo que existia, que tinha sido feito ao longo do tempo por passagem geracional.Sim. Foi um levantamento, mas não foi só um
levantamento, nem podia ser. Porque pode-
se dizer que ao fi m dos anos que passaram
desde as primeiras construções, houve muitas
contaminações e não há uma resposta pura,
do ponto de vista de linguagem, como acon-
tece nos desenhos de conjunto, nos alçados
do traçado. Havia muita sobreposição porque
as coisas, sobretudo quando são mal tratadas,
rifi ca, como base de tudo, uma continuidade.
E eu acredito nisso na arquitectura. Mesmo
quando olho para um projecto mais especta-
cular, revolucionário, passado um tempo, ou
alguma refl exão, começa-se a ver que aquela
frescura tem razão de ser, que no fundo vai
buscar coisas que já estavam a caminho.
Até que ponto o facto de ter na altura experiências muitíssimo recentes em Berlim e em Haia, também no contexto daquilo que referia como sendo a “monotonia”, o trabalhar na “monotonia”, terá sido importante para a intervenção no Chiado?Não creio. As intervenções feitas, quer em
Berlim, quer em Haia, tendo outros aspec-
tos — por exemplo, em Haia era o tema da
concentração dos imigrantes, e em Berlim
também —, eram menos ricas do que o ca-
so do Chiado. Porquê? Porque o Chiado tem
um peso histórico. Aquela parte de Lisboa é
mais rica do que aquela parte de Berlim, ou
de Haia. Até pelos séculos, pelos muitos cru-
O presidente Abecasis deu um apoio constante e muito próximo.... Chamava-me ao gabinete várias vezes por semana e dizia: “Ó menino, preciso de falar contigo”
ARQUIVO DA CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA ARQUIVO DA CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA
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As ferragens anteriores ao incêndio e as que foram desenhadas por Siza
FOTOS: CHIADO EM DETALHE
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Foi preciso fazer uma viagem em torno de todas as interpretações e modificações feitas [desde as primeiras construções] e encontrar, não digo um lugar-comum, o que seria impossível, mas algo que sintetizasse, na sua influência, no carácter da arquitectura, o que tinha ligações com essa dinâmica passada
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não duram muito tempo e são substituídas.
Foi preciso fazer uma viagem em torno de to-
das as interpretações e modifi cações feitas e
encontrar, não digo um lugar-comum, o que
seria impossível, mas algo que sintetizasse,
na sua infl uência, no carácter da arquitectu-
ra, o que tinha ligações com o passado e com
essa dinâmica passada. Foi mais do que uma
selecção.
Além disso havia coisas forçosas que tinham
a ver com necessidades contemporâneas, com
regulamentos (por exemplo, o isolamento tér-
mico) que tiveram muita infl uência. Nesse as-
pecto, o que eu temia era que houvesse uma
obrigação de colocar vidro duplo, porque o
vidro duplo altera completamente a secção
das caixilharias e o espírito das caixilharias
tem ali um peso muito grande, como tem aqui
no Porto. Fiz duas janelas com uma caixa-de-
ar no meio e isso já garante o isolamento tér-
mico e acústico (um problema que também
apareceu em determinada altura) e esse prin-
cípio permite que o exterior seja a pura inter-
pretação do pombalino. A janela interior, que
é com vidro único, pouca aparência tem do
exterior (só dá um pouco mais de densidade
nos limites). Mas esse vidro até pode ser, em
caso de necessidade, duplo, porque o que dá
o carácter ao edifício é que se vê no primeiro
plano.
E, portanto, as cantarias, as ferragens, as caixilharias, as cores...As campainhas, os écras de televisão nas por-
tas, tudo isso teve de ser desenhado porque
eram elementos que não existiam.
Mas quanto aos que existiam, o que faz é uma interpretação?Sim, mas muita coisa nem existia. Por exem-
plo, não havia o ecrã da televisão à porta para
se ver quem é que está a tocar e muitas outras
coisas.
E o Siza tenta imaginar como é que isso poderia ter sido desenhado na época pombalina…?[Risos] Não, não passa por aí… Acho que não
conheciam… e, portanto, não desenhavam.
Agora sim, a procura foi que os elementos no-
vos não pusessem em questão o espírito da
arquitectura pombalina. Para dar um exem-
plo: esses quadros onde estão os furinhos para
falar e o ecrã da televisão, em vez de serem
máquinas colocadas, há um espelho que uni-
fi ca tudo e é instalado, não de frente, mas na
espessura das ombreiras das portas.
Mas deixe-me só insistir: esses elementos são uma interpretação fi el do que existia ou uma cópia livre? Porque há aqui a questão do pastiche…Não, para mim pastiche é outra coisa. Pasti-
che é uma cópia fruste de uma coisa passada.
Fruste em dois aspectos. Primeiro, porque não
atinge a mesma qualidade. É preciso ver que
as cabeças que pensam o que é novo não são
exactamente iguais, aconteceu muita coisa
no mundo. Mas também as mãos que execu-
tam e as respectivas cabeças são outras. Tudo
o que seja tentar uma cópia absolutamente
fi el, para mim está condenado ao fracasso.
E, por outro lado, também há aspectos muito
inovadores em relação ao Chiado, condicio-
namentos que acabam por ter infl uência em
tudo, do desenho [do plano] até ao puxador da
porta. Diferenças como, para dar exemplos,
novas ligações entre as ruas. Há uma escada
nova que desce para a Rua do Crucifi xo que
se calhar existiu, porque o que se descobriu
com o incêndio é que a largura daquela escada
estava ocupada pelos Armazéns do Chiado,
mas era um acrescento. Tanto que, demolido,
apareceu a verdadeira fachada. Essa ligação
tem muitas consequências porque prolonga
as escadinhas de São Francisco, com uma li-
geira torção.
Outra muito importante, que só agora se vai
realizar, é a da ligação ao Convento do Carmo.
É interessante para mim, divertido, instrutivo,
porque quando eu andava a passear logo a
seguir ao incêndio, no meio daqueles escom-
bros, vi lá em cima a porta sul da Igreja do
Carmo. Via-se os escombros e umas fossas,
uns buracos que ainda existiam, e eu, no mo-
mento, vi uma descida por ali, umas escadas
e tal… até à cota da Rua Garrett (porque o in-
terior daquele quarteirão está mesmo à cota
da porta para a Rua Garrett). E vim para casa
orgulhosíssimo por ter feito uma grande des-
coberta urbanística. Passados uns dias, uma
historiadora que acompanhava o gabinete do
Chiado mostrou-me uma gravura antiga onde
se via que havia uma escada exactamente a
partir dali, e isso explica a importância daque-
la porta. De maneira que poderia ter fi cado
desapontado — não era uma invenção minha
— mas, ao contrário, fi quei muito satisfeito
porque é um testemunho de como os estratos
sucessivos na cidade deixam rasto, ou melhor,
produzem o que é novo, no fundo. Porque
há uma espécie de inércia do território, per-
sistência. E é mais um testemunho na minha
crença da importância da continuidade. Que
é o que acontece na formação detectivesca do
arquitecto, que é necessária. Eu tive a ajuda da
historiadora mas tinha obrigação, eu próprio,
de ter encontrado a gravura.
Para citar o Guido Giangregorio (que fez um livro com uma longa conversa com Siza), o que estava a fazer era a “imaginar a evidência”.[Risos] Sim. Não, a evidência é que me estava
a entrar pelos olhos dentro…
De qualquer forma, mesmo com todo esse discurso da continuidade, discurso e prática, os dois pátios abertos são rupturas da lógica pombalina que não pressupunha uma vivência interior dos quarteirões.Sim, e discutíveis até. Aliás, houve, da parte de
alguns a crítica a esse aspecto e, como opção
generalizável, penso que não está bem. Agora,
ali havia alguns condicionamentos, ou alguns
factos, que pediam um pouco aquela interven-
ção, apesar de tudo. Uma era, realmente, do
corte ou do inacabado das relações com as zo-
nas vizinhas. Nitidamente, havia um corte, cul-
de-sacs, no que podia ser uma passagem clara
para a parte alta da cidade. O pátio [designado
como A] substituiu uma série de barracos que
havia, e que eram clandestinos. Permitiu um
acesso, com uma relação interessante, acho
eu, com as escadinhas de São Francisco. E,
depois, a porta que abre para a Rua Garrett,
é quase em frente e à mesma cota do pátio do
outro quarteirão, com a ligação lá acima ao
Convento do Carmo. E, ainda, uma ligação
também fácil à Rua Ivens. Portanto, colmatou
defi ciências no relacionamento, na comunica-
ção entre várias zonas de interesse.
É um pombalino mais democratizado, do ponto de vista do espaço público.De certa maneira. Embora surgido, pode-se
dizer, por acaso. O retomar, também, de coi-
sas destruídas pelo terramoto. Por exemplo,
as tais novas escadinhas foram afastar o corte
que tinha sido feito pelos Armazéns do Chia-
do, um espaço que, provavelmente, era um
espaço público. E no caso do acesso à porta
do Convento do Carmo.
As fachadas construídas remetem para os desenhos originais ou para aquilo que estava lá? Qual foi a “verdade” escolhida?Basicamente, o que estava lá. Porque numa
parte dos edifícios a fachada não caiu. O que
aconteceu foi que, em vários edifícios, todo o
interior ardeu e as paredes exteriores fi caram.
As janelas, o sinal delas, das molduras, dos en-
tablamentos, tudo isso fi cou danifi cado. Teve
centralismo, mas na circunstância, realmente
teve uma infl uência muito grande no que foi
a rapidez. Porque muita gente achava que era
muito tempo, mas realmente aquilo foi rápido,
foram praticamente dez anos.
Há uma certa impaciência mas, na verdade, o processo foi rápido.Dez anos levou a construção do Museu de
Serralves, dez anos levou o Atelier-Museu Jú-
lio Pomar. Ali não há dúvida que houve uma
libertação de excessos de burocracia que, por
discutível que possa ser para alguns, concreta-
mente, teve um efeito muito favorável.
Agora, falou-me do sucesso, que não é, no
meu modo de ver, um sucesso do projecto
propriamente, mas da evolução que tiveram as
decisões. Houve um tempo em que o Chiado
estava vazio. Tudo em pé já, ou quase tudo, e
havia um enorme desgosto e descrédito mes-
mo, e atribuía-se ao projecto o fracasso. Era
olhado como um perfeito fracasso. Mudou
completamente. Há duas razões, pelo menos.
Uma é que o tempo é um grande arquitec-
to, quem não conta com o tempo não vai lá.
E outra, a evolução nos comércios, com um
ponto alto que foi a instalação, naquele centro
comercial que foi arranjado pelo [Eduardo]
Souto de Moura, da Fnac. No momento em
que as pessoas saíam do trabalho, às sete ho-
ras, os comércios fechavam, era um desastre.
Não sei se ainda é assim, mas julgo que já varia
muito. Quando se instala a Fnac e o centro
comercial em geral, aberto até à meia-noite,
ou coisa assim… mas sobretudo a Fnac (não
só pelo interesse e até a tradição que nunca se
interrompeu de livrarias naquela zona), com
actividade cultural, conferências, exposições,
etc., aquilo começou a mudar. Julgo que os
comércios tradicionais também começaram
a ver que tudo ia para trás se não mudassem
qualquer coisa.
De maneira que começou a mudar e, real-
mente, hoje tem muita vida. Embora no que se
refere à função habitação não seja ainda uma
realização total. Porque a ideia que eu tenho
é que muita gente comprou os apartamentos
(aliás, venderam-se logo), como segunda ha-
bitação. De modo que ainda não é... e, diria
eu, não é possível sê-lo, porque o Chiado, com
toda a força que tem, é demasiado pequeno
para promover a completa renovação daquela
zona. Precisa de mais densidade.
É sabido que o presidente Jorge Sampaio (sucessor de Abecassis), na altura, lhe fez uma proposta para levar a metodologia do Chiado para a Baixa. Porque é que não aceitou este convite?Agradeci o convite e expliquei ao presidente
que achava que não seria boa solução por duas
razões. Primeiro, porque o ritmo que pode e
deve ter a recuperação da Baixa é completa-
mente diferente do Chiado. No Chiado houve
um acidente, houve um vazio de população,
embora se mantivesse a vida, e era uma coisa
de uma urgência absoluta. Com um ritmo que
podia pôr, inclusivamente — e acho que pôs
— entre parêntesis certas decisões mais pro-
fundas, porque ali a prioridade era dar uma rá-
pida resolução, sem prejuízo de tudo o que se
pudesse fazer de generalizável. No problema
da Baixa, o ritmo tem que ser outro, porque
aí há problemas de propriedade e, também,
problemas sociais profundíssimos. Portan-
to, o que eu disse ao presidente Sampaio foi
que me parecia que deveria ser um gabinete
camarário, como há em Alfama, no Bairro Al-
to, etc., devidamente dotado para pegar no
problema de tal extensão e profundidade. No
exemplo do Chiado, a questão das relações,
que é central ali, não é generalizável.
Na Baixa há o traçado puro. Mas em termos
de pormenorização, dessa pesquisa feita em
relação às características essenciais de um
que ser, nalguns casos, substituído. Noutros,
sempre que era possível, simplesmente com
retoques (rolhas, como se diz no mobiliário).
E, depois, as que caíram, com os documentos
que havia, fotografi as, etc., são repostas, mas
com modifi cações.
Também havia uma pressão muito grande
para modifi cações, e às vezes difícil de ven-
cer. Eu posso referir o seguinte: toda a gente
queria escritórios, e uma das decisões da Câ-
mara era repor a função de habitação, [cuja
ausência foi] considerada, e bem, uma das
causas da dimensão do desastre.
Em muitos aspectos tiveram de ser tomadas
soluções de compromisso mesmo que por par-
te da Câmara tenha havido um apoio implacá-
vel. Eu próprio aceitei alguns compromissos,
e alguns de partida, logo. Por exemplo, uma
das opções, e para muitos a certa, era a ex-
propriação de tudo. Da parte do presidente
não era essa a ideia e, mais uma vez, eu estava
de acordo. Porquê? Porque a expropriação
teria criado um vazio absoluto no local. E,
com todos os confl itos que daí advieram, o
que é facto é que a zona esteve sempre viva,
do ponto de vista de haver gente que tinha
os seus interesses e não os abandonava. Isso
foi muito importante. E, também, julgo que
em termos de tempo não teria sido melhor
porque os processos de expropriação eram,
a meu ver, ainda mais difíceis do que os de
negociação. Porque ali, cada prédio tinha uns
seis proprietários, a maioria primos e primas
de Trás-os-Montes, da Beira, etc. De modo que
foi muito difícil conseguir ir à fala com os pro-
prietários, e um processo de expropriação
teria sido complicadíssimo.
Mais uma vez aí está a repercutir o processo pombalino, onde havia um desenho forte, um Estado forte, mas onde houve também negociação com os proprietários.Embora aí fosse o resultado de uma ditadura
forte, iluminada. Porque, por exemplo, os lo-
tes não foram os de origem, houve uma tábua
rasa do traçado. Mas isso aí era uma outra di-
mensão, era uma cidade inteira destruída.
O Chiado é agora um sucesso enorme, também com a ajuda de uma arquitectura erudita, e nós sabemos como às vezes a arquitectura não tem uma fl uência directa com o mercado. Mas o Chiado é hoje, aparentemente, a zona mais cara do país. Isto estava previsto, ou era evitável?Isso estava previsto como… qualquer coisa
assim. Quer dizer, sabia-se que era muitíssimo
difícil conseguir fazer aquela recuperação,
criar boas condições num sítio fantástico e os
preços não subirem tremendamente. E é claro
que isso aconteceu. E, por outro lado, também
não havia habitantes a apoiarem uma possível
negociação, ou uma acção nesse sentido, por-
que praticamente não havia habitantes ali na
altura. Nesse aspecto, era um deserto. Mas o
presidente Abecasis tomou duas decisões para
mim fundamentais: uma foi não expropriar,
pelas razões que eu referi; a outra foi cons-
truir uma passerelle, uma ponte, um cami-
nho elevado que permitiu fazer os trabalhos,
que permitiu que as máquinas e os materiais
entrassem por baixo e que continuasse o fl u-
xo da população. Que nunca parou porque
aquela passagem é obrigatória para ir para
a cota de cima. Bem, isso foi fundamental.
Aquela zona nunca esteve morta e as pesso-
as assistiram à construção, paravam às vezes
para ver o que se passava, faziam perguntas.
Havia essa forçada mas interessante transpa-
rência no projecto. E dada a urgência, pôr o
gabinete do Chiado com uma pessoa à frente,
da confi ança dele e na dependência da pre-
sidência. É claro que pode ser discutível este
2 | Domingo 25 Agosto 2013 | 19
se entra e sai do Chiado. E permitiu, também,
com legitimidade neste caso, um elemento no-
vo a romper a reconstituição da fachada. Um
outro acontece na Rua do Carmo, por causa
da ligação acima ao pátio.
O “apagamento” do Siza como arquitecto neste processo do Chiado pode ser visto como modéstia...Eu não me apaguei [risos]. Sobretudo, ia na
rua e as pessoas vinham ter comigo. Não estive
nada apagado.
... Mas, na verdade, há algo de muito ambicioso em entrar tão visceralmente na história longa, não é?Não foi modéstia nenhuma. A ser alguma
coisa má, poderá ter sido orgulho. Modéstia
não, com certeza… Era realmente a convic-
ção do âmbito e da força, grande por um lado
e reduzida por outro, daquela intervenção.
Sobretudo, essa consciência de que aquele
é um projecto único — a Baixa — e o Chiado,
sendo um bocadinho nas margens, com o tal
ecleticismo, é, realmente, um prolongamento
da Baixa.
O Siza fez há pouco tempo oitenta anos, está em boa forma...Ui, não falemos nisso, eu estou a tentar es-
quecer…
E continua muito inspirado… Saiu agora um livro muito bonito chamado A casinha dos prazeres, um texto de Jean-François de Bastide com desenhos seus. Esses desenhos têm uma qualidade ao mesmo tempo clássica e moderna, que eu penso
que existe no Chiado. E o Siza parece, neste ponto da sua vida e do seu trabalho já longo, ter encontrado um ponto de equilíbrio onde verdadeiramente o clássico e o moderno, para utilizar dois palavrões, praticamente não se distinguem. Um equilíbrio e um decoro profundamente perturbantes.É uma coisa que eu acho que percorre a histó-
ria da arte praticamente sem interrupções. Se
virmos o mais inquieto (e capaz de perceber o
que se passava) pintor de que eu me lembro,
pelo menos agora, que era o Picasso, ele nun-
ca apaga o passado. E aliás há uma frase dele,
que eu acho muito interessante, quando diz:
“Eu não procuro, encontro”. E, realmente, ele
encontrava. E encontrava no passado, mesmo
muito distante, ou no mais próximo. Diz-se até
que os amigos pintores não o deixavam ir aos
seus atelieres porque ele, se apanhava uma
ideia boa, punha-a logo… Assim como nunca
admitia a facilidade, cair no fácil. Quando via
que já era tão hábil que começava a surgir o
fácil, mudava de caminho imediatamente. Mas
presente na obra de Picasso, mesmo na mais
radical, está sempre o peso da história. E na
obra dos arquitectos também está. Portanto,
eu, enfi m, na minha pequena escala, estou
dentro do que é uma corrente que percorre a
história da arquitectura e a história da pintura.
Custe o que custar.
grande projecto, isso alguma coisa se poderá
tirar eventualmente do que foi o esforço feito
no Chiado. E julgo que é nesse sentido que a
Câmara manifestou o interesse de publicar o
livro [Chiado em detalhe]. É um trabalho de
anos e de grande empenho, [sobre o qual se
deve refl ectir] nem que seja para o criticar e o
modifi car. De qualquer maneira, é um corpo
de refl exão sobre esse problema a que não é
possível fi car indiferente.
O que também faz parte da felicidade do conjunto da intervenção é a abertura da linha de metro. Já estava previsto?Foi uma sorte, uma grande sorte. O metropo-
litano já tinha decidido fazer aquela ligação,
que depois vai por aí fora até ao rio. O traçado
da linha já estava feito. O que foi possível, na
existência disso, foi negociar com o metropo-
litano a saída para o Chiado. Havia uma coisa
que tinha um passado, que eram as ligações
através dos Armazéns do Chiado e também
do Grandella. Ou seja, havia a tradição desses
grandes invólucros servirem também para a
comunicação entre cotas, e o que se propôs
foi a saída na Rua do Crucifi xo e, também, isso
era já propósito fi xo do metropolitano, em
frente à Brasileira, no Largo do Chiado. Isto foi
muito bom porque acontece aí uma mudança
muito grande, que não sei se se nota ainda,
mas naturalmente que se vai notar, altamen-
te transformadora. É que a Rua do Crucifi xo,
que era uma rua de serviço, uma rua pobre,
vamos dizer assim, passa a ser a rua por onde
O tempo é um grande arquitecto, quem não conta com o tempo não vai lá
Ver video e fotogaleriawww.publico.pt
A TERRA ONDE MAIS SE VOTOU
JOANA GORJÃO HENRIQUES TEXTO FOTOGRAFIAJOSÉ SARMENTO MATOS
Foi o município com menor taxa de abstenção eleitoral nas eleições autárquicas de 2009: só 18,9% não foi vo-tar. Com uma população dispersa, alguma isolada nos montes onde só se chega com um guia, Ourique é um dos sítios do país onde se vai buscar as pessoas para irem votar. A série termina na próxima semana com Aljezur, o sítio com maior percentagem de imigrantes que votam
OURIQUECINCO TERRAS CINCO RETRATOS
U NAS ÚLTIMAS AUTÁRQUICAS
22 | Domingo 25 Agosto 2013 | 2
Para chegar a casa de Belchior Nu-
nes Guerreiro é preciso um guia.
Por duas razões: primeiro, porque
a casa onde vive com a mulher e a
enteada fi ca num monte em Santa-
na da Serra, Ourique, e quem não
souber o caminho perde-se entre as
estradas de terra batida; segundo,
porque uma onda recente de assal-
tos e de vandalismo deixou o povo
em alerta, com medo de desconhecidos — até
a GNR andou a avisar as pessoas para terem
cuidado. “Escusam de ir”, dizem-nos, “não vos
abrem a porta”.
Na taberna à beira da estrada, a dona Elisa-
bete Cabrita arranja, então, quem nos guie.
Atravessam-se os montes, passa-se por uma e
outra casa, a dada altura até o próprio guia fi ca
na dúvida sobre que caminho tomar. Paramos
em casa de Belchior, geminada com outras, mas
vazias, totalmente isolada no meio do nada.
Quase a fazer 82 anos, reformado, Belchior
Nunes Guerreiro é um dos habitantes deste lu-
gar que a Câmara Municipal de Ourique vai bus-
car para votar nas eleições — sejam autárquicas,
legislativas ou europeias, garante o presidente
Pedro do Carmo (PS).
Com cerca de 850 habitantes, segundo o
Censos 2011, Santana da Serra tem “para aí
metade” da população que vive afastada dos
“centros” de freguesia, calcula o presidente,
gente a quem o transporte Serra Acima vai bus-
car em horários irregulares (a cada semana do
mês, faz percursos diferentes).
Se quiser ir beber um café à taberna, Bel-
chior Guerreiro precisa de boleia. Para ir às
compras, apanha a carrinha da câmara uma
vez por mês, ou arranja boleia ou chama um
táxi, que cobra 30 euros de ida e volta, quase
10% da sua reforma de “300 e tal euros”. Se não
o fossem buscar, Belchior não votaria, diz-nos
sentado no banco de madeira na rua, onde há
beatas dos seus cigarros de enrolar no chão, e
gatos a passar que se multiplicam desde que
a enteada os anda a alimentar. “Quem quer ir
para o poder tem que fazer o jeito aos que não
têm” transporte. “Como é que vou [votar]? Não
tenho” transporte. O seu partido? “Olhe, são os
que olham por mim”, diz-nos, entre as muitas
historietas que vai contando pelo meio.
Ourique foi, nas eleições autárquicas de
2009, o município com menor taxa de abs-
tenção eleitoral: 18,9% (Cascais teve, por seu
lado, a mais alta, com quase 60%, e a média
nacional foi de 41%). Em 2005 e 2001, a abs-
tenção tinha sido de cerca de 23%. Uma ida às
urnas que não se repetiu, por exemplo, nas
eleições legislativas e presidenciais de 2011; nas
primeiras, a abstenção neste concelho subiu
aos mais de 40%, nas segundas, tiveram uma
taxa de abstenção acima dos 55%.
O candidato ao terceiro mandato na au-
tarquia de Ourique Pedro do Carmo explica
a mobilização eleitoral da população nas úl-
timas autárquicas com o facto de o anterior
presidente da câmara, do PSD, José Raul dos
Santos, se ter voltado a recandidatar: “As pes-
soas não queriam um regresso ao passado”.
Santanista que liderou a autarquia entre 1993
e 2005, José Raul dos Santos foi, a determinada
altura, investigado por dívidas da câmara em
benefício próprio, causando polémica ainda
com um acidente de viação no qual esteve en-
volvido em 2007 quando era deputado pelo
PSD, tendo sido condenado por se recusar o
fazer o teste de alcoolemia.
Mas há mais razões, continua Pedro do Car-
mo: sentiram-se “os efeitos do cartão do cida-
dão”, porque “havia muitos eleitores-fantasma
no município”, “uns 10 ou 15%”, que desapa-
receram, portanto “só votam os que são resi-
dentes”.
De resto, há uma participação “muito activa”
nas eleições e nas campanhas políticas, acres-
centa, numa autarquia que já teve o PSD, a CDU
e o PS na liderança — e que em 2009 Pedro do
Carmo ganhou com mais de 66% dos votos.
Com 5389 habitantes, seis freguesias que pas-
sam a quatro com a nova lei, Ourique é um con-
celho caracterizado pela dispersão geográfi ca:
a densidade populacional é de 8,1 indivíduos
por quilómetro quadrado — por exemplo, em
Lisboa é de 6446. Tem também um elevado
índice de envelhecimento: há 319 idosos por
100 jovens, e quase 50% de pensionistas da
Segurança Social (Censos 2011).
Mas como em algumas outras vilas ou cida-
des pequenas, a câmara municipal está mais
presente na vida das pessoas, ao ponto de o
presidente ser, às vezes, chamado a resolver
problemas pessoais de alguns, e receber pedi-
dos, desde que fale com “o marido, que é alco-
ólico ou que tem um comportamento menos
correcto com o fi lho”, a que “dê bons conselhos
ao fi lho”, explica Pedro do Carmo.
“A intervenção do presidente de câmara é
tudo, não tem comparação com nenhuma rea-
Em cima, Jesuíno Hortelão, reformado, e em baixo Belchior Guerreiro, um dos habitantes dos montes isolados de Santana da Serra que a câmara ou as candidaturas têm de ir buscar para votar
2 | Domingo 25 Agosto 2013 | 23
tro. Embora, às vezes, isso seja uma ilusão.”
Joaquim é um poeta a quem a família e ami-
gos pedem para improvisar uns versos. Vestido
de negro, calças e camisa, e em frente à vinha
que o genro o ajuda a cuidar, diz-se afastado
da política, conta que ali se fala de caça, se
dizem umas anedotas e “bebem uns copitos”,
e quando alguém começa a discutir política
ele levanta-se logo e diz: “Isto não é sala de
discussão.”
No fi nal da entrevista, porém, deixa um
poema crítico sobre Portugal, de sua autoria,
“coisas de analfabeto”: “A agricultura morreu,
a construção está parada/E, se um dia acaba
o turismo, Portugal não é nada/A terra é que
dá o pão, dá a carne e o azeite/Hoje em dia
infelizmente há pouco quem a aproveite (…)”
(alguns dos versos podem ouvir-se no site do
PÚBLICO).
Mais do que o partido, dizem-nos
vários residentes, nas eleições
autárquicas em sítios peque-
nos quem mais conta são os
candidatos. Na rua, no café,
os cidadãos cruzam-se com
os políticos da terra. Porém,
apesar da sensação de que
as eleições autárquicas mo-
bilizam mais gente, a taxa de
abstenção média em Portugal para legislativas
e autárquicas não difere muito: por volta dos
41% nas últimas duas. Diferente, portanto, de
Ourique. Maria Helena Luís, auxiliar de acção
educativa, de 52 anos, garante que nunca falta
ao voto, nem que seja para “ir lá fazer uma cruz
em branco”. Ou como diz Cláudia Gonçalves,
de 22 anos, desempregada, votar é um direito
adquirido pelas mulheres, portanto “temos
que usufruir dele”, não podem ser “só os ho-
mens a decidir”. É também importante “para
o nosso nome não fi car em vão”.
Às quartas-feiras de manhã, o presidente
da câmara recebe os residentes, fala com eles
directamente: são pessoas que querem resol-
ver problemas quotidianos da sua rua, como
a água ou o lixo, ou questões mais complexas,
como o desemprego. “Às vezes resolve, outras,
pede para esperar”, diz Cláudia Gonçalves so-
bre a reacção do presidente quando vai pedir
emprego à autarquia, instituição com cerca de
200 funcionários.
A sala do município está cheia de gente mais
velha e gente mais nova, como Mara Cópio,
de 34 anos, desempregada, apontadora (téc-
nica administrativa de frente de obra), que
encontramos mais tarde na biblioteca. Repe-
te a ideia de que, por ser um meio pequeno,
“a sensação” é que em Ourique se vota pelas
pessoas, não pelo partido, e isto é o que ouve
também os outros da sua faixa etária dizerem.
Ela própria já votou num partido para a câmara
e noutro para a junta de freguesia, por causa
dos candidatos.
“As pessoas já vão tendo um pouco mais de
consciência política, já vão tendo aquela ideia
de que podem, de facto, fazer alguma coisa
para mudar a face de quem os representa”,
até porque “vão tendo mais informação”, não
é como no tempo dos avós em que era mais
difícil ter acesso à televisão e aos jornais.
A época das eleições, “quanto mais não seja
pela alegria de bem falar”, “é muito vivida” em
Ourique, e nos cafés comenta-se quem está
nas listas dos partidos, “que normalmente são
sempre pessoas conhecidas”, conta.
Mara Cópio esteve a viver no Cercal, durante
uma década, mas nunca mudou de local de re-
sidência, portanto, em todas as eleições, metia-
se à estrada para percorrer 50 quilómetros e
votar em Ourique, porque “o importante é a
pessoa mostrar aquilo que quer”. A relação
dos cidadãos com a política local é próxima,
analisa, e é regular ver os residentes “subir”
a estrada que leva ao edifício municipal para
expressar a sua opinião. “Como é que posso
dizer que não concordo com o saneamento
básico, por exemplo, se não vou lá acima dizer
que está mal?”
Quando vai falar com a presidência, Mara
Cópio sente que “só de ser ouvida a pessoa já
se sente bem”. “São estes pormenores que,
aqui, nestas zonas, fazem muito a diferença.
O mal do português continua a ser um boca-
dinho: ‘as autárquicas é uma coisa daqui, as
legislativas é uma coisa que tem a ver com algo
muito longe, fi ca em Lisboa, não tem nada a
ver comigo, o que se passa lá, fi ca lá…’ Pesso-
almente, tenho-me sentido assim. Quem está
em Lisboa, esquece-se do que se passa a nível
local, enquanto um presidente de câmara ou-
ve, tem consciência daquilo que se passa e as
pessoas ainda vão fazendo um bocadinho essa
diferenciação.”
Depois há um problema mais estrutural da
política partidária, considera, que se traduz no
facto de não se sentir diferença entre partidos:
liga-se a televisão, ouvem-se os dirigentes, de-
putados do Partido Social Democrata, do Bloco
de Esquerda, do Partido Socialista, e “até dos
Verdes” a falar e “vai sendo um discurso tão
repetitivo, tão parecido…”.
Por outro lado, continua, neste momento
as pessoas têm a ideia de que não há políticos
honestos, por isso “não votam tanto”, pen-
sam: “’Vou votar, para quê?’”. Pelo contrário,
em sítios pequenos como Ourique os cida-
dãos não têm “problema nenhum de chegar
ao presidente da câmara e confrontá-lo com
as promessas”. “Aliás, as pessoas vão para a
Assembleia da República fazer protestos e são
postas na rua. Aqui, como as pessoas se sen-
tem representadas, há motivação para votar,
independentemente do presidente.”
Profi ssão? “Reforma de miséria”, responde
Jesuíno Hortelão. Um bom presidente de câ-
mara? “É aquele que olha para todos em geral,
mas que proteja os mais pobres.”
Natural do Montijo, Jesuíno Hortelão vive
em Ourique há mais de uma década e é aqui
que vota. “Não digo a ninguém de que parti-
do sou, não sou de nenhum. Não tenho nem
partido, nem religião, nem desporto. Perten-
ço a todos. Não sou daquele que ganha, nem
daquele que perde.”
Com um humor crítico aguçado, Jesuíno
Hortelão diz que vota em quem lhe “convém”,
e convencem-no com a conversa, “se for boa”,
mas às vezes fi ca desconfi ado, mesmo “antes
de eles começarem a falar”. “Nunca consegui
pôr lá nenhum. Na época em que nasci e fui
criado, andava descalço, roto e a passar fome.
Portanto, sei quem é que nos faz passar fome, e
por isso nunca vou votar por essa gente. São os
mesmos, a família continua, se a família conti-
nua por que é que vou lá pôr os que me fi zeram
mal?” A que família se refere? “O fascismo”. E
o “lá”, diz-nos depois, é o Governo.
Jesuíno Hortelão, que vota “sempre, sem-
pre, sempre e não voto em partido nenhum,
voto pelos homens, por aqueles que vejo que
podiam servir”, só falhou “uma vez por estar
fora”. O seu voto, acredita, faz a diferença: “O
meu e o de todos. Por um voto se perde, por
um voto se ganha”. “Quanto mais pessoas fi -
carem sem votar, mais sujeitas estão a ir para
onde não querem. Cada pessoa que fi ca sem
votar, o voto dela fi ca a favor daqueles que a
gente não quer”. Nas eleições autárquicas de
2009, muitos pensaram assim em Ourique.
Quatro anos depois, será que o espírito se irá
manter?
fl uência? Será que condiciona o voto? A prática
de ir buscar as pessoas para votar existe “desde
sempre”, garante Pedro do Carmo, porque a
autarquia sabe que há pessoas que, caso con-
trário, têm de “andar duas horas a pé para ir
ao médico” e para votar, o que não seria fácil
caso não houvesse transporte gratuito. “Se [o
transporte] fosse feito só para as eleições au-
tárquicas, poderia ser mal interpretado, mas
a câmara disponibiliza sempre transporte e as
próprias candidaturas têm meios e vão buscar
as pessoas”, garante.
Presidente de uma associação de caçadores
que se reúne no seu monte, uns quilómetros à
frente da casa de Belchior, Joaquim Palma, de
82 anos, viúvo, pai de três fi lhas, avô de cinco
netos e cinco bisnetos, tem quem o transporte.
Mas geralmente costuma deslocar-se às mesas
de voto na carrinha da câmara ou dos partidos
que o vêm buscar. Tem exercido sempre o seu
direito de voto, mas confessa que já teve “mais
simpatia por isso”, porque, “em vez de sermos
mais apoiados, é o contrário”. “Votar ou não
votar pouco adianta, as pessoas só fazem o
que entendem”, explica.
No anexo à casa principal, onde há uma co-
zinha e mesas corridas como num restaurante,
e onde se reúnem mensalmente os caçadores
de javali, coelho, perdiz, pombo, Joaquim co-
menta que, se lhe vêm bater à porta no dia
das eleições, “também é vergonha não ir”. “As
pessoas incomodam-se para vir buscar a gente,
e a gente não ir não é fi gura”. Não interessa se
vai no carro de um partido ou de outro, isso
“não infl uencia nada” o seu voto, garante este
homem que se confessa de direita. Encara o
acto eleitoral “como um dever”, e escolhe o
candidato “por serviços que já tem feito”: “A
gente tem mais simpatia por um do que por ou-
lidade do centro do país. É criada uma relação
de interdependência, de apoio para com as
pessoas. Dou muito dinheiro do meu bolso em
muitas situações, porque as pessoas chegam
ao pé de mim tão afl itas, ou porque têm fome
ou porque o fi lho precisa, que acabo por dar
— é claro que sei que está errado, mas faço-o,
porque convivo com as pessoas. Agora não o
faço porque não quero ser mal interpretado,
estamos em campanha eleitoral.”
Porque Ourique é um sítio pequeno, isso
também permite fazer campanha porta-a-por-
ta, ir “a todos os montes isolados, mostrando
a obra feita”, e organizar beberetes nas juntas
de freguesia onde aparece quem quer (38 mil
euros é o orçamento de subvenção estatal para
a campanha, que este ano não tem donativos,
diz).
Normalmente, a câmara dedica o
mês de Outubro aos idosos, e or-
ganiza actividades para esta popu-
lação, como excursões ou passeios
de barco — Jesuíno Hortelão, de 75
anos, lembra-se de ter ido há uns
tempos a um passeio com “umas
sete ou oito camionetas”, era “co-
mer, beber, dançar e não pagar”.
E, este ano, explica Pedro do Car-
mo, não será diferente só porque há eleições
em Setembro — as excursões vão organizar-se
em Outubro na mesma. Esteja ou não fora da
campanha eleitoral, Jesuíno Hortelão olha para
estas actividades como estratégia de captação
de votos. De resto, Pedro do Carmo diz que não
anda a distribuir frigorífi cos, faz uma campa-
nha como todas as outras, com brindes tipo
canetas e panfl etos.
Mas até que ponto ir buscar os eleitores para
irem votar pode ser visto como tentativa de in-
Ver Especial Autárquicas emwww.publico.pt/autarquicas2013
24 | Domingo 25 Agosto 2013 | 2
João Ribeiro, Óscar Gaspar, Eurico
Brilhante Dias são nomes que o país
começou a fi xar desde que foram
trazidos para a primeira linha da
mediatização política quando Antó-
nio José Seguro foi eleito secretário-
geral do Partido Socialista, há dois
anos. Estes novos dirigentes de pri-
meiro plano do PS fazem parte do
grupo de pessoas que assessora e
aconselha o líder dos socialistas. Pessoas que
no futuro poderão vir a ter um papel ao mais
alto nível na gestão política do país, mas que
agora já estão actuantes e intervenientes no
dia-a-dia político, uma vez que, nos bastidores
do PS, preparam a mensagem, as propostas,
a estratégia do partido e gizam a política que
é protagonizada por Seguro.
Sem que o país se tenha apercebido, Seguro
fez uma espécie de revolução silenciosa no PS.
O lado visível foi o corte com uma tradição de
pensamento político e de métodos que tinham
sido característicos do seu antecessor, José Só-
crates, que recorria à tradição na gestão políti-
ca dos partidos de as decisões serem tomadas
pelo círculo restrito dos dirigentes máximos.
Mas essa ruptura passou também por uma
transformação nos métodos de trabalho do
partido e na preparação da mensagem, das
propostas e da estratégia.
É certo que Seguro não põe em causa a op-
ção política que cabe aos órgãos de direcção.
“O Secretariado reúne-se de 15 em 15 dias e
esse é o núcleo duro em termos de decisão”,
explica o dirigente Óscar Gaspar, frisando o
também dirigente Alberto Martins que o se-
cretário-geral “tem cumprido rigorosamente
a obrigação de reunir os órgãos”. Mas, parale-
lamente à direcção política e recorrendo até a
alguns dos seus membros, Seguro instituciona-
lizou um método de aconselhamento ao mais
alto nível que, de acordo com a explicação do
próprio à Revista 2, passa pelo “funcionamen-
to em estrela de um grupo de conselheiros e
assessores pessoais”. Alguns são membros
da direcção do partido e outros nem militan-
tes são, que a título individual ou dirigindo
equipas de trabalho e grupos de consulta lhe
fazem chegar o resultado do que é uma rede
de produção de ideias e propostas.
Esta mudança introduzida por Seguro re-
cupera aquilo que foi a forma de António
Guterres dialogar com a sociedade civil, ma-
terializada no momento dos Estados Gerais,
reunião com independentes para preparação
de um programa de Governo, em 1994. E que
instalou uma dinâmica através da qual bebia
ideias de fora e de dentro do PS, que lhe che-
gavam apenas através de Jorge Coelho e de
Joaquim Pina Moura. Mas tem também uma
fi liação partidária na forma informal como
a fi gura fundadora de Mário Soares se rela-
cionou sempre com intelectuais e fi guras da
intelligentsia portuguesa.
QUEM FAZ A ESTRELA DE
SEGURODe forma silenciosa, António José Seguro mudou o modo de funcionar da direcção do PS. Ao lado da estrutura formal, instalou uma rede de conselheiros, que funcio-nam em estrela, liderando áreas de intervenção. Assim, diz, dialoga melhor com a sociedade e recebe mais contributos. Mas na própria estrela de Seguro há quem assuma que saber ouvir não basta, é preciso saber “decidir e arcar com as respon-sabilidades”: um líder não pode “agradar a todos”. SÃO JOSÉ ALMEIDA
NU
NO
FER
REIR
A S
AN
TOS
26 | Domingo 25 Agosto 2013 | 2
A novidade é que Seguro construiu a sua rede
de aconselhamento de uma forma institucional,
organizada e assumida internamente. E o pró-
prio explicou à Revista 2 que não tem “núcleo
duro” nem decide “tudo com apenas cinco ou
seis pessoas”. Optou por um funcionamento
em rede para receber informação e ideias, ain-
da que depois “as decisões estratégicas e as op-
ções políticas sejam tomadas ao nível do Secre-
tariado”. Seguro diz garantir assim que “antes
de tomar uma decisão muita gente é ouvida e
se ganha na qualidade da discussão”.
Nas pontas dessa estrela estão as
áreas de especialidade em que se
divide a gestão do Estado. Assim,
para as Finanças Públicas e para a
Economia, surgem Óscar Gaspar,
membro da Comissão Política e o
único assessor permanente remu-
nerado com que Seguro contou
nos dois primeiros anos, e Eurico
Brilhante Dias, professor univer-
sitário que integra o Secretariado.
Outra ponta da estrela é a Reforma do Siste-
ma Fiscal para onde Seguro convidou o inde-
pendente António Carlos Santos, que foi secre-
tário de Estado de António Guterres. Sobre o
Quadro Comunitário de Apoio a assessoria de
Seguro está entregue ao professor de Econo-
mia da Universidade do Minho e não militante
do PS Manuel Caldeira Cabral. Para todas as
questões relacionadas com União Europeia,
Seguro conta com Maria João Rodrigues, con-
selheira das instituições europeias e antiga
ministra do Trabalho de António Guterres,
bem como com João Ribeiro, responsável pe-
las questões internacionais no Secretariado e
porta-voz da direcção.
Já os assuntos institucionais e constitucio-
nais estão entregues a Alberto Martins, mem-
bro do Secretariado. No leque de assessores
de Seguro, incluem-se ainda os membros do
Secretariado João Proença, Miguel Laranjeiro
e Álvaro Beleza, que o aconselham sobre ques-
tões sociais, de trabalho e de saúde pública. E
ainda Jorge Seguro Sanches como consultor
nas áreas de energia e ambiente.
De acordo com a explicação que o próprio
Seguro deu à Revista 2, paralelamente a es-
ta estrutura de aconselhamento existe ainda
um Conselho Económico, onde têm assento
economistas do PS ou independentes como
Pedro Lains, João Ferreira do Amaral, Brandão
de Brito, Murteira Nabo, Luís Nazaré, Manuel
Caldeira Cabral, Basílio Horta, Vieira da Silva.
E claro o Laboratório de Ideias para Portugal
(LIPP) coordenado por João Cardoso Rosas,
professor de Filosofi a Política da Universida-
de do Minho, organismo partidário que in-
tegra já cerca de cinco mil associados e está
organizado em 40 grupos de trabalho, onde
se destacam nomes de académicos como Al-
fredo Bruto da Costa, Júlio Pedrosa, Gustavo
Cardoso, Helena Freitas.
É o próprio Seguro que explica que, por
exemplo, uma decisão sobre Direitos Huma-
nos e Desigualdades “pode envolver consultas
em triângulo: Alberto Martins, responsável ao
mais alto nível por estas questões, Elza Pais,
deputada e ex-secretária de Estado da Igual-
dade que coordena um dos grupos de trabalho
[o de Direitos e Igualdade], e ainda Alfredo
Bruto da Costa, do LIPP.”
O líder do PS garante também, a título de
exemplo, que, em Junho, “nas negociações a
pedido do Presidente, em que o PS foi repre-
sentado por Alberto Martins, Óscar Gaspar e
Eurico Brilhante Dias, o documento de pro-
postas que o PS apresentou foi fruto desta for-
ma de funcionar em estrela”. É assim também
que está a ser preparada a Convenção Novo
Rumo, que decorrerá em Outubro e que tem
como objectivo materializar num evento este
espírito de diálogo com a sociedade.
Esta rede de conselheiros e assessores fun-
ciona de acordo com “uma geometria vari-
ável”, explica à Revista 2 Óscar Gaspar, que
adverte: “As pessoas pensam que os partidos
têm grandes grupos e grandes estruturas, mas
não têm. A capacidade de trabalho depende
das dinâmicas que são adaptadas. O PS em
qualquer momento tem que ter posição, por
exemplo, sobre a Segurança Social ou sobre
Política Fiscal. Esse trabalho de base não exis-
te e ele [Seguro] gostaria que existisse. É isso
que ele quer fazer.”
Óscar Gaspar revela que, devido à preocu-
pação com a efi cácia e a operacionalidade do
partido e da passagem da sua mensagem, “nas
últimas semanas, Seguro entendeu que o fun-
cionamento do partido deve servir melhor as
funções políticas”. Por isso, “alguns assessores
de imprensa mudaram, houve um reforço da
articulação entre a actividade do secretário-
geral, a assessoria de comunicação social e a
área de economia”. Isto com o objectivo, afi rma
ainda Óscar Gaspar, de “haver mais partilha”. E
concretiza: “Por exemplo, os conteúdos que eu
produzo, o departamento de comunicação tem
de saber para geri-los para fora do partido co-
mo posições do PS, mas para dentro também.
Até para que os candidatos autárquicos tenham
mais informação no terreno sobre as posições
do partido. Isto reforça a coesão interna.”
O sénior e politicamente mais ex-
periente membro da estrela que
aconselha Seguro é Alberto Mar-
tins. Ex-ministro para a Reforma
do Estado de António Guterres,
ex-ministro da Justiça de José Só-
crates, deputado, e mais de uma
vez líder parlamentar, Alberto
Martins é, aos 68 anos, membro
do Secretariado, da Comissão
Alberto MartinsEurico Brilhante Dias
Política e preside à Comissão Nacional. Como
responsável pela área de questões institucio-
nais e constitucionais é uma das pessoas mais
presentes junto de Seguro.
“Reúno normalmente com o Secretariado,
mas também com o grupo de ligação do Secre-
tariado com o grupo parlamentar, coordeno
alguns grupos de trabalho e tenho as rela-
ções institucionais e sociais”, explica Alberto
Martins, revelando como age com Seguro:
“Reunimos e conversamos pessoalmente e ao
telefone. Encontramo-nos com assiduidade.
Há entre nós relacionamento pessoal. Nunca
ninguém concorda com tudo. Mas há um diá-
logo regular, amistoso e muito próximo.”
Com muito menos experiência política, mas
com bastante peso na estrutura actual da di-
recção do PS e com uma presença constante
junto a Seguro, está João Ribeiro, que, aos 37
anos, integra o Secretariado, onde detém o
pelouro das relações internacionais, represen-
tando o PS no PSE e na Aliança Progressista, é
porta-voz da direcção, está permanentemen-
te na sede do Rato e aconselha Seguro “um
pouco em tudo”.
Antes de ser dirigente em permanência do
PS, João Ribeiro foi director das relações in-
ternacionais do Ministério da Justiça (equi-
parado a director-geral) entre 2009 a 2011
por convite de Alberto Martins. Licenciado
em Direito pela Universidade de Coimbra, é
doutorando em Sociologia na Universidade
Nova de Lisboa numa investigação sobre a
acção de favorecimento, vulgo “a cunha”, foi
professor e jurista em Macau e foi responsável
pelos Jogos da Lusofonia.
“Passei grande parte dos últimos dois anos
na sede”, explica João Ribeiro à Revista 2,
acrescentando: “Falo com Seguro por tele-
fone e sms, em reuniões, em encontros de
corredor até. Cheguei de férias hoje e já tro-
cámos 22 sms e dois telefonemas” — eram
16h. Quanto à sua área específi ca, as Relações
Internacionais, João Ribeiro explica à Revista
2 que tem “um grupo de cerca de 20 pessoas
na média dos 30 anos, que são ou académi-
cos ligados as relações internacionais ou fun-
cionários em organizações internacionais ou
diplomatas” a quem recorre “pessoalmente”.
E essas conversas servem para a coordenação
que faz da “elaboração de um documento pa-
ra um futuro programa de Governo”.
Permanentemente no Rato está também
Óscar Gaspar, que aos 44 anos é membro da
Comissão Política e durante dois anos o único
assessor remunerado por essa função especí-
fi ca. Neófi to na direcção do PS, Óscar Gaspar
não é um inexperiente em política, já que foi
adjunto do secretário de Estado do Orçamen-
to, Fernando Pacheco, quando Joaquim Pina
Moura era ministro das Finanças de António
Guterres, a partir de 2005 foi assessor eco-
nómico do primeiro-ministro José Sócrates
João RibeiroÓscar Gaspar
e, de 2005 a 2009, foi secretário de Estado
da Saúde com Ana Jorge — para além de ter
estado sete anos no BCP Investimentos e na
administração da Metro Mondego.
Óscar Gaspar relata à Revista 2 como é o
seu quotidiano de único assessor ofi cial: “À
segunda de manhã há reunião de prepara-
ção da semana e das semanas seguintes e da
avaliação da anterior. Analisamos a agenda,
dividimos o trabalho, o que é tratado pelo
partido e o que é grupo parlamentar. Temos
contacto diário, eu, o Miguel Ginestal [che-
fe de Gabinete], o Miguel Laranjeiro, o João
Ribeiro e o António Galamba [membro do
Secretariado responsável pela organização
do partido]. Todas as semanas há também a
reunião com o Grupo Parlamentar.” E por-
menoriza: “Todos os dias temos múltiplas
chamadas sobretudo de acompanhamento
da minha área, hoje todos os líderes têm de
acompanhar a evolução dos mercados, da
dívida, etc. Há permanente informação em
tempo real que eles têm de ter, desde dados
do INE a outros.”
Também com uma presença de peso jun-
to de Seguro, até pelo peso da economia na
actualidade política portuguesa durante os
últimos dois anos, esteve Eurico Brilhante
Dias, com 41 anos. Doutorado em Ciências
Empresariais pelo ISCTE em 2007, e professor
auxiliar do ISCTE desde 2000, Eurico Brilhan-
te Dias foi administrador do AICEP entre 2007
e 2011, primeiro com a zona empresarial de
Sines e depois a internacionalização das pe-
quenas e médias empresas. Em 2011, integra
o Secretariado e junta-se a Seguro, que acon-
selha sobre assuntos económicos, “sem rece-
ber um cêntimo”. Por isso, afi rma: “Sou dos
dirigentes mais presentes no Rato. Há alturas
em que vou mais e outras menos, mas falo
amiúde com Seguro e muitíssimo com Óscar
Gaspar. Falo presencialmente e por telefone.
Por razões óbvias, nos últimos dois anos eu e
o Óscar Gaspar fomos muito actuantes. Foram
dois anos muito intensos.”
Como momento mais “duro” destes dois
anos em que aconselhou Seguro, Eurico Dias
elege “o do Orçamento do Estado de 2012 e
todo o ano de 2012”. E não deixa de salientar
a importância, também em 2012, da “nego-
ciação do Tratado Orçamental Europeu, em
que não houve acordo”, mas em que esteve
envolvido “com os deputados Pedro Marques
e Vitalino Canas”. Já mais recentemente des-
taca como importantes “as negociações pro-
postas pelo Presidente” em que participou
com Alberto Martins e Óscar Gaspar e onde
se espelharam as propostas que o novo fun-
cionamento de aconselhamento a Seguro
potenciou.
Mas nem só de dirigentes nem mesmo de
militantes socialistas é feito o aconselhamento
de Seguro. Na organização em estrela que o
2 | Domingo 25 Agosto 2013 | 27
2009 e apresentámos um relatório em 2012:
não eram projectos de diplomas, alguns iam
até em alternativa [entre si], contemplavam
soluções diversas para serem escolhidas”. A
estas tarefas seguiu-se “um hiato”. Mas “em
Fevereiro foi reactivado para aspectos espe-
cífi cos e mais recentemente para preparar
alternativas à reforma do IRC que iriam ser
apresentadas pelo grupo liderado por Lobo
Xavier”, no fi nal do mês passado.
Outro independente que dirige um grupo
de aconselhamento, este sobre o Quadro Co-
munitário de Apoio e os fundos comunitários
e de preparação de propostas, é o economista
de 45 anos Manuel Caldeira Cabral, licencia-
do em Economia pela Nova, doutorado em
Nottingham, actual professor da Universida-
de do Minho e Consultor do Banco Mundial
e que participou no Conselho para o Desen-
volvimento Sustentado. O próprio explica
que no seu caso “a assiduidade dos contactos
muda conforme os momentos”, mas, como
mora em Braga, fala com Seguro “muito por
e-mail e telefone”, bem como “também mui-
to com Eurico Dias e com Óscar Gaspar”. E
afi rma que esta “forma de organização faz
mais sentido hoje, pois há meios tecnológi-
cos que o permitem, há telemóveis, e-mail,
Internet”.
Sobre a sua actividade como conselheiro
de Seguro, começa por lembrar que, nos
governos de José Sócrates, trabalhou “com
Manuel Pinho e com Teixeira dos Santos nas
Finanças”, fez “estudos para os dois” e acom-
panhou “o trabalho por dentro”, pelo que
garante: “É diferente fazê-lo na oposição.”
Mesmo assim, Manuel Caldeira Cabral aceita
levantar um pouco o véu sobre o grupo que
dirige. “Sinto da parte do secretário-geral do
PS abertura para eu tratar as coisas sem es-
partilhos e com autonomia”, diz. “Para prepa-
rar a negociação dos fundos comunitários eu
próprio arranjei uma equipa de 15 pessoas, al-
gumas são recomendadas por Seguro, outros
são especialistas de várias áreas. A questão é
a aplicação sectorial, mas também a gestão
dos fundos.”
O método é bastante informal, explica, pois
“as pessoas dão contributos por escrito” e “a
articulação e a ligação política é assegurada”
por si mesmo, e no fi nal de cada processo
“há um debate grande com secretário-geral
e com o núcleo”. Acrescenta que “as pesso-
as envolvidas trabalham todas, mas têm tido
disponibilidade” e que “algumas reúnem-se
com Seguro, outras preferem fi car na som-
bra”. Isto porque, explica Manuel Caldeira
Cabral, “algumas trabalham para o Estado e
não querem aparecer publicamente em coisas
partidárias, mas contribuem para a solução,
são pessoas que que não se sentem muito ou-
vidas no Estado, como membros da estrutura
do Estado”.
A mais pessoal e individual das pontas da
estrela que aconselha Seguro é Maria João
Rodrigues, que aos 58 anos é conselheira das
instituições europeias e foi ministra do Tra-
balho de António Guterres. “É uma relação
biunívoca. Não estou organizada em nenhum
grupo. Falamos com regularidade, às vezes
em presença”, explica a antiga ministra do
Trabalho de António Guterres à Revista 2. A
sua relação e aconselhamento a Seguro tem
a ver com o facto de fazer “um seguimento
particular da preparação de cada Conselho
Europeu e das várias reuniões prévias de
Conselhos de Ministros sectoriais”. Para is-
so, prepara “muita documentação e muitas
cimeiras europeias” e está “dentro da agenda
europeia”.
Além disso, está inserida em várias redes
europeias, de tipo universitário — “sou pro-
fessora de Política Económica Europeia na
Universidade de Bruxelas” —, mas é também
membro da administração de think tanks co-
mo o Notre Europe — Jacques Delors Institute
ou o European Policy Center, em Bruxelas.
Uma actividade que a leva a dar “múltiplas
conferências”, como fez “uma recentemen-
te em Xangai sobre a Europa”, bem como a
preparar “o relatório sobre crise da zona euro
para instituições alemãs”, que irá apresentar,
“em Novembro, também em Harvard”.
Sobre a sua relação com Seguro afi rma: “Ele
respeita a minha autonomia de pensamento
em dois sentidos. Ele sabe que falo e dou a
minha opinião, independentemente de quem
são os políticos. Eu aconselho Van Rompuy,
presidente do Conselho Europeu. Há líderes
que não gostam disso, exigem fi delidade de
clube. A segunda coisa, é que ele sabe que eu
lhe digo o que penso. E se ele não concorda,
respeita a minha opinião à mesma.”
Maria João Rodrigues faz ques-
tão de dizer à Revista 2 que
Seguro “tem um importante
referencial ético”, e frisa: “Eu
não aconselharia ninguém
que não o tivesse.” A conse-
lheira das instituições euro-
peias e de líderes mundiais
sublinha em relação a Seguro
algumas características que
reputa como importantes, do conhecimen-
to que tem de já ter “trabalhado com muitos
primeiros-ministros”.
Daí salientar que Seguro “é uma pessoa com
capacidade de ouvir acima da média dos líde-
res” com quem tem trabalhado. “Seguro está
disponível para ouvir e aprender. Isso é um
sintoma de inteligência. Um líder não sabe
tudo, tem que ter abertura a novas ideias,
sem mentalidade sectária. Tenho trabalhado
com líderes que não querem dar a entender
que não sabem.”
Igualmente Manuel Caldeira Cabral afi rma:
“Seguro é uma pessoa muito determinada,
toma decisões, mas vai benefi ciando das opi-
niões que ouve para formar essa sua decisão
e da tentativa de perceber os outros lados das
questões. Ele procura alternativas consisten-
tes. Por exemplo, não se pode dizer que se
quer baixar impostos e [ao mesmo tempo]
fazer propostas que aumentam a despesa.”
Eurico Brilhante Dias considera mesmo
que Seguro “é um líder muito cerebral, tem
capacidade de antecipação, não é previsão,
é antecipação” e “é um líder bastante de-
mandante, pede constantemente iniciativas
e propostas, bem como a avaliação das ideias
que recebe na rua de militantes e pessoas em
geral”. E destaca que o líder do PS “tem um
fi o condutor que é pouco valorizado, que é o
facto de, desde o início, dizer que a solução
[para a crise económica] passava pela Europa
e que era preciso investimento, crescimento
e emprego”.
Por outro lado, Maria João Rodrigues sa-
lienta que Seguro “tem uma real focalização
na resolução dos problemas. Isso é uma im-
portante referência para um líder, a procura
de soluções concretas. Há líderes que se per-
dem nas questões doutrinais”. E insiste: “Ele
impõe-se a si próprio essa disciplina de ir ao
concreto, o que é importante em termos de
capacidade governativa.” A título de exemplo,
lembra as reuniões internacionais em que viu
Seguro, em Paris e Leipzing, e diz que ele
“tem ideias ousadas” e que “não tem receio
nem timidez de argumentar e tem determi-
nação em defender o interesse do país que
coincide com o interesse da Europa”.
Mas a antiga ministra do Emprego de An-
tónio Guterres adverte que “tudo tem o seu
reverso”. E baseando-se na experiência de
quem há vários anos aconselha e trabalha
com líderes políticos a nível mundial, de Bill
Clinton a Angela Merkel, passando por fi guras
como Lionel Jospin, ou sustenta que “o fac-
to de Seguro ter estas qualidades pode dar a
sensação que ele ouve de mais e é demasiado
aberto a opiniões diferentes”.
Ora, “a arte de um líder é saber abrir cami-
nho à competência que muitas vezes não é ou-
vida por causa da mediocridade”, considera
Maria João Rodrigues, que sublinha: “Um líder
tem de saber abrir esse processo e depois tem
de saber decidir no momento certo, e isso é
uma acto solitário. Há um momento em que
ele vai ter de decidir e dispor e responder por
isso. É para isso que é líder.”
E frisa: “A interrogação é saber se ele vai
dar o salto. Sabe ouvir mas vai haver um mo-
mento em que vai ter de dar o salto e decidir
e arcar com as responsabilidades. A incógnita
é saber se ele está preparado para esse salto.
Há momentos em que não vai poder agradar
a todos.”
António Carlos SantosMaria João Rodrigues Manuel Caldeira Cabral
Sabe ouvir mas vai haver um momento em que vai ter de dar o salto e decidir e arcar com as responsabilidades. A incógnita é saber se ele está preparado para esse salto. Há momentos em que não vai poder agradar a todos”, comenta Maria João Rodrigues
próprio instalou em seu redor, há pontas que
são ocupadas por pessoas que nem militan-
tes do PS são. Um desses casos é o do antigo
secretário de Estado António Carlos Santos
que, aos 67 anos, dirige um grupo de acon-
selhamento sobre Assuntos Fiscais. “Não sou
militante e Seguro sabe que fui mandatário
fi nanceiro de Manuel Alegre na segunda can-
didatura, estou ligado à Iniciativa para uma
Auditoria Cidadã à Dívida, que estou no Con-
gresso das Alternativas e que sou investigador
do Centro de Estudos Sociais da Universidade
de Coimbra”, sublinha António Carlos Santos,
que foi professor no ISEG, estando hoje aí
apenas ligado como investigador ao centro
de investigação SOCIUS.
Quanto a aulas, continua a leccionar noutra
instituição, a Universidade Autónoma de Lis-
boa, onde aliás, deu aulas com Seguro e onde
aprofundaram a sua relação, depois de ambos
terem participado no primeiro Governo de
Guterres. Seguro como secretário de Esta-
do adjunto do primeiro-ministro, e António
Carlos Santos como secretário de Estado dos
Assuntos Fiscais de Sousa Franco — que co-
nheceu como trabalhador da administração
fi scal e que foi seu orientador de mestrado,
convidando-o então para o Governo. Depois,
António Carlos Santos esteve quatro anos em
Bruxelas, E na Refer, onde coordenou o grupo
de economia e fi nanças.
António Carlos Santos diz que “Seguro
procura fazer política de uma forma a que
os portugueses não estão habituados e isso
não é compreendido. Estamos habituados
a que o poder é dourado, está lá em cima,
à distância” e “Seguro quebra isso”. Por ou-
tro lado, salienta que “muitos observadores
e comentadores tentam ligá-lo ao percurso
de Passos: a diferença é que Seguro não tem
um Relvas”.
É essa diferença que vê em Seguro que ex-
plica, na sua opinião, que o líder do PS tenha
apostado em si para dirigir “um grupo sobre
questões fi scais independente do LIPP”. E
explica: “Eu nunca estive no LIPP, coorde-
no um grupo de fi scalistas que inclui fi guras
do PS, incluindo deputados, outros que não
são militantes, pessoas que trabalham na
administração fi scal ou pessoas do mundo
académico. A maior parte das pessoas não
são pessoas do PS, mas há sigilo, as ideias
não transpiram. Ninguém está à espera de
ser deputado.” São, prossegue, “cerca de 15
pessoas que se juntam em reuniões de duas
ou três horas, em que a ligação com Seguro
é feita por Óscar Gaspar”, se bem que o líder
do PS vá “a algumas reuniões”.
O ex-secretário de Estado explica ainda:
“Este grupo começou em 2011, Reuníamo-
nos às quintas, dividíamos os assuntos por
áreas e cada um tratava a sua área. Fizemos a
reapreciação do relatório da política fi scal de
2 | Domingo 25 Agosto 2013 | 29
Dentro de poucas horas os carros
vão começar a chegar ao Família
Drive-In e a prepararem-se para
ocupar o seu lugar, fi la atrás de
fi la, junto aos mega-altifalantes
que dão pela altura da cintura.
Pelo menos por esta noite tudo
se vai processar como se fosse a
noite inaugural, em 1956.
“A manutenção destes altifa-
lantes tem sido cada vez mais difícil, porque
só existe um fabricante e é ele que faz todas
as peças”, explica James Kopp, gerente deste
cinema em Stephens City, na Virginia. “E fi ca
[o fabricante] na cidade do Kansas.”
Os espectadores estacionam perto destes
postes de cerca de metro e meio e aguardam
o pôr do sol e o fi lme que há-de aparecer no
ecrã gigante. Se sintonizassem o rádio em FM,
também poderiam seguir o áudio do fi lme.
Mas estes espectadores preferem fazê-lo à boa
maneira antiga. “Isto é, quando os altifalan-
tes trabalham, claro”, explica Kopp com um
sorriso.
Será que este parque de 17 hectares alguma
vez se vai livrar destes empecilhos? “Nem pen-
sar. Estes altifalantes clássicos fazem parte de
toda a experiência do cinema ao ar livre”, diz
Kopp com um arrastar muito característico na
fala quando pronuncia os erres.
Kopp é um defensor de manter viva a expe-
riência do cinema fora de salas.
Este Verão celebram-se os 80 anos da pro-
jecção de fi lmes ao ar livre nos Estados Uni-
dos. O pioneiro abriu em Pennsauken, na New
Jersey, em Junho de 1933 (hoje não sobra nem
um em New Jersey). 1958 foi o ano do apogeu
do drive-in: existiam 4 mil espalhados pelo
país. Hoje não passam de 360. Mas nalgumas
localidades mais rurais, como é o caso de Ste-
phens City, ver cinema ao ar livre é algo que
nunca passou de moda.
“No fi m-de-semana passado tivemos de
mandar embora tanto carros”, diz Kopp com
um sorriso rasgado. Aos espectadores espera-
va-os uma sessão dupla — Velocidade Furiosa 6
e A Ressaca 3. “Esgotámos na sexta, no sábado
e no domingo. Foi um fi m-de-semana recorde
para nós, com facturação de 38 mil dólares
[cerca de 29 mil euros]. Há quatro anos que
dirijo isto e nunca tivemos estas receitas. (Nas
semanas que se seguiram, o Família Drive-In
iria arrecadar receitas semelhantes com a exi-
bição de Monstros — A Universidade, O Homem
de Aço e Gru — O Maldiposto 2.)
Apesar da popularidade crescente dos cine-
mas ao ar livre, estes têm vindo a enfrentar
um problema do século XXI: o fi m da película
de 35 mm. Os fi lmes que têm aparecido nos
drive-in norte-americanos ao longo deste Ve-
rão são os últimos da era dos 35 mm. Para
se manter à tona, o negócio destes cinemas
passa pela sua conversão ao digital — o que,
para estes operadores sazonais, representa
uma perspectiva dispendiosa. “Para passar
ao digital tenho um orçamento estimado em
139.817 dólares [104.561 euros]”, diz Kopp.
“Precisamos de dois projectores para os nos-
sos dois ecrãs. E isso é muito caro.” Kopp entra
numa das duas cabines de projecção. Aqui, ao
lado de uma bobine gigantesca, jaz uma fi ta
de celulóide de 35 mm e um projector que
mais parece um protótipo saído do fi lme A
Guerra dos Mundos.
Mas esta noite de 5 de Agosto não é a noite
em que vamos assistir à cena em que o Fa-
mília Drive-in abraça o high-tech. Os técnicos
da Christie Digital hão-de chegar para abrir
e substituir as partes metálicas ruidosas das
unidades de projecção por “caixas negras”
silenciosas. Este é um melhoramento que se
pode tornar verdadeiramente dispendioso
para outros cinemas do mesmo género. Kipp
Sherer, que gere o site Drive-ins.com [que reú-
À ESPERA DO PÔR DO SOLO primeiro drive-in foi inaugurado em 1933 e chegaram a existir quatro mil espalhados pelos Estados Unidos. Oitenta anos depois, não são mais de 360 e a sobrevivência passa pela transição para o digital. Os estúdios de Hollywood já lhes ditaram a morte, mas para pessoas como James Kopp, que gere o Família Drive-in na Virgínia, continuar a ver cin-ema ao ar livre é alimentar um sonho de criança
DON HARRISON TEXTO LANCE ROSENFIELD FOTOGRAFIA
30 | Domingo 25 Agosto 2013 | 2
ne informação e base de dados sobre os drive-
in], diz que para o ano cerca de 20% dos ecrãs
de exterior espalhados pela América correm
o risco de fi carem completamente às escuras,
quando os estúdios de Hollywood deixarem
de fazer cópias em celulóide que passem nos
seus projectores arcaicos e monstruosos.
Para muitos dos pequenos cinemas
ao ar livre que são empresas fami-
liares, este processo [de transição
para o digital] é demasiado dispen-
dioso”, diz Sherer, que acrescenta
que muitos dos proprietários, um
pouco por todo o país, estão a em-
barcar em campanhas arriscadas
de fi nanciamento para consegui-
rem essa conversão. “Recentemen-
te, os estúdios apareceram com opções de fi -
nanciamento para que estas empresas manti-
vessem a sua actividade. De início, a ideia foi
apenas ajudar os cinemas ditos ‘normais’...
para os quais a conversão implica um inves-
timento mais reduzido, logo, os drive-in não
foram incluídos.” As unidades de projecção
para os drive-in têm de ter capacidade para
uma iluminação quatro vezes superior à de
um cinema normal, daí o custo mais elevado
do equipamento.
Para os estúdios, diz Kopp, os drive-in ti-
nham morte anunciada. “Nunca se pensou
que também eles poderiam vir a abraçar o
digital. Como é que se consegue ter um sis-
tema de som surround de 5.1 num cinema
exterior?”
Em Fevereiro, os estúdios chegaram a um
acordo para a distribuição e reprodução de
fi lmes sem custo associado — uma espécie de
subsídio para a venda de bilhetes — como for-
ma de ajudarem os drive-in a darem a volta.
Kopp e outros gerentes de cinemas ao ar livre
agradeceram aos céus de Hollywood, apesar
de Kopp não estar inteiramente satisfeito com
os termos do acordo. “Deram-nos uma janela
de tempo demasiado apertada. Às salas multi-
plex deram cinco anos para fazerem a conver-
são ao digital e a nós dão-nos três ou quatro
meses?! Isso não é justo.”
“Sou da velha guarda, gosto mesmo da pelí-
cula”, diz o projeccionista Harold Jett à porta da
bilheteira do Família Drive-In, enquanto espera
que escureça um pouco para dar início à projec-
ção do fi lme. “Temos de o fazer, isso está fora
de questão. As empresas de películas já não as
voltam a produzir.” Jimmy Pence é ajudante no
estacionamento e fala sobre um novo cinema
com um ecrã de 12 polegadas gerido pela cadeia
Carmike Cinemas, no centro comercial Apple
Blossom, em Winchester. “Mas penso que aqui
as pessoas se sentem melhor. Acho que tudo
vai correr bem.”
É um facto que os cinemas ao ar livre vão
precisar de se actualizar para entrarem na
competição.
John Heidel é outro dos que acreditam pia-
mente nos drive-in, ele que sempre teve as suas
baterias apontadas à era do digital. Enquanto
outros constroem salas multiplex, Heidel cons-
truiu o Goochland, um parque com um ecrã de
12x24 metros em Hadensville, na Virginia, a
meio caminho entre Richmond e Charlottesvil-
le. Desde 2009 que este é um dos últimos drive-
in a serem construídos na América. “Primeiro
vão lá por curiosidade, depois, como acabam
por se divertir, voltam.”
O Goochland e o Família Drive-In são dois
dos nove cinemas ao ar livre da Virginia. E des-
tes alguns são ícones da construção clássica
dos anos 1950, incluindo o Hull, em Lexington,
o único nos Estados Unidos que pertence à
comunidade local e não tem fi ns lucrativos,
assim como o Moonlite, em Abingdon, que foi
construído em 1949 e está classifi cado como
Património de Interesse Histórico (na vizinha
Maryland, o único e muito conhecido drive-in
Bengies, no Middle River, fi cou imortalizado
pelo realizador de cinema de Baltimore John
Waters no fi lme Cecil B. DeMented.
A maioria dos cinemas regionais ao ar livre
têm já algum high tech, ou pelos menos assim
o pretendem. Hull, o mais próximo compe-
tidor do Família Drive-in, do qual dista 193
quilómetros, já passou a fronteira do digital,
assim como o Starlite em Christiansburg e o
Bengies. “O que nunca tinha imaginado ou
sequer previsto foi a quantidade de famílias
dispostas a viajarem uma hora de carro para
chegarem até aqui”, diz Heidel. Mas, apesar de
já ter feito o seu recorde este Verão — 350 car-
ros no parque —, diz que a margem de lucro é
baixa e está sempre dependente das condições
atmosféricas e de outros factores. “Temo-nos
safado entre os pingos da chuva.”
Kopp, que recorda com saudade e
carinho os seus anos de adoles-
cente quando deambulava pelo já
desaparecido Super 29 (agora um
Costco, um armazém de venda a
retalho) em Fairfax, na Virginia, é
um confesso amante dos drive-in.
Kopp fez um contrato de leasing
para explorar este cinema já com
a provecta idade de 57 anos — o úni-
co na região que tem dois ecrãs — e negociou
com o fi lho do próprio fundador do Família
Drive-In. Há quatro anos, quando estava a ten-
tar ressuscitar um cinema em Henderson, na
Carolina do Norte, recebeu a proposta de fi car
com o Família. “Gerir um drive-in como este
sempre foi o sonho da minha vida”, diz, “e Tim
Dalke, o proprietário, sabia disso.” O Família,
como tantos outros cinemas ao ar livre que
ainda sobrevivem, agora só se dedica a passar
fi lmes em estreia e que são, muitas vezes, os
mais recentes sucessos de bilheteira. “Hoje
em dia, ou se consegue captar uma audiência
nas primeiras quatro semanas de exibição ou
então perdêmo-las.”
O Família costumava exibir fi lmes apenas
em reposição, porque o seu aluguer era mais
barato. Mas isso agora é sinónimo de Netfl ix,
o serviço online que permite ver fi lmes de gra-
ça. Nesta noite, a maioria dos espectadores
chegaram horas mais cedo para estrategica-
mente arranjar lugar. E há toda uma procissão
de quatro rodas a passar pela bilheteira para
comprar os bilhetes de 8 dólares cada, 4 para
as crianças.
Actualmente vão sendo raros os casos de um
ou outro adolescente que se tenta escapulir
para dentro de uma das muitas carrinhas de
caixa aberta e assim entrar sem pagar bilhete,
diz Kopp. “Pelo menos não como eu costumava
fazer quando era miúdo. Já não há tanto aquela
paixão assolapada da adolescência. Hoje é uma
coisa mais orientada para a família.”
No primeiro ecrã, que dá para um parque
com capacidade para 240 carros, vai ser exibi-
da uma sessão dupla: Velocidade Furiosa 6 e A
Ressaca 3. No parque com o segundo ecrã, mais
pequeno, cabem 144 carros e vai passar o fi lme
de animação Epic – O Reino Secreto e a comédia
Os Estagiários, com o actor Owen Wilson.
Saber que títulos podem atrair a audiência
de um drive-in é uma arte. E nem sempre são
aqueles que tiveram a melhor bilheteira nas
salas multiplex. Kopp, que tem lugar na mesa
de direcção da United Drive-in Theatre Owners
Association [que representa os proprietários
de cinemas ao livre nos EUA] até poderia ima-
ginar que fi lmes como O Homem de Aço 3 e o
último da sequela Star Trek iriam ser grandes
sucessos mas ... Harry Potter? Nem tanto, diz.
“Esses fi lmes aguentam-se no primeiro fi m-de-
semana, mas depois vêm por aí abaixo.”
Kopp trabalha com uma agência de reservas
para conseguir os melhores títulos aos melho-
res preços e está aberto a sugestões dos pró-
prios espectadores. “No ano passado tive aí um
grupo que me pediu para passar o Moonrise
Kingdom, e correu muito bem.”
Mas o fi lme é o que menos interessa. O im-
portante são as pipocas.
Kopp entra na cabine da concessão e apre-
senta a equipa que serve as comidas e bebidas,
incluindo a fi lha, Melissa, que se encarrega
da distribuição de bolos. “Aqui é que estão as
receitas”, diz Kopp para explicar que são os es-
túdios que fi cam com a maior fatia do bolo das
receitas. “E isso é também uma realidade para
os ditos ‘cinemas normais’. Chegamos a pagar
até 70% da nossa bilheteira, mais as despesas
do aluguer das fi tas, por isso, do preço de bi-
lhete de 8 dólares, retiramos 2,40. Para manter
este cinema vivo tenho mesmo de me fartar
de vender pipocas, refrigerantes, cachorros
quentes e coisas no género.” Há quatro anos,
quando começou o leasing do Família Drive-In,
Kopp contratou mais pessoal, tratou de arran-
jar uma empresa para lhe fornecer a comida,
aumentou a sua participação nas redes sociais
(no Facebook vai nos 13 mil likes) e garantiu
que os cartões de crédito são bem-vindos na
bilheteira e no stand da concessão. “Já lá vai o
tempo em que o cinema era apenas pago com
dinheiro vivo”, diz.
Pizza é comida popular, por isso Kopp arran-
jou um contrato com a Italian Touch Pizzeria,
um fornecedor local que lhe faz chegar as fatias
de pizza. Uma fatia de pizza de queijo custa
2,50 dólares e uma pizza inteira 13,50. Para
satisfazer os pedidos de comida mais saudá-
vel, o cinema disponibiliza ainda refeições GO
Picnic — uma espécie de feijoada com feijão
preto, húmus e manteiga de amendoim. Mas
seguramente estas não são as refeições que
mais depressa voam das prateleiras.
Kopp grita para Sarah Finchan, que há nove
anos serve bedidas no Família: “O que é que
vendemos mais?” E Sarah responde-lhe: “Ba-
tatas fritas.”
Gerir um cinema ao ar livre pode ser mui-
to difícil. Kopp teve de pedir 1700 dólares de
empréstimo a um amigo para começar esta
temporada. “Não ganho um salário”, diz. “O
dinheiro que entra vai directo para o drive-in.”
Diz que tem gastos anuais de 72 mil dólares
com as remunerações do pessoal contratado.
“E depois há que acrescentar a carga de im-
postos da Virgínia, mais 9% para taxas sobre
alimentação, que também podem chegar aos
9,3%, e isso tudo somado é muito.” “Pergun-
tam-me quanto consegui ganhar no ano passa-
do e eu respondo 459 mil dólares. Mas quando
se acrescenta a esse valor todas as despesas...
Não me parece que a indústria de cinema tenha
muito lucro com isto.”
O Família Drive-in fecha no Inverno. Na Pri-
mavera e Outono abre aos fi ns-de-semana e
entre Junho e Agosto sete dias por semana.
“Dizem que um negócio para ter sucesso tem
de ser gerido com paixão”, diz Kopp, antes de
largar uma gargalhada. “Mas há alturas em que
penso que o melhor seria mesmo que alguém
me perguntasse se estou bom da cabeça!”
Com um sorriso forçado diz que trabalhou
durante 23 anos na Biblioteca do Congresso,
onde chegou a acumular três cargos de gestão.
“Esfalfava-me a trabalhar. E agora também me
esfalfo a trabalhar”, diz. “Quando me deito,
fi co a pensar nisto. Levanto-me a pensar nis-
to, e estou constantemente a fazer qualquer
coisa por isto.”
Kopp apresenta-nos Nancy Pence, que está
na cabine que serve de bilheteira e é a mais
antiga empregada do Família e também a mãe
de Jimmy Pence [o arrumador de carros]. Che-
gou a este cinema em 1989 com o marido, Jay,
o projeccionista (morreu em Março). “Estou
cá desde que montaram o segundo ecrã”, re-
corda. E é quando chega um homem com um
boné de basebol numa carrinha cheia de mi-
údos. “Quanto custa o bilhete para um miúdo
de 2 anos?”, pergunta. “Nada”, responde-lhe
Nancy. “Se eu quiser também posso ver este
fi lme online pela Netfl ix”, diz o homem en-
quanto paga pela prole. “Mas venho pela ex-
periência. É a minha estreia num drive-in.”
“Sou da velha guarda, gosto mesmo da película”, diz o projeccionista Harold Jett, do Família Drive-In
2 | Domingo 25 Agosto 2013 | 31
ALEXANDRA LUCAS COELHOATLÂNTICO-SUL
AZUL ROYAL
1 É sábado e Monarco faz 80 anos. A última vez
que o vi foi no cimo de um carro alegórico.
Eu estava a seus pés, misturada na Bateria da
Portela, centenas de caixas, repiques, choca-
lhos, agogôs, reco-recos, pandeiros, pratos,
surdos, as bancadas do Sambódromo cheias.
Ele vinha no carro da Velha Guarda da Portela,
os sambistas históricos que Marisa Monte convi-
dou para o disco Tudo Azul, recuperando canções
desde 1945. A voz de Monarco liderava, além da
cuíca e do tamborim. Monarco, enfi m, é a cara
que a Portela merece. Mas hoje, 17 de Agosto,
eu fi caria metida em casa a trabalhar não fosse a
minha amiga Maria. Ao telefone, ela ainda usa o
derradeiro argumento:
— Vem que dá uma crónica.
Como nem isso resulta, engendra forma de me
transportar e depois comunica que dentro de 15
minutos devo descer deste apartamento.
Portanto é sábado e estou a caminho dos 80
anos de Monarco, refl ectindo na difi culdade de
exercer o livre arbítrio no Rio de Janeiro. Mas uma
portuguesa tão chata que quer fi car em casa quan-
do toda a Portela chama para a festa é uma espé-
cie de inimputável: melhor mesmo uma carioca
decidir por ela.
2Claro que a Maria tinha razão, ainda ca-
minho por entre bancas de bandeiras, ca-
misetas e bandeletes, nem avistei ainda a
quadra da escola, e os pés já vão sozinhos.
Ó azul-Portela, aquele que não é do céu
nem é do mar, como diz a canção mais
amada de Paulinho da Viola. Azul royal: não há
cor mais vibrante.
CHRISTOPHE SIMON/AFP
Esquerda-caviar não é muito tropical, mas é muito Zona Sul do Rio de Janeiro
lhões em volta, infl acionando brutalmente o Rio
de Janeiro. Uma caipirinha a seis reais na quadra
da Portela é uma evidência da cidade que nunca
deixou de ser partida, o Rio das caipirinhas a 26
reais e o Rio das caipirinhas a seis reais. Vem-me
à memória aquela frase de Napoleão que está no
frigorífi co da Maria: “A religião é o que impede os
pobres de assassinarem os ricos.” Espantam-se com
as vitrines partidas no Brasil de 2013? O que me es-
panta é como vitrines, grades, seguranças privados
e toda a ostentação que protege a ostentação da
Zona Sul continua inteira.
5 A propósito, há o caso daquela dona de
bar da Zona Sul que no Facebook apoia as
acções em curso contra o capital e depois
cobra 25 reais por um copo de vinho que
em Portugal custaria dois euros. Esquerda-
caviar não é muito tropical, mas é muito
Zona Sul do Rio de Janeiro.
6 Ah, dirá o conhecedor de caipirinha, mas
essa cachaça da quadra devia ser ruim. Pois,
acredite, era Salinas, cachaça artesanal de
Minas. Uma caipirinha com Salinas a seis
reais seria para buscar até casa em Oswaldo
Cruz-Madureira. Aliás, revolucionário no
Rio era a geração dos 25 aos 35 mudar para a peri-
feria, abandonando os copos de vinho a 25 reais,
e os alugueres a cinco mil reais.
7 Mas, além da praia, se há um lugar em que o
Rio se reúne é a música, e dentro da música
nada é mais total que o samba. Então à epi-
fania da bolha segue-se a epifania da quadra
a abarrotar de gente mesmo misturada, toda
a gente igualmente apertada contra o palco
para avistar Monarco, chapéu panamá branco, ter-
no branco de linho, camisa com aquele toque azul
royal. Um cavalheiro.
8 Nasceu Hildemar Diniz, tornou-se Monarco
por causa de uma banda desenhada do Su-
per-homem que um amiguinho estava a ler.
Parece que havia um personagem chamado
Monarco. Já compunha, é sambista desde
criança, até hoje não ganhou um samba-
enredo, aquele que a escola leva para o desfi le no
Carnaval, e isso não teve importância nenhuma nis-
to: milhares de pessoas celebrando os seus 80 anos
hoje (e quinta-feira no Circo Voador), além de um
palco a transbordar de mestres: Paulinho da Viola,
Nelson Sargento, Teresa Cristina, Nilze Carvalho,
parte da Bateria, quase toda a Velha Guarda.
9 A condição de Monarco foi que o lucro das
entradas, a 10 reais, revertesse para os mui-
tos gastos do Carnaval.
— Ele só topou quando falei que podería-
mos fazer um evento para ajudar a Portela
— declarou à imprensa Olinda, sua mulher.
— A Portela é o grande amor dele.
Não só comprou as entradas da família como
a sua. No país da meia-entrada, da lista amiga e
dos convites, pagou para entrar no próprio ani-
versário.
E no momento em que Paulinho da Viola canta
Foi um rio que passou em minha vida, toda a qua-
dra o acompanha, braços ao alto, dando graças,
pretos, brancos, novos, velhos, pernas esguias ou
corpanzis, chinelas ou roupa de marca. Não há ci-
dade partida, só alegria de cantar junto este amor,
azul royal.
3 A única vez que estive
nesta periferia do Rio
(Oswaldo Cruz, Madu-
reira) foi justamente
para ver Paulinho da
Viola, mas nunca en-
trei na própria quadra da es-
cola. É como aquelas catedrais
que já são a nossa história mes-
mo sem nunca lá termos en-
trado. Só que, claro, dentro da
Catedral de Chartres ninguém
come macarrão com frango en-
quanto espera a celebração.
— Já comi um prato de ma-
carrão — anuncia, radiante, a
Maria, quando nos encontramos no meio da mul-
tidão. — É o prato favorito do Monarco.
Como já almocei, fi co pela fi la para a caipirinha.
À minha frente estão dois rapazes. Cinco minutos
depois já somos aqueles velhos conhecidos que
só existem no Rio de Janeiro. Depois eles contam
que moram no Cosme Velho e aí, como dizem os
cariocas, só me ocorre dizer: ai, morri. Há vida na
terra. Gente que ainda mora no Cosme Velho.
4 Quando chega a minha vez, vejo na parede
que uma caipirinha são seis reais (dois eu-
ros). Tentem achar uma caipirinha por seis
reais em qualquer boteco pé-sujo do eixo
Flamengo-Botafogo-Copacabana-Ipanema-
Leblon-Gávea-Jardim Botânico. Mais fácil
achar por 16. Se for no Arpoador, por 26. Então,
é a epifania da bolha: como algumas dezenas de
milhares praticam preços impossíveis para os mi-
32 | Domingo 25 Agosto 2013 | 2
NUNO PACHECOEM PÚBLICO
UM CANTO PELO CANTE C
ompletam-se na terça-feira cinco meses
sobre a entrega, no comité internacional
da UNESCO, da candidatura do cante alen-
tejano a Património Cultural Imaterial da
Humanidade. Isto depois de uma falsa par-
tida em Março de 2012, adiada para um ne-
cessário amadurecimento do processo. Agora, em
Dezembro de 2014 saberemos se o cante terá, nas
classifi cações da UNESCO, e entre centenas de can-
didaturas, o mesmo vitorioso destino do fado.
Entretanto, e porque uma candidatura exige que
o “candidato” viva e assegure “saúde” no futuro, os
promotores agitam-se. Um dia depois da entrega
na UNESCO, a 27 de Março de 2013, o responsável
pela candidatura, Paulo Lima, dizia ao PÚBLICO
que “muitas pessoas, cantadores, grupos corais,
câmaras têm que ser sensibilizados para a impor-
tância do que é este momento”. Porque o desafi o da
candidatura, sendo antigo, só agora começou.
Integrado neste esforço de notoriedade e cer-
tifi cação, o Centro de Estudos Documentais do
Alentejo dedica uma boa parte da mais recente
edição da revista Memória Alentejana ao cante, em
20 páginas onde se reúnem artigos, ensaios, teste-
munhos, memórias históricas, assinados por An-
tónio Cartageno, José Francisco Colaço Guerreiro,
José Orta, João Mário Caldeira, Jorge Moniz, Pedro
Mestre, Francisco Lourenço Teixeira, Francisco
Torrão, Paulo Ribeiro, Eduardo M. Raposo (direc-
tor da revista), com testemunhos de Maria Vitória
Afonso e Domingos Montemor e um poema inédito
de Urbano Tavares Rodrigues, datado de 13 de Fe-
vereiro de 2012. Lendo-os, fi camos a saber melhor
não só o signifi cado do cante como da existência de
uma confraria e de uma associação (a MODA) a ele
dedicadas. Um mundo de histórias e de vozes.
Recuando no tempo, às recolhas de Michel Gia-
cometti e Fernando Lopes-Graça (lançadas em LP
e depois passadas a CD com selo da Strauss/Portu-
galsom), é curioso reler o que ambos escreveram
sobre os cantos alentejanos no volume 4 da série,
dedicado ao Alentejo. Depois de assinalar várias
reservas e esconjurar os lugares comuns sobre o
género, escreveu Lopes-Graça: “Não constituirá
acaso grande temeridade o defi nir o povo alente-
jano como sendo o mais ‘musical’ da gente portu-
guesa — entendendo-se por aí a sua natural capaci-
dade para se traduzir e consciencializar em canto,
a sua rara espontaneidade mélica, enfi m, aquilo a
que poderemos chamar a
sua temperamental dispo-
nibilidade lírica, o que o
leva a achar boas todas as
ocasiões, todas as horas,
para dar largas à sua inata
musicalidade. E, porven-
tura, mais do que isso: a
gravidade que põe no acto
de cantar, para ele verda-
deiro acto de identifi cação
colectiva, de comunhão
espiritual com os do seu
sangue e da sua pátria, pa-
ra onde quer que vá, onde
quer que se encontre. Em roda, os olhos cerrados,
expressão concentrada do rosto, o mais das vezes
ombro a ombro ou braços com braços em ondula-
da movimentação, assim entoam os ganhões alen-
tejanos os seus cantos. E é como se cumprissem
um antigo e necessário ritual”. Giacometti, por seu
turno, notava: “Os textos poéticos, que, na sua tão
viva variedade, até nós chegam, traduzem comple-
xos específi cos nos quais, através dum simbolismo
que facilmente se deixa decifrar, se descobrem
aspirações profundas, tal como o revelam aquelas
quadras chamadas cantigas, que se desenvolvem
em torno de motivos essenciais ou se renovam ao
sabor dos acontecimentos e que nesta polifonia se-
vera encontraram um como que suporte natural.”
A isto acrescentava que a “lenta asfi xia do canto
coral e, mais geralmente, do canto tradicional alen-
tejano, chamam a uma tomada de consciência”. O
tempo ouviu-o, ainda que tardiamente.
Voltando à revista, cuja leitura se aconselha, o
poema de Urbano Tavares Rodrigues fi cará como
um dos seus últimos textos (o escritor morreu a 9 de
Agosto) a chegar a público. Um excerto fi nal crista-
liza a imagem que fi xou do cante: “Cantam naquele
silêncio/ ranchos de trabalhadores/ rurais que so-
nham/ um amanhã/ de igualdade/ nos corações das
casas/ de terra e pasto/ e a fl or da paz/ sorri-lhes/
como só ela/ sabe sorrir na epifania/ na apoteose da
luz só.” Por tudo isto, há-de cumprir-se a profecia
de José Afonso (em Cantar Alentejano): “Ó Alentejo
esquecido/ ‘inda um dia hás-de cantar”. A força do
cante impor-se-á pela alma do seu povo.
A força do cante alentejano impor-se-á pela alma do seu povo
comportamento de alguns
adolescentes tem contri-
buído para a ideia de que
é inevitável que essa etapa
da vida decorra com muitos
problemas: os jovens de ho-
je são apresentados como
seres instáveis, inacessíveis
à palavra de um adulto e
sempre disponíveis para se
meterem em sarilhos. Tudo
isso contribui para um certo
receio que muitos pais evi-
denciam no contacto com
os seus fi lhos mais jovens,
como se perante uma de-
terminação mais clara e
exigente fosse inevitável
seguir-se uma resposta ne-
gativa ou agressiva por parte
do fi lho. Mas adolescência
normal signifi ca “pedir tu-
do, e fi car com aquilo que os pais dão”, como me
disse há anos um jovem de 16 anos: nunca ouvi
defi nição mais perfeita!
Viajar à procura dos adolescentes, como fez o
PÚBLICO, continua a ser o melhor para todos.
DANIEL SAMPAIOPORQUE SIM
VIAGENS COM ADOLESCENTES N
a excelente série de artigos que o jornal
PÚBLICO dedicou aos adolescentes, o que
mais me interessou foi separar os factores
comuns dos aspectos distintivos. À primei-
ra vista, os 17 anos de Gonçalo, estudante
na Academia Contemporânea do Espec-
táculo (Escola de Artes no Porto), parecem bem
diferentes dos 17 de Ana Luísa, aluna de um curso
de técnica auxiliar de Saúde e residente em Fon-
tes, um “amontoado de casas” a 20 quilómetros
de Bragança. O quarto de Gonçalo, decorado com
um poema de Álvaro de Campos, embora peque-
no, está cheio de livros e discos; pouco se fala do
quarto de Ana Luísa, mas depressa se percebe que
é dominado pelo computador, onde a adolescente
pesquisa para a escola, mas não dispensa o Youtu-
be e o Facebook, onde já tem 618 amigos. O contex-
to social e escolar parece decisivo para estabelecer
a diferença entre estes dois jovens, onde à partida
o mais urbano surge melhor colocado para triun-
far no futuro, se ao interesse pelas artes se juntar
talento e oportunidade.
A reportagem identifi cou as diferenças entre os
adolescentes entrevistados, confi rmando a ideia de
que a heterogeneidade é característica dos jovens
de hoje, mas também evidenciou os factores co-
muns, que permitem identifi car a juventude como
Adolescência normal significa “pedir tudo, e ficar com aquilo que os pais dão”, como me disse há anos um jovem de 16 anos
um grupo social signifi cativo. Das notícias, ressalta
sobretudo a importância da família: por exemplo,
Ana Luísa fez-se fotografar abraçada aos avós e
Gonçalo “adora os pais… que fazem tudo para o
fazer feliz”. E a escola também surge como muito
presente, sendo nítida a importância que todos os
jovens lhe atribuem, embora alguns não mostrem
grande entusiasmo com a sua frequência.
Quando falo com alguns pais de adolescentes,
fi co por vezes perplexo com a falta de esperança
na possibilidade de infl uenciar os fi lhos: “só ligam
aos amigos”, “já não nos ouvem”, “não vale a pena
dizer nada porque eles agora só fazem o que que-
rem”, são frases habituais no discurso parental. A
verdade é que a investigação tem demonstrado, de
forma inequívoca, como os pais constituem, na
adolescência, a mais importante referência para
os fi lhos, por isso os mais velhos na família nunca
podem desistir de infl uenciar de modo positivo,
em valores, atitudes e comportamentos. A ideia de
que o futuro resolverá e que, por ser uma época
de “crise”, tudo de bom aparecerá com o tempo,
é uma das crenças mais perniciosas na educação
dos mais novos: como em tantas outras situações,
intervir depressa com afecto fi rme é o segredo para
o êxito educativo.
A mediatização dos aspectos menos positivos do
2 | Domingo 25 Agosto 2013 | 33
PERSONAGENS DE FICÇÃO ANGELA LUSOPROTECTORACTEN MERKELRUI CARDOSO MARTINS
A MAMÃ METRALHAA silly season acabou uma semana antes em Portugal: é altura de falar a sério dos nossos políticos e governantes, como Angela Merkel. Obrigado Frau Merkel por nos deixar falar de si, diga só quanto é que é
Considerada pela revista Forbes como a 2.ª
pessoa mais poderosa do mundo (logo de-
pois de Judite de Sousa), e a primeira mulher
a atingir esse lugar (na verdade, depois de
Fátima Campos Ferreira e Teresa Guilher-
me), Angela Merkel é uma chanceler alemã
que em nova fez nudismo e mais tarde deixou os
portugueses de calças na mão.
Não se esperava que uma jovem cientista quími-
ca, com suave e cristão nome do meio — Dorothea
—, pudesse, em poucos anos, descer tão alto até à
reputação internacional de Margaret Thatcher, a
de Iron Lady, ou Dama de Ferro. Melhor, The Iron
Frau. Mas a personalidade é mais complexa do
que a da falecida primeira-ministra inglesa, talvez
pelo recurso desavergonhado aos olhinhos azuis
redondos, de efeito certo, que levaram o seu men-
tor Helmut Kohl, quando a fez ministra, a chamar-
lhe “mein Mädchen” (“a minha menina”). E, num
perverso efeito contrário para chegar ao mesmo
— o poder absoluto —, o peso corporal da Angela
tranformou-se no peso político da Merkel. Ela faz
lembrar gordas tartes de maçã a arrefecer na janela
e outras coisas do passado: Angela Dorothea Merkel
é também a Mutti (“mamã”) da Europa. E com is-
so tem levado gerações de políticos-basbaques de
países periféricos que pensavam ser autónomos e
independentes.
É o caso de José Sócrates, um exemplo de fato
italiano vestido à pressa para negociar com alemães.
Dizia ele a Merkel que Portugal ia ser um enorme
exportador de tecnologia (o Magalhães…) e um
exemplo para o mundo em matéria de freeports,
aeroportos gigantes e tratados de Lisboa com sire-
nes a apitar na rua. Íamos ser ricos e cosmopolitas
como “o resto da Europa”, e Merkel sorria e até pa-
receu zangada quando Passos Coelho, fi ngindo que
nunca ia aumentar os impostos, fez Sócrates cair.
O chumbo do PEC IV foi, na verdade, uma guerra-
relâmpago ganha pela Alemanha, um Blitzkrieg no
futuro protectorado no Oeste da Zona Euro, depois
do esmagamento de Atenas. Além do acordo assi-
nado com a troika houve, ao que parece, ao que
parece mesmo, um acordo íntimo entre Passos e
a chanceler:
“Lisboa, 2011
Querida Angela: obrigado por tudo, mamã (posso
chamar-lhe Mutti?).
Tomo esta liberdade por pertencer à sua família
política de sangue liberal. E porque debaixo de
certa luz da televisão sou loiro como um ariano
que trauteia “Heili Heilo”… Mas passo ao juramen-
to que a Mutti me sugeriu, e os seus desejos são
pan-ordens!
Eu Pedro abaixo-assinado, futuro primeiro-minis-
tro de Portugal, juro pela minha honra e por Deus e
por tudo quanto é MAIS MERCADO, que vou fazer
qualquer coisinha, até a mais caprichosa e contra-
producente, que a Alemanha me pedir nos próxi-
mos anos, em troca de apoio. Vou devolver Portugal
e o seu povo ao lugar que lhe pertence desde o fi m
das Descobertas. Vou punir os despesistas. À nossa
mesa voltarão as colheradas de óleo de fígado de
bacalhau para minorar o raquitismo das crianças,
sopas-de-cavalo-cansado para fomes nervosas e
‘mata-bicho’ ao pequeno-almoço para evitar per-
guntas. Tentarei reintroduzir, para os que não se
apresentam às claras na sopa-dos-pobres, a regra
da sardinha que dá para três. E um litro de vinho dá
de comer a um milhão de piegas desempregados.
Para os privilegiados que viajam para férias (eu e
os meus guarda-costas incluídos), regressarão os
acidentes mortais na Nacional 1 e N125 e o tejadi-
lho do carro carregado de azeite, batatas, latas de
salsicha tipo alemão e, num toque contemporâneo,
hamburguesas congeladas (sei que a Mutti nasceu
em Hamburgo, antes de emigrar para a Alemanha
de Leste e aí minar o comunismo, ah, ah…). Pa-
ra as crianças voltará a regra de só um gelado por
semana — o coxo “perna-de-pau” — e é se for. No
seguimento destas medidas, reduzirei a altura dos
portugueses em dez centímetros e a esperança de
vida em dez anos.
Alguns empreendores escolhidos a dedo irão
crescer, pelo contrário, 1000 por cento ou mais,
até baterem no tecto.
Quanto aos desajustados, tentarão a emigração
e se encontrarem um alemão com comichão lavar-
lhe-ão, como eu faço à Mutti Merkel, o rabão com
água de malvas. E tudo farei para que a Alemanha
ganhe o mais possível com a crise do euro, pagando,
pelas minhas contas, no período entre 2010 e 2014,
menos 41 mil milhões de euros em juros da dívida
do que esperava, enquanto Portugal irá pagar 113
mil milhões pelo empréstimo de 78 mil milhões de
‘ajuda solidária’! Isto não é uma negociação, não
admito que me diga nein! O todo seu, mein chef-
kaiser-führer,
Pedro P. C. ”
Angela Merkel, que cresceu com a ética do pai,
pastor protestante em território socialista — onde a
jovem liderou, antes da queda do Muro de Berlim,
a agitprop da juventude comunista —, aceitou as
condições draconianas impostas por Passos Coelho.
Era, por assim dizer, uma súmula do liberalismo
pró-germânico em que acreditava e uma espécie
de comunismo com toques de António Silva en-
quanto aldrabão simpático n’O Leão da Estrela ou
n’O Grande Elias: o que é mein é mein, o que é teu é
nosso. A carta prova ainda o que parecia impossí-
vel: que Passos Coelho, algures na vida, acertou nas
contas. E teve um efeito Gesamtkunstwerk (obra de
arte total) em Merkel, cientista que se doutorara nos
difíceis domínios da química quântica. Um campo
do conhecimento em que as moléculas e átomos se
fundem com efeitos paradoxais semelhantes aos do
neutrino (elusiva partícula que está e não está, é e
não é ao mesmo tempo). Igual ao “ajustamento”
económico português, esse prodígio que consegue
ser êxito quando é também estrondoso fracasso.
Angela Merkel, 59 anos, chanceler da Europa des-
de 2005. O seu compatriota Ratzinger (Papa Bento
XVI) diz que foi Deus que lhe pediu para resignar.
34 | Domingo 25 Agosto 2013 | 2
É bom quando um artista nos obriga a andar
pela cidade. Com Almada Negreiros é as-
sim. Se queremos ver os desenhos que dei-
xou gravados ou pintados em várias pare-
des e vitrais temos que percorrer Lisboa,
da Cidade Universitária à Gare Marítima
de Alcântara ou à da Rocha Conde de Óbidos.
Agora que se celebram 120 anos do seu nasci-
mento apareceram uns olhos à beira-rio. Ali no
fi nal (ou no início) da Ribeira das Naus, junto à
esplanada, erguem-se contra o céu duas sobrance-
lhas e dois olhos: Reminiscência, escultura a partir
da Auto-Reminiscência, do próprio Almada.
Mesmo gravadas ou pintadas em pedra, houve
coisas que se perderam: uns frescos nos Correios
de Aveiro mal-amados e que acabam por ser des-
truídos depois de durante um período terem sido
escondidos, um mural que existiu na estação dos
correios dos Restauradores, em Lisboa, e que foi
sacrifi cado numa remodelação, uns painéis para
a Pastelaria Suíça, no Rossio, conta Joaquim Vieira
na Fotobiografi a de Almada.
CRÓNICA URBANAVÁRIOS LOCAIS DE LISBOA
A partir de 3 de Setembro recomeçam as visitas guiadas à Lisboa de Almada inseridas nas comemorações dos 120 anos do nascimento do artista. Ver mais em: [email protected]ã: 218170742, Tarde: 218170593
Cento de vinte anos depois do nascimento de Almada Negreiros, é tempo de redescobrir a cidade através das obras que ele pintou e gravou em pedras e em vidros. Alexandra Prado Coelho (texto) e João Catarino (Ilustração)
ALMADA, UNS OLHOS À BEIRA-RIO
Com outros cruzamo-nos milhares de vezes. A
empena lateral do edifício do Diário de Notícias,
com vários jornais sobrepostos, é um trabalho de
Almada, visível por quem vier do lado do Marquês
de Pombal. Mas é preciso entrar no jornal para ver
o imenso planisfério (são 54 metros quadrados),
onde Neptuno, ninfas, animais, plantas e os signos
do Zodíaco se encontram, e, ao lado, o mapa de
Portugal e as quatro estações.
Não muito longe dali, na Avenida de Berna, es-
tão os vitrais que Almada fez, numa das várias co-
laborações com o arquitecto Pardal Monteiro. “Fui
educado pelos jesuítas, de modo que estava mais
ou menos informado”, terá dito sobre as eventuais
difi culdades de tratar um tema religioso. Mais à
frente, o universo da abstracção e da geometria no
painel em pedra gravada Começar, de 1968-69, no
átrio da Fundação Calouste Gulbenkian. Também
em pedra incisa, a representação dos homens do
Conhecimento, das suas leis e fábulas, nas paredes
das Faculdades e da Reitoria da Cidade Universi-
tária, no Campo Grande.
E depois, por Lisboa fora, até junto ao Tejo e às
duas gares marítimas. Na fotobiografi a, Joaquim
Vieira chama “odisseia à beira-rio” ao trabalho gi-
gantesco que foi a pintura dos frescos, cinco anos
ao todo, à beira-Tejo — as fotos mostram Almada a
desenhar no chão, de gatas, sobre enormes folhas
de papel, que era depois perfurado ao longo das
linhas desenhadas e passado para a parede.
Em Alcântara, um marinheiro e a namorada,
um piquenique à sombra de uma árvore, D. Fuas
Roupinho salvo à beira do abismo, a Sé de Lis-
boa ao fundo, e as peixeiras em primeiro plano,
o aqueduto e os barcos no Tejo, e a Nau Catrineta
“que tem muito que contar”. Na Rocha Conde de
Óbidos, um desenho de linhas mais cubistas, com
a modernidade do mundo industrial a romper por
entre a mesma vida bucólica da beira-rio.
Pena é que já não se possa ver a casa do nº 28
da Rua da Alcolena, no Restelo, que foi, toda ela,
concebida como uma obra de arte completa, pro-
jecto do arquitecto António Varela com azulejos
e vitrais de Almada Negreiros. Foi para essa casa
que Almada fez o belíssimo vitral Eros e Psique
— a investigadora Barbara Aniello dedicou-lhe
há poucos anos um estudo em que defende que
a moradia “constitui um dos mais raros e belos
exemplos do diálogo inter-artes em Portugal no
século XX”, sendo, no seu conjunto, uma metá-
fora desse mito de Psique representado no vitral
de Almada. Mas a moradia foi comprada, sofreu
obras profundas, e é hoje outra.
Há, contudo, de Almada trabalhos que nos che-
gam para um dia inteiro de passeio pela cidade
(e tantas outras coisas, dos textos ao teatro, aos
cartazes, às ilustrações). E há agora aqueles olhos
à beira-rio, esse rosto que ele próprio tantas vezes
representou, com os enormes olhos por baixo das
espessas sobrancelhas e que aqui é totalmente
engolido por esses olhos, transformando-se em
duas bolas e duas meias luas cheias de expressi-
vidade.
“Olha, aquele é o Almada Negreiros”, diz uma
avó a uma menina de vestido às bolinhas que
passeia na Ribeira das Naus. A menina, talvez de
uns sete ou oito anos, provavelmente não sabe
nada sobre esse homem que nasceu há 120, mas
olha para os dois olhos e as linhas rectas que de-
les saem, e talvez se interrogue se é de riso ou
espanto, ironia ou mágoa, zanga ou sabedoria,
esse olhar que nos interpela, logo antes do céu
e do mar.
chegou ao público a colecção inédita “marsupilami”, emem edição do e capaap moole.l hecctort e a ta ia a monmontamtamo ao acamcampamamentento no a mmargargem em do do laglago to apaapahpihp é. é. desdesconconhechecem em queque umuma la lendenda ía índindia ma muituito ao antintiga ga refrefereere
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