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A POSSIBILIDADE DE INTERVENÇÃO JUDICIAL NAS CHAMADAS POLÍTICAS PÚBLICAS Valéria Maria Lacerda Rocha * RESUMO. A classificação das normas constitucionais segundo critérios de aplicabilidade e eficácia proporcionou a inclusão dos direitos sociais entre normas de natureza programática, cuja implementação somente poderia ocorrer mediante políticas públicas. As ações governamentais tendentes à implementação dos direitos sociais, por serem consideradas atos discricionários, estariam fora até mesmo do controle judicial, uma vez que os critérios de conveniência e oportunidade ficariam a cargo do administrador público. A intervenção judicial nas políticas públicas ocorrerá quando os critérios escolhidos pelo administrador público não atenderem aos princípios constitucionais vigentes, uma vez que subordinados à ordem jurídica constitucional. PALAVRAS-CHAVE. Política Pública. Intervenção Judicial. Atos discricionários. 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objetivo discorrer acerca da natureza jurídica das normas de direitos sociais, bem como a possibilidade de intervenção do judiciário nas chamadas políticas públicas. Inicialmente, procurar-se-á abordar o tema da classificação das normas constitucionais, fazendo-se uma crítica à classificação tradicional, a qual, embora tenha em um primeiro momento colaborado para fundamentar a efetividade dos direitos sociais, posteriormente acabou servindo de justificação para impedir a proteção judicial. Classificar os direitos sociais como normas programáticas não é uma atitude equivocada; entretanto, buscar, com esta denominação, retirar-lhe a eficácia é que torna inviável tal estudo. Afinal, há muito os direitos sociais são considerados normas fundamentais e, como tal, protegidos pela aplicação imediata prevista no parágrafo primeiro do artigo 5.º da CF/88. * Juíza de Direito no Rio Grande do Norte; Especialista em Direito Constitucional pela Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte e Universidade Potiguar, e em Direito Processual pela Escola da Magistratura do Ceará; Professora da Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte.

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  • A POSSIBILIDADE DE INTERVENO JUDICIAL NAS CHAMADAS POLTICAS PBLICAS

    Valria Maria Lacerda Rocha

    RESUMO. A classificao das normas constitucionais segundo critrios de aplicabilidade e eficcia proporcionou a incluso dos direitos sociais entre normas de natureza programtica, cuja implementao somente poderia ocorrer mediante polticas pblicas. As aes governamentais tendentes implementao dos direitos sociais, por serem consideradas atos discricionrios, estariam fora at mesmo do controle judicial, uma vez que os critrios de convenincia e oportunidade ficariam a cargo do administrador pblico. A interveno judicial nas polticas pblicas ocorrer quando os critrios escolhidos pelo administrador pblico no atenderem aos princpios constitucionais vigentes, uma vez que subordinados ordem jurdica constitucional. PALAVRAS-CHAVE. Poltica Pblica. Interveno Judicial. Atos discricionrios.

    1 INTRODUO

    O presente trabalho tem como objetivo discorrer acerca da natureza jurdica das normas de direitos sociais, bem como a possibilidade de interveno do judicirio nas chamadas polticas pblicas.

    Inicialmente, procurar-se- abordar o tema da classificao das normas constitucionais, fazendo-se uma crtica classificao tradicional, a qual, embora tenha em um primeiro momento colaborado para fundamentar a efetividade dos direitos sociais, posteriormente acabou servindo de justificao para impedir a proteo judicial.

    Classificar os direitos sociais como normas programticas no uma atitude equivocada; entretanto, buscar, com esta denominao, retirar-lhe a eficcia que torna invivel tal estudo. Afinal, h muito os direitos sociais so considerados normas fundamentais e, como tal, protegidos pela aplicao imediata prevista no pargrafo primeiro do artigo 5. da CF/88.

    Juza de Direito no Rio Grande do Norte; Especialista em Direito Constitucional pela Escola da Magistratura

    do Rio Grande do Norte e Universidade Potiguar, e em Direito Processual pela Escola da Magistratura do Cear; Professora da Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte.

  • Abordar-se-, ainda, um pouco sobre a evoluo do tema no tocante ao reconhecimento dos direitos sociais como fundamentais; e, nessa qualidade, no podem ficar disposio da vontade pessoal ou gerencial dos governantes, inclusive com a previso dos meios legais de proteo coletiva. Principalmente, porque estes meios permitem muito mais o acesso jurisdio constitucional do que as demandas individuais e particulares.

    Por ltimo, concluir-se- que as polticas pblicas, definidas como aes do governo tendentes a efetivar os direitos sociais, podem e devem sofrer a interferncia judicial quando no forem atendidos os objetivos para os quais foram criadas, ou quando sua atuao for deficiente. Embora a doutrina tenha, durante muito tempo, se posicionado desfavorvel reviso ou conhecimento judicial dos atos discricionrios, ou exclusivamente polticos, pelo judicirio, este deve sempre atuar quando no for respeitada a Constituio do pas.

    O poder judicirio est devidamente legitimado pelo pargrafo nico do artigo 1. da Constituio Federal a agir em casos de omisso dos governantes e legisladores. Verificar-se, ao longo do estudo, que uma boa parte dos operadores do direito continua atrelada aos ditames tradicionais da tripartio das funes pblicas, de forma rgida e liberalista, sem uma preocupao voltada para um novo quadro delineado com a chamada jurisdio constitucional traada ao longo da evoluo do Estado liberal ao Estado democrtico de direito.

    2 A CLASSIFICAO DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS E A SUA EFETIVIDADE

    Verifica-se que uma boa parte da doutrina nacional procurou fazer a classificao das normas constitucionais de acordo com a aplicabilidade e eficcia dos efeitos advindos dos dispositivos legais. Esta classificao tradicional, bastante defendida por Jos Afonso da Silva1, leciona que as normas constitucionais podem ser classificadas como normas de eficcia plena, contida e limitada.

    1 SILVA, Jos Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1982.

    p.89-91

  • Segundo os seus ensinamentos, so normas de eficcia plena aquelas que, desde sua entrada em vigor j esto aptas produo imediata de todos os efeitos nela previstos, no necessitando assim de, norma infraconstitucional para viabilizar-lhe a aplicabilidade. As normas de eficcia contida so aquelas que tambm esto aptas produo imediata dos efeitos previstos na Constituio; entretanto, o constituinte originrio deixou margem atuao discricionria do poder pblico competente, que poder reduzir os efeitos da norma constitucional por meio de lei infraconstitucional. H, ainda, as normas de eficcia limitada, cuja aplicao indireta, mediata e reduzida, haja vista que necessitam de normas posteriores, lei complementar ou ordinria, para permitir o exerccio do direito constitucionalmente consagrado.

    A professora Maria Helena Diniz2, levando em conta tambm a aplicabilidade e eficcia das normas constitucionais, prope uma mudana de nomenclatura na classificao j defendida por Jos Afonso da Silva, porm sem grandes alteraes de contedo. Segundo seus ensinamentos as normas constitucionais so classificadas em: normas de eficcia absoluta, eficcia plena, eficcia relativa restringvel e eficcia relativa dependente de complementao legislativa.

    Posteriormente, foram tambm includas, na classificao das normas constitucionais, as chamadas normas programticas, que nas lies de Jorge de Miranda so:

    comandos-valores; conferem elasticidade ao ordenamento constitucional; tm como destinatrio primacial embora no nico o legislador, a cuja opo fica a ponderao do tempo e dos meios em que vm a ser revestidas de plena eficcia (e nisso consiste a discricionariedade); que no consentem que os cidados ou quaisquer cidados as invoquem j(ou imediatamente aps a entrada em vigor da Constituio), pedindo aos tribunais o seu cumprimento s por si, pelo que pode haver quem afirme que os direitos que delas constam mxime os direitos sociais, tm mais natureza de expectativas que de verdadeiros direitos subjectivos; aparecem, muitas vezes, acompanhadas de conceitos indeterminados ou parcialmente determinados 3.

    Tal classificao, como bem salienta Cludio Pereira de Souza Neto, merece todos os mritos na medida em que forneceu argumentos consistentes para

    2 DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. So Paulo: Saraiva, 1992. p. 98-103.

    3 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 4. ed. Portugal: Coimbra Editora, 1990, p. 218

  • a concesso de maior efetividade Constituio, j que as tipologias anteriores, por ela substitudas, estabeleciam de plano, a inefetividade de algumas normas constitucionais4. Entretanto, este modo de classificar as normas constitucionais no pode mais prevalecer diante do quadro atual do direito constitucional brasileiro que, segundo Luis Roberto Barroso, vive um momento virtuoso. Do ponto de sua elaborao cientfica e da prtica jurisprudencial, duas mudanas de paradigma deram-lhe nova dimenso: a) o compromisso com a efetividade de suas normas; e b) o desenvolvimento de uma dogmtica da interpretao constitucional5

    As expresses tradicionais normas programticas, normas de eficcia limitada acabaram por impedir a efetividade de determinadas normas, principalmente as referentes aos direitos sociais, sob o argumento de que necessitavam da atividade do legislador, no cabendo portanto ao judicirio intervir, sob pena de usurpao de suas funes. O prprio Supremo Tribunal Federal, quando chamado a intervir, opta por decidir levando em considerao a fundamentao material da norma invocada. Em recente julgado, o STF, quando se pronunciou sobre a aplicabilidade do pargrafo 3. do artigo 192 da Constituio Federal de 1988, posicionou-se no sentido de que se tratava de norma de eficcia limitada, dependendo de legislao suplementar.

    E M E N T A: TAXA DE JUROS REAIS - LIMITE FIXADO EM 12% A.A. (CF, ART. 192, 3) - NORMA CONSTITUCIONAL DE EFICCIA LIMITADA - IMPOSSIBILIDADE DE SUA APLICAO IMEDIATA - NECESSIDADE DA EDIO DA LEI COMPLEMENTAR EXIGIDA PELO TEXTO CONSTITUCIONAL - APLICABILIDADE DA LEGISLAO ANTERIOR A CF/88 - RECURSO EXTRAORDINRIO CONHECIDO E PROVIDO. A regra inscrita no art. 192, 3, da Carta Poltica - norma constitucional de eficcia limitada - constitu preceito de integrao que reclama, em carter necessrio, para efeito de sua plena incidncia, a mediao legislativa concretizadora do comando nela positivado. Ausente a lei complementar reclamada pela Constituio, no se revela possvel a aplicao imediata da taxa de juros reais de 12% a.a. prevista no art. 192, 3, do texto constitucional.RE 170131 / RS - RIO GRANDE DO SUL - RECURSO EXTRAORDINRIO Relator(a): Min. CELSO DE MELLO.

    J em outra deciso, o Superior Tribunal de Justia entendeu pela impossibilidade da priso do depositrio infiel, quando deixa de cumprir contrato de

    4 BARCELLOS, Ana Paula et. al. A nova interpretao constitucional: ponderao, direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.290

    5 BARCELLOS, Ana Paula et. al., op. cit .p.43.

  • financiamento bancrio com alienao fiduciria em garantia, por dvida que se elevou, em alguns meses, de R$ 18.700,00 para R$ 86.858,24, porque fere o princpio da dignidade da pessoa humana. No poderia ser o devedor privado de seu maior bem, a liberdade, por flagrante abuso na incidncia de juros excessivos, o que compromete o princpio da dignidade da pessoa humana.

    HABEAS CORPUS. Priso civil. Alienao fiduciria em garantia. Princpio constitucional da dignidade da pessoa humana. Direitos fundamentais de igualdade e liberdade. Clusula geral dos bons costumes e regra de interpretao da lei segundo seus fins sociais. Decreto de priso civil da devedora que deixou de pagar dvida bancria assumida com a compra de um automvel-txi, que se elevou, em menos de 24 meses, de R$ 18.700,00 para R$ 86.858,24, a exigir que o total da remunerao da devedora, pelo resto do tempo provvel de vida, seja consumido com o pagamento dos juros. Ofensa ao princpio constitucional da dignidade da pessoa humana, aos direitos de liberdade de locomoo e de igualdade contratual e aos dispositivos da LICC sobre o fim social da aplicao da lei e obedincia aos bons costumes. Arts. 1, III, 3, I, e 5, caput, da CR. Arts. 5 e 17 da LICC. DL 911/67.Ordem deferida. (HC 12.547/DF, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 01.06.2000, DJ 12.02.2001 p. 115)

    Veja-se que, nestes dois casos, foram dadas solues diversas, embora se tratasse de normas semelhantes. Deixando, assim, transparecer que o posicionamento dos Tribunais Superiores no est atrelado aos aspectos formais das normas, mas fundamentao material e poltica que se apresenta no contexto prtico.

    Outro critrio formalista adotado pela doutrina, como bem salienta Cludio Pereira de Souza Neto6, o que divide os direitos sociais em direitos de defesa e prestacionais, afirmando que os primeiros seriam normas de eficcia plena, ao passo que, os ltimos seriam de eficcia limitada. Posio que tambm no chegou a solucionar o problema da efetividade dos direitos sociais, visto que tambm repassa a efetivao de tais direitos para as mos do legislador ordinrio e discricionariedade do governante.

    Os direitos e garantias individuais inseridos no artigo 5. da CF/88, por fora do pargrafo primeiro de referido dispositivo legal, possuem aplicao imediata, no necessitando portanto de interveno legislativa para a sua efetivao;

    6 BARCELLOS, Ana Paula et. al. A nova interpretao constitucional: ponderao, direitos fundamentais e

    relaes privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.296

  • no obstante, presencia-se uma grande resistncia por parte dos operadores do direito e, principalmente, do administrador pblico, em reconhecer que os direitos sociais, embora no inseridos formalmente nas disposies do artigo 5., so verdadeiramente direitos fundamentais, passveis, portanto, de aplicao imediata, por incidncia do pargrafo nico do referido artigo.

    3 A NATUREZA JURDICA DOS DIREITOS SOCIAIS ENQUANTO NORMA PROGRAMTICA

    Percebe-se claramente que os direitos sociais foram relegados, pela doutrina tradicional, condio de normas programticas, cuja eficcia e exigibilidade dependiam da ao positiva dos Poderes Legislativo e Executivo, no cabendo assim ao indivduo socorrer-se do Poder Judicirio no sentido do seu cumprimento, haja vista que se tratava apenas de expectativas de direitos, os quais seriam implementados segundo a convenincia e disponibilidade das polticas pblicas a serem desenvolvidas nos planos governamentais, e de acordo com as dotaes oramentrias.

    Efetivamente, no de todo falsa a afirmativa de que os direitos sociais fundamentais possuem natureza de norma jurdica programtica. Incorreto filiar-se ao pensamento de que, por serem normas programticas, no possuem efetividade e aplicabilidade imediata, haja vista estarem condicionadas, unicamente, vontade poltica e discricionariedade de legisladores e governantes, considerados sobreditos direitos como inaplicveis at que sejam adotadas as medidas necessrias a sua implementao.

    Os direitos sociais devem ser entendidos como normas constitucionais que definem metas e finalidades, as quais o legislador ordinrio deve elevar a um nvel adequado de concretizao. Essas normas-programas prescrevem a realizao, por parte do Estado, de determinados fins e tarefas. Elas no representam meras recomendaes ou preceitos morais com eficcia tico-poltica meramente diretiva, mas constituem Direito diretamente aplicvel.7

    7 ANDREAS. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha.Srgio Antnio Fabris Editor, p.

    20.

  • Os direitos sociais, como direitos fundamentais que so, respondem aos anseios da sociedade. No esto a servio de interesses particulares, individuais, mas, sim, de toda uma coletividade, almejando atenuar os efeitos da desigualdade social, principalmente nos pases perifricos.

    Muitos autores e juzes no aceitam, at hoje, uma obrigao do Estado de prover diretamente uma prestao a cada pessoa necessitada de alguma atividade de atendimento mdico, ensino, de moradia ou alimentao. Nem a doutrina nem a jurisprudncia tm percebido o alcance das normas constitucionais programticas sobre direitos sociais, nem lhes dado aplicao com princpios-condio da justia social. A negao de qualquer tipo de obrigao a ser cumprida na base dos Direitos Fundamentais Sociais tem como conseqncia a renncia de reconhec-los como verdadeiros direitos8.

    Assim, dada a sua importncia, os direitos sociais no podem ser vistos como inaplicveis e sem efetividade, sob pena de se desacreditar na prpria ordem constitucional vigente. Continua o professor Andreas Krell seus ensinamentos, afirmando que os Direitos Fundamentais Sociais da Carta de 1988 exercem um importante papel, cumprindo ao lado de sua funo jurdico-normativa, uma funo sugestiva, apelativa, educativa e, acima de tudo, conscientizadora.9 Ademais, sendo normas programticas, esto a apontar para finalidades futuras, e a servirem de pauta para movimentos reivindicatrios que lhe objetivem a implementao.

    Os direitos sociais possuem natureza de normas fundamentais e, assim, esto amparados pelo pargrafo primeiro do artigo 5. da CF/88, que preceitua serem as normas de direitos fundamentais de aplicao imediata. E, sendo de aplicao imediata, no necessitam necessariamente de uma lei, para a produo de seus efeitos. A sua regulamentao quando houver, nada acrescentar de essencial: apenas pode ser til (ou, porventura, necessria) pela certeza e segurana que criar quanto s condies de exerccio dos direitos ou quanto delimitao frente a outros direitos.

    Entretanto, a funo do dispositivo constitucional de aplicao imediata dos direitos fundamentais (pargrafo primeiro do art. 5. da CF/88), com relao aos direitos sociais, ser a de servir aos rgos estatais como tarefa principal na efetivao desses direitos, criando condies materiais para a sua realizao.

    8 ANDREAS. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha.Srgio Antnio Fabris Editor, p.23

    9 ANDREAS. Op.cit.p. .

  • Devendo entender-se, como eficcia jurdica, a capacidade que tem uma norma constitucional para produo de seus efeitos. E, como efetividade, o desempenho concreto da funo social do direito, ou seja, a materializao, no mundo dos fatos, dos preceitos legais.

    4 AS TUTELAS COLETIVAS COMO MEIOS DE PROTEO OS DIREITOS SOCIAIS

    A constituio alia, aos direitos civis e s liberdades pblicas, os direitos sociais, que transpassam a esfera privada e individual, para alcanar interesses gerais, coletivos; interesses estes que a professora Gesa de Assis Rodrigues10 denomina de direitos transindividuais, gnero em que so espcies os direitos difusos, coletivos e individuais homogneos.

    Segundo a legislao, os direitos difusos so de natureza indivisvel, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstncias de fato(CDC). Pode-se citar, como exemplo, uma fbrica que gera empregos em uma pequena cidade, mas que se encontra poluindo o meio ambiente.

    Tambm, segundo o CDC, so direitos coletivos os de natureza indivisvel de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas entre si ou com a parte contrria por uma relao jurdica base. Exemplificando, ter-se- a possibilidade de o sindicato negociar a reduo da jornada de trabalho, com a respectiva reduo salarial.

    J os direitos individuais homogneos apresentam maior dificuldade conceitual. Entretanto, caracterizam-se por serem direitos individuais de parcela relevante da sociedade, nmero determinvel ou de difcil determinao, ligados por questes de fato ou de direito. So disponveis, na maior parte dos casos, por serem de natureza patrimonial, cuja reparao deve ser direta ao interessado.

    Para a defesa desses direitos transindividuais, o Estado Democrtico de Direito adotou mecanismos de tutela judicial e extrajudicial, promovendo assim o acesso Justia. A proteo coletiva desses direitos permite o verdadeiro acesso prestao jurisdicional, fato este que, em demandas individuais, no seria permitido

    10 RODRIGUES, Gisa de Assis. Ao civil pblica e termo de ajustamento de conduta. Forense: Rio de Janeiro, 2002.

  • satisfatoriamente. A CF/88, em vrios dispositivos, garante a tutela coletiva dos direitos, como por exemplo: a ao popular, o mandado de segurana coletivo, a defesa coletiva por associao e sindicato, as aes diretas de constitucionalidade etc. Estabelece, ainda, as funes institucionais do Ministrio Pblico.

    Por isso afirmamos que o Estado democrtico de Direito tem como decorrncia fundamental a proteo coletiva desses direitos, porque a tutela estritamente individual no permite o verdadeiro acesso justia dessas demandas. A Constituio Federal brasileira de 1988 garante, em vrios dispositivos, a tutela coletiva dos direitos como por exemplo ao prever a ao popular e a defesa coletiva que a Associao e o Sindicato podem fazer de seus associados 11.

    A inexistncia das tutelas coletivas ensejaria uma profunda injustia, uma vez que somente seriam protegidos aqueles que tivessem fora para recorrer para os tribunais, impondo, de fato, uma limitao ao princpio da isonomia. As tutelas coletivas foram consagradas pela Constituio Federal de 1988 como conseqncia da prpria adoo do Estado Democrtico de Direito, devendo servir tal fato como fundamentao para a legitimidade do poder judicirio, no sentido de atuar sempre que direitos difusos, coletivos e individuais homogneos sejam violados ou ameaados.

    A tutela coletiva permite que o cidado tenha uma nova perspectiva da atividade jurisdicional, j que o processo coletivo mais participativo, ou porque ele provocado pelo cidado, ou pela associao ou sindicato nos quais participa, ou pela amplitude dos beneficirios da deciso judicial 12.

    De fato, hoje, vrios so os meios e os legitimados a exigirem a efetivao dos direitos metaindividuais, embora ainda tnue as aes propostas, e tmidas as decises proferidas.

    11 RODRIGUES, Gesa de Assis. Ao civil pblica e termo de ajustamento de conduta. Forense: Rio de Janeiro. 2002. p. 37

    12 RODRIGUES, Gesa de Assis. op. cit. p. 38.

  • 5 A POSSIBILIDADE DE INTERFERNCIA DO JUDICIRIO NAS CHAMADAS POLTICAS PBLICAS

    Como j visto anteriormente, durante certo tempo negou-se efetividade e eficcia aos direitos sociais, por se entender que so normas cuja aplicabilidade necessita da ao do poder pblico, legislativo ou executivo. Subtraa-se at mesmo a possibilidade de se recorrer ao Poder Judicirio, com objetivo da proteo de referidos direitos, haja vista constituir-se mera expectativa de um direito subjetivo.

    Aliado a isso, estava a Teoria da Separao dos Poderes, aplicada segundo os ditames da doutrina liberalista de Montesquieu, impedindo o Judicirio de adentrar a questo da discricionariedade e oportunidade da atividade do administrador pblico, o qual, dentro do que lhe permitia a legislao, seria o responsvel por optar quando uma ou mais ao fosse desenvolvida na realizao dos direitos sociais.

    Alguns fatores contribuam, ou contribuem, para incentivar a inatividade do Judicirio quanto interveno judicial dos atos do administrador pblico. Entretanto, atualmente a doutrina da triparticipao dos poderes, conforme inicialmente pensada, e que serviu para o Estado Liberal Burgus, no pode nem deve prevalecer no mundo globalizado, centrado em uma economia de massa, pelo que, mais coerente seria falar em interdependncia de funes, ou tarefas, entre os trs poderes constitucionalmente constitudos.

    Verifica-se que uma singela parte dos operadores do direito tem tomado rumos diversos, entendendo que caber ao Poder Judicirio a realizao dos direitos sociais, sempre que ausente ou inconstitucional a atuao do poder executivo ou legislativo. Defendendo que sendo os direitos sociais normas de natureza fundamental, que saem do plano meramente programtico para adquirir status de normas de aplicao imediata, e cabendo ao poder pblico empreender todos os esforos em sua implementao ou, ao menos, buscar garantir a mxima efetividade e eficcia possvel, sob pena de conduta inconstitucional omissiva ou comissiva. Tais direitos podem ser invocados pelos interessados, a todo e qualquer momento, cabendo, inclusive, a interveno do Poder Judicirio na realizao dos direitos sociais, que, Segundo o prof. Lnio Streck,

  • em face das profundas alteraes paradigmticas ocorridas na teoria do Estado e da Constituio, a noo de Estado Democrtico de Direito pressupe uma valorizao do jurdico, e, fundamentalmente, exige a (re)discusso do papel destinado ao Poder Judicirio( justia constitucional) nesse (novo) panorama estabelecido pelo constitucionalismo do ps-guerra, mormente em pases como o Brasil, cujo processo constituinte de 1986-88 assumiu uma postura que Cittadino muito apropriadamente denomina `comunitarista, onde os constitucionalistas (comunitaristas) lutaram pela incorporao dos compromissos tico-comunitrios na Lei Maior, buscando no apenas reconstruir o Estado de Direito, mas tambm resgatar a fora do direito, cometendo jurisdio a tarefa de guardi dos valores materiais positivados na Constituio 13.

    Mauro Cappelletti chega, inclusive, a defender o surgimento de um terceiro gigante, que seria o Judicirio como guardio e controlador dos poderes polticos do novo estado leviat para a realizao dos direitos sociais.

    O magistrado, nas tutelas coletivas, no cria uma lei, para o que no est autorizado, apenas est a proteger um direito de todos ou de um determinado nmero de indivduos. No se pode, em uma sentena prolatada numa tutela coletiva, identificar todos os beneficiados pela medida, haja vista que os direitos ali protegidos no so individuais, particulares, mas de interesse de toda uma comunidade.

    O que se pretende justamente demonstrar que o Poder Judicirio tem a legitimidade e o compromisso constitucional com a transformao positiva da realidade social, por ser Poder fundamental do Estado Democrtico de Direito brasileiro. Assim, sempre que o Poder Judicirio for provocado, dever extrair suas interpretaes dos fundamentos e dos objetivos do Estado Democrtico brasileiro, os quais esto arrolados expressamente nos artigos 1. e 3., respectivamente, da CF. Por outro lado, o fato de a Constituio Federal apresentar a harmonia entre os poderes(art. 3.) no autoriza que um se curve ou silencie diante do outro, mas sim que devem agir harmonicamente na misso comum de transformar positivamente a realidade social. Cada qual dos poderes da Unio tem constitucionalmente a sua especificao funcional, que no pode ser desvirtuada, seja por fora de posturas internas inadequadas, seja por interferncias externas ilegtimas 14.

    O juiz poder determinar que um hospital municipal garanta atendimento mdico eficiente, retirando pacientes de macas e corredores, inclusive garantido

    13 Lnio Streck. O papel da jurisdio constitucional na realizao dos direitos-sociais fundamentias em Palestra proferida no Congresso Internacional Os desafios constitucionais dos Direitos fundamentais

    14 ALMEIDA, Gregrio Assagra de. Direito processual coletivo brasileiro. So Paulo: Saraiva, 2003.p.152.

  • vagas em hospitais particulares, estando, assim, a garantir o direito social sade. Poder, ainda, determinar que um Estado da Federao instale, em um municpio, uma escola de ensino mdio, visto que tal responsabilidade incumbe ao ente pblico estadual, e na localidade hipottica todos os adolescentes precisam se deslocar a outras cidades, para cursar o ensino mdio.

    O magistrado, tanto no primeiro como no segundo caso, no estar legislando, e sim garantindo o direito social sade e educao. Hospitais que garantam um atendimento digno o mnimo que se pode exigir para se permitir o direito sade, haja vista que, para o funcionamento de hospitais e escolas, j h, ou deveria haver, previso oramentria. Quanto educao, obrigao dos Estados garantirem o ensino mdio (art. 211, 3. da CF/88), e a omisso, no caso, dever ser prontamente afastada pelo Poder Judicirio.

    Excluir da apreciao do judicirio questes desse tipo ser relegar toda uma populao ao descaso, visto que os direitos sociais sade, educao, segurana, ao trabalho, entre outros, so necessrios para se garantir um direito maior, que o direito vida.

    So as polticas pblicas as aes do governo tendentes a efetivar os direitos sociais consagrados constitucionalmente. A no-interveno judicial, em referidas aes, esteve durante certo tempo vinculada erroneamente idia de ato discricionrio, e como tais no poderiam ser analisadas pelo Poder Judicirio.

    Durante muitos anos lecionou-se, nas faculdades, que atos vinculados poderiam ser revistos pelo Judicirio; ao passo que os discricionrios, no. O judicirio jamais poderia adentrar o mrito do ato discricionrio, sob pena de estar usurpando o poder que lhe fora conferido, haja vista que a oportunidade e a convenincia do ato eram opes do administrador.

    Tal entendimento deve, no mnimo, ser repensado, sob pena de continuar-se no caos em que hoje em dia se encontra a efetivao dos direitos sociais. Como bem leciona Rodolfo Mancuso todo e qualquer ato praticado estar subordinado a Constituio, e como tal poder ser discutido, questionado a sua validade, mesmo os atos exclusivamente polticos(ex.: acordo de cooperao internacional) , podem ser revistos desde que em confronto com a ordem constitucional vigente. Dando continuidade aos seus ensinamentos, o brilhante mestre leciona que o campo do judicialmente insindicvel se nos afigura muito restrito ou ao menos dentro de uma liberdade vigiada.

  • O judicirio invade a esfera do executivo quando tenta sobrepor um critrio pessoal a outro critrio igualmente admissvel e razovel adotado pelo legislador, de acordo com Mancuso.

    O juiz poder atuar, quando provocado, para afastar qualquer leso ou ameaa de leso aos direitos fundamentais, podendo, inclusive, fazer valer os direitos socais, quando a atuao estatal insuficiente ou omissa na efetivao desses direitos.

    6 CONCLUSO

    Os direitos sociais no possuem natureza programtica nos moldes traados pela doutrina tradicional, a qual, com o tempo, serviu para retirar-lhe a eficcia e a efetividade, devendo ser entendidos como direitos fundamentais protegidos pelo pargrafo primeiro do art. 5.; no estando desprovidos de eficcia e efetividade por dependerem da atuao positiva dos Poderes Legislativo e Executivo, ao contrrio, so prescries que vinculam a atuao dos trs poderes , so normas-programas as quais o legislador, o administrador e o juiz devem elevar quando da valorao da implementao das polticas pblicas, uma vez que foram includas na Constituio do pas, cujo texto tem como meta interesses e objetivos de cunho pragmtico, e no meramente programtico.

    Os direitos sociais, quando efetivados, asseguram a fruio dos direitos civis e polticos, haja vista que, sem educao, sade ou salrio digno, no adiantaria ao homem ser livre. Para que serve a liberdade e a vida se no h atendimento mdico adequado, ensino de qualidade ou salrio digno? Desta forma, deve-se primeiramente garantir o direito sade, educao, ao trabalho, ao meio ambiente saudvel, a fim de dar sentido liberdade individual.

    Assim, se os responsveis por implementarem as aes tendentes a minorar as desigualdades sociais, sob o manto da discricionariedade e da previso oramentria, permanecem inertes, ou efetivam ineficientemente esses direitos, caber aos interessados/legitimados provocar o Judicirio, para que este se manifeste sobre essa irregularidade, afastando qualquer tipo de leso ou ameaa a direitos fundamentais, e responsabilizando os culpados.

  • J no mais poder prevalecer o entendimento de que atos polticos ou discricionrios esto impedidos de reviso pelo Judicirio, sob o manto da idia liberalista da Separao dos Poderes. Os atos do administrador, quer vinculados, quer discricionrios, podem e devem ser revistos pelo judicirio, pois esto subordinados Constituio. No havendo usurpao de funes, visto que todos os trs poderes esto devidamente legitimados pela carta magna. A interveno judicial nas polticas pblicas perfeitamente vivel, o que no poder ocorrer o juiz tentar sobrepor sua vontade pessoal aos critrios legitimamente escolhidos pelo administrador pblico. Entretanto, caso haja desvio de finalidade, ou escolhas expressivamente inadequadas, mesmo sendo atos exclusivamente polticos, entende-se pela interveno do judicirio, porque uma forma de defender os bens pblicos, os quais devero estar a servio de toda a coletividade, e no apenas de uma pequena parcela da populao, ou de interesses particulares do administrador pblico.

    REFERNCIAS

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