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ISSN 18092616
ANAIS V FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 20062007
PERSONALIDADE TÍMBRICA E ESTÉTICA DO ÓRGÃO: arte e artífices na rota transatlântica na corte de D. João V 1
Maria do Amparo Carvas Monteiro ∗
Resumo: São múltiplas e intensas as relações de teor artísticomusical entre Portugal e o Brasil desde o século XVI à actualidade. Um período particularmente rico ocorreu no século XVIII e, designadamente, no reinado de D. João V. Com efeito, este monarca impulsionou um novo florescimento das artes desde a arquitectura sacra e profana, à pintura, escultura, talha, poesia e, especialmente, à música. Desse período pretendemos realçar os aspectos ligados à arte da organaria envolvendo músicos, organeiros e outros artífices de origens diversas que deixaram obra em ambos os países. Palavraschave: Arte; Órgãos; Barroco.
INTRODUÇÃO
São múltiplas e intensas as relações de teor artísticomusical entre Portugal e
o Brasil desde o século XVI à actualidade. Um período particularmente rico
ocorreu no século XVIII e, designadamente, no reinado de D. João V. Com efeito,
este monarca impulsionou um novo florescimento das artes desde a arquitectura
sacra e profana, à pintura, escultura, talha, poesia e, especialmente, à
música. Desse período pretendemos realçar os aspectos ligados à arte da
1 A comunicação é complementada com a visita virtual à capela da Universidade de Coimbra, acompanhada com música barroca portuguesa, executada no seu órgão setecentista. ∗ Licenciada em História, Mestre em Ciências Musicais e Doutorada em Letras, área de Ciências Musicais, especialidade Ciências Musicais Históricas, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Docente na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (na licenciatura em Estudos Artísticos) e na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Coimbra (nas licenciaturas de Professores de Educação Musical do Ensino Básico e de Comunicação e Design Multimédia).
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organaria envolvendo músicos, organeiros e outros artífices de origens diversas
que deixaram obra em ambos os países.
A partir de Quinhentos, com a expansão portuguesa, o intercâmbio
multicultural deu à música um papel de especial relevo. As referências expressas na
Carta de Pêro Vaz de Caminha anunciam já o primeiro diálogo e simultaneamente a
primeira permuta cultural lusobrasileira.
O espaço ultramarino português desenvolveuse de modo diferente, tendo em
conta as culturas préexistentes, a distância e outros condicionalismos. Para todas
as partes em que os portugueses se iam fixando, partiam artistas e artífices,
verificandose igualmente o envio de todo o tipo de arte: imaginária, pintura,
paramentaria, alfaias de culto, instrumentos musicais etc. O envio de esculturas
pelos jesuítas para as igrejas de alémmar, foi uma constante, nomeadamente para
o Brasil. Mas não foram apenas os jesuítas a fomentar este envio de arte para terras
brasileiras. Também os franciscanos, os beneditinos usaram esta prática. Sabemos
por exemplo que, em 1585, o franciscano Francisco Santos praticava a arquitectura
e a escultura em Olinda, em Salvador e noutras localidades e que, na primeira
metade do século XVII, os beneditinos frei Agostinho da Piedade e Agostinho de
Jesus tiveram uma importante actividade como santeiros, sobretudo, barristas, tendo
a sua formação sido certamente obtida na Metrópole.
As relações culturais e artísticas vibraram, no reinado do Magnânimo, ao
compasso barroco, como parte importante do espectáculo utilizado pelo poder
monárquico com o evidente objectivo de mostrar o seu poder e opulência.
A concretização destas relações com os espaços de alémfronteiras e a
rápida comunicação do gosto e da sensibilidade estética passaram então por
diversas vias, entre as quais a luminosidade da própria imagem do monarca e da
sua corte, o esplendor das construções joaninas e as relações diplomáticas com os
outros Estados.
Mas não era somente através do acto colectivo e oficial que o rei lusitano
fazia brilhar a sua coroa. São conhecidas algumas das mais espantosas dádivas
distribuídas por todos aqueles que, de algum modo, o representavam no exterior. O
visconde de Santarém deixounos extensa listagem dessas liberalidades. 2
2 Ver: SANTARÉM, Visconde de. Quadro elementar das relações políticas e diplomáticas de Portugal com as diversas potências do mundo. Tomo 4. Paris: J. P. Aillard, 1845.
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Porém, esta distribuição de valores e de dinheiro consumidos sem cessar
num desejo ilimitado de fama e de glória (estabelecida no barroco entre o brilho e a
autoridade, e no reforço dos meios e da capacidade interventora do Estado
absoluto), desenvolveuse ainda com maior significado, pela forma como D. João V
se relacionou com a Santa Sé e a religião católica, nos seus aspectos institucionais
e litúrgicos.
Nesta época de teatralidade da comunicação e de necessária obtenção de
meios tendentes à conservação dos equilíbrios políticos e sociais, um dos recursos
mais utilizados para impressionar de modo conveniente, era a complacência
relativamente ao gasto com o luxo e o aparato, no qual se consumiam as
possibilidades de uma acumulação de capital a aplicar noutro género de actividades,
mormente no desenvolvimento dos meios produtivos. 3
O adorno e a pompa eclesiásticos constituíam igualmente a expressão
acabada do valor que se atribuía à ostentação da riqueza como forma natural de
comover multidões e de proclamar a crença: na sede romana a vida na Cúria
adoptava em pleno o tom do brilho palaciano.
Devemos no entanto lembrar que, a partir dos anos 30 de Setecentos, o
monarca teve de recorrer a uma política de contenção de despesas para
salvaguardar os interesses da coroa, não excepcionando sequer a protegida arte da
organaria. Vejase, por exemplo, o caso particular da Igreja Primaz de Braga,
relativamente à qual mandou “suspender inteiramente todas e quaisquer obras e de
qualquer sorte e custo que sejam, pertencentes a essa Igreja Primaz, ou elas sejam
de pedra e cal, ou de madeira ou de ornamentos, e ainda a dos órgãos”. 4
Considerado justamente o rei dos instrumentos pela sua impressionante
sonoridade e pela sumptuosidade ornamental das suas caixas, o órgão histórico é
um dos elementos de primordial importância na pompa e na grandiosidade do
barroco português. Como componente do esplendor das funções litúrgicas, a
ornamentação das caixas dos órgãos enriquece também o interior dos templos em
que se situam, quase sempre de modo espectacular, combinando inventivamente a
disposição dos tubos com as fantasias da talha, através de um novo vocabulário
decorativo que inclui conchas, grinaldas, leques de plumas, frisos verticais, botões
de plantas, festões de flores, nomeadamente rosas, margaridas e girassóis, cortinas
3 WEISBACH, Weiner. El Barroco. Arte de la Contrarrefoorma. Madrid: EspasaCalpe,1942. p. 312. 4 ARAÚJO, A. de S. Braga no século XVIII. In: Itinerarium, v. 37, n. 140, p. 249317, 1991.
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fingidas, folhagem acantiforme, pinturas de charão, inscrições epigráficas etc., não
faltando igualmente os anjos triunfantes ou músicos e figuras alegóricas. É uma
nova expressão de aparato comunicativo através da aliança de elementos
arquitecturais, escultóricos e pictóricos, numa utilização obsessiva de conteúdos
estéticoartísticos num sentido puramente ornamental.
As tribunas dos órgãos são outro elemento integrante da decoração que
desenvolve formas específicas, algumas das quais de assinalável riqueza.
O próprio coroalto e as suas varandas constituem outro conjunto onde a
talha, por vezes, se prolonga. Referimos, como exemplo, os dois órgãos com caixas
gémeas colocadas na nave central da catedral de Braga, em perfeita conexão com o
coroalto. Toda a talha – da autoria de Marcelino de Araújo, realizada entre 1733 e
1737 – reflecte a deliberada intenção de criar um novo espaço barroco no interior do
velho templo. Outro exemplo de sumptuosidade decorativa são as caixas gémeas
dos órgãos da Igreja de S. Bento da Vitória, no Porto, sendo um deles mudo,
destinandose apenas a fazer simetria e conjunto com o autêntico. Foi igualmente
seu autor Marcelino de Araújo.
Outra expressão original do barroco português é dada pelos cadeirais, que
formam grandiosas composições em coros de mosteiros onde o ofício divino tinha
um papel preponderante, como nos beneditinos e cistercienses. O cadeiral da Igreja
de S. Bento da Vitória, no Porto, datado de 17171719, apresenta espaldares
divididos em painéis com relevos, em secções que abraçam as cadeiras. Os
cadeirais joaninos atingem o ponto máximo de expressão artística no exemplar
existente no real Mosteiro de Santa Maria do Lorvão, de monjas cistercienses,
remodelado entre 1742 e 1747.
A par da azulejaria, a talha de madeira dourada e policromada constitui a
mais original manifestação artística portuguesa no reinado de D. João V, dando ao
interior das igrejas o movimento, o contraste e a riqueza, que na arquitectura, na
maior parte das vezes, não possuía.
As caixas dos órgãos, os retábulos dos altares, os púlpitos escultóricos, as
janelas, os arcos, os tectos, os cadeirais, as escadas de aparato são, entre outros, o
seu campo preferencial de expressão. Na época joanina a riqueza da talha proclama
o triunfo do barroco.
Arquitectos, entalhadores, escultores, desenhistas, pintores e outros artistas
vão inundando as igrejas com profusão de ornatos, saídos de suas mãos hábeis,
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numa demonstração de técnica e de virtuosismo, ostentando o esplendor dos
elementos decorativos. Neste período de preocupação com a aparência exterior, a
caixa do órgão parece querer sobrelevar as qualidades dos elementos acústicos.
A arte organística foi muito apreciada na corte portuguesa, muito antes de D.
João V. A actividade de organistas e organeiros énos documentada desde a
primeira metade do século XIV. Nos primeiros decénios do século XVIII, numa
conjuntura financeira próspera que permitia à realeza e às comunidades
eclesiásticas renovar os recheios dos seus templos, surgiram grandiosos e
importantes instrumentos produzidos por artesãos nacionais e estrangeiros como,
por exemplo, os que se seguem:
ORGANEIROS LOCAL / ÓRGÃO Calisto de Barros Pereira Coimbra: Sé Velha
Barcelos: Igreja do Bom Jesus da Cruz Frei Lourenço da Conceição Viana do Castelo: Igreja da Misericórdia
Porto — Sé Catedral Frei Manuel de S. Bento Porto: Igreja de S. Bento da Vitória
Coimbra: Real Capela da Universidade de Coimbra Manuel Bento Gomes Ferreira Coimbra: Igreja de Santa Cruz (remodelação)
Viseu: : Sé Catedral Arouca: Igreja do Mosteiro
D. Manuel Coimbra: Convento de Stª ClaraaNovacoro de baixo
Teodósio Hemberg Guimarães: Convento das Carmelitas Calçadas Porto: Igreja da Ordem Terceira de S. Domingos Coimbra: Convento de Stª ClaraaNovacoro de cima
Arp Schnitger Maia (Porto): Igreja de S. Salvador de Moreira
Johann Heinrich Ulenkampf Lisboa: Igreja de S. Francisco Lisboa: Igreja do Convento do Carmo Faro: Sé Catedral Mariana: Sé Catedral
Frei Simón Fontanes Braga: Sé Catedral
Os órgãos históricos que hoje suscitam a nossa admiração e aos quais se
dedicam as breves considerações inseridas neste trabalho, foram construídos na
primeira metade do século XVIII: o órgão da Capela da Universidade de Coimbra e
os órgãos das Sés de Faro e de Mariana (Minas Gerais, Brasil).
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O ÓRGÃO DA CAPELA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
No património organológico português e no movimento organístico
setecentista, ocupa um lugar de relevo o órgão da Real Capela de S. Miguel da
Universidade de Coimbra, do organeiro luso frei Manuel de S. Bento.
Figura 1: Órgão da Real Capela de S. Miguel da Universidade de Coimbra
Desde 1979 a 2002, a autoria deste órgão era frequentemente atribuída ao
organeiro espanhol D. Manuel de S. Bento Gomes de Herrera, ou mesmo indicado
como de autoria desconhecida, como vinha sendo escrito sem fundamentação
documental credível antes da primeira daquelas datas. Sabese hoje,
comprovadamente, através de extensa documentação arquivística inédita até 2002,
que a autoria deste órgão pertence ao beneditino português frei Manuel de S. Bento,
cujo nome secular foi Manuel da Costa Pinto, natural da freguesia de Fermedo, em
Arouca, onde nasceu em 1683, tendo falecido em 1757 no Mosteiro de Paço de
Sousa. O instrumento começou a ser construído no início de 1732 tendo o organeiro
dado como concluída a construção e montagem em Novembro de 1734. Como
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veremos adiante, a conclusão dos restantes trabalhos em curso na capela e na caixa
do órgão, incluindo o douramento e pintura e sua revisão e a retirada de andaimes,
adiou para Abril/Maio de 1738 a nova intervenção do organeiro para a afinação do
instrumento, a qual viria a ser repetida no ano de 1745, vindo frei Manuel de S.
Bento da cidade de Braga à Universidade de Coimbra expressamente com essa
finalidade. 5
Robert Smith qualificou a caixa deste órgão como “obra extraordinariamente
rica [...] com enorme remate coroado de anjos com trombetas ladeando a coroa e as
armas de Portugal” onde figuram também “as cortinas de fraldas tormentadas da real
livraria, 6 e na sumptuosa varanda pinturas imitando lacas”. 7
Figura 2: Caixa do órgão da Real Capela de S. Miguel da Universidade de Coimbra
A talha do órgão da Capela da Universidade não foi fruto de um só artífice,
mas de um conjunto de entalhadores, sob a direcção de Gaspar Ferreira, o qual jé
entre 1719 e 1724 dirigira os trabalhos de fabrico das «estantes dos livros» da
Biblioteca Joanina na qualidade de «mestre arquitecto e entalhador de Coimbra»,
segundo revelam os nove tomos escritos das “Obras da Livraria”. Para além de
Gaspar Ferreira, sobressaem entre os entalhadores da caixa do órgão os nomes de
5 MONTEIRO, Maria do Amparo Carvas. Da Música na Universidade de Coimbra (15372002).. v. 1, p. 252 a 301. Dissertação (Doutoramento). Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra. Coimbra, 2002. MONTEIRO, Maria do Amparo Carvas. O órgão da Capela de S. Miguel da Universidade de Coimbra. Identificação do organeiro e de outros artífices e datação do instrumento. MundaRevista do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, Coimbra, n. 47, p. 314, maio 2004. 6 Biblioteca Joanina ou Casa da Livraria da Universidade de Coimbra, igualmente mandada construir por D. João V, de património incalculável e esplendorosa decoração barroca. 7 SMITH, Robert. A talha em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 1962. p. 168.
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José Gomes, Salvador Gomes e André Lopes, Diogo António e sobretudo Francisco
Machado, o único designado escultor nas listas dos entalhadores constantes dos
manuscritos que contêm as folhas de “feria” da construção da caixa. 8
Na pintura, douramento e charão da caixa, executadas em 1737, avultam os
nomes de Gabriel Ferreira da Cunha, seu autor, e de José de Sousa que efectuou a
sua revisão.
Figura 3: Douramento e charão da caixa do órgão da Real Capela de S. Miguel da Universidade de Coimbra.
As superfícies superiores e inferiores da caixa são ornadas de pintura
dourada e acharoada sobre um fundo vermelho, com representação de figuras e
cenas integradas em paisagens inspiradas na arte chinesa. Esta decoração foi
comum em Portugal desde os finais de XVII e durante o século XVIII. Neste século,
logo na primeira metade, a pintura acharoada derramada nas caixas dos órgãos, no
mobiliário litúrgico, estantes de bibliotecas, cadeirais de conventos, caixas de
relógios, molduras de espelhos etc., ostenta os motivos fantasistas e miniaturais de chinoiserie.
Como parte integrante do plano arquitectónico da estruturação da fachada, é
também de realçar a ornamentação e a distribuição integrada dos tubos dos registos
palhetados com as suas fixações individuais nela colocados horizontalmente, numa
zona que, no interior do instrumento, corresponde à altura do someiro. Sublinhando
a linha dinâmica do seccionamento vertical e horizontal da frente do instrumento,
8 MONTEIRO, 2002. Op. cit. MONTEIRO, 2004. Op. cit.
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servem estes tubos da trompeteria para acompanhar e demarcar o alinhamento
geométrico, bem como o recuo e o avanço das linhas de força da fachada. 9
Nele está patente uma feliz simbiose que decorre do revestimento plástico e
visual da caixa e da tribuna do órgão, bem como do seu carácter sonoro e do
dinamismo da apropriação do espaço físico em que se insere na capela.
Figura 4: Tubos da trompeteria do órgão da Real Capela de S. Miguel da Universidade de Coimbra.
Nos instrumentos de frei Manuel de S. Bento e de Simón Fontanes, a
organização simétrica da fachada por meio de torres centrais e laterais,
semicirculares e triangulares, nichos rectangulares ou poliformes é reforçada por um
novo elemento constituído pelo intencional aumento da profundidade da fachada. A
combinação de torres e de nichos preenchidos por tubos ordenados em sequência
tonal, a sobreposição de torres de feitios diferentes e a forma côncava das secções
laterais conferem um dinamismo extraordinário à tradicionalmente estática fachada
do órgão, criando ao mesmo tempo uma surpreendente sensação de profundidade.
Neste contexto, o órgão português ganhou uma tridimensionalidade através da
nova concepção da estrutura da fachada, efeito que, segundo Gerhard Doderer “era
estranho ao órgão contemporâneo de Castela, da Catalunha e da Andaluzia”.
Um dos aspectos mais importantes da obra de frei Manuel de S. Bento foi a
elaboração do plano tonal e a execução do mesmo para o órgão da capela da
Universidade de Coimbra. Neste instrumento de três secções – Grande Órgão,
9 DODERER, Gerhard. Aspectos da História do órgão em Portugal (séculos XV a XVX). In: Revista Academia Nacional de Música, Rio de Janeiro, v. 10, p. 2850, 1999.
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Positivo e Eco – reunidas num único teclado, com 41 registos divididos, foi posta à
prova a capacidade criativa e a habilidade técnica do mestre organeiro. A técnica de
juntar num só manual três secções diferentes, embora engenhosa, pôs o problema
de fornecimento simultâneo do ar a todos os registos na devida pressão. Para rodear
essa dificuldade o construtor dotou o órgão de um sistema de reduções, feito por
meio de grandes válvulas accionadas por pedais. Através deste processo o
fornecimento do ar é limitado às secções escolhidas pelo executante. Tornase
evidente que o construtor lutou com a falta de espaço para montar toda a tubagem e
respectivos mecanismos, por estar condicionado pela obrigatoriedade do
aproveitamento do espaço onde haviam existido órgãos anteriores que o
instrumento setecentista veio substituir.
OS ÓRGÃOS GÉMEOS DAS SÉS DE FARO E DE MARIANA
Os órgãos das Sés de Faro e de Mariana possuem nas suas caixas os dois
estilos da talha portuguesa de então: o estilo “nacional” (do último quartel do século
XVII até c. 1720) caracterizado pelos relevos, e o estilo dito “joanino”, influenciado
pela arte italiana, com profusão de imagens escultóricas (c. de 1715, em Lisboa, e
depois de 1720, em outras partes do país).
Figura 5: Órgão da Sé de Faro Figura 6: Órgão da Sé de Mariana
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Ambos os órgãos se situam numa varanda junto ao coroalto da igreja, com
um nível inferior ao do coro. 10 A fachada de cada um destes órgãos pode considerar
se uma fachada de Hamburgo, com torre central poligonal, facetada com cinco
lados, seguida de quadriláteros planos e sobrepostos em ambos os lados e torres
laterais triangulares.
A decoração destas caixas é constituída por talha com motivos de folhagem
de acanto, em forma de volutas com maior evidência nas partes mais elevadas da
torre central e das laterais, com igual decoração acântica em cada um dos
quadriláteros. O remate superior apresenta belos exemplares de motivos
escultóricos. Nestes órgãos, a parte inferior das caixas, ao nível dos puxadores dos
registos e dos teclados, é defendida por varanda de grades.
A pintura realizada na caixa do órgão de Faro por Francisco Correia, em
175253, mostra um somatório de motivos chineses desenhados sobre charão
vermelho, outra da já referida faceta da opulência da arte joanina. Estes motivos,
indicadores de um gosto pelo exotismo, bem aceites ainda no tempo do rococó,
eram inspirados nas lacas chinesas importadas do Oriente e conheceram grande
divulgação no tempo de D. João V.
Digase a este propósito que, alguns motivos que compõem a decoração de chinoiserie da caixa do órgão da Sé de Mariana possuem extraordinária semelhança com os da caixa órgão da Capela da Universidade de Coimbra e os da Biblioteca
Joanina da mesma universidade a que antes aludimos. Pode verse também
ornamentação de chinoiserie no órgão da Sé de Faro.
Também, por vezes, o brasão ou as armas do monarca ou da ordem religiosa
da igreja que alberga o instrumento, aparece integrado na decoração da sua caixa.
Por exemplo, o órgão da Capela da Universidade de Coimbra é encimado pela coroa
e armas reais ladeado por esculturas de anjos músicos com aerofones.
Nem sempre foi pacífica a atribuição da autoria dos órgãos das Sés de Faro e
de Mariana. Considerados órgãos gémeos, há várias décadas que a autoria de
ambos vinha sendo atribuída por alguns organólogos ao organeiro hamburguês Arp
Schnitger, datandoos de 1701, ano em que este anotou o envio de dois órgãos para
Portugal. Porém, a autoria de Schnitger nunca foi documentalmente comprovada.
Recentemente, em estudo publicado em 2001, Gerhard Doderer pôde concluir que
10 FERREIRA, M. M. Arp Schnitger: dois órgãos congéneres de 1701. Suas destinações atuais e características técnicas. Niterói: Edição Particular, 1991. p. 81 e 108.
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os dois referidos instrumentos de Faro e de Mariana não podem ser os de Schnitger
enviados para Portugal em 1701, atribuindo a autoria de ambos os instrumentos ao
organeiro Johann Heinrich Ulenkampf (discípulo e mestreassistente de Arp
Schnitger, estabelecido desde c. 1711 na capital portuguesa, com actividade
documentada como construtor de órgãos em Portugal e na Alemanha), com datação
de 17151716. 11
Porém, aquele órgão da Sé de Mariana só foi recebido e instalado nesta
cidade em 1752, já no reinado de D. José, filho e sucessor de D. João V que, com o
envio do instrumento, honrou o compromisso assumido por seu pai de mandar à
então recémcriada diocese os meios financeiros para o equipamento da nossa Sé e
a aquisição de um órgão de tubos.
As despesas respeitantes à execução da tribuna, colocação e afinação do
instrumento da Sé de Mariana foram pagas no dia 17 de Setembro de 1752, por
ordem da fazenda real em Vila Rica. Com grande probabilidade, o órgão terá sido
tangido pela primeira vez no templo que até hoje o alberga, no dia 15 de Agosto de
1753, na festa da Nossa Senhora da Assunção.
Fruto da realidade política portuguesa do chamado estado absoluto de D.
João V, o conhecimento da dimensão estéticocultural e política da ostentação do
absolutismo é fundamental para se entender a teoria e prática do Poder, num
período em que a música, as artes plásticas, as artes gráficas e a arquitectura foram
colocadas ao serviço da construção de um décor favorecedor do culto monárquico, expressamente dirigidas pelo Estado para a organização da glória do rei e da realeza.
REFERÊNCIAS
DODERER, Gerhard. Aspectos da História do órgão em Portugal (séculos XV a XVX). In: Revista Academia Nacional de Música, Rio de Janeiro, v. 10, p. 2850, 1999. DODERER, Gerhard. Relações musicais lusobrasileiras do século XVIIII: dois casos particulares. In: Colóquio Internacional (Lisboa, 2000). A Música no Brasil Colonial. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 389416.
FERREIRA, M. M.. Arp Schnitger: dois órgãos congéneres de 1701. Suas destinações atuais e características técnicas. Nitetói: Edição Particular, 1991. p. 81 e 108. MONTEIRO, Maria do Amparo Carvas. Da Música na Universidade de Coimbra (1537 2002). Dissertação (Doutoramento) Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra. Coimbra, 2002.
11 DODERER, Gerhard. Relações musicais lusobrasileiras do século XVIIII: dois casos particulares. In: Colóquio Internacional (Lisboa, 2000). A Música no Brasil Colonial. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 389416.
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MONTEIRO, Maria do Amparo Carvas. O órgão da Capela de S. Miguel da Universidade de Coimbra. Identificação do organeiro e de outros artífices e datação do instrumento. Munda Revista do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, Coimbra, n. 47, p. 314, maio 2004. SANTARÉM, Visconde de. Quadro elementar das relações políticas e diplomáticas de Portugal com as diversas potências do mundo. Tomo 4. Paris: J. P. Aillard, 1845. SMITH, Robert. A talha em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 1962. WEISBACH, Weiner. El Barroco. Arte de la Contrarrefoorma. Madrid: EspasaCalpe,1942. ARAÚJO, A. de S. Braga no século XVIII. In: Itinerarium, v. 37, n. 140, p. 249317, 1991.