20061686 o teatro e seu espaco peter brook

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    O Teatro e seu espaopor Peter Brook

    Editora Vozes limitadas 1970Ttulo original ingls: The Empity Space

    Traduo Oscar Araripe e Tessy CaladoDigitao 2009 - VivianaColetty

    Para meu pai

    Sumrio

    Peter Brook e seu teatro VIIO teatro morto - 1

    O teatro sagrado - 2O teatro rstico - 3

    O teatro imediato 4

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    Apresentao

    *Este livro baseado em quatro palestras pronunciadas por Peter Brook com o ttulo O espao vazio: Oteatro hoje. Aspalestras foram realizadas nas universidades de Hull, Keele, Manchester e Sheffield. ( Nota da ediooriginal).

    Peter Brook e seu teatro

    Peter Brook um diretor e um homem de idias Seu The Empity Space* umlivro voltado para o futuro. Seu raciocnio dialtico, entretanto, no parte de algonascido de leituras, mas sim da experincia, do dia-a-dia da oficina-teatro. Sualinguagem sobre um teatro que deve ser feito, teatro este nascido e testado sobre o

    palco j vivido. Esse avanar retornando o tratamento que faz a dialtica de Brookganhar um dinamismo extremamente vivo: teatro feito no vento, todos os dias se

    destri, todos os dias se cria, no h frmulas, no h preconceitos, teatro brincadeira essas so suas idias bsicas e elasticamente desdobrveis.Brook aceita a Crise. Mas identifica a Crise atravs daquilo que ele chama de

    mortal. Assim, logo de sada, estamos diante de um teatro mortal e de um teatro vivo.Equacionada a Crise, seria um erro achar que o autor cairia num esquematismo assimto simplista: o mortal se insinua no vivo; o vivo contm sempre matria inerte e,novamente, estamos diante de um real relacionamento dialtico. Brook define o mortalcomo o mau teatro, somente e de maneira exemplar: teatro morto aquele que rendeculto a Chatice, conclui com a fora das grandes descobertas, no mesmo nvel daquelaque permitiu a Gramsci encontrar-se com oHumanismo campons.

    Se The Empity Space divide-se em duas grandes partes, compostas pela anliseprofunda de quatro tipos de teatro: o Mortal, o Sagrado, o Rstico e o Imediato. Aprimeira parte pars destruens expe a nu a matria inerte. E a parte do equivoco, dapretenso, da descrena, da viso mecnica do acontecimento teatral. Aqui, Brook nosfala das vrias convergncias, dos vrios espaos em que se esconde o Morto e a vezdo crtico, do autor, do diretor e do grande captulo da platia. J o Sagrado o teatro doinvisvel tornado visvel, conforme o define estamos diante deuma das mais interessantes aberturas que um raciocnio dialtico possa ter dado: paraBrook, o indizvel algo que existe espera de se estudado e compreendido. O autorcr na sua fora, quer por essa fora ao alcance das mos; mais ainda, conta com ela,confia nela para uma ressacralizao do teatro ocidental. O Rstico encontra-se com

    Shakespeare nos comentrios do autor e no teatro desaburguesado que encontra aprimeira de suas grandes sadas para a Crise. Exposta a natureza complexa da realizaoteatral, Brook se permite chegar ao imediato; isto , ao depoimento pessoal de toda umasoma de experincias acumuladas.

    Este manual presta-se qualquer escola de teatro e no se esgota nelas. PeterBrook um diretor de teatro, um criador de idias, mas poderia ser um criador emqualquer atividade que procurasse a sntese. Sua eficcia chama-se inteligncia- suainteligncia permite-lhe ser um pensador sem padro, um intelectual de nossa poca.

    No toa que pde chegar concluso-frase: A play is a play, to verdadeira, toinquietante.

    Oscar Araripe

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    1O TEATRO MORTO

    Posso escolher qualquer espao vazio e consider-lo um palco nu. Um homem

    atravessa este espao enquanto outro observa.Isto suficiente para criar uma ao cnica. Mas quando falamos de teatro no bem isso que queremos dizer. Em uma imagem catica contida em uma s palavra,comodamente se sobrepe, na confuso, cortinas vermelhas, luzes, versos brancos,risadas, obscuridade. Falamos do cinema matando o teatro, e nesta frase nos referimosao teatro tal como era na poca em que o cinema nasceu: um teatro de bilheteria, salesde espera, strapontins, ribalta, mudanas de cenrios, intervalos, msica, como se oteatro fosse, por definio, apenas isso e pouca coisa mais.

    Tentarei dar aqui quatro interpretaes diversas da palavra teatro distinguindoquatro diferentes significados: um teatro morto, um Teatro Sagrado, um Teatro Rstico(1) e um Teatro Imediato. Algumas vezes os quatro realmente existem, um ao lado do

    outro, no West End de Londres ou Nova Iorque, perto de Times Square. Algumas vezesesto bastante separados: o Sagrado em Varsvia e o Popular em Praga. Outras vezesso metafricos: dois deles juntos num s espetculo, num mesmo ato. s vezes osquatro esto juntos num s momento o Sagrado, o Popular,o Imediato e o morto, entrelaados.

    O Teatro Morto pode ser reconhecido primeira vista, pois significa mau teatro. este tipo de teatro a que assistimos com mais frequncia, e como est diretamenteligado ao to desprezado e atacado teatro comercial, pode parecer perda de tempocritic-lo. Mas somente ao percebermos que esta morte enganadora e que pode surgirem qualquer lugar, que teremos conscincia da dimenso do problema.

    A situao do teatro Morto bastante bvia. No mundo inteiro o pblico de

    teatro esta definhando. Existem movimentos novos ocasionais, bons escritores novos eassim por diante, entretanto, como um toso, o teatro no s fracassa em elevar ouinstruir,mas raramente distrai. O teatro tem sido frequentemente chamado de prostituta,no sentido de que se trata de uma arte impura. Mas hoje isso verdade em outrosentido: as prostitutas tomam o dinheiro e depois do o prazer. A crise da Broadway, ade Paris, a crise de West End, so a mesma; no precisamos das agncias de venda deingressos para nos informarem de que o teatro se tornou um negcio morto e se o

    pblico passasse a exigir um verdadeiro divertimento, a maioria de ns no saberia poronde comear. Um verdadeiro teatro de divertimento no existe, e no apenas acomdia trivial e o musical ruim que no conseguem reembolsar aquilo que pagamos. Oteatro Morto penetra na grande pera e na tragdia, nas peas de Molire e nas peas deBrecht. E no existe melhor lugar para o teatro Morto se instalar com tanta facilidade,segurana, conforto, do que nas peas de Willian Shakespeare. Assistimos a suas peasinterpretadas por bons atores, na maneira que parece ser a mais correta a pea pareceviva, colorida, musicada, e todos ostentam

    belos figurinos, exatamente como se imagina que deve ser o melhor dos teatrosclssicos. Mas, secretamente, achamos o espetculo extremamente enfadonho. Ento, ouculpamos Shakespeare ou o teatro clssico ou culpamos a ns mesmos. Para piorar asituao, existe sempre um espectador morto, que por motivos especiais gosta da faltade intensidade e at da falta de divertimento. assim por exemplo o conhecedor, queemerge de um espetculo rotineiro dos clssicos com um largo sorriso, porque nada o

    impediu de confirmar suas teorias tolas enquanto recitava para si prprio seus trechosfavoritos. No fundo, o que ele quer sinceramente um teatro que seja mais nobre que a

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    vida, mas confunde uma espcie de satisfao intelectual com a experincia verdadeiraque realmente deseja. Infelizmente, usa o peso de sua autoridade para prorrogar aexistncia do tedioso Teatro Morto.

    Qualquer pessoa que assistir aos grandes sucessos de cada ano, observar umfenmeno curioso. Seria de esperar que o grande xito fosse mais vivo, rpido e

    brilhante do que fracasso mas nem sempre isso que acontece. Quase toda temporada,na maior parte das cidades que possuem intenso movimento teatral, apresenta umgrande sucesso que desafia essas regras; uma pea que funciona no apesar mas

    justamente por causa do tdio. Afinal, estamos acostumados a associar a idia de culturacom um certo sentido de obrigao, aos costumes de uma poca, a longos discursos, emsuma, chatice: portanto a exata medida do tdio a exata garantia de umacontecimento de valor. Naturalmente a dosagem to sutil que impossvelestabelecer a frmula exata se for demais o pblico se desinteressa, se for de menos o

    pblico talvez ache o espetculo de uma intensidade desagradvel. Entretanto, autoresmedocres parecem encontrar o caminho certo para a dose exata e o Teatro Morto

    perpetuado com xitos maantes, universalmente elogiado. O pblico procura

    avidamente no teatro algo que possa considerar melhor que a vida. Por isso esta sujeitoa confundir cultura ou os adornos da cultura com uma coisa que no conhece, mas queintuitivamente sabe que poderia existir e assim, tragicamente transformando uma pearuim num sucesso, o pblico esta apenas enganando a si prprio. Quando falamos deMorto, preciso acentuar que a diferena entre vida e morte, to clara no homem, umtanto obscura em outros campos. Um mdico conhece imediatamente a diferena entreresto de vida e a intil carcassa que a vida j abandonou. Mas ns temos prtica emobservar como uma idia ou atitude ou umaforma podem passar da condio de vida para moribunda. difcil definir, mas umacriana pode sentir a diferena.

    Vou dar um exemplo. Na Frana existem duas maneiras mortas de fazer umatragdia clssica. Uma tradicional e envolve a utilizao de uma voz especial, um

    porte especial, um olhar nobre, um texto dito musicalmente. A outra no passa de umaverso pela metade da mesma coisa. Gestos imperiais e valores da realeza estorapidamente desaparecendo da vida cotidiana; assim cada nova gerao encontra essemaneirismo cada vez mais vazio, mais sem sentido. Isso leva o jovem ator a uma buscafuriosa e impaciente daquilo que ele chama de verdade. Ele quer representar seu papelcom mais realismo, fazer com que tudo parea natural, verdadeiro; mas percebe que aformalidade do texto to rgida que resiste a esse tipo de tratamento. forado aadotar uma conciliao incomoda, que no nem estimulante e viva como a linguagemhabitual, nem histrinicamente positiva, como aquilo que chamamos de canastrice.

    Assim, seu trabalho fraco e, como o do canastro forte, ficamos lembrando dele comuma certa nostalgia.Inevitavelmente tem sempre algum que pede que a tragdia seja representada

    mais uma vez da forma como foi escrita. Isso justo, mas infelizmente tudo que o textonos diz o que esta escrito no papel e no como a pea foi originalmente trazida vida.

    No h documentao, no h fitas gravadas h somente estudiosos, mas nenhumdeles, claro, tem conhecimentos de primeira mo. As verdadeiras interpretaesantigas se foram todas s sobreviveram algumas imitaes, na forma de atorestradicionais, que continuam a representar de maneira tradicional. Estes tiram suainspirao no de fontes reais, mas imaginrias, como a lembrana de um som que umvelho ator empregou certa vez, som que, por sua vez, j era lembrana de um estilo de

    um predecessor.

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    Vi, certa vez, num ensaio da Comdia Franaise, um ator muito jovem diante deum ator muito velho. O jovem falava e mimava o papel do velho, como se fosse umreflexo num espelho. Isso no deve ser confundido com a grande tradio, digamos dosatores N, passando cultura oralmente de pai para filho. Nesse ltimo caso o sentidoque comunicado e o sentido nunca pertence ao passado. Pode ser corrigido na

    prpria experincia presente de cada homem. Mas imitar o aspecto exterior darepresentao somente perpetua o maneirismo difcil de ser relacionado a qualquercoisa.

    Novamente a respeito de Shakespeare ou vimos ou lemos o mesmo conselho represente o que est escrito. Mas o que que est escrito? Alguns sinais no papel. As

    palavras de Shakespeare so documentao das palavras que ele queria que fossemfaladas, palavras destinadas a sair, sob forma de sons, dos lbios de gente viva, com umtanto de entonao de pausa, de ritmo e gesto que deviam fazer parte integrante designificado verbal. Uma palavra no comea sendo uma palavra o produto finaliniciado com um impulso, estimulado por atitude e comportamento, por sua vez ditados

    pela necessidade de expresso. Este processo acontece dentro do dramaturgo. repetido

    dentro do ator. Ambos talvez estejam apenas conscientes das palavras. Ma tanto paraautor, como depois para ator, a palavra a pequena poro visvel de um conjuntogigante de invisvel. Alguns escritores tentam ressaltar suas intenes com rubricas eexplicaes. Entretanto no podemos deixar de nos surpreender com o fato de que osmelhores dramaturgos no se explicam muito. Reconhecem que indicaes demaissero provavelmente inteis. Reconhecem que a nica maneira de encontrar overdadeiro caminho para dizer a palavra atravs de um processo criativo original; fatoque no se pode nem ignorar nem simplificar. Infelizmente no momento em que umamante fala, ou um rei murmura, ns nos precipitamos para colocar um rtulo: o amante romntico, o rei nobre. E antes de nos darmos conta, estamos falando de amorromntico e nobreza real, como se fossem objetos que pudssemos segurar nas moscom a pretenso que os atores observem e assumam. Mas esquecemos que no se tratade substncia fsica, esquecemos que no existem. Se as procuramos, o melhor que

    podemos fazer um trabalho aproximativo, reconstrues a partir de livros e pinturas.Se pedimos a umator que represente um estilo romntico ele tentar hericamente, pensando que sabe oque queremos dizer. Mas em que, efetivamente, pode ele se basear? Intuio,imaginao e num livro de notas de memrias teatrais. Tudo isso lhe dar um vagoromantismo, que ele ir misturar com uma disfarada imitao de algum ator mais velhoque admira. Se buscar em suas prprias experincias, o resultado talvez no seja deacordo com o texto. Se s representar o que pensa ser o texto, far uma imitao

    convencional. De um modo ou de outro, o resultado ser sempre comprometido e quasesempre esse compromisso pouco convincente. E vo pretender que as palavras queaplicamos s peas clssicas, como musical, potica, maior que a vida, nobre, herica,romntica, tenham qualquer sentido absoluto. So reflexos da atitude crtica de umapoca especfica, e tentar montar uma pea de acordo com estas regras e nos dias dehoje o caminho mais certo na direo do Teatro Morto: um TeatroMorto com tal respeitabilidade pode at passar como verdade viva.

    Fazendo certa vez uma conferncia sobre este tema, pude test-lo na prtica. Porsorte havia uma senhora na platia que nunca havia lido nem visto o rei Lear. Dei-lhe a

    primeira fala de Goneril e pedi-lhe que a dissesse da melhor maneira possvel, usandoqualquer valor que encontrasse na fala. Ela leu com muita simplicidade e o texto

    emergiu com muita eloqncia e graa. Ento expliquei que era a fala da mulher m, esugeri que ela lesse cada palavra com hipocrisia. Ela tentou, a platia viu que luta,

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    difcil e sem naturalidade, se tratava com a msica simples das palavras, enquanto asenhora procurava representar com uma inteno:

    Senhor, eu vos amor mais do que possam as palavras exprimir;

    Com mais amor que viso, o espao e a liberdade;

    Alm do que pode ser avaliado, raro ou valioso;No menos que a vida, com graa, sade, beleza, honra;Mais do quanto o filho haja jamais amado ou o pai encontrado o amor;

    Um amor que torna mesquinho o alento e incapaz a fala;

    Muito alm de tudo isso eu vos amo. (2)

    Qualquer pessoa pode tentar por si prpria. s experimentar. As palavras sode uma dama de classe e linhagem, acostumada a se expressar em pblico, uma pessoadotada de naturalidade e aplomb social. Se se procura traos que possam antever sua

    personalidade, no encontraremos mais do que uma fachada e, a fachada bem se v, deelegncia e graa. Entretanto, se pensamos nos espetculos em que Goneril fala essas

    primeiras linhas com vilania macabra e olhamos a fala outra vez, ficamos perdidosprocurando o que pode sugerir isso, alm de preconceitos sobre asposies morais de Shakespeare. De fato, se Goneril em sua primeira entrada em cenano representa um monstro, mas apenas o que as palavras sugerem, ento todo oequilbrio da pea se altera e nas cenas seguintes, a sua vilania e o martrio de Learno so nem to crus, nem to simplificados como poderia parecer. Naturalmente, nofinal da pea vemos que as aes de Goneril fazem dela o que chamamos um monstro

    mas um monstro real, ao mesmo tempo complexo e compulsivo.Num teatro vivo, comearamos o ensaio dirio testando as descobertas do dia

    anterior, prontos para acreditar que a verdadeira pea nos escapou mais uma vez. Mas oteatro morto trata os clssicos supondo que, em algum lugar algum j descobriu edefiniu como o drama deve ser representado. Este o problema permanente que nslivremente chamamos de estilo. Todo trabalho tem seu prprio estilo. No momento emque tentamos especificar este estilo estamos perdidos. Lembro-me vivamente quando,

    pouco depois da temporada em Londres da pera de Pequim, veio outra pera chinesarival, vinda de Formosa. A companhia de Pequim ainda estava em contato com suasfontes e cada noite recriava seus temas antigos; a companhia de Formosa, trabalhandocom os mesmos temas, estava imitando a lembrana que possua deles, passando porcima de alguns detalhes, exagerando os trechos espetaculares, esquecendo o sentido nada era recriado. Mesmo este estranho estilo extico, a diferena entre vida e morteestava ntida e clara.

    A verdadeira pera de Pequim foi exemplo de uma arte teatral onde as formasexteriores no mudam de gerao para gerao, e h poucos anos atrs parecia estarcongelada de forma to perfeita que continuaria assim para sempre. Hoje at mesmoessa soberba relquia acabou. Sua fora e sua qualidade possibilitaram-lhe asobrevivncia bem alm de seu tempo, como um monumento. Mas veio o dia em que alacuna entre ela e a vida da sociedade sua volta se tornou grande demais. A GuardaVermelha reflete uma outra China. So poucas as idias e atitudes da tradicional perade Pequim que se relacionam com a nova estrutura de pensamento no qual vive hoje o

    povo chins. Hoje, na pera de Pequim, os imperadores eprincesas foram substitudos por proprietrios de terras e soldados e a mesma incrvelhabilidade acrobtica usada para falar de temas visceralmente diferentes.

    Para um ocidental isso parece uma perda terrvel e nos fcil chorar lgrimas deintelectual bem comportado. Naturalmente trgico que este milagroso patrimnio

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    tenha sido destrudo. Mas ao mesmo tempo eu sinto que a atitude implacvel doschineses para com um de seus tesouros mais valiosos atinge o mago do teatro vivo. Oteatro sempre uma arte autodestrutiva, sempre escrito no vento. Um teatro profissionalrene pessoas diferentes todas as noites e fala com elas atravs da linguagem docomportamento. Um espetculo fica pronto e normalmente ele representado e deve

    ser repetido to bem quanto o melhor nvel j alcanado. Mas desde o dia em que ficapronto, alguma coisa invisvel comea a morrer.No teatro de Arte de Morcou, em Tel Aviv, no Habimah, produes tm durado

    quarenta anos ou at mais. Eu assisti a uma fiel remontagem da Princesa Turandot,espetculo montado na dcada de 1920 po Vakhtangov. J assisti ao trabalho do prprioStanislavski, perfeitamente conversado. Mas nenhum destes espetculos tinha maisinteresse do que o de um antiqurio, nenhum possua a vitalidade da inveno nova. EmStraford, onde nos preocupamos em no representar nosso repertrio a ponto de exauri-lo como bilheteria, ns discutimos isso de forma bastante emprica o mximo que uma montagem pode viver, concordamos, so cinco anos. No soapenas os penteados, os figurinos e a maquiagem que parecem ultrapassados. Todos os

    diferentes elementos de montagem os compostamentos abreviados que passam arepresentar certas emoes, os gestos e tons de voz oscilam permanentemente numainvisvel bolsa de valores. A vida se agita, influncias atuam sobre ator e pblico; sobreoutras peas, outras artes, o cinema, a televiso, acontecimentos cotidianos,tudo se unifica num constante reescrever da histria, retificando a verdade cotidiana.

    Nas lojas de moda, algum bate numa mesa e diz: as botas esto decididamente namoda. Este um fato existencial. Um teatro vivo, que pensa poder se colocar acima dealgo to trivial como a moda, vai degenerar. No teatro, toda forma, uma vez nascida, mortal; toda forma tem que se reconhecida e sua nova concepo trar as marcas detodas as influncias que a cercam. Neste sentido o teatro relatividade.

    Entretanto, um grande teatro no uma casa de modas; elementos perptuosretornam a certos eventos fundamentais e sustentam toda atividade dramtica. Aarmadilha mortal separar as verdades eternas das variaes superficiais; uma formasutil de exibicionismo, e fatal. Por exemplo, aceita-se que cenrio, figurinos, msicaso um desafio para diretores e cengrafos: precisam ser renovados. Quando se trata deatitudes e comportamentos, temos bem menos clareza, e tendemos a acreditar que esteselementos, se fiis ao texto, podem continuar a ser expressos da mesma maneira, ouquase.

    Intimamente ligado a isso est o conflito entre diretores de teatro e msicos emprodues de peras, quando formas totalmente diferentes, drama e msica, so tratadascomo se fossem uma nica. Um msico esta lidando com uma textura que o mais

    perto que o homem pode chegar de uma expresso do invisvel. Sua partitura mostraessa invisibilidade e o som produzido por instrumentos que praticamente nadamudaram. A personalidade do msico no importa; um clarinetista magro podefacilmente fazer um som mais gordo do que um clarinetista gordo. O veculo da msica,em suma, est separado da msica. Por isso a msica vai e vem, sempre da mesmamaneira, livre da necessidade de ser revisada e renovada.

    Mas o veculo do drama carne e osso, e aqui leis completamente diferentesesto agindo. O veculo e a mensagem no podem ser separados. Somente um ator nu

    pode comear a assemelhar-se a um instrumento puro como um violino, e somente seele possui um fsico completamente clssico, sem barriga, sem pernas arqueadas. Umdanarino est s vezes prximo desta condio, e pode reproduzir gestos formais sem

    alteraes feitas por sua prpria personalidade ou pelos movimentos exteriores da vida.Mas no momento em que o ator se veste e fala com sua prpria lngua, est entrando no

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    territrio varivel de manifestao e existncia que partilha com o espectador. Como aexperincia do msico to diferente ele participa com o espectador. O msico,exatamente porque sua experincia completamente diversa, encontra dificuldade emcompreender por que aqueles trechos opersticos tradicionais que faziam rir Verdi eobrigavam Puccini a dar grandes palmadas nos joelhos, hoje no so mais nem

    divertidos, nem iluminantes. A grande pera, naturalmente, o Teatro Morto levado aoabsurdo. pera um pesadelo de disputas imensas sobre mnimos detalhes; de anedotassurrealistas que giram em torno da mesma afirmao: nada precisa mudar. Tudo empera tem que mudar, mas em pera a mudana impedida.

    Novamente precisamos acautelar-nos contra a indignao, pois se tentarmossimplificar o problema supondo que a tradio seja a barreira fundamental entre ns eum teatro vivo, mais uma vez estaremos evitando as causas verdadeiras. H umelemento morto em toda parte; na formao cultural, em nossos valores artsticosherdados, na estrutura econmica, na vida do ator, na funo do crtico. Se examinarmosisso, veremos que, enganosamente, o oposto tambm parece verdadeiro. Pois, contidosno Teatro Morto, se encontram frequentemente lampejos que podem ser vassaladores,

    abortivos ou at momentaneamente satisfatrios.Em Nova York, por exemplo, o elemento mais morto certamente o

    econmico. Isto no quer dizer que todo trabalho seja ruim; mas num teatro onde umapea, por vrias razes econmicas, no pode ser ensaiada mais do que trs semanas,est deturpada de incio. Tempo no o princpio criador nem o destruidor: no impossvel conseguir resultados surpreendentes em trs semanas. As vezes o que noteatro chamamos livremente de alquimia , ou sorte, traz um surpreendente jato deenergia. E ento inveno segue inveno numa imediata reao em cadeia. Mas isto raro: o bom senso mostra que , se o sistema rigidamente impede que, na maioria doscasos, mais do que trs semanas de ensaio, o resultado sacrificado. Nenhumaexperincia realizado e nenhum risco artstico possvel. O diretor tem que despachara mercadoria ou ser despedido, e o ator tambm. Naturalmente o tempo pode tambmser muito mal utilizado. possvel passar meses e meses discutindo, preocupando-se,improvisando, sem que depois isso aparea no espetculo. Vi na Unio Sovitica

    produes de Shakespeare to convencionais como concepo que faziam pensar quenem mesmo dois anos de trabalho inteiros de discusso e estudo dariam melhoresresultados que os alcanados, sem maiores estudos, em trs semanas por companhiassem recursos. Conheci um ator que ensaiou Hamleth durante anos e nunca chegou arepresent-lo porque o diretor morreu antes de encenar a pea. Por outro lado,

    produes de peas russas, ensaiadas no mtodo stanialavskiano durante anos, aindaatingem um nvel de representao excepcional. O Berliner Ensemble conseguiu criar

    um repertrio de tima qualidade que, impreterivelmente, cada vez que acaba de serrepresentado, obtm o completamente exaurido - e cada um deles lota o teatrointeiramente todas as noites. Em simples termos capitalistas, isto melhor negcio doque o teatro comercial, onde espetculos mal feitos e remendados raramente obtmsucesso. Na Broadway ou em Londres so incontveis, cada temporada, as montagenscarssimas que, depois de uma ou duas semanas, caem miseravelmente, contra uma ououtra montagem de sucesso que se insinua no se sabe muito bem como. Mesmo assim,a percentagem de desastres no sacudiu o sistema nem a crena de que, de algumamaneira, no fim tudo se resolve s mil maravilhas. Na Broadway os preos de ingressoscontinuam subindo e, paradoxalmente, enquanto cada temporada se torna maisdesastrosa, o grande sucesso da temporada encaixa mais dlares. Enquanto cada vez

    menos pessoas ocupam as platias, somas cada vez maiores entram nas bilheterias. Atque chegue o dia em que um ltimo milionrio estar pagando uma fortuna para ver um

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    espetculo especial s para ele. assim que o mau negcio para uns constitui bomnegcio para outros. Todos se lamentam, e mesmo assim muitos querem que o sistema

    perdure.As consequncias artsticas so graves. A Broadway no uma selva, e sim uma

    mquina dentro da qual muitas peas se encaixam confortavelmente. Entretanto, cada

    uma destas peas foi brutalizada, foi deformada para um nico teatro do mundo ondetodo artista com isso me refiro a cengrafos, compositores, eletricistas e tambmatores necessita de um agente para a sua proteo pessoal. Parece melodramtico, masem certo sentido todos esto em contnuo perigo; seu emprego, sua reputao, seu meiode vida oscilam diariamente. Em teoria, esta tenso devia levar a uma atmosfera deterror, e, se fosse esse o caso, ver-se-ia com clareza o seu

    poder destruidor. Na prtica, entretanto, essa tenso subjacente conduz diretamente clebre atmosfera da Broadway, muito emocional, palpitante, de um aparente calorhumano e boa disposio.

    No primeiro dia de ensaio da House of Flowers, seu compositor Harold Arlenchegou usando a escovinha azul na lapela, com champanha e presentes para todos ns.

    Enquanto abraava e beijava a torto e a direito o elenco, Truman Capote, que haviaescrito o libreto, me sussurrou maldosamente: Hoje tudo so flores. Os advogadosviro amanh. Era verdade. Pearl Bailey apresentou-me uma conta de 50.000 dlaresantes que o espetculo chegasse ao palco. Para um estrangeiro vistoo problema em retrospectiva tudo foi divertido e emocionante tudo rotulado edesculpado pelo termo show business- mas em termos precisos, o calor humano brutalest diretamente relacionado a falta de segurana emocional. Em tais condiesraramente existe calma e segurana para que algum ouse expor-se. Refiro-me verdadeira intimidade, pouco espetacular, que o longo trabalho e a verdadeira confiananas outras pessoas proporcionam. Na Broadway um gesto cru de franqueza fcil deencontrar, mas isso nada tem a ver com a sutil e sensvel interrelao entre

    pessoas que trabalham juntas, a confiana mtua.Quando os americanos tm inveja dos britnica, esta estranha sensibilidade,

    este dar e receber desigual e espontneo, que a provoca. Chamam isto de estilo, e oconsideram um mistrio. Quando a distribuio doa papis feita em Nova York, eafirmam que um certo ator tem estilo, isto geralmente significa a imitao da imitaode um europeu. No teatro americano as pessoas falam seriamente de estilo como sefosse um modo de ser que pudesse ser adquirido. Convencidos pelos crticos de que elestem it, fazem tudo para perpetuar a noo de que estilo algo raro, ques alguns senhores possuem. No entanto nos Estados Unidos poderiam ter um grandeteatro prprio. Possuem todos os elementos; h fora, coragem, humor, capital e

    capacidade de afrontar as situaes adversas.Uma manh eu estava no Museu de Arte Moderna vendo o enxame de pessoasentrando pelo preo de um dlar. Quase todos tinham o rosto vivo e o aspecto tpico deuma boa platia utilizo aqui o simples padro pessoal de um pblico para o qualgostaramos de fazer espetculos. Em Nova York existe potencialmente um dosmelhores pblicos de teatro do mundo. Infelizmente, quase nunca vai ao teatro.Raramente vai porque os preos soa muito elevados. claro que pode pagar, mas j sedecepcionou inmeras vezes. No sem razo que Nova York o lugar onde os crticosso os mais poderosos e severos do mundo. Foi o pblico que , ano aps ano, viu-seforado a elevar simples homens falveis a categoria de peritos

    pesquisadssimos. Acontece o mesmo quando um colecionador compra um trabalho

    caro: ele no pode correr o risco sozinho. A tradio dos avaliadores, especialistas emtrabalhos de arte, como George Duveen, atingiu as bilheterias. Portanto o crculo est

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    fechado; no s os artistas, mas tambm o pblico precisa de seus guarda-costas e amaioria dos curiosos, inteligentes, inconformados, fica de fora. Esta situao no ocorreexclusivamente em Nova York. Tive uma experincia bastante semelhante quandomontamos uma pea de John Arden, Sargent Musgraves Dance, em Paris, no Athene.Foi um verdadeiro fracasso quase toda a imprensa se manifestou contra e ns

    estvamos representando para casas virtualmente vazias. Convencidos de que a peatinha pblico em algum lugar da cidade, anunciamos que realizaramos trs espetculosgratuitos. Foi tal a afluncia de pblico que estes espetculos se transformaram emestrias alucinantes. Multides lutavam para entrar, a polcia teve que instalar grades deferro na sala de espera, e a pea em sim se transformou num espetculo magnfico; osatores, estimulados pelo calor do pblico, realizaram suas melhores interpretaes, oque por sua vez lhes proporcionou verdadeiras ovaes da platias. O teatro que nanoite anterior parecia um cemitrio frio, agora zumbia com conversa e rudo de sucesso.

    No final, acendemos as luzes para a platia e olhamos o pblico. Na sua maior partejovens, todos bem vestidos, um pouco formais, comternos e gravatas. Franoine Spira, diretora de teatro, veio ao palco:

    - H algum aqui que no podia ter pago o preo do ingresso?Um homem levantou a mo

    E os outros, por que esperaram para entrar grtis? A crtica foi contra. Vocs acreditam na crtica?Um coro bem alto disse: - No!

    Ento, por qu...?E de todos os lados a mesma resposta o risco grande demais, as decepes

    excessivas. Aqui vamos como se traa o crculo vicioso. Com obstinao, o TeatroMorto cava sua prpria sepultura.

    Ainda pudemos atacar o problema pelo outro lado. Se o bom teatro depende daboa platia, ento toda platia tem o teatro que merece. Contudo, deve ser muito difcilpara os espectadores serem informados da responsabilidade de uma platia. Como podeisso ser encarado na prtica? Triste seria o dia em que as pessoas fossem ao teatro porobrigao. Uma vez dentro do teatro, a platia no se pode forar a ser melhor do que .Em certo sentido, no h nada que um espectador possa fazer. E entretanto, tudodepende dele.

    Quando a Royal Shakespeare Company apresentava o rei Lear em excursoatravs da Europa, o espetculo enriqueceu a medida que prosseguia e as melhoresapresentaes foram realizadas entre Budapeste e Moscou. Foi fascinante ver como uma

    platia, composta na sua maior parte de pessoas com pouco conhecimento de ingls,

    podia to facilmente influenciar o elenco. Estas platias traziam consigo trs coisas: umamor pela pea em si, verdadeira sede de contato com estrangeiros e, acima de tudo,uma experincia de vida da Europa, nos ltimos anos, que lhes permitia chegardiretamente aos dolorosos temas da pea. O grau de ateno que este pblico trazia seexpressava em silncio e concentrao: um sentimento que afetava os atores, como seuma luz brilhante se projetasse sobre seus trabalhos. Em consequncia, os trechos maisobscuros foram iluminados, representados com uma complexidade de sentido e umrequintado uso da lngua inglesa que poucas platias podiam literalmente seguir, masque todas podiam sentir. Os atores sentiam-se estimulados quando seguiram para osEstados Unidos, preparados para dar a um pblico de lngua inglesa tudo que haviamaprendido. Fui forado a voltar para a

    Inglaterra e s me encontrei com a companhia algumas semanas depois, em

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    Filadlfia. E fiquei surpreso e desanimado, pois muito da qualidade do espetculodesaparecera. Eu queria culpar os atores, mas estava claro que eles se esforaram omximo. Era a relao com o pblico que mudara. Em Filadlfia o pblico entendiaingls perfeitamente, mas a platia era na maior parte composta por pessoas que iam aoteatro por motivos convencionais porque era um acontecimento social, porque as

    esposas insistiam e assim por diante. Sem dvida existia uma maneira de envolveresse pblico com o Rei Lear. Mas no era a nossa maneira. A austeridade desteespetculo, que parecera to correto na Europa, no fazia mais sentido. Vendo pessoas

    bocejar, me senti culpado, compreendendo que se exigia algo mais de ns. Eu sabia quese estivesse montando o Rei Lear para o pblico de Filadlfia, precisaria, semtransgredir, acentuar tudo de outra maneira e, em termos imediatos, teria feito a peafuncionar melhor. Mas com uma produo estabelecida, em excurso, nada mais podiafazer. Os atores, entretanto, estavam respondendo instintivamente nova situao.Enfatizavam tudo que pudesse prender os espectador isto, quando havia um pouco deao excitante ou uma ecloso de melodrama, exploravam-no, representavam mais altoe de forma crua. E, claro, passavam voando pelos trechos intrincados, de que a platia

    no-inglesa poderia ter apreciado integralmente. Afinal, nosso empresrio levou a peapara o Lincoln Center em Nova York um auditrio gigante, de acstica ruim, onde aplatia se ressentia do distante contato com o palco. Fomos colocados neste vasto teatropor causas econmicas: uma simples ilustraode como um crculo fechado de causa e efeitos se produz de forma que o pblico errado,ou o lugar errado, ou ambos, extraem dos atores seu trabalho mais bruto. Novamente osatores respondiam instintivamente s condies presentes. No tinham alternativa:encaravam a platia de frente, falavam alto e, com toda razo, jogavam fora tudo que setornara valioso em seu trabalho. Este perigo inerente a qualquer excurso, porque emcerto sentido do poucas as condies para que a representao original se conserve e ocontato com a platia nova muitas vezes um problema de sorte.

    Nos velhos tempos os atores ambulantes naturalmente adaptavam seu trabalho acada lugar novo: as elaboradas produes modernas no possuem essa flexibilidade.Alis quando representamos US, um espetculo happening engajado na RoyalShakespeare Company, sobre a Guerra do Vietn, decidimos recusar todos os convites

    para excursionar. Cada elemento do espetculo fora criado somente para os setoresespecficos da populao londrina que compareciam ao Teatro Aldwich, em 1966. Ofato de no possuirmos um texto, trabalhado e montado de antemo por umdramaturgo, era a condio fundamental desta experincia. O contato com a platia,estabelecido atravs de uma especial comunho de idias, tornara-se a substncia doespetculo. Se tivssemos estruturado um texto, poderamos ter representado em outros

    lugares, mas sem ele, ramos como um grupo fazendo um happening e, com o passardo tempo, todos ns sentimos que alguma coisa se perdera em representar US mesmonuma temporada de cinco meses em Londres. Uma nica apresentao teria atingido oclmax do espetculo. Nosso erro foi no sentirmos obrigados a incluir US em nossorepertrio. Um repertrio se repete e, para ser repetido, algo tem que ser fixado(3). Asregras da censura britnica no permitem que atores adaptem e improvisem nosespetculos(4). Justamente neste caso, fixar era o incio de um deslize em direo doMorto a vivacidade dos atores foi se esvaindo medida que diminua o imediatismoda relao com o pblico e o seu tema.

    Durante uma conferncia que fiz para um grupo de universitrios, tentei ilustrarcomo uma platia afeta os atores segundo o tipo de ateno que presta. Pedi um

    voluntrio. Um homem veio a frente e entreguei-lhe uma folha de papel na qual estavaescrita uma fala da pea de Peter Weiss sobre Auschwitz The Investigation. O trecho

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    era a descrio de corpos dentro de uma cmara de gs. Enquanto o voluntrio apanhavao papel e o lia para si prprio, o pblico dava risadinhas, como sempre faz quando vum dos seus exposto um papel de bobo. Mas o voluntrio estava por demais atingido ehorrorizado pelo que estava lendo para reagir com o habitual sorriso amarelo, quesempre aparece nessas ocasies. Algo da sua serenidade alcanou o pblico e fez se

    silncio. Ento, a meu pedido, o voluntrio comeou a ler em voz alta. As primeiraspalavras estavam carregadas com seu prprio sentido de horror e com a reao do leitora elas. Imediatamente a platia compreendeu. Uniu-se ele, a fala dele. A sala deconferncia e o voluntrio sumiram de vista: A evidncia nua de Auschwitz era to

    poderosa que nos invadiu a todos, por completo. No s o leitor continuou a falar emmeio a um silncio chocado e atento, mas tambm sua leitura foi tecnicamente perfeita

    no possua graa nem falta de graa, habilidade nem falta de habilidade foi perfeitaporque no lhe sobravam nem um pouco de ateno para concentrar-se em si prprio,para pensar se estava ou no usando a entonao correta. Ele sabia que a platia o queriaouvir, e estava disposto a deixar que seu pblico ouvisse: as imagens encontraram seu

    prprio nvel e guiaram sua voz inconscientemente para o volume e tom apropriados.

    Depois disso pedi outro voluntrio e dei-lhe uma fala de Henrique V: era umalista de nomes e nmeros de ingleses e franceses mortos depois da batalha. Quando leuem voz alta, surgiram todas as falhas do ator amador; porque bastou uma olhadela novolume das obras de Shakespeare para provocar-lhe uma srie de reflexoscondicionados que interviram na leitura dos versos. Usou uma voz falsa com o objetivode ser nobre e histrico. Arredondou os lbios em torno de cada palavra, inventou

    bizarros acentos tnicos, ficou com a lngua presa, tenso e confuso;enquanto o pblico escutava desatento e irrequieto. Quando acabou, perguntei ao

    pblico por que no havia aceito a lista de mortos de Agincourt com tanta seriedadequanto a descrio da morte em Auschwitz. Isto provocou uma discusso viva:

    Agincourt pertence ao passado. Mas Auschwitz tambm pertence ao passado. Mas s quinze anos. Ento quanto tempo necessrio ? Quando que um cadver se torna um cadver histrico? Quanto anos tornam um homicdio romntico?

    Deixei que o debate esquentasse por um tempo e, ento, propus umaexperincia. O ator amador leria a fala novamente, parando um momento depois de cadanome: a platia tentaria silenciosamente, durante a pausa, relembrar e unir as impressesde Auschwitz e Agincourt. E assim tentaria encontrar um meio de acreditar que essesnomes foram uma vez indivduos, de maneira to viva como se a carnificina houvesse

    ocorrido no passado recente. O amador comeou a ler. E a platia se empenhouarduamente, representando a sua parte. Quando ele disse o primeiro nome, o semi-silncio passou a ser um silncio denso, cuja tenso atingiu o leitor. Havia emoo naleitura, partilhada por ele e pela platia. E isto desviou toda aateno do leitor para longe de si, na direo do assunto que lia. Agora aconcentrao da platia passou a gui-lo: suas inflexes eram simples, seus ritmosverdadeiros. Isto por sua vez, aumentava o interesse da platia. Finalmente a corrente seformou, simultaneamente, entre a platia e o ator amador. Quando a experinciaterminou, nenhuma explicao foi necessria; a platia se havia visto em ao. E haviaentendido quanto substrato podia conter o silncio.

    Como toda experincia, esta, era naturalmente artificial: aqui a platia tinha

    recebido um papel insolitamente ativo, como resultado, dirigiu um ator inexperiente.Geralmente um ator de experincia lendo um trecho como este, conseguir impor

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    platia um silncio que est na razo direta do grau de verdade que der ao texto.Excepcionalmente, um ator pode dominar por completo qualquer platia e ento, comoum hbil toureiro, capaz de trabalhar a platia como quiser. Normalmente, entretanto,isto no pode vir somente do palco. Por exemplo, tantos os intrpretes como euencontramos mais satisfao quando representamos A Visita da Velha

    Senhora e Marat/Sade nos Estados Unidos do que na Inglaterra. Os ingleses serecusavam a aceitar A Visita em seus prprios termos; o tema da pea a crueldadelatente em qualquer pequena comunidade. Quando representamos nas provnciasinglesas, para casas praticamente vazias, a reao dos que iam ao teatro era no real,no poderia ter acontecido. E gostavam ou no gostavam no nvel da fantasia. OMarat/Sade agradou em Londres, no tanto como a pea sobre a revoluo e loucura,mas, sim, como uma demonstrao de teatralidade. Os dois termos contrastantesliterrio! E teatral tm muitos sentidos, mas no teatro ingls, quandousadas como elogio, elas quase sempre descrevem maneiras de evitar contato comtemas embaraante. O pblico dos estados Unidos, entretanto, reagiu a ambas as peasde forma muito mais direta. Aceitara, sem reservas, a sugesto de que o homem vido

    e assassino, um louco em potencial. Foram atingidos e envolvidos pelo material dodrama. E, no caso de A Visita, frequentemente nem comentavam o fato de que a estriaera contada de modo um pouco inslito e expressionista. Simplesmente discutiam o quea pea dissera. Os grandes sucessos de Kaza-Willians-Miller, o Quem tem medo deVrginia Wolf? de Albee, atraam platias que se encontravam com os atores no terrenocomum do argumento e do interesse: e estes foram acontecimentos prodigiosos porque ocrculo de representao era estimulante e completo.

    Nos Estados Unidos, correntes poderosas reconhecem o Morto e sugere umaforte reao contra ele. Anos atrs o Actors Studio comeou a existir para dar f econtinuidade aqueles infelizes artistas que sofriam com os reveses do mtier. Baseadonum estudo muito srio e sistemtico de um dos files da doutrina de Stanislavski, oActors Studio desenvolveu um notvel estilo de representao, que correspondia

    perfeitamente s necessidades dos dramaturgos e pblico da poca. Os atores aindatinham que conseguir resultados em trs semanas, mas eram agora sustentados pelatradio da escola e no vinham de mos vazias ao primeiro ensaio. Esta base deu forae integridade ao seu trabalho. O ator do chamado Mtodo era treinado para recusarimitaes esteriotipadas da realidade e para procurar algo mais real em si mesmo.Precisava, ento, apresentar isso vivendo-o e, portanto, representar tornou-se um estudo

    profundamente naturalista. Realidade uma palavra com muitos sentidos,mas aquiera entendida como aquela parte real que refletia as pessoas e os problemas quecercavam o ator. E coincidia com as partes da existncia que os escritores do momento,

    Miller, Tenesse Willians, Inge, estavam tentando transmitir. Exatamente da mesmamaneira, o teatro de Stanislavski baseava sua fora no fato de corresponder snecessidades dos melhores clssicos russos, todos levados cena de maneira naturalista.Por vrios anos, na Rssia, a escola, o pblico e a pea haviam constitudo um todocoerente. Ento Meyerhold desafiou Stanislavski, propondo um estilo diferente derepresentar, na tentativa de captar outros elementos da realidade. Mas Meyrholddesapareceu. Hoje, nos Estados Unidos, o tempo est maduro para que surja umMeyrhold, j que representaes naturalistas da vida no mais parecem adequadas aosamericano para expressar as foras que os guiam. Agora Genet discutido, Shakespearereavaliado, Artaud citado. H muita discusso sobre ritual: e tudo por motivos bemrealistas, pois h muitos aspectos concretos da vida americana que s podem ser

    captados assim. H bem pouco tempo os ingleses invejavam a vitalidade do teatroamericano. Agora o pendulo balana na direo de Londres, como se os ingleses

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    possussem todas as chaves. Anos atrs, vi uma moa no Actors Studio que interpretavauma fala da Lady Macbeth fingindo ser uma rvore: quando descrevi isto na Inglaterra,

    pareceu engraado, e mesmo hoje muitos atores ingleses ainda tem que descobrirporque os exerccios que parecem estranhos so to necessrios. Em Nova York,entretanto, aquela moa no precisara aprender nada sobre o trabalho do grupo de

    improvisao. Aceitara-os com naturalidade. Mas precisava compreender, isto sim, osentido e as exigncias da forma. De p, com os braos no ar, tentando sentir elaesbanjava seu ardor e energia inutilmente, na direo errada.

    Tudo isto nos traz de volta ao mesmo problema. A palavra teatro no tem umlugar exato na sociedade, nenhum propsito claro, s existe em fragmentos: um teatrocorre atrs de dinheiro, outro de glria, outro ainda de emoo, um outro busca a

    poltica, outro a diverso. O ator embrulhado, jogado de um lado para o outro desnorteado e consumido por condies fora de seu controle. Os atores podem as vezes

    parecer ciumentos ou vulgares. Mas nunca conheci um ator que no quisesse trabalhar.Este desejo de trabalhar sua fora. o que faz com que profissionais em qualquerlugar se compreendam uns aos outros. Mas o ator no pode reformar a sua profisso

    sozinho. Num teatro com poucas escolas e nenhum objetivo, ele geralmente aferramenta agrcola, ao invs de ser o instrumento musical mesmo quando o teatrovolta ao ator, o problema permanece: a representao morta se torna o centro da crise. Odilema do ator no pertence exclusivamente aos teatros comerciais, com otempo inadequado para ensaio. Cantores e frequentemente danarinos conservam

    professores ao seu lado at o fim de seus dias, enquanto que os atores, uma vezlanados, no tm nada nem ningum que os ajude a desenvolver seus talentos. Se istonos parece alarmante no teatro comercial, o mesmo se aplica s companhias

    permanentes(5).Depois que o ator alcana uma certa posio, ele no faz mais dever de casa. Por

    exemplo, um ator jovem, ainda no formado nem desenvolvido, mas estourando detalento, cheio de possibilidades latentes, descobre rapidamente o que pode fazer, edepois de tornar-se senhor de suas dificuldades iniciais, com um pouco de sorte eletalvez se encontre na invejvel posio de ter um emprego de que gosta, alm de estarsendo, ao mesmo tempo pago e admirado. Se pretende desenvolver a prxima faseter de ir alm da sua aparente capacidade e comear a explorar o que realmente setorna difcil. Mas ningum tem tempo para dedicar-se a este tipo de problema. Seusamigos so de pouca utilidade, seus pais certamente nada sabem sobre sua arte, e seuagente, que talvez seja bem intencionado e no desprovido totalmente de inteligncia,no est disposto a desvi-lo de boas ofertas e bons papis, em troca de qualquer outracoisa que, quem sabe, lhe permitira uma satisfao maior. A carreira e o

    desenvolvimento artstico no caminham necessariamente juntos; frequentemente o ator,enquanto sua carreira progride, seu desenvolvimento artsticos permanece estagnado. uma triste histria, e todas as excees confirmam a regra.

    Como que o ator comum passa seus dias? Naturalmente varia muito: ficadeitado na cama, bebendo, indo ao cabelereiro, ao agente, filmando, gravando, lendo, svezes estudando, mesmo ultimamente, brincando um pouco com a poltica. Mas novem ao caso se usa seu tempo de modo frvolo ou srio: pouco do que ele faz serelaciona com a sua preocupao principal no ficar parado como ator o quesignifica no ficar parado como ser humano, o que significa trabalho dedicado a suavalorizao artstica e onde que tal trabalho pode ocorrer? Diversas vezes trabalheicom atores que depois do prembulo usual de que eles se pem nas minhas mos so

    tragicamente incapazes, por mais que se esforcem, de largar por um breve instante,mesmo em ensaio, a imagem de si prprios que enrigeceu em volta de um interior vazio.

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    Nas ocasies em que possvel penetrar nesta casca, como despedaar a imagem deum aparelho televisor.

    Na Inglaterra, parece que de repente temos uma nova e maravilhosa raa dejovens atores. Sentimos que estamos testemunhando duas filas de homens numa fbricaencarando direes opostas: uma fila se retira arrastando os ps, cinzentos, cansados,

    enquanto a outra avana fresca e vigorosa. Ficamos com a impresso de que uma fila melhor que a outra, que a fila nova feita de material melhor. Isto uma parte daverdade, mas no final a nova estar to cansada e cinzenta quanto a velha: o resultadoinevitvel de certas condies que ainda no mudaram. A tragdia que o status

    profissional de atores com mais de trinta anos raramente um reflexo de seus talentos.Existem inmeros atores que nunca tiveram a chance de cultivar sua prpria capacidadeinata at a completa maturao. Naturalmente, numa profisso individualista, presta-sefalsa ou exagerada importncia casos excepcionais. Atores excepcionais, como todoverdadeiro artista, tm alguma misteriosa qumica psquica, semiconsciente mas comtrs quartas partes ocultas, que eles prprios s podem definir como instinto, vozesinteriores, e que lhes permite desenvolver sua viso e sua vocao. Casos especiais

    talvez sigam regras especiais: uma das maiores atrizes do nosso tempo, que durante osensaios d a impresso deno estar seguindo nenhum mtodo de trabalho, possui na verdade, um sistema prprioextraordinrio, que ela s pode definir articulando em linguagem infantil. Amassando afarinha hoje, meu bem, ela me disse. Pondo-a de volta a cozinhas, precisa delevedura agora, Estamos moldando a massa esta manh. No importa: isto cinciaexata, tanto quanto se ela usasse a terminologia do Actors Studio. Mas a sua habilidadede obter resultados restringe-se a ela prpria: no pode comunic-la de nenhumamaneira til s pessoas ao seu redor. Portanto, enquanto ela cozinha a sua torta, e oator ao seu lado est s fazendo da maneira que ele sente, e o terceiro, na linguagemda escola dramtica, est buscando o super-objetivo stanislavskiano, nenhumverdadeiro trabalho possvel entre eles. Sabe-se perfeitamente que sem umacompanhia permanente poucos atores podem prosperar indefinidamente. Todavia,tambm preciso enfrentar o fato de que at uma companhia permanente estcondenada mortalidade depois de algum tempo se no tem um objetivo, e portantosem objetivo no tem um mtodo; sem mtodo no tem uma escola. Se digo escola,naturalmente no quero dizer uma academia onde o ator exercite os seus membros numlimbo(6). Flexionar msculos somente no basta para desenvolver uma arte; as escalano fazem um pianista, nem os exerccios de dedo ajudam o pincel de um pintor:entretanto um grande pianista pratica exerccios de dedo muitas horas ao dia, e pintores

    japoneses passam suas vidas praticando o desenho de um crculo perfeito. A arte de

    representar num certo sentido a mais exigente de todas, e sem aprendizagem constanteo ator para na metade do caminho.Ento quando encontramos o mortal quem o culpado? Dos crticos j se

    disse at muito, em pblico e em privado para faz-los crer seriamente que so eles aorigem da pior mortalidade. Atravs dos anos gememos e resmungamos sobre oscrticos, como se fossem sempre os mesmos seis homens movendo-se a jato de Paris a

    Nova York, indo de espetculos de arte a concertos e teatros, sempre cometendo osmesmo erros monumentais. Ou como se fossem todos como Thomas Becket oalegre e prostitudo amigo do Rei, que no dia em que se tornou cardeal, condenou o

    prprio Rei, renegou o prprio passado e se pos a criticar todos os seus predecessores.Crticos vo e vm, entretanto, aqueles que so criticados os consideram todos iguais.

    O nosso sistemas, os jornais, as exigncias do leitor, a nota ditada por telefone, osproblemas de espao tipogrfico, a quantidade de porcaria encontrada em nossos

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    espetculos, o efeito destruidor de fazer o mesmo trabalho repetidamente e durantemuito tempo, tudo conspira para impedir um crtico de executar sua funo vital.Quando um homem comum vai ao teatro, ele pode dizer que vai apenas para servir a seu

    prprio prazer; quando porm um crtico vai ao teatro, ele pode dizer que est a serviodo homem comum, mas isto no exato. Ele

    no somente o homem que fornece as dicas da temporada. Um crtico tem um papelmuito mais importante, um papel essencial alis, pois uma arte sem crticos seriaconstantemente ameaada por perigos muito maiores.

    Por exemplo, um crtico est sempre servindo ao teatro quando est farejando erevelando a incompetncia. Se passa a maior parte de seu tempo resmungando, quasesempre tem razo. A terrvel dificuldade de fazer teatro tem que ser aceita: , ou seria, severdadeiramente praticada com responsabilidade, talvez a mais difcil arte entre todas.

    No admite piedade, no h lugar para erro, ou para o desperdcio. Um romance podesobreviver ao leitor que pula pginas ou captulos inteiros; enquanto o

    pblico teatral, susceptvel de passar, num piscar de olhos, do prazer ao tdio, pode serirreversivelmente perdido. Duas horas um tempo curto mas ao mesmo tempo uma

    eternidade. Usar duas horas do tempo do pblico uma arte requintada. Entretanto, estaarte, com suas assustadoras exigncias, servida na sua maior parte por trabalhadorescheios de indiferena. Num vcuo mortal existem poucos lugares onde podemosrealmente aprender a arte teatral por isso damos um pulo no teatro oferecendo floresao invs de cincia. isto que o infeliz crtico solicitado a julgar todas as noites.

    A incompetncia constitui o vcio, a situao e a tragdia do teatro mundial emqualquer nvel: para comdia ligeira ou musical, documentrio poltico, ou drama emverso, ou ainda um drama clssico a que assistimos, existem centenas de outros textosque na maior parte do tempo so trados por uma ignorncia de tcnicas maiselementares. As tcnicas de montagem, cenografia, a tcnica de falar, atravessar o palco,sentar at ouvir simplesmente no so suficientemente conhecidas. Compare o

    pouco que necessrio exceto os casos de sorte para conseguir trabalho em muitosteatros do mundo, com o nvel mnimo de destreza exigido, digamos, aos pianistas:

    pense em quantos milhares de professores de msica, em milhares de pequenas cidadessabem tocar todas as notas dos trechos mais difceis de Liszt ou ler a msica deScriabin. Comparada simples habilidades dos msicos, a maior parte do nossotrabalho est quase sempre no nvel amador. Um crtico ver muito mais incompetnciado que competncia em suas visitas ao teatro. Uma vez me pediram para dirigir umapera num teatro do Oriente Mdio, de onde me escreveramfrancamente, na sua carta convite: nossa orquestra no tem todos os instrumentos etoca algumas notas erradas, mas at agora nosso pblico no notou, Felizmente o

    crtico em geral nota, e neste sentido, sua mais furiosa reao vlida um brado competncia. Esta uma funo vital, mas ele ainda tem outra. Ele abre caminhos.O crtico entra no jogo do morto quando no aceita responsabilidade, quando

    deprecia sua prpria importncia. Um crtico geralmente um homem sincero ehonesto, profundamente consciente dos aspectos humanos de seu trabalho; fato queum dos famosos Aougueiros da Broadway se sentiu atormentado por saber que deledependia a felicidade e o futuro de uma srie de pessoas. Mesmo assim, mesmo queconhea seu poder de destruio, ele subestima seu poder para o bem. Quando o statusquo est podre - e poucos crticos em qualquer lugar discordariam disto a nica

    possibilidade julgar acontecimentos em relao a um possvel objetivo. Este objetivodeveria ser os mesmo para artista e crtico isto , um movimento por um teatro menos

    morto, mas que, por hora, ainda um teatro bastante indefinido. Este o nosso propsitofinal, o objetivo que compartilhamos. Anotar todos os sinais e rastros do caminho a

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    representando todos os papis. Esta a forma mais exagerada de tradio, que custa amorrer em toda parte. O autor foi forado a fazer da sua especialidade uma virtude, e atransformar seu dom literrio numa muleta para uma espcie de auto-importncia, queno fundo ele sabe no justificada pelo sue trabalho. Talvez uma necessidade de seisolar faa parte da maquiagem de um ator. possvel que s com a porta fechada,

    comungando consigo mesmo, possa lutar para dar forma a imagens interiores e conflitosque nunca revelaria a pblico. No sabemos como squilo ou Shakespeare trabalhavam.Tudo que sabemos que, gradativamente, a relao do homem que senta em casaelaborando coisas no papel com o mundo de atores e palcos est se tornando cada vezmais precria, cada vez mais insatisfatria. A melhor literatura inglesa est saindo do

    prprio teatro: Wesker, Arden, Orborne, Pinter, para usar exemplos bvios, so todosdiretores e atores, bem como autores e j estiveram at trabalhando como empresrios.

    Mesmo assim, estudioso ou ator, muitos poucos autores so o que poderamosverdadeiramente chamar de inspiradores ou inspirados. Se o autor fosse um mestre eno uma vtima, poderamos dizer que ele traiu o teatro. Na situao atual, podemosdizer que est traindo por omisso os autores esto falhando porque no esto

    enfrentando o desafio de seu tempo. claro, existem excees brilhantes esurpreendentes. Mas estou novamente pensando na quantidade de trabalho novo ecriativo que aparece nos filmes, comparado produo mundial de novos textosdramticos. Quando as peas novas se propem imitar a realidade, ficamos maisconscientes daquilo que imitativo do que daquilo que real; se eles exploram

    personagens, raro irem muito alm de esteritipos; se argumento o que oferecem, raro o argumento ser levado s ltimas consequncias; mesmo se uma qualidadeexistencial que desejam evocar, geralmente no nos oferecem nada alm da qualidadeliterria da frase bem feita; se crtica social que buscam, ela poucas vezes toca ocentro de qualquer alvo social; se o que desejam o riso, geralmente o procuram pormeios gastos e mais que sabidos.

    Em consequncia, somos forados, muitas vezes, a escolher entre aremontagem de peas antigas e a montagem de peas novas que consideramosinadequadas simplesmente num gesto de homenagear o dia presente. Ou ento partir

    para uma tentativa de iniciar uma pea, como aconteceu, por exemplo, com um grupode atores e escritores que do teatro da Royal Shakespeare, que queriam uma pea sobrea guerra do Vietn que no existia. E comearam ento a faz-la, usando tcnicas deimprovisao e invenes sem autor para preencher o vcuo. A criao de grupo, se estegrupo rico, pode ser infinitamente mais rica do que o produto de umfraco individualismo - mas isso no prova nada. Em ltima anlise, para conseguiraquela conciso e aquele centralismo que o trabalho coletivo no pode, absolutamente,

    oferecer, precisamos sempre da obra de um autor.Em teoria poucos homens so to livres quanto um dramaturgo. Ele podetransportar o mundo inteiro para seu palco. Mas na verdade ele misteriosamentetmido. Ele olha o conjunto da vida, e como todos ns s v um fragmento minsculodela: um fragmento no qual s um aspecto capta seu interesse. Infelizmente quase nunca

    procura relacionar este trabalho a qualquer estrutura maior. como se aceitasse, semquestionar, a sua intuio como completa, a sua realidade como toda a realidade. como se a sua crena na subjetividade, funcionando como seu instrumento e a sua fora,impossibilitasse qualquer dialtica entre o que v e o que aprende.

    Assim, existe o autor que explora a sua experincia interior com grandeprofundidade, ou ento o autor que evita esta reas, explorando o mundo exterior no

    entanto cada um pensa que seu mundo completo. Se Shakespeare nunca houvesseexistido seria bem compreensvel teorizarmos que tanto um quanto outro nunca

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    poderiam ser combinados. Mas o teatro elizabetano existiu e para nosso desconfortoeste exemplo nos paira constantemente sobre a cabea. Quatrocentos anos atrs era

    possvel que um teatrlogo desejasse colocar me conflito aberto a sistemtica dosacontecimentos interiores de homens complexos isolados como indivduos, a grandearrancada de seus temores e aspiraes. Drama era exposio, era confrontao, era

    contradio. Conduzia anlise, ao envolvimento, ao reconhecimento e afinal a umdespertar de compreenso. Shakespeare no foi um ponto mximo sem uma base,flutuando magicamente numa nuvem: ele foi sustentado por muitos teatrlogosmenores, naturalmente com talentos menores mas que partilhavam a mesmainclinao luta contra aquilo que Hamlet chama de as formas e presses da era.Entretanto, num teatro neo-elizabetano, baseado em verso e festas populares tradicionaisseria uma monstruosidade. Isto nos obriga a olhar o problema mais de perto, e tentardescobrir quais so exatamente as especialssimas qualidades de Shakespeare. Um fatosimples surge imediatamente: Shakespeare usava a mesma unidade de tempo que seencontra hoje nossa disposio algumas horas do tempo pblico. Usava este espaode tempo para abarrotar toda sua obra, em cada segundo, a todo instante, com uma

    imensa quantidade, inacreditavelmente rica. Esse material existe numa variedadeinfinita de nveis, mergulha profundidades incomensurveis e toca grandes alturas: osseus meios tcnicos, o seu uso do verso, a prosa, as cenas dinmicas, o excitante, oengraado, o perturbador, eram os recursos que o autor era obrigado a desenvolver parasatisfazer suas necessidades: e o autor tinha um objetivo precioso, humano e social quelhe fornecia motivos para pesquisar seus temas, para buscar seus meios motivos; enfim

    para fazer teatro. Vemos o autor de hoje ainda encerrado nas prises da anedota, daconscincia e do estilo, condicionado pelas relquias dos valores vitorianos, a considerarambio e pretenso palavras sujas. E, na verdade, ele precisa desesperadamente deambos. Se ao menos fosse ambicioso, se ao menos ele arranhasse o cu! Enquanto foruma avestruz, uma avestruz isolada, isto nunca acontecer. Antes que ele possa levantara cabea, precisa encarar a crise de todos ns. Tambm ele tem que descobrir o queacredita deva ser o teatro.

    Naturalmente, um autor s pode trabalhar com o que tem, e no pode saltar forade sua sensibilidade. No pode se convencer a ser melhor ou diferente do que . S

    pode escrever sobre o que v, pensa e sente. Mas uma coisa pode afinar o instrumento sua disposio. Quanto mais claramente reconhecer os elos perdidos que faltam cadeiade relacionamentos, isto , quanto mais verificar que nunca o bastante profundo emmuitos aspectos da vida, nem profundo o bastante em muitosaspectos do teatro, que seu isolamento necessrio tambm sua priso tanto mais,ento, poder comear a encontrar meios de reatar os elos de observao experincia

    que permanecem por enquanto desatados.Tentarei definir mais precisamente o problema que o escritor deve afrontar. Asnecessidades do teatro mudaram; entretanto a diferena no uma diferena de moda.

    No como se h cinquenta anos um tipo de teatro estivesse em moda, enquanto hoje oautor consegue sentir o pulso do pblico consegue tambm encontrar a chave para onovo idioma. A diferena que durante muito tempo os dramaturgos tm traficado comsucesso, aplicando ao teatro valores que pertencem a outros campos. Se umhomem podia escrever - e escrever queria dizer a habilidade de juntar palavras oufrases com elegncia e estilo ento isso era aceito como um primeiro passo no sentidode uma boa dramaturgia no teatro. Se um homem podia criar uma boa trama, boassituaes ou o que se chama de a compreenso da natureza humana, estas qualidades

    eram todas consideradas, pelo menos, como marcos indicativos de caminho que levam fina dramaturgia. Agora, no entanto as virtudes tpidas do bom artesanato, da

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    construo slida, do abrir e fechar o pano, buscando efeito, do dilogo brilhante, foramtodas completamente desmascaradas. Igualmente importante: em consequncia dateleviso, espectadores de todas as classes, no mundo inteiro, se habituaram afazer

    julgamento imediato no momento mesmo em que vem um plano na tela. Logo oadulto mdio est continuamente em exerccio, situando cenas e personagens sem

    nenhum auxlio, sem precisar de um bom especialista que venha em seu socorro comexposio e explicao. A implacvel desmoralizao das virtudes no-teatrais estcomeando agora a limpar o caminho s outras virtudes. Assim, essas virtudes maisestreitamente ligadas forma teatral, so tambm as mais exigentes. Pois se partimos daafirmao que um palco um palco e no o lugar conveniente para o desenvolvimentode um romance teatralizado, ou um poema teatralizado, ou uma conferncia teatralizada,ou uma estria teatralizada ento a palavra pronunciada neste palco existe ou noconsegue existir, sujeita apenas ao relacionamento com as tenses que cria sobre aquele

    palco no mbito de determinadas circunstncias cnicas. Em outras palavras, apesar doteatrlogo trazer ao seu trabalho a sua prpria vida nutrida pela vida que o rodeia o

    palco vazio no nenhuma torre de marfim as escolhas que faz e os valores que segue

    s tero vigor na medida do que criam na linguagem de teatro.Muitos exemplos disto podem ser vistos sempre que um autor, por motivo,

    morais ou polticos, tenta usar uma pea como veculo de uma mensagem. Qualquer queseja o valor intrnseco dessa mensagem ela s funciona de acordo com os valores que

    pertencem somente ao palco. Um ator pode enganar-se, facilmente, se pensa que podeusar uma forma convencional como veculo. Isto s era possvel quando as formasconvencionais ainda tinham vida para seu pblico. Hoje quando nenhuma formaconvencional consegue manter-se de p, mesmo o autor que no seinteressa pelo teatro como tal, mas apenas pelo que est tentando dizer, obrigado acomear da raiz; isto , encarando o problema da verdadeira natureza da expressodramtica. No h sada: a no ser que ele esteja disposto a ficar com um veculo desegunda mo que no est funcionando bem e que provavelmente no o levar aonde elequer ir. E aqui o verdadeiro problema do autor e do diretor caminham lado a lado.

    Quando ouo um diretor falando livremente em servir o autor, em deixar umapea falar por si, desconfio logo, porque esta a tarefa mais rdua de todas. Se vocsimplesmente deixar uma pea falar, talvez ela no faa nenhum rudo. Se o que vocquer que a pea seja ouvida, ento voc tem que arrancar o som dela. Isto exige muitasaes intencionais e o resultado talvez seja de grande simplicidade. Entretanto, comearcom o objetivo de ser simples pode ser bem negativo; isto , uma fuga fcil dasdifceis etapas que se sucedem e que, somente elas, conduzem soluo simples.

    um papel estranho o do diretor. Ele no pede para ser Deus e no entanto o seu

    papel implica nisso. Ele quer ser falvel, e no entanto uma conspirao dos atores pretende fazer dele um rbitro, exatamente porque h sempre uma desesperadanecessidade de rbitro. Num certo sentido o diretor sempre um impostor, um guianoturno que no conhece o territrio, e entretanto no tem alternativa: tem que guiar,aprendendo o caminho medida que avana. O teatro Morto, frequentemente fica espreita quando o diretor no reconhece esta situao e confia na sorte quando deveriaenfrentar o mais difcil.

    O Morto sempre empurra, incessantemente, repetio: o diretor morto usafrmulas velhas, mtodos velhos, anedotas velhas, efeitos velhos; princpios banais paraas cenas, e finais banais; e isto se aplica igualmente aos seus parceiros, os cengrafos ecompositores, a menos que no consigam tornar a partir do nada, do deserto e da

    verdadeira questo: por que afinal os figurinos, por que a msica, por que, para que

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    servem? Um diretor morto aquele que no desafia os reflexos condicionados queinevitavelmente cada setor possui.

    Durante pelo menos meio sculo tem-se aceito que o teatro uma unidade naqual todos os elementos deveriam tentar fundir-se. Com este fim surgiu o diretor. Masno fundo tem sido principalmente uma questo de unidade externa, uma fuso de estilos

    um tanto superficial, para que estilos contraditrios no se choquem. Se levarmos emconta como a unidade interna de um trabalho complexo pode verdadeiramente serexpressa, podemos achar exatamente o oposto: que o choque de externos essencial.Quando vamos alm e pensamos na platia e a sociedade da qual esta platia vem averdadeira unidade de todos estes elementos pode ser auxiliada melhor por fatores quesegundo outros critrios parecem feios, discordantes e deletrios.

    Uma sociedade estvel e harmoniosa talvez precise apenas procurar meios derefletir e reafirmar esta harmonia nos seus teatros. Tais teatros se poderiam propor a uniratores e espectadores num recproco sim. Mas um mundo em mudana, catico,frequentemente tem que escolher entre um teatro que oferece um adulterado sim ouuma provocao de tal maneira forte que estraalhe o pblico em fragmentos de

    vivssimos nos.

    Conferenciar sobre estes temas tem-me ensinado bastante. Eu sei que nesteponto algum sempre se levanta na platia para perguntar se: a) penso que todos osteatros que no esto nos mais altos padres deveriam ser fechados, ou b) se eu pensoque uma coisa errada as pessoas se divertirem num bom espetculo, ou c) o que pensoa respeito de amadores?

    Minha resposta geralmente que jamais gostaria de ser o censor, proibirqualquer coisa ou estragar o divertimento de algum. Tenho o maior respeito pelosteatros de repertrio, e pelos grupos que no mundo inteiro lutam com grandesdificuldades para manter o seu nvel de trabalho. Tenho o maior respeito pelo prazer dasoutras pessoas, e particularmente pela frivolidade de qualquer um. Eu mesmo vim aoteatro por razes sensuais e talvez irresponsveis. Divertimento excelente. Mas inda

    pergunto aos meus interrogadores se eles realmente sentem que, no conjunto, os teatroslhes do o que esperam ou desejam.

    No me incomodo muito com o desperdcio, mas acho que uma pena no sabero que se est desperdiando. Algumas velhas usam notas de uma libra como marcadoresde livros: isto s tolice se for feito por distrao.

    O problema do teatro Morto como o problema do chato mortal. Cada chatomortal tem cabea, corao, braos, pernas; geralmente tem famlias e amigos: e chegamesmo a ter admiradores. Entretanto, suspiramos quando o encontramos e nesse

    suspiro estamos lamentando que, de alguma maneira, ele est no fundo ao invs de estarno auge de suas possibilidades. Quando dizemos morto, nunca queremos dizerrealmente morto: queremos dizer algo deprimente e ativo ao mesmo tempo, masexatamente por que em atividade capaz de mudana. O primeiro passo em direo aesta mudana encarar o fato simples e pouco atraente de que grande parte do que chamado teatro em qualquer lugar do mundo um travesti de uma palavra que j foicheia de sentido. Na guerra ou na Paz, a colossal carroa da cultura prossegue rolando,carregando os restos de cada artista para um monte de lixo que cresce sempre.

    Teatro, atores, crticos e o pblico esto interligados numa mquina que range,mas que no pra. H sempre uma nova temporada a fazer, e ns estamos muitoocupados para parar e fazer a nica pergunta vital que mede toda a estrutura. Por que

    afinal o teatro ? Para qu? Ser um anacronismo, uma curiosidade ultrapassada,sobrevivendo como um monumento ou um costume estranho ? Por que aplaudimos, e o

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    qu? Ocupar o palco um autntico lugar em nossas vidas? Que funo pode ter? A quepoderia ser til ? O que poderia explorar? Quais suas propriedades especficas?

    No Mxico, antes da roda ser inventada, uma poro de escravos tinham quecarregar pedra gigantescas atravs da selva e subindo montanhas; enquanto isso seusfilhos puxavam os brinquedos sobre pequenos rolamentos. Os escravos faziam os

    brinquedos, mas durante sculos no conseguiam ligar as duas coisas. Quando bonsatores representam em comdias ms ou musicais de segunda categoria, quandoplatias aplaudem clssicos insossos porque gostam dos figurinos ou das mudanas decenrio, ou ainda da beleza da atriz principal, no h nada de errado. No entanto, jamaisse preocuparam em ver que coisa existe debaixo do brinquedo que arrastam pela corda.Existe uma roda.

    (1) O autor optou pelo termo Rough ao invs de Popular por no querer conotar a palavra popular com osvriossentidos que ela possui, principalmente com a idia de teatro burgus popularizado (N. T.)(2) Sir, I love you more than word can wield the matter;Dearer than eyesight, space, and liberty;Beyond than can be valued, rich or rare;No less than life, with grace, health, beauty, honour;As much as child eer loved, or father found;A love that makes breath poor, and speech unable;Beyond all manner of so much I love you.(3) A repertoire repeats, and to repeat... No esta a nica passagem que o autor brinca com as palavras,inventando nexos filolgicos que no existem: mesmo em ingls o vocbulo repertoire nada tem a vercom o

    verbo to repeat. No entanto a substncia do assunto permanece imutvel. (N.T.)(4) Recentemente foi abolida de todo a censura teatral na Gr-Bretanha (N. T).(5) Por permanentes o autor quer dizer das companhias estveis, isto , que buscam auxlio financeiro noestado,comunidades, pessoas, ou entidades filantrpicas. (N.T.)(6) Limbs in limbo, mais uma vez o autor faz um o: limbo um jogo onde no se perde, nem se ganha.Consisteem arremessar uma bola num deteerminado ponto d euma parede. Na imagem, seria o ator que atirariaseusemsculos parede, num esforo intil. (N. T.)riginal jogo de palavras

    2O TEATRO SAGRADO

    Chamo-o de Teatro Sagrado por abreviao, mas poderia tambm cham-lo de oTeatro do Invisvel-Tornado-Visvel: O conceito de que um palco um lugar onde oinvisvel pode aparecer tem um grande poder sobre os nossos pensamentos. Todossabemos que a maior parte da vida escapa aos nossos sentidos: a mais poderosaexplicao das vrias artes que elas falam de temas que s poderiam comear areconhecer quando se manifestam em ritmos ou em formas. Observamos o

    comportamento dos seres humanos, de multides, da histria, obedece a estes temas quese repetem. Sabemos que trombetas destruram os muros de Jeric, reconhecemos que

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    uma coisa mgica como a msica pode vir de homens de casacas e gravatas-borboletabrancas, que sopram, repercutem, harpejam e arranham. Apesar dos mtodos absurdosque a produzem, reconhecemos o concreto atravs do abstrato, compreedemos quehomens comuns e seus instrumentos desajeitados so transformados por uma arte de

    posse. Podemos fazer um culto de personalidade ao maestro, mas sabemos que no ele

    quem faz a msica, ela quem o est fazendo se ele esta relaxando, entregue esintonizado, ento o invisvel toma posse dele; e atravs dele, chega at ns. esta a noo bsica, o verdadeiro sonho que est por trs dos ideais

    humilhados do Teatro Morto. isso que querem expressar e relembrar os que, comemoo e seriedade, usam palavras grandiosas e vagas como nobreza, beleza, poesia, squais eu gostaria de reexaminar pela qualidade especfica que sugerem. O teatro oltimo frum onde o idealismo ainda uma questo aberta: muitas platias no mundointeiro respondero, com a sua prpria experincia, que viram o rosto do invisvelatravs de uma experincia que no palco transcendeu sua experincia de vida. Iroassegurar que dipo ou Berenica ou Hamlet ou As trs irms, interpretadascom beleza e com amor, acende-lhes o esprito e lembra-lhes que a monotonia cotidiana

    no necessariamente tudo. Quando reprovam o teatro contemporneo por suas pias decozinha e a sua crueldade, exatamente isto que, em plena conscincia, queremdizer(1). Lembram como durante a guerra o teatro romntico, o teatro de cores e sons,de msica e movimento, chegavam como gua para a sede de suas vidas secas. Naqueletempo era chamado de evaso, contudo, a palavra era parcialmente exata. Era umaevaso, mas tambm um lembrete: um pssaro numa cela de priso. Quando a guerraterminou, o teatro procurou novamente, de maneira ainda mais vigorosa, redescobriraqueles mesmo valores.

    O teatro do fim da dcada dos 40 teve muitas glrias: foi o teatro de Jouvet eBrard, de Jean-Louis Barrault, de Clav do bal, de Don Juan, Amphitryon, La follede Chaillot, Carmen, a remontagem por Jhn Gielgud de The Importance of BeingErnest, Peer Gynt no Old Vic(2), dipo de Olivier, the Ladys not for burning, de VenusObserved; de Massine em Covent Garden, ainda em baixo da gaiola do canrio em TheThree-Cornered Hat, exatamente como foi montado quinze anos antes. Era um teatro decor e movimento, de tecidos fino, de sombras, de palavras excntricas e espumejantes,de vos de fantasia, de hbeis mecnicos, de brilhante leveza e de todas as formas demistrio e de surpresa este era o teatro de uma Europa ferida que parecia ter umobjetivo comum: recuperar a memria de uma graa perdida.

    Caminhando pelo Reeperbahn, em Hamburgo, numa tarde de 1946, enquantouma nvoa mida e cinzenta envolvia as desesperadas prostitutas mutiladas, algumascom muletas, de nariz roxo de frio, abatidas, eu vi um bando de crianas se empurrando

    excitadamente para entrar num clube. Segui-as. No palco havia um brilhante cu azul.Dois palhaos de roupas surradas e de lantejoulas estavam sentados numa nuvem pintada, a caminho de uma visita a Rainha do Cu. O que vamos pedir a ela?perguntou um deles. Jantar, respondeu o outro, e as crianas concordaram gritando.O que comeremos no jantar? Schinken, Leberwust...(3) O palhao comeou a fazeruma relao de todas as comidas impossveis de obter e as exclamaes de entusiasmoforam sendo, aos poucos, substitudas por um murmrio que se transformou num

    profundo e verdadeiro silncio teatral. Uma imagem estava tornando-se real, emresposta necessidade de uma coisa que no estava l.

    Do incndio da pera de Hamburgo s restou o palco. Mas a platia se reuniu le , num tablado, tendo como fundo o cenrio precrio, apoiado sobre uma parede nua,

    alguns cantores se movimentavam, subindo e descendo para interpretar O Barbeiro deSevilha; isto porque, nada podia impedi-los de agir assim. Cinquenta pessoas se

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    amontoavam num sto muito pequeno, enquanto que nos poucos centmetros querestavam, um punhado de timos atores, resolutamente, continuava a praticar sua arte.

    Numa Dsseldorf em runas, um Offenbach menor, sobre ladres e bandidos, encheu oteatro alemo. No havia nada para discutir, nada para analisar na Alemanha, naqueleinverno, como em Londres, poucos anos antes, o teatro respondia a uma fome. Mas

    afinal, o que era esta fome? Era uma fome invisvel? A fome de uma realidade maisprofunda do que a forma das coisas que faltavam na vida, uma fome, na verdade, deamortecedores contra a realidade? A pergunta hoje importante, pois muitos acreditamque num passado bem recente ainda havia um teatro, com certos valores, certashabilidades, certas artes que ns, talvez por capricho, tenhamos deliberadamentedestrudo ou posto de lado.

    Ns no podemos deixar que a nostalgia nos engane. O melhor teatroromntico, os prazeres civilizados da pera e do bal foram numa ocasio grandesrebaixamentos de uma arte sagrada em suas origens. Atravs dos sculos os Rituaisrficos foram transformados num espetculo de gala lenta e imperceptivelmente ovinho foi adulterado, gota por gota.

    A cortina foi o grande smbolo de uma escola inteira de teatro a cortinavermelha, as luzes da ribalta, a idia de que ramos novamente crianas. A nostalgia e amgica estavam ligadas uma a outra. Gordon Craig passou a vida lutando contra umteatro de iluso, mas suas memrias mais caras eram de rvores e florestas pintadas eseu olhar se iluminava enquanto descrevia os efeitos do trompe leil.(4)

    Mas chegou o dia em que a mesma cortina vermelha no escondia maissurpresas, quando no mais queramos- nem precisvamos ser de novo crianas.Quando a mgica popular cedeu a formas de pensamento mais rigorosas; ento a cortinafoi desmontada e as luzes da ribalta retiradas.

    evidente que ainda queremos captar nas artes os fluxos invisveis quegovernam as nossas vidas. Mas a nossa viso est presa agora na escurido doespectrum. Hoje um teatro de dvida, de desconforto, de problemas, de alarma, parecemais real do que um teatro com objetivos nobres. Mesmo que o teatro tivesse tido, emsuas origens, rituais que possibilitassem a encarnao do invisvel, preciso noesquecer que, salvo certos teatros orientais, esses rituais se perderam ou permanecemem lenta degenerao. A viso de Bach foi escrupulosamente preservada pela exatidode suas notaes: em Fra Angelico testemunhamos uma verdadeira encarnao; mas

    para tentarmos tais processos hoje, onde podemos encontrar a fonte? Em Cventry, porexemplo, uma nova catedral foi construda, de acordo com a melhor receita paraconseguir um resultado nobre. Artistas honestos, sinceros, os melhores se reuniram

    para construir um monumento civil celebrao de Deus, do Homem, da Cultura e da

    Vida atravs de uma arte coletiva. Existe portanto, uma nova catedral, boas idias,vitrais lindos s o ritual est podo. Aqueles hinos Antigos e Modernos, graciosostalvez numa igrejinha de campo, aqueles nmeros na parede, o colarinho estranho dos

    pastores e os sermes, ficam tristemente imprprios aqui. O novo local clama por umanova cerimnia, mas naturalmente a nova cerimnia que deveria ter vindo primeiro a cerimnia, com todos os seus significados, que deveria ter ditado a forma do local,como aconteceu quando as grandes mesquitas, catedrais e templosforam construdos. Boa vontade, sinceridade, reverncia, crena na cultura no bastam:a forma exterior s pode ter verdadeira autoridade se a cerimnia possuir igualautoridade. E atualmente quem poderia estabelecer os padres a serem seguidos?

    claro que hoje, como em todos os tempos, precisamos montar rituais

    verdadeiros. Mas rituais que faam das nossas idas ao teatro uma experincia que

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    alimente as nossas vidas. Precisamos de formas verdadeiras, mas estas no esto nossadisposio. E conferncias e resolues no as traro para o nosso caminho.

    O ator est buscando em vo uma tradio desaparecida, e crticos e platiafazem o mesmo. Ns perdemos todo o significado de ritual e cerimnia seja referentea Natal, aniversrios ou enterros mas as palavras permanecem conosco. E velhos

    impulsos continuam a agitar-se em ns. Sentimos que deveramos ter rituais,deveramos fazer algo para consegui-los e culpamos os artistas por no encontr-lospara ns. Ento o artista tenta achar novos rituais usando sua imaginao como nicafonte: ele limita a forma exterior de cerimnias pags ou barrocas, infelizmentesomando a isto tambm apenas seus prprios enfeites e o resultado raramente convincente. E depois de anos e anos de imitao cada vez mais fracas e aguadas, agoranos encontramos rejeitados a prpria nao do palco sagrado. No culpa do sagradoter-se tornado uma arma da classe mdia para manter as crianas bem comportadas.

    Quando fui pela primeira vez Starfford, 1945, todo o valor concebvel estavaenterrado sobre o mortal sentimentalismo e com um mrito complacente umtradicionalismo amplamente aprovado pela cidade, pelos estudiosos e pela imprensa.

    Foi necessria a ousadia de um velho gentleman, o extraordinrio Sir Barry Jackson,para jogar tudo isto pela janela, e assim promover uma verdadeira busca de verdadeirosvalores que fossem mais uma vez possveis. E foi em Strafford, anos depois, no almoooficial para celebrar o quarto centenrio de Shakespeare, que vium exemplo claro da diferena entre o que um ritual e o que poderia ser. Achou-se queo aniversrio de Shakespeare exigia uma celebrao ritual. O nico tipo decomemorao que as pessoas vagamente concebiam relacionava-se idia de um

    banquete: e um banquete hoje significa uma lista de pessoas do Whos who(5), reunidasem torno do prncipe Phillip, comendo salmo defumado e fil. Embaixadores trocavamacenos de cabea e passavam o ritualstico vinho tinto. Eu batia papo com orepresentante de Strafford no Parlamento. Ento algum fez um discurso formal,ouvimos polidamente e nos levantamos para fazer um brinde aWillian Shakespeare. No momento em que os copos tilintaram no mais que umafrao de segundo atravs da conscincia de todos os presentes, todos finalmenteconcentrados numa mesma coisa, passou a noo de que h quatrocentos anos umhomem como aquele existira, e era por causa dele que estvamos ali reunidos. Duranteum timo de segundo o silncio se tornou mais profundo, havia nele um pingo designificado um instante depois tudo foi varrido e esquecido. Se compreendssemosmais sobre rituais, a celebrao ritual de um indivduo a quem tanto devemos talvezhouvesse sido intencional, no acidental. Talvez esta celebrao tivesse sido to

    poderosa e inesquecvel quanto suas peas. Todavia, no sabemos

    como celebrar porque no sabemos o que celebrar. S conhecemos o resultado final:conhecemos e apreciamos o som da celebrao atravs dos aplausos. E aqui queempacamos. Esquecemos que h dois clmax possveis numa experincia teatral. H oclmax de celebrao, quando a nossa participao explode com gritos, bravos, batendocom os ps e as mos; ou ento, por outro lado, o clmax do silncio outra forma dereconhecimento e de apreciao de uma experincia na qual todos participam. J

    praticamente esquecemos o silncio. Chega mesmo a incomodar-nos; batemos as mosmecanicamente, porque no sabemos fazer outra coisa. E no sabemos, tambm, que osilncio permitido, que o silncio tambm bom.

    Somente quando um ritual chega ao nosso prprio nvel, que estamoscapacitados a tomar parte dele: toda a msica pop uma srie de rituais num nvel ao

    qual temos acesso. A vasta e rica conquista de Peter Hall na produo do ciclo Wars ofthe roses, de Shakespeare, baseou-se em assassinatos, poltica, intriga, guerra; a

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    perturbadora pea de Davis Ruskin, Afore Night Come, era um ritual de morte; Westside story, um ritual de violncia urbana. Genet cria rituais de esterilidade e degradao.Quando levei Titus Andromicus numa excurso atravs da Europa, esta obscura pea deShakespeare, tocou o pblico de forma direta porque nela injetamos um ritual de sangueque era reconhecido como verdadeiro. Isto nos leva ao centro da controvrsia que

    explodiu em Londres sobre o que era rotulado de peas sujas. A queixa era que o teatrohoje est nadando em misria; e que em Shakespeare, na grande arte clssica, um olhoest sempre voltado para as estrelas; que o rito do inverno inclui, num certo sentido, orito da primavera. Acho que isto verdade. Em certo sentido estou de pleno acordo comnosso adversrios mas no quando vejo o que propem. Eles no buscam um teatrosagrado. No esto falando em milagres: falam da pea domesticada onde maiselevado s significa mais bonitinho ser nobre s significa ser decente enfim,finais felizes e otimismo no podem ser encomendados como vinho de adegas. Elessurgem, queira ou no queira de uma fonte. E se fingirmos que tal fonte existe aoalcance da mo, continuaremos enganando-nos com imit