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1 POLÍTICA E CIDADANIA UNIDADE II : SISTEMAS ELEITORAIS GERALDO MESQUITA JÚNIOR Senador Brasília - 2005 Sistemas Eleitorais.indd 1 21/12/2004 15:57:28

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POLÍTICA E CIDADANIA

UNIDADE II :

SISTEMAS ELEITORAIS

GERALDO MESQUITA JÚNIORSenador

Brasília - 2005

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Mesquita Júnior, Geraldo.

Sistemas Eleitorais / Geraldo Mesquita Júnior. – Brasília : Senado Federal, 2005.

70 p. – (Política e cidadania ; 2)

1. Sistema eleitoral. 2. Eleição. 3. Representação política I. Título. II. Série.

CDD 324.6

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SUMÁRIO

I – Eleição, voto e democracia

II – Eleição e representação

III – Sistemas eleitorais

IV – O sistema majoritário

V – O sistema proporcional

VI – Classificação dos sistemas

VII – O modelo brasileiro

VIII - Conclusão

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I – ELEIÇÃO, VOTO E DEMOCRACIA

Voto, eleição e democracia são palavras e conceitos que se completam e se complementam, embora haja diferenças es-senciais entre eles.

O voto é uma decisão do eleitor, algo pessoal, portanto. Tratan-do-se de um instrumento para escolher representantes e dirigentes do país, deve ser secreto, requisito para que a escolha seja democrática.

Eleição, ao contrário, é um processo complexo, que ultrapassa e extrapola o campo pessoal para se situar na esfera do público e do coletivo.

Democracia é um conceito ainda mais amplo, mais complexo e mais abrangente. Refere-se tanto a um regime político, quanto a uma forma específica de se exercer o poder. Para muitos, inclusive, é uma filosofia. Exige mais que voto e eleição, embora não os dispense.

A primeira conclusão sobre esses três conceitos é que pode haver voto e eleição, sem que haja democracia, mas não pode haver democracia, sem que haja voto e eleições. Por isso, podemos dizer que voto e eleições são uma condição necessária, mas não suficiente nem bastante, para que exista democracia. Como já vimos no curso Política ao Alcance de Todos, as condições necessárias e suficientes para a exis-tência da democracia representativa são quatro: (1) eleições periódicas; (2) livres; (3) competitivas e (4) não manipuladas. Com relação a esse último requisito, é preciso ter em conta, porém, que nas sociedades de massa, como a maioria das contemporâneas, sempre haverá um certo grau de manipulação tolerável, decorrente, por exemplo, da liberdade de informação, do uso da propaganda legítima e de recursos como o “marketing”, largamente utilizado e admitido nos processos eleitorais. Neste caso, é adequado afirmarmos que, quanto menor o grau de ma-nipulação das eleições, mais democráticas elas serão. Admitindo-se

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como procedente este argumento, talvez fosse mais correto dizer que as eleições serão tão mais democráticas, quanto mais freqüente for a sua periodicidade, maior a liberdade de que desfrutarem os eleitores, maior a competição entre candidatos e partidos, e menor o grau de manipulação a que esteja sujeito o eleitorado. Quando nos referimos ao voto, estamos falando, como já as-sinalamos, de um ato solitário, praticado pelos cidadãos aptos a votar. Já ao aludirmos à eleição ou às eleições, de maneira geral, estamos nos referindo a um ato coletivo que envolve uma multiplicidade de atores e das relações que se desenvolvem entre eles. São atores essenciais e relevantes, além dos eleitores, também os candidatos, os partidos e os que administram e dirigem o processo eleitoral. Os eleitores, como os candidatos, não constituem uma categoria única nem homogênea de participantes desse processo. Pelo contrário, há eleitores que simples-mente cumprem o solitário dever de votar. Outros participam mais intensamente do processo, como “cabos eleitorais”, aqueles que estimu-lam, influenciam e aliciam o voto dos eleitores e são, por conseqüência, intermediários entre candidatos e votantes. Uns servem aos candidatos de sua preferência, outros aos partidos a que se filiam ou de que são simpatizantes. Eleições, portanto, exigem a convergência de enorme variedade de interesses e atores que se somam à multidão de fiscais, delegados, especialistas e profissionais encarregados de inúmeras ou-tras atividades mais amplas sem que, na maioria das vezes, nos demos conta de todos trabalhando para um mesmo objetivo: tornar possível a democracia. Existe um exército paralelo de pessoas atuando no âm-bito partidário: dirigentes, coordenadores, pesquisadores, articuladores, analistas, etc., aos quais são atribuídas as mais variadas responsabilida-des. Os envolvidos, porém, não atuam só no âmbito partidário ou nos comitês dos candidatos. As eleições são uma responsabilidade do Estado. No Brasil, essa função é delegada ao Poder Judiciário, ao qual pertence um ramo especializado da Justiça, a Justiça Eleitoral. São os juízes e tribunais que dirigem esse imenso mecanismo de cujos re-sultados depende a democracia. Funcionando junto a eles, atua o Mi-nistério Público Eleitoral, responsável por fiscalizar todo o processo.

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Como a Justiça Eleitoral não tem condições de exercer, por si só, todas as tarefas que lhe competem, num país com a extensão e as dimensões do nosso país, a cada eleição ela convoca os cidadãos que devem, com-pulsoriamente, servir de mesários e presidentes das seções eleitorais, por sua vez subordinadas às zonas eleitorais a cargo dos respectivos juizes. Resumindo, as eleições em nosso país terminam se constituindo na maior atividade coletiva de que se tem notícia, como de resto em outras democracias de igual expressão territorial e demográfica. Ne-nhum outro evento mobiliza maior número de pessoas num só dia em todo o território nacional. Além do mais, é preciso não esquecer que as eleições são o coroamento de um processo que começa bem antes, com as convenções partidárias, a escolha e registro dos candidatos, o julga-mento dos recursos e impugnações das candidaturas, o alistamento e a transferência dos eleitores, a campanha eleitoral, a busca de recur-sos para financiá-la e propaganda eleitoral, chamada impropriamente de “gratuita”. Há providências que prosseguem depois de encerrado o pleito, com a totalização dos resultados das urnas, a proclamação dos resultados, a diplomação e a posse dos eleitos. Terminada a eleição, apurados e proclamados os resultados e empossados os eleitos, a Justiça Eleitoral continua exercendo suas funções, como por exemplo, julgando os recursos contra a diplomação de alguns eleitos e os processos sobre as denúncias de abuso de poder, além de outras que, embora decididas em 1a instância pelos juizes, ainda permanecem pendentes dos recursos judiciais cabíveis. Para que se tenha uma idéia da importância desse ato cívico, veja no quadro a seguir, como têm variado o número de candidatos e de pessoas envolvidas nas últimas eleições gerais e municipais realizadas no país:

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Quadro ICandidatos nas eleições gerais – 1994/1998/2002

Cargos 1994 1998 2002Deputado Estadual* 7.962 10.668 13.406Deputado Federal 3.008 3.417 4.901Senador 232 167** 349Governador 134 151 218Presidente 8 12 6TOTAIS 11.344 14.416 18.880

* Inclui Deputados Distritais. ** Em 1998 disputou-se uma vaga por Estado, já que o Senado é renovado, alternadamente, por um e dois terços, a cada eleição.

Quadro IIEleições Municipais de 2000/2004

Discriminação 2000 2004Eleitores inscritos* 108.493.400 119.821.569Número de municípios 5.559 5.563Zonas Eleitorais 2.845 2.900Seções Eleitorais 322.290 359.326Candidatos a Prefeito 15.036 14.982**Candidatos a Vice-Prefeitos 15.036 14.982**Vagas de Vereador 60.311 51.782***Candidatos a Vereador 367.879 333.378Urnas utilizadas 354.969 407.089Mesários e presidentes de seções 1.814.000 2.122.000

* Excluídos os eleitores do DF e do exterior que não votam nas eleições municipais. ** Situação em 3/08/2004 . *** O número de Vereadores foi reduzido em conseqüência de decisão do Supremo Tribunal, interpretando o art. 29, inciso IV e respectivas alíneas da Constituição.

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Já assinalamos que o espetáculo das eleições se repete periodi-camente em todas as democracias do mundo. Mas também há eleições em regimes que não são considerados democráticos. Ou porque não há competição, por adotarem o sistema de partido único como o caso de Cuba e da China, ou porque utilizam variantes do sistema de consultas que dispensam eleições, como no Egito.

Quando esteve no Brasil, em outubro de 1995, para participar da reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisas em Ciências Sociais, a Anpocs, o sociólogo e professor Adam Pzeworski, indagado pela revista Veja(1) se “as eleições não são um meio eficaz de controle social do Estado”, respondeu: “Há dois séculos que não se cria nenhuma nova instituição democrática. Tudo o que conhecemos de democracia e seguimos copiando, foi concebido há 200 anos. A melhor forma que se conhece de democracia é exercê-la através de eleições livres. Isso é muito bom, mas não basta. É um único mecanismo para controlar uma gama enorme de decisões do Estado”. Na verdade, vota-se em boa parte do mundo, há quase ou há pouco mais de dois séculos. Mas nem sempre se votou da mesma for-ma. No séc. XVIII, por exemplo, só existiam partidos políticos no in-terior dos Parlamentos e as eleições ficavam por conta dos candidatos, sem a intervenção da Justiça. Depois, eles se tornaram essenciais e sua aparição permitiu o surgimento de novas formas de votar, pois em al-guns sistemas eleitorais vota-se apenas nos candidatos, em outros vota-se também nos partidos ou em ambos. Em conseqüência, ao lado dos diferentes sistemas eleitorais existentes no mundo, surgiu uma razoá-vel variedade de sistemas partidários. E da atuação dos eleitores, dos partidos e do processo político de cada país foram surgindo diferentes sistemas de governo. Genericamente, podemos dizer que sistemas elei-torais, sistemas partidários e sistemas de governo terminaram forman-do uma complexa forma de representar, gerir, administrar e controlar o Estado. E isso passou a distingui-los. Os que utilizam esses requisitos formais da democracia, denominamos sistemas representativos, ou seja, são democráticos em sua configuração. Na realidade, portanto, sistemas

(1) Edição de 18-10-1995.

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eleitorais, sistemas partidários e sistemas de governo nada mais são que subsistemas do grande sistema representativo que caracteriza as demo-cracias, chamadas por isso de “representativas”. Diz-se representativas, porque baseadas no instituto da “representação”. Em outras palavras, a representação nada mais é que a forma de legitimar as democracias representativas, exprimir o pluralismo político e permitir a formação dos governos. Veja como os cientistas políticos definem as eleições:

a) “um mecanismo de designação de titulares do poder, associado aos conceitos de representação, governo e legitimação”(2).

b) Compare com a definição do prof. Stein Rokkan: “Eleições são procedimentos institucionalizados para a escolha dos detentores do poder por parte de alguns ou de todos os membros reconhecidos de uma organização”(3).

A primeira refere-se à “designação de titulares do poder”. A segunda à “escolha dos detentores do poder”. A segunda é mais ampla, porque alude às eleições de “alguns ou de todos os membros de uma organização”, enquanto a primeira se restringe aos conceitos a que estão associadas as eleições, para a escolha dos titulares dos poderes públicos: representação, governo e legitimação.

(2) VALLÈS, Josep. M. e BOSCH, Agusti. Sistemas Electorales y Gobierno Representativo (Sis-temas eleitorais e governo representativo). Barcelona, Editorial Ariel, 1997, p. 11.(3) ROKKAN, Stein, “in” SILLS, David. (Org.) Internacional Enciclopaedia of Social Sciences, (Enciclopédia Internacional de Ciências Sociais), New York, Macmillan and Free Press, 1968, v. 5.

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II – ELEIÇÃO E REPRESENTAÇÃO

A mais antiga referência à representação política, como fundamento do poder legítimo, encontra-se num docu-mento de 1215, conhecido como Magna Carta, o mais antigo texto constitucional da Inglaterra, um país que

não possui Constituição escrita. Trata-se de uma petição endereçada por 25 barões ingleses ao Rei João, conhecido como João sem terra(4), impondo-lhe certas condições para que continuasse a governar e que o monarca, em cartas endereçadas a alguns dos nobres do reino, e aos dignitários da Igreja, escritas entre 16 e 23 de julho de 1215, se com-prometeu a respeitar. Entre essas condições estava o princípio que se tornou conhecido como “no taxation without representation” (nenhu-ma taxação sem representação). Isto significava que nenhum tributo seria imposto a seus súditos sem o consentimento dos respectivos re-presentantes. Esses representantes eram os próprios barões, proprietá-rios de terras ou aqueles escolhidos por eles. A “Carta Magna” de 1215, no entanto, embora um marco histórico, referência em todo o mundo ocidental, não conseguiu os resultados desejados, senão 10 anos depois. Segundo o prof. J.C. Holt, autor do mais completo estudo sobre esse famoso documento, na segunda edição de seu livro, comemorativa dos 750 anos de sua assinatura(5), escreveu: “Em 1215, a Magna Carta foi um fracasso. Foi tentada como instrumento de paz e provocou a guerra. Pretendeu dar estabilidade às leis costumeiras e promoveu desentendi-mento e controvérsia. Não teve validade senão por três meses e, mesmo

(4) Filho de Henrique I, e chamado “sem terra” por ter sido o único dos irmãos a não receber qualquer terra em apanágio, quando o pai morreu. Nasceu em Oxford em 1167 e morreu em Newark-Notinghamshire, em 1216 , um ano depois de os nobres ingleses o obrigarem a acei-tar a Carta Magna, considerado o primeiro documento constitucional da Inglaterra. (5) HOLT, J.C. Magna Carta, second Edition. Cambridge. Cambridge University Press, 1995. ISBN 0-521- 17778-7.

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nesse período, jamais foi adequadamente executada. Ela foi restaurada em três novas edições de 1216, 1217 e 1225. Esta última versão, desti-nada a ser confirmada e interpretada pelo Parlamento, tornou-se final-mente obrigatória para todos os tribunais. Três de seus capítulos (1, 9 e 29) ainda estão inscritos no Livro das Leis Inglesas. Eles incluem, com algumas emendas e alterações, quatro das provisões originais de 1215. Nenhum outro texto legal inglês teve vida tão longa”.

A Carta Magna, documento de 1215, o mais antigo texto constitucional da Inglaterra.

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Como se vê, a Magna Carta foi apenas o primeiro marco na história política do país que possui o mais antigo Parlamento do mun-do. Mas para que o sistema político inglês adquirisse sua configuração atual, passaram-se seis séculos de evolução, a partir do séc. XIII. Foram passos marcantes e decisivos nessa longa caminhada, muitas vezes san-grenta, como o reinado e a execução do Rei Carlos I, em 1649, quando o Parlamento, em luta aberta com o rei, venceu o seu exército, levou-o a julgamento e o executou; o Habeas-corpus Act de 1679; a chamada revolução “gloriosa” de 1688, que expulsou o Rei Jaime II e aclamou como seu sucessor Guilherme de Orange, obrigado a jurar o Bill of Ri-ghts (Declaração de Direitos) de 1689 e um século e meio mais tarde, em 1832, o Reform Act, com a mudança das antigas práticas eleitorais e a adoção de uma nova divisão dos distritos eleitorais. Durante esse lon-go período, o Parlamento foi afirmando sua preponderância no sistema político, até instituir o parlamentarismo, ao mesmo tempo em que o país estabeleceu um precário sistema eleitoral, baseado na escolha dos representantes de cada condado à Câmara dos Comuns. Uma crítica de Thomas Paine ao livro de Edmund Burke sobre a revolução francesa de 1789, porém, mostra as distorções desse sistema, depois que a Re-volução Industrial no séc. XVIII mudou a configuração da sociedade e da economia inglesas e o mapa político do país já não tinha qualquer relação com o mapa econômico. Veja o que escreveu Paine: “o condado de Yorkshire, com um milhão de habitantes, envia dois deputados à Câmara dos Comuns; o mesmo número que o de Rutland, que não tem dez mil. A cidade de Old Sarum, que não tem três casas, também elege dois deputados e a de Manchester que tem mais de sessenta mil almas, não envia um sequer”. Esses condados, que tinham perdido po-der e influência em virtude das transformações econômicas e demo-gráficas, passaram a chamar-se de “burgos podres”, uma situação que só foi resolvida com o chamado Reform Act (Ato de Reforma) de 1832 a que nos referimos pouco atrás. Outro testemunho das distorções da representação política na Inglaterra antes da reforma eleitoral pode ser lido no comentário ao sistema inglês, do prof. Afonso Arinos de Melo Franco6: “Em fins do séc. XVIII, já depois das revoluções Americana

(6) MELO FRANCO, Afonso Arinos de. Problemas Políticos Brasileiros. Rio de Janeiro, José Olímpio Editora, 1975.

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(1776) e Francesa (1789), uma Sociedade dos Amigos do Povo, exis-tente na Inglaterra, comprometeu-se a provar que 70 deputados eram eleitos por 35 circunscrições em que não havia praticamente eleitores; 90 eram eleitos por 40 distritos de menos de 50 eleitores; e ainda 37 eleitos por 19 localidades com menos de 100 eleitores. (...) Pode-se, pois, afirmar que a teoria e a prática da representação se firmaram real-mente a partir do séc. XVIII.” A importância do sistema eleitoral inglês decorre de se tratar do mais antigo do mundo, praticado até hoje no país e em todos os demais onde havia eleições, até o ano de 1899, quando a Bélgica se tor-nou a primeira nação a adotar uma nova modalidade de transformar os votos dos eleitores em cadeiras no Parlamento: o sistema proporcional. Outra importante mudança decorreu com o fim do chamado “man-dato imperativo”. Os que fizeram o curso Política ao Alcance de Todos, devem estar lembrados do discurso e da circular aos eleitores de Bristol, de 3 de novembro de 1774, transcritos no apêndice da Unidade V, em que Edmund Burke defendeu a autonomia do mandato legislativo, em relação à vontade de seus eleitores. Nesse texto histórico, ele mostrou que “o Parlamento não é um congresso de embaixadores que defendem interesses distintos e hostis, interesses que cada um de seus membros deve defender, como agente e advogado, contra outros agentes e advo-gados, senão uma assembléia deliberante de uma nação, com um inte-resse: o da totalidade que deve guiar-nos e não os interesses e prejuízos locais, mas o bem geral que resulta da razão geral de todo o conjunto”. Essa mudança foi tão relevante, que a proibição do mandato impera-tivo foi inscrita não só na Constituição francesa de 1791, a primeira que se seguiu à Revolução de 1789, como também em quase todas dos séc. XIX e XX, da maioria dos países europeus, como enumera Giovani Sartori(7): na da Bélgica de 1831, nas da Itália de 1848 e 1946, na da Prússia de 1850, na da Suécia de 1866, nas da Áustria de 1867, 1920 e 1945, nas da Alemanha de 1871 e 1949, nas da Holanda de 1887 e da Dinamarca de 1815.

(7) SARTORI, Giovanni. Elementos de Teoria Política. Madrid, Alianza Editorial, 1992. Tra-dução do original italiano.

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Esta é apenas uma das diferenças entre o mandato político, que os eleitores delegam a seus representantes, e o mandato jurídico, como o que o cidadão outorga a seu advogado ou a qualquer pessoa para representá-lo, na materialização de determinados atos jurídicos. O prof. Afonso Arinos comenta as características de cada um deles, distinguindo-os por sua natureza: “A teoria clássica da representação baseava-se numa delegação de poder, ou num mandato conferido pelo eleitor ao eleito. Mas esse mandato de Direito Público, desde logo o re-conheceram os juristas, era inteiramente diverso do mandato tal como conhecido no Direito Civil. As diferenças entre o mandato civil e o chamado mandato político são as seguintes: (a) o primeiro determina o objeto do mandato na procuração, ao passo que o segundo é geral e indeterminado; (b) o primeiro pode ser revogado (a não ser em casos excepcionais de transferência de direitos) e o segundo não pode ser anulado pelo mandante; (c) no primeiro, o mandatário deve prestar contas ao mandante, o que não acontece no segundo; (d) a duração do mandato político depende da lei eleitoral e não da vontade do man-dante. Como se vê, as diferenças mostram que se trata de dois institu-tos jurídicos distintos que conservam, por tradição, o mesmo nome”(8). Como é a eleição que materializa a representação política e o princípio da representação que legitima os governos democráticos, com toda razão Josep M. Vallés e Agustí Bosch(9) definem eleições como “um mecanismo de designação de titulares do poder, associa-do aos conceitos de representação, governo e legitimação”. No entanto, é preciso ter em conta que eleições, como instituto político, diferem das leis eleitorais que as regem. Daí Douglas Rae(10) definir as leis elei-torais como “aquelas que governam os processos mediante os quais as preferências eleitorais são articuladas como votos e estes são trans-formados em distribuições de autoridade governamental (tipicamente cadeiras parlamentares) entre os partidos políticos”. Veja, portanto, que estamos lidando com dois conceitos diferentes, quando falamos em

(8) Op. cit, capítulo “Representação popular”. (9) Op. cit.(10) RAE, Douglas. The Political Consequences of Electoral Laws. (As Conseqüências Políticas dos Sistemas Eleitorais) New Haven. Yale University Press, 1967.

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representação política: eleições e leis eleitorais. Eleição é o conjunto de eleitores, candidatos, partidos, cabos eleitorais, Justiça Eleitoral, propa-ganda, pesquisas, financiamento, apuração, julgamento, etc. a que nos referimos no item anterior. E leis eleitorais são as regras que regulam as eleições e estipulam como se apuram seus resultados. A soma de todas essas atividades, instituições e mecanismos reguladores é o que chamamos de “sistema eleitoral”.

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III – SISTEMAS ELEITORAIS

O prof. José Antônio Giusti Tavares(11) utiliza as definições do italiano Giovanni Schepis para caracterizar o que são sistemas eleitorais. Diz ele: “Segundo Schepis, o sistema eleitoral em sentido amplo compreende ‘o conjunto orgâ-

nico dos diferentes institutos jurídicos, recursos técnicos e procedimentos que regulam o processo que inicia com a convocação das eleições e termina com a proclamação dos eleitos’. Em sentido específico, é apenas ‘o procedimento técnico com base no qual se realiza a distribuição das cadeiras legislativas’, entre os partidos e os candidatos”. Uma diferença que mostra a distin-ção a que acabamos de aludir, entre eleição e leis eleitorais. O sentido amplo, portanto, abrange todos os atos do processo eleitoral, o sentido, estrito apenas a regra ou regras aplicáveis em cada caso. O primeiro é o todo, o segundo a parte que regula e complementa esse todo. Dos diferentes sistemas eleitorais, depende a sorte dos candi-datos e dos partidos. Estamos, portanto, lidando com dois sistemas simultaneamente: o eleitoral e o partidário. O sistema eleitoral é uma variável condicionante e o sistema partidário uma variável condicio-nada. Dos sistemas partidários dependem as diferentes formas de go-verno. Estamos, por conseguinte, tratando de um terceiro sistema: o sistema de governo, e mais duas variáveis, uma variável condicionante, que é o sistema partidário e uma variável condicionada, que é o sistema de governo. No entanto, sabemos que é o conjunto das instituições que constituem o governo que definem como se configura o sistema eleitoral. Neste caso, o sistema de governo é, por sua vez, uma variável condicionante e o sistema eleitoral uma variável condicionada. Esque-maticamente, esses sistemas, que se influenciam e se condicionam mu-tuamente, podem ser representados pelo mecanismo seguinte:

(11) TAVARES, José Antônio Giusti. Sistemas Eleitorais nas Democracias Contemporâneas. Teoria, Instituições, Estratégia. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994. ISBN 85-7316-005-5, p. 34.

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Observando esse esquema, verificamos que o sistema eleito-ral é uma variável condicionante do sistema partidário e uma variável condicionada pelo sistema de governo. Da mesma forma, o sistema partidário é uma variável condicionada pelo sistema eleitoral e uma variável condicionante do sistema de governo. Este último é, ao mesmo tempo, uma variável condicionada pelo sistema partidário e uma variá-vel condicionante do sistema eleitoral. Vejamos como se deu a evolução desses sistemas na história, e como eles terminaram se influenciando mutuamente. Para isso, é necessário esclarecer o que deve cumprir um sistema eleitoral.

Toda representação política, em qualquer democracia, exerce simultaneamente dois papéis preponderantes, embora não exclusivos, mas excludentes: assegurar a diversidade dos interesses da sociedade e propiciar a governabilidade. Que interesses são esses? Todos os que uma sociedade pode exprimir de forma legítima: ideológicos, políticos, partidários, econômicos, sociais, religiosos, étnicos, culturais, etc. Nas democracias, essa é uma tarefa dos partidos e dos diferentes grupos que atuam politicamente, como os lobbies, os grupos de pressão e os grupos de interesse. O problema prático que se põe é que essas duas funções, per-tencendo a uma mesma operação, correm na mesma linha, de tal sorte que, quando se aumenta a governabilidade, forçosamente se diminui a

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diversidade e quanto mais se aumenta a diversidade, mais se diminui a governabilidade. Assim, é possível equilibrar as duas funções, mas não se pode maximizar ambas, como demonstra o esquema seguinte:

A escolha de que função deve ser privilegiada, é uma decisão política de cada governo em face das peculiaridades do país. Neste sentido, o sistema eleitoral é uma variável dependente do sistema de governo. Do equilíbrio entre as duas funções depende a estabilidade do sistema político. Nas sociedades multi-étnicas, por exemplo, a di-versidade é fundamental. Nas sociedades homogêneas etnicamente, mas muito polarizadas politicamente, torna-se necessário privilegiar a governabilidade. O que significa que o sistema de governo é, nestas circunstâncias, uma variável dependente do sistema eleitoral.

Quando a sociedade era estamental, isto é, divida em estamen-tos(12), a representação política cumpria seu papel, na medida em que representava os interesses específicos do estamento dominante. Vimos que na Inglaterra havia dois estamentos reconhecidos, antes da Revo-lução Industrial: a nobreza, representada pela aristocracia, e os servos, que habitavam os feudos. Essa situação perdurou do início do séc. XIII, entre 1215, data da Carta Magna, até meados da 1a Revolução Indus-trial, no séc. XVIII, quando o país se transformou numa sociedade de classes(13), dividida entre nobres e burgueses, como eram chamados os habitantes dos antigos “burgos”, as cidades medievais cujos privilégios as distinguiam dos velhos feudos. Burgueses eram os comerciantes, os proprietários das indústrias, dos bancos e casas de câmbio e não mais apenas os donos da terra. Novos burgos como Manchester, Bris-

Governabilidade Diversidade

Governabilidade Diversidade

Governabilidade Diversidade

(12) Estamento, segundo o Aurélio, “cada um dos grupos da sociedade com status jurídico próprio”.(13) Classe, segundo o Aurélio, “categoria de cidadãos, baseada nas distinções de ordem social ou jurídica”.

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tol, Birmingham e outras cidades que se desenvolveram e prosperaram com as novas atividades, ou não dispunham de representação política, ou aquela de que dispunham era incompatível com sua expressão de-mográfica e seu poder econômico. As velhas e decadentes propriedades de base exclusivamente agrícola tornaram-se os “burgos podres”, a que nos referimos atrás. Foram os burgueses, novos senhores enriquecidos com as revoluções industriais, que terminaram impondo a reforma da legislação eleitoral inglesa, o Reform Act (Ato de reforma) de 1832, que redesenhou o mapa eleitoral da Inglaterra, assegurando uma divisão eleitoral mais compatível com a nova geografia econômica do país.

O mesmo ocorreu na França, já no fim do séc. XVIII, quando o rei convocou os “Estados Gerais”, a representação dos três estamentos do país: clero, nobreza e povo. A transformação decisiva sob o ponto de vista político, ocorreu na famosa sessão em que os corpos nacionais se reuniram numa só Assembléia e decidiram assumir a representação da Nação em seu conjunto, e não mais a dos seus diferentes estamen-tos. Como ensina Afonso Arinos, “deste grave passo revolucionário é que veio a teoria da representação nacional, e não das classes em que se pretendia dividida a sociedade”. Já agora, diz ele, “podemos lembrar a diferença entre a representação nacional, definida por Sieyès(14), pela qual cada mandatário deixava de ser delegado de seus mandantes, para representar todo o conjunto imaterial chamado Nação, e a representação popular, propugnada por Rousseau, segundo a qual, sendo a soberania nacional indivisível e intransferível, os representantes ficavam sempre sob a vigilância dos que os haviam eleito, e sujeitos à permanente cas-sação dos mandatos pelos seus mandantes”(15) .

O fim do mandato imperativo foi outra vitória da burguesia. Na Inglaterra, antes mesmo de Burke, o famoso constitucionalista Bla-ckstone, em seus Comentários sobre as Leis da Inglaterra, escrevia em 1765 que “Cada membro [do Parlamento], ainda que eleito por um distrito específico, uma vez eleito, serve todo o reino”. Na França, essa doutrina tornou-se obrigatória, quando a Constituição de 1791 pres-

(14) Emmanuel Joseph-Sieyès, (*1748 †1836) conhecido como Abade Sieyès, Vigário Geral e Chanceler da Catedral de Chartres, autor do famoso folheto Que é o Terceiro Estado e que exerceu papel decisivo durante o início da Revolução Francesa. (15) Op. cit. p. 8.

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creveu que “os representantes nomeados pelas circunscrições não re-presentam a uma circunscrição em particular, mas a nação inteira”. O sistema eleitoral, porém, permaneceu inalterado, exatamente porque, tal como tinha servido à nobreza, iria ser útil aos novos senhores, a burguesia emergente. Por isso, o sistema então em vigor sobreviveu sem alterações. Era chamado de majoritário, porque ganhava a eleição em cada condado ou distrito, aquele que obtivesse a maioria dos votos, como ainda hoje se pratica na Inglaterra e nos Estados Unidos. E de distrital, porque cada burgo ou condado passou a ser considerado um distrito eleitoral, elegendo um ou vários representantes, segundo sua população. O sistema permaneceu assim até 1885, quando em qua-se todos os distritos a representação passou a ser uninominal, isto é, os eleitores escolhiam apenas um nome dentre os candidatos. Apenas alguns, por motivos históricos, permaneceram plurinominais até 1950, quando desapareceram de vez. Hoje, a Inglaterra está dividida em 651 distritos, cada um elegendo um representante à Câmara dos Comuns, como lá se denomina a câmara baixa do Parlamento.

Com o surgimento da burguesia, tanto na França quanto na Inglaterra, os partidos começaram a ter certo protagonismo, porém sem nunca chegar ao antagonismo. Afinal, quando tomaram o poder, fazendo diminuir a influência e a importância política da aristocracia, a burguesia estava buscando algumas garantias para se afirmar como classe dominante. Suas exigências, que resumem o ideário liberal da época, podem ser assim resumidas:

a) no campo político, controlar, submeter e em seguida reduzir os poderes do absolutismo monárquico, tornando-os meramente nominais e cerimoniais, como nas monarquias atuais;b) no campo social, superar e banir os privilégios corporativos sobreviventes da Idade Média, que beneficiavam a nobreza, o clero e as corporações de ofício;c) no campo econômico, assegurar o livre mercado, o que implica-va a liberdade de produzir e comercializar os bens produzidos, sem a interferência do poder político e, finalmente;

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d) no campo jurídico, garantir a estabilidade das normas legais e do direito, livres do poder regulador do absolutismo, sem as quais o mercado não podia prosperar, o que obtiveram através das Constituições escritas que em todo o mundo ocidental, à exceção da Inglaterra, caracterizam o constitucionalismo do séc. XIX.

Foi a pregação dos princípios liberais e racionalistas do Ilumi-nismo que permitiu o surgimento e a ascensão dessa nova classe. Com ela, vingaram os princípios liberais que lhe interessavam, mas não o liberalismo radical de Rousseau. O art. 16 da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, aprovada pela Assembléia Francesa em 26 de agosto de 1789, prescrevia: “Toda sociedade em que a garantia de direitos não está assegurada, nem a separação de poderes determinada, não tem uma Constituição”. As idéias de Locke e Montesquieu tornaram-se final-mente realidade, mas as de Rousseau foram esquecidas. E isto pode ser deduzido dessa mesma Declaração, ao começar lembrando, em seu art. 1o, que “Todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em di-reitos”. Mas ressalvando no mesmo dispositivo que “As distinções sociais não podem ser fundadas senão na utilidade comum”. O lema “Liberdade, igualdade e fraternidade” com que se afirmou a Revolução francesa de 1789, terminou limitado a um só princípio, o da singular liberdade burguesa que, em vez da igualdade, admitia distinções sociais, fundadas no amplo conceito da “utilidade comum”. Uma dessas distinções estava prevista no art 2o da Constituição de 1791, ao prever que só gozavam de direitos políticos, e portanto só tinham direito ao voto, os “cidadãos ativos”, isto é, aqueles que, entre outros requisitos, pagassem, “em qual-quer lugar do Reino, uma contribuição direta pelo menos igual ao valor de três jornadas de trabalho”. Como eram os burgueses que pagavam os tri-butos, reservaram para si o direito de voto. Mais de meio século depois, quando a França já tinha 28 milhões de habitantes, menos de 250 mil deles eram eleitores. No Brasil, durante o séc. XIX, não foi diferente. Segundo o inciso I do art. 94 da Constituição de 1824, só podiam votar nas eleições de deputados e senadores, os que tivessem renda líquida anual por “bens de raiz, indústria, comércio ou emprego, 200 mil réis

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por ano”, o equivalente a 1/18 avos do subsídio anual de um senador na mesma época.

Tratava-se, como se vê, de uma representação restrita à elite então dominante. Foi nesse período que surgiram os partidos políticos que Maurice Duverger, em sua obra clássica Os Partidos Políticos, cha-ma de “partidos de notáveis”. Eram partidos parlamentares, isto é, atu-avam apenas no interior dos parlamentos, e tiveram, como assinalamos pouco atrás, certo protagonismo, mas nenhum antagonismo entre si. Como a representação era restrita à burguesia, industriais, banqueiros, armadores e comerciantes defendiam, sem discrepâncias, os mesmos interesses. Podia haver divergência de opiniões, mas nunca conflitos de interesses. Em outras palavras, seus interesses podiam não convergir, mas nunca chegavam a divergir. Dessa forma, numa cidade industrial como Birminghan, os eleitos eram sempre os representantes dos pro-prietários das indústrias. Num centro de comércio como Bristol, os dos comerciantes, num centro financeiro como Londres, os dos banqueiros e nas cidades portuárias como Portsmouth, os dos grandes armadores.

A industrialização que teve início no séc. XVIII, e se acentuou com a chamada 2a Revolução Industrial do séc. XIX, provocou uma enorme e profunda mudança: um intenso processo de migração e de emigração para suprir as necessidades das indústrias absorvedoras de mão-de-obra intensiva, cuja maior conseqüência foi o aparecimento de uma nova classe, o operariado. O resultado é que o sistema eleito-ral em vigor, restrito aos que tinham renda e propriedade garantidas, atendia aos interesses e compromissos da burguesia, mas não servia aos da nova e numerosa classe que iria dominar o cenário das sociedades contemporâneas, os trabalhadores salariados. A reação se deu quase simultaneamente na França e na Inglaterra, ainda que por caminhos diferentes. O filósofo alemão Jurgen Habermas, em um texto didático e sintético, explica não só o que significou a transição do absolutismo para o liberalismo burguês, mas também o surgimento da sociedade industrial:

“A democracia liberal se desenvolveu no quadro de uma sociedade estruturada de forma inteiramente hierárquica. A formação da vontade política ficou limitada, de fato, aos esta-

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mentos superiores. A base real do Estado liberal nunca foi uma ordem de cidadãos em competição com iguais oportunidades, mas sim uma estrutura estável de estratos sociais, assegurados pela formação e a propriedade.”

O retrato da sociedade industrial decorrente da 1a e 2a revolu-ções industriais, que levaram ao surto revolucionário de 1848 em gran-de parte da Europa Ocidental, não é menos vivo, nem pode ser mais explícito:

“O operário salariado já não tinha a oportunidade de que, até então, podia desfrutar o oficial artesão, a saber: a de que um dia pudesse ser proprietário dos meios de produção com os quais trabalhava(16). O contrato de trabalho formalmente livre, entre partes juridicamente iguais, no qual o operário trocava o esforço de seu trabalho por determinado soldo, acordado livre-mente e segundo o justo princípio da oferta e da procura, em realidade não era mais do que um contrato em que o trabalha-dor, que só dispunha do esforço de seu trabalho, tinha que acei-tar necessariamente as condições (horário de trabalho e soldo) da parte economicamente superior se não queria cair vítima da fome. Uma vez que o princípio liberal proibia toda intromis-são do Estado, e por conseguinte, toda legislação de proteção ao trabalhador, da mesma forma que qualquer modalidade de associativismo dos operários, aduzindo que isto prejudicava a “livre concorrência”, resultava que os trabalhadores podiam ser explorados de forma ilimitada em nome da liberdade(17) ”.

O surto revolucionário de fevereiro de 1848 coroou uma rei-vindicação que os sistemas políticos do séc. XIX já não tinham mais

(16) Habermas refere-se ao sistema produtivo da Idade Média, baseado na produção artesanal, em que os artesãos se reuniam em corporações dos diferentes ofícios, vivendo da venda de sua própria atividade. (17) Os trechos da obra de Habermas são transcritos do capitulo O Liberalismo de Reinhard Kuhn, na obra de Wolfgang Abendroth e Kurt Lenk, Introducción a la Ciência Política (Introdução à Ciência Política), Barcelona, Ed. Anagrama, 1971, tradução do original alemão de 1968.

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como conter. O movimento teve início na França e foi lá que primeiro se concedeu a ampliação do direito ao voto, aos homens, eliminando as exigências de renda, o chamado “censo econômico” que vinha na Inglaterra desde o séc. XIII e que na França se institucionalizou com a Constituição de 1791. Para que se tenha idéia da amplitude dessa transformação, basta assinalar que um mês depois da concessão desse direito a todos os cidadãos do sexo masculino, maiores de 21 anos, o eleitorado francês passou de cerca de 250 mil para 8 milhões e, um ano depois, chegou a 10 milhões! A antiga sociedade de classes de meados do séc. XVIII, produ-to da 1a Revolução Industrial, tinha se transformado, cem anos depois, com a 2a Revolução Industrial, na sociedade de massas preponderante em grande parte do mundo até o fim do séc. XX. Para lidar com essa multidão de eleitores incorporados ao processo político, os antigos par-tidos que operavam no interior dos parlamentos, lidando com algumas centenas de representantes, tiveram que se “externalizar”, isto é, sair dos recintos parlamentares e ir em busca desses milhões de eleitores, atuando junto à sociedade, a fim de coordenar, liderar e cooptar as levas crescentes de operários que passaram a acorrer às urnas. Esta é apenas uma das mudanças que o sistema eleitoral provocou no então inci-piente sistema partidário, mostrando a relação de dependência entre os diferentes sistemas políticos. Foi um caso típico do sistema eleitoral condicionando o sistema partidário, de que trataremos na Unidade se-guinte deste curso.

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IV – O SISTEMA MAJORITÁRIO

Já vimos em que consistia o sistema majoritário ou distri-tal. Verificamos, também, como, na Inglaterra, as mu-danças econômicas e demográficas, decorrentes da 1a Revolução Industrial, terminaram tornando obsoleto esse sistema, quando as cidades agrícolas, que perde-

ram relevância econômica e peso demográfico, continuaram a ter uma importância política desproporcional à sua influência no con-junto do país. Essa situação, só corrigida em 1832 com o “Reform Act” (Lei de reforma), mostrou que todo sistema eleitoral, concebido de forma estática, dificilmente pode acompanhar o dinamismo das trans-formações econômicas e sociais de qualquer país. Quando falamos em majoritário ou distrital, temos que come-çar advertindo que esse sistema admite duas modalidades:

a) de maioria relativa e b) de maioria absoluta.

O de maioria relativa se consuma em um só turno. O candidato que consegue a maioria de votos é considerado eleito.

No de maioria absoluta: ocorre uma de duas hipóteses:

(1) Se algum dos candidatos consegue a maioria absoluta (me-tade + 1 voto), a eleição no distrito em que isto ocorre consu-ma-se em apenas um turno;

(2) Se nenhum dos candidatos consegue maioria absoluta, rea-liza-se um segundo turno, em que concorrem os dois mais vo-tados ou, na França, que adota esse sistema, os candidatos que tenham conseguido pelo menos 12,5% dos votos válidos no 1o

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turno. No segundo turno, é considerado eleito o mais votado, qualquer que seja o resultado.

O sistema majoritário é utilizado nos seguintes países: na Aus-trália, Canadá, Estados Unidos, França (desde 1985) e no Reino Unido.

A primeira pergunta que seguramente ocorre é a seguinte: por que esse sistema é utilizado em tão poucos países? Exatamente por seus inconvenientes que são sobretudo dois. O primeiro, a controvérsia que gera a divisão dos distritos e a manipulação que essa divisão pode gerar. O segundo, a desproporcionalidade entre o número de votos e o número de cadeiras que se tem que preencher no Parlamento.

A polêmica fixação dos distritos

Para que as eleições sejam justas e não manipuladas, é indis-pensável que os distritos atendam a dois requisitos, simultaneamente: (a) sejam contíguos territorialmente e (b) tenham número de eleito-res semelhantes, sem grandes discrepâncias. Vamos imaginar o caso do Acre, com seus 22 municípios e uma representação federal de 8 deputados. Com um corpo eleitoral de 387.657 eleitores, o ideal seria que cada distrito tivesse 48.457 eleitores, que é o resultado da divisão do eleitorado pelo número de deputados a eleger, o chamado quociente eleitoral. Olhando o Mapa n° 1 (na página 28) constatamos que, à ex-ceção de Rio Branco, nenhum outro município atinge esse quociente. Neste caso, o município da capital teria que ser dividido em mais de um distrito, e todos os demais agrupados, para formarem distritos com um número igual ou próximo a 48.000 eleitores. Recorrendo ao mapa, mais uma vez, podemos verificar que Mâncio Lima e Rodrigues Alves, no extremo oeste do Estado, que só fazem divisa dentro do Estado com Cruzeiro do Sul, não podem constituir um distrito, pois juntos só teriam 14.483 eleitores. Neste caso, a única alternativa é que ambos, e mais Cruzeiro do Sul, constituam um distrito com o total de 56.118 eleitores, quantidade bem superior ao quociente ideal de 48.458 elei-tores. Apenas para fins ilustrativos, figuramos no Mapa n° 2 (na página 29) uma divisão hipotética em que, à exceção do 1o distrito, formado pela junção de Mâncio Lima, Rodrigues Alves e Cruzeiro do Sul, to-

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dos os demais teriam entre o mínimo de 45.358 (4o distrito) e o máxi-mo de 49.145 (6o distrito) eleitores, conforme o Quadro I (na página 30). Esta é uma divisão possível, mas há inúmeras outras alternativas.

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Com 46,39% dos eleitores do Estado, o município da capital abrange, na hipótese aqui figurada, 4 distritos, sendo o 7o e o 8o só com eleitores de Rio Branco, e os demais com dois outros municípios, o 5o com Bujari e o 6o com Porto Acre. Como a capital possui limites com outros sete municípios, as possibilidades de adotar outras combina-ções são várias. Nisto reside um dos inconvenientes do sistema. Quem faz essa divisão? Em alguns países, é a autoridade eleitoral: uma Junta ou Comissão leitoral ou a Justiça Eleitoral. Em outros, uma comissão integrada pelos próprios partidos e, em poucos, uma autoridade inde-pendente, vinculada ao Executivo. Mas, inicialmente, quando foram implantados na Inglaterra e nos Estados Unidos, eram fixados arbitra-riamente pelo próprio governo.

“Gerrymandering”

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Em 1812, a Assembléia de Massachussets, dominada pelos de-mocratas partidários de Thomas Jefferson, e com aprovação do gover-nador Elbridge Gerry, mais tarde vice-presidente dos Estados Unidos, estabeleceu uma nova divisão distrital do seu Estado, com o objetivo de fragmentar a força dos adversários federalistas e assegurar a hegemonia dos seguidores de Jefferson. Um jornal local chamou a atenção para o fato de que o formato da nova divisão se assemelhava a uma sala-mandra(18)(salamander, em inglês) e conta a tradição que o governador retrucou que a ele parecia uma “gerrymander”, (trocadilho resultante da combinação de seu sobrenome, Gerry, e a palavra salamander). Com essa nova divisão, o partido democrata conseguiu 50.164 votos e obteve 29 cadeiras na Assembléia, frente às 11 de seus adversários, a despeito deles terem conseguido 51.766 votos(19). Esse recurso continuou a ser usado nos Estados Unidos e foi utilizado para diminuir ou impedir as escolhas dos eleitores negros.

Esse subterfúgio também foi utilizado pelo governo do Gene-ral De Gaulle, na França, para privilegiar os distritos rurais, onde os eleitores sempre foram mais conservadores, e prejudicar os urbanos, cujo eleitorado, em grande medida, apoiava a esquerda. Nas eleições de 1958, por exemplo, um candidato comunista à Assembléia Nacio-nal, precisou de 388.000 votos para se eleger, enquanto para um do partido gaullista, conservador, bastaram 18.000! O termo “gerryman-dering” permaneceu como sinônimo de manipulação dos distritos ou circunscrições eleitorais. Para evitar o que ocorreu na Inglaterra com os “burgos podres” e atenuar os efeitos do “gerrymandering”, a Cor-te Suprema dos Estados, só na década de 1960 determinou a revisão automática dos limites territoriais dos distritos e a redistribuição do número de representantes dos Estados em função das mudanças no

(18) Segundo o Aurélio, animal anfíbio, provido de cauda na fase adulta, com um ou dois pares de patas, e que, segundo o ambiente onde vive, pode apresentar guelras ou não. No Brasil existe apenas uma variedade dessa espécie, na região amazônica. (19) AUBERT, Maria José. Ciudadanía y Representatividad. Los Sistemas Electorales em Europa. (Cidadania e Representatividade. Os Sistemas Eleitorais na Europa). Barcelona, Edicions Bellaterra, 2000, p.27.

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mapa demográfico do país. É o que ocorreria, por exemplo, se no caso de uma hipotética

divisão do Acre, Mâncio Lima e Rodrigues Alves, com seus 14.483 eleitores constituíssem um distrito, com direito a eleger um deputado, e Cruzeiro do Sul, com seus 41.635, constituído em outro distrito, ti-vesse direito à mesma representação.

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Os desequilíbrios do voto distrital

O sistema majoritário de maioria relativa, tal como se pratica nos países indicados no início deste item V, inclusive na França, que se utiliza da modalidade da maioria absoluta em 1o turno, produz, além dos riscos de manipulação na divisão em distritos, outros efeitos nega-tivos. O mais grave deles é a prevalência do princípio “quem ganha leva tudo, quem perde não leva nada”. Pode parecer justo, pois nos sistemas proporcionais, como veremos adiante, é possível que aquele que tenha o maior número de votos não ganhe e não leve. Mas é preciso lem-brar que uma das funções essenciais que cumpre o sistema eleitoral é a do pluralismo, princípio fundamental em qualquer democracia. Num distrito em que concorram quatro candidatos, pode ocorrer, e freqüen-temente ocorre, que um obtenha 33% dos votos, outro 27%, o terceiro 16% e o quarto 24%. O eleito representará 1/3 dos eleitores, enquanto os 2/3 seguintes ficarão sem representação. Em outras palavras, preju-dica-se a maioria, em favor da minoria. Outra conseqüência é que se atinge de forma decisiva o pluralismo político, já que apenas um dos quatro partidos estará representado no Parlamento, ficando de fora os três restantes.

Isto se verifica também em relação ao conjunto do país, sempre que o segundo partido em número de votos consegue a maioria de cadeiras, como efeito acumulado de uma situação em que consegue vitórias por estreita margem em um número grande de distritos e, em compensação, é derrotado por grande diferença de votos em outros. Veja o exemplo que dão em seu livro Josep Vallès e Agusti Bosch20:

(20) Op. cit. P. 136.

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Quadro IIUm suposto partido minoritário em votos e

com maioria de cadeiras no Parlamento

Distritos Partido A – Votos Partido B – VotosDistrito 1 8.000* 5.000Distrito 2 7.000* 6.000Distrito 3 3.000 9.000*Distrito 4 9.000* 7.000Distrito 4 4.000 9.000*Total de votos 31.000 36.000Total de cadeiras 3 2

(*) Candidatos eleitos

Essa situação pode ocorrer a favor de qualquer dos contendores. São exemplos as eleições inglesas de 1951, quando se beneficiaram os conservadores e na de 1974, a favor dos trabalhistas. Na Nova Zelândia verificou-se o mesmo em favor dos conservadores, nas eleições de 1978 e voltou a se repetir, nas de 1981. Este tem sido um quadro sistemático na Inglaterra, desde que o Partido Liberal, que fez sucessivas alianças com outros partidos menores, em especial o Social-Democrata, que-brou o quadro bipartidário que durante muitos anos prevaleceu nesse país, com a tradicional divisão entre Liberais (“whigs”) e Conservado-res (“Tories”). Veja, no quadro seguinte, a comprovação estatística des-se desequilíbrio entre votos e cadeiras nas eleições inglesas entre 1974, quando houve duas eleições no mesmo ano (em fevereiro e outubro), e 1992:(21)

(21) Cf. BUTLER, David. Electoral Reform and Political Strategy (Reforma Eleitoral e Estratégia Política), cit. por VALLÈS, Josep M. e BOSCH, Agusti, op. cit., p. 209.

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Quadro IIIDistribuição de votos e cadeiras na Grã-Bretanha (1974-1992)

Eleição Conservadores Trabalhistas Liberais-Democratas%Votos %Cadeiras % Votos %Cadeiras % Votos %Cadeiras

1974 (Fev) 38 47 (+9) 37 47 (+10) 19 2 (-17)1974 (Out) 39 50 (+11) 36 44 (+8) 18 2 (-16)1979 44 53 (+9) 37 42 (+5) 14 2 (-12)1983 42 61 (+19) 28 32 (+4) 25 4 (-21)1987 42 58 (+16) 31 35 (+4) 23 3 (-20)1992 42 52 (+10) 34 42 (+8) 18 3 (-15)

Nota: Os números entre parênteses indicam a diferença entre proporção de votos e de cadeiras. Fonte: Josep Vallès e Agusti Bosch, op. cit.

Verifica-se que, em apenas 18 anos (seis legislaturas), os con-servadores lograram obter mais 74 cadeiras do que conseguiriam, se o sistema eleitoral fosse proporcional. Outra evidência da desproporcio-nalidade entre votos e cadeiras é que em nenhuma das eleições o Parti-do Conservador conseguiu metade mais um dos votos, mas em quatro das seis, foi beneficiado pela maioria absoluta de cadeiras na Câmara dos Comuns, mesmo nunca obtendo mais que 44% da preferência dos eleitores. No mesmo período, os Liberais-Democratas perderam 101 das cadeiras de que se beneficiaram os dois maiores partidos ingleses. Confira agora, nas eleições de 1987, da Grã-Bretanha, quantos votos foram necessários a cada partido, inclusive os regionais do país de Gales, da Escócia e da Irlanda do Norte para a obtenção de uma cadeira na Câmara dos Comuns:

Quadro IVVoto por cadeira, na Grã-Bretanha - (Eleições de 1987)

Partidos Cadeiras VotosConservador 376 36.600Trabalhista 229 43.700Liberal-Democrata 22 334.000Nacionalista Escocês 3 141.000Nacionalista Galês 3 32.500Partidos da Irlanda do Nortes 17 42.100

Fonte: Vallès, Josep e Bosch, August. op. cit.

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A eleição na Inglaterra, a que se referem todos esses exemplos, adota, como já frisamos, o voto majoritário ou distrital, na modalidade de maioria simples. A França, por sua vez, adota a outra modalidade possível, a de maioria absoluta, e dois turnos, no caso dela não ser atin-gida. Os resultados são idênticos ou ainda mais aberrantes, como mos-tram os resultados da eleição legislativa de 1993, extraídos dos mesmos autores de que transcrevemos os resultados acima:

Quadro VRelação entre votos e cadeiras na França

(Eleições parlamentares de 1993)

Partidos/Coalizões Votos 1o turno % % e n°Cadeiras Diferença %

PCF (Partido Comunista Francês) 9,2 4,2% 24 -5,0PS (Socialistas e coligados) 19,2 11,6% 67 -7,6Ecologistas 7,6 -0%- -0- -7,6UDF-RPR (Gaullistas e aliados) 44,1 84,1% 485 + 40Frente Nacional (Extrema direita) 12,4 -0%- 0- -12,4Outros 7,5 0,1% -1- -5,3TOTAL DE CADEIRAS - 100% 577 -

Os dados mostram que o sistema de maioria absoluta, como neste exemplo da França, produz tantas ou mais aberrações que a mo-dalidade de maioria relativa da Inglaterra. Com menos da metade dos votos, os partidos do centro e direita lograram ocupar mais de 3/5 das cadeiras da Assembléia Nacional. A França, por sinal, é um dos países europeus, que mais tem alterado, inúmeras vezes ao sabor das circuns-tâncias, o seu sistema eleitoral. Depois da Segunda Guerra Mundial, período em que esteve sob o domínio nazista e não houve eleições, o país, então liderado pelo General De Gaulle, adotou o sistema propor-cional, durante quatro eleições sucessivas, até 1958. Com a adoção de um novo modelo institucional, conhecido como V República, em 1958, adotou o sistema majoritário em dois turnos, variando, sucessivamente,

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a proporção mínima de votos, para que houvesse disputa no segundo turno: de 5% em 1958, passou a 10% em 1967 e a 12,5% em 1976, em que permanece até hoje.

O Sistema Majoritário no Brasil

Os sistemas majoritários ou distritais possuem, como vimos, duas modalidades: a 1a, de maioria relativa, como se pratica, entre outros países, na Inglaterra e nos Estados Unidos e a 2a, de maioria absoluta, como na França. Entretanto, outras variações podem alterar esses dois modelos. Tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos, cada distrito escolhe um só representante. Nem sempre foi assim. Na Inglaterra, já assinalamos, a reforma de 1885 adotou, de forma quase generalizada, os distritos de um só deputado, mas só em 1950 eles desapareceram de vez. Essa variação se aplicou ao Brasil, da primeira eleição realizada em todas as províncias, em 1821, para escolher os representantes às Cortes de Lisboa de 1820, até o Código Eleitoral de 1932, quando se adotou o sistema parcialmente proporcional. Aqui também houve variações. Até 1881, as eleições eram indiretas, isto é, realizadas em dois graus. Os cidadãos aptos a votar escolhiam os eleitores dos deputados e estes, por sua vez, elegiam os representantes entre os candidatos. O resulta-do é que, embora o número de eleitores fosse razoável para a época, o daqueles que elegiam os deputados e senadores era extremamente restrito. Na escolha dos representantes à Constituinte de 1823, que terminou dissolvida, Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, o depu-tado mais votado de São Paulo, teve 276 votos e o de menor número de sufrágios, 115. Uma situação que se repetiu no Rio de Janeiro, em que o 1o colocado barão de Santo Amarou logrou 166 votos e o último colocado da bancada 106. A primeira eleição direta no país foi realizada no dia 7 de abril de 1835, para a eleição do Regente Único que substituiu a Regência Trina, escolhida em decorrência da renúncia do Imperador D. Pedro I, em 7 de abril de 1831. Emendada a Constituição pelo Ato Adicional de 12 de agosto de 1834, a Regência Trina foi substituída por um só Regente, eleito pelo voto direto em todo o território nacional em 7 de

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abril de 1835. Cerca de 6.000 eleitores sufragaram os nomes do padre Diogo Antônio Feijó, com 2.828 e de Holanda Cavalcanti com 2.251 votos, além de 261 outros cidadãos também votados, 98 dos quais com apenas 1 voto. Para que se tenha idéia da dificuldade da realização de um pleito dessa natureza naquela época, basta assinalar que, realizada a eleição em 7 de abril, a apuração só foi concluída em 9 de outubro, quando a Assembléia Geral proclamou os resultados oficiais. A segun-da eleição direta para escolher o substituto de Feijó, que renunciou em 19 de setembro de 1837, foi realizada em abril de 1838. Além de Pedro de Araújo Lima, que obteve 4.308 votos, contra 1.981 dado a seu con-corrente, Holanda Cavalcanti, que também disputara com Feijó, foram votados mais 8 candidatos com o total de 3.109 votos, além de “outros senhores menos votados” que a ata da Assembléia Geral, que os apu-rou, não registra. O eleitorado tinha subido então para 9.398 eleitores, aumentando, como se vê, quase 50% em apenas dois anos. Com essa exceção, as eleições, tanto durante todo o Império quanto na República Velha, obedeceram ao modelo então único em to-dos os países dotados de um sistema representativo. Variou apenas em relação ao número de representantes por distrito: foram uninominais, de um só deputado, até 1860, depois dessa data de três e durante toda a República Velha de cinco deputados. Ressalve-se, porém, que o sis-tema eleitoral brasileiro, tanto no Império quanto na República Velha, era um processo meramente formal e sabidamente viciado, objeto de todas as formas de manipulação. Este, porém, é assunto objeto de outro fascículo, já que o propósito deste curso é explicar o funcionamento dos diferentes sistemas, e sua evolução ao longo da história.

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V – O SISTEMA PROPORCIONAL

A primeira grande revolução do sistema majoritário, uti-lizado até o fim do séc. XIX, ocorreu com a revogação das restrições ao direito de voto e sua concessão à popu-lação masculina. A ampliação do eleitorado, de menos

de 250 mil, para 10 milhões de eleitores entre 1848 e 1849, na França, o primeiro país a adotar a medida, dá bem uma idéia das conseqüências que daí iriam advir. A maioria do eleitorado numa sociedade de mas-sas não admitiria mais ser posta à margem do processo político. Duas conseqüências foram determinantes para as mudanças que se avizinha-vam. A primeira, o surgimento de partidos capazes de mobilizar essas energias. Elas foram despertadas para assumir um novo protagonismo político, tanto na esteira das reivindicações sociais, quanto no agrava-mento dessa desafiadora questão. A segunda foi a adoção do sistema proporcional, capaz de tornar mais compatível a expressão parlamentar com sua força eleitoral. As mudanças de 1848 na França não significaram a universali-zação do direito de voto. Excluídas do processo, as mulheres iniciaram uma luta que, a partir de então, iria também se acentuar, mas que só começou a colher frutos, depois da Primeira Guerra Mundial. O caso da França é típico. Embora a extensão do direito de voto a todos os homens adultos tenha se iniciado em 1848, as mulheres só o conquis-taram em 1945, ao fim da Segunda Guerra Mundial, quase um século depois, portanto. A outra grande mudança, a introdução do sistema proporcional nas eleições, por sua vez, só se concretizou em 1899, sen-do a Bélgica o primeiro país a adotá-lo, seguida da Finlândia (1906), da Suécia (1907), Holanda (1917), Suíça, Itália, Alemanha e Noruega (1919), Dinamarca e Áustria (1920) e Brasil (1932), com uma variante a que voltaremos a nos referir.

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No capítulo II, chamamos a atenção para o fato de que os sis-temas eleitorais cumprem duas funções simultaneamente: assegurar a governabilidade e proporcionar a diversidade. O sistema majoritário, utilizado até o ano de 1899, cumpria o primeiro desses objetivos, por-que foi concebido para funcionar em sociedades homogêneas sob o ponto de vista político, isto é, aquelas em que predominava apenas um interesse hegemônico, o da elite: a aristocracia até o fim do séc. XVIII e a burguesia, a partir daí. Em outras palavras, era um sistema adequado a uma sociedade estamental e a uma sociedade de classes, mas impró-prio para uma sociedade de massas, em que a maior parte da popula-ção – o operariado – estava excluída do processo político. O sistema proporcional foi a modalidade encontrada para acomodar os interesses divergentes entre os diversos setores da sociedade, através do voto. Em outras palavras, dar a cada grupo social participação política e parla-mentar equivalente à sua força, peso e influência no conjunto da socie-dade. Como vimos com a constatação empírica nos casos da Inglaterra (maioria relativa) e da França (maioria absoluta), examinados no item anterior, o sistema aplicado nesses países não assegura a representa-ção das minorias, nem garante o pluralismo das diferentes correntes partidárias, ideológicas e doutrinárias. Suas fragilidades tinham sido postas em evidência com o Reform Act inglês, de 1832, e despertado a consciência dos filósofos para a iniqüidade delas decorrente.

A crítica de John Stuart Mille a contribuição de Carl Andrae

Num de seus mais conhecidos livros, publicado em 1861, Con-siderações sobre o Governo Representativo(22), o inglês John Stuart Mill já denunciava: “Uma democracia perfeitamente igual, em uma nação em que a maioria numérica é composta de uma só classe, está sempre acompanhada de certos males; mas estes males são fortemente agra-vados pelo fato de que as democracias que existem atualmente não são iguais, mas sim sistematicamente desiguais, em favor da classe dominante. Duas idéias completamente diferentes são normalmente

(22) Ed. UnB. Brasília, 1981, cap. VII, p. 71 e segs.

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confundidas sob o nome democracia. A idéia pura de democracia, de acordo com a sua definição, é o governo do povo inteiro pelo povo in-teiro, representado de maneira igual. A democracia, da maneira como é comumente concebida, e até agora praticada, é o governo do povo in-teiro por uma mera maioria, exclusivamente representada. A primeira idéia é sinônimo da igualdade de todos os cidadãos; a segunda, estra-nhamente confundida com a primeira, é um governo de privilégios, em nome da maioria numérica, que é a única a ter voz no Estado. Esta é a conseqüência inevitável da maneira pela qual se vota atualmente, com uma exclusão total das minorias”. A idéia de garantir a representação das minorias foi tentada nas eleições de 1855 na Dinamarca, por iniciativa de Carl Andrae, ofi-cial-engenheiro do Exército e professor da Escola Militar, que propôs a adoção do novo sistema, quando ministro da Fazenda e, logo em seguida, presidente do Conselho de Ministros. A alternativa por ele imaginada e proposta foi aprovada pelo Congresso, a despeito de várias objeções, e terminou, segundo o testemunho de seu filho(23), frustrando os seus objetivos, por ter abandonado a sua idéia fundamental, a res-peito de poderem os eleitores se reunir para votar, independentemente de qualquer forma de divisão em distritos eleitorais. O resultado é que o seu pioneirismo terminou esquecido, sobretudo pela repercussão que teve proposta similar formulada pelo inglês Thomas Hare. A primeira versão do seu método apareceu num fascículo de 1857, intitulado The Machinery of Representantion (O Mecanismo da Representação), di-vulgado dois anos depois em forma de livro, com novo título, Treatise on the Election of Representatives (Tratado sobre a Eleição de Repre-sentantes), que conheceu uma nova edição em 1861. A entusiástica acolhida que lhe deu o filósofo John Stuart Mill, no livro citado pouco acima, garantiu sua notoriedade, sendo, em grande parte, responsável pelo virtual esquecimento do pioneirismo de Andrae e de sua aplicação na Dinamarca.

(23) Cf. PORTO, Walter Costa. Dicionário do Voto. Brasília/SP, Ed. UnB/Imprensa Oficial, citado no verbete Andrae, Carl, em que transcreve a informação do livro de Poul Andrae, Andrae and his Invention – The Proportional Representantion Method. (Andrae e sua Invenção – O Método de Representação Proporcional). Filadelphia, 1926.

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O método Andrae-Hare consistia numa modalidade ainda hoje utilizada em alguns países, denominada VUT (Voto Único Transferí-vel), em que o eleitor elabora a sua própria lista dos candidatos em que deseja votar, ordenando-os segundo sua preferência. Somam-se todos os votos e os eleitos serão os mais votados em ordem decrescente, até o limite do número de vagas a preencher. Para Stuart Mill, ao se mani-festar livremente, os eleitores teriam ampla liberdade de escolha e isto elevaria o nível dos eleitos. Assim justificava ele o seu ponto de vista: “De todos os tipos possíveis de representação nacional, este é o que oferece a melhor segurança, em termos de qualidades intelectuais de-sejáveis para os representantes. No momento, é do conhecimento geral o fato de que está cada vez mais difícil, para as pessoas que possuem apenas talento e caráter, entrar para a Câmara dos Comuns. As únicas pessoas que podem se fazer eleger são aquelas que possuem influência local, ou que vão abrindo seu caminho por meio de grandes gastos, ou que, a convite de dois ou três comerciantes ou advogados, são retirados de seus clubes londrinos por um dos dois grandes partidos, como pes-soas com cujos votos os partidos podem sempre contar. No sistema do Sr. Hare, os que não gostassem de seus candidatos locais, ou que não conseguissem levar adiante o candidato de sua preferência, poderiam escolher os nomes para suas listas de votos dentre todas as pessoas de reputação nacional e constantes da lista de candidatos, com cujos prin-cípios políticos simpatizassem”. O grande filósofo inglês já apontava nesse texto, de meados do séc. XIX, problemas que se tornaram crônicos na prática da represen-tação política contemporânea: a influência econômica de um lado e, do outro, a prática de alguns partidos de impor às suas bancadas o ditato-rial princípio da fidelidade partidária. Tentam, assim, cercear a liberda-de individual dos seus parlamentares, revivendo o mandato imperativo revogado desde os fins do séc. XVIII e proibido, como vimos, em quase todas as Constituições européias dos sécs. XIX e XX. Trata-se de algo, por sinal, que, no Brasil, só vigorou durante a ditadura militar e que está começando a ser utilizado na atual democracia. Entretanto, não foi na Inglaterra que prosperou o sistema pro-posto por Carl Andrae e em seguida por Thomas Hare. O método tinha sido utilizado na Dinamarca a partir de 1855, para a eleição de

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30 representantes no Senado dinamarquês e, por curto período, a partir de 1893 na Costa Rica e, em 1896, na Tasmânia. Embora o Parti-do Trabalhista inglês tenha colocado em seu programa, desde 1974, a proposta de adoção do sistema proporcional, e das sucessivas tentativas de adotá-lo no governo Tony Blair, a Grã-Bretanha continua, até hoje, praticando o sistema majoritário que sempre aplicou.

Depois da iniciativa dinamarquesa, o primeiro país a adotar o sistema proporcional foi a Bélgica, através de um método diferente do sugerido por Andrae e Hare. Este, ainda hoje denominado VUT (Voto Único Transferível), era assim explicado por Assis Brasil(24), um dos au-tores do Código Eleitoral brasileiro de 1932, que introduziu o sistema proporcional no Brasil:

“O país deve formar um círculo [distrito] único; cada eleitor vota em tantos nomes quanto os lugares a preencher. Para que um candidato se considere eleito é preciso que tenha o quocien-te resultante da divisão do número de votantes pelo de lugares a preencher; em cada lista, porém, só se conta um nome, o do primeiro inscrito; se esse não alcança o quociente, ou o excede, os votos que obtiver ou que lhe sobrarem, passam ao segundo e assim por diante, até esgotar as listas, findo o que devem estar designados todos os representantes. Se não estiverem, os votos perdidos se darão aos mais votados. Como se vê, os votos dados ao primeiro nome da lista se transferem aos imediatos, daí a denominação de voto transferível”.

A grande dificuldade do processo era que cada país constitu-ísse um só distrito, isto é, votariam todos os eleitores em qualquer dos candidatos escolhidos. E a apuração teria que ser feita conjuntamente de todos os votos colhidos. Hoje, com a informatização, isto até seria possível, mas a apuração manual tornaria sua aplicação impraticável. Nas eleições para a Câmara dos Deputados de 2002, no Brasil, concor-

(24) BRASIL, J. F. de Assis. Democracia Representativa – Do Voto e do Modo de Votar. Rio de Janeiro, Typ. de G. Leuzinger, 1893, p. 16, cit. pelo prof. Walter Costa Porto, op. cit. Verbete “Hare, Thomas.

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reram 4.901 candidatos, e o número de votantes chegou a 66.600.077. Desta forma, cada eleitor poderia votar em todos, elaborando uma lista com a ordem dos escolhidos entre os 4.901 candidatos, segundo sua preferência. Esta a razão por que o sistema só se aplica aos pequenos distritos ou em eleições majoritárias, como no caso da Dinamarca em 1855, destinadas a preencher apenas 30 vagas no respectivo Senado.

A proposta de Victor D’ Hondt

O sistema adotado a nível nacional na Bélgica, em 1899, era diferente dos de autoria de Andrae e de Hare e deve-se a Victor D’ Hondt, advogado nascido em 1841 e morto em 1901. Em 1885, tor-nou-se professor de Direito Civil na Universidade de Gand. Segundo o prof. Costa Porto(25), sua grande virtude foi a de propor um método que resolveu o problema de distribuição das cadeiras na representação proporcional, sem que sobrassem restos. Diz ele: “Na defesa de seu sistema, D’Hondt começou por admitir a justeza da repartição propor-cional adotada por Hare, com a fixação de um quociente eleitoral, afir-mando: Esta maneira de proceder é, incontestavelmente, a única legítima e se cometeria uma verdadeira iniqüidade, por exemplo, se, havendo diversos trabalhadores executado um serviço qualquer, a totalidade da remunera-ção fosse dada somente ao que houvesse trabalhado mais. Esta, sem dúvida, a injustiça que se comete aplicando o método comum de eleições”. O autor refere-se, obviamente, ao sistema majoritário, então em vigor. Depois de mostrar a impossibilidade da aplicação de uma regra matemática absoluta para determinar a que candidatos atribuir as cadeiras a serem preenchidas, quando o número de votantes e o de candidatos não fosse divisível, ele usa, para fundamentar sua proposta, um exemplo didático e simples:

(25) Op. cit. verbete HONDT, Victor D’., p. 235

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“Tomemos, por exemplo, os números 90, 75 e 45. Se dividirmos estes três números por 15, obtemos os seguintes resultados:

90 ÷ 15 = 675 ÷ 15 = 545 ÷ 15 = 3

Todo mundo sabe que 6 é para 5 e para 3, o que 90 é para 75 e para 45. A mesma proporção, entre os primeiros números existe entre os segundos. Em outros termos, quando se dividem vários números por um mesmo divisor, os quocientes que se obtêm estão na mesma pro-porção que os números divididos. Logo, a divisão de vários números por um mesmo divisor produz uma redução proporcional. Que mais se necessita para resolver o problema?”

A divisão das cadeiras

Para ilustrar a aplicação do método à prática, ele se vale de um exemplo com 3.000 eleitores que devam eleger 3 representantes, divi-didos em 3 partidos da seguinte forma:

Partido A, com 1501 votos Partido B, com 799 votos Partido C, com 700 votos

Divide os três números pelo mesmo divisor: 750

Partido A = 1501 ÷ 750 = 2,001 Partido B = 799 ÷ 750 = 1,065 Partido C = 700 ÷ 750 = 0,933

Como os candidatos são indivisíveis, despreza-se a fração e o resultado será:

Partido A – Elege 2 representantes Partido B – Elege 1 representante Partido C – Não elege nenhum

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De acordo com a conclusão do próprio Hondt, “Segundo todas as regras da eqüidade, ao Partido B corresponde um representante, pois é mais que a metade do Partido A, e a este correspondem dois, por que, me-didos os três com a mesma escala de 750 eleitores, esse número se encontra compreendido duas vezes no número 1501 e somente uma vez no número 799. Sendo pois, três os partidos medidos com o mesmo metro, nenhum deles pode protestar contra o resultado da repartição. (...) a justiça se encontra na divisão de todas as cifras eleitorais, pelo divisor que dê quocientes, cuja soma seja igual ao número de representantes a eleger”.(26)

A grande contribuição de Hondt, portanto, consistiu em esta-belecer um divisor, ou seja, uma medida aplicável a qualquer número de vagas a preencher. A questão reside em saber qual é esse divisor: basta dividir o número de votos de cada partido por 1, 2, 3, 4 e assim sucessi-vamente, até o número de vagas oferecidas. Vejamos o exemplo seguin-te, retirado do livro do prof. Costa Porto, numa eleição de 7 deputados, para a qual concorram 3 partidos com os seguintes resultados:

Partido Conservador.....8145 votosPartido Católico............5680 votosPartido Independente....3725 votos

O divisor a ser usado é 2.036 que, aplicado ao resultado acima, dá o seguinte resultado:

8145 ÷ 2036 = 4,00 5680 ÷ 2036 = 2,78 3725 ÷ 2036 = 1,82

Ao Partido Conservador cabem 4 vagas, ao Católico 2 e ao In-dependente 1. O problema solucionado por Hondt consiste em dividir os votos obtidos pelos partidos, pela seqüência crescente de números inteiros, até obtermos tantos quocientes quanto o número de vagas, como no exemplo seguinte:

(26) PORTO, Walter Costa, op. cit. p. 237.

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Divididos por 1...................8.145............ 5.680..............3.275Divididos por 2...................4.027............ 2.840..............1.862Divididos por 3...................2.715.............1.893Divididos por 4...................2.036Divididos por 5...................1.629

A operação seguinte consiste em colocar todos os números assim obtidos em ordem decrescente:

1o ..........................................8.1452o ...................................................................5.6803o ..........................................4.072 4o.....................................................................................3.7255o ...................................................................2.8406o .......................................... 2.7157o ...........................................2.0368o .................................................................. 1.893

Como são sete as cadeiras a preencher, o quociente ou divisor será o 7o número na lista decrescente dos votos. Uma tabela dos quo-cientes aplicáveis pode ser elaborada dividindo-se por 1, 2, 3, 4 e assim sucessivamente, todos os números de 1 a 1.000 e assim por diante, até o número correspondente ao máximo de cadeiras sobre as quais uma eleição deve incidir.

A designação dos eleitos em cada Partido

Resolvida a questão de como atribuir as vagas a cada partido, resta ainda indicar quais os eleitos entre os seus candidatos. Veja esta hipótese:

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Cand. Conservadores Cand. Católicos Cand. Independentes

Alvin...................503 Dury................... 204 Lyon................. 305Boule................. .305 Jadot.................. 195Caron..................679 Persoul............... 326Garnier ...............405 Van Ryn ............ 123Lamal .................203Motte ..................701Vaes ....................108

Como ao Partido Conservador cabem 4 vagas, ao Católico 2 e aos Independentes 1, serão eleitos, os mais votados, em cada legenda:

Conservadores Católicos IndependentesMotte.................. 701 Persoul............... 326 Lyon................. 305Caron..................679 Dury ................. 204Alvin ................. 503Garnier ...............405

O sistema proposto por Hondt e aprovado pelo Parlamento belga em 1899 suscitou ao longo do tempo várias críticas, a principal delas a de favorecer os grandes partidos em detrimento dos pequenos. Surgiram então inúmeras variações dos divisores a serem aplicados, para corrigir essa falha. Hoje, computando-se o de Hondt, são ao me-nos seis, conforme sintetiza o prof. Dieter Nohlen(27):

Denominação Série de divisores Método D’ Hondt 1-2-3-4-5, etcMétodo Imperiali 2-3-4-5-6, etcMétodo St. Lague 1-3-5-7-9, etcMétodo St. Lague modificado 1,4-3-5-7, etcMétodo dinamarquês 1-4-5-10-13, etcMétodo Hutington 1,41-2,45-3,46-4,47, etc

(27) NOHLEN, Dieter. Sistemas Electorales y Partidos Políticos. México, Universidad Autônoma de México y Fondo de Cultura Econômica, 1994.

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Restos ou Sobras

Em todas as modalidades do sistema proporcional, quando se aplica qualquer dos divisores acima indicados, sempre haverá cadeiras a preencher, porque como explicava o próprio Hondt, é quase impos-sível que o número de votos obtido pelos partidos sejam múltiplos do quociente a ser aplicado. Por isso, o uso do divisor sempre deixará uma sobra de votos não computados. São os chamados “restos” ou “sobras”. Como transformar esses votos restantes nas cadeiras não preenchidas é um dos problemas do sistema proporcional. Várias soluções foram adotadas:

1) Destina-se a cadeira ou cadeiras não preenchidas pelo quociente, ao partido que obtiver o maior número de votos;

2) Destina-se ao partido que obtiver os maiores “restos”;

3) Aloca-se a(s) vaga(s) não preenchidas ao partido que obtiver as médias mais altas no preenchimento das cadeiras que lhe couberam pelo quociente;

4) Existe ainda a solução aplicada no Brasil, que veremos no item próprio e que consiste em dividir os votos de cada partido pelo número de cadeiras preenchidas pelo quociente + 1, até o preenchimento de todas as vagas.

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VI – CLASSIFICAÇÃO DOS SISTEMAS

Vimos até agora que há dois modelos de sistemas eleitorais: o majoritário e o proporcional, que segundo Dieter Nohlen(28), podem ser resumidos no seguinte quadro:

Regra – Tipo básico Fórmula decisória Objetivo da representaçãoRepresentação por maioria Ganha a maioria Formação de maioriasRepresentação proporcional A porcentagem decide Refletir o eleitorado

Eles têm que ser definidos por uma de suas alternativas: a fór-mula decisória ou o objetivo da representação. Por que é tão impor-tante defini-los, se sabemos caracterizá-los? O próprio Nohlen res-ponde: “Tanto a fórmula de decisão como o objetivo da representação podem servir como critério de definição. É importante fazer uso deles separadamente, para não confundi-los, como ocorre freqüentemente na literatura especializada. Para efeito de definição, nos decidimos por aquele critério de maior relevância política. Sem dúvida, o princípio de representação tem maior importância política. Isto quer dizer que o resultado que se busca é mais importante que a fórmula que se apli-ca. Os sistemas eleitorais se classificam aqui, então, de acordo com os objetivos da representação. As fórmulas de decisão são secundárias em importância e não determinam a questão da definição dos sistemas eleitorais. O objetivo da representação e as fórmulas de decisão se relacionam uns com os outros, como meios e fins [O grifo é nosso, não do original]. Enquanto existe uma ampla gama de meios, não há alternativas aos fins. A comprovação de que os tipos básicos majoritário e proporcional se diferenciam segundo o objetivo da representação, tem assim grande legitimidade, já que a fórmula decisória e o objetivo da representação

(28) Op. cit. p. 94 e segs.

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podem ser combinados, por exemplo, ao relacionar a fórmula de deci-são por maioria com o princípio da representação proporcional”. Isto quer dizer que, quando se define o sistema a ser aplicado em cada país, recomenda-se ter em conta os fins e não os meios. Por que a ênfase nos fins? Pela simples razão de que os meios condicionam os fins. De acordo com os fins pretendidos, escolhem-se os meios adequa-dos. E quais as alternativas em relação a cada uma das modalidades? Já vimos que o sistema majoritário oferece duas opções, a maioria relativa (modelo inglês e americano) e maioria absoluta (modelo francês), em dois turnos. No caso inglês, pode-se adotar os distritos uninominais (um candidato por distrito) ou plurinominais (mais de um candidato), da mesma forma que é possível aumentar ou diminuir a dimensão dos distritos em relação ao número de eleitores. No caso francês, se estabe-lece, no segundo turno, uma cláusula de barreira que pode variar, como aliás ocorreu naquele país, de 5% em 1958, a 10% em 1967 e a 12,5% em 1976, nível em que permanece até hoje. Esta modalidade dá aos partidos a oportunidade de concorrerem com candidatos próprios no 1o turno e, não alcançada a maioria absoluta, se coligarem nos distritos em que tenham tido melhor desempenho. Assim o modelo francês tem conseguido isolar a ultra-direita de José Marie Le Pen, da mesma for-ma como, na vigência do sistema proporcional, o General De Gaulle teve êxito em sua política de isolar os comunistas.

Correções nos sistemas proporcionais

Os sistemas proporcionais também admitem medidas correti-vas. A cláusula de barreira, igualmente chamada cláusula de desempenho ou cláusula de exclusão, é uma delas. Pode ser utilizada, tanto a nível local, no distrito, por exemplo, como no caso da França, quanto a ní-vel nacional, como em vários países, segundo se discrimina no quadro seguinte. Destina-se esse recurso a evitar a proliferação partidária, que costuma ser um dos inconvenientes dos sistemas proporcionais.

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Cláusula de barreira ou de desempenho, vigente em alguns países

País Cláusula % Forma de utilizaçãoAlemanha 5 Nível nacional ou ganhar em 3 distritosArgentina 3 Na circunscrição*Dinamarca 2 Nível nacional para participar no 2o turnoEspanha 3 Na circunscrição*Israel 1,5 Nível nacionalItália 4 Nível nacionalJapão 4 Nível nacionalNova Zelândia 4 Nível nacionalSri Lanka 12,5 Nível nacionalSuécia 4 Nível nacional ou 12% na circunscrição*

*A circunscrição eleitoral pode ser o Município, nas eleições municipais, o Estado, nos sistemas federativos, ou todo o país, em caso de eleições presidenciais.

O voto na lista partidária e não nos candidatos

Outra modalidade corretiva é a que decorre do tipo de relacio-namento que se estabelece nos sistemas representativos. Como lembra o prof. Giovanni Sartori(29), “a relação dos processos representativos é de duas fases: entre os eleitores e os partidos e entre os partidos e sua representação”. O relacionamento entre eleitores e os que devem repre-sentá-los, admite duas modalidades: (a) o eleitor vota no candidato de sua preferência, (b) ou no partido de sua escolha. Nos sistemas majo-ritários, via de regra o eleitor vota no candidato. Em grande parte dos sistemas proporcionais, o eleitor vota nos partidos. Mas existe também a alternativa, como ocorre no Brasil, segundo a qual o cidadão, pode votar no partido ou no candidato. A modalidade de votar no partido não significa que o eleitor esteja escolhendo um partido, mas sim a lista de candidatos apresentados por ele. E o voto na lista admite várias modalidades:

(29) SARTORI, Giovanni. Elementos de Teoría Política. Alianza Editorial. Madrid, 1992 (Tra-dução do original italiano), verbete “Sistemas electorales”.

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(a) Lista fechada e bloqueada(b) Lista fechada e não bloqueada(c) Lista aberta e(d) Panachage.

Vejamos cada uma dessas hipóteses, segundo a conceituação de Jo-sep M. Vallès e Agustí Bosch30:

“Voto de lista fechada e bloqueada. O eleitor expressa seu apoio a uma lista de candidatos, sem alterar sua composição, nem manifestar preferência entre eles. Noruega, Israel, Portugal e Espanha encontram-se entre os países que adotam esta moda-lidade de voto”.

“Voto de lista fechada e não bloqueada. O eleitor expressa seu apoio a uma lista de candidatos, na qual pode assinalar alguma ordem de preferência entre os nomes nela contidos. Segun-do determine a legislação, essa ordenação pode afetar todos os componentes da lista, alguns ou um deles, que se distingue en-tre os demais. Em todo caso, é a lista e não o candidato que se beneficia da decisão do eleitor. Esta modalidade é a vigente na Bélgica, na Dinamarca, na Suécia, entre outros países”.

“Voto de lista aberta. O votante pode assinalar não só uma or-dem de preferência entre os membros da lista, como também pode eliminar um ou alguns nomes dela. Só não pode é incluir qualquer nome que dela não conste. Esta é a modalidade usada na Áustria”.

“Panachage. Em francês, ‘mistura’ ou ‘combinação’. O eleitor pode eliminar nomes de uma lista e substitui-los por nomes de outra lista ou por candidatos independentes. Equivale à elabo-ração de uma lista própria de cada votante. Para alguns autores essa modalidade é diferente do voto de lista. A alternativa é usada na Suíça”.

(30) Op. cit., p. 111.

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A representação Proporcional Personalizada,impropriamente chamada Sistema Misto ou Distrital Misto

Ultimamente muito se tem falado no Brasil de um sistema “distrital misto”, a alternativa escolhida pelo projeto de reforma polí-tica que se encontra em tramitação na Câmara, depois de aprovada no Senado. A denominação é imprópria por várias razões. Em primeiro lugar, porque todo sistema distrital é majoritário. E se é majoritário, não é misto. Em segundo lugar, porque se trata de um sistema propor-cional, exatamente o contrário de majoritário. É a combinação de uma escolha a nível local, em distritos uninominais, com uma representa-ção nacional, escolhida em listas fechadas. Esse modelo foi adotado na então República Federal da Alemanha, depois da Segunda Guerra Mundial, para atender às circunstâncias da época, em face do fracasso da República de Weimar, a primeira experiência democrática da antiga Alemanha. A descrição de um especialista(31) serve para esclarecer o en-gano e descrever como funciona essa modalidade. “O sistema alemão é, como se sabe, de representação proporcional. A totalidade das cadeiras que cabe a cada partido se fixa a nível nacional, proporcionalmente aos votos recebidos. A metade das cadeiras, porém, é disputada pelo siste-ma de listas fechadas e a outra metade em distritos uninominais. Cada eleitor utiliza duas cédulas: uma para votar no candidato do distrito e a outra para fazê-lo na lista do partido por ele escolhido, podendo, se o desejar, dividir seu voto, quer dizer, votar, por exemplo, na lista de um partido e usar a outra cédula para votar, no distrito, num candidato de outra legenda. Esse modelo é chamado de sistema de representação proporcional personalizada”. Aparentemente é complicado, porém fácil de se entender. Somam-se os votos dados às listas dos partidos, e divi-de-se o total proporcionalmente a cada um deles. Assim, o partido que receber 40% dos votos terá direito a 40% das cadeiras do Bundestag, a Câmara dos Deputados alemã. Suponhamos que essa porcentagem represente 264 cadeiras e que esse mesmo partido tenha elegido 70 de-

(31) OSSORIO, Julián Santamaría. El Debate sobre las Listas Electorales (O Debate sobre as Listas Eleitorais), “in” NADALES, António Porras. El Debate sobre la Crisis de la Representación Política. (O Debate sobre a Crise da Representação Política). Madrid, Editorial Tecnos, 1996.

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putados pelos distritos uninominais estaduais em que concorreu. Para saber como se comporá sua bancada, subtrai-se das 264 cadeiras a que tem direito pela votação proporcional nas listas, esses 70 escolhidos pelo distrito, que têm preferência no preenchimento das vagas, ou seja (264-70= 194). Sua bancada, portanto, será composta dos 70 eleitos pelos distritos nos Estados, e pelos 194 primeiros colocados na lista nacional. Como se vê, o critério de conversão de votos em cadeiras, é a regra da proporcionalidade.

De algum tempo para cá, o sistema desfrutou de um largo pres-tígio e terminou sendo adotado na Itália, com adaptações, em 1994, como tentativa de superar a crise de 1993 que varreu os velhos parti-dos italianos do mapa político do país. Está sendo utilizado também na Nova Zelândia, desde 1987, no Japão, desde o final de 1995, e na Rússia, no fim da década depois da última reforma constitucional. Em todos esses países, à exceção da Nova Zelândia, a adoção foi uma ten-tativa de solucionar graves crises políticas e/ou partidárias. Entretanto, é preciso considerar as circunstâncias que levaram à instituição dessa alternativa na então República Federal Alemã, após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando o país foi dividido. Vale acompanhar o que, a respeito, esclarece Josep M. Vallès(32): “No terreno eleitoral, Alemanha apresenta também uma trajetória significativa. Tal como outros países europeus, aplicou um sistema majoritário em dois turnos, até que a crise pós-guerra de 1918 levou a República de Weimar a adotar a ver-são mais radical da representação proporcional. Porém, enquanto essa experiência se consolidava na maioria dos países que a adotaram, a trá-gica história de Weimar e seu final em mãos do nazismo fizeram com que alguns analistas convertessem seu sistema eleitoral em bode expia-tório do fracasso da primeira democracia alemã. Em 1945, terminada a Segunda Guerra Mundial, a preocupação das potências ocupantes – Estados Unidos, Grã-Bretanha e França – e dos dirigentes demo-cratas alemães se centrava em dar à zona ocidental do país um sistema constitucional que evitasse os inconvenientes da primeira experiência democrática de Weimar e que freasse, ao mesmo tempo, uma possí-vel hegemonia da esquerda”. A continuidade dos governos foi conse-

(32) Op. cit., p. 231.

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guida com a chamada “moção de censura construtiva”, o princípio da Lei Fundamental do país de 1949, segundo o qual qualquer moção de desconfiança contra o Gabinete no poder só pode ser aprovada se, simultaneamente, a maioria que a aprovar eleger outro governo, que entra imediatamente em exercício. Evita-se, assim, a vacância de poder, comum nos sistemas parlamentaristas, no intervalo entre a queda de um Gabinete e a escolha do que o sucede pelo Parlamento. E as me-didas para evitar a influência da esquerda, por sua vez, consistiram em adotar esse sistema eleitoral personalizado, que combina voto pessoal e voto partidário, com uma cláusula de barreira de 5% a nível nacional. Depois da unificação do país, para propiciar a disputa dos partidos da antiga República Democrática Alemã, sem se submeterem à cláusula de desempenho de 5%, se permitiu que, mesmo não ultrapassando esse umbral, eles tivessem direito à representação desde que conseguissem eleger, pelo menos, três representantes nos distritos uninominais. A distribuição das sobras que decorrem da repartição proporcional das cadeiras, obedecia à formula D’Hondt até 1985, quando foi substituída pela variante Hare-Niemeyer.

O modelo de engenharia política e constitucional funcionou razoavelmente, enquanto duraram as condições históricas em decor-rência das quais foi implantado. Até 1986, o modelo partidário era constituído de dois grandes partidos, o Democrata Cristão, conser-vador, e o Social Democrata, de esquerda, além de um fiel da balança, o Liberal que ora se coligava com um, ora com o outro partido, para formar governo. A suposição era a de que, tendo direito a dois votos, o eleitor alemão daria um voto a um dos partidos majoritários e outro ao 3o partido que com ele se coligasse, assegurando assim uma coalizão estável de governo. São inúmeros os autores que asseguram não ser o modelo nem exportável, nem recomendável, por várias razões, além de não ter nunca cumprido as finalidades para as quais foi idealizado. A primeira das razões é que o número de cadeiras no Budestag, a Câmara dos Deputados do país, é variável, pois se um partido consegue eleger mais deputados pelos distritos do que a proporção que lhe cabe pelas listas, prevalece esse número que é acrescentado ao número total de re-presentantes. Outra é que “sustentou-se e se provou que sua mecânica é difícil de entender, já que, ainda em 1987, [quase 30 anos depois de

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sua adoção] só 45% dos alemães tinham consciência de que o voto im-portante, o que decide que partido ganha as eleições, é o segundo voto, o de lista. Igualmente se pôde afirmar que são poucos os que fazem uso da possibilidade de dividir o voto e, assim, 95% dos que votaram nas listas do Partido Democrata Cristão e do Partido Social Democrata, entre 1953 e 1987 votaram também no candidato do mesmo partido, com seu primeiro voto”(33). Um dos maiores especialistas nessa modali-dade(34) assegura que o sistema “não produz dois tipos de parlamenta-res” e que “os eleitores não percebem diferença alguma” entre os eleitos através do voto uninominal e os escolhidos através do sistema de lista. Isto significa que o modelo não atingiu seus objetivos e que a idéia da representação proporcional “personalizada” possui mais vigência no plano das intenções do que na realidade. Nas eleições italianas de 1994, quando se adotou um sistema semelhante, os partidos e coalizões tra-taram de “personalizá-las” valendo-se da popularidade de muitos de seus candidatos recrutados no mundo do esporte e dos artistas que se viram transformados em sementeiras da classe política. Entretanto, na hora de votar, a identificação com os símbolos dos partidos ou com seu líder, terminou prevalecendo sobre a personalidade individual dos candidatos. Examinados os diferentes sistemas e algumas de suas particula-ridades, parece conveniente, antes de abordarmos o modelo brasileiro, o último item desta Unidade, apresentarmos um esquema sumário e simplificado dos modelos aqui analisados. Vimos que há dois mode-los e algumas alternativas, podendo muitas delas serem combinadas. Tomando a regra de conversão de votos em cadeiras, que é um dos critérios de classificação dos sistemas, veremos que eles se dividem, de acordo com o cientista político alemão Dieter Nohlen(35), segundo o seguinte esquema:

(33) SMITH, G. The Changing West German Party System: Consequences of the 1987 Election (O Cambiante Sistema Partidário Alemão: Conseqüências da Eleição de 1987), cit. por NADA-LES, António Porras, op. cit.(34) JESSE, E. Split-voting in the Federal Republic of Germany: an Analysis of the Federal Elec-tions from 1953 to 1987. (O Voto-dividido na República Federal da Alemanha: uma Análise das Eleições Federais de 1953 a 1987), cit. por NADALES, António Porras. O sistema alemão também é chamado de vote-splitting, isto é, voto dividido, pela possibilidade de votar em dois partidos diferentes. (35) Op. cit., p. 67

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Por outro lado, se os classificarmos não só segundo a fórmula de conversão, mas também de acordo com a combinação de elementos que os integram, conforme o modelo de Josep Vallès e Agusti Bosch36, esquema será o seguinte:

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(36) Op. cit., p.193

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VII – O MODELO BRASILEIRO

Durante todo o Império e a República Velha, o sistema elei-toral brasileiro seguiu o modelo distrital, de maioria re-lativa, com algumas adaptações e raras mudanças, como a transformação das eleições que eram indiretas em dois

turnos, em diretas, a partir de 1881, com a aprovação da Lei Saraiva. Outras foram as chamadas “Lei dos Círculos” e “Lei do Terço”, tenta-tivas nem sempre bem sucedidas de se garantir a representação das mi-norias. Um retrato fiel, famoso e objetivo de como eram manipuladas as eleições desse período, foi traçado pelo deputado e então senador José Tomás Nabuco de Araújo, num discurso pronunciado na sessão do dia 17 de julho de 1868: “o Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; essa pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis, aí está o sistema representativo em nosso país!” Quase nada mudou com a República, quando as eleições, até a Revolução de 1930, passaram a se basear nas “atas falsas” elaboradas “a bico de pena”. O movimento político de 3 de outubro de 1930 trouxe duas grandes mudanças no sistema eleitoral brasileiro, a instituição da Jus-tiça Eleitoral e a adoção de uma modalidade ainda incompleta de elei-ções proporcionais, com o Código Eleitoral de 1932, que regulou os dois únicos pleitos realizados antes do Estado Novo, proclamado em 1937. A esse golpe seguiram-se 8 anos de ditadura, o fechamento dos partidos, a dissolução do Congresso e a virtual proibição de toda e qualquer atividade política fora do governo. O sistema de nosso pri-meiro Código que regulou as eleições para a Constituinte de 1933 e as de 1934, para a Legislatura ordinária, estipulava um pleito em dois turnos. No primeiro, eram escolhidos todos os eleitos pelo quociente eleitoral e no segundo os demais candidatos mais votados, até com-pletarem o número de vagas. Esse Código foi alterado pelo Congresso

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em 1935, mas não chegou a regular qualquer eleição, em virtude do advento do Estado Novo. No início de 1945, quando o fim da Segunda Guerra Mundial se tornou inevitável, Getúlio Vargas deu início a um processo controlado de abertura política, concedendo anistia, convo-cando eleições e estabelecendo uma nova legislação eleitoral, com um sistema efetivamente proporcional. Valendo-se dos poderes ilimitados para legislar e emendar a Constituição de 1937, que ele mesmo tinha outorgado, baixou o Decreto-lei 7.586, de 28 de maio de 1945, para regular o pleito que, finalmente, viria a ocorrer no dia 2 de dezembro do mesmo ano. O cap. III desse decreto tratava “Da Representação Propor-cional” para a Câmara dos Deputados e as Assembléias Legislativas e estipulava a forma de estabelecer o quociente eleitoral:

Art. 45 – Determina-se o quociente eleitoral dividindo-se o número de votos válidos apurados, pelos lugares a preencher em cada circunscrição eleitoral, desprezada a fração se igual ou inferior a meio, equivalente a um se superior. Parágrafo único – Contam-se como válidos os votos em branco, para determinação do quociente eleitoral. Art. 46 – Havendo mais de um candidato registrado pelo mes-mo partido, estão eleitos tantos deles, na ordem de votação que cada um tenha recebido, quantos indicar o quociente partidário. Art. 47 – Determina-se para cada partido o quociente partidá-rio dividindo-se pelo quociente eleitoral o número de votos válidos dados em cédulas sob a mesma legenda, desprezada a fração. Art. 48 – Os lugares não preenchidos com a aplicação do quo-ciente eleitoral e dos quocientes partidários são atribuídos ao partido que tiver alcançado maior número de votos, respeitada a ordem de votação nominal de seus candidatos.

Com exceção da distribuição das “sobras”, a fórmula que a le-gislação estipulava é, com pequenas alterações, a que se utiliza até hoje para determinação do quociente eleitoral:

Votos válidos ÷ Número de vagas a preencher = Quociente eleitoral

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O número de cadeiras de cada partido, obedecia a uma fórmula similar:

Total dos votos do partido ÷ pelo quociente eleitoral = Quociente partidário

Vejamos com os números da própria eleição de 1945, utilizan-do-nos dos dados do Pará, escolhido aleatoriamente: o Estado tinha direito a 9 representantes na Câmara dos Deputados e foram apurados 110.974 votos válidos (incluídos os votos em branco). Aplicando-se a fórmula teremos o quociente eleitoral:

110.974 ÷ 9 = 12.330,444 desprezada a fração por ser menor que meio

A soma dos votos dos candidatos de cada partido foi a discri-minada abaixo. Aplicando-se o quociente eleitoral, teremos os seguin-tes resultados:

Partidos Votos/Quociente VagasVagas

adicionais(Art. 48)

Partido Social Democrático – PSD 60.479 ÷ 13.330 = 4,53 4 +2União Democrática Nacional – UDN 26.695 ÷ 13.330 = 2,00 2 0Partido Comunista do Brasil –PCB 4.479 ÷ 13.330 = 0,33 0 0Partido de Representação Popular- PRP 996 ÷ 13.330 = 0,07 0 0Partido Popular Sindicalista –PPS 14.452 ÷ 13.330 = 1,08 1 0

Veja na lista dos candidatos, quais os eleitos pelo Pará, na elei-ção para a Constituinte:

Partido Social Democrático Nomes Votos

Joaquim de Magalhães Cardoso Barata.......................25.153Aníbal Duarte de Oliveira.............................................6.716João Guilherme Lameira Bitencourt.............................6.700Carlos Pereira Nogueira................................................4.490Nelson da Silva Parijós..................................................4.437José João da Costa Botelho............................................4.432

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União Democrática Nacional

Agostinho de Menezes Monteiro.........................................11.818Epílogo Gonçalves de Campos...............................................5.358

Partido Popular Sindicalista

Deodoro Machado de Mendonça..........................................8.814

O princípio do art. 48, mandando conceder ao partido com maior número de votos as vagas não preenchidas pelo quociente eleito-ral, causou significativa distorção nos resultados finais dessas eleições. O quadro seguinte mostra os resultados finais, a nível nacional, da pro-porção entre votos e cadeiras de todos os partidos, nessas eleições:

PARTIDOSRepresentação Votação

Absoluta % Absoluta %Partido Social Democrático – PSD 2.531.944 42,737 151 52,87União Democrática Nacional – UDN 1.575.375 26,590 77 26,92Partido Trabalhista Brasileiro – PTB 603.500 10,187 22 7,700Partido Comunista do Brasil – PCB 511.302 8,630 14 4,900Coligação UDN/Partido Republicano 165.122 2,788 6 2,010Partido Popular Sindicalista – PPS 107.321 1,811 4 1,400Partido Democrata Cristão – PDC 101.636 1,715 2 0,700Partido Republicano – PR 219.562 3,705 7 2,450Partido Libertador – PL 57.341 0,968 1 0,350Partido Republicano Progressista – PRP 33.647 0,568 1 0,350Partido Agrário Nacional – PAN 17.866 0,301 1 0,350

Fonte: TSE, Dados Eleitorais, 1964

Verifica-se que o PSD, partido majoritário, ficou sobre-repre-sentado, com 42,7% dos votos e 52,8% das cadeiras. Para a UDN a representação foi proporcional à porcentagem de votos e os partidos menores, como o PTB e o PCB ficaram sub-representados, com 10,1% dos votos e 7,7% da representação e 8,6% dos votos e 4,9% da re-

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presentação, respectivamente. Tratava-se, como se vê, de uma repre-sentação proporcional distorcida, em virtude do critério utilizado para distribuição dos restos ou sobras.

O Código de 1950

Essa situação foi corrigida com o Código Eleitoral de 1950 (Lei 1.164, de 24 de julho de 1950), aplicando-se a distribuição das sobras da chamada quota Droop:

Art. 59 – Os lugares não preenchidos com aplicação dos quo-cientes partidários, serão distribuídos mediante a observância das seguintes regras:

1. Dividir-se-á o número de votos válidos atribuídos a cada partido pelo número de lugares por eles obtidos, mais um, cabendo ao partido que apresentar a maior média um dos lugares a preencher.

2. Repetir-se-á a operação para a distribuição de cada um dos outros lugares.

Aplicando-se o novo método às eleições de 1954 do Estado do Pará, obtém-se o seguinte resultado:

Partidos Votos/Quociente VagasVagas

adicionais(Art. 48)

Aliança Social Democrata PSD-PRP 78.129÷20.087=3,88 3 3Partido Social Progressista – PSP 45.551÷20.087=2,26 2 1Partido Trabalhista Brasileiro – PTB 19.866÷20.087=0,98 0 0União Democrática Nacional – UDN 17.081÷20.087=0,85 0 0Partido Republicano – PR 7.202÷20.087=0,35 0 0Partido Socialista Brasileiro – PSB 1.891÷20.087=0,09 0 0Partido Trabalhista Nacional - PTN 113÷20.087=0,005 0 0

O quociente eleitoral foi obtido dividindo-se; o total de votos válidos (nominais + brancos) 180.784, pelo número de vagas. Resul-

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tado: 20.087, desprezada a fração. Com esse quociente, só a Aliança Social Democrata e o Partido Social Progressista obtiveram 5 das 9 va-gas. A atribuição das 4 vagas seguintes, pelas sobras, foi feita de acordo com o novo critério do Código de 1950 e atendeu ao seguinte cálculo, previsto no art. 59:

1a VagaAliança: 78.129 ÷ 4 (3 +1) = 19.532

PSP: 45.551 ÷ 3 (2 + 1) = 15.1831a Vaga para a Aliança, que ficou com 4 deputados

2a VagaAliança: 78.129 ÷ 5 (4+1) = 15.625

PSP: 45.551 ÷ 3 (2+1) = 15.1832a Vaga para a Aliança, que ficou com 5 deputados

3a Vaga: Aliança: 78.129 ÷ 6 (5+1) = 13.021

PSP: 45.551 ÷ 3 (2+1) = 15.1833a Vaga para o PSP, que ficou com 3 deputados

4a Vaga: Aliança: 17.868 ÷ 6 (5+1) = 13.021

PSP: 45.551 ÷ 4 (3+1) = 11.3874a Vaga para Aliança para a Aliança que ficou com 6 deputados

Sob o Código Eleitoral de 1950, o primeiro votado pelo Congresso, depois da redemocratização de 1945, foram realizadas as eleições presidenciais de 1950, 1955 e 1960, e as parlamentares de 1950, 1954, 1958 e 1962.

Os casuísmos eleitorais do regime militar

Ao contrário do que ocorreu em 1937 com o advento do Es-tado Novo, quando Getúlio dissolveu e fechou o Congresso, extinguiu

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os partidos, criou o Tribunal de Segurança para processar os adversá-rios, instituiu a censura, exilou os adversários e proibiu toda e qualquer atividade política, em 1964 os militares que tomaram o poder pensa-vam poder governar com as instituições do regime liberal instituído em 1946. Cassaram, sumariamente, os mandatos dos vencidos, deram início ao expurgo dos adversários, submeteram os civis a julgamen-to da Justiça Militar e iniciaram um novo e prolongado ciclo político em que vigorou a censura na maior parte da duração do regime. Se o Estado Novo foi uma ditadura civil com suporte militar, o regime militar foi exatamente o contrário: uma ditadura militar, com suporte civil. Eles permaneceram como titulares do poder durante 21 anos, entre 1964 e 1985. Mas o regime que eles instituíram, subsistiu, com o mesmo aparato institucional e alguns avanços, até a promulgação da Constituinte de 5 de outubro de 1988, até hoje em vigor. No período militar, Atos Institucionais, Atos Complementares, Decretos-leis, Leis Complementares e Leis Ordinárias, além de duas Constituições, sob as quais governaram os generais, numa sucessão variada de normas legais, alteraram a legislação eleitoral e partidária que terminaram sendo pro-gressivamente revogadas, após a transição democrática que culminou com a realização da Assembléia Constituinte de 1987 e a promulgação da Constituição de 1988. Sob essa legislação casuística e ocasional, foram realizadas eleições indiretas para Presidente da República, en-tre 1964 e 1985, para governadores, entre 1967 e 1982, e as eleições parlamentares de 1966, 1970, 1974, 1978, 1982, e 1986. Nas eleições para a Câmara e Assembléias Legislativas, vigorou o mesmo sistema proporcional e de atribuição de vagas pelas “sobras”. Com relação ao Senado, foi instituída, pelo “pacote de abril” (Emenda Constitucional n° 10, de 14 de abril de 1977), a figura do Senador “biônico”, eleito indiretamente, pelo mesmo colégio eleitoral que escolhia os governa-dores dos Estados. Essa modalidade foi aplicada a 1/3 do Senado, nas eleições de 1978. Entre 1966 (AI-2) e 1978 (Emenda Constitucional 13, de 11/10/78), vigorou um sistema bipartidário, imposto obrigato-riamente aos partidos então existentes. Pode-se dizer que nos 24 anos que separam o texto constitucional em vigor e o golpe militar de 1964, todas as eleições se realizaram com mudanças ocasionais na legislação

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eleitoral. A única regra inalterada foi a que rege o sistema proporcional, em vigor desde o Código Eleitoral de 1950. Sob o regime constitucional hoje em vigor, foram votadas duas novas leis em relação ao sistema eleitoral: de inelegibilidades (Lei Complementar n° 64, de 18/5/90) e a impropriamente chamada “lei das eleições” (Lei 9.504, de 30/9/97). O Código Eleitoral aprovado sob o regime militar (Lei 4.737, de 15/7/65) continua em vigor, com dezenas de alterações introduzidas pela “lei das eleições” acima citada. Pela primeira vez se alterou a regra de conversão de votos em cadeiras. Entre todas as eleições realizadas entre 1945 e 1996, se observou a regra de que o quociente eleitoral incluía a soma de votos dados aos candidatos e/ou partidos, inclusive aqueles em branco. O art. 5o da “lei das eleições” alterou essa norma, dando-lhe a seguinte redação: “Nas eleições proporcionais, contam-se como votos válidos apenas os votos dados aos candidatos regularmente inscritos e às legendas partidárias”. Com essa modificação, o quociente eleitoral baixou, já que diminuiu a quantidade de votos sobre a qual se divide o número de vagas. Outra mudança foi a que permitiu coligações nas eleições proporcionais, o que não era permitido desde 1965, quando entrou em vigor o atual Código. Algumas Resoluções do TSE também complementaram ou modificaram as disposições antes em vigor. A de n° 16.844/90 deter-mina que no cálculo da média de votos de cada partido deverá ser considerada a fração até a 14a casa decimal. Essa mesma Resolução e os Acórdãos 11.778, de 19/4/94 e 2.895, de 14/8/2001 ainda determinam que no caso do empate na fixação da média entre dois ou mais parti-dos ou coligações, considerar-se-á o partido cu coligação com maior votação, não se aplicando o art. 110 do Código Eleitoral37; no caso de empate na média e no número de votos, deve ser usado como terceiro critério de desempate o número de votos nominais.

(37) “Em caso de empate [na distribuição das vagas] haver-se-á por eleito o candidato mais idoso.

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VIII – CONCLUSÃO

Como lembrou o prof. Adam Przeworsky, já citado no início deste texto, a última grande invenção da política foi o voto, recurso utilizado há cerca de 200 anos e há um pouco mais na Inglaterra, onde está o Parlamento mais antigo do mun-

do. O voto é o mais valioso instrumento da democracia, mas não é a própria democracia. Votar é um procedimento que praticamos de dois em dois anos, para darmos conseqüência à Teoria da Representação, procedimento que materializa os sistemas representativos. Os regimes que se baseiam apenas nas eleições, são os chamados pelos cientistas políticos de “democracia procedimental”. A autêntica democracia vai além: exige que também as decisões de interesse coletivo sejam de-mocráticas. E elas serão democráticas, quando nelas tomarem parte os interessados. Esse é o regime que os cientistas políticos denominam “democracia participativa”, algo intermediário entre a democracia pro-cedimental e a democracia direta, que se tornou impraticável com o advento da sociedade de massas. Para praticarmos essa nova forma de democracia, temos que iniciar manifestando-nos e tomando parte nas decisões das cidades em que vivemos. Em outras palavras, é indispen-sável que seja utilizada a nível municipal, para então levarmos a prática às demais esferas do poder, por mecanismos que estão começando a se viabilizar com os recursos da informática. Esta é a razão por que, na apresentação deste curso, constante da Unidade I, chamei a atenção para o fato de que, se nossos antepassados conquistaram para nós a de-mocracia do passado, tal como a praticamos no presente, cabe às nossas gerações aprimorá-la para que a modalidade participativa que é o futu-ro da democracia, seja, enfim, a democracia do futuro. E isso depende de nós e do nosso voto. Em suma, dos que estejam comprometidos, mais do que com essa idéia, com esse ideal.

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